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A PÓS-MODEERNIDADE, O PENSIERO DEBOLE E O CRISTIANISMO NÃO

RELIGIOSO SEGUNDO GIANNI VATTIMO

José de Sá Araújo Neto*

RESUMO
O presente trabalho pleiteia abordar a pós-modernidade segundo o pensamento do filósofo
italiano Gianni Vattimo. Esse intento comporta a apresentação e a análise do que o autor
compreende por pensiero debole e as características de uma nova ontologia, a qual se afirma
enquanto se abre para as diversas possibilidades de manifestações das diferenças, a liberação
dos dialetos e a libertação das metáforas, em uma sociedade de comunicação generalizada.
Interpretando os pensamentos de Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger, juntamente com a
sua própria consideração sobre κενοσις e caritas, G. Vattimo desenvolve uma análise da pós-
modernidade e da sua modalidade de pensar não mais assentada sobre princípios últimos, mas
fundada pela retomada da questão fundamental esquecida ao longo de toda a história do
pensamento ocidental: a questão do ser. A partir desse ponto, voltar-nos-emos para a
concepção de um cristianismo não religioso, no qual a experiência de fé emerge do
acontecimento-Jesus Cristo.

Palavras-chave: Pós-modernidade – Pensiero Debole – Cristianismo.

1. Introdução: uma retomada para a elucidação da quebra do paradigma moderno

Na modernidade, a razão passou a ser a portadora do conhecimento seguro sobre o


mundo, tornou-se o nexo da condição de possibilidade do saber: a relação sujeito-objeto, na
qual o cognoscente exerce o domínio, por meio da razão, sobre os fenômenos do mundo,
objetos cognoscíveis. Se a razão, medida do pensar maduro, calculista e categorizante, foi
posicionada como o instrumento objetificante do mundo, o homem, o sujeito, que só o é na
medida da relação com o objeto, por sua vez, configurou-se como o proprietário das
potencialidades da natureza, a coisa a ser investigada.
Ao falarmos de modernidade, tradicionalmente, detemo-nos diante de dois
posicionamentos epistemológicos polares: o racionalismo, cujo nascedouro é o pensamento do
francês René Descartes (1596-1650); e o empirismo dos ingleses John Locke (1632-1704) e
David Hume (1711-1776). A oposição racionalismo/empirismo apresenta como motor das
discussões epistemológicas a tensão acerca da origem das ideias: inatas ou decorrentes de
feixes de impressões? Ora, se ponho a questão da geração de ideias, é inevitável, tanto pelo
curso da tradição do pensar filosófico quanto pelo estatuto fundamental da discussão, a
presença de uma ontologia, mesmo que “oculta” sob o véu da centralidade do sujeito.

*
Graduando em Licenciatura Plena em Filosofia pelo Centro de Teologia e Ciências Humanas da
Universidade Católica de Pernambuco. E-mail: josedesanetoofmcap@gmail.com.
Em Immanuel Kant (1724-1804), encontramos um criticismo, uma arquitetura da
razão, pois não há conhecimento sem as estruturas transcendentais, as condições de
possibilidade, a saber: a Estética Transcendental e as suas formas a priori de intuição (objeto
é o que, rigorosamente, obedece às formas do espaço e do tempo) e a Lógica Transcendental,
os esquemas (quantidade, qualidade, relação e modalidade) e as categorias (em número de
doze, cada esquema apresentado três categorias), sem os quais não há entendimento (em
linhas gerais, faculdade dos conhecimentos), não há conceitos. Kant, Na Crítica da Razão
Pura (B 76), afirma: “Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são
cegas. Por isso, tornar sensíveis os seus conceitos (i.e., acrescentar-lhes o objeto na intuição) é
tão necessário quanto tornar compreensíveis as suas intuições (i.e., colocá-las sob conceitos)”.
Não obstante o exposto acima, ao lançarmos o olhar para a dialética hegeliana,
podemos encontrar uma espécie de diagnóstico de todo esse embate epistemológico: a
filosofia havia se tornado prisioneira de uma razão objetificante e reduzida a entendimento
sob categorias rígidas e desintegrantes. Ou seja, para Hegel (1770-1831), a razão e a
subjetividade modernas haviam caído em um dilaceramento dos diferentes, não havendo
prosseguido a uma sua unificação, o verdadeiro papel da razão. Ainda sobre a crítica
hegeliana à limitação da razão como filosofia do entendimento:

A autorrelação do sujeito, enquanto liberdade pura, é o princípio


arquimédico da nova Filosofia. No entanto, para Hegel, esta filosofia é
marcada por uma profunda ilusão: ela pretende ser a autoconsciência da
razão, como princípio fundante da vida humana e, de fato, ficou presa a uma
filosofia do entendimento, capaz de captar as diferenciações das esferas da
vida humana, ocorridas na modernidade, o que Kant exprimiu, genialmente,
em suas três críticas, ou seja, a diferenciação entre ciência, ética e arte, mas
incapaz de pensar a unidade das diferenças [...] o pensamento, para Hegel, é,
essencialmente, a relação dos diferentes uns aos outros: o objeto do pensar é
sabido, em si mesmo, como relação de diferentes entre si, como a unidade de
contrapostos. A filosofia moderna da subjetividade permanece no nível de
uma diferença fundamental: a diferença da contraposição entre o sujeito e o
objeto. Nesta perspectiva, o pensamento é, apenas, subjetivo, pensamento
sobre a coisa e não a autorrevelação da coisa em suas múltiplas
determinações (OLIVEIRA, 1989, p. 17-18).

Muito possivelmente, a Escola de Frankfurt, em especial o pensamento de Adorno


(1903-1969) e Horkheimer (1895-1973), tenha herdado dessa crítica de Hegel a concepção
segundo a qual o esclarecimento teria sido, deveras, o processo de instrumentalização da
razão. Na Dialética do Esclarecimento, os autores frankfurtianos comentam acerca da relação
alienante entre a razão como entendimento e a natureza das coisas, casamento este que se
inicia em Descartes e na matematização da natureza com o método geométrico-dedutivo, bem
como em Francis Bacon (1561-1626) e o seu método indutivo-experimental: “o entendimento
que vence a superstição deve imperar sobre a natureza desencantada. O saber que é poder não
conhece barreira alguma, nem na escravidão da criatura, nem na complacência em face dos
senhores do mundo” (1985, p. 18).
A crítica a uma razão instrumental, em Nietzsche, é radicalizada em uma crítica à
própria razão socrático-platônica como negação da vida, sufocamento da vontade de potência
(wille zur macht). Conforme Vattimo (2010, p. 31): “o niilismo é certamente um fenômeno
histórico cujo desenvolvimento pode ser indicado [...] Nietzsche não conhece uma época
histórica não niilista: o niilismo começa com Platão, e antes ainda com Sócrates”. Em outros
termos, a história do Ocidente é o curso da negação da vida, tanto por um acentuado
deslocamento da centralidade do pensamento do mundo para um “supramundo”, quanto por
um historicismo providencialista – racionalidade e valor como o fim a que tende a história –
ou cientificista – a história como objeto, o tempo como linearidade e o homem moderno
acometido por uma doença histórica, ou seja, a decadência de uma civilização que, pelo
excesso de conhecimentos sobre o passado, castra a criatividade, o elemento não histórico da
vida. Mas, com tais críticas, cisões e posicionamentos não mais enrijecidos, mas dialéticos
e/ou perspectivistas, a modernidade teria chegado ao fim? O que vem, então, com o “pós”-
moderno? O prefixo “pós” significa ultrapassamento de quê?

Com a entrada de Nietzsche no discurso da modernidade, a argumentação


altera-se radicalmente. Primeiro, a razão fora concebida como
autoconhecimento reconciliador, depois como apropriação libertadora e,
finalmente, como rememoração compensatória, para que pudesse se
apresentar como equivalente do poder unificador da religião e superar as
cisões da modernidade a parir das forças motrizes da própria modernidade.
Por três vezes falhou essa tentativa de talhar um conceito de razão segundo o
programa de um esclarecimento em si mesmo dialético. Nessa constelação,
Nietzsche tinha apenas a escolha de submeter mais uma vez a razão centrada
no sujeito a uma crítica imanente ou abandonar por completo o programa.
Nietzsche decide-se pela segunda alternativa. Renuncia a uma nova revisão
do conceito de razão e despede a dialética do esclarecimento (HABERMAS,
2000, p. 124).

2. Uma primeira visada no pensamento de Gianni Vattimo para a compreensão do “pós”


da modernidade e do posicionamento da racionalidade como “raciovitalismo”

Para Gianni Vattimo, o “pós” corresponde a Überwindung (Über – acima de; Windung
– torção. Uma superação por meio de um voltar-se, como que torcendo-se). O que o autor
compreende como rimettersi, a saber, o recuperar do que está convalescente, o soerguimento
do ser em decadência. Desse modo, a pós-modernidade não é uma expressão que queira
significar uma linearidade ou uma sucessão unilateral. Pelo contrário, ela quer trazer à baila
uma tensão, a saber, a continuidade na descontinuidade, que permitiu a retomada de diversas
questões surgidas ao longo de toda a história do pensamento ocidental sob novas e distintas,
mas não excludentes, perspectivas. Vattimo afirma que a pós-modernidade resultou de todo
um processo de decadência, ou mesmo perda de sentido da crença na linearidade como
movimento progressivo da história. Além disso, se a epistemologia foi o centro de força da
filosofia moderna, o “pós” é, justamente, o esforço, por diversas frentes, em quebrar esse
núcleo rígido, no qual a eleição de certa concepção de razão, construiu estruturas invariáveis
por meio das quais uma imagem de sujeito, uma ideia de progresso e de história foram postas
como constituintes de todo conhecimento que se queira fundamentado.
Os pensadores pós-modernos veem na modernidade uma relação de dominação do
sujeito, o cognoscente, sobre o mundo dos fenômenos, o cognoscível. Por isso, a acusação
segundo a qual a razão moderna é instrumental é tão constante nos diversos filósofos
contemporâneos. O que teria resultado dessa relação? O desencantamento do mundo, a
tecnificação como progresso e a coisificação das relações humanas e com o mundo. De um
modo geral, tais pensadores, dentre os quais, Gianni Vattimo, rejeitam, por exemplo, três
componentes estruturais do ideário filosófico-epistemológico da modernidade: a visão
dualista do mundo, o fundacionismo e as metanarrativas. Essas rejeições, é claro, são
precedidas por crises, na verdade, aquelas redundam nestas.
O pós-moderno é pós-metafísico, justamente, porque há passagens impulsionadas
pelas quebras de paradigmas: razão abstrata para razão situada e sob construtos históricos,
filosofia da consciência para filosofia da linguagem etc. Nesse ponto, Vattimo, como exímio e
dedicado estudioso de F. Nietzsche (1844-1900) e M. Heidegger (1889-1976), leva até às
últimas consequências a “desfundacionalização” de todo discurso acerca da realidade. Para
este autor, na pós-modernidade, “não mais podemos pensar a realidade como uma estrutura
fortemente ancorada em um único fundamento (...) o mundo pluralista em que vivemos não
mais se deixa interpretar por um pensamento que deseja unificá-lo a qualquer custo, em nome
de uma verdade definitiva” (VATTIMO, 2009 apud ROCHA, 2013, p. 42). O que o pensador
italiano quer dizer é que não há mais condição de se crer em uma verdade como fundamento
único da realidade, uma vez que a cosmovisão e a antropovisão que legitimavam o
fundacionalismo estão em destroços desde a crise das estruturas metafísicas.
Quanto ao fim das pretensões totalizantes das metanarrativas, Vattimo observa que a
“liberação dos dialetos”, isto é, a prática de usar o próprio dialeto e professar o seu sistema de
valores, em meio a tantos outros dialetos e sistemas valorativos, desperta a consciência da
historicidade e da contingência de todos os sistemas. O mesmo autor defende que esse
fenômeno é revelador de uma nova compreensão do sentido de ser. Na esteira de Nietzsche e
Heidegger, Vattimo afirma que, ao longo de toda a história da filosofia, o ser foi concebido
como presença constante (subsistência), a entidade do ente: em Platão, a ιδέα ou Εἶδος; em
Aristóteles, οὐσία; no medievo, essentia; na modernidade, o sujeito e a consciência e, em
Nietzsche, tido por Heidegger como o último metafísico, a vontade de potência. Dessa forma,
com a pós-modernidade, há um rompimento com a tradição filosófica que tematizava o ser
como constância ou subsistência. A questão do ser é posta, agora, de modo a refazer todo o
modo de pensar as questões fundamentais.
Até o momento, vemos que o pensador italiano concebe a modernidade como o
estabelecimento de um modelo objetivo necessário e do sujeito como a sede do ser. A
filosofia se torna Teoria do Conhecimento com pretensões de cientificidade e hierarquização
de saberes, ou seja, assume o papel de terreno das condições que possibilitam uma percepção
objetificante da realidade. Vattimo, na linha dessa compreensão da modernidade, tem por
diagnóstico o obnubilamento da pluralidade e da abertura de sentido próprias da condição
humana. Para ele, a pós-modernidade é a “libertação das diferenças”, o que, por sua vez, não é
a eliminação da totalidade das regras, mas a manifestação dos particulares nas suas
idiossincrasias. À modernidade, não se opõe a barbárie ou o irracionalismo como o pensar
pós-modernamente, mas a racionalidade enquanto abertura e integração das dimensões vitais
da realidade humana.
Vattimo vê nos particulares os diversos dialetos e o mundo de sentidos que trazem
consigo. A verdade, então, não é absoluta ou uma adequação representação-realidade, nem
mesmo é relativa. Ela, simplesmente, não é na medida em que é acontecimento, ou seja, não
pode ser fixada nem tornada modelo a que deve corresponder uma semântica subsistente que
a tradição denomina “realidade”. Nessa questão, podemos tomar a terminologia
“raciovitalismo”, originalmente usada por Ortega y Gasset (1883-1955) em um contexto que
marcou o seu pensamento, o de um cristianismo secularizado. Nessa mesma compreensão,
Vattimo defende que o cenário contemporâneo é favorável para uma experiência cristã.
Contudo, o preço é a renúncia às metanarrativas que excluem o particular e o diferente.
Por raciovitalismo, tentamos trazer os esforços de um “pós”-metafísico pensar a
racionalidade como constituída pela dinâmica da vida; uma racionalidade de base que se
manifesta em razões momentâneas. Tomando parte nessa nova compreensão e assumindo
semelhante posicionamento a Michel Maffesoli (1944 - ) e Ortega y Gasset, Gianni Vatttimo
acentua a possibilidade de identificar a libertação dos dialetos ou das diferenças com esses
momentos de racionalidade emergentes da condição humana. A razão é a faculdade universal
de pensar sistematicamente, de julgar segundo esquemas a priori? Na nossa concepção, não!
Razão é uma expressão da dinamicidade da existência e, como tal, é marcada por momentos e
construções históricas e por semânticas fáticas.

3. Gianni Vattimo e a pós-modernidade: do pensamento forte para o pensiero debole

Depois de realizarmos algumas visadas no pensamento de alguns autores, dentre eles,


Lyotard, Maffesoli e Ortega y Gasset, voltemos, agora, o nosso olhar para as contribuições
diretas de Gianni Vattimo. Consideramos o itinerário até aqui, não necessário, mas um bom
auxílio para situarmos o autor italiano em meio a correntes e pensadores a ele
contemporâneos. O seu pensamento não está só, mas é o exercício solitário de caminhar por
estradas diversas em uma densa floresta que se apresenta à medida que deixamos as
sedimentadas estruturas já pré-determinadas.
Gianni Vattimo nasceu, em 1936, na cidade italiana de Turim, onde estudou filosofia,
Em Heidelberg, foi aluno de Hans-Georg Gadamer (1900-2002), do qual, inclusive,
juntamente com Karl Lowith, traduziu Verdade e Método para o italiano. Desde 1982, é
catedrático de Filosofia Teórica na Universidade de Filosofia e Letras de Turim. Sua atividade
intelectual foi concomitante a diversas atuações na militância cristã católica. Dentre as suas
principais obras, destacamos: As aventuras da diferença. O que significa pensar depois de
Nietzsche e Heidegger (1980); O sujeito e a máscara (1974); O fim da modernidade. Niilismo
e hermenêutica na cultura pós-moderna (1985); Depois da cristandade. Por um cristianismo
não religioso (2002).
O pensamento desse autor concentra-se, sobretudo, na compreensão de pós-
modernidade: as formas de secularização, a defesa dos regimes democráticos e o combate ao
totalitarismo, o pluralismo e a tolerância. Uma das teses mais “ousadas” de Vattimo é a que
sustenta a herança cristã, obnubilada pelo racionalismo moderno, como o pano de fundo da
cultura pós-moderna. Nesses contexto, o autor reivindica para o seu pensamento o lugar de
“filosofia cristã pra a pós-modernidade”.
A pós-modernidade é a passagem do pensamento forte – metafísico, fundado em
estruturas fechadas em si mesmas e totalizantes, em universalizações conceituais, e que a
principal característica é a força que reivindica para si, haja vista a sua capacidade
“privilegiada” de ascender ao ser como fundamento – para o pensiero debole ou pós-
metafísico – um modo de pensar que se pensa enquanto limites, ou seja, que abandona a
pretensão globalizante presente em visões metafísicas. Entretanto, a principal característica do
pensamento fraco (conforme uma tradução usual da expressão em italiano empregada pelo
autor) é a de ser uma teoria do debilitamento como marca constitutiva do ser na época pós-
metafísica. Para o filósofo italiano, essa modalidade do pensar só é possível graças à herança
cristã subjacente à cultura ocidental, ou seja, há uma relação entre filosofia, enquanto
pensamento fraco, e a mensagem cristã, enquanto debilitamento, κενοσις e encarnação; ou
ainda, a secularização e o pensamento fraco (ontologia débil) fundam-se na encarnação.
Ao mesmo tempo, a experiência do Deus “re-velado”, sempre em um horizonte
histórico-cultural determinado, pois se revela a indivíduos em suas condições fáticas, é
amparada e traduzida, ainda segundo Vattimo, pelo pensamento fraco. Desse modo, esta
modalidade do pensar é uma proposta de compreensão, ou mesmo uma epistemologia,
adequada ao horizonte hermenêutico da pós-modernidade, cuja expressão prática está na
caritas.
Pois, em uma perspectiva hermenêutica, o seu valor [do pensamento fraco]
não depende de uma adequação a um dado objetivo, a “verdade” que se
constrói na invenção, recepção, modificação das interpretações consiste
inteiramente na sua maior ou menor “conservação”, em um contexto
dialógico, cujo fim último não é, porém, a verdade, mas o amor recíproco
sempre menos abstrato por limites “objetivos”; ou seja, o “reino de Deus”
(VATTIMO, 2008 apud ROCHA, 2013, p. 175).

O nosso pensador está convencido de que a modernidade chegou ao fim, e que isso é
verificável pelo acontecimento do que ele mesmo chamou de “fim da história”, isto é, o fim
do conceito moderno de história: um processo unitário e em progresso. Com o fim da história,
no sentido acima exposto, emergiu a “sociedade de comunicação generalizada”, ou, se
quisermos, uma sociedade cujas fronteiras foram alargadas pela globalização. Nela, a
“comunicação generalizada” mostrou-se como uma pluralidade de “racionalidades locais”. A
esse momento, Vattimo denominou “sociedade transparente (?)”, no sentido interrogativo
mesmo. Três são as suas principais formas de manifestação: 1. Na sociedade pós-moderna, os
mass media desempenham um papel determinante; 2. Os mass media atuam nessa sociedade,
atribuindo a ela a complexidade, até mesmo o estado caótico. É engano uma sociedade
transparente, ou esclarecida, ou desenvolvida; 3. É nesse estado relativamente caótico de
sociedade que reside a esperança de emancipação.
Gianni Vattimo aborda uma emancipação que é fruto das diversas formas de acesso ao
mundo e à sua pluralidade de tradições, antes caladas, ou conformadas a um universal tido por
suprassunsor. Isso desvela os múltiplos modos com os quais podemos abordar a história, a
qual, durante a modernidade, permaneceu imersa em uma concepção totalizante do
pensamento e em um a priori possibilitador das representações. Juntamente com Jean
François Lyotard (1924-1998), Vattimo entende que as metanarrativas, legitimadoras de
discursos totalizantes e fundacionistas e, na política, grandes inimigas dos regimes
democráticos, sucumbiram face a uma sociedade da comunicação generalizada (jornais, rádio,
televisão etc.), e onde a capitalização é o fim de toda produção, inclusive do conhecimento.
Vivemos na época do desencantamento, em que os metarrelatos e os discursos que a tradição
houvera tornado autorizados mostram-se ineficazes. Consequentemente, o sujeito se
fragmentou, não possuindo mais os “dispositivos de legitimação”, o que o leva a assumir
identidades conforme o contexto.

[...] Diante da ascensão capitalista, o saber, o conhecimento é produzido para


ser vendido. A ciência deixa de ser para si mesmo seu próprio fim [...] Tudo
é mercadoria de troca.
[...] Desse modo, o pensamento de Jean-François Lyotard é expresso pela
deslegitimação dos dispositivos modernos, ou seja, a medida em que a
sociedade se condiciona aos avanços tecnológicos e informacionais, o sujeito
também muda sua postura [...] vemos que na pós-modernidade estes
discursos legitimadores são ineficazes (OLIVEIRA, 2016, p. 27).

Qual o evento originante da dissolução das grandes narrativas? Segundo Vattimo, nós
o encontramos na “desfundamentalização” da realidade, cuja primeira denúncia é feita por
Nietzsche ao anunciar a morte de Deus. Isso é o que ocorre coma inadequação das
cosmovisões metafísicas, da imagem subjetivista do mundo, da centralidade da razão como
definidora do conhecimento de mundo. Essa inadequação gera uma passagem: do pensamento
forte (ontologia e epistemologia rígidas) a um pensamento fraco (ontologia como uma
abertura da questão fundamental; a questão do sentido de ser). O pensamento fraco é, por
certo, afirma o própria autor, uma metáfora e um paradoxo, mas nunca uma nova filosofia,
pois essa modalidade “débil” do pensamento é um caminho possível assinalado pelo pensar
provisório ou aberto às manifestações dos fenômenos eles memos.

4. A morte de Deus como o fim da metafísica, uma leitura de Nietzsche e Heidegger

Seguindo os passos de Nietzsche e Heidegger, Vattimo que, como já vimos, foi aluno
de Gadamer, afirma que o que em Nietzsche é a morte de Deus, em Heidegger corresponde ao
fim da metafísica. De Heidegger, Vattimo apreende a eventualidade do ser, conceito central
da “desfundamentalização” e do pensamento fraco. Ainda segundo o pensador italiano,

O que Heidegger chama de metafísica é, na verdade, a crença em uma ordem


objetiva do mundo que o pensamento deveria conhecer para poder adequar
tanto suas descrições da realidade quanto suas escolhas morais. Essa é uma
crença que se esgota no momento em que se revela insustentável, e isto é o
que acontece, falando em termos muito sumários e provocativos, com o
surgimento do existencialismo do século XX (VATTIMO, 2009, p. 22).

O ser não se dá estaticamente, não é presença constante ou subsistência, como toda a


história da filosofia o conceituou e, assim, o tematizou. Desse modo, a história do pensamento
ocidental corresponde à história da metafísica em suas diversas formas, o que, por sua vez,
Heidegger entende como o esquecimento do ser em favor do ente, pois o ser é, para a
tradição, a entidade do ente. Em Ser e Tempo, o filósofo alemão supracitado não reconceitua o
ser, mas mostra que essa questão fundamental havia sido “soterrada” por inúmeras camadas
de conceituações e categorias, as quais, por fim, confundiram o ontológico com o ôntico. Por
outro lado, unindo a historicidade de Wilhelm Dilthey (1833-1911) e a fenomenologia do
Edmund Husserl (1859-1938) das Investigações Lógicas (1900), Heidegger funda a
hermenêutica da facticidade para uma análise do único ente que compreende ser, Dasein, e
dos seus modos possíveis de ser, os existenciais. Seu caminho é posto na direção de criticar a
tradição por meio de sua nova acepção de temporalidade (Zeitlichkeit), como sentido de ser, e,
consequentemente, a historicidade (Geschichtlichkeit) enquanto “ex-tensão” na qual o ser é
acontecimento, eventualidade, não se determinando, pois, em seu fenômeno, os entes se
manifestam, ocultando-o.
O processo de destruição comporta o ultrapassamento da concepção de verdade
enquanto correção e o resgate da sua experiência originária grega. Desde tempos imemoriais,
a questão acerca da verdade é tratada como um “problema lógico”, e não como uma questão
fundamental da filosofia. Em outras palavras, a longa tradição para a qual a verdade é um
problema de lógica retirou-a de seu terreno de enraizamento. Então, temos de retornar às
determinações do terreno fático no qual as primeiras experiências gregas da abertura do ente
foram compreendidas como ἀλήθεια. Assim, também poderemos compreender que apenas
ulteriormente é que a verdade passou a ser adequação (ὁμοίωσις ou adequatio) ou correção do
enunciado.
Com base no contexto modificado de verdade – formaram-se novas posições
filosóficas fundamentais em Descartes e Leibniz, em Kant e nos pensadores
do Idealismo Alemão e, por fim, em Nietzsche. Tudo isso, naturalmente,
com uma unidade fechada de pensamento e com uma uniformidade nas
linhas diretrizes do questionamento que, por exemplo, apesar das
diversidades mais abissais existentes entre o teólogo medieval São Tomás de
Aquino e o último pensador ocidental essencial, Nietzsche, permaneceu
normativa para eles justamente a mesma concepção de verdade, a saber, a
verdade como um caráter do entendimento judicativo, e isso de maneira
alguma com base em uma meditação expressa, mas de tal modo que parece
que tudo isso se achava fora de questão – tal como até hoje ainda se encontra
(HEIDEGGER, 2017, p. 138).

Gianni Vattimo herda de Heidegger essa distinção entre ser e ente, bem como a
recolocação da questão da verdade como abertura do ente, o que o leva a conceber o ser como
acontecimento histórico-cultural, em cujos horizontes os entes se manifestam e vão ao
encontro do homem com suas significações, exigindo dele um comportamento fático. Desse
modo, afirma o nosso pensador, “o mundo se experimenta dentro de horizontes constituídos
por uma série de ecos, ressonâncias de linguagens, de mensagens provenientes do passado, de
outros indivíduos (os outros junto a nós, como as outras culturas)” (VATTIMO, 2006 apud
ROCHA, 2013, p. 141).
O que podemos perceber até agora é que Vattimo, apoiado nos trabalhos de Nietzsche
e Heidegger, propõe novas condições de racionalidade dentro da experiência do mundo pós-
moderno. A ampliação da racionalidade se segue ao fim daquela ideia da história do
pensamento como iluminação progressiva, sustentada pela contínua apropriação dos
fundamentos, em que se apoiava a modernidade. O pós-metafísico, por outro lado, também
pode ser entendido como a decadência de uma estrutura epistemológica linguístico-teológica,
isto é, a queda da gramática ocidental marcadamente teológica. Com isso, a naturalização da
ideia de Deus na linguagem, a cristalização de estruturas de significações metafísicas, enfim,
a Idade de Deus chegou ao fim.
A crítica ao cristianismo é, para Nietzsche, um esforço por denunciar, com martelo em
mãos, os ídolos que foram postos no lugar do homem. A domesticação ou melhoramento do
homem, por meio das normas morais, não passa de uma perversão e de um enfraquecimento
da sua vontade de potência. Na interpretação de Vattimo, a morte de Deus é a proclamação da
liberdade das diferenças, da pluriformidade epistemológica, da possibilidade de emancipação.
Outrossim, o “assassinato de Deus”, pois, como encontramos em Gaia Ciência, obra de 1882,
“Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos [...] Nunca houve um ato maior –
e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que
toda a história até então” (NIETZSCHE, 2012, p. 137.138), é, na verdade, o findar da
polêmica com o pensamento emergente da doutrina socrático-platônica.

5. Um cristianismo não religioso como a experiência de fé na pós-modernidade

Gianni Vattimo defende uma experiência cristã não religiosa: a morte de Deus não é o
fim da experiência de fé, mas, antes de mais nada, o colapso das estruturas de pensamento e
de linguagem onto-teo-lógicas. Isso abre caminhos para novas possibilidades de experiência
de fé, as quais não mais comportam o enrijecimento institucional e as normas do sagrado. A
esse respeito a pós-modernidade e a atenção às múltiplas manifestações da vida tem, em seu
modo de ser, aquela experiência dita mais humana: a do mistério, do Deus que não pode ser
dito, categorizado ou sedimentado por noções gerais, mas que se mostra na raiz de toda
existência que se quer autêntica.
Não podemos deixar de lado as influências do pensamento histórico-teológico de um
monge cisterciense calabrês medieval, Gioacchino da Fiore (1135-1202), sobre a concepção
de pós-modernidade em Gianni Vattimo: uma era espiritual, a era da hermenêutica. Para ele,
já no pensamento do monge calabrês, é possível encontrarmos uma espécie de antecipação da
temática acerca do parentesco entre o enfraquecimento do ser (pensiero debole) e a
secularização do sacro. Gioacchino da Fiore dividia a história em três momentos: a época do
Pai, a do Filho, e a do Espírito. A primeira correspondia à época da instituição da Lei Mosaica
(a antiga economia), baseada no cumprimento estrito dos mandamentos; a segunda havia sido
inaugurada por Jesus Cristo e a lei da graça, era o tempo em que perdurava a Igreja, a
instituição que ainda limitava ação do Espírito, sendo também caracterizada pelos pecados e
abusos morais; a terceira era a época que ainda estava por vir, mas que já apresentava os seus
primeiros sinais, na qual a Igreja seria dissolvida e o Espírito agiria nos fieis de forma direta,
enquanto estes viviam a liberdade dos filhos de Deus.
O joaquimismo compreende a salvação, não como um momento objetivo, mas como
história da interpretação. Isso equivale a dizer que não há ato salvífico, mas um horizonte de
salvação, o qual se dá com a interpretação. É preciso que interpretemos a Palavra na Escritura
e a apliquemos à condição histórica, pois o próprio Cristo é a interpretação (Verbum) do Pai.
Vattimo, por sua vez, afirma que a “Inteligência Espiritual” das Escrituras corresponde à
faculdade de entender os eventos contidos nela, fundamentalmente, como figuras de eventos
dados ao longo da história. Para o nosso autor, os ensinamentos do monge teólogo contêm os
sinais do que, na pós-modernidade, dar-se-á enquanto descoberta da historicidade, e mais, do
ser como acontecimento, o autogestar-se do ser cujo horizonte de sentido é a temporalidade.
Quanto à terceira época ou idade, nosso autor relaciona-a com a época do fim da metafísica.
O que o pensador italiano defende em sua obra Depois da Cristandade é que a morte
de Deus corresponde ao findar-se das estruturas ontológicas rígidas, que sustentaram,
sobretudo, a modernidade. O pós-metafísico, por usa vez, correlaciona-se com a liberação do
Espírito, com a abertura das possibilidades de sentido enquanto mundo. E isso é o que está, no
fundo, na constituição da Época do Espírito de Gioacchino da Fiore. Por isso, a época pós-
moderna é a era em que a hermenêutica é a kοινή da cultura, ou seja, a superação do
pensamento forte (ser como subsistência), tipicamente metafísico, dá-se no horizonte da pós-
modernidade como era hermenêutica, na qual o ser é acontecimento, sobre o qual está
fundado o pensamento fraco.
Assim como em Nietzsche, também em Vattimo não há fatos, mas interpretações;
inclusive, aquilo que, discursivamente, construímos como realidade é interpretação, um
momento hermenêutico, uma semântica de significações autorizada. Destarte, a ontologia não
sucumbe – o que decai é a determinação de um fundamento último da realidade -, mas se
torna “ontologia da hermenêutica”, uma ultrapassagem do esquecimento do ser. As
implicações disso, na epistemologia, traduzem-se, sobretudo, na concepção de conhecimento,
não como a representação lógica do que “está fora”, mas enquanto compreensão que traz em
si as marcas de quem compreende. Na compreensão – um modo fundamental de ser de Dasein
–, abre-se um espaço de significações, no qual o ente haure o seu significado de um
determinado sentido que nesse espaço (retração de ser) se projeta, atualiza-se o ser. Somente
assim, é possível falar de uma “ontologia da atualidade”.
Partindo para uma perspectiva já anteriormente enunciada, o nosso autor identifica, na
condição hermenêutica de nossa época, uma relação profunda com o núcleo cristão, isto é, a
encarnação como κενοσις de Deus. Em outras palavras, a ontologia niilista, no sentido de ser
como acontecimento, e não como fundamento determinado, está ligada, em seu ponto
nevrálgico, à κενοσις de Deus, esvaziamento para descerrar mundo, salvação enquanto
abertura de horizontes (possibilidades) de sentido.

Em que medida pode-se chamar de niilista essa visão da constituição


hermenêutica do Ser-aí [Dasein]? [...] Para Nietzsche, [...] niilismo é a
situação em que o homem reconhece explicitamente a ausência de
fundamento como constitutiva da sua condição (aquilo que, em outras
palavras, Nietzsche chama de morte de Deus). Ora, a não identificabilidade
de ser e fundamento é um dos pontos mais explícitos da ontologia
heideggeriana: o ser não é fundamento, qualquer relação de fundação se dá
já sempre no interior de uma época do ser, mas as épocas como tais são
abertas, e não fundadas, pelo ser. Numa passagem de Ser e tempo, aliás,
Heidegger fala explicitamente da necessidade de “abandonar o ser como
fundamento”, se se quiser aproximar de um pensamento não mais
metafisicamente orientado apenas para a objetividade (VATTIMO, 1996,
p.115).

À morte de Deus como ocaso do paradigma da metafísica, Vattimo relaciona uma


experiência de fé kenótica, isto é, sem a legitimação das metanarrativas, mas com a libertação
da dimensão metafórica e dos dialetos. Para ele, aquela declaração de Nietzsche não pode ser
uma militância ateia, ou melhor, “a não existência de Deus não poderia ter sido professada por
Nietzsche, pois do contrário a pretensa verdade absoluta que esta encerraria ainda valeria para
ele como princípio metafísico” (VATTIMO, 2009, p. 9). Em um primeiro momento,
hesitamos ante essa interpretação, porém, quebradas as caricaturas, podemos perceber que o
que se está dizendo aqui é que Nietzsche, coerentemente, não postula nenhum argumento que
se ponha contra a existência de Deus, mas, simplesmente, reconhece a fragmentação de
princípios de univocidade e de arquétipos morais constituídos por uma transcendência
absoluta e fundamento de uma verdade única. O niilismo de Nietzsche, na nossa
consideração, é antes de mais nada o retorno do πάντα ῥεῖ heraclítico, da nadidade como a
ponte ou a passagem que é o homem.

Mas Zaratustra olhou para o povo e se admirou. Então falou assim: O


homem é uma corda, atada entre o animal e o super-homem — uma corda
sobre um abismo.
Um perigoso para-lá, um perigoso a-caminho, um perigoso olhar-para-trás,
um perigoso estremecer e se deter.
Grande, no homem, é ser ele uma ponte e não um objetivo: o que pode ser
amado, no homem, é ser ele uma passagem e um declínio.
Amo aqueles que não sabem viver a não ser como quem declina, pois são os
que passam.
Amo os grandes desprezadores, porque são os grandes reverenciadores, e
flechas de anseio pela outra margem.
Amo aqueles que não buscam primeiramente atrás das estrelas uma razão
para declinar e serem sacrificados: mas que se sacrificam à terra, para que
um dia a terra venha a ser do super-homem.
Amo aquele que vive para vir a conhecer, e que quer conhecer para que um
dia viva o super-homem. E assim quer o seu declínio (NIETZSCHE, 2011,
p. 14).

O martelo de Nietzsche liberta a experiência religiosa para que se possa expressar a


partir de outros eixos culturais e linguísticos. A legitimidade do múltiplo, a possibilidade de
se compreender um fenômeno tal como ele se mostra sem que seja necessária a aplicação de
pressupostos, que já trazem em si o que julgam encontrar no que é manifesto, só é possível
com o fim da armadura da tradição. Pensemos, então, como se dá a relação entre dois
discursos: Por meio do valor de verdade verdadeiro ou falso? Mas qual o valor ou padrão que
se autorizou a ser a medida do verdadeiro? O real é objetivo a ponto de ser fixamente
estabelecido? A objetivação do inobjetável é ainda possível quando se desdobram diante de
nós pluralidades culturais e linguísticas?
Aqueles que partilham de um mesmo horizonte histórico-cultural possuem uma
compreensão que os implica enquanto faticamente situados, uma outra comunidade não
poderá ser conformada dentro da compreensão da primeira, pois nenhuma das duas é
portadora de um padrão absoluto. Dentro desse contexto, podemos perceber a importância do
que Vattimo chamou de “libertação da metáfora”, a saber, a libertação da experiência para
que esta possa se expressar sem os sinais e a semântica dos dominadores, mas partindo da
própria facticidade. Dessarte, é negada a supremacia da univocidade de um discurso que se
pretendia regulador de compreensões e diversidades. O nosso autor, então, propõe uma
ampliação do campo semântico no qual opere uma racionalidade aberta, permitindo, por
exemplo, ao discurso teológico expressar-se renovadamente. O pano de fundo para essa
ampliação é a libertação da metáfora, o pensiero debole e a interpretação sobre a κενοσις de
Deus.

6. Considerações finais

No pensiero debole, essa modalidade do pensar que é gerada por uma matriz
hermenêutica, que, por sua vez, é uma alternativa à matriz metafísica, geradora do
pensamento forte, destaca-se: conhecer é interpretar, a interpretação não é a formação de
imagens subjetivas, mas a doação do mundo aos nossos campos de compreensão; não existem
fatos, apenas interpretações, e isso também é uma interpretação, logo, só pode interessar a
uma situação determinada historicamente. A debilidade do ser na época do fim da metafísica
não é imprecisão ou relativismo, mas esclarecimento epistemológico. Mais ainda, o
debilitamento do pensar enraíza-se no cerne da mensagem cristã, o qual introduz o princípio
da interioridade, cujo desenvolvimento ficou por conta de Nietzsche e Heidegger.
Face a esse princípio da interioridade proposto pelo cristianismo e ao consequente
debilitamento do pensamento, a filosofia pós-moderna vê-se com a tarefa de reatar os laços
entre verdade e caridade, isto é, a cientificidade e a condição de multiplicidade das expressões
das tradições histórico-culturais. Dessa forma, ao interpretar as Escrituras, Gianni Vattimo
afirma que podemos encontrar uma verdade que não é lógica, nem metafísica, nem
experimental e tampouco, ao longo da história, passou por um processo de desmistificação.
Isso porque ela é um apelo prático, a saber, a verdade do amor, caritas. Eis, pois, para
Vattimo, o papel de uma filosofia da religião: proporcionar uma conversão “afetivo-intelecto-
espiritual” no modo como se compreende a experiência de fé. O pensamento fraco, em pleno
processo, declara que a verdade é a mensagem de Jesus, isso, no entanto, equivale a dizer: um
apelo para que a humanidade vivencie o amor recíproco, cujo fundamente não é uma verdade
teórica, ao contrário, deve libertar-se da verdade enquanto objetividade.
A obra de Vattimo, continuamente, suscita a nossa atenção para o processo de
enfraquecimento do pensar, compreendendo-o como a história do debilitamento do ser, que a
κενοσις de Deus revela. A encarnação de Deus é um acontecimento de esvaziamento para que
se manifeste o seu amor; assumir a condição humana é, sobretudo, fazer-se história e pôr-se a
manifestar-se na transparência de toda imanência. Nesse acontecimento, as categorias
transcendência e imanência não podem ser vistas como polos de um dualismo rígido, isto é, o
dualismo que dominou toda a história do Ocidente cristão não pertence a uma experiência
autêntica de fé. Assim, não há nenhuma oposição entre a mensagem cristã e a secularização,
pois a própria encarnação de Jesus se configura como uma secularização do divino, ou
melhor, Deus e mundo assumem a transparência.
Dessarte, é um mesmo acontecimento: a passagem do transcendente Deus metafísico
para o Deus kenótico, feito história, e a passagem de uma concepção do ser como estrutura
para o ser enquanto acontecimento. Esta nova ontologia encontra, como já vimos, suas raízes
na experiência histórica que se deu com o acontecimento-Jesus Cristo. Esse evento kenótico é,
por sua vez, inseparável da caritas, pois é na expressão desta que se realiza aquele, ou melhor,
“a kenosis exige a caritas como forma de expressar-se na realidade da existência” (ROCHA,
2013, p. 184). Em outras palavras, a pós-modernidade e o pensiero debole encontram na
mensagem cristã – soterrada por tantos séculos de categorizações e de fixidez conceitual –,
quando voltamos às suas raízes e lá encontramos o Deus de Jesus Cristo como esvaziamento
doador de sentido para a história, a sua experiência fontal historicamente situada.
Se a história do Ocidente caminha juntamente com a história da Igreja Cristã, se o
legado desta ressoa na constituição espiritual do Ocidente, então, a ponte entre a pós-
modernidade e o seu pensamento fraco, e a mensagem cristã em seu despojamento kenótico e
riqueza vivencial e de sentido é manifestada na passagem de uma ontologia rígida e universal
para uma ontologia hermenêutica. Por conseguinte, é na κενοσις de Deus que as estruturas
metafísicas, já antecipadamente, são minadas, e é no acontecimento-Jesus Cristo que o
pensamento fraco encontra a sua experiência primeira.

Referências Bibliográficas

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