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Universidade Católica de Pernambuco

Centro de Teologia e Ciências Humanas


Disciplina: Teoria do Conhecimento
Professor: Ricardo Pinho Souto
Estudante: José de Sá Araújo Neto
As Teorias do Conhecimento Agostiniana e Tomista

A seguir, apresentaremos um paralelo entre duas teorias do conhecimento. Com tal


empreendimento, objetivamos realçar as semelhanças e diferenças entre Agostinho de Hipona
e Tomás de Aquino. Nosso trabalho, embora não obsoleto e nem pleiteando abranger todo o
trabalho filosófico desses que são, respectivamente, o maior representante da Patrística e o
maior pensador da Escolástica, prezou pela fidelidade aos conteúdos e adotou como ponto de
partida dois artigos científicos bastante elucidativos e consistentes.

O CONHECIMENTO NA PERSPECTIVA DE AGOSTINHO DE HIPONA

O conhecimento em Santo Agostinho (354-430 d.C.) é um tema que deve ser abordado
por meio de uma vasta pesquisa em sua obra, pois esse pensador cristão não se deteve em
elaborar uma obra específica que tão somente tratasse dessa questão. À guisa de introdução,
comecemos por afirmar que o fundador da Patrística produziu toda a sua obra como um
movimento entre o homem e Deus: aquele somente encontra a felicidade Neste, que é a
Verdade, cujo conhecimento só é possível mediante a Graça.

Antes de centrarmos no posicionamento epistemológico segundo Agostinho de Hipona,


consideremos o ponto de partida de todo o empenho reflexivo desse pensador: a felicidade do
homem. Ora, como a felicidade humana só é possível em Deus, esse tema se alarga para a
investigação de Deus, ou seja, partindo de seus próprios questionamentos e pondo-se diante
de si mesmo, Agostinho, ao buscar a felicidade do homem, compreende que esta não é
possível a não ser alcançando a contemplação de Deus. Entretanto, surge mais algumas
questões de proporções colossais: por que buscamos a Deus? É possível conhecê-Lo? Se sim,
precisamos de quais meios, ou não precisamos de nenhum, haja vista podermos desenvolver a
razão ao máximo? Iniciemos nosso percurso com o santo doutor de Hipona!

Como podemos perceber, Agostinho sempre parte de intuições, entretanto, estas jamais
são infundadas ou simplesmente movidas na direção das emoções; ao contrário, baseiam-se na
colaboração fundante entre a fé e a razão.
Conforme Costa, “depois de um belíssimo diálogo com a natureza, onde procura e não
encontra Deus no mundo exterior, Agostinho chega à conclusão de que Deus, ou a verdade,
habita no interior do homem” (1998, p. 485). Esse pensador cristão - lembremos que a sua
base teórica consiste tanto nas obras de caráter platônico, sobretudo as de Plotino, quanto nas
Sagradas Escrituras - compreende que todas as coisas são criaturas de Deus, pois foram por
ele “chamadas” à existência do nada. Porém, por causa do pecado original, não só o homem,
imagem e semelhança de Deus, mas toda a criação fora corrompida. Consequentemente, o
homem se distanciara de uma semelhança com o divino, embora ainda fosse imagem de seu
Criador, haja vista ser dotado de vontade (mesmo que distorcida pelo pecado), liberdade
(Agostinho a diferencia de livre arbítrio) e razão. Em outras palavras, Deus habita no âmago
do homem, isto é, em sua alma imortal; basta que ele se abra, mediante a fé, à ação
restauradora da Graça para que possa conhecer as verdades nela (na alma) contidas, passando
do sensível ao espiritual.

A partir desse ponto, podemos entender o motivo pelo qual, segundo o santo doutor,
conhecer-se é o primeiro e fundamental passo de volta para si mesmo e para Deus. O homem,
ao buscar a felicidade e, portanto, a Verdade, que é Deus, deve desprender-se das coisas
materiais e voltar-se para si, para a sua alma, pois é lá onde estão as verdades. A partir delas e
munido pela Iluminação Divina - sem a qual o homem, somente com a razão, não pode dar
nem sequer mais um passo -, ele pode dar um salto ainda maior, só que em direção à Verdade,
na qual as verdades espirituais (intelectuais) encontram o seu fundamento, ou seja, o encontro
com Deus. Podemos dizer, inclusive, que Agostinho resgata o “conhece-te a ti mesmo”
socrático, só que em uma chave de leitura cristã, ou seja, a passagem do conhecimento
sensível ao conhecimento espiritual se dá, primeiramente, com a permanência em si mesmo,
ou melhor, com o reclinar do homem sobre si mesmo.

O pensamento de Agostinho pode ser considerado o momento do despontar da filosofia


cristã, pois ele conseguiu fundir os conceitos filosóficos à cosmovisão e antropovisão cristãs.
Nele, a fé surge como a conditio sine qua non de toda procura, isto é, sem aquela não haveria
o porquê de se lançar no desconhecido, como também, por outro lado, sem esta não haveria
um horizonte para aquela. A partir disso, seguimos o pensamento agostiniano, quando
afirmamos que a fé é a guia da razão, uma vez que, para o homem chegar a um conhecimento
seguro (sem que esteja sob o devir do sensível) e verdadeiro, faz-se necessário que a fé eleve
a sua visão, a fim de que ele possa passar das coisas efêmeras às coisas espirituais. A fé
propicia o salto da razão (ou filosofia), ou seja, há um movimento harmônico entre fé e razão.
Dessarte, podemos constatar que o nosso filósofo relaciona necessariamente a sabedoria
(objeto da razão ou filosofia) à felicidade e à natureza mesma de Deus: Não há como ser feliz
sem Deus, que é a Verdade; logo, a busca da filosofia é pela sabedoria ou Verdade, que se dá
com o conhecimento ou contemplação de Deus, condição fundamental para a felicidade
humana.

No concurso da razão, Agostinho, a fim de contestar a sentença cética “Deus não existe”,
empreendeu um esforço para encontrar uma verdade unicamente no âmbito da razão e, a partir
dessa certeza, passar a uma verdade maior, com o concurso da fé. Para o nosso pensador essa
verdade racional era que o homem existe, vive e pensa: existe porque, inclusive, pode se
enganar; ora, como é evidente que existe, então, igualmente é evidente que vive, caso
contrário, tal verdade não lhe seria tão clara; e, se para o homem, é evidente tanto que existe
quanto que vive, isso só lhe é possível porque pensa, a mais importante das evidências.
Partindo dessas três verdades – vale lembrar que elas foram encontradas fazendo uso
unicamente da intelecção -, e adotando como guia a fé, o santo doutor chegou à certeza da
existência de Deus.

A teoria do conhecimento de Agostinho, em seus três níveis ascendentes, baseia-se nessas


três verdades racionais: conhecimento sensível (existência), sensação (vida) e conhecimento
intelectual ou razão (pensamento).

Quanto ao conhecimento sensível e à sensação, o filósofo se preocupa primeiramente em


diferenciar os objetos sensíveis das sensações. Para ele, a alma não é passiva face ao mundo
sensível, mas sim ativa, pois, na medida em que os objetos afetam o corpo (passivo), a alma
produz uma sensação correspondente àqueles. A alma é ativa, mas precisa dos sentidos
corporais para produzir as sensações. Dessa forma, os objetos sensíveis são incapazes de
produzir sensação, embora sejam a causa dela, e incapazes de, por si só, produzirem algum
conhecimento. Enquanto esses objetos estão no existir, a sensação está no nível do viver, pois
justamente é produzida pela alma. Isso equivale a dizer que o processo do conhecimento, no
homem, tem o seu início no interior e é em direção ao exterior, ou seja, não são os objetos que
produzem conhecimento no homem, mas sim a alma (a vida no interior) que produz as
sensações correspondentes a esses objetos. Assim, são três as realidades no conhecimento
sensível: o objeto (nível do existir), os sentidos corporais (nível do existir e meio afetado
pelos objetos) e a sensação (conhecimento produzido pela alma).
O primeiro nível do conhecimento é a sensação. Os sentidos corporais são apenas um
instrumento passivo, que é afetado pelos objetos externos e é meio por meio do qual a alma se
manifesta. É a alma, por outro lado, que é produtora das sensações, pois se há um objeto a
nossa frente, os nossos olhos (sentidos) são por ele afetados, mas é a nossa alma que por meio
deles olha (sensação). Ou seja, o que no empirismo moderno é chamado de conhecimento
sensível, para Agostinho, não é conhecimento, pois, como já vimos, os sentidos não produzem
saber.

Realça, ainda, Costa (1998, p. 490) que, Agostinho não é tão dualista como é caricaturado,
pois, para o filósofo cristão, o homem é alma e corpo, sendo aquela a sua substância espiritual
(parte superior), e este a sua substância corporal (parte inferior), e não um mero acidente, nem
tampouco um mal em si, apesar de ofuscar a alma. Dessa forma, Agostinho compreende duas
luzes no homem, a saber, uma corporal (própria dos sentidos externos), e outra espiritual
(própria da alma ou sentido interno), a qual é responsável por possibilitar que a luz corporal
veja os objetos.

Agostinho, no entanto, adverte que a alma só atingirá a razão ou ciência se e somente se,
mediante um esforço humano somado a um concurso da Graça, desprender-se dos sentidos
externos, transcendendo-os. Somente dessa forma, poderá conhecer as verdades universais.
Para além de toda essa exposição, o nosso pensador ainda considera o homem um ser
individual. Sendo assim, os sentidos externos e as sensações não são as mesmas para todos.
Consequentemente, com as sensações só podemos adquirir conceitos efêmeros,
conhecimentos submetidos ao sabor do devir, e, assim, com os sentidos não podemos alcançar
as verdades universais.

Segundo o santo doutor, os homens possuem três sentidos, dos quais apenas o terceiro não
é compartilhado com os animais. Ele está se referindo aos sentidos: externo, meio pelo qual o
corpo é afetado pelos objetos sensíveis e também pelo qual a alma se manifesta; interno, que é
a faculdade da alma responsável por produzir as sensações correspondentes aos objetos, ou
seja, por ele sensoriamos tanto os objetos, por meio dos sentidos externos, quanto os próprios
sentidos externos; e a razão que é o sentido superior por meio do qual podemos inteligir.

Dos três sentidos que possuímos, ou das três realidades que compõem o processo do
conhecimento, a mais importante é a razão, ou seja, a faculdade do pensar, do inteligir, pois
por meio dela é que podemos saber que existimos e que pensamos. Como vimos, as sensações
são “verdades particulares”, isto é, variam de indivíduo para indivíduo, pois os sentidos
(externos e internos) são particularizados, e não algo universal e comum a todos; as verdades
racionais, por outro lado, são universais, transcendentais, pois estão presentes em todos os
seres racionais.

No que diz respeito à razão, Agostinho entende-a como o princípio ou sentido


fundamental por meio do qual julgamos não somente sobre as coisas externas, mas também
sobre nós mesmos. Ela é a intermediadora entre o sentido interno (a alma) e as verdades
eternas. O homem é uma criatura que, como todas as outras, está submetida às mudanças e às
efemeridades que são próprias do devir. Desse modo, não lhe é possível conhecer diretamente
as verdades eternas e imutáveis, mas somente mediante a Iluminação Divina, a qual dota a
razão (leis racionais) da capacidade de interligar a nossa alma às verdades. Estas, no entanto,
estão presentes na alma humana, não por reminiscência, como afirmara Platão, mas mediante
a Iluminação Divina.

A Iluminação Divina é uma luz interior que nos possibilita conhecer as verdades eternas,
imutáveis e universais. É por participarmos dessa luz que somos inteligentes (inteligimos).
Dessa forma, a razão é superior à própria alma, na medida em que não pode dar sequer um
passo sem a luz divina. O que está acima da alma e da razão é justamente aquela natureza que
dota a alma de razão e que a ilumina para que possa conhecer. Essa natureza a que nos
referimos é Deus mesmo, que nos dá a capacidade de julgar, torna-nos conscientes de que
somos superiores àquilo que julgamos, mas inferiores a Ele e que, logo, não podemos tecer
nenhum julgamento sobre Ele.

A alma forma com o corpo o homem mesmo, estando ambos interligados durante toda a
vida humana. Como já vimos, a alma produz as sensações e utiliza os sentidos corporais para
se manifestar face aos objetos externos, ou seja, a alma está diretamente ligada ao corpo e aos
seus sentidos. Dessa forma, a razão pode ser dividida em duas partes ou atividades (razão da
ação ou ciência e razão da contemplação): uma inferior, a qual se aplica sobre as coisas
sensíveis e temporais para entende-las, e cujo tipo de conhecimento Agostinho denomina de
ciência; e uma superior, que se aplica à contemplação e pela qual conhecemos as verdades
eternas e podemos vir a conhecer Deus. Todavia, a ciência e sabedoria são, para o nosso
pensador, dois tipos de conhecimento distintos: o primeiro diz respeito ao conhecimento
racional das coisas temporais, enquanto o segundo consiste no conhecimento intelectivo das
verdades eternas.
À guisa de conclusão, podemos afirmar que a verdade é tanto algo que está presente no
interior (na parte mais elevada da alma, a mens ou mente) de cada homem, mas é também
transcendente, pois é universal, e não particular. Vale ainda realçar que Agostinho expõe a
necessidade de, mediante a fé revelada e a Graça, buscarmos continuamente a purificação da
alma para que possamos nos desprender do que é efêmero e mutável e, iluminados,
alcançarmos as verdades eternar e, somente assim, chegarmos à contemplação daquele que é a
Verdade.

A razão, conforme já vimos, é superior à alma, mas Deus é superior à razão. Portanto,
para alcançarmos a Verdade (Deus mesmo) temos de transcender a razão, e isso só é possível
por meio do reconhecimento de que, sozinhos, somos incapazes de contemplar a Deus, e que
temos de ser assistidos pela Graça, e não somente pela razão. Em outras palavras, o nível de
perfeição do conhecimento é a contemplação da Verdade absoluta, ou seja, Deus mesmo, mas
a esse conhecimento nenhum homem alcança senão por meio da Iluminação Divina (que já
auxiliara a razão a ter acesso às verdades imutáveis), a qual Deus concede, em grau máximo, a
quem O busca de coração contrito e humilde.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

COSTA, Marcos Roberto Nunes. Conhecimento, Ciência e Verdade em Santo Agostinho.


VERITAS. Porto Alegre, Vol. 43, nº 3, p. 483-496, setembro, 1998. Disponível em:
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/article/view/35423/18582. Acesso
em: 11/11/2020.
O CONHECIMENTO NA PERSPECTIVA DE TOMÁS DE AQUINO

Recordemos, primeiramente, que o século XIII é considerado o período do “renascimento


medieval”, pois nele podemos encontrar, sobretudo, uma produção filosófica acentuada e sob
a égide de Aristóteles e da Sagrada Escritura. As obras do estagirita, neste século, passaram a
ser objeto de estudo constante e aprofundado graças à tradução para o latim das versões em
árabe dessas obras e dos esforços de síntese entre a fé cristã e a filosofia. Despontam nesse
período, como veremos a seguir, Alberto Magno (1199-1280) e o seu ilustre discípulo, Tomás
de Aquino (1225-1274).

O Século XIII, faça-se saber, foi igualmente o período de grandes debates em torno dos
Universais, da difusão dos saberes, das disputas entre averroístas e antiaristotélicos. Não há
como estudar o “século das sínteses” sem investigar a vida e a obra de um frade mendicante
integrante da Ordem fundada por Domingos de Gusmão (1170-1221) e que será conhecido
pelo epíteto de “o boi mudo” e, após sua canonização (1323), ganhará os títulos de Doctor
Angelicus, Doctor Communis e Doctor Universalis. Tomás de Aquino é filho de seu tempo,
ou seja, é herdeiro de toda uma dialética motora da história que traz consigo um rico
arcabouço cultural, pois, graças à Igreja Católica, o imenso cabedal intelectual que durante
toda a Antiguidade Clássica havia sido conquistado não sucumbira às invasões e saques
bárbaros.

Devido a uma inteligência aguçada, amor às letras e à Igreja e por ter subido em “ombros
de gigantes”, como Aristóteles e Alberto Magno (seu admirável mestre), Tomás galgou os
altos patamares da especulação filosófica, tratou com esmero a relação entre a fé e a razão,
considerando haver certas verdades acerca de Deus que a razão não pode conhecer, mas
apenas demonstrar que não são impossíveis; mas, por outro lado, defendeu não existir nenhum
obstáculo entre a razão natural e a fé, pelo contrário, pelo exercício daquela, é possível
encontrar os fundamentos desta.
Justamente nesse ambiente de cultivo do conhecimento, desenvolveu-se um método de
ensino e aprendizagem baseado, sobretudo, em duas práticas escolásticas, a saber, a lectio e a
disputatio. Brevemente, apresentá-las-ei por entender que tais práticas foram de importância
capital para o aprimoramento do conhecimento; para a elaboração de questões influentes, não
só em teologia e filosofia, mas também em política; muito utilizadas por Tomás de Aquino
para a composição de suas sínteses; além de terem influenciado em demasia a constituição do
modelo de educação ocidental, cujos traços centrais podem ser encontrados ainda hoje nas
universidades.

A lectio consistia na leitura, sob a orientação dos mestres, das obras essenciais em cada
uma das disciplinas; enquanto a disputatio era o debate constituído de cinco momentos: a
proposição do problema, a hipótese, as objeções e a solução juntamente com a resposta às
objeções. A concentração do conteúdo produzido durante o cumprimento dessas cinco etapas
dava origem ao Artigo, e a reunião de Artigos que tratavam do mesmo tema originava as
Questões. Dessa formas as Questiones eram sempre temáticas, por exemplo, a obra De
Veritate ou Questões disputadas sobre a verdade (composto entre 1256 e 1259) é um
conjunto de Questiones Disputatas que versavam sobre a verdade.

Voltando-nos, agora, mais diretamente para a teoria do conhecimento de Tomás de


Aquino, podemos partir do conceito de quididade: a natureza mesma ou essência das coisas
sensíveis. Assim o fazemos por entender que, para o Aquinate, o objeto do conhecimento
intelectual é, justamente, a quidditas existente na matéria. Essa natureza é apreendida pelos
sentidos, tornando-se uma espécie sensível (singularizada), isto é, a forma sensível da coisa.
Eis o primeiro marco da teoria do conhecimento no Aquinate: o conhecimento começa pelos
sentidos.

A quididade, enquanto existente nas coisas, é singularizada; no entanto, enquanto presente


no intelecto, é universal. Isso é possível graças ao que Tomás chamou de intelecto agente. Tal
intelecto é responsável pelo processo de abstração, agindo sobre o fantasma (imagem do
objeto), que ainda possui características materiais da coisa da qual é imagem, e abstraindo
dele a quididade, tornando-a uma espécie inteligível, ou seja, universal. Em seguida, o
intelecto agente imprime a espécie inteligível no intelecto possível, dando este início ao
processo da intelecção. Igualmente, se observarmos bem, veremos o quão importante é aqui o
princípio de recepção, segundo o qual o que é recebido assume a forma do recipiente. Desse
modo, ao ser recebido pelos sentidos, a quididade assume a forma dos sentidos, mas ao sofrer
a ação do intelecto agente, que é capaz de apreender aquilo que há de inteligível (imaterial)
nas coisas sensíveis, despoja-se dos dados materiais. Vejamos, a seguir, alguns detalhamentos
desses processos.

A capacidade sensitiva divide-se em duas partes, a saber: uma externa, própria dos órgãos
dos sentidos, que captam as sensações dos objetos externos; e uma interna, que consiste na
imaginação e está relacionada com a parte sensível da alma, além de ser responsável por
agrupar as várias sensações e formar uma imagem correspondente do objeto. As sensações, ao
serem recebidas na parte sensível da alma, sofrem a ação da faculdade imaginativa
(capacidade sensitiva interna), a qual as reúne e as converte em uma imagem (ou fantasma) da
coisa sensível.

A imaginação, ou faculdade sensível interna, ou da alma, é tanto passiva quanto ativa. De


um lado, podemos compreendê-la em passividade ao receber as sensações captadas pelos
órgãos dos sentidos; por outro lado, assume uma atividade na medida em que é a produtora da
imagem correspondente ao objeto, cujas sensações foram apreendidas. A imagem ou fantasma
possui um natureza hilemórfica, ou seja, agrupa tanto características materiais quanto formais
do objeto, uma vez que as sensações são compostas de matéria e forma. Outrossim, o
fantasma possui uma natureza inteligível em potência, pois, possuindo alguns traços sensíveis,
ainda passará pela abstração do intelecto agente para assumir uma natureza inteligível em ato,
isto é, possui em potência a quididade das coisas. É o fantasma o “meio-termo” entre a
espécie sensível e a espécie inteligível, pois o processo de imaginação consiste em um
complexo refinamento da espécie sensível a fim de produzir uma semelhança da coisa
sensível (a imagem).

O intelecto agente, por meio de um processo intelectual abstrativo, extrai a quididade do


fantasma, ou seja, aquilo que há de inteligível nele. A quididade é sumamente importante no
processo de conhecimento, porque é justamente ela que permite a produção da espécie
inteligível, resultado de uma sinergia entre o intelecto agente e o fantasma. Dessa forma ela (a
quididade) é o fundamento de universalidade do conhecimento intelectual.

O processo de abstração realizado pelo intelecto agente sobre o fantasma dá origem a uma
espécie inteligível, que é a primeira coisa que o intelecto conhece, pois com ela passa a
conhecer as características mais gerais das coisas, aquilo que nelas é universal. Uma
advertência fundamental do Aquinate é que não existem, de maneira inata, espécies
inteligíveis na mente, pois estas só são produzidas mediante a ação do intelecto sobre o
fantasma, abstraindo deste a quididade, ou seja, extraindo-a e despojando-a dos traços
materiais singularizantes. Em outras palavras, é o intelecto agente que atualiza a quididade,
transmudando-a de potencialmente inteligível para atualmente inteligível.

O intelecto agente imprime a espécie inteligível no intelecto possível que, após recebê-la,
entra em ato, ou seja, intelige ou conhece. O intelecto possível, como podemos perceber até a
presente exposição, antes de receber a espécie inteligível, é puramente potencial. Entretanto,
após recebê-la, passa ao ato, isto é, àquilo que acima denominamos de intelecção, produzindo
os conceitos, os quais, por serem a expressão mental da essência abstrata ou determinação
inteligível da coisa, exprimem de modo universal a quididade extraída dos fantasmas. Tomás
de Aquino deixa claro que tanto a apreensão e a atualização da quididade (realizada pelo
intelecto agente) quanto a produção de conceitos (pelo intelecto possível) são a primeira
operação do intelecto.

Por conseguinte, a inteligência humana possui a função de conhecer a quididade de cada


coisa existente na matéria, não enquanto singularizada nesta, mas após ser abstraída das
imagens mentais, despojada das condições materiais singularizantes e atualizada pelo
intelecto agente. Após esse processo, a quididade já universalizada e convertida em espécie
inteligível, é que o intelecto possível produzirá os conceitos, exprimindo, assim, a natureza ou
essência das coisas sensíveis. Chegando a esse nível de reflexão no pensamento tomista,
estamos aptos a compreender a fundamental importância da quididade, enquanto essência das
coisas e objeto do intelecto, como ponto central da teoria do conhecimento de Tomás de
Aquino.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

LAZARINI, Richard. A importância da quididade segundo a teoria do conhecimento de


Tomás de Aquino. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da
UFSCar. São Paulo: 10ª ed., 2014. Disponível em: http://www.ufscar.br/~semppgfil/wp-
content/uploads/2012/05/32-Richard-Lazarini.pdf. Acesso em: 12/11/2020.

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