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JANUS 2020-2021

1.22 • Conjuntura Internacional

MACAU: UMA PONTE PARA OS PAÍSES DE LÍNGUA Cátia Miriam Costa


PORTUGUESA Texto entregue em Novembro de 2019

NO ANO EM QUE SE COMPLETAM OS VIN- Ciente destas características, o Governo da Repú- a China tem sentido no sentido de desenvolver
TE ANOS SOBRE a transição de soberania de blica Popular da China começou a delinear um relações complementares que otimizem a sua
Macau, importa refletir sobre os novos papéis novo projeto para Macau. Reconhecendo a heran- penetração em cada um dos países. Desta forma,
daquela Região Administrativa Especial da Re- ça cultural advinda do período de administração garante através de canais multilaterais a possibi-
pública Popular da China. Macau sofreu grandes portuguesa do território, que nunca assumiu for- lidade de manter sempre que necessário um diá-
transformações nestas duas últimas décadas. A malmente e na prática as características de um co- logo bilateral que lhe permita concretizar os seus
mais conhecida de todas foi indubitavelmente o lonialismo tradicional, o Governo central decidiu objetivos. O Fórum Macau apresenta uma organi-
crescimento do setor do jogo e a proliferação de valorizá-la de modo a atribuir uma nova missão a zação pouco comum e não pode ser caracterizado
casinos por todo o território da Região Adminis- Macau. Essa nova tarefa seria o estabelecimento como uma organização multilateral pura. A China
trativa Especial de Macau (RAEM). Macau lidera de uma ponte permanente de diálogo com os assume um claro papel de liderança, nomeando
em valor absoluto os lucros obtidos com o jogo Países de Língua Portuguesa (PLP). De modo a o Secretário-Geral que é secundado por três se-
e é a região do mundo em que o jogo ocupa a tornar essa relação mais consistente e permanen- cretários-adjuntos, um nomeado pelos PLP, outro
maior percentagem do seu rendimento per capi- te, a República Popular da China propõe a cria- pelo governo de Macau e um outro pelo governo
ta. Contudo, o crescimento do sector dos casinos ção de uma nova instituição denominada Fórum chinês. Assim sendo, a proeminência na organiza-
envolveu o desenvolvimento de outras ativida- para a Cooperação Económica e Comercial entre ção é chinesa e isso traduz-se numa tentativa de
des, como a construção civil, a atividade imobi- a China e os Países de Língua Portuguesa – Fó- orientação da agenda da organização segundo os
liária e o surgimento da necessidade de oferta de rum Macau. De forma pragmática, este nome tão interesses da China. Contudo, ao coordenar essa
novos serviços. extenso foi convertido praticamente em todos os agenda com os outros compromissos da política
As necessidades de suprir mão-de-obra, a par de documentos oficiais da China e dos Países de Lín- externa chinesa, o programa de ação proposto
uma maior facilidade de receber pessoas vindas gua Portuguesa em Fórum Macau. pela China acaba também por ser influenciado
do território nacional chinês, introduziram al- pela agenda internacional e pelos compromissos
gumas alterações à constituição demográfica do A criação do Fórum Macau que o país tem vindo a assumir.
território. Apesar dos indivíduos de etnia chinesa O Fórum Macau foi criado em 2003, sendo uma O Fórum Macau promove várias atividades de
sempre terem sido dominantes no território, a das primeiras organizações internacionais de ini- aproximação da China aos PLP, mas o impacto das
partir de 1999 a sua proveniência dentro do ter- ciativa da diplomacia chinesa, apenas precedida ações desenvolvidas no âmbito do Fórum ainda
ritório chinês diversifica-se. Igualmente, fruto de pelo Fórum para a Cooperação China África, cria- não está estudado nem foram publicados dados
uma maior procura de trabalhadores, é autoriza- do em 2000, e a Organização de Cooperação de que nos permitam determinar o quão importante
da a imigração de países do sudeste asiático. Esta Xangai, fundada em 2001. Estas três organizações tem sido o papel do Fórum no incremento das re-
situação trouxe algum desconforto à população têm em comum o facto de terem um escopo mul- lações da China com os PLP. Apesar do discurso
de Macau que reivindicou um sistema de quotas tilateral e um carácter regional. Todavia, a forma político em Macau valorizar muito os progressos
que lhe assegurasse preferência em alguns servi- como se organizam obedecem às especificidades feitos a partir de 2003, como o demonstram os
ços, tendo em conta o grande desenvolvimento encontradas pela China em cada um dos contex- dados contidos na área “A relação entre Macau e
de alguns setores de atividade. Deste modo e tos. Distingue o Fórum Macau o facto de este os Países de Língua Portuguesa” do Instituto para
após alguns movimentos sociais, o Governo da se ligar especificamente a uma região da China a Promoção do Comércio e do Investimento de
RAEM criou uma lei que protege a mão-de-obra e agregar países não pela sua pertença geográfi- Macau aponta apenas para dados gerais sobre a
local. Embora, não seja tão significava também ca, mas por uma história e língua parcialmente evolução das relações comerciais entre a China
é assinalável a chegada de cidadãos de outros comuns. Longe de reconhecer Portugal, a antiga e os PLP aumentaram cerca de nove vezes en-
países, nomeadamente, ocidentais para a gestão capital do Império Colonial como um centro di- tre 2003 e 2016. Os dados, em geral, aparecem
e tarefas técnicas dos novos serviços. Esta maior ferenciado, a China cria uma organização em que agregados e os PLP são representados como um
diversidade demográfica devolveu a Macau o seu todos os PLP assumem a sua participação numa todo, pelo que desconhecemos as variações espe-
tradicional cosmopolitismo. base paritária. Deste modo, a China respeita cíficas para cada relação bilateral. Igualmente, os
Dessa abertura ao mundo resultou que Macau os seus princípios de uma cooperação Sul-Sul, projetos como a capacitação e circulação de qua-
foi sempre um local onde a comunicação inter- cunhando a sua iniciativa com os princípios da dros ou as novas áreas integradas na cooperação
nacional foi praticada de forma endógena, sem igualdade e benefício mútuo. protagonizada através do Fórum Macau não são
obedecer a grandes planos centralizados. Deste quantificadas de modo a aferir-se sobre o sucesso
modo, a imprensa periódica com tradição se- das mesmas. Quer isto dizer que a organização
cular nas línguas chinesa, portuguesa e inglesa não produz informação específica nem publica os
subsiste, bem como, o multilinguismo nas co- (...) o Fórum Macau (...) não dados sobre o cumprimento setorial da coopera-
municações públicas, também alimentado pela ção ou de nível bilateral. Todavia, os documentos
pode ser caracterizado como
existência de rádio e televisão nas três línguas. É oficiais inclusivamente referem especificidades
fácil encontrar-se no território cartazes em várias uma organização multilateral de cooperação relativamente a alguns PLP, sobre-
línguas, anunciando espetáculos ou até fazendo pura. A China assume um claro tudo, aqueles que ainda não atingiram um grau
publicidade a serviços, exceção feita para as co- papel de liderança. de desenvolvimento satisfatório (Caixa 1).
municações oficiais que são sempre em língua O escopo da cooperação tem sido alargado e
portuguesa e chinesa. A estas línguas juntaram-se adaptado à conjuntura internacional, daí que
tantas outras, representando a origem das várias algumas áreas fossem introduzidas, outras re-
comunidades imigrantes ali presentes, mas sem Mas qual o objetivo de criar mais uma ferramenta forçadas e outras ainda fossem objeto de nova
acesso a comunicação pública formal/oficial ou diplomática específica para estes países? A res- denominação. Nota-se que a preocupação com
informal. posta poderá encontrar-se na necessidade que o elemento humano, seja através da capacitação,

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CAIXA 1 – FÓRUM MACAU EM DADOS rá desenvolver a sua paradiplomacia e funcionar
E PUBLICAÇÕES como ponte alternativa. Esta abordagem por
O Fórum Macau pública publica uma revista parte da China tem frutificado na fundação de
semestral e os seus Anuários. Os seus números novas instituições como a MAPEAL – Associação
estão disponíveis por via digital, na página web para a Promoção de trocas entre a Ásia-Pacífico
da instituição. A revista é subordinada a temas e a América Latina, que é uma Organização Não
variados, sendo o seu último número dedicado
Governamental, ou o Centro para o Estudo e De-
à Grande Baía. O Anuário é, sobretudo, descri-
senvolvimento da Indústria das Energias Renová-
tivo e elenca as atividades que o Fórum Macau
considera mais destacadas e importantes para o veis entre Ásia-Pacífico e América Latina, também
desenvolvimento da sua atividade. Contudo, de- iniciativa da sociedade civil.
nota-se a inexistência de dados mais específicos
que nos permitam apurar os resultados quanti-
tativos da atividade da instituição. Igualmente,
não existem dados setoriais que nos permitam “(...) o Fórum Macau tornou-se
aferir o sucesso dos objetivos delineados. A mais numa ferramenta adicional de
recente edição da revista do Fórum Macaué do
Verão de 2019. O último Anuário foi publicado atração dos PLP para os novos
em 2018. projetos da China.

da circulação ou da formação para os mais jovens Reforçando os pressupostos de cooperação e


ao nível do empreendedorismo e da inovação relacionamento defendidos em toda a política
são áreas cujo desenvolvimento é mais recente, externa chinesa, o Fórum Macau tornou-se numa
mas que parecem ter penetrado profundamente ferramenta adicional de atração dos PLP para os
o discurso da organização. Os Planos de ação têm novos projetos da China, sejam estes de carácter
ainda denotado uma crescente determinação na nacional ou internacional. Não é ocasional o fac-
valorização de aspetos que podem indiretamente to de o último número da revista Fórum Macau
contribuir para as relações comerciais e económi- ser dedicado à Grande Baía, área em que Macau
cas, mostrando que Macau pode ser mais do que se integra e cujas autoridades têm defendido o
uma ponte económica, apesar de ser esse o seu envolvimento dos PLP e para tal tem desenvol-
ponto de partida (Caixa 2). vido diversos contactos como reuniões e feiras
mais localizadas. Quando atribuiu a Macau esta
Macau na estratégia global da responsabilidade e possibilidade de relação dire-
diplomacia chinesa ta com os PLP, a China também corresponsabi-
Macau assume, pois, um papel complementar na lizou a região por parte da sua política externa,
diplomacia chinesa e na prossecução dos seus conseguindo assim que o seu envolvimento fosse
objetivos de política externa. O território está au- mais efetivo e o aproveitamento das suas relações
torizado e mandatado para estabelecer relações históricas e cosmopolitismo mais eficaz. n
com os PLP no âmbito da paradiplomacia, poden-
do, por isso, proporcionar uma ligação através
Bibliografia geral
do Fórum Macau que depois tenha continuidade
Alden, Chris, Alves, Ana Cristina (2017), “China’s Regional Forum
através do Governo local. A finalidade é habilitar Diplomacy in the Developing World: Socialisation and the
a região à diversificação da sua economia, usan- ‘Sinosphere’”, Journal of Contemporary China, vol. 26, n. 103,
do para tal o património material e imaterial que p. 151-165.
Costa, Cátia Miriam (Abril, 2015), “Negócios da Crtiatividade
possui e evocando um passado comum. Simulta-
e Cultural em Macau”, Revista Macau, https://www.
neamente e com base nesse passado cosmopolita revistamacau.com/2015/04/14/negocios-da-criatividade-e-
de ligação ao mundo em língua portuguesa, mas cultura-em-macau/, retirado 1 de Julho de 2019.
também ao mundo dos impérios ocidentais, a Costa, Cátia Miriam and Lam, Agnes (2016), “When the
China tem promovido o alargamento da área de press brought together Macao’s Portuguese and Chinese
communities, Macao Magazine, https://www.macaomagazine.
atuação da RAEM, incluindo também a América net/history/echo-macaense, retirado 1 de Julho de 2019.
Latina como uma das áreas em que Macau pode- “Futuro de Macau joga-se no plano da Grande Baía, diz o
Secretário Geral Adjunto do Fórum Macau, Rodrigo Brum”,
Fórum Macau, n. 43, Secretariado Permanente do Fórum
Macau para a Cooperação Económica e Comercial entre a
CAIXA 2 –OS PLANOS DE AÇÃO PARA A COOPERAÇÃO ECONÓMICA E COMERCIAL
China e os Países de Língua Portuguesa, p. 33-34.
Desde a fundação do Fórum Macau que são traçados Planos de Ação para a Cooperação Económica e Lam, Wai-man (2010), “Promoting Hybridity: The Politics of the
Comercial, datando o primeiro plano de 2003, ano da fundação da instituição. Desde então já foram new Macau identity”, The China Quarterly, n. 203, p. 656-674.
traçados mais quatro planos de ação, resultado das Conferências Ministeriais desenvolvidas no âmbito Mendes, Carmen Amado (2014), “Macau in China’s relations
institucional. Os planos referem a importância de Macau nas relações entre a República Popular da Chi- with the lusophone world”, Revista Brasileira Política
na (RPC) e os Países de Língua Portuguesa (PLP) e mencionam a importância de relações baseadas na Internacional, n. 57, p. 225-242.
Mendes, Carmen Amado et al. (2011), Assessing the “One
igualdade e no benefício mútuo, o que concorda com o discurso chinês para as relações internacionais. Country, Two Systems” Formula: The Role of Macau
Os Planos apesar de algumas características de continuidade como as repetidas referências a Macau e às in China’s Relations with the European Union and the
relações bilaterais extremamente positivas entre a RPC e os PLP, têm evoluído no sentido do alargamento Portuguese Speaking Countries, Coimbra: Oficina do CES
e aprofundamento da cooperação. Igualmente, tendem a convergir com a agenda internacional, introdu- n.o 369.
zindo, por exemplo, temas como o oceano, o ambiente e a capacitação humana. Sena, Tereza (2008), “Macau’s Autonomy in Portuguese
Historiography (19th and early 20th Centuries), Bulletin of
Apesar da organização assentar, essencialmente, na cooperação económica e comercial, existem áreas
Portuguese – Japanese Studies, n. 17, p. 79-112.
de colaboração específicas dedicadas ao desporto, à língua e à realização de eventos culturais conjuntos, Spooner, Paul B. (2016), “Macau’s Trade with the Portuguese
bem como, áreas de cooperação específicas entre a China e alguns dos PLP. Speaking World”, Journal of Global Initiatives: Policy,
Nota: Os Planos de Ação para a Cooperação Económica e Comercial estão disponíveis na página web do Fórum Macau. Pedagogy, Perspective, vol. 11, n. 1, article 5.

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