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Alteridade, Direito Positivo e Direitos Da Personalidade Caminhos e Desafios Ético-Legislativos (In) Superáveis
Alteridade, Direito Positivo e Direitos Da Personalidade Caminhos e Desafios Ético-Legislativos (In) Superáveis
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1 Introdução
sua análise estrutural terá por escopo explorar os limites legislativos positivos da
incorporação da alteridade como um direito da personalidade.
Como o sacrifício de Cristo seria de valor infinito, nenhum outro sacrifício deveria
ser exigido. Todavia, a humanidade utiliza o sacrifício de Cristo para punir os que
continuam fazendo sacrifícios, sujeitando-os a sacrifícios finitos que substituem o
sacrifício infinito.
Inicialmente, o Império perseguiu os cristãos, depois incorporou a religião como
ideologia imperial que legitimou o próprio Império. Assim, passou a lutar contra
todos que se oponham à sua ideologia e ao seu poder, pois seus inimigos seriam
os crucificadores de Cristo. Na Idade Média, os sacrifícios humanos eram realizados
para não serem feitos mais sacrifícios humanos. Matava-se para não permitir mais
sacrifícios, mesmo que as fogueiras se elevassem à frente de catedrais sob o canto
de Te Deum. Mesmo com tais rituais na Idade Média as pessoas não questionavam
se estavam fazendo sacrifícios humanos, assim como no Império Romano
(Hinkelammert, 1995, p. 18-21). O Império cristão na Idade Média se expandiu com
a crucifixão de crucificadores (cruzadas).
A partir do século XVI, a lógica tomou a forma burguesa que vive e interpreta
Deus como a lei do mercado, e o mercado como uma lei natural, já que assumiu
a bandeira de Cristo secularizada. No lugar de Lúcifer, apareceu o caos e é a lei
do mercado, uma lei natural, que luta contra este caos. Torna-se déspota quem
vai contra as leis do mercado, um crucificador que precisa ser sacrificado para
não sacrificar mais. Nenhuma liberdade para os que são contra a liberdade. Esta
percepção é destacada na seguinte passagem de John Locke (2005):
de Cristo da Idade Média ocorreu por meio da lei de mercado. Dessa forma, a lei
do mercado da sociedade burguesa, uma sociedade sem sacrifícios, emergiu como
nova forma de sacrifício dos que se opunham à referida lei, visando à legitimação
da sociedade burguesa e o progresso como meio de superação do despotismo.
O círculo sacrificial da forma burguesa operou com o sacrifício de todos os
despotismos da história, como a própria negação das sociedades burguesas, sendo
o sacrifício não cometido pela própria sociedade burguesa, mas pelos que optaram
pelo despotismo (Hinkelammert, 1995, p. 33-34). Consequentemente, hoje, se a
sociedade burguesa efetua uma crítica de violações dos direitos humanos, ela o
faz sempre contra estes pretensos despotismos, comprovando que suas próprias
violações dos direitos humanos são necessárias como consequência de sua luta
contra as violações de per si cometidas pelos outros.
Desde essa perspectiva, as violações burguesas dos direitos humanos perdem
toda a importância e a sociedade burguesa chega a ser urna sociedade sem nenhuma
consciência moral perante as próprias violações desses direitos.
Bauman (1997, p. 17-18) já havia antevisto que a condição para a implementação
de um impulso moral depende que o agente moral se esforce seriamente até
o limite. O Eu moral move-se, sente e age pela incerteza, uma ambivalência, de
que nenhuma escolha traz a completa satisfação, sendo que a responsabilidade que
guia a pessoa está sempre adiante do que foi e do que pode ser feito. Expõe a
impossibilidade de uma universalização da moral, ou seja, de uma padronização
global de conduta. Bauman (1997, p. 282) desenvolve uma proposta ética que critica
a razão contemporânea e a noção de tempo anexado à ética, no sentido de que:
niilismo moral que em sua mais profunda essência significa não a negação
do código ético vinculante, nem as asneiras da teoria relativista, mas a falta
de capacidade de ser moral. (Bauman, 1997, p. 282).
1 Para uma análise da biografia e do contexto das obras do filósofo, indica-se o estudo de Susin (1984)
e Bezerra (2013).
A ideia do infinito não é uma noção que uma subjetividade forje casualmente
para refletir uma entidade que não encontra fora de si nada que a limite,
que ultrapassa todo o limite e, por isso, infinita. A produção da entidade
infinita não pode separar-se da ideia do infinito, porque é precisamente na
desproporção entre a ideia do infinito de que ela é ideia que se produz a
ultrapassagem dos limites. A ideia do infinito é o modo de ser – a infinição
do infinito. (Levinas, 1980, p. 14).
algo (Pinheiro, 1942). Dessa forma, pode-se afirmar que o preâmbulo é aquela carga
que antecede a viagem, o preparo que antecede a jornada.
Nesse sentido, a investigação do alcance semântico dos termos fraternidade,
pluralista e sem preconceitos vai ao encontro da alteridade. O primeiro decorre
do latim frater, que é o irmão, o qual toma novos contornos com o cristianismo,
na medida em que propõe um ideal de amor fraterno entre os homens, que não
só deriva de Deus, mas seria Deus mesmo (Abbagnano, 2007, p. 41). Pluralista ou
pluralismo é termo que se contrapõe ao egoísmo, um modo de pensar na virtude, na
qual não se abarca o mundo no Eu, mas como cidadãos do mundo (Abbagnano, 2007,
p. 765). Já o preconceito é alvo de diversas passagens na história ocidental, sendo
comumente valorizado como um equiparado de ignorância que prende o homem a
um estado que se deseja emancipar (Abbagnano, 2007, p. 452).
Numa perspectiva de alteridade (Lévinas, 1980; 2011), a fraternidade não se
confundiria com a alteridade (apesar de existir menções de fraternidade no texto
de Totalidade e Infinito), mas existiria uma aproximação. Isso porque a alteridade
não percebe o Outro ou o próximo como um irmão, mas uma pessoa estranha ao
Eu e singular. De toda forma, não se pode deixar de vislumbrar que existe uma
aproximação ética entre os termos, uma vez que ambos vinculam o amor e Deus
como pilares de aproximação ao próximo ou ao Outro. Quanto ao termo “Deus”, a
fraternidade está mais próxima do Deus cristão, ao passo que a alteridade não se
aproxima de algum Deus específico, pelo ateísmo que garante a separação (vide
seção anterior). Assim, arrisca-se a propor que a aproximação entre os termos pode
ser representada, no atual e não ideal, da seguinte forma, conforme a Figura 1.
Figura 1 - Relação entre a fraternidade e a alteridade
É com base nesta perspectiva axiológica do Código Civil (Brasil, 2002) que os
direitos da personalidade são indispensáveis para a incorporação da alteridade,
já que sua forma é muito mais adequada do que a dos direitos fundamentais. Nesse
sentido, a vinculação dos direitos da personalidade com a alteridade reside na
necessidade de se resgatar uma perspectiva ética a partir e para o humano.
Dito de outro modo, os direitos da personalidade propiciam estrutura que se
aproxima mais da alteridade que os direitos fundamentais e humanos, pois aqueles
emergem como perspectiva do que o Eu deve ao Outro na ordem jurídica. Por outro
lado, os direitos fundamentais e humanos ostentam limites na vinculação com a
alteridade, pois têm como um dos focos originários a relação do cidadão com o
Estado, e este não é capaz de alteridade, pois a conduta que extrapolar o dever legal
será inválida (pré-requisito da alteridade).
Nessa medida, pode-se observar que o direito positivo protege o valor da
integridade física, um direito da personalidade, exemplificativamente, no art. 13 do
Código Civil (Brasil, 2002), da proibição da disposição do próprio corpo quando o
ato importar diminuição permanente da integridade física; no art. 129 do Código
Penal (Brasil, 1940) prescreve como crime ofender a integridade corporal; também
se pode pontuar o direito fundamental constitucional à alimentação, que protege
a integridade física da pessoa (Brasil, 1988). Há outros exemplos que podem
ser desenvolvidos, com objeto axiológico mais abstrato, como é o caso do valor
da família e o que se espera do normal da união de duas pessoas, cujo valor é
alcançado juridicamente pela escolha da prescrição de diversas condutas, como a
mútua assistência, a fidelidade recíproca, o respeito e a consideração mútuos entre
outros (Brasil, 2002).
Verifica-se que a alteridade ostenta estrutura compatível com as bases
principiológicas com o Código Civil de 2002 e os direitos da personalidade. Dessa
maneira, passar-se-á à análise da estrutura do direito positivo, a fim de analisar sua
compatibilidade com a alteridade.
5 Nesse sentido as disposições do Código Civil: art. 932 e art. 936 (Brasil, 2002).
8 De acordo com a legislação que dispõe sobre o serviço voluntário, em seu art. 1o (Brasil, 1998).
5 Conclusão
O problema que orientou esta pesquisa interdisciplinar decorre da
possibilidade de incorporação da noção de alteridade de Emmanuel Lévinas, sob
determinados aspectos, como ou direito da personalidade. Havia a hipótese de
que não seria possível a incorporação da alteridade no direito positivo, diante da
incompatibilidade de suas estruturas, na medida que o direito é uma ordem social
coativa, que tem por intuito a aplicação por formas imputadas de recompensas
ou sanções, enquanto a alteridade se estrutura a partir de uma responsabilidade
infinita, sem forma e de gratuidade.
Na primeira seção de desenvolvimento, analisou-se que a sociedade
contemporânea vive uma crise ética que encontra suas raízes na própria razão,
produzindo um ciclo sacrificial desumano como legitimação do humano. Verificou-se
que tal ciclo, tal crise, pode ser rompido (a) por uma nova razão, que age ao impulso do
coração e não das equações entre dor e prazer ou da extensão ética de oportunidade
e conveniência. Um novo modo de pensar proposto por Emmanuel Lévinas mostrou-se
6 Referências
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