Você está na página 1de 24

Patologia

neuromuscular em
Medicina Intensiva:
diagnóstico e
interpretação de
EMG e SSEP
Trabalho orientado pelo Dr. Luís Braz

Francisco Santos Dias


IFE 2º ano Medicina Intensiva
Serviço de Medicina Intensiva do CHUSJ
EMG: princípios e interpretação

• A eletromiografia (EMG) deve ser vista como uma extensão do exame físico que nos permite
detetar e distinguir diversas anomalias pertinentes para o diagnóstico, seguimento e prognóstico
de determinados doentes.

• Permite apenas a avaliação do sistema nervoso periférico (SNP).

• Em Medicina Intensiva mais particularmente, pode ser útil no diagnóstico de várias patologias
tais como fraqueza neurogénica, miopática ou da placa neuromuscular, lesão neurogénica
axonal de desmielinizante, localizar lesão nervosa perifética, detetar sinais de desnervação
remota ou recente.

• Adicionalmente permite localizar a lesão nervosa, de periférica à raiz, plexo ou nervo e detetar
sinais de desnervação.
EMG: princípios e interpretação
• Deve ser entendido como 2 passos diferentes do mesmo exame:

1. Estudos de condução nervosa motores e sensitivos (NCS): uso de estimulação


elétrica para testar o sistema nervoso periférico. Consiste na aplicação de uma
corrente elétrica dirigida a um determinado nervo (elétrodos preto e vermelho)
e registados com um elétrodo de superfície (na imagem branco). Permite o
estudo de nervos motores, sensitivos e mistos.

2. Eletromiografia de agulha (EMG): registo da atividade muscular espontânea e


voluntária através da introdução de uma agulha no interior do músculo a
estudar. Permite o estudo dos músculos e da sua inervação.

• Juntamente estes dois exames permitem o estudo do neurónio


motor do corno anterior da medula, raiz, plexo, nervo, junção
neuromuscular e músculo.
NCS Sensitivos

• Registo da atividade nervosa sensitiva à estimulação elétrica. A


resposta resultante (sensory nerve action potentials - SNAPs)
correspondem à soma de todos os potenciais de ação individuais
quando passam pelo elétrodo de superfície.
• Apenas as fibras de maior diâmetro mielinizadas são registadas,
sendo que as mais pequenas ficam praticamente indistinguíveis do
ruído de fundo – não permite o estudo de neuropatia de pequenas
fibras.
• Permite o registo de vários parâmetros:
1. Amplitude (quantos axónios são excitados)
2. Velocidade de condução (distância/latência): essencial na distinção de
neuropatia axonal e desmielinizante
NCS Motores

• Registo da atividade nervosa motora à estimulação elétrica. A resposta resultante


(compound muscle action potentials - CMAPs) correspondem à soma de todos os
potenciais de ação nervosos e musculares (motor unit action potentials – MUAPs)
registados à superfície da pele.
• Permite o registo de vários parâmetros:
1. Amplitude (atividade nervosa (-) e muscular (+))

2. Velocidade de condução: mais complexo que os sensitivos porque também há registo


muscular (condução + despolarização muscular)

3. Dispersão temporal: CMAP deixa de ser uniforme e fica disperso mas amplitude semelhante
ou igual (desmielinizantes iniciais em que todas as fibras transmitem só que a uma
velocidade menor)

4. Bloqueio de condução: Diminuição da amplitude e da AUC (desmielinizantes tardias em que


há fibras que não conduzem de todo)
Eletromiografia de agulha: princípios e interpretação

• A agulha concêntrica de EMG é bipolar e tem um elétrodo de referência (G2) e um elétrodo ativo (G1), medindo a
amplitude, frequência e padrão de despolarização das fibras musculares na área abrangida (~0.1mm2) que
posteriormente é convertido num traçado e em som.
• Exige a cooperação do doente em conseguir manter o músculo em estudo relaxado e em o contrair posteriormente para
uma correta colheita e interpretação dos potenciais.
Eletromiografia de agulha : atividade espontânea

• Sinal de desnervação ativa


• Atividade regular, frequência 0.5-10 Hz,
Fibrilação / (separação física ou funcional
amplitude estável 10-100 µV, resultado da entre a condução nervosa e o
Positive Sharp despolarização de uma única fibra músculo): Neuropatias,
Waves • Com a cronificação a amplitude vai diminuindo
sucessivamente radiculopatias, doenças do
neurónio motor

• Descargas rítmicas, espontâneas e agrupadas da • Facial: SGB, EM, hipocalcemia


Descargas mesma unidade motora (=fasciculações • Periférico: lesão de radiação do
mioquímicas agrupadas) plexo braquial, CIDP,
• Tremor muscular involuntário hipocalcemia
Eletromiografia de agulha : atividade voluntária

Padrão anómalo

Neuropático Miopático Junção neuromuscular


• Axonal
• Agudo • Dependendo da gravidade e cronicidade da
- Degeneração anterógrada das fibras nervosas lesão pode dar morfologias e padrões de
motoras com desnervação das unidades - Potenciais de ação de amplitude e duração recrutamento muito diferentes
motoras envolvidas; diminuída, polifásicos e com padrão de
recrutamento normal ou com recrutamento • No bloqueio severo (botulismo,
- Durante a fase inicial a morfologia dos precoce (ativação precoce de mais unidades organofosforados, crise miasténica) teremos
potenciais mantém-se igual mas com um motoras para compensar) perda completa de unidades motoras. As
padrão de recrutamento diminuído remanescentes darão origem a potenciais
- Cronicamente tem adicionalmente alteração polifásicos de duração e amplitude diminuídos
da forma dos potenciais de ação com
diminuição da amplitude
• Desmielinizante
- Em patologias desmielinizantes puras, o axónio
mantém-se intacto e temos apenas padrão de
recrutamento diminuído sem alteração na
morfologia dos potenciais (= lesão axonal
aguda) + latência e dispersão temporal
NCS e eletromiografia de agulha : atividade voluntária

Padrão anómalo

Neuropático Miopático Junção neuromuscular

• Axonal • Agudo

• Desmielinizante
EMG – timing

• Para detetar alterações nos estudos de condução motora são necessários 5-7 dias após a
lesão
• Para detetar alterações nos estudos de condução sensitivos são necessários cerca de 10
dias após a lesão
• Para detetar sinais de desnervação no EMG de agulha são necessárias 3 semanas após a
lesão
PORTANTO

Solicitar exame preferencialmente após 1 semana da lesão e este só é maximamente


informativo após 3 semanas.
SSEP: princípios e interpretação

• Os potenciais evocados somatossensoriais (SSEP) consistem na leitura em várias regiões da


atividade nervosa provocada pela estimulação de nervos periféricos;

• Permite a avaliação de 3 zonas: nervos periféricos aferentes, medula e encéfalo

• Útil em várias situações clínicas, permitindo o diagnóstico de lesões da medula que não são
evidentes em imagiologia (mesmo em RM) e, mais particular da Medicina Intensiva, para
neuroprognosticação de lesões do SNC.
SSEP: princípios e interpretação
SSEP MSs SSEP Mis
(nervo mediano ou punho) (nervo tibial atrás do maléolo medial)

1. LP: neurónios das raízes dorsais de T12


1. N9: nervos periféricos  plexo braquial
2. N34: neurónios do tronco cerebral /
2. N13-N14: neurónios das raízes dorsais tálamo
de C5 e corno medial
3. P37-N45: neurónios do córtex
3. N20-P23: neurónios tálamo-corticais somatossensorial primário
SSEP dos MSs: princípios e interpretação

• N9-P14 representa o tempo de condução entre o plexo


braquial e a medula cervical
• P14-N20 representa a condução entre a medula e o
cérebro (também chamado de brain conduction time)

• N9 atrasado + N9-P14 e P14-N20 normal: lesão dos


nervos ou do plexo proximal
• N9-P14 atrasado + P14-N20 normal: lesão entre o plexo
cervical e o bulbo raquidiano
• N9-P14 normal + P14-N20 atrasado: lesão entre o bulbo
raquidiano e o córtex cerebral
Na Medicina Intensiva

• Há 3 cenários possíveis para a necessidade de EMG na Medicina Intensiva (é um exame


relativamente raro neste contexto):

• Doente com fraqueza rapidamente progressiva que leva a compromisso respiratório e necessidade de IOT. Neste caso
o exame é útil para o diagnóstico da patologia de base que levou à admissão do doente;

• Doente admitido em Medicina Intensiva, com o problema primário em resolução e em fase de reabilitação, que
apresenta fraqueza das extremidades com tónus diminuído e arreflexia;

• Mesma situação que a anterior mas o passo limitante é o desmame ventilatório, que se demonstra impossível
mesmo após exclusão de outras causas cardiopulmonares.
Doença neuromuscular adquirida em UCI

• Quando um doente sem antecedentes de doença neuromuscular se apresenta com desmame


ventilatório difícil ou achados sugestivos de doença neuromuscular, devemos excluí-la de forma
apropriada
• O primeiro passo começa pela exclusão de outras causas: doença do SNC, toxicidade
farmacológica (inúmeros fármacos), alterações imunológicas (GvH, inibidores do checkpoint)
• Após a sua exclusão, doentes com fraqueza muscular simétrica e que poupa os músculos faciais
e extraoculares têm provavelmente fraqueza adquirida em CI (ICU-AW), uma combinação de
polineuropatia e miopatia da doença crítica.
• Afeta 1/3 de todos os doentes em VM>7 dias, particularmente se sepsis ou MOF
Polineuropatia/miopatia do doente crítico
Polineuropatia do doente crítico Miopatia do doente crítico
(fraqueza resultante de dano axonal de nervos periféricos por hipoxia, (perda de miosina com atrofia das miofibrilas de etiologia inflamatória,
disfunção microvascular, edema vasa nervorum, hiperglicemia...) metabólica, imobilização prolongada, microvascular, etc)

• Fatores de risco: choque sético, exposição prolongada ou Fatores de risco: BNM, acidemia prolongada, ARDS, corticóide
recorrente a BNM, MOF •
em alta dose, aminoglicosídeos, sépsis, MOF
• Paraparésia/paraplegia com massa muscular preservada ou • Paraparésia/paraplegia com atrofia severa
ligeiramente atrófica
• ROTs diminuídos ou ausentes mas mais tardiamente
• ROTs diminuídos ou ausentes
• Desmame ventilatório difícil após exclusão de outras causas
• Desmame ventilatório difícil após exclusão de outras causas

EMG (polineuropatia sensorimotora): fibrilação e positive sharp EMG: fibrilação e positive sharp waves + potenciais curtos, de
waves + potenciais longos, de amplitude normal/alta polifásicos a amplitude diminuída com recrutamento precoce.
demonstrar fenómenos de reinervação. Nos NCS: baixa amplitude dos potenciais motores mas potenciais
Nos NCS: baixa amplitude dos potenciais motores e sensitivos sensitivos normais
Sensibilidade afetada Sensibilidade preservada
Miastenia Gravis (MG)

• Fisiopatologia: reação autoimune com produção de autoanticorpos anti AchR, MuSK ou LRP4 
bloqueio dos AchR  fraqueza neuromuscular localizada ou generalizada
• Crise miasténica (MG complicada com insuficiência respiratória ou fraqueza orofaríngea
requerendo IOT e VM >24 hrs) ocorre em 15-20% de todos os doentes com MG, normalmente
com fator precipitante (infeção, aspiração, fármacos)
Miastenia Gravis (MG) – NCS e ElAglh

• Realizado na maior parte dos doentes com intuito diagnóstico, prognóstico e de evolução
• Em NCS: diminuição sucessiva da amplitude dos CMAPs com a estimulação nervosa repetitiva.
• Em eletromiografia de fibra única: MUAPs instáveis com padrão de recrutamento normal, sem
atividade espontânea anormal (fibrilações). Extremamente sensível para doenças da JNM mas
com pouca sensibilidade para cada uma delas.
Miastenia Gravis vs Lambert Eaton
Miastenia Gravis Lambert-Eaton
Doenças associadas Timoma Ca pequenas células

Início dos m. extraoculares Início nos m. proximais dos membros


Fraqueza Deterioração com o exercício físico e ao longo Melhora com o exercício e ao longo
do dia do dia

ROTs Normais Reduzidos ou ausentes


Estimulação nervosa
Diminuição da amplitude Aumento da amplitude
repetitiva

Potenciais polifásicos com recrutamento Potenciais polifásicos com


EMG
normal ou precoce recrutamento normal ou precoce
Disfunção autonómica ⊘ Comum
Resposta aos ⊘ colinesterase Alívio sintomático Pouca resposta
Miopatias inflamatórias agudas

• Polimiosite/dermatomiosite e outras patologias auto-imunes associadas


• Podem necessitar de internamento em UCI pela fraqueza grave generalizada, envolvimento
pulmonar (doença pulmonar intersticial) ou complicações cardiovasculares (HTP, miocardite – a
positividade de atc anti-mitocondriais está associada a doença CV grave)
• Na UCI, subtipos de miopatia inflamatória necrotizante que podem estar associadas a
malignidade são os mais comuns (“immune- mediated necrotizing myopathy”, IMNM)
• Estadia em UCI prolongada mas com bom prognóstico a médio-longo prazo

• NCS e eletromiografia de agulha:


• NCS: Sem alterações de relevo. Pode haver alterações subtis relacionadas com o dano muscular subjacente
• Eletromiografia de agulha: fibrilação / positive sharp waves (dano muscular com desnervação), recrutamento
diminuído, MUAPs de amplitude e duração diminuídos, miopáticos e polifásicos
Síndrome de Guillain-Barré

• Fisiopatologia: reação autoimune (por vezes pós-infeciosa) com produção de autoanticorpos anti-
gangliosídeos IgG (GM1, GD1a – apenas detetáveis numa minoria dos casos) por imunidade
cruzada (similaridade molecular)  destruição das células de Schwann  desmielinização
segmentar  degeneração axonal sensoriomotora de nervos periféricos e cranianos
 Paralisia flácida progressiva + hipo/arreflexia caudal-craniano (1-2 semanas de evolução)
 Dor dorsal ou dos membros (afetação nociceptiva e neuropática)
 Disfunção autonómica (70%): arritmias cardíacas, PA flutuantes, retenção urinária, disfunção GI
 Insuficiência respiratória por afetação dos músculos respiratórios

• 30% dos doentes vão necessitar de suporte ventilatório – se necessidade superior a alguns dias,
provavelmente irá necessitar de traqueostomia (sem vantagem em atrasar >1 semana)
Síndrome de Guillain-Barré – NCS e ElAglh

• Realizado na maior parte dos doentes com intuito diagnóstico, prognóstico e de evolução)
• Em NCS (alterações da velocidade só na 3-4 semana):
• Latências aumentadas (a indiciar desmielinização);
• Ondas F prolongadas ou ausentes é o achado mais precoce;
• Bloqueios na condução nervosa e dispersão temporal das respostas motoras (fibras deixam de conduzir);
• Recrutamento diminuídos – consequência do bloqueio de condução;

• Em eletromiografia de agulha: recrutamento diminuído e desnervação

• Exame útil após 1ª semana e maximamente informativo após a 3ª semana


Neuroprognosticação

• De forma simplificada, a ausência ou amplitude diminuída do N20 indica lesão cortical, aplicando as
seguintes premissas:
• Não foram utilizados barbitúricos para a sedação do doente (único sedativo que pode interferir
definitivamente com os SSEP);
• Não há suspeita de lesão medular (enforcamento), embora o padrão dos SSEP consigam distinguir
entre lesão periférica ou cortical;
• Ao serem realizados em ambiente de UCI, a interferência de fatores externos dificulta a sua interpretação,
devendo esta ser feita sempre dentro do contexto do doente e dos restantes exames de
neuroprognosticação;
• Ausência bilateral >24hrs de N20 tem sensibilidade de 45% e especificidade de 99% para um mau outcome
• Não é afetado pela hipotermia e recomenda-se o uso de BNM no sentido de eliminar a interferência da
atividade muscular
Patologia
neuromuscular em
Medicina Intensiva:
EMG e SSEP
Trabalho orientado pelo Dr. Luís Braz

Francisco Santos Dias


IFE 2º ano Medicina Intensiva
Serviço de Medicina Intensiva do CHUSJ

Você também pode gostar