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"Pequenos Guerreiros Narrativas de Judocas
"Pequenos Guerreiros Narrativas de Judocas
título em inglês
O presente artigo tem como objetivo descrever e analisar relatos das histórias de vida de atletas de
categorias de base do judô acerca das dificuldades enfrentadas e vivências em sua trajetória de vida e
esporte. Trata-se de um estudo de caso, de metodologia qualitativa de história oral, utilizando como
instrumento a entrevista semiestruturada. Para isto foram entrevistados seis judocas da categoria de
base, participantes de um Projeto de Extensão Psicoeducacional em Psicologia do Esporte, de uma
cidade do interior do Paraná-Brasil. Após a coleta dos dados, as entrevistas foram transcritas na
íntegra e submetidas a análise fenomenológica de Edmund Husserl. Pôde-se compreender como o
esporte beneficia a vida das crianças, tornando-se um fator de proteção em frente às vulnerabilidades
em que se encontram. Foi observado que os princípios do judô aplicados no tatame e no cotidiano dos
judocas estimulam o desenvolvimento de competências de vida e desenvolvimento humano.
This article aims to describe and analyze reports of the life histories of athletes of Judo base categories
about the difficulties faced and experiences in their trajectory of life and sport. This is a case study of a
qualitative methodology of oral history, using the semi-structured interview as an instrument. For this,
six judokas from the base category of a city in the interior of Parana were interviewed. After data
collection, the interviews were fully transcribed and submitted to Edmund Husserl's phenomenological
analysis. It was possible to understand how sport benefits children's lives, becoming a protective factor
in front of the vulnerabilities in which they are located. It was observed that the judo principles applied
in the tatami and in the daily routine of the judokas stimulate the development of competences of life
and human development.
Diante deste panorama tem como objetivo geral a análise das narrativas de atletas das
categorias de base do judô, buscando entender o impacto que o esporte tem na esfera social,
psíquica e emocional da vida destas crianças. Os objetivos secundários deste estudo enfocam
os benefícios do esporte para as crianças por meio do judô, discussão do conceito de
vulnerabilidade, resiliência, fatores de risco e proteção. A escolha desta pesquisa justifica-se
na importância encontrada pelas transformações e possibilidades que o esporte pode oferecer
para crianças e adolescentes que se encontram em situações de vulnerabilidade como
ferramente de justiça social. Segundo a UNESCO:
1.Revisão de Literatura
1.1. O esporte como ferramenta de inclusão na vulnerabilidade social
A prática esportiva é um estímulo eficaz para o desenvolvimento de hábitos saudáveis. Dentre
estes aprendizados podem ser observados a busca pela conquista de metas, disciplina, o
aprendizado para lidar com regras e cumprir horários. O desenvolvimento social e humano
podem ser desenvolvidos nas convivências por meio do trabalho em equipe, no respeito pelo
adversário e na sensação de bem-estar ao realizar as atividades. Outra transformação
percebida na prática desportiva é o aumento da autoestima e da autoconfiança (Sanches, 2007
como citado em Zocateli, 2010; Silva & Pontes, 2013).
Patrick (1903) e Hermann (1921) citados por Vieira et al. (2010) afirmam que o esporte
permite o desenvolvimento de hábitos de vida e que o corpo trabalhado por meio de sua
musculatura pode ser um mecanismo eficaz no desenvolvimento cinestésico, social,
desenvolvendo regras e caráter. Vieira et al. (2010) também citam Kellor (1908) ao
descreverem que a atividade física constrói não apenas um corpo forte, mas, também, uma
mente forte.
Além de todos os benefícios que pode trazer, o esporte tem se mostrado uma saída criativa e
eficaz para enfrentar as adversidades e a violência entre jovens e adolescentes. As atividades
esportivas podem ser um meio de resgatar a dignidade, promover a ampliação e novas
perspectivas de vida, desenvolver a consciência dos direitos e deveres, a valorização do ser
humano, inclusão social, reconstrução de valores éticos e educar para que se torne possível
exercer plena cidadania superando as condições de vulnerabilidade social (Souza, Souza &
Fidelis, 2009).
Os fatores de proteção, por sua vez, agem como mediadores entre os fatores de risco e os
comportamentos consequentes do indivíduo. Eles são divididos em três categorias: atributos
pessoais do sujeito; laços familiares afetivos e a existência de sistemas de apoio externo como
a escola ou a comunidade. Em meio a este processo, a criança que se apoia em fatores de
proteção como recursos internos (autoestima positiva, autocontrole, autonomia), família ou
sistemas externos (escola, comunidade) pode vir a desenvolver uma capacidade de resiliência
frente as dificuldades que encontra (Pesce et al., 2004; Pinheiro, 2004; Rutter, 1985, 1987,
2006 e Smokowski, 1999 et al., como citado em Zocateli, 2010). Além disso, estes tipos de
proteção podem amenizar os efeitos de risco, possibilitando a criança um desenvolvimento
saudável. Portanto, a formação e o desenvolvimento humano nos contextos social, cognitivo,
psicológico, emocional, pessoal e moral é de grande interesse de estudo da Psicologia do
Desporto e do Exercício (Miller & Kerr, 2002 como citado em Souza, 2019), visto que o
esporte pode vir a ser um importante instrumento para eles.
Para Danish et al. (2004) as competências de vida, são os recursos pessoais que um indivíduo
possui que o levam a ter sucesso no meio em que vive e devem ser aplicadas em diferentes
contextos em que este se encontra. Logo, o esporte só servirá como uma ferramenta de treino
de competências caso a pessoa seja capaz de transferi-las para outro contexto.
O judô (ju: suavidade; do: caminho, doutrina) é uma arte marcial que surgiu no Japão no fim
do século XIX, em 1882. Numa tentativa de readaptação e aprimoramento do ju-jutsu, Jigoro
Kano criou o judô, um esporte de combate, que tem como objetivo principal não mais a
vitória, mas, a educação global do praticante (Calleja, 1982 como citado em Trusz &
Dell’Aglio, 2010). Kano buscou na elaboração do judô uma oportunidade para o
desenvolvimento físico e espiritual dos atletas, bem como um meio de superar as limitações
do próprio participante, retomando questões morais e intelectuais e o próprio aprimoramento
físico baseado em fundamentação filosófica de paz e superação.
O judô, portanto, é visto como uma oportunidade eficaz para o desenvolvimento integral da
criança, incluindo suas competências comportamentais (comunicação), cognitivas (raciocínio,
tomada de decisões), interpessoais (relacionamentos) e intrapessoais (formular objetivos)
(Danish et al., 2004 como citado em Dias et al., 2012), auxiliando-a a se inserir em sua
sociedade com valores morais e atitudes cultural e socialmente aceitas.
2.Método
Para realizar a proposta deste trabalho foi utilizada a abordagem biográfica de História Oral,
de metodologia qualitativa. As características utilizadas no método de História Oral envolvem
primeiramente a elaboração de um projeto, a definição de um grupo de pessoas a serem
entrevistadas, o planejamento da condução das gravações, a transcrição e conferência do
depoimento, a autorização para o uso da história, e a publicação dos resultados, sempre que
possível (Silva et al., 2007).
O roteiro das entrevistas foi organizado sistematicamente, com o objetivo de encontrar dados
das experiências subjetivas dos indivíduos ou de suas vivências. As informações obtidas nas
entrevistas foram analisadas através da metodologia fenomenológica criada por Edmund
Husserl. A fenomenologia é um método de conhecimento rigoroso, uma perspectiva filosófica
que constitui um modo de pensar a realidade e questioná-la (Holanda, 1998 como citado em
Bezerra & Bezerra, 2012). Objetivou-se, portanto, captar o essencial das falas obtidas nas
entrevistas, deixando em suspensão possíveis pressuposições, noções preconcebidas ou
qualquer tipo de crenças no mundo exterior (Carvalho, Nascimento & Soares, 2012), a fim de
buscar compreender os fenômenos manifestados tais como são.
3.Resultados e Discussão
As falas obtidas por meio das entrevistas realizadas serão aqui apresentadas e discutidas por
meio de 3 questões norteadoras: (1) Minha história de vida e o esporte, (2) Você conhece os
princípios do judô e consegue aplicá-los no seu cotidiano? (3) Você notou alguma mudança
de comportamento fora do tatame após iniciar a prática esportiva do judô?
Atleta 1
Para esta atleta o esporte a ajudou em todos os aspectos da sua vida. Em anos muito
difíceis de sua vida pessoal e familiar, o judô foi uma distração que a ajudou a esquecer um
pouco dos problemas que estava enfrentando. Percebeu que o judô a deixou uma adolescente
mais feliz, mesmo diante de sérios problemas. Para ela o esporte é uma maneira de se dedicar
a algo, sem ficar o dia todo ociosa.
Atleta 03
O atleta 3 tem 15 anos e acorda às 6h da manhã para ir ao trabalho. Segue direto para a
escola, tendo a possibilidade de almoçar em um restaurante parceiro que oferece alimentação
gratuita todos os dias (pelas precárias condições financeiras do atleta). Saindo da escola, ele
segue diretamente para o treino de judô, retornando para casa às 22h15 da noite, tendo como
meio de transporte o ônibus coletivo. Para este atleta o judô é uma distração no meio das
outras obrigações do seu dia a dia, mas relata gostar da rotina que possui e mais ainda de
treinar.
Atleta 4
Esta atleta afirmou: “Eu me encontro no esporte, é uma coisa que eu gosto, quero levar
para a vida. Quando eu entro no tatame eu esqueço de tudo, me sinto bem, alegre, com meus
amigos, e gosto dos professores.”
Atleta 5
A atleta 5 relatou que em um momento difícil de sua vida, onde apresentou sintomas
de depressão e síndrome do pânico, o judô a ajudou muito, sendo uma distração para ela. Ela
também afirmou: “o judô me ajuda muito a relaxar, por mais cansativo que seja, eu fico muito
relaxada ao treinar e alivia muito o meu estresse.”
Atleta 6
A atleta 6 afirmou que o esporte mudou muita coisa em sua vida. Sua mãe foi
assassinada quando tinha apenas 4 anos idade. Ela sentia-se muito sozinha, e sofria bullying
na escola por ser maior do que os seus colegas. Brigava muito na escola e batia sempre que
perdia a paciência com alguém. Sobre a importância do esporte em sua vida, ela relatou:
Martinek & Hellison (1997) como citados em Zocateli (2010) afirmam que programas
de prática esportiva que visam o desenvolvimento da autoestima, dignidade, autonomia,
competência social e esperança em crianças e jovens, podem auxiliar a promover o reforço da
resiliência e diversas outras competências de vida, sendo, portanto, um fator de proteção para
eles. A resiliência se refere a um processo dinâmico envolvendo fatores sociais e
intrapsíquicos de risco e proteção, presente em vários momentos da vida de uma pessoa
(Yunes, 2003 como citado em Zocareli, 2010; Zocateli, 2010). É a capacidade que o indivíduo
possui, se apoiando em fatores de proteção, para adaptar-se, enfrentar, superar e ultrapassar
momentos de dificuldade, patologia e crise. Em estudos encontrados sobre a relação entre a
resiliência e a prática esportiva o foco está no alto rendimento no esporte e na superação das
dificuldades (Halgin, 2009; Milham, 2007 como citado em Zocateli, 2010).
O esporte propicia ao praticante vivenciar experiências que desenvolvem algumas
características como: aprender a controlar sentimentos, disciplina pessoal, uma maior
resistência a frustração, tolerância ao sofrimento e comportamentos direcionados ao
cumprimento de metas (Sanches, 2007 como citado em Fontes, 2013). Estas características
favorecem a promoção da resiliência, auxiliando na exposição e no enfrentamento de
dificuldades encontradas no decorrer da vida (Bell & Suggs, 1998 como citado em Fontes,
2013). As experiências positivas, por sua vez, também são importantes para o
desenvolvimento da resiliência, já que estas elevam os sentimentos de autoestima, auto
eficácia, autonomia, resolução de problemas e adaptações (Rutter, 1985 como citado em
Fontes, 2013).
Você conhece os princípios do judô e consegue aplicá-los no seu cotidiano?
Este princípio foi citado por quase todos os participantes. O atleta 2 afirmou que este
foi o primeiro princípio que ouviu ao entrar no judô e é o que faz mais sentido para ele, ele
acrescentou: “Quando eu fui fazer uma prova eu achei que ia tirar uma nota baixa, e eu
realmente tirei nota baixa e eu acho que minha nota foi consequência de ter acreditado nisso,
do contrário eu teria ido bem”. O atleta 3 disse ter percebido mudanças em seu
comportamento devido ao esporte, ele afirmou que deseja “Ser campeão na vida e no esporte.
Sou muito competitivo, não gosto de perder”. No relato da atleta 5 algumas questões
imporantes foram trazidas:
“quando eu penso que vou perder eu realmente acabo perdendo. Eu
sou muito insegura e ansiosa. Em campeonatos quando vejo a faixa
do meu adversário, quando é maior do que a minha já penso “vou
perder” e acho que isso me deixa tão nervosa e ansiosa que acabo
perdendo”.
Na fala do atleta 4 as derrotas também foram discutidas: “Às vezes quando você entra
com a cabeça que já vai perder, você acaba sendo derrotado, então você sempre tem que ter
em mente o seu melhor resultado”. Além deste princípio, foram citados: “Somente se
aproxima da perfeição quem a procura com constância, sabedoria e, sobretudo, muita
humildade”, “O judoca não se aperfeiçoa para lutar, mas luta para se aperfeiçoar”,
“Quando verificares com tristeza que não sabes nada, terás dado o seu primeiro passo no
aprendizado”, “Amizade e prosperidade mútua”, “Melhor uso da energia vital”, “Quando
derrotar um inimigo nunca se exalte porque ele pode derrotar você”.
Estes princípios criados por Jigoro Kano são fortemente influenciados pela filosofia de
vida oriental, que ensina, através da arte suavizante do judô, o equilíbrio do corpo e da mente,
saber ganhar e perder, aprender com humildade, desenvolver espírito de coletividade, amizade
e compreender que estes valores humanitários, éticos, morais e educacionais objetivam o
aprimoramento dos judocas, promovendo um melhor desempenho em tatame e nos afazeres
do seu cotidiano (Araújo, 2005).
O princípio da amizade e prosperidade mútuas ensina que se o judoca machuca o seu
parceiro de luta, futuramente não terá com quem treinar. Portanto, o oponente dever ser
tratado, tanto no tatame como na vida diária, como o próprio judoca gostaria de ser tratado
(Virgílio, 1986 como citado em Junior & Freitas, 2015), reforçando uma atitude de
reciprocidade.
Você notou alguma mudança de comportamento fora do tatame após iniciar a prática
esportiva do judô?
Foi possível perceber pela fala de todos os participantes como o esporte estimulou a
disciplina, o respeito, a obediência e o autocontrole. A atleta 1 relatou sobre as mudanças de
comportamento que o judô lhe estimulou:
4. Considerações Finais
A partir da análise das informações obtidas por meio desta pesquisa, foi possível
perceber como o esporte traz benefícios para a vida das crianças e pode estimular a promoção
do seu desenvolvimento humano e competências de vida. Considerando estes fatos, o esporte
pode ser visto como um fator de proteção externo para a criança que se encontra em situações
de vulnerabilidade, pois a relação que ela estabelece com este possui um grande impacto nas
esferas social, psíquica e emocional da vida destas crianças, influenciando muito no seu
desenvolvimento.
Há diversas características, consideradas como fatores de proteção internos, que
podem vir a serem desenvolvidas pelo esporte. Dentre elas estão a construção da autoestima,
autonomia, autocontrole, tolerância ao sofrimento, estabilidade emocional, engajamento,
comportamento direcionado a metas, otimismo, disciplina pessoal e responsabilidade,
reconhecimento e desenvolvimento dos próprios talentos, identificação com modelos
positivos, aquisição de competências cognitivas e sociais (lidar com regras e convivência),
planejar atividades (rotina de treinos, pensar num movimento do corpo, golpe), aquisição de
habilidades para lidar com ganhos e perdas (Trombeta, 2000; Rutter, 1987 como citado em
Sanches, 2019).
Considerando que todos os participantes desta pesquisa relataram em seus discursos
aplicar as competências de vida e recursos internos aprendidos no esporte para outros
contextos de sua vida, entende-se que o esporte é uma ferramenta de treino destas
competências, podendo auxiliar a criança no enfrentamento de adversivdades em diversas
situações do seu cotidiano (Danish et al., 2004). As vulnerabilidades identificadas em suas
falas, como a social, familiar e econômica, que estas crianças vivenciam, podem ser mediadas
pelas competências (fatores de proteção internos) desenvolvidas pelo esporte, possibilitando a
criança um desenvolvimento saudável mesmo quando se encontra em situações de risco.
Referências
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Goiás
Faculdade de Educação Física. Goiânia.
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