Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 5

______________________________________________________

TEMPO E ATENÇÃO:
O VITAL REVELADO1
Luciana Moniz de Aragão2

______________________________________________________

RESUMO
Este ensaio é resultado de um exercício poético, no contexto do
componente curricular “Experiências de natureza por meio de processos
artísticos”, ministrado pelas professoras Ines Linke e Lia Krucken no doutorado
do PPGAV-UFBA. A proposta foi que, ao longo das discussões e práticas do
semestre, os alunos fossem relacionando conteúdos, exercícios, referências,
textos, artistas e obras, criando uma composição, articulada com suas próprias
pesquisas. O texto final que segue é uma colagem, um articulação entre a
experiência da caminhada, minha pesquisa independente e os textos de
Emanuelle Coccia sobre atmosfera e metafísica da mistura3 ; de Tim Ingold
sobre traço gestual e atenção4, de Davi Kopenawa5 sobre ecoar.

1
Tarefa final para o componente curricular “Experiências de natureza por meio de processos artísticos”,
do doutorado do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da UFBA, semestre 2022.1
2
Graduada e Mestre em Museologia pela UFBA, é pesquisadora do Museu do Mato, Chapada Diamantina
Bahia, e é aluna especial do PPGAV-UFBA. lumoniz.ufba@gmail.com
3
COCCIA, 2018.
4
INGOLD, 2015.
5
KOPENAWA, Davi; ALBERT, 2015.
1
6
Kò Sí Ewê Kò Sí Ayê (Sem folha, Sem mundo)

Ar, vento, céu, clima, luz, som, terra. Atmosfera. Atmosfera é um lugar
metafísico, onde tudo se mistura: metafísica da mistura. Caminhar é traço
gestual, fluxo do viajante. O traço gestual é feito à mão ou caminhando, é
cultura do chão, o mundo percebido pelos pés, em uma relação entre
locomoção e cognição: o viajante no mundo em fluxo contínuo, a linha do
viajante – rastro no chão criando atmosfera. Caminhar juntos é a forma primária
de sociabilidade humana: criar narrativas, fazer os próprios lugares. Não
apenas de ir de um lugar para outro, mas um movimento atento às idas e
vindas dos outros humanos e não humanos.
Na vida das plantas território é trânsito. Estar no mundo é ser capaz de
estar em tudo. Estar-no-mundo das plantas é a capacidade de (re)criar a
atmosfera, estar-no-mundo é fazer atmosfera, ser vivo é relativo ao tipo de
atmosfera que se produz.
Tudo depende do todo. Atmosfera é mistura radical que faz tudo coexistir
sem sacrificar formas nem substâncias, lugar metafísico em que tudo depende
do todo – quintessência do mundo –, espaço onde as vidas se misturam.
Atmosfera é o primeiro mundo, é a esfera do sopro, princípio através do qual o
mundo se faz habitável: sopro das coisas. Esfera vaporosa, esfera do sopro,
seu horizonte extremo. Ar é o sopro de outros seres vivos, subproduto de outras
vidas. O sopro permite mistura, imersão. Sopro é experiência de imersão,
compenetração recíproca, coincidência material. Vida é ambiente de si mesma,
circula de corpo em corpo.
A planta é o paradigma da imersão, relação mais profunda que ação e
consciência, que práxis e pensamento, design silencioso, mudo, ontológico.
Uma plasmabilidade, uma ausência de resistência à vida, metamorfose da
matéria cósmica. Planta é o inconsciente que é preciso revelar. As sementes
das plantas são forma transcendental da existência dos logos, da razão.
A construção do pensamento não é distinção, é força cósmica. Pensar é
penetrar algo deixando sua essência intacta, traduzir e transmitir ao outro.
Pensar é ser medium. Como o pensamento dos xamãs, que se estende por
toda parte, desde lugares e seres do primeiro tempo – um xamã é aquele que
mostra o que está no escuro. Perceber o mundo em profundidade é ser tocado
e penetrado, ser alterado, modificado pelo mundo. Perceber o mundo é
perceber como os animais percebem o mundo ao seu redor, é ter atenção
sobre as coisas. Atenção é uma habilidade que pode ser aperfeiçoada através
da prática: processo de educação da atenção, para produzir mudanças de
percepção.
6
Òwe. Provérbio yorubá.
2
Planta é vida pura, essencial, criação, potência, elã vital. Ter a planta
como paradigma é perceber uma outra forma de sociabilidade; entender o que
pode um corpo na sua pura potência. Planta é aurora e crepúsculo da vida,
objeto metafísico, sopro de todos os seres vivos, primeiro sopro do universo.
Planta se funde ao mundo pra modificá-lo. Muitas espécies vivas operam
conscientemente para transformar o mundo, torná-lo espaço habitável;
produzem cultura. Não há dicotomia entre natureza e cultura.
Por ser a primeira a chegar, planta é a chave do entendimento da
realidade. Planta mostra que viver junto não é questão de comunidade ou de
política. Plantas não precisam matar outra vida para viver: relações de equilíbrio
entre diferentes, e não poder, hierarquia e guerra; vida comunitária de
cooperação e interdependência entre diferentes.
Pensar as plantas é pensar um estar-no-mundo cosmogônico. Planta é
origem do mundo em dois sentidos: criou a atmosfera com oxigênio, que tornou
possível a vida dos animais; e tem a capacidade alquímica de transformar luz
em vida. Planta modifica o meio cósmico. Planta vive entre céu e terra, vencer a
gravidade sem perder o solo: raízes se aprofundam buscando nutrientes do
solo, e os ramos se elevavam buscando a luz do sol.
Plantas reformulam padrões, modelam novos padrões morfológicos à
medida que surgem mutações. Raízes são passado, ancestralidade; ramos, o
presente, processo; e pólen, a potência do futuro. Descer para subir: se queres
elevação, aprofunda-te. Como na Teoria da Plasticidade de Joseph Beuys.
Terra é espaço metafísico do sopro, que é a arte da mistura. Sopro não é
só ar em movimento, é clarão, desvelamento, meio de revelação. Sopro comum
e universal unifica o mundo; é essência originária do logos, linguagem, razão.
Sopro dá uma unidade ao mundo, é a raiz de sua visibilidade e racionalidade.
Sopro é logos do mundo, linguagem, fala, órgão de sua revelação. Os corpos
partilham o mesmo sopro. Cosmos é partilhar o mesmo sopro: cosmos oposto
ao caos.
O espaço em que vivemos é forma mais existencial do todo: ar que
respiramos, solo, linhas da superfície terrestre, formas no céu, cores – feitos
imediatos e princípios da vida. Mundo é vida, natureza fluida de todo meio,
clima, atmosfera. Todo sopro é evidência de estar-no-mundo, ritmo imanente,
matéria, forma, espaço e realidade do sopro. Mundo enquanto sopro.
Entre as plantas, MATO é vegetação espontânea: germina em qualquer
lugar, qualquer terreno; em lugares e momento inesperados. Tem alto poder de
adaptação. MATO aproveita qualquer recurso ao máximo, por mais escasso
que seja: germina e floresce rápido com qualquer chuvinha. MATO é poliploide:
pode se modificar geneticamente. É auto-compatível: pode se polinizar com seu

3
próprio pólen. MATO é capaz de hibernar até ter condição de crescer. Produz
continuamente. E por isso tudo é perene, quase imortal.
No percurso líquido entre litoral e sertão, o orvalho alquímico – a água do
céu que une dois mundos –, MATO é objeto natural, arquétipo e imagem. No
meio do MATO, no meio dessas cordilheiras milenares que dilatam o tempo, a
atmosfera é espiritual, plena, essencial: por trás e além dos fatos. Tempo
dilatado permite experiências, pressentimentos, revelações. O instrumento para
materializar essas articulações é um museu-obra, colaborativo, em processo:
uma Escultura Museal, cuja matéria plástica é pensamento, reflexões sobre
natureza e cultura; sobre relações entre tempo e experiência cotidiana no
sertão, seca, sol, e suas causas e efeitos físicos, mentais, emocionais,
espirituais.
Nas gerais da Chapada Diamantina, no tempo lento das cordilheiras, há
uma grandeza e uma força maior, onde tudo é amplo, aberto e também
hermético. Nas vivências poéticas nas Gerais o conhecimento se dá a partir da
experiência cotidiana, na procura por consciência, a partir de fragmentos
ancestrais de sangue e de espírito: uma poética da herança. Reflexões sobre
relações entre bem comum e memória; sobre mudanças de percepção em
tempos de transição das percepções sobre os valores do espírito, da natureza,
dos bens espirituais, do tempo, do espaço, da vida.
No umbral da transição, tentando radicalmente pensar sobre como
valores do passado podem ser importantes para o futuro, tudo caminha para um
mesmo lugar subjetivo, criado no fluxo do Tempo. Tudo caminha junto, sem
pausa e sem pressa, ganhando sentidos práticos. Tempo de cada coisa: para
manter limpo, saudável e organizado o corpo, os espaços, os animais, as
relações e tudo em torno: gatos, cães, cobras, insetos, formigas, fungos, chuva,
sol; co-vivência, territórios, ciclos, o bem comum. Ser parte. Tempo das
plantações, colheitas; das fermentações, desidratações, cozinhados,
compostagens; tempo e atenção para fofar a terra, compactada por décadas de
seca; cobrir do sol, molhar, nutrir; tirar erva-de-passarinho das copas, quebrar
galho seco, espalhar serapilheira.
Tempo e atenção para lidar com todas as coisas existentes no mundo, e
usar intuição em tudo que transpassa. Entender a dinâmica do tempo e dos
ciclos; quando e porquê acelerar, desacelerar, recuar, avançar, parar; entender
como contribuir para o bem comum. Tudo é tempo, e é cíclico. Vencer a
gravidade sem perder o solo. Ser médium é unir céu e terra. Ter atenção sobre
as coisas, estar em estado de atenção, é o inconsciente revelado. O vital
revelado. Processos de transmutação. A imersão. A alquimia. Indícios da pedra
oculta. Tudo que toca, cruza, permeia, penetra, é modificado por nós e nos
modifica. O resto é poesia.
4
REFERÊNCIAS

INGOLD, Tim. Contra o espaço: lugar, movimento, conhecimento. In: Estar


Vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes,
2015. Disponível em:
http://www.academia.edu/42965870/Estar_vivo_Ensaios_sobre_movimento_co
nhecimento_e_descrição_Tim_Ingold?auto=download . Acesso em 25. jul. 2022
COCCIA, Emanuele. A vida das plantas. Florianópolis: Cultura e barbárie,
2018. Disponível em:
http://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5530162/mod_resource/content/1/Emanu
ele%20Coccia%20-
%20A%20vida%20das%20plantas_%20uma%20metaf%C3%ADsica%20da%2
0mistura%20%282018%2C%20Cultura%20e%20Barbárie%29%20-
%20libgen.lc.pdf . Acesso em 25. Jun. 2022
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um Xamã
Yanomami. São Paulo: Cia. das Letras, 2015. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4886744/mod_resource/content/1/A_QU
EDA_DO_CEU.pdf . Acesso em 25. Jun. 2022
MONIZ, Luciana. A revolução somos nós: esboço de uma escultura museal a
partir da alquimia de joseph beuys. 2019. 211 f. Dissertação (Mestrado) - Curso
de Museologia, Programa de Pós-Graduação em Muselogia, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2019. Disponível em:
https://repositorio.ufba.br/handle/ri/31868. Acesso em: 12 jan. 2022.

Você também pode gostar