Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A Questão Da Violência e o Papel Das Políticas Públicas Pensar-Bh
A Questão Da Violência e o Papel Das Políticas Públicas Pensar-Bh
Márcia Mezêncio1
A política pública, hoje, é também uma resposta. A violência é vivida como um sintoma
de um tempo em que a queda dos ideais e o estabelecimento de um modo de vida
voltado para o consumo e o gozo dos bens geram efeitos de segregação sem
precedentes. As políticas públicas estariam, então, a serviço do controle social.
Penso que nos interessa interrogar não somente o papel das políticas públicas, mas
também qual o lugar para a clínica, neste caso? A violência atual interroga o universal
da política, ao revelar a exclusão de muitos. Convoca o psicanalista. Qual é a
pertinência da psicanálise aplicada ao sintoma da violência?
Ainda que a psicanálise não coincida com os ideais da época ou com as identificações
estabelecidas, ela deve estar à altura de responder às questões de seu tempo, e o que
a psicanálise oferece é um modo de pertencer à sua época que aponta para a
responsabilidade de dizer, ou seja, para a ética das conseqüências. Então, se hoje o
analista sai do seu consultório para inserir-se na cidade, em suas instituições e em suas
políticas públicas, como nos ensina Eric Laurent
1
Mestre em psicologia, psicanalista, Coordenadora do Serviço de Execução da medida sócio-educativa
Liberdade Assistida da SMAAS/PBH.
2
De fato, uma sociedade é democrática quando institui algo profundo, que é condição
do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos. (...) Fundada na noção de
direitos, a democracia está apta a diferenciá-los de privilégios e carências. Um
privilégio é, por definição, algo particular que não pode generalizar-se nem
universalizar-se sem deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também
particular ou específica que desemboca numa demanda também particular ou
específica, não conseguindo generalizar-se nem universalizar-se. (...) Uma das
práticas mais importantes da política democrática consiste justamente em propiciar
ações capazes de unificar a dispersão e a particularidade das carências em interesses
comuns e, graças a essa generalidade, fazê-las alcançar a esfera universal dos
direitos. (CHAUÍ, 2007)
2
Doutor em sociologia, professor da UFMG, em intervenção sobre A sociologia do crime, no Núcleo de
Pesquisa em Psicanálise e Direito do IPSMMG – Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais,
em 20/09/2006.
3
Jornalista gaúcho, ativista de direitos humanos e consultor para políticas de segurança pública.
4
4
Philippe Lacadée (2003) propõe que tomemos o matema (a > I) — matema da
modernidade para Jacques-Alain Miller — como o matema da juventude. Na
4
Onde “a” representa os objetos de consumo e “I” os ideais. Tal notação expressa de maneira
condensada uma leitura da atualidade, em que a satisfação imediata é promovida através dos objetos
de consumo, e tal satisfação não é limitada pelos valores sociais. Opõe o gozo individual dos bens ao
convívio solidário ordenado pela referência ao Outro e à crença no Ideal.
5
adolescência coloca-se em jogo um certo gozo e a pulsão se mostra mais forte que
toda a aposta sobre o Ideal. Pois se a via do Ideal ou dos Ideais veiculados pelo Outro
inclui uma cessação do gozo imediato, a essa cessação, esse adiamento, entretanto, o
sujeito se recusa. A falta de referências, de transmissão de valores, leva o sujeito a ter
que inventar suas próprias soluções e o que se apresenta é que a possibilidade de
encontro com o Outro se dá, paradoxalmente, através da ruptura, através do ato,
através da violência, que é o modo pelo qual o sujeito tenta salvar sua singularidade.
Lacan realçava que o ato do psicanalista visa a manter uma distância absoluta entre I
e a. Isso o predispõe a intervir sobre o que, na sociedade e no político, concerne ao
tratamento dos gozos, não se trata aqui, de desempenhar nem o papel do mestre,
nem o papel do experto, mas sim de um lugar singular, que faz uma vez mais
desconsistir os ideais do mestre ao fazer passar o “núcleo duro” da psicanálise para o
exterior. (GUÉGUEN, 2007)
Parece-nos que, somente apostando em uma atribuição subjetiva para o ato, podemos
nos situar. É preciso consentir, dizer sim, acolher, para que o sujeito possa inventar um
outro modo de dizer não ao Outro, que o constitua e o reconheça em sua
singularidade e lhe possibilite um novo modo de laço social. (LACADÉE, 2003)
A referência à teoria dos discursos é fundamental quando se trata do laço social para a
psicanálise, porque, segundo a teorização de Lacan, o discurso é o que faz laço social,
sendo uma construção social que funciona de forma a regular as relações e
estabelecer limites ao gozo. Para inscrever os efeitos de segregação de nosso tempo
ele elabora o que ele chama de “discurso” do capitalista, que, apesar de assim
nomeado, escreve um curto circuito do discurso, pois apresenta uma relação direta do
sujeito ao objeto, não mediada pelo simbólico e pelo Outro, que são as referências de
limite das regras sociais. A notação do discurso do capitalista revela um sujeito que
prescinde do Outro, um sujeito que goza sozinho. No entanto, fica submetido aos
objetos, sendo, de fato, consumido. Assim, o discurso capitalista é um pseudo-
discurso, que deixa o sujeito sem laço com o Outro.
Para nós, trata-se de despertar o sujeito para uma nova responsabilidade, inédita,
que o liga, para além de suas sujeição aos significantes-mestres, à sua
responsabilidade para com o objeto mais-de-gozar que se sustenta no vazio liberado
pelos significantes-mestres, ao mesmo tempo em que o preenche. É o nosso
princípio-responsabilidade, para desviar a expressão de Hans Jonas referida ao
sistema ecológico do planeta e aplicá-la ao discurso que devemos transmitir. (É.
LAURENT, 2007)
5
Lei Federal Nº 8.069, de 13 de julho de l.990, publicada no Diário Oficial de 16 de julho de 1.990.
7
dois níveis: a proteção básica – o direito universal, e a proteção especial – voltada para
casos de violação de direitos e que constitui o campo onde o particular pode se alojar.
Acredita-se, no entanto, que mesmo a efetividade da proteção básica somente se dá
se consideradas as particularidades dos sujeitos. As medidas sócio-educativas se
inserem no leque de serviços ofertados pela proteção social especial e, a partir das
diretrizes de implantação do SUAS-BH, integrarão o quadro de ações do CREAS -
Centro de referência especializada de Assistência Social. Constituem referências todo o
instrumental jurídico que rege o sistema de Garantia de Direitos. A metodologia
proposta faz valer os princípios consagrados na Convenção Internacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente, no Estatuto da Criança e do Adolescente , aos quais o
SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Sócio-educativo vem fazer eco:
Referências bibliográficas:
GUÉGUEN, P.-G. Quatro pontuações sobre a psicanálise aplicada. In: ASSOCIAÇÃO DO CAMPO
FREUDIANO. Pertinências da psicanálise aplicada, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2007,
p.39-48.
LACADÉE, Ph. Aichhorn 1925, une version de la pychanalyse appliquée. In : La petite girafe, n.17, Paris,
Éditions Agalma, mai 2003, p. 84-91.
LAURENT, É. O analista cidadão. In: Curinga n.13, Belo Horizonte, EBP-MG, set.1999.
LAURENT, É. Dois aspectos da torção entre sintoma e instituição. In: ASSOCIAÇÃO DO CAMPO
FREUDIANO. Pertinências da psicanálise aplicada, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2007,
p.237-249.
MÉNDEZ, E. G. Infância e cidadania na América Latina, São Paulo: Hucitec/Instituto Ayrton Senna, 1998.
MILLER, J.-A. Jacques Lacan: Observaciones sobre su concepto de pasaje al acto. In: Revista del cercle
psicoanalítico de Catalunya, out/1988.
MORELLI, A. M. Liberdade Assistida, Liberdade Insistida — Ainda sim Liberdade. In: Liberdade Assistida:
uma medida, Belo Horizonte, no prelo, 2007.
9
PIMENTA FILHO, J. A. Adolescentes, qual transição hoje? In: Curinga n. 20, Belo Horizonte, EBP-MG,
Nov/2004.
________. A. Adolescência como sintoma In: Curinga n. 21, Belo Horizonte, EBP-MG, jun/2005.
ROLIM, M. Escola e violência juvenil: Reflexões sobre um sintoma (1998). In: http://www.rolim.com.br,
10/05/2002.
STEVENS, A. Adolescência, sintoma da puberdade. In: Curinga n. 20, Belo Horizonte, EBP-MG, nov/2004.
VOLPI, M. Sem liberdade, sem direitos: a experiência de privação de liberdade na percepção dos
adolescentes em conflito com a lei, São Paulo, Cortez, 2001
*
Esse artigo encontra-se publicado:
MEZÊNCIO, Márcia - A questão da violência e o papel das políticas públicas, in: Curinga, nº 28 – Belo
Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas Gerais, junho de 2009: 51-58.