Você está na página 1de 20

Limite temporal da lei

LIMITE TEMPORAL DA LEI


Doutrinas Essenciais de Direito Civil | vol. 2 | p. 363 - 394 | Out / 2010
DTR\2012\1816

Matos Peixoto

Área do Direito: Fundamentos do Direito


Sumário:

Revista dos Tribunais • RT 173/459 • maio/1948

1. Segundo informa Cícero, as leis civis romanas tinham geralmente uma cláusula de estilo
circunscrevendo a sua aplicação aos fatos posteriores1

Textos jurídicos, da época republicana, conservados em inscrições, conhecidos através do Digesto


justinianeu e de outras fontes, confirmam essa informação2. A repetição dessa cláusula em leis
diversas denota claramente que não havia um principio geral vedando o efeito retroativo da lei: aliás
não seria necessária essa repetição.

Na época do Principado (27-284) também não se encontra tal princípio, apesar de ser essa a época
em que a ciência jurídica atingiu o mais alto grau de desenvolvimento. Pelo contrário, em matéria de
herança parece que a lei se aplicava retroativamente, esbarrando somente ante os fatos
consumados (coisa julgada, transação, prescrição.) Assim dispunham pelo menos, com a aprovação
de dois dos maiores jurisconsultos romanos (Ulpiano e Paulo), os senatus-consultos Tertuliano e
Orfitiano que em certos casos atribuiram à mãe a herança dos filhos e a estes a herança materna,
respectiva mente3.

Somente na época do dominato (284-565) é que, devido à necessidade de resolver os conflitos cada
vez mais freqüentes oriundos da copiosa produção legislativa, surgiu pela primeira vez, expresso de
modo geral, numa constituição de Teodósio, o Grande (393), o princípio de que as leis não
prejudicam os fatos passados, pois apenas estabelecem regras para os fatos futuros4.

Meio século mais tarde, outra constituição, de Teodósio II (440), conhecida pelo nome de regra
teodosiana, reafirmou e ampliou o mesmo princípio, restringindo a aplicação da lei aos fatos futuros e
excluindo dela não só os fatos passados mas as suas conseqüências (“negotia pendentia”). A regra
teodosina faz, porém, uma ressalva: é que a lei pode ser retroativa quando o legislador assim o
dispuser expressamente (“nom atim”)5. Em outros termos, a irretroatividade é a regra geral, cuja
observância se impõe ao Juiz; essa regra, porém, não ata as mãos do legislador, que pode afastá-la
excepcionalmente, quando entenda ser isso necessário ou oportuno.

Outras constituições imperiais consignam a regra ou aplicam a exceção: entretanto, tendo mandado
fazer as compilações jurídicas que imortalizaram o seu nome, o imperador Justiniano (527-565),
dispôs sobre a aplicação delas e a regra que ele estabeleceu (certamente porque se tratava mais de
consolidação do que de inovação), permitia a retroavidade, ressalvando apenas os fatos
consumados (coisa julgada, transação)6.

Pouco depois Justiniano tornou atrás e na célebre Novela 22 (535) firmou enèrgicamente a regra de
que os fatos jurídicos e as suas conseqüências (“eventus”) se devem reger pela lei do tempo em que
ocorreram, sem nenhuma interferência da lei nova. Na sua legislação, Justiniano ora se atém a essa
regra, ora se afasta, admitindo a retroatividade da lei até encontrar a barreira dos fatos consumados.

Em suma, desta breve noticia da matéria no direito romano resulta que, na última fase desse direito,
a regra era a irretroatividade da lei civil, salvo nos casos em que o próprio legislador a derrogava.

2. Este princípio foi perfiliado pelo direito canônico, por obra de duas decretais, uma de Gregório
Magno (598), segundo a qual. quando a lei estabelece um preceito novo, dispõe para o futuro7
Página 1
Limite temporal da lei

e outra de Gregorio IV (1230), que reproduz quase literalmente a regra teodosiana8 e foi
transplantada para o Código Canónico de 1917, art.: “leges respiciciunt futura, non prceterita, nisi
nominatim in eis de praeteritis caveatur.”

Mas, assimilando essa regra com a exceção que ela contém, o direito canônico deu às vezes a esta
exceção um sentido mais profundo, decorrente da distinção entre direito divino e humano.

As exceções à irretroatividade, quando fundadas no direito divino, retrocedem ao passado sem


quaisquer obstáculos, porque não fazem senão revelar ou reavivar um direito existente “ab aeterno”,
embora ignorado ou irreconhecido. Daí a razão por que tais exceções retroagem, como diz Koubier,
com força irresistível, arrazando mesmo os fatos consumados. Tal é a lei canônica vibrada pelo Papa
Alexandre III contra a usura, tomada esta palavra no sentido mais amplo, significando tudo quanto
alguém recebia a mais do que havia dado, fosse em dinheiro, trigo, vinho, óleo ou qualquer outra
coisa9.

Santo Ambrósio equiparou a usura à rapina: “rapinan facit qui usuram accipit”10

; diversos concílios a condenaram por contrária à lei mosaica11

; isto não obstante, o abuso engravesceu e proliferou, sendo quase considerado coisa lícita. Para
pôr-lhe cobro e reprimi-lo eficientemente, o terceiro concílio de Latrão (1179), sendo Papa Alexandre
III, votou um decreto, interditando aos usurários a comunhão e a sepultura cristã, se não tivessem
restituído os juros dolosamente recebidos12 .

Os prejudicados reclamaram, alegando uns que não tinham recursos para devolver os juros; outros,
que com estes adquiriram bens e os entregaram aos filhos ou aos pais, e ainda outros, que se
julgavam obrigados apenas a devolver os juros recebidos após a interdição.

Sobre essas questões expediu o Papa Alexandre III, logo mo ano seguinte (1180), uma decretal
célebre, onde frisou que deviam ser restituídos os juros recebidos, quer antes, quer depois do
decreto lateranense: e que, se com esses juros foram adquiridas propriedades, elas deviam ser
vendidas, entregando-se o preço àqueles de quem tais juros foram extorquidos13 . Explica-se tão
intensa retroatividade, já por ser a usura considerada uma violação do direito divino, já porque a
percepção era uma prática condenada embora com sanções menos severas, por concílios anteriores
e por padres da Igreja.

3. Na idade média, escassos foram os estudos jurídicos sobre o direito transitório, porque raros se
tornaram os conflitos de leis no tempo, devido ao estabelecimento de um regime político conservador
e costumeiro, em substituição ao governo do Baixo Império Romano, cuja legislação foi tão
abundante e espraiada.

Entretanto na época de Bartolo (1313-1357) já aparece a noção de direito adquirido (“jus


quaesitum”), sem que se saiba exatamente quem a introduziu na doutrina. Ao direito sòlidamente
adquirido (“ius quaesitum firmum”), inacessível à ação da lei nova, contrapõe-se o direito em
expectativa (“ius existens in spe”), que a lei nova pode atingir. Mas essa distinção na prática nem
sempre corresponde à boa doutrina; pois, entre outros desvios dela, se considerava já adquirido o
direito do legatário em vida do testador14 . Nem isso é de estranhar, pois os juristas trabalhavam com
textos de direito romano e nesses textos não se encontra a noção do direito adquirido.

Como acentua Affolter, os romanos não operavam com direitos adquiridos, mas com “facta
praeterita” ou “causae finitae” e “facta pendentia” ou “causae pendentes” 15 . Num único texto se
encontra a expressão “beneficium adquisitum” como limite à ação da lei mova; mas nesse mesmo
texto, que é uma constituição do fim do século V (497-498), se associa esta regra à do respeito aos
“facta praeterita” (C. 10, 32, 66, 1.)

Era, portanto, no terreno dos estados de fato e não no do direito subjetivo que os juristas da idade
média, seguindo as pegadas dos juristas, romanos, procuravam a solução geral do problema
(Roubier.) Aos “facta praeterita” e “facta pendentia” do direito romano correspondiam
respectivamente o “actus perfectus” e o “actus praeteritus nondum finitus” da doutrina medieval. O
“actus perfectus” é o ato jurídico perfeito, governado em si e em suas conseqüências pela lei do
tempo em que se realizou: o “actus praeteritus nondum finitus” é aquele cuja perfeição depende de
fato futuro; se antes de ocorrer esse fato, sobrevem uma lei nova, ela atinge o ato que ainda não
Página 2
Limite temporal da lei

está completo.

4. O direito Romano, o direito canônico e o direito medieval, quando vedavam o “efeito retroativo” da
lei, não empregavam esta expressão, que, segundo apurou Roubier, aparece pela primeira vez numa
das grandes ordenações de Dagusseau – a lordenação de Agosto de 1747 sobre as substituições.
Meio século depois as expressões “retroatividade” e “efeito retroativo” serão as preferidas pela
legislação revolucionária francesa.

5. Mas, antes de chegarmos lá, convém dizer algo sobre a retroatividade em matéria penal, na época
anterior. Nessa matéria, o princípio da irretroatividade apresenta-se sob duplo aspecto: – nenhum
fato pode ser considerado crime senão em virtude de lei anterior (“nullum crimen sine lege”) e não se
pode aplicar pena alguma que a lei vigente ao tempo do fato delituoso não estabeleça (“nulla poena
sine lege”), a menos que a pena da lei posterior seja menos rigorosa que a da lei anterior.

Estas duas regras não são romanas e os brocardos latinos que as exprimem, foram formulados, no
princípio do século XIX, pelo criminalista alemão Feuerbach16 .

A retroação da lei penal, que hoje se nos afigura uma coisa monstruosa, não feria a sensibilidade
jurídica dos romanos; pois o princípio dominante entre eles nesta matéria era outro: era a
proporcionalidade da punição ao delito, de modo que se devia esperar para cada caso uma pena
adequada, nada importando que esta lhe fosse ou não posterior. Não havia, pois, em direito romano,
nenhum preceito geral vedando a aplicação retroativa da lei penal. Entretanto, no século IV Santo
Ambrosio, refletindo certamente as idéias da época, formulou lìmpidamente esse preceito, depois
incorporado mo direito canônico17 .

Glosadores e posglosadores, comentando o direito romano e canônico, divulgam o grande princípio,


propagam-no criminalistas italiano do século XVI e, nos séculos seguintes, consolidam-no
jurisconsultos italianos, germanos, franceses e holandeses.

Entretanto, em França, por influência do direito romano, seguia-se na jurisprudência a máxima:


“aujourd’hui les peines sont arbitraires dans ce royaume”; o que, conforme nota Ortolan, permitia aos
juízes não só modificar as penas estabelecidas, mas também arbitrar as penas aplicáveis aos casos
não previstos. Publicistas do século XVIII profligaram a máxima iníqua e esse combate encontrou
éco na Constituição americana, elaborada em 1787, cujo art. 1.º, seção 9, § 3.º, proibe leis “ex post
facto”, que, segundo a interpretação dominante, são leis:

a) que consideram crime e punem um fato antes considerado inocente;

b) que agravam o fato criminoso anteriormente, classificando-o na categoria de um crime mais grave;

c) que aumentam a pena de crime anterior; ou

d) que alteram as regras da prova, contentando-se com uma prova menos cabal ou diferente para a
condenação18 .

6. Dois anos após, começou a revolução francesa e a opinião pública apontou à assembléia
constituinte (1789-1791), entre os abusos a serem erradicados, as leis penais retroativas. “A
declaração dos direitos do homem” (1789) atendeu a esses reclamos e seu art. 8 acentua que
ninguém pode ser punido senão em virtude de lei anterior legalmente aplicada. Na assembleia
constituinte Mirabeau proclamou, com mais ênfase do que exação, que nenhum poder humano e
sobre-humano poderia legitimar o efeito retroativo. A “Declaração de Direitos”, prefixa à constituição
de 1793 reacentua, com ênfase revolucionária: “a lei que punisse delitos cometidos antes dela seria
uma tirania; o efeito retroativo dado à lei seria um crime.”

7. Em matéria civil, porém, foram promulgadas nessa época leis iniquamente retroativas, coloridas
com o pretexto de restabelecer direitos naturais injustamente postergados. Está nesse caso, para
citar um exemplo notável, a lei de 12 brumário do ano II (2 Nov. 1793), que admitiu os filhos naturais
à sucessão paterna e materna, desde 14 de Julho de 1789 (queda da Bastilha), data em que,
segundo as idéias revolucionárias da época, “les droits de la nature ont repris leur empire.” Pouco
depois veio a reflexão e deliberou-se estender à lei civil o princípio da irretroatividade. A Constituição
diretorial (22 Ag. 1795) preceitua, com menor ênfase e maior largueza que a “Declaração de Direito”:
– nenhuma lei criminal ou civil pode ter efeito retroativo.
Página 3
Limite temporal da lei

Este princípio teve cabida, numa fórmula irrestrita e mais ampla, na nossa constituição imperial, de
1824, cujo art. 179, 3, estatuía que a disposição legal não teria efeito retroativo. Como se isso não
bastasse, para garantir a irretroatividade injusta em matéria penal, dispunha ainda o n. 11 do mesmo
art. 179 que ninguém seria sentenciado senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior
e na forma por ela prescrita.

A constituição republicana de 24 de Fevereiro de 1891 reproduz esses mesmos preceitos (arts. 11, §
3.º, e 72, § 15.)

A constituição de 1934 não tem, como a constituição imperial e a republicana de 1891, preceito geral
vedando a prescrição de leis retroativas; mas, quanto à matéria penal, repete em substância a norma
dessas duas constituições e salienta que a lei penal só retroage em benefício do réu (arts. 113, §§ 26
e 27.) Entretanto, a constituição de 1934 tem um preceito transplantado da Lei de Introdução ao
Código Civil (LGL\2002\400), que redunda nessa proibição: é o preceito do art. 113, 3, segundo o
qual a lei não pode prejudicar o direito adquirido, o ato judídico perfeito e a coisa julgada.

O projeto Sampaio Doria preferiu a técnica da constituição de 1891, que aliás é, como se viu, a
mesma, neste particular, que a da constituição imperial de 1824; pois no art. 12, 3, proíbe leis
retroativas e no art. 36, 3, reproduz os preceitos daquelas duas constituições sobre a anterioridade
da lei penal ao fato delituoso. O projeto do Instituto da Ordem dos Advogados, bem como o projeto
(parcial) da sub-comissão encarregada, na Constituinte, da parte relativa à “Declaração de Direitos e
Garantias Individuais”, optaram pela fórmula da Constituição de 1934.

A nova Lei de Introdução ao Código Civil (LGL\2002\400), adotando uma fórmula considerada de
melhor técnica, subtrai à aplicação da lei nova, as situações jurídicas definitivamente constituídas e a
execução do ato jurídico perfeito. Qual dessas tres fórmulas – irretroatividade, respeito aos direitos
adquiridos ou às situações jurídicas – é a preferível?

Resolvido este ponto, convém, no estado atual da .evolução jurídica, incluir tal fórmula na futura
Constituição?

8. A primeira questão que cumpre resolver, é fixar o conceito de lei retroativa.

Como a composição da palavra indica, retroagir (“retro” mais “agere”) significa agir para trás; daí se
conclui que leis retroativas devem ser as que atuam sobre o passado. Mas como se opera essa
atuação? As leis, observa Donelo, no século da Renascença, apoiado na classificação formal de
Modestino, ou ordenam ou proíbem ou permitem. Ora, continua Donelo, não se pode ordenar, proibir
ou permitir alguma coisa antes da ordem, da proibição ou da permissão19 . Há, portanto, uma
impossibilidade material á execução da lei no passado.

9. Mas, se uma lei não pode ser executada no passado, pode, entretanto, modificar os fatos
pretéritos ou suas conseqüências, de tal maneira que a situação seja, tanto quanto possível, a
mesma que existiria se a lei preexistisse a si mesma. Neste sentido opera-se, como diz Valette, um
retorno fictício ao passado, para o conformar, salvo impossibilidade física, ao que devia ter ocorrido
se a lei posterior já existisse. As leis que assim retrocedam ao passado modificando atos pretéritos,
são leis retroativas.

Entretanto, não há acordo entre autores sobre a medida em que esse retrocesso é necessário para
que uma lei seja considerada retroativa. Num ponto, todavia, todos convergem: a lei é retroativa
quando anula ou modifica atos passados ou os seus efeitos, realizados ou que deviam já ter-se
realizado (ex.-juros percebidos ou vencidos, estipulados de acordo com a lei anterior.) A divergência
versa apenas sobre «s efeitos futuros dos fatos ou atos precedentes Segundo uns, há retroatividade
quando a lei atinge esses efeitos; segundo outros há apenas aplicação imediata da lei.

10. Vareilles Sommière formulou uma teoria intermédia estabelecendo a seguinte distinção: a lei é
retroativa se suprime ou modifica os efeitos de ato anterior, em razão de um fato passado; não o é,
se o faz por motivos do futuro (pour des raisons d’avenir), isto é, do direito considerado em si mesmo
e dos seus inconvenientes.

O jurisconsulto francês não esclarece bem o que seja esse direito considerado em si mesmo (pris en
soi), mas percebe-se da sua exposição que é o direito tomado como regra abstrata, somenos às
necessidades sociais a que não se podem opor interesses particulares.
Página 4
Limite temporal da lei

Assim é que, segundo Vareilles Sommière, seria retroativa a lei que permitisse anular por lesão os
contratos concluídos no domínio de uma lei que desconhecesse essa causa de anulabilidade. A
retroatividade resultaria da possível supressão dos efeitos contratuais em conseqüência de um fato
passado (a lesão), que, pela lei vigente ao tempo do contrato, não era considerado motivo capaz de
invalidá-lo. Vareilles Sommière, entretanto, não considera retroativas as leis que aboliram os direitos
feudais e a escravidão, embora ficassem sem efeito os contratos fundados nesses direitos ou na
instituição negra; porquanto o legislador pode, por motivos de interesse geral, modificar (“in futurum”)
os direitos atuais. Partindo desse princípio, ele chega a avançar que não seriam retroativas as leis
que, satisfazendo a vontade geral, confiscassem os bens das associações religiosas ou
despojassem os judeus de suas riquezas, ou ainda num regimem socialista, suprimissem (a
propriedade imobiliária. Como se vê, o critério de Vareilles Sommière, para distinguir se uma lei é ou
não retroativa, não se deduz dos efeitos da lei mas da natureza dela. Se esta é de interesse geral,
deve aplicar-se a todos os fatos que caem sob seu domínio, inclusive as conseqüências dos atos
anteriores20 .

Não é preciso esforço para mostrar a fraqueza e o ilogismo dessa doutrina, que teve como diz
Bonnecase, a sua hora de celebridade. Uma coisa é o efeito retroativo da lei e outra coisa é a
necessidade dela. Sé a lei suprime direitos existentes antes dela, não pode deixar de ser retroativa,
embora essa retroatividade seja necessária.

11. Mais radical e mais lógica, embora imperfeita, é a teoria de Planiol, que somente considera
retroativa a lei que volta ao passado, quer para apreciar as condições de legalidade de atos
anteriores, quer para modificar ou suprimir os efeitos já verificados desses atos. Fora dai, acentua o
civilista francês, não há retroavidade, pode, portanto, a lei modificar os efeitos futuros de ato ou fato
anterior sem ser retroativa. É erro, portanto, segundo esse critério, considerar retroativa uma lei que,
somente para o futuro e a contar da data em que entra em vigor, regula as conseqüências de fatos
pretéritos21 . Como exemplo da verdadeira retroatividade, Planiol cita a lei francesa de 6 de Janeiro
de 1794 (17 nevoso do ano II), que anulou as doações, instituições contratuais e disposições “mortis
causa” desde de 14 de Julho de 1789, atingindo até as partilhas já julgadas, que deviam ser feitas de
novo.

É por demais simplista essa teoria que considera apenas uma das faces do problema, pretendendo
resolvê-lo pela separação material entre o passado e o futuro, feita pela data em que a lei começa a
vigorar. Criticando tal doutrina, Bonnecase distingue o passado no sentido jurídico e o passado no
sentido material do termo. Um não coincide com o outro, porque a realidade material não
corresponde rigorosamente à realidade jurídica. Quando uma situação jurídica se constitui, contém
virtualmente uma parte do futuro que ela submete à lei vigente, em ordem a que todas as
conseqüências futuras dessa situação jurídica possam realizar-se por antecipação formando com ela
um só corpo. Se a lei nova atinge essas conseqüências, seciona a realidade jurídica, tanto quanto a
realidade material, pois destrói algo virtualmente realizado no momento em que entra em vigor22 ; por
outras palavras ofende o passado jurídico e sob esse aspecto é retroativa.

Não há, porém, necessidade dessa construção artificial e forçada para explicar a inaplicabilidade da
lei nova às conseqüências dos atos ou fatos jurídicos anteriores. Tudo se explica naturalmente
partindo-se do seguinte princípio: a lei que rege a causa (fato jurígeno), rege também os seus
efeitos.

Se intervém uma lei nova e modifica esses efeitos, ela é retroativa, quer eles se hajam verificado
antes da sua vigência, quer se verifiquem no decurso dela. Sob esse prisma, o princípio da
irretroatividade, quanto aos efeitos produzidos ou produzíveis após a entrada em vigor da lei nova,
coincide com o princípio de sobrevivência da lei antiga. São fórmulas diferentes para traduzirem a
mesma idéia.

12. Roubier encontra a chave o problema na distinção entre o efeito imediato e o efeito retroativo da
lei nova. Essa distinção, que segundo o jurisconsulto francês, nunca foi enunciada com clareza, é,
entretanto, a base fundamental para as soluções das questões de direito transitório. O efeito
imediato é a aplicação da lei ao presente; o efeito retroativo é a aplicação ao passado.

Assim posta a questão, parece muito simples. Cumpre, entretanto, distinguir na aplicação da lei, os
fatos realizados (“facta praeterita”), os fatos em via de realização (“facta pendentia”) e os fatos
futuros (“facta futura”). Quanto a estes últimos, é claro que a lei nunca pode ser retroativa; sê-lo-á,
Página 5
Limite temporal da lei

porém, inquestionàvelmente, quando se aplique a fatos passados.

No tocante aos fatos pendentes, cumpre separar as partes anteriores e as partes posteriores à data
da mutação legislativa. Em se aplicando a estas últimas, a lei nova não terá jamais efeito retroativo.
É somente no que respeita às partes anteriores que ela não pode agir sem retroatividade, Essa
diferença, que é fundamental na doutrina de Roubier, estabelece uma oposição absoluta entre esses
dois modos de aplicação da lei no tempo.

Entretanto, nos contratos em curso – adverte Roubier – exclui-se tanto o efeito imediato quanto o
efeito retroativo da lei nova. Nesses casos dá-se a sobrevivência da lei antiga e, excluídos o efeito
imediato e o efeito retroativo, ambos reunem-se numa região comum, parecendo que se apagam as
respectivas fronteiras.

Mas é uma visão falsa; porque, se por exceção o legislador admite o efeito imediato da lei quanto
aos contratos em curso a necessidade da distinção aparece imediatamente, máxime nos países
onde a retroatividade das leis é proibida por disposição constitucional.

De fato, a prevalecer essa distinção, não será retroativa, e, portanto, não incorrerá no vício de
inconstitucionalidade, nesses países, uma lei que suprima ou modifique, após a sua vigência, os
efeitos dos contratos em execução: configura-se aí apenas um caso de aplicação imediata da lei e o
efeito imediato não é o efeito retroativo23 . Mas Roubier recua diante dessa conseqüência.

13. A teoria dele não é mais que o desenvolvimento da teoria de Planiol, que, conforme se viu, limita
a retroatividade aos fatos jurígenos anteriores à lei nova e aos seus efeitos anteriormente verificados.

Apesar da insistência com que Roubier propugna a distinção entre o efeito imediato e o efeito
retroativo, fazendo dela o eixo do direito intertemporal, essa distinção é falsa nos termos em que o
autor a formula, tomando como critério discriminativo a verificação, anterior ou posterior à lei, dos
efeitos decorrentes das situações jurídicas preestabelecidas. Desde que a lei nova modifique esses
efeitos, ela é retroativa, porque interfere na causa que os produziu e que é um fato do passado.

Aliás, o próprio Roubier não se mantém fiel à sua doutrina; tanto é assim que considera retroativa
uma lei limitando, após a sua vigência, os juros dos contratos em curso, que, de acordo com a
legislação anterior, hajam estipulado taxas mais altas.

A razão é que, conforme ele salienta, o contrato deve ser considerado um bloco de cláusulas
indivisíveis, cujos efeitos se devem reger todos pela lei do tempo em que foi feito; de modo que,
sobrevindo uma lei nova, não se deve aplicar, sob pena de incorrer em vício de retroatividade, nem
mesmo aos efeitos ocorridos após a sua vigência. É certo que Roubier chama a isso retroatividade
temperada; mas ele próprio diz – “la retroativité temperée est encore de la retroativité” 24 . E’ palpável
a contradição.

Dir-se-ia que não há contradição, mas apenas exceção à regra sobre o efeito retroativo da lei. Mas é
preciso ver que Roubier se propôs fixar o conceito da retroatividade, que, segundo ele define é a
ofensa da lei aos fatos jurídicos anteriores e aos seus efeitos também anteriores.

Trata-se, portanto, da noção mesma da retroatividade e, se uma regra comporta exceção, isto é,
contradição, uma noção não a comporta. Ihering25 figura a outro propósito um exemplo espirituoso: a
noção de mesa é ser um móvel de quatro pernas, mas há medas que por exceção têm mais e outras
que têm menos pernas…

Por conseqüência, se, segundo Roubier, a retroatividade é conceitualmente um retrocesso ao


passado, discriminando-se do efeito imediato da lei pela data da mesma, não pode, no caso dos
contratos, ser também retroativa, por exceção, a lei que lhes prejudique os efeitos decorrentes após
essa data.

Admitindo o efeito, retroativo nesse caso, Roubier reconhece implicitamente que o conceito da
retroatividade por ele formulado é imperfeito e insuficiente.

E nisso está certo, porque, efetivamente, o caso é de efeito retroativo e não apenas de efeito
imediato da lei; pois esta, modificando as conseqüências de contratos anteriores, produzidas na
vigência da lei nova, destrói algo que havia sido estabelecido no passado e que, no domínio da lei
Página 6
Limite temporal da lei

antiga, era apto para produzi-lo.

A lei que cancela tais efeitos repercute no fato jurígeno anterior e a sua ação pode ser imediata no
sentido de que se exerce imediatamente, mas nem por isso deixa de ser retroativa por alterar, após a
sua vigência, as conseqüências de fatos pretéritos.

14. É essa a forma mais branda da retroatividade mas há outras cm que ela atua mais intensamente.
Sob esse ponto de vista, cumpre distinguir, em matéria civil, três espécies de retroatividade: máxima,
média e mínima.

Dá-se a retroatividade máxima (também chamada restitutória, porque em geral restituí as partes ao
“statu quo ante”), quando a lei nova ataca a coisa julgada e os fatos consumados (transação,
pagamento, prescrição.) Tal é a decretal de Alexandre III que, em ódio à usura, mandou os credores
restituírem os juros recebidos. A’ mesma categoria pertence a citada lei francesa de 2 de Novembro
de 1793 (12 brumário do ano II), na parte em que anulou e mandou refazer as partilhas já julgadas,
para os filhos naturais serem admitidos à herança dos pais, desde 14 de Julho de 1789. A carta de
10 de Novembro de 1937, art. 95, parágrafo único, hoje felizmente revogado, previa a aplicação da
retroatividade máxima, porquanto dava ao Parlamento a atribuição de rever decisões judiciais, sem
excetuar as passadas em julgado, que declarassem inconstitucional uma lei.

A retroatividade é média quando a lei nova atinge os efeitos pendentes de ato jurídico verificados
antes dela, exemplo: o decreto n. 22.626, de 7 de Abril de 1933 (lei da usura), o qual limitou a taxa
de juros e se aplicou aos contratos existentes, inclusive os ajuizados.

Enfim a retroatividade é mínima (também chamada temperada ou mitigada), quando a lei nova atinge
apenas os efeitos dos atos anteriores produzidos após a data em que ela entra em vigor. Tal é, no
direito romano, a lei de Justiniano (C. 4, 32 27 pr.), que, corroborando disposições legislativas
anteriores, reduziu a taxa dos juros vencidos após a data da sua obrigatoriedade.

15. A classificação da retroatividade nessas três espécies (máxima, média e mínima), baseia-se, na
maior ou menor lesão ao patrimônio, tomada esta palavra no sentido amplo que Gibba lhe atribui.
Por isso tais espécies englobam-se sob uma denominação comum: retroatividade injusta.
Contrapõe-se-lhe a retroatividade justa, que não causa dano ao patrimônio.

Suponha-se uma lei que revogasse o art. 393 do Código Civil (LGL\2002\400), segundo o qual a
mãe, que contrai novas núpcias, perde o pátrio poder sobre os filhos do primeiro leito. Extinguir-se-ia
imediatamente a tutela em que esses filhos se achassem: a lei seria justamente retroativa por não
lesar direitos patrimoniais.

Há quem entenda que essa retroatividade é a regra geral. A propósito invoca-se amiúde o episódio
ocorrido relativamente à grande obra de Gabba. Alguém procurou emendar o título, antepondo à
palavra “retroatività” um “non”, cuja omissão atribuiu a um “lapsus calami”.

Gabba protestou e fez ver ao censor leviano que ele, antes da corrigenda, devia ter lido o prefácio da
obra, onde o jurisconsulto italiano explica as razões por que lhe deu o titulo premencionado. Com
efeito, para Gabba (assirti como para Merlin, Landuci e outros), a retroatividade é a regra. Há
certamente exagero nessa doutrina, devido à confusão entre efeito imediato e efeito retroativo.
Gabba e outros dizem, por exemplo, que as leis do processo são retroativas. Entretanto, em geral
tais leis não são retroativas porque não destróem a conseqüência de nenhum ato, passado: trata-se
apenas de efeito imediato da lei.

Posta, porém, de parte esta observação, o que importa acentuar é que, segundo Gabba e outros, as
leis são em regra retroativas. Somente se abre exceção a essa regra geral quando elas encontram,
no campo da sua aplicação, direitos adquiridos. Por outras palavras, a retroatividade é a regra e a
irretroatividade é a exceção.

Outros autores (ex. Dernburg, Filomusi, Guelfi, Ribas) entendem ao contrário que a irretroatividade é
que é a regra, sendo exceção a retroatividade. Ora, verifica-se que as exceções coincidem com a
não existência de direitos adquiridos; em outros termos, a lei nova só não se aplica retroativamente
quando ofende esses direitos (retroatividade injusta). O antagonismo entre as duas teorias é,
portanto, mais de forma do que de fundo: em uma o princípio enuncia-se positivamente; noutra,
negativamente. De fato, a primeira teoria enquadra-se nesta fórmula: as leis são retroativas, salvo
Página 7
Limite temporal da lei

quando lesam direitos adquiridos. A fórmula da segunda pode ser esta: as leis são irretroativas, salvo
quando não lesam direitos adquiridos.

Quanto às aplicações concretas, as duas teorias coincidem, isto é, os direitos adquiridos constituem
o limite temporal da lei, quer se adote como regra a retroatividade, quer a irretroatividade.

16. Como quer que seja, injustificável é toda a legislação que como a constituição imperial e a
constituição republicana de 1891, seguidas pelo projeto Sampaio Doria, proíbe de modo geral as leis
retroativas, sem distinguir entre retroatividade justa e injusta.

Se toda lei fora irretroativa, a regra seria a sobrevivência da lei antiga. Se há leis que pelo seu objeto
se aplicam retroativamente, há outras em que se dá precisamente o contrário.

Ruy Barbosa acentuou: há leis inofensivamente retroativas, leis legitimamente retrotivas e até leis
necessàriamente retroativas26 .

Afastada a fórmula que veda as leis retroativas, restam as duas outras que interdizem as leis
prejudiciais ao direito adquirido ou às situações jurídicas definitivamente constituídas.

17. Para resolver essa questão cumpre fixar as noções de direito adquirido e de situação jurídica.

A doutrina dos direitos adquiridos tem raízes na época de transição do século XIII para o século XIV.
Jacó de Belviso (1270-1335) já fala do “ius adquisitum” irrevogável pela lei nova; entretanto o seu
contemporâneo Cino da Pistoia (1270-1336), que foi mestre de Bartolo, o maior jurisconsulto da
idade média, ainda não emprega aquela expressão, embora empregue outra equivalente (“ius
impetratum”); o que parece denotar que a primeira ainda não estava suficientemente divulgada27 .

Entretanto nos séculos XIV e XV a noção do direito adquirido está em plena florescência e os
autores que se ocupam das questões de direito intertemporal, a utilizam desde o tempo de Bartolo,
com maior ou menor exação, e influem na elaboração legislativa da época, a começar pelo Código
Civil (LGL\2002\400) da Alta Baviera (“oberbairisches Londrecht,”) da primeira metade do século XIV,
que imprimiu pela primeira vez chancela legislativa ao princípio do direito adquirido, nisto sendo
imitado por outras legislações germânicas28 .

Os juristas do século XVI e XVII distinguem o “ius quaesitum ex iure divino vel gentium” do “ius
quaesitum ex iure positivo”. Tal distinção, feita pelo canonista Felinus Maria Sandaeus, tornou-se a
“opinio communis doctorum”. Essa distinção tem a máxima importância na história do direito
intertemporal; pois o direito adquirido fundado no “ius positivum” pode ser revogado pelo príncipe ou
pelo Papa, ao passo que o direito adquirido baseado no “ius divinum” é inauferível.

Os civilistas aceitam essa distinção, mas eliminam o direito adquirido proveniente do “ius divinum”,
de sorte que a contraposição se dá entre o direito adquirido conforme o “ius gentium” e o direito
adquirido conforme o “ius positivum seu humanum”29 .

Isso corresponde, na linguagem de Hugo Grotius (1583-1645), o fundador da nova filosofia do direito
natural, à distinção entre direito adquirido por força do direito natural e direito adquirido por força da
lei civil; mas Grotius repele tal distinção, porque todos esses direitos devem ser igualmente
respeitados, e quando o poder real os elimine, deve indubitàvelmente (“haud dubie”) reparar o dano
causado30 .

Mas a distinção reaparece em bases diferentes na obra de outros filósofos do direito natural, desde
João Cristiano Wolf (1679-1754), que foi o precursor das declarações de direito das constituições
norte-americanas e da legislação revolucionária francesa. Ele biparte os direitos em naturais (“iura
cognata”) e adquiridos (“iura quaesita”); os primeiros resultam da natureza do homem, são
originários, universais, absolutos, irrenunciáveis (liberdade, igualdade, incolumidade, legitima
defesa); os segundos resultam de fato humano, são derivados, particulares, hipotéticos, renunciáveis
31
.

18. No princípio do século XIX – após a promulgação do Código Civil (LGL\2002\400) francês (1804),
cujo art. 2 diz que a lei não tem efeito retroativo, e do Código Civil (LGL\2002\400) austríaco, cujo art.
5 diz que as leis não retroagem, nem têm influência sobre os atos anteriores e os direitos adquiridos
– o fundamento da noção do direito adquirido deslocou-se da filosofia do direito natural para o
Página 8
Limite temporal da lei

terreno do direito positivo. O assunto suscitou volumosa literatura, sendo inúmeras as definições
dadas ao direito adquirido. Seria fora de propósito mencioná-las neste estudo, que se limitará às
indicações essenciais.

Tem-se dito estar vazia de sentido lógico, hoje em dia, a expressão “direitos adquiridos”. Era
admissível, na técnica dos canonistas e civilistas, que partiam da origem, divina ou humana,
atribuída ao direito objetivo, para a classificação dos direitos subjetivos, com base nessa origem:
todos e quaisquer direitos eram adquiridos, isto é, eram provenientes de uma ou de outra fonte. O
qualificativo “adquiridos” não tinha sentido absoluto como na doutrina moderna, mas relativo,
subordinado a um complemento terminativo de origem: direitos adquiridos procedentes (ex) do direito
divino ou do direito humano. Admissível também era a existência da expressão questionada na
técnica dos filósofos do direito natural, que, como se viu, distribuíam os direitos em duas classes:
direitos inatos, fundados na natureza humana, e direitos adquiridos, fundados em fato humano. Mas
não é neste sentido que empregam a expressão os civilistas do século passado e atual, quando
tratam dos conflitos da lei.

Cabe aqui a observação de Duguit: ou existe direito, ou não existe e se existe, é sempre adquirido;
em outros termos, todo direito é adquirido.

A expressão direito adquirido é, portanto, excessiva, supérflua. Disso resulta que a definição
conveniente ao direito adquirido não deve diferir da que quadra ao direito subjetivo em geral. A ilação
é irrepreensivelmente lógica; mas a lógica em direito nem sempre é boa conselheira. A propósito
observava judiciosamente aquele alto e preclaro espírito que foi Virgílio de Sá Pereira: nenhuma
teoria se legitima em direito apenas pela lógica com que se conduz, mas também e sobretudo pela
utilidade que dela resulta. Vejamos, pois, se há alguma utilidade em manter-se a expressão “direito
adquirido”, que, apesar de vulnerável, sob o ponto de vista lógico, tornou-se uma espécie de moeda
cunhada, com curso legal em textos legislativos e nos livros de doutrina.

Os autores porfiam em definir o direito adquirido, distinguindo-o do direito subjetivo em geral. As


divergências entre eles são, entretanto, profundas e aqui também se pode dizer: “tot capita, quot
sententiae”. Ante as dificuldades da matéria, Vareilles Sommieres desafia “le plus délié civiliste” a dar
uma definição exata de direito adquirido. Refletindo o mesmo pensamento, Roubier diz que o direito
adquirido é “un fantôme insaisissable”; entretanto, salienta o mesmo autor que a dificuldade principal,
na doutrina do direito adquirido, não consiste em definí-lo, visto como todo o mundo tem uma idéia
bastante clara do que seja este direito; e, se ele não o toma como critério na solução dos diferentes
conflitos das leis no tempo, é porque considera esse critério insuficiente e não porque seja difícil de
lidar com ele32 .

19. Gabba que confessa haver consagrado ao estudo do direito transitório os mais belos anos de sua
mocidade e que escreveu sobre o assunto uma obra monumental – “Retroattività delle Leggi”, deu do
direito adquirido uma definição que entre nós mereceu as preferências de dois mestres insignes:
Porchat e Espínola. A definição é esta: “É adquirido todo direito: a) que é conseqüência de fato
idôneo para produzi-lo em virtude da lei do tempo em que se realizou, embora a ocasião de o fazer
valer não se haja apresentado antes da aplicação de uma lei nova sobre o seu objeto; e b) que, nos
termos da lei em cuja vigência ocorreu o fato de que se origina, entrou a fazer parte do patrimônio do
adquirente.”33

É, como se vê, uma definição quilométrica, pecando contra as recomendações da lógica. Criticou-a
com veemência Lacerda de Almeida, que notou não ser muito fácil penetrar nesse antro do
pensamento quê mais parece germânico do que latino34 .

Sem embargo do que diz o sábio civilista pátrio, não é difícil apreender o sentido da definição de
Gabba. Um defeito grave, que a torna demasiadamente extensa, reside em ter destacado, sem
necessidade, os requisitos do fato jurígeno, de que procede o direito adquirido.

Quando se define o direito subjetivo (e o direito adquirido é urna modalidade desse direito), não há
necessidade de dizer que o fato jurígeno, de que aquele direito resulta, deve reunir os requisitos
legais, do acordo com a lei do tempo em que ocorreu. Isto está subentendido: “tempus regit actum”.
Idênticamente, no caso do direito adquirido está subentendido que o fato ou ato de que ele procede,
deve conformar-se à legislação vigente. A primeira parte da definição de Gabba é, portanto, uma
excrescencia que se pode e se deve amputai sem prejuízo da caracterização do direito adquirido.
Página 9
Limite temporal da lei

Resta a segunda parte relativa à incorporação do direito no patrimônio. É a parte útil da definição.
Em suma, direito adquirido é o direito de caráter patrimonial ou em duas palavras, “tout court”: direito
patrimonial.

Mas cumpre advertir que o patrimônio, segundo Gabba, não compreende apenas direitos de
conteúdo econômico, mas também direitos de ordem pessoal, como os estados e a capacidade.
Como se vê, o jurisconsulto italiano força e desnatura o sentido da palavra patrimônio, para poder
incluir nele os direitos adquiridos que, na linguagem jurídica corrente, não têm caráter patrimonial.

Aliás, algo contraditòriamente, Gabba distingue amiúde os direitos adquiridos patrimoniais e os


direitos adquiridos sem valor econômico e que ele chama direitos adquiridos pessoais. Essa
distinção não seria necessária, se o patrimônio pudesse abranger estes últimos direitos.

Mas Gabba não só a salienta, mas lhe dá-marcado relevo, ao formular uma definição especial dos
direitos adquiridos pessoais. Em geral podem dizer-se direitos adquiridos pessoais – define Gabba –
os direitos que pertencem imediatamente ao indivíduo investido de um estado pessoal, trazem
vantagem a esse indivíduo e constituem ao mesmo tempo a verdadeira substância desse mesmo
estado35 .

Essa definição está longe de ser impecável; mas, lendo se o tratado de Gabba, compreende-se
facilmente quais são os direitos adquiridos pessoais de que ele fala: são, na ordem política, a
cidadania e, na ordem privada, o estado de família (paternidade, filiação, parentesco, estado civil:
solteiro, casado, viúvo), a que cumpre acrescentar, em conexão com o estado físico, a capacidade.
Está assim, aproximadamente delimitado, embora sem rigor absoluto, senão o conceito pelo menos
o quadro dos direitos adquiridos: os direitos patrimoniais e, na ordem pessoal, os que acabam de ser
indicados.

20. Entretanto, a teoria dos direitos adquiridos tem sido rudemente impugnada; Weber, no primeiro
quartel do século passado, a considerava uma coisa inútil e perigosa; Struvio (1231), e, mais
recentemente, Hue (1892) e Regelsberger (1893) salientam que todo direito é necessàriamente
adquirido. Duguit, já vimos, fez-se éco dessa observação. Por estas e outras razões, civilistas
modernos (Planiol e Ripert, Chironi e Abello, Colin e Capitan) abandonaram, diz Roubier, o terreno
pouco sólido dos direitos adquiridos. Entre nós também os abandonou, por considera-los uma
velharia, á douta Comissão que elaborou a nova Lei de Introdução ao Código Civil (LGL\2002\400).

À teoria, chamada subjetiva, dos direitos adquiridos, se opõe a teoria, chamada objetiva, das
situações jurídicas, cujas modalidades principais são as teorias e Duguit e de Jéze, de Bonnecase e
de Roubier.

21. Duguit assinala que as numerosas dificuldades da matéria não teriam surgido, se se houvesse
atentado na distinção entre as manifestações da vontade individual (situações subjetivas), que a lei
não deve prejudicar, e as situações legais ou situações objetivas derivadas diretamente da lei, as
quais seguem todas as transformações desta, podendo ser modificadas pela lei nova36 .

Desenvolvendo essa distinção, Jéze salienta que as situações legais ou objetivas são gerais,
uniformes (iguais para todos, ex. o casamento), permanentes, irrenunciáveis e imodificáveis pela lei
nova ao passo que as situações subjetivas são particulares, pluriformes (ex. o regime dos bens no
casamento), transitórias, renunciáveis e modificáveis pela lei nova37 .

Esta teoria peca pela base, por não ser exato que as situações legais jurídicas objetivas emanem
diretamente da lei; o que esta faz é apenas fixar os quadros abstratos das situações jurídicas; mas,
para que estas se realizem, concretamente, é preciso sempre que se produza um fato jurígeno, quer
este fato seja natural, quer seja humano (Roubier.) Se a manifestação da vontade humana deve
limitar a aplicação da lei nas situações subjetivas, o mesmo deve ocorrer nas situações legais
criadas por essa vontade.

Por outro lado, as características assinaladas por Jéze, nem sempre correspondem à realidade; por
exemplo, a situação jurídica do herdeiro abintestado é uma situação legal; a do legatário é subjetiva;
entretanto, ambas são permanentes e renunciáveis e a lei não pode prejudicar nem uma e nem
outra, sob pena de retroatividade injusta.

Mas Duguit e Jéze nem sempre estão de acordo. Ambos acham que a responsabilidade delitual
Página 10
Limite temporal da lei

constitui uma situação jurídica objetiva, impessoal, geral, modificável pela lei em qualquer momento;
mas, divergem quanto ao fundamento dessa tese. Segundo Jéze, é porque o crédito do prejudicado
pelo ato ilícito nasce, somente ao se propor a ação em juízo (!); e, segundo Duguit, é porque
somente nasce com a condenação, como se a sentença fosse constitutiva, como em matéria penal,
e não apenas declaratória (Roubier.) Dispensam comentários estas excentricidades jurídicas,
explicáveis talvez porque aos autores é mais familiar o direito público do que o direito privado.

22. Bonnecase, considerando assás estreita a noção de direito adquirido, formulou para substituí-la,
outra teoria de situação jurídica.

Situação jurídica, diz ele, é a maneira de ser de cada um em face da regra de direito ou de uma
instituição jurídica. Digamos mais simplesmente: é a situação da pessoa em face da lei.

Esta situação jurídica pode ser abstrata ou concreta, conforme tenha ocorrido ou não, em relação à
pessoa, o fato jurígeno que determina a aplicação do preceito jurídico. Ou seja em outros termos: à
existência da lei corresponde, em relação a cada pessoa, a que ela se aplique, a situação jurídica
abstrata; uma vez ocorrido um fato regulado pela lei, aparece, em relação à pessoa interessada, a
situação jurídica concreta. Por exemplo, é uma situação jurídica abstrata a do sucessível antes da
morte do sucedendo, bem como a situação do menor antes de atingir a idade de vinte e um anos.
Verificada a morte do sucedendo, a situação jurídica abstrata do sucessível, transforma-se em
situação jurídica concreta. O mesmo ocorre quanto ao menor que se tornou maior por haver
alcançado a idade legal. Êstes dois exemplos, dados pelo autor, ilustram bem a sua doutrina a
mostram que a “situação jurídica concreta é uma situação constituída em conformidade com a lei.

Aplicando sua doutrina à situação jurídica concreta criada pelo casamento, Bonnecase conclui, com
dialética cega e desnorteada, que, se os cônjuges se casaram na vigência de uma lei que vedava o
divórcio, ser-lhes-ia inaplicável uma lei posterior que o admitisse38 .

Tal é o caso da lei francesa de 19 de Julho de 1884, que restabeleceu, em França, o divórcio,
abolido em 1816. Pela mesma razão a lei francesa de 16 de Novembro de 1912, que permitiu aos
filhos naturais a investigação de paternidade, não se aplicaria aos que nasceram anteriormente. A
doutrina de Bonnecase conduz a essa conclusão forçada porque o pai do filho natural, embora não
tivesse direito adquirido antes daquela lei, tinha entretanto uma situação Jurídica que ela não deve
prejudicar. Bonnecase reconhece que a sua teoria não prevaleceu contra a noção do direito
adquirido39 .

Roubier admite que a doutrina progrediu com a substituição da noção subjetiva de direito adquirido
pela noção objetiva de situação jurídica, expressão a que ele deu as suas preferências por ser a
mais vasta de todas40 .

Ele distingue, na situação jurídica, duas fases: a fase dinâmica, que corresponde ao momento de
constituição ou de extinção, e a fase estática, que corresponde ao momento em que a situação
produz seus efeitos. A lei nova não atinge, salvo disposição em contrário, as situações já
constituídas ou extintas (fase dinâmica), que correspondem às situações concretas de Bonnecase,
sem as deduções forçadas deste último. Quanto às situações jurídicas em via de constituição (fase
estática), cumpre separar os efeitos anteriores dos posteriores à lei nova. Esta não governa os
primeiros, mas governa em geral os segundos, sem que haja retroatividade, mas apenas aplicação
imediata da lei.

Sucede às vezes que a fase dinâmica, isto é, a constituição ou extinção de uma situação jurídica,
não se consuma em um só momento, mas leva tempo para se realizar: a situação jurídica
constitui-se por partes, podendo acontecer que esteja em curso quando sobrevem uma lei diferente
da anterior.

Aplica-se a lei superveniente e, em caso afirmativo, em que medida se aplica? Aqui faz Roubier outra
distinção entre os elementos da situação jurídica; uns que têm valor próprio e outros que não o têm,
devendo a lei nova respeitar os primeiros. Suponha-se uma sucessão testamentária; a situação dela
decorrente constitui-se pela reunião de dois elementos: – o testamento e a morte do testador. Esses
dois elementos têm cada um valor próprio porque um independe do outro. Se, antes de falecer o
testador, sobrevêm uma lei modificando as formalidades testamentárias, essa lei não afeta a
validade do testamento feito segundo as formas estabelecidas na lei do tempo, porque se trata de
Página 11
Limite temporal da lei

elemento com valor próprio41 .

Em resumo, segundo a doutrina de Roubier, a lei nova deve respeitar: – a) as situações jurídicas
constituídas ou extintas: e b) os elementos destas situações, com valor próprio, existentes antes
dela.

24. A nova lei de Introdução ao Código Civil (LGL\2002\400) seguiu até certo ponto a doutrina de
Roubier, de quem se divorcia quando estabelece como limite à ação da lei no tempo a situação
jurídica definitivamente constituída, expressão de certo empregada propositalmente para acentuar,
com particular energia, que a lei não respeita os elementos anteriores, com valor próprio, das
situações jurídicas em via de constituição.

Disto resulta que, em contrário à doutrina de Roubier (neste ponto coincidente na prática, salvo um
ou outro dissentimento, com a dos direitos adquiridos)42 , o testamento feito conforme à lei antiga
mais desconforme, à lei nova precedente à morte do testador não está imune às inovações desta
última, porque a constituição jurídica do herdeiro testamentário ou legatário não está definitivamente
constituída.

A nova Lei de Introdução também não protege o direito condicional contra a lei que entra em vigor
antes de verificada a condição, e não protege porque antes disso a situação jurídica do titular desse
direito não está definitivamente constituída. A doutrina de Bonnecase também não ampara o direito
condicional, na conjuntura figurada, porque, enquanto não se realiza a condição, existe apenas uma
situação jurídica abstrata, ou seja porque a situação jurídica concreta não se constituiu43

. A teoria dos direitos adquiridos resolve a questão, invocando, com apoio num texto atribuído a
Gaio, o efeito retroativo da condição: – “cum semel condicio existit perinde habetur ac si in illo
tempore quo estipulatio interposita est, sine condicione facta esset” (D. 20, 4, 11, 1.) Roubier explica
por outro modo a inaplicação da lei nova ao direito condicional, quando a condição se verifica após o
advento dessa lei44 ; mas sua explicação coincide nos efeitos práticos com a teoria da retroatividade
da condição, teoria essa que, se não era a do direito romano, foi tida como tal indisputadamente até
a impugnação de Windscheid no meado do século passado e, sem embargo dela, tem sido seguida
por inúmeros civilistas.

Nestas questões, portanto, a doutrina formulada pela nova Lei de Introdução distancia-se tanto da
doutrina de Roubier como da dos direitos adquiridos. Isso já é uma razão para não se dizer que essa
fórmula não fez mais do que adotar sob vestes diferentes a fórmula do direito adquirido. Mas há uma
razão fundamental que exclui a coincidência dessas duas fórmulas: – é que a do direito adquirido se
coloca no terreno dos direitos subjetivos, ao passo que a das situações jurídicas definitivamente
constituídas se coloca no terreno objetivo da realização destas situações em todas as suas partes,
embora possa não haver direito adquirido. Imagine-se uma lei que altere a ordem de delação da
tutela legal. Segundo a teoria dos direitos adquiridos, o tutor cuja nomeação está de acordo com a lei
antiga, mas em desacordo com a lei nova, deve ser removido, porque ninguém tem direito adquirido
a ser tutor. Entretanto, segundo a teoria das situações jurídicas já constituídas, o tutor deve ser
mantido, porque se acha em uma destas situações45 .

As duas fórmulas – direitos adquiridos e situações jurídicas definitivamente constituídas, não são,
pois coextensivas e equipotentes; e a primeira se me afigura mais garantidora dos direitos individuais
do que a segunda, muito rígida e restritiva.

Embora haja alguns casos de solução controversa, a doutrina tem traçado com suficiente nitidez o
quadro geral dos direitos adquiridos. É certo que esta expressão é lògicamente, defeituosa; mas
certo é também que é insubstituível. Além de que outros termos jurídicos (ex: direito social) também
são defeituosos, e, apesar disso, são correntes na doutrina e na boa técnica.

Mas não há necessidade, para a proteção dos direitos adquiridos, que a constituição estabeleça,
como o fazia, imitando a antiga Lei de Introdução, à Constituição de 1934, seguida pelo projeto do
Instituto dos Advogados e pela subcomissão da Constituição: – “A lei não prejudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.” O ato jurídico perfeito e a coisa julgada são
modalidades do direito adquirido; não há pois, necessidade de destacá-las para que sejam
protegidas. Uma constituição, disse Ruy Barbosa, é um feixe de teses e não desce a pormenores.

25. Cumpre agora examinar se será conveniente incluir na constituição um dispositivo garantindo os
Página 12
Limite temporal da lei

direitos adquiridos. Envolvendo estes direitos a propriedade, não será isso uma proteção excessiva e
estorvante, contrariando as tendências da época?

Visivelmente estamos liquidando um ciclo de civilização em que, para empregar uma imagem de
Byron, os destinos humanos mudam de corsel. Não se pode negar que a noção clássica da
propriedade está sendo abalada e minada em seus fundamentos pelas doutrinas socialistas, a
exigirem, pelo menos, uma distribuição mais equitativa da riqueza. Os moldes em que se acha
organizado o Estado, ainda assente no conceito quiritário da propriedade, não satisfazem os anceios
de renovação social. O século atual, já se disse, será o século do socialismo. As tendências no
sentido da socialização acentuam-se progressivamente.

Em 1888, quando já se divisavam os albores da abolição, o iluminado apóstolo da democracia que


foi Ruy Barbosa, propugnava, entre os seus planos de reforma, a desenfeudação da propriedade.

Um eminente jurista e sociólogo brasileiro – Euzebio de Queiroz, que examinou o assunto sem
preconceito de escola ou de seita, com aquela ponderação e medida tão caracteríscas do seu
espírito de escol – pôs em relevo, na “Sociologia Jurídica”, que a evolução do direito de propriedade
se orienta, no sentido da socialização do capital, permanecendo apenas a propriedade particular
para os objetos de consumo.

Recentemente, o Professor San Tiago Dantas, num discurso primoroso, também acentuou que o
sentido geral da reforma, para a qual avança a sociedade na hora presente, visará deslocar da
propriedade privada para o trabalho o centro de gravidade do sistema, jurídico.

O trabalho – a força que cria o capital – reclama os seus direitos. Há mais de oitenta anos, Lincoln, o
estadista modelar em que se encarnava o gênio político norte-americano, escrevia, em mensagem
ao Congresso de sua pátria, estas palavras memoráveis, invocadas na luminosa conferência de Ruy
Barbosa, proferida no Teatro Lírico, em 1919:

“O trabalho precede ao capital e deste não depende. O capital não é senão o fruto do trabalho e não
chegaria nunca a existir, se primeiro não existisse o trabalho. O trabalho é, pois, superior ao capital e
merece consideração muito mais elevada.”

Reconhecendo a primazia incontestável do trabalho sobre o capital e a riqueza, Ruy Barbosa


declarou-se pela democracia social. Mas acrescentou logo que a sua democracia social é a que
assenta a felicidade da classe operária, não na ruína das outras classes, mas na reparação dos
agravos que ela até agora tem curtido.

O que lhe mereceu aplausos no socialismo, foi, nas suas próprias palavras, o que ele tem de são, de
benévolo, de confraternal, de pacificador, e não o socialismo devastador, que, na linguagem
expressiva do Cardeal Mercier, anima o que é menos nobre no coração do homem, rebaixa a
questão social a uma luta de apetites e intenta dar-lhe por solução o que não poderá deixar de
exacerbá-la: o antagonismo das classes. Tem razão o socialismo, dizia ainda Ruy Barbosa, nos seus
propósitos de distribuir mais equitativamente a riqueza, obstando à concentração de somas enormes
nas mãos de poucos e à exploração das classes trabalhadoras pela ganância dos opulentos.

26. Mas é preciso que as reformas sociais não colidam com a Constituição. Não será fora de
propósito referir o que ocorreu na America do Norte. As leis protetoras do trabalho foram acoimadas,
em arestos norte-americanos, de restringir o direito de contratar, incluído no de liberdade e de
propriedade; e, como as constituições federal e estaduais garantem esses direitos, foram declaradas
inconstitucionais, na pátria de Washington, várias leis estaduais que visavam proteger a classe
operária: uma que restringia as horas de trabalho das mulheres (Ilinois); outra que lhes vedava o
trabalho noturno; outra que cerceava o trabalho em domicílio (Nova York); outra que estabelecia o
dia de oito horas de trabalho nas minas e fundições (Colorado) e ainda outra que obrigava os
proprietários de minas a ter, no topo de suas galerias, banheiros para os mineiros (Ilinois). A lei
federal, calcada nos princípios modernos, sobre a responsabilidade dos empregadores nos acidentes
do trabalho (“Employer’s Liability Act”) também foi julgada inconstitucional, assim como a que
estabeleceu o arbitramento obrigatório entre operários e patrões. Em suma, segundo a Repartição
do Trabalho no seu boletim de Novembro de 1910, citado na referida conferência, os tribunais
norte-americanos anularam por inconstitucionais nada menos de cento e cinqüenta leis e
regulamentos sobre contratos de trabalho, regime operário, situação das mulheres e crianças, horas
Página 13
Limite temporal da lei

de serviço, importância e pagamento de salários e outras medidas de proteção aos trabalhadores.

Resistiu, entretanto, à arguição de inconstitucionalidade uma lei do Estado de Utah que reduziu a
oito as horas de trabalho para os mineiros e fundidores. Mas isso sucedeu porque na constituição
desse Estado existe uma disposição especial dando ao poder legislativo a atribuição de providenciar
sobre a saúde e segurança dos operários nas fábricas, fundições e minas. A constituição do Estado
de Nova York foi reformada de modo a poder a sua legislatura regular as horas e condições de
trabalho. Para evitar que continuassem a ser anuladas as leis restritivas dos direitos individuais nas
relações do capital com o trabalho, a Comissão Industrial dos Estados Unidos recomendou a todos
os Estados a conveniência de incluírem em seus códigos políticos o texto da constituição de Utah.

É certo que várias leis norte-americanas, abrigando os operários dos excessos do trabalho e da
usura na sua remuneração, têm sido mantidas como constitucionais, mas isso, assinalava Ruy
Barbosa em 1919, por serem consideradas cabíveis no poder de polícia reservado aos Estados tanto
na América do Norte como no Brasil46

. Outras vezes é uma emergência difícil que dá a lei caráter constitucional. Tal, foi o caso de uma lei
federal promulgada em 1916 (“Adamson Act”), ante a ameaça de greve de todos os empregados
ferroviários estadunidenses. Essa lei proibiu diminuir, dentro de certo período após a sua entrada em
vigor, os salários, dos empregados no comércio interestadual e estrangeiro e estabeleceu para esses
empregados o dia de oito horas de trabalho. A Corte Suprema, em 1917, considerou constitucional
essa lei, sob o fundamento de que foi uma medida adequada para enfrentar uma situação difícil, na
vida do país47 .

Todavia, em 1923, no caso Adkins, a Corte Suprema condenou por vício de inconstitucionalidade
outra lei federal que autorizou uma comissão a fixar salário mínimo para as mulher empregadas no
Distrito de Columbia, tomando-se por base “qual o salário necessário para mantê-las em boa saúde
e dar-lhes proteção moral.” Esse julgado desqualificou e desautorou a legislação de dezesseis
Estados que fixavam salário mínimo para as mulheres.

27. Mais tarde a Corte Suprema golpeou profundamente, por incompatível com a Constituição, a
legislação social promulgada pela Presidente Roosevelt e conhecida pelo nome de “New Deal.”

Ao assumir a presidência da grande República, em 4 de Março de 1933, Roosevelt defrontou uma


crise tremenda: nos três últimos anos anteriores a 1933 verificaram-se 5.000 falências bancárias, o
número de desempregados aumentara de três milhões para treze milhões e meio, a produção
industrial caíra de 47 por cento, o valor da produção agrícola e pecuária, de 71 por cento e a receita
nacional, de 56 por cento. Nos primeiros dois meses de 1933 a depressão chegou ao auge: as
falências bancárias multiplicaram-se, a confiança pública entrou em colapso, deu-se a corrida, em
escala sem precedente, aos depósitos bancários e em Fevereiro de 1933 começou em todo o pais
uma campanha intensa para salvar os bancos por meio da moratória e drásticas restrições aos
direitos dos depositantes.

No seu discurso de posse – simples e retilínio – o grande Presidente, glória da humanidade, disse
que nada havia a temer senão o próprio temor (“nothing to fear but fear); prometeu expulsar os
vendilhões do templo e intrèpidamente enfrentou a situação. Logo depois decretou um feriado
bancário (“Bank Holiday”) e convocou uma sessão especial do Congresso. Os Cem Dias desta
sessão especial tornaram-se notáveis pelas providências tomadas, entre as quais se destaca a Lei
de Restauração da Indústria Nacional (“National Industry Recovery Act.”). Ao sancioná-la Roosevelt
declarou que a história a registraria como a lei mais importante e de maior alcance jamais votada
pelo Congresso norte-americano.

Esta lei autorizou o Presidente da República a aprovar e pôr em vigor códigos para qualquer
indústria ou comércio cujo exercício exigisse regulamentação ou em que se verificassem abusos
prejudiciais ao interesse público. Cada um desses códigos devia, entre outras condições, estabelecer
o máximo de horas de trabalho, salário mínimo e outras providências que o Presidente aprovasse ou
determinasse. Roosevelt incumbiu a elaboração desses Códigos ao General Hugh S. Johnson,
homem de grande capacidade de trabalho, que, em vez de limitar-se às indústrias básicas,
regulamentou a atividade comercial e industrial em todos os ramos. Em 1935, por volta de Abril,
tinham sido postos em vigor de 500 a 600 códigos sobre os mais variados assuntos, desde os
negócios bancários à fabricação de vassouras; mas antes de decorridos dois anos, caíram como um
Página 14
Limite temporal da lei

castelo de cartas, fulminados pela Corte Suprema (27 Maio 1935), que unânimemente os considerou
inconstitucionais, já porque regulavam o comércio intra-estadual, o que escapa à autoridade do
Congresso.

Assim acabaram os códigos baseados na Lei de Restauração da Indústria Nacional. A mesma sorte
tiveram outras partem do “New Deal,” como a Lei de Reajustamento Agrícola (“Agriculture
Adjustment Act”), cujo objetivo principal era aumentar a capacidade aquisitiva dos fazendeiros
elevando o preço de certos produtos básicos (trigo, milho, algodão, leite e derivados etc.) Essa lei,
que vigorou durante quase três anos, foi condenada por inconstitucional pela Corte Suprema, em
Janeiro de 1936, por uma maioria de seis contra três. Igual maioria abateu a chamada Lei Guffey
promulgada depois de ter sido considerada inconstitucional a Lei de Restauração da Indústria
Nacional e que tinha em mira substituí-la no tocante à indústria que mais precisava de
regulamentação, a exploração de carvão betuminoso.

28. A atitude da Corte Suprema em face do “New Deal” reviveu e acirrou a antiga controvérsia sobre
a extensão dos seus poderes constitucionais. Aos que apoiavam a política econômica do maior
estadista norte-americano, parecia absurdo que às vezes por maioria de um voto pudesse a Corte
Suprema anular por inconstitucional um ato do Congresso e do Presidente. Para deslocar a maioria
antigovernamental foi apresentado ao Senado, por sugestão de Roosevelt, um projeto (“Ashurst bill”)
autorizando o Presidente da República a aumentar até quinze o número de juízes da Corte Suprema,
se os membros dela com dez anos de serviço e maiores de sessenta anos (seis já haviam atingido
essa idade), não pedissem aposentadoria dentro de seis meses. Esse projeto engenhoso provocou
vivíssima oposição e, sendo enviado à Comissão Judiciária do Senado, onde era grande a maioria
dos democratas (partido do Presidente), foi repelido por sete democratas e três republicanos.

29. Mas nessa época (1937) a maioria da Corte Suprema mudou de orientação quanto à legislação
social. No caso “West Coat Hotel Company v. Parrish” questionou-se a constitucionalidade de uma
lei em vigor, no Estado de Nova York, há vinte e quatro amos, lei essa que considera ilegal empregar
mulheres e menores em condições prejudiciais à saúde e à moral, e constituiu-se uma comissão
autorizada a fixar-lhe o padrão de salários. A Corte Suprema não só considerou constitucional essa
lei, mas revogou expressamente a doutrina do caso Adkins, dada a superveniência de condições
econômicas diferentes.

Especialmente quanto ao “New Deal”, revelou-se essa nova orientação da Corte Suprema no
julgamento da lei concernente às condições do trabalho nacional (“National Labour Relations Act”.)
Esta lei, entre outras disposições, reconhece aos empregados o direito de organizar sindicatos e
fazer parte deles, bem como de contratar mediante representantes da sua escolha; e considera ato
ilícito (“unfair labour practice”) a interferência do empregador no direito, assistente ao empregado, de
sindicalizar-se, assim como a imposição de “yellow dog coptract”, que era um contrato em que o
empregado se obrigava a não fazer parte de sindicato. A constitucionalidade dessa lei foi
reconhecida pela Corte Suprema em cinco casos julgados no mesmo dia (12 de Abril de 1937.)
Outra lei federal importante, que, como a precedente, também, fazia parte do sistema do “New Deal”
e igualmente foi mantida pela Corte Suprema: a lei de assistência social (“Federal Social Security
Act”), que estabelecia pensões para empregados idosos e o seguro de desemprego, mediante taxas
especiais pagáveis por empregados e empregadores48 . Em resumo, no ano de 1938 quando, em
virtude da aposentadoria de um dos seus membros, tomou assento na Corte Suprema outro juiz
simpatizante com a política do Presidente, entre cento e quatorze casos em que se controverteu
essa política, ele venceu em noventa e dois.

30. Essas questões, na parte relativa às leis de proteção ao trabalho, poderiam surgir entre nós
(como surgiram na America do Norte), na vigência da constituição de 1891. A Constituição de 1934,
nisto seguida pela carta de 1937, deu amplas garantias ao trabalho e essas garantias certamente
incorporar-se-ão ao novo código constitucional.

Ao lado desta questão há, porém, outra questão importantíssima e vem a ser que a Constituição não
deve entravar o movimento no sentido da socialização dos meios de produção.

Têm a maior atualidade estas palavras de Ruy Barbosa:

“As nossas constituições têm ainda por normas as declarações dos direitos consagrados no século
dezoito. Suas fórmulas já não correspondem exatamente à consciência jurídica do universo. A
Página 15
Limite temporal da lei

inflexibilidade individualista dessas cartas imortais, mas não imutáveis, alguma coisa tem de ceder
(quando lhes passa já pelo quadrante o sol do seu terceiro século) ao sopro da socialização que
agita o mundo.”

Será que a garantia dos direitos adquiridos poderá estorvar esse movimento a bem do trabalho e da
socialização?

Em primeiro lugar, os direitos adquiridos tanto podem ser dos proprietários como dos trabalhadores;
e, se há direitos adquiridos de ordem patrimonial, também os há sem conteúdo econômico e devem
ser plenamente garantidos.

Depois, é de imprescindível necessidade, na hora presente da evolução social, um dispositivo


constitucional que regule o direito de propriedade por forma diferente da preferida pelo projeto
Sampaio Doria, pelo do Instituto dos Advogados e pelo da subcomissão da Constituinte.

31. O projeto Sampaio Doria (art. 86, § 18) seguiu a constituição de 1891 (art. 72, § 17), que,
reproduzindo, salvo diferença de redação, o dispositivo da constituição imperial de 1824, mantém,
em toda a plenitude, o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade
pública, mediante indenização prévia.

O projeto do Instituto dos Advogados dispõe no art. 108, § 30:

“É garantido O direito de propriedade; não poderá, todavia, ser exercido de forma contrária ao
interesse social ou coletivo fixado em lei.”

Esse dispositivo reproduz, em linguagem mais límpida, idêntico preceito da Constituição de 1934
(art. 177, § 17):

“É garantido o direito de propriedade, que não pode ser exercido contra o interesse social, na forma
que a lei determinar.”

Reflete-se nesse texto, segundo Clovis Bevilaqua, a orientação socialista, porém de modo vago e
impreciso49

. Entretanto Pontes de Miranda lhe atribui muito maior alcance, pois sustenta que aí se garantiu
apenas a instituição da propriedade, de modo que bastaria existir uma parcela de patrimonialidade
para se respeitar essa disposição constitucional50 .

Para se chegar a essa conclusão, foi preciso ler do seguinte modo o dispositivo:

“É garantido o direito de propriedade na forma que a lei determinar e não pode ser exercido contra o
interesse social.”

A ser assim, a restritiva na forma que a lei determinar prende-se à incidente intermédia e não à
oração principal. Mas isso transtorna a estrutura da frase e disvirtua-lhe o sentido, aliás bem claro na
redação final, antes da emendada e convertido na forma que prevaleceu:

“É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido, na forma que a lei determinar,
contra o interesse social coletivo.”51 .

A restritiva não modifica o direito de propriedade mas o exercício desse direito: o que à lei cumpre
determinar não é o que seja o direito de propriedade mas o modo do seu exercício. Se o dispositivo
constitucional houvesse garantido o direito de propriedade na forma que a lei determinasse, isso
importaria em outorgar a esta o poder de modelar a propriedade existente, fixando-lhe o conteúdo e
os limites. Entre determinar a forma do direito de propriedade e regular-lhe o exercício vai grande
diferença. Um exemplo porá em relevo essa diferença. Antes de abolida a constituição de 1934, as
minas e jazidas pertenciam ao proprietário do solo; uma lei ordinária não poderia nacionalizá-las,
porque isso já não seria regular o exercício da propriedade mas destruir-lhe o conteúdo. Outro
exemplo. Suponha-se uma lei que limite os latifúndios, estatuindo que ninguém pode ter mais de
tantos hectares de terra. Como isto não é limitar o exercício, mas o conteúdo da propriedade, tal lei
seria inconstitucional perante o art. 117, § 17, da Constituição de 1934, mas não o seria, se esse
dispositivo garantisse o direito de propriedade na forma determinada em lei.

Página 16
Limite temporal da lei

32. Se prevalecesse a interpretação contrária, então teria a constituinte de 1934 adotado, em


substância, neste particular o dispositivo, lapidar do anteprojeto elaborado pela chamada comissão
do Itamaraty:

“Art. 114. E’ garantido o direito de propriedade com o conteúdo e limites que a lei determinar.

“§ 1o. A propriedade tem, antes de tudo, uma função social e não poderá ser exercida contra o
interesse coletivo.”

Embora garantindo o direito de propriedade, o anteprojeto autorizava o legislador ordinário a


definir-lhe o conteúdo e a traçar-lhe os limites. Ficaria assim dependendo desse conteúdo e desses
limites o direito subjetivo do proprietário. Era, em suma, a garantia da existência da instituição.

Esses dispositivos inspiraram-se na constituição alemã de Weimar (1919), cujo art. 153 também
garantia a propriedade, map dizia que o conteúdo e limites resultam da lei (“sein inhalt und seine
Schranken ergeben sich aus den Gesetzen.”) Essa constituição ainda dispunha, numa síntese
poderosa, que a propriedade gera deveres (“Eigentum verplichtet.”) E explicava: o seu uso deve
servir ao bem comum. Isso responde à definição de Duguit: a propriedade não é mais o direito
subjetivo do proprietário; é a função do detentor da riqueza52 . Aliás, muito antes Comte havia
divisado na propriedade uma função social indispensável e neste sentido depõem sociólogos e
juristas modernos.

Dessas fontes lustrais emana o dispositivo do anteprojeto concernente à função social da


propriedade e a barreira ao seu exercício contra o interesse coletivo. Por outro lado esse dispositivo
seria auto-executável (“self executing”), independente, portanto, de regulamentação por lei ordinária
para ser aplicado. Seria uma diretriz obrigatória imposta ao legislador no elaborar a lei e ao juiz no
aplicá-la.

33. O projeto (parcial) da subcomissão incumbida, na constituinte atual, da parte relativa aos direitos
e garantias individuais dispõe no art. 9.º, § 21:

“O direito de propriedade mantem-se em toda a plenitude, salvo a desapropriação por necessidade


ou utilidade pública, mediante prévia e justa indenização, vedado o seu exercício contra o interesse
social.”

Esta fórmula é ao mesmo tempo menos progressista e mais progressista do que a da constituição de
1934. É um recuo e um avanço ao mesmo tempo. E’ um recuo porque ressuscita a garantia da
propriedade em toda a plenitude, segundo a fórmula quiritária da constituição de 1824 (há mais de
cento e vinte anos!), reproduzida na de 1891. É um avanço, porque firma, independentemente de lei
o princípio salutar de que é vedado o exercício da propriedade contra o interesse social.

Aliás, não colide esse principio com o da plenitude do direito dominical? Como há de ser pleno esse
direito, se ele tem de ser coartado e cerceado aqui e ali quando entrar em conflito com o interesse
social? A plenitude da propriedade é uma noção-fossilizada, pertencente ao museu da história
jurídica, e está empanando com a sua sombra a limpidez do dispositivo. Não quer isso dizer que,
sem esse fóssil me pareça impecável o dispositivo discutido; quer apenas dizer que, a ter de
prevalecer, deve ser saneado e arejado…

Os dois projetos por último considerados estão aquém das exigencias da hora presente e marcam
visível retrocesso em relação ao direito atual, em matéria de propriedade, definido na carta de 1937.

Uma das coisas boas dessa carta é precisamente o seu art. 122, § 14, inspirado no ante projeto da
constituição de 1934. Esse dispositivo garante o direito de propriedade, salvo a desapropriação por
necessidade, ou utilidade pública; mas acrescenta que o seu conteúdo e os seus limites serão
definidos nas leis que lhe regularem o exercício. Só lhe faltou uma coisa, salientada no ante projeto:
foi acentuar a função social da propriedade e a interdição do seu exercício contra o interesse
coletivo.

Supriria essa omissão uma fórmula como a seguinte ou outra melhor:

“A propriedade tem uma função social, não poderá ser exercida contra o interesse coletivo e será
garantida com o conteúdo e limites fixados em lei.”
Página 17
Limite temporal da lei

34. Mas o termo propriedade não significa apenas domínio (direito às coisas corpóreas), mas
também conjunto de direitos patrimoniais, isto é, dos direitos que têm expressão econômica53 .

Tal é a acepção da palavra propriedade nos textos citados das constituições de 1824, de 1891 e de
1934, bem como da carta de 1937.

Ora, sendo também patrimoniais, em grande parte, os direitos adquiridos, não colidiria a sua
proteção constitucional com o dispositivo que garantisse, na forma acima sugerida, o direito de
propriedade?

É bem de ver que o direito adquirido patrimonial, enquanto expressão da propriedade, ficaria sujeito
às restrições desta, permitidas pela constituição; mas, por outro lado, a garantia constitucional
obstaria à retroação da lei ordinária para confiscar direitos incorporados ao patrimônio individual,
como sucedeu no célebre caso Deleuze cujos herdeiros se viram, por um golpe ditatorial, privados
de bens cujo domínio e posse já lhe haviam sido transmitidos desde a abertura da sucessão (Cód.
Civ. 1.572.) Por causa da enorme fortuna de Deleuze, que aguçou o apetite do poder público, quanta
gente ficou espoliada por esse imenso Brasil! Entretanto, se houvesse um texto constitucional
vedando leis ofensivas ao direito adquirido, essa espoliação não seria possível.

Durante o regime ditatorial várias leis desse tipo foram promulgadas trancando até a instância de
causas julgadas pelo Supremo Tribunal por exemplo o decreto-lei n. 1.564, de 5 de Setembro de
1937, que cassou decisões desse e de outros tribunais, declarando inconstitucional o imposto de
renda sobre vencimentos pagos pelos cofres estaduais ou municipais. Outro caso célebre foi a
chamada lei constitucional n. 8, rotulada de interpretativa, a qual obstou a que o Supremo Tribunal
continuasse a pronunciar-se sobre matéria sujeita à sua decisão e dependente do voto de
desempate do seu Presidente. Tratava-se de saber se os juízes postos em disponibilidade ou
aposentados por força da carta de 1937 perceberiam vencimentos integrais ou proporcionais ao
tempo de serviço. O Supremo Tribunal dividira-se, metade votando num sentido e metade noutro.
Cumpria ao seu Presidente desempatar, tendo ele pedido vista dos autos para na sessão seguinte
proferir o seu voto, aliás já previsto através de outras causas. Eis senão quando cai como um raio a
referida lei constitucional n. 8, impondo a interpretação restritiva que proporcionava ao tempo de
serviço os vencimentos dos juízes atingidos pela disponibilidade, ou pela aposentadoria, o que
redundou em certos casos num salário de fome.

Estas e outras leis retroativas são escarmento e adminitório bastante expressivos.

1 “In Verrem”, II, 1 (“de proetura urbana”), 42.

2 Vide Gabba, “ Retroattività”, II, pág, 296-297.

3 Ulpiano, D., 38, 17 “ad sc., Tert. et Orf.”, 1, 12 e Paulo, D., 50, 16, “de verb, signif.”, 229.

4 C. Th., 1, 1, “de const.”, 3.

5 C.l, 4, “de legibus”, 7.

6 “Const. Tanta”. § 23 e C. 1, 17, “de iure veteri”, 2, § 23.

7 “Decretales Greg.,” 1, 2, “de const.” 2.

8 “Eod.” 13.

9 “Decretum Grat.” II, “causa” XIV, “qu.” 3, c. 1.

10 “Eod.” qu. 4, c. 10.

11 Vide Walter, “Dir. Ecl.”, § 345, t.

Página 18
Limite temporal da lei

12 “Decretales Alex” III, tit. IX “de usurariis.”

13 “Decretales Grég.” c. 5, 19, “de usuris”, 5.

14 Roubier, “Conflits des Lois”, I, pág. 95.

15 “Das intertemporale Recht”, I, pág. 573.

16 Schottlaender, “Nulla poena sine lege”, pág. 1-2 e Schem, “Die Analogie im Strafrecht”, pág. 52.

17 “Decretan Grat.”, “causa” 32, “qu.” 4, c. 3.

18 Willoughby, “Const.”, § 400.

19 “Opera Omnia”, I, 5, 5.

20 “Une theorie nouvelle sur la retroactivité des lois”, “apud” Bonne- case, “Supplément au Traité de
Droit Civil”, de Baudry-Lacantinerie, vol II, págs. 141-145.

21 “Droit Civil”, I, ns. 243 e 257.

22 Bonnecase, ob. cit., ns. 21,-23, 206, 207, 208, 212 e 214.

23 Roubier, “Conflits”, I, pág. 375.

24 Ob. cit., I pág. 545.

25 “Der Besitzwille”, pág. 337.

26 “Amnistia Inversa”, pág. 98.

27 Affolter, “Das Intertemporale Recht”, I, pág. 264 e 573, I.

28 Ob. cit., I, pág. 174 e segs.

29 Ob. cit., I, pág. 289 e segs.

30 “De jure belli et pacis”, II, 14, § 8.

31 Vj. Affolter, ob. cit., I, pág. 574 e 575, 1.

32 “Conflits des Lois”, I, pág. 446 e 322.

33 “Retroattività”, I, pág. 191.

34 Jornal do Comercio”, de 28 de Fevereiro de 1.909.

35 Gabba, ob. cit., I, pág. 143; II, págs. 18, 21, 37 e 38.

36 “Droit Const.”, II, § 21.

37 “Droit Administrate”, págs. 9-11.

38 “Supplement au Traité”, de Baudry-Laeantinerie, II, pág. 263.

39 Ob. cit., págs. 244-245 e 263.

40 “Conflits”, I, pág. 378.

41 Ob. cit., págs. 379, 385 e 386.


Página 19
Limite temporal da lei

42 Gabba, ob. cit., III, pág. 284 e seg. e Roubier, ob. cit., II, págs. 403-404.

43 “Supplément”, cit., pág. 266, 1.

44 Ob. cit., II, pág. 45.

45 Ob. cit., I, pág. 417 e II, pág. 310.

46 “Campanha Presidencial”, págs. 152-154.

47 Maurice Amos, “Lectures on the Constitution”, 1938, págs. 65-66.

48 Ob. cit., págs. 117 e 123-124.

49 Lafayette, “Coisas”, § 35, III.

50 Comentários à Constituição de 1934, II, págs. 184-185, e de 1937, III, pág. 500.

51 Levi Carneiro, “Pela Nova Constituição”, págs. 741 e 781.

52 “Les Transformations Genérales du Droit Privé”, pág. 158.

53 Lafayette, “Coisas”, § 22, 1.

Página 20

Você também pode gostar