Você está na página 1de 304

Com visível amor pela pesquisa histórica

Erudição plenamente amadurecida, lsaías


Pessotti apresenta neste livro a evolução do conceito
De deficiência mental desde a antigüidade até a conquista do
conhecimento
da etiologia dos quadros deficitários e a educação especial dos
deficientes mentais,
no século XX.

Expõe o assunto haurido nas fontes bibliográficas originais e com


preciosas ilustrações oriundas das sucessivas épocas, com a matéria
muita
bem distribuída em seis capítulos: o primeiro, parte da Antigüidade
clássica e chega até os albores da educação especial para deficientes; o
segundo versa a experiência pioneira de ltard, fecunda e rica; o
terceiro
estuda a hegemonia médica da teoria da deficiência mental e destaca os
grandes nomes e obras que marcaram; o quarto abrange a obra monumental
De Seguin e sua expressão didática.
Resultado do enfoque pedagógico aliado ao conhecimento médico; o quinto
analisa a involução teórica registrada nas últimas décadas do século
XIX;
o sexto, e último, é dedicado as duas grandes contribuições do nosso
século: a educação especial para deficientes mentais e o avanço
cientifico na explicação da deficiência ou retardo mental.
A bibliografia disponível sobre deficiência mental não é pequena, mas
este livro de lsaías Pessotti parece ser único na abordagem histórica do
problema, sendo, assim, de interesse para um Vasto público direta ou
indiretamente ligado à questão do retardo mental e da educação especial
para deficientes mentais: educadores em geral, professores dessa área
específica, psicólogos, estudantes e até mesmo leigos envolvidos no
problema

Obra publicada

Com a colaboração da

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor: Prof. Dr. Antonio Hélio Guerra Vieira

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Presidente: ProL Dr. Mário


Guimarães

Ferri
Comissão Editorial:

Presidente: ProL Dr. Mário Guimarães Ferri (Instituto

de Biociências)- Membros: Prof. Dr. Antonio Brito da

Cunha (Instituto de Biociências), Prof. Dr. Carlos da

Silva Lacaz (Faculdade de Medicina), Prof. Dr. Oswaldo

Fadigas Fontes Torres (Escola Politécnica) e Prof. Dr.

Oswaldo Paulo Forattini (Faculdade de Saúde Pública).

BIBLIOTECA DE PSICOLOGIA E PSICANÁLISE

Direção:

Fernando Leite Ribeiro

(da Universidade de São Paulo)

Volume 4

Isaias Pessotti

(da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto)

DEFICIENCIA MENTAL:

da superstição á ciência

A retratação dos volumes


publicados nesta coleção
encontra-se no fim deste livro.

T. A. QUEIRQZ, EDITOR EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

São Paulo

Capa:

Depto.0 de Arte da TAQ


CIP-Brasil. Catalogação na Publicação

Câmara Brasileira do Livro, SP

Pessoti, Isaías, 1933 -

2569d Deficiência mental da superstição

ciência / lsaías

Pessotti. - São Paulo T. A. Queiroz Ed. da

Universidade de São Paulo, 1984.

(Biblioteca de Psicologia e Psicanálise

use; v. 4).

Bibliografia.

1. Deficiência mental 1. Título.

83.1890 CDD-616.8388

300

Índices para catálogo sistemático:

1. Deficiência mental Medicina 616.8388

I81N II-85008-13-X

Proibida a reprodução , mesmo parcial, e por qualquer processo, sem

autorização expressa do

autor e do editor.

Direitos desta edição reservados

T. A. QUEIROZ, EDITOR, LIDA. Rua Joaquim Floriano, 733 -04534 São

Paulo, SP

1984
Impresso no Brasil

sumário

Introdução 1

de Marguités a Victor de Aveyron 3

Um cristão incômodo 3

O Inquisidor de Aragão e o Directorium 7

O Martelo das bruxas 11

Dois alquimistas 14

Willis e o organicismo 17

Locke e a tábula rasa 21

o leprosário 23

Condillac e a estátua 26

Itard, Péreire e os surdos-mudos 29

II O mestre e o selvagem

O selvagem e o diagnóstico de Pinel 35

ltard e a medicina moral 39

Victor e a vida social 43

O despertar da estátua 45

O selvagem descobre os outros seres 51

('ar que Victor não fala9 54

As razões do insucesso 58

Criatividade e método 60

III Pré-ciência e pseudociência 67

O nefasto Tratado do bócio 67

Unitarismo e tipologias 71

Pinel 75

Os flOVO5 progressos de Victor 80

e a teoria negativa 84
Beihomme e os tipos de Esquirol 91

O redentor dos cretinos 94

Os jardins de Froebel e a fazenda de Syrnitz - 99

IV Competência e método 105

As credenciais de Seguin 105

Acusações e desafio 107

Seguin e a idiotia 110

A semente do método 114

Um só método, fisiológico 116

Um velho programa para a psicologia de hoje 118

A teoria psicogenética 122

V Pessimismo e retrocesso 129

Os párocos do Piemonte 129

Morei e as degenerescência 134

A Comissão Francesa 138

A volta à raça primitiva 142

Os novos leprosos 145

O "Dicionário" 148

Da Beócia à Comissão do Mixedema 153

Da irreverência de Diderot ao asilo-escola 159

Um quadro pessimista e mórbido 164

VI O século XX 171

Uma herança onerosa 171

A "Dottoressa" 179

Um cálculo funesto 185

O nosso tempo 191

Referências bibliográficas 197

índice analítico 203

introdução
A história da idéia de deficiência mental acompanha de perto a

evolução da conquista e formulação dos "direitos humanos" que

se insere, por sua vez, na trajetória da filosofia humanística.

De seu lado, a filosofia do homem reflete o entrechoque de

eventos e idéias de diferentes campos do saber e da vida social.

Não se pode explicar a evolução daquela idéia sem referir seus

momentos marcantes às determinações de origem teológica ou

econômica, política, jurídica ou outras.

Neste trabalho não se pretende chegar a tal explicação.

Apenas se oferece uma descrição, balizada pela cronologia, das

principais idéias e personagens que têm gerado teorias e inter-

prestações sociais da deficiência mental, seja através de

escritos,

seja em iniciativas didáticas ou assistenciais.

Embora em essência seja descritivo, o texto procura apontar

a relevância das diversas obras e idéias para a evolução histórica

ulterior do conceito de deficiência mental, entendendo-as como

raízes, por vezes seculares, de cuja seiva se nutrem os preconceitos e


os

conceitos de hoje, nesse campo.

O primeiro capítulo parte da Antigüidade clássica e chega

até os albores da educação especial para deficientes mentais. A

experiência pioneira de Itard nesse campo, fecunda e rica, com

põe o segundo capítulo. O terceiro mostra a hegemonia médica

na teoria da deficiência mental, apontando os grandes nomes e

obras que a caracterizaram. A obra monumental de Seguin, que

alia o conhecimento médico ao enfoque pedagógico, com seu

coroamento didático, é o objeto do quarto capítulo, enquanto o

quinto trata da involução teórica nas últimas décadas do século


XIX e o sexto versa sobre as duas contribuições maiores do

século XX: a educação especial pai-a deficientes mentais e o

avanço científico na explicação da deficiência ou retardo mental.

1. P., 1983

de Marguités a Victor de Aveyron

Um cristão incômodo

Pouco se pode afirmar, com base em documentos, sobre as atitudes ou

conceituações relativas à

Deficiência mental em épocas anteriores à Idade Média; e mesmo sobre


esse

período a documentação rareia, de modo a florescerem em seu lugar

especulações sobre extremismos mais ou menos prováveis.

De todo modo, é sabido que em Esparta crianças portadoras de

deficiências físicas ou mentais eram consideradas subumanas, o que

legitimava sua eliminação ou abandono, prática perfeitamente coerente


com

os ideais atléticos e clássicos, além de classistas, que serviam de


base

à organização sociocultural de Esparta e da Magna Grécia.

De um modo geral, até a difusão do cristianismo na Europa, a sorte

dos deficientes mentais e de outras pessoas excepcionais é praticamente


a

mesma, nas regiões européias, o que não é surpreendente uma vez que até
a

mulher normal só adquire status de pessoa, no plano civil, e alma, no

plano teológico, após a difusão européia da ética cristã.

Exemplo da influência dos ideais cristãos de vida sobre a sorte dos

deficientes é a figura de Nicolau, bispo de Myra, depois canonizado, e


que já no século IV da era cristã se notabilizou por acolher e
alimentar

crianças deficientes abandonadas, mais tarde chamadas idiotas e imbecis

4 - Deficiência mental

Com o cristianismo, de fato, o deficiente ganha alma e, como tal, não

pode ser eliminado ou abandonado sem atentar-se contra desígnios da

divindade. Com a moral cristã torna-se inaceitável a prática espartana


e

clássica da "exposição" dos subumanos como forma de eliminação.

De passagem, convém lembrar que pessoas cuja deficiência não fosse

acentuada podiam, dependendo de seus familiares, sobreviver e crescer,

como ocorreu, na Grécia antiga, com um certo Marguités, cujo caso foi

registrado por Suidas aproximadamente em 960. Nesse registro salienta-


se

que "ele não sabia contar além de cinco e que, tendo chegado à

adolescência, perguntava a sua mãe por que ela e ele não eram filhos de

um mesmo pai ...

Embora evidentemente inconclusivo para efeito de diagnóstico, o

registro de Suidas, referido por Diderot e D'Alembert no verbete

"Imbécille" da Encyclopédie, indica que da "exposição" talvez escapassem

os portadores de deficiências mentais não graves. A prática do abandono


à

inanição ou, eufemicamente, a "exposição" foi admitida por Platão


(Rep.,

461 e), por Aristóteles (Polit., p. 150, 1335b) e, provavelmente,

rejeitada por Hipócrates, em consonância com sua notória oposição ao

aborto, conforme argumentava Gilforti (1870).

Para Aristóteles, até mesmo os filhos normais, excedentes, podem ser

"expostos" em nome do equilíbrio demográfico, numa posição coerente com

as linhas mestras aristocráticas e elitistas da Política, mas fatal


para
as pessoas portadoras de deficiências, principalmente quando essas

viessem a implicar dependência econômica.

Graças à doutrina cristã os deficientes começam a escapar do abandono

ou da "exposição", uma vez que, donos de uma alma, tornam-se pessoas e

filhos de Deus,

como os demais seres humanos. É assim que passam a ser, ao longo da


Idade

Média, "les enfants du bon Dieu", numa expressão que tanto implica a

tolerância e a aceitação

caritativa quanto encobre a omissão e o desencanto de quem delega à

divindade a responsabilidade de prover e manter suas criaturas

deficitárias.

Como para a mulher e o escravo, o cristianismo modifica o status do

deficiente que, desde os primeiros séculos da propagação do


cristianismo

na Europa, passa

de coisa a pessoa. Mas a igualdade de status moral ou teológico não

corresponderá, até a época do iluminismo, a uma igualdade civil, de

direitos. Dotado

De Marguités a Victor de Aveyron - 5

de alma e beneficiado pela redenção de Cristo, o deficiente mental


passa

a ser acolhido caritativamente em conventos ou igrejas, onde ganha a

sobrevivência, possivelmente

em troca de pequenos serviços à instituição ou à pessoa "benemérita"


que

o abriga.

Será apenas no século XIII que surgirá, ao que se sabe, uma primeira

instituição para abrigar deficientes mentais; era mais precisamente uma

colônia agrícola, na Bélgica (Dickerson, 1981).

E do século seguinte, de 1325, a primeira legislação sobre os


cuidados a tomar com a sobrevivência e, sobretudo, com os bens dos

deficientes mentais. No e prerrogativa Regis baixado por Eduardo II da

Inglaterra encontrasse, no dizer de Dickerson (1981), um "guia para

proteger os direitos e as propriedades dos 'idiotas'

e para os cuidados quotidianos" de que necessitam. O rei devia "zelar

primeiramente, para que os idiotas fossem plenamente satisfeitos em


todas

as suas necessidades, pois ele se apropriava da parte de seus bens "

correspondente às despesas com aqueles cuidados, segundo Foville,


citado

por Teixeira Brandão era 1918.

Com essa lei, pouco magnânima, pelo menos os idiotas donos ou

herdeiros de bens obtinham atendimento adequado de suas necessidades,

talvez também ficando prerrogativa real a definição dessas


necessidades,

provavelmente referentes apenas à sobrevivência e saúde. Curiosamente,


no

caso dos loucos, que a lei contemplava em seu capítulo XII, aqueles

cuidados eram assegurados sem qualquer retribuição ou compensação de

gastos à coroa.

O De prerrogativa Regis acrescenta às razões caritativas a da

preservação de posses, como mais um motivo para o acolhimento dos


idiotas

e outros deficientes mentais.

O deficiente agora merece sobreviver, e mesmo obter condições

confortáveis de vida, seja por ter alma, seja por ter bens ou direitos
de

herança.

E nessa lei que se distingue pela primeira vez perante a ordenação

jurídica o deficiente mental do doente mental.

Na Inglaterra, como no resto da Europa, o deficiente mental manterá o


status de ser humano, criatura de Deus para efeito de sobrevivência e

manutenção da saúde, mas adquirirá significados teológicos e religiosos

paradoxais. Será, assim, "Infant du bon Dieu", mas portador de

misteriosos desígnios da divindade. Atitudes contraditórias se

desenvolvem diante do deficiente mental: é ele um eleito de Deus ou uma

espécie de expiador de culpas alheias, ou um aplacador da cólera divina

a receber em lugar da aldeia

6 - Deficiência mental

a vingança celeste, como um pára-raios? Tem una alma mas não tem

virtudes; como pode ser salvo do inferno? Se idiota, está livre do

pecado? Qual a culpa pela deficiência e a quem atribuí-la? Ele é mesmo


um

cristão?

A cristandade do deficiente mental foi uma questão importante na

Idade Média, embora não formalizada. É como respostas a essa questão


que

se explicam as práticas usuais e a conceituação dominante de então em

relação à deficiência mental.

De fato, o caráter de cristão confere à pessoa valores éticos que

impõem aos demais uma certa conduta caritativa, tolerante e magnânima,


ou

mesmo cautelosa ou reparadora, em nome da doutrina cristã do amor ao

próximo e da teologia cristã do pecado e da predestinação.

Em obras medievais latinas os deficientes mentais, especialmente os

que mais tarde serão chamados cretinos (em francês cretina), são

genericamente chamados chrístiani,

em abono da opinião de Fodéré (1791), que entende cretina como


corruptela

de chrétien; e em consonância com o uso corrente em regiões italianas


da

palavra cristiano com significado de "homem sem importância", "homem


qualquer", ou "pobre coitado".

Às variações da noção teológica de cristão implicando uma

doutrina do pecado e da expiação, corresponderão condutas clericais

diversas, face ao deficiente mental, segundo a teologia da culpa que


cada

corrente do cristianismo, ortodoxa ou herética, adotará.

De um lado, como enfant du bon Dieu o deficiente ganha abrigo,

alimentação e talvez conforto em conventos ou asilos; de outro,


enquanto

cristão, é passível de alguma exigência ética ou de alguma

responsabilidade moral. Ganha a caridade e com ela escapa ao abandono,

mas ganha também a "cristandade" que lhe pode acarretar exigências

éticas e religiosas.

Para outros hieráticas a condição de cristãos, dos deficientes,

os torna culpados até pela própria deficiência, justo castigo do céu


por

pecados seus ou de seus ascendentes. É cristão, e por isso merece o

castigo divino e, no caso de condutas imorais, é passível do castigo

humano também. Muitos chegam a admitir que o deficiente é possuído pelo

demônio, o que torna aconselhável o exorcismo com flagelações, para

expulsá-lo. A ambivalência caridade-castigo é marca definitiva da


atitude

medieval diante da deficiência mental.

De Marguités a Victor de Aveyron - 7

Agora a ética cristã reprime a tendência a livrar-se do deficiente

através do assassínio ou da "exposição", como confortavelmente se

procedia na Antigüidade: o deficiente tem que ser mantido e cuidado. A

rejeição se transforma na ambigüidade proteção-segregação ou, em nível

teológico, no dilema caridade-castigo. A solução do dilema

é curiosa: para uma parte do clero, vale dizer, da organização

sociocultural, atenua-se o "castigo" transformando-o em confinamento,


isto é, segregação (com desconforto, algemas e promiscuidade), de modo

tal que segregar é exercer a caridade pois o asilo garante um teto e

alimentação. Mas, enquanto o teto protege o cristão as paredes escondem


e

isolam o incômodo ou inútil.

Para outra parte da sóciocultura medieval cristã o castigo é caridade,

pois é meio de salvar a alma do cristão das garras do demônio e livrar


a

sociedade das condutas indecorosas ou anti-sociais do deficiente.

O inquisidor de Aragão e o "Directorium"

E quase um lugar-comum afirmar-se que a inquisição católica sacrificou

como hereges ou endemoniados milhões ou centenas de milhares de


pessoas,

entre elas loucos, adivinhas e deficientes mentais ou amentes, embora

seja escassa a documentação disponível e segura que fundamenta acusação

tamanha, na opinião confiável de Kamen (1966).

Mas os textos que regiam o processo inquisitorial, alguns já desde o

século XIV, induzem a pensar que "ciganos", magos, alucinados e


videntes

pouco ortodoxos, de par com portadores de certas deficiências mentais

leves, ou "limítrofes", facilmente poderiam cair nas garras (é bem o

termo) da inquisição. Entre esses textos, três são fundamentais por seu

caráter doutrinário e, ao mesmo tempo, canônico ou processual. São o

Lucerna inquisitório de Bernardus Comensis, o Malleus maleficarum de

Sprenger e Kramer (1486) e o Directorium inquisitorium de Nicolau

Emérico, que data de 1370, aproximadamente em sua forma manuscrita,

embora sua primeira edição impressa seja de 1578 e a penúltima tenha

ocorrido em 1607. A nefasta obra de Emético orientou, pois, a


Repressão

8 - Deficiência mental

e a deputação da cultura e da igreja européia durante quase três


séculos,

já que ainda em 1702 era reeditada, em francês. A leitura do


Directorium

é aterradora pela naturalidade e facilidade com que prescreve a tortura

ou a fogueira, mas também, e muito mais, pela conduta ardilosa,

diabólica, impiedosa que prescreve aos inquisidores a fim de obter

confissões de heresia ou de práticas religiosas não ortodoxas.

Em todo o Directorium, do Grande Inquisidor de Aragão, aparecem

argumentos ou instruções procedimentais claramente perigosas para

deficientes mentais dotados de linguagem, ficando aparentemente


intocados

ou incapazes de tal comunicação, a menos que praticantes contumazes de

rituais que pudessem significar, a juízo arbitrário e passional do

inquisidor, culto heterodoxo. Se o De prerrogativa Regis de 1325

favorecia o deficiente com posses, o Directorium, apenas quatro ou


cinco

décadas depois, punha em grave risco o deficiente dono de bens e que de

algum modo pudesse ser denunciado ou acusado por culto a divindades

estranhas ou práticas demoníacas, atos homossexuais ou contestação da

palavra do bispo ou da Igreja. Isto porque o Directoriun,


solidariamente

baseado em documentos papais, recomenda minuciosa e invariavelmente

o confisco de bens do acusado em benefício do inquisidor e sua família


e

da própria inquisição como organização, cabendo prêmios em indulgência


e

outros bens também aos delatores que o entregassem ao tribunal

eclesiástico.

Os ganhos financeiros, a arbitrariedade de critérios de julgamento


e a visão supersticiosa do deficiente juntam-se nos séculos XIV, XV e
XVI

compondo uma sinistra ameaça ao "doente mental" e ao deficiente mental,

agravada pelos riscos de punições severas a quem, tendo presenciado

conduta herética, blasfema ou obscena, não a denunciasse ao Santo


Ofício.

Particular rigor era usado nos casos em que a acusação envolvia


condutas

homossexuais, e, sabendo-se do notório desregramento erótico em

deficientes mentais, adultos ou não, é aterrador o relato que a tal

propósito nos oferece Karmen (1966): "para a homossexualidade definida

como crime 'abominável' ou Inqualificável' a punição comum era queimar

viva a pessoa, ou, na Espanha, a castração ou a morte por apedrejamento


.

. - Para todos os maiores de vinte e cinco anos era a queimação... : os

menores eram açoitados e enviados às galés,"

De Marguités a Victor de Aveyron - 9

Mas ainda que não incorresse em tais abominações o deficiente mental

não estava a salvo. Já disse o século V era visto como portador de

desígnios especiais de Deus ou como presa de entidades malignas às


quais

"obviamente" serviria através de atos bizarros como os das bruxas. Dada


a

credulidade da população rural e seu fanatismo clerical, não surpreende

que entre as cem mil pessoas queimadas por bruxaria, só na Alemanha do

século XVII, estivessem incluídos centenas de dementes e aumentes

ou deficientes mentais.

O Directorium de Emérico recomenda ao inquisidor que não se iluda

quando o acusado "responde a uma pergunta por uma admiração". É também

indício de culpa "responder a algo que não se lhe pergunta ou não

responder àquilo sobre que é interrogado" e, ainda, "mudar de


discurso".
Adverte ainda Emérico: "Uma outra manha utilizada pelos hereges é

fazerem-se de tolos." Após aconselhar vários ardis para forçar a

confissão do acusado, o Directorium declara: "E desta forma ou o


acusado

há de confessar ou há de dar respostas diversas. Se der respostas

diferentes, é o bastante para o conduzir à tortura . . . a fim de lhe

poder tirar da boca toda a verdade."

Prossegue o zelo incendiário de Emérico: "Se houver uma testemunha

que diga ter visto ou ouvido fazer... algo contra a fé ou se aparecerem

quaisquer fortes indícios disso, um ou vários, é o bastante para se

proceder à tortura."

Noutro ponto, o Grande Inquisidor de Aragão diz que se deve

proceder à tortura, "mesmo que não se apresente qualquer testemunha, se


à

má fama do acusado se juntam... um só forte indício". A tortura e, em

caso de contumácia. a fogueira devem ser prontamente ordenadas "quando


à

má reputação se juntam maus costumes...por exemplos que são


incontinentes

e que têm grande inclinação por mulheres...O bispo...deve obrigar dois


ou

três homens em toda a vizinhança a denunciar ... o que saibam sobre

hereges ... ou gente que . . . tenha vida ou conversas diferentes do

comum dos fiéis."

Para que não se incorra em injustiça, o Directorium prudentemente

adverte que os "nigromantes: podem conhecer-se pelos sinais seguintes:

têm a vista torta, por causa das visões, aparições e conversas com os

espíritos maus...

De Marguités a Victor de aveyron - 11

Esse pormenor fisionômico é assustador quando se recordam as


descrições de cretinos e idiotas feitas por Pinel, Esquirol, Seguin e

outros.

Os critérios e cânones do Santo Ofício, arbitrários e cruéis, se

obedecidos com discernimento e prudência, por certo não vitimariam os

deficientes mentais. É provável que entre os inquisidores alguns


tivessem

complacência para com "les enfants du boa Dieu", à vista de opiniões já

antigas sobre a irresponsabilidade ética dos amentes. Mas, ocorre que

esse discernimento e essa complacência eram incompatíveis com a


concepção

supersticiosa da deficiência, entendida como eleição divina, danação de

Deus ou possessão diabólica. Por outro lado, o extermínio de

transgressores do dogma ou da moral católica era facultado a qualquer

cristão e até estimulado com indulgências e outros privilégios, como

decretou o concílio de Latrão: "Os católicos que, marcados com o sinal


da

Cruz, se entregarem à exterminação de hereges, ficam a gozar


indulgência

e dos mesmos santos privilégios de todos os que vão à terra santa." De

passagem: esses algozes privilegiados, depois cavaleiros em terras do

Oriente, serão chamados cruzados.

O "Martelo das bruxas"

o que é mais trágico nessa era de superstição é que a hierarquia


clerical

de meia Europa, com toda a dialética aristotélica e depois escolástica,

armada de toda a sapiência teológica e dona dos meios de comunicação


não

conseguiu vencer as superstições que condenava e, o que é pior,

ingenuamente ou diabolicamente difundiu e avalizou as crendices


populares

nos poderes paranormais eu sobrenaturais de adivinhos, feiticeiros e


outras criaturas bizarras e de hábitos estranhos.

Foi essa a verdadeira função do Malleus maleficarum de Sprenger e

Kramer, publicado em 1486 e reeditado pelo menos 29 vezes até 1669.

No Malleus os dois autores dominicanos, designados por lnocêncio

VIII para extirpar a feitiçaria no norte e no centro da Alemanha,

registraram inúmeros casos de bruxaria e os métodos empregados para

tratá-los; acabam por afirmar, com o peso da auto-

12 - Deficiência mental

ridade apostólica que lhes fora delegada, que a "feitiçaria, longe de


ser

magia ou ilusão, era de fato baseada mio tráfico real com Satanás e com

as forças das trevas: que as feiticeiras realmente devoravam crianças,


e

copulavam de fato com os demônios e os sabás; prejudicavam realmente o

gado e as colheitas e eram capazes de fazer cair raios." (Kramen, 1966)


A

adesão do clero italiano e ibérico a tal doutrina era de esperar-se.


Mas

importantes figuras da Reforma protestante também a perfilharam,

como Lutero, Melanchthon e, notoriamente, Calvino, que comandou

pessoalmente a caça às bruxas em Genebra, no ano de 1545, da qual

resultou a execução de 31 pessoas, o que é um total até reduzido à


vista

dos milhões ou do meio milhão apontado por Kittredge (1956) como a

"estimativa mais moderada" do total de pessoas queimadas, na Europa,

entre os séculos XIV e XVII, por acusação de intercâmbio com demônios


ou

forças do mal.

A rigidez luterana, que encontra em Calvino seu "cruzado", não

permite que se trate sem castigo quem é objeto eletivo da cólera

justiceira e justa de Deus ou, pior ainda, presa de Satanás.


Não é difícil inferir o tratamento dado a idiotas, imbecis e loucos

durante a Reforma. A rigidez ética carregada da noção de culpa e

responsabilidade pessoal conduziu a uma marcada intolerância cuja

explicação última reside na visão pessimista do homem, entendido como


uma

besta demoníaca quando lhe venham a faltai' a razão ou a ajuda divina.


E

o que Pintner (1933) chamou de "época dos açoites e das algemas" na

história da deficiência mental. O homem é o próprio mal quando lhe


faleça

a razão ou lhe falte a graça celeste a iluminar-lhe o intelecto: assim,

dementes e amentes são, em essência, seres diabólicos.

E expressivo, a esse respeito, o trecho citado por Kanner (1964) a

propósito da posição de Martinho Lutero: "Há oito anos vivia em Dessau


um

ser que eu, Martinho Lutero, vi e contra o qual lutei. Há doze anos,

possuía vista e todos os outros sentidos, de forma que se podia tomar


por

uma criança normal. Mas ele não fazia outra coisa senão comer, tanto
como

quatro camponeses na ceifa. Comia e defecava, babava-se, e quando se


lhe

tocava, gritava. Quando as coisas não corriam como queria, chorava.

Então, eu disse ao príncipe de Anhalt: se eu fosse o príncipe, levai-a

essa criança ao Moldau que corre perto de Dessau e a afogaria. Mas o

príncipe de Anhalt e o príncipe de Saxe, que se achava presente,

recusaram seguir o meu conselho. Então eu disse: pois bem, os

De Marguités a Vida,- de Aveyron - 13

14 - Deficiência mental

cristãos farão orações divinas na igreja, a fim de que Nosso Senhor

expulse o demônio. Isso se fez diariamente em Dessau, e o ser


sobrenatural morreu nesse mesmo ano...

E importante, aqui, notar que a segurança dogmática de Lutero é

decididamente infundada. O mesmo "ser" que é uma "criança", que antes

fora como uma "criança normal", é também uni ser "sobrenatural", que

morre, corno efeito de orações para que Deus "expulse [dela] o


demônio".

A confusão entre ser humano tomado pelo demônio e ao mesmo tempo

"sobrenatural", que "morre", por efeito de preces que se destinavam a

salvá-lo pela "expulsão do demônio", revela a curiosa natureza do

deficiente mental na teologia de Lutero. Em verdade, trata-se de uma

concepção primária e tendenciosa, a misturar a fúria depuradora à


oração

caritativa, um purismo mórbido a uma concepção mitológica e fanática do

deficiente mental: afogá-lo ou orar por ele são práticas igualmente

eficazes e igualmente morais.

A caracterização do conceito luterano de deficiência mental nos

serve mais que tudo, aqui, como o modelo inteiro e definitivo de visão

medieval do problema.

A identidade sobrenatural dos amentes (e também dos dementes, em

alguns aspectos) é a marca da superstição, a caracterizar toda a


"teoria"

e prática medieval em relação ao deficiente mental de qualquer tipo ou

nível.

Não fogem a essa marca os promotores da contra-reforma católica,

como não lhe escapava a hierarquia eclesiástica pré-reforma.

Dois alquimistas Paracelso e Cardano 1500

Até a reação à crueldade católica e luterana no trato dos dementes e


amentes começa eivada de superstição; por obra de duas figuras típicas

da cultura do início do século XVI: Paracelso (1493-1541) e Cardano

(1501-1576).

Philipus Aureolus Paracelsus, cujo verdadeiro nome era Theophrastus

Bombastus voa Hohenheim, enquanto médico e alquimista conseguiu fama e

mesmo certa fortuna até que seus rivais lhe arruinassem a vida: foi

acusado de bruxaria e ateísmo, mas suas obras mostram claramente o

contrário. Paracelso rejeitava as obras

De Marguités a Victor de Aveyron - 15

ditas diabólicas embora acreditasse na magia, na astrologia e na


alquimia

como recursos para conhecer desígnios extranaturais ou, de todo modo,

sobre-humanos, e para utilizam' propriedades ocultas das substâncias e

dos astros.

Um certo fanatismo astral, ou o exercício de poderes mágicos por

outro, ou ainda o contato com certas substâncias alquímicas são

condições suficientes para explicar condutas aberrantes ou bizarras,

ditas bruxarias e, por extensão, comportamentos anormais de dementes e

amentes. Por outro lado, enquanto médico, Paracelso não podia ignorar
que

demência e amência podiam também resultar de traumatismos e doença

Nessa visão dos atos bizarros ou inexplicáveis corno produtos de

forças cósmicas ocultas e nessa admissão da origem patológica de

demências ou amencias, consubstanciada na obra "Sobre as doenças que

privam os homens da razão", reside a importância de Paracelso, ele


também

vítima da intolerância eclesiástica, na reformulação da visão medieval


da

deficiência mental. Essa obra foi publicada em edição póstuma em 1567,


embora tenha sido escrita em 1526.

É nela que, ao que parece, pela primeira vez uma autoridade da

medicina, reconhecida por numerosas universidades, considera médico um

problema que até então fora teológico e moral.

A visão de Paracelso é ainda supersticiosa mas não teológica. O

louco e o idiota já não são perversas criaturas tomadas pelo diabo e

dignas de tortura e fogueira por sua impiedade ou obscenidade: são

doentes ou vítimas de forças sobre-humanas cósmicas ou não, e dignos de

tratamento e complacência.

Não é muito diversa a contribuição de Jerônimo Cardano, embora

dispersa em numerosos e desordenados escritos.

Filósofo pouco importante para a história da filosofia, Cardano foi

médico de altíssima reputação em grandes universidades da época e,

sobretudo, matemático de renome cujos trabalhos sobre álgebra alteraram


o

curso da história da matemática. "Rancoroso, vicioso, obsceno e


lascivo,

sem ambições e resignado", como ele próprio se descreve no De vila

própria, enquanto pessoa genial e desregrada, Cardano "faz Rousseau

parecer um anjo", embora professasse e praticasse a religião católica.

Vítima de seus próprios excessos e de acidentes familiares, mas não da

intolerância clerical, Cardano uniu ao misticismo neoplatônico a magia,


a

astrologia e a cabala, professando também sua crença em poderes


especiais

e em

16 - Deficiência mental

forças cósmicas que podem ser responsáveis por comportamentos

inadequados. Loucos e deficientes são vítimas de tais poderes e, por

vezes, até dotados de poderes mágicos desordenados, o que os torna


merecedores de atenção médica.

Em relação a Paracelso a concepção médica de Cardano sobre a

deficiência mental é análoga, ademais enriquecida pela preocupação

pedagógica com a instrução dos deficientes.

Com Teofrasto Paracelso e Jerônimo Cardano a insensatez começa a

ceder terreno ao bom senso.

De Marguités a Victor de Aveyron - 17

Já em 1534 a natureza patológica da deficiência e da loucura deixa

de sem' opinião e passa a ser norma de jurisprudência, pelo menos na

Inglaterra, onde duzentos anos antes havia surgido o De prerrogativa

Regis de Eduardo 11.

O novo texto tem o mérito de desautorizar visões supersticiosas da

deficiência e da loucura, agora sem argumentos igualmente


supersticiosos

como os de Paracelso e de Cardano.

Em verdade, o De prerrogativa Regis prescrevia os cuidados a tomar

no retrato de dementes e amentes sem definir tais infortúnios como

doenças ou como evidência de tráfico com as trevas ou com o inferno,

mesmo assegurando, por força da autoridade monárquica que o editou, um

tratamento mais humanitário a idiotas e loucos.

A jurisprudência de Sír Amithony Fitz-Herbert, por seu turno, vai

além e define claramente loucura e idiotia como enfermidade ou produto


de

infortúnios naturais. Mais uma vez, o propósito do texto não é


propiciar

bem estar aos psicopatas ou amentes, mas disciplinar a administração


dos

direitos de herança: "Esse chamará bobo ou idiota de nascimento à


pessoa

que não pode contar até vinte moedas nem dizer-nos quem era seu pai ou
sua mãe, quantos anos tem, etc....de forma que parece não haver
possuído

conhecimento de qualquer razão da qual se pudesse beneficiar ou que

pudesse perder. Mas se tem um conhecimento tal que conhece e compreende

suas letras e lê mediante ensino ou informação de outro homem, então


não

deve considerar-se bobo ou idiota natural."

A definição de Fitz-Herbert, que lembra o registro de Suidas, do

século X, é vazada em termos de desempenho observado, precedendo

exigências metodológicas da psicologia atual. Mas o critério de


definição

é a ausência ou perda da razão, inferida das lacunas ou carências do

desempenho comportamental. Mas mesmo admitindo essa precária inferência


o

texto inicia a argumentação objetiva, não supersticiosa, em favor da

impunibilidade do deficiente.

WILLIS E O ORGANICISMO

É com o Cerebri anatome de Thomas Willis (1621-1675), editado em


Londres,

cai 1664, que se inaugura a postura organista diante da deficiência

mental.

18 - Deficiência mental

A obra de Willis, típica da neurofisiologia seiscentista, junta às

sólidas descrições anatômicas e morfológicas conceitos fisiológicos

hipotéticos que só serão abandonados com o advento da eletricidade como

recurso de pesquisa e como princípio explicativo. As curiosas hipóteses

para explicar a condução nervosa espelham a dificuldade conceitual e


metodológica da neurofisiologia do século XVII: Willis, como Descartes,

como os iatromecânieos Borelhi e Baglivi, recorre às idéias de fluido

nervoso, suco nervoso, liquido dos nervos e, principalmente, à idéia de

fluidos voláteis ou "espíritos animais" no sentido de substâncias


sutis,

até explosivas, como gases. De todo modo, ao entender a idiotia e


outras

deficiências como produto de estruturas ou eventos neurais Willis


começa

a sepultar, pelo menos nos estratos mais cultos da sociedade, a visão

demonológica ou fanática daqueles distúrbios, agora não graças a razões

éticas ou humanitárias mas em virtude de argumentos "científicos".

Escreve Willis: "A idiotia e a estupidez dependem de uma falta de

julgamento e de inteligência, que não corresponde ao pensamento


racional

real: o cérebro é a sede da enfermidade, que consiste numa ausência de

imaginação e memória, cuja sede está no cérebro. A imaginação,


localizada

no corpo caloso ou substância branca; e a memória, na substância

cortical. Assim, se a imbecilidade ou a estupidez aparecem, a causa

reside na região cerebral envolvida ou nos espíritos animais, ou em

ambos."

A vaga menção idiota abimfirmitate de Fitz-Herbert, aqui vem

escoltada de razões anatômicas ou fisiológicas, de resto não tão novas

senão em sua precisão morfológica e anatômica pois, em desfavor do

fanatismo clerical dos séculos XII a XVII, já Santo Agostinho (343-430)

adotara a doutrina da localização das funções cerebrais nos


ventrículos,

para ele apenas três, ficando no anterior as sensações, no médio a

memória e no posterior o raciocínio.

A localização da causa da imbecilidade, da idiotia ou da estupidez


em determinadas regiões encefálicas e/ou no fluxo dos espíritos animais

entendidos como substância volátil correspondente à atividade neural,

representa obviamente o início da redenção humanista do deficiente.

Tal redenção, contudo, não se fará de imediato: a doutrina de

Willis, como a jurisprudência de Fitz-Herbert e a neuroanato-

20 - Deficiência mental

mia de Vesálio, não atinge as grandes massas fanatizadas pelas

hierarquias religiosas e muito menos os donos do poder político-

econômico, nutrido por tal fanatismo:

De todo modo, alguma alteração começa a processar-se no conceito da

deficiência mental com a doutrina de médicos, anatomistas e juristas a

suceder a do Directorium a do Malleus e a do Lucerna inquisitorium.

A esses pioneiros da nova atitude diante do idiota ou imbecil vem

juntar-se Francesco Torti (1658-1741) a apontar outra "causa" natural


da

deficiência: a malária ou mau ar dos pântanos e baixadas, como no

Piemonte e no Simplon. Não se trata, aqui, dos miasmas medievais, mas


da

verificação de que as febres infantis com suas seqüelas neurológicas (e

comportamentais) eram mais freqüentes nas regiões de desfiladeiros e

pantanais, cujas emanações eventualmente pútridas poluiriam o ar. A

relação postulada, contudo, era direta: o ar mau, enquanto ar, causa

deficiência e disso decorre a sugestão de mudar de clima, ou de ares,

como recurso de recuperação do idiota ou do imbecil.

A posição de Torti, assim, também neutraliza a deficiência como

haviam feito os demais pioneiros citados, desautorizando ou


contestando,

com mais um argumento, a conceituação "sobrenaturalista" de que se

revestira em séculos e anos anteriores.


A idéia de Torti tem ainda outro significado para a história da

conceituação de deficiente mental. Com Paracelso e Cardano, o


deficiente,

bem como o louco, perdia sua natureza sobrenatural, passando de


problema

teológico e ético a assunto de interesse médico. Com Sir Anthony, o

retardo mental, diverso da loucura, é igualmente natural, podendo ser


ab

imfirmitate ou a inativitate, implicando a natureza organísmica da

eficiência, ao passo que na obra de Willis a visão organicista se

consolida de modo a explicá-la como lesão ou disfunção do sistema


nervoso

central. É somente com Torti que tem início a admissão de fatores

ambientais como determinantes da deficiência, embora a idéia da malária

como causa per se pareça hoje bizarra.

Deve-se notar que a conceituação naturalista germina cm círculos

outros que não o da hierarquia eclesiástica ortodoxa ou protestante,


numa

lógica demonstração de que o dogma e o dogmatismo, reprimindo' a


crítica

e o bom senso, eram o sustentáculo da superstição medieval diante dos

idiotas, imbecis e loucos.

A repressão à crítica e ao bani senso efetivamente impedia

De Marguités a Viciar de Aveyron - 21

a demonstração sensata e lógica de que o dogma levava à superstição, e

ambos levavam à idéia fatalista ou expiatória da amência cuja expressão

pragmática era a exclusão da experiência e dos eventos ambientais,

sociais ou não, do rol de fatores causais da deficiência mental e mesmo

da eficiência mental.

Restava então, para fins explanatórios, o inatismo das idéias e das

funções mentais superiores (como os julgamentos e o raciocínio), a

mascarar a intervenção arbitrária e justiceira de Deus, com ou sem a


paradoxal colaboração de seu desafeto, o demônio.

A artificialidade da doutrina moral católica ou anglicana,

nitidamente teocrática transformada em esotérico sistema de verdades

mutuamente justificantes acabava por ser incompreensível aos não

iniciados, ao vulgo, e com isso transformava-se em pecador ou herege

qualquer cristão que transgredisse a doutrina, ainda que não

a conhecesse ou não a entendesse.

John Locke e a tabula rasa

E contra esse absolutismo teocrático que "lutaria em toda a sua vida

John Locke" (1632-1704), cuja obra revoluciona definitivamente as

doutrinas então vigentes sobre a mente humana e suas funções, além de

abalar de modo irreversível o dogmatismo ético cristão.

Tendo escrito sobre economia, medicina, política e religião, entre 1666


e

1669, a partir de 1670 Locke começa a preocupar-se com o fato de que


"os

princípios da moral não se podem estabelecer solidamente sem antes

examinar nossa própria capacidade de ver quais objetos estão ao nosso

alcance ou acima da nossa compreensão".

Dessa idéia nasceu o Essay Concerning human Understanditmg,

publicado em 1690, que fórmula, agora com sólida base filosófica e

crítica, a visão naturalista da atividade intelectual com suas

inevitáveis implicações éticas, pedagógicas e doutrinárias mio campo da

deficiência mental. A meta última do Essay era mostrar a "natureza

e as limitações do entendimento humano como argumento para fundamentar


a

tolerância religiosa e filosófica" em lugar do preconceito e da rigidez

dogmática.

22 - Deficiência mental
Com Locke, o princípio do primado da sensação passa, de preceito

didático pragmático a princípio filosófico e pedagógico geral, a

fundamentar uma teoria do conhecimento e simultaneamente uma doutrina

pedagógica com sua decorrente teoria da didática: "A experiência é o

fundamento de todo o nosso saber. As observações que fazemos sobre os

objetos sensíveis externos, ou sobre as operações internas da nossa

mente, e que percebemos, e sobre as quais refletimos nós mesmos, é o


que

supre o nosso entendimento com todos os materiais de pensamento."


Assim,

o uso da razão, embora capaz de produzir idéias e conhecimentos, será

exercido sempre, em última análise, sobre os dados da sensação.

Não há, pois, idéias e miem operações da mente que não resultem da

experiência sensorial, e uma prova disso é que "é evidente que todas as

crianças e idiotas não têm a mínima percepção ou pensamento delas . . .

parece-me quase uma contradição dizer que há verdades estampadas

[imprinted] na alma e que ela não percebe ou não entende." Se, pois, as

idéias e, consequentemente, a conduta são o produto da experiência

individual, não se justifica a perseguição moralista ao deficiente

e não se admite que a deficiência seja uma lesão irreversível mas um

estádio de carência de idéias e operações intelectuais semelhante ao do

recém-nascido. Cabe à experiência e portanto ao ensino suprir essas

carências, pois a "mente é entendida como uma página em branco, sem

qualquer letra, sem qualquer idéia".

A definição do recém-nascido e do idiota como tabula rasa tem

implicações decisivas para a vida e o ensino dos deficientes mentais: a

visão naturalista do educando, liberta de preconceitos morais ou

religiosos, a ênfase mia ordenação da experiência sensorial como

fundamento da didática, a afirmação da individualidade do processo


de aprender, a insistência sobre a experiência sensorial como condição

preliminar dos processos complexos de pensamento, a importância dos

objetos concretos na aquisição de noções.

Se desde o Essay até hoje a didática especial para deficientes

continua incipiente, certamente não se deve tal inércia a qualquer

dubiedade do pensamento de Locke.

É surpreendente, e ao mesmo tempo decepcionante, que tais idéias, a

três séculos de distância, pareçam modéstias, atuais.

A teoria do conhecimento - e portanto da aprendizagem do Essay

determina tão poderosamente a didática de hoje, como

De Marguités a Victor de Aveyron - 23

influenciou o pensamento educacional de Rousseau e de Condillac, que

geraria o primeiro programa sistemático de educação especial, elaborado

pai' Jean Itard em 1800. Tal esforço só se explicaria pela crença na

educabilidade do deficiente mental, uma atitude impossível antes da

doutrina lockeana da tabula rasa, alicerçada solidamente na análise

crítica do processo de conhecimento, e não em preconceitos, ainda que

fossem humanitários. Essa análise que conduz à afirmação de que


"hábitos

e defeitos intelectuais [são] contraídos . . . são freqüentes . . .

[Intelectual habits and defects . . . contracted ... are frequent ...]"

leva à concepção da eficiência e da deficiência mental como processos


de

interação adequada ou inadequada com o ambiente, quer a nível a


sensação

quer a nível da reflexão sobre as idéias geradas pela percepção

sensorial.

As propostas pedagógicas implicadas na teoria do conhecimento, de

Locke, deveriam determinar alterações profundas na atuação da sociedade


no trato com os oligofrênicos ou amentes e, de fato, geraram uma

verdadeira revolução na teoria e na prática educacional em geral, visto

que abalaram decisivamente a "teoria" da aprendizagem então vigente e

dominante.

Mas essa derivação pedagógica só se fez contra uma desoladora

inércia cultural, a considerável distância de tempo e somente depois


que

os ideais humanistas e libertários se difundiram amplamente nos


ambientes

acadêmicos, extravasando, depois, para as praças e os campos.

A deficiência, entendida agora como carência de experiências

sensoriais e/ou de reflexões sobre as idéias geradas pela sensação,

deverá ainda esperar os escritos de Condillac e Rousseau para merecer a

atenção pedagógica de Itard e outros.

O leprosário

Até lá o oligofrênicos estará livre da sanha inquisitorial e da

intolerância religiosa aias continuará sem atendimento educacional,

embora alimentado e abrigado.

Inútil para a lavoura e o artesanato e consumidor improdutivo da renda

familiar, o deficiente não tem outro destino senão o asilo. onde se

protege do raio e da

- Deficiência mental 24

chuva, ganha alguma alimentação e deixa em santa paz a família e a

sociedade. Em verdade, a família e o grupo social fecham os olhos a um

problema que não pode mais ser esquecido, após as afirmações de homens

como Paracelso, Cardano e Locke: o deficiente pode ser treinado ou

educado e tem direito a isso.

O apego residual do século XVIII a uma noção fatalista da


deficiência parece uma desesperada tentativa de isentar a família e o

poder público do dever de educar os amentes e criar instituições

adequadas para isso. Já não se pode, justificadamente, delegar à

divindade o cuidado de suas criaturas deficitárias, nem se pode,

em nome da fé e da moral, levá-las à fogueira ou às galés. Não há mais

lugar para a irresponsabilidade social e política diante da deficiência

mental mas, ao mesmo tempo, não há vantagens, para o poder político e

para o comodismo da família, em assumir a tarefa ingrata e dispendiosa


de

educá-lo.

A opção intermediária é a segregação; não se pune nem se abandona o

deficiente, mas também não se sobrecarrega o governo e a família com


sua

incômoda presença.

A Europa aprendera na Idade Média, por ocasião das devastadoras

epidemias de lepra, a enfrentar o problema: inúmeros hospitais ou

leprosários, também chamados hospícios, foram construídos pela nobreza,

às vezes com uma suntuosidade que pareceria irônica. Obras-primas da

arquitetura ou meros casarões, sua função era abrigar e alimentar

o cristão enfermo e, ao mesmo tempo, afastá-lo do convívio social.

Passadas as epidemias, e sobretudo após atenuar-se a fúria


inquisitorial

e a calvinista, o leprosário representa a solução para o dilema social:

respeitar e socorrer o cristão marginal ou aberrante e ao mesmo tempo

livrar-se do inútil, incômodo ou anti-social.

Foi assim que grandes hospitais, como o de Bicêtre e a Salpêtrière

em Paris, Bethleheni na Inglaterra e muitos outros no resto da Europa


se

abriram para acolher piedosa e cinicamente, em total promiscuidade,

prostitutas, idiotas, loucos, "libertinos", delinqüentes, mutilados e


"possessos" que só na Salpêtríêre perfaziam, em 1778, um total de 8.000

pessoas.

É difícil dizer se o Essay de Locke pertence ao século XVIII ou ao

precedente, embora cronologicamente se ligue ao século XVII quer quanto


à

data de publicação,1690, quer quanto à sua laboriosa construção,


iniciada

cerca de quinze anos at1tes.

De Marguités a Victor de Aveyron - 25

26 - deficiência mental

Mas o maior impacto dessa obra se observa não só na filosofia do século

XVIII como em toda a cultura desse século, iniciado com essa revolução

quase copernicana

que desloca para a experiência individual o centro da teoria do

conhecimento e da teoria da moral, antes solidamente plantado no dogma


e

na autoridade. Tal é a repercussão do Essay que, por outro lado,

transforma a questão da deficiência mental, antes marcada pelo inatismo

das idéias e das operações mentais, agora expressa como história

pessoal de experiência sensorial e reflexiva.

A necessidade de enriquecer a percepção sensorial e de treino

intelectual ou mental não encontra socorro na psicologia de então, mais

.que tudo especulativa: as questões de conduta estão assumidas pelo

clérigo e pelo médico, embora o pedagogo já tenha a seu cargo tarefas

específicas de planejar e ministrar o ensino de alunos

normais.

Para que a sociedade admita e assuma a tarefa de educar o

deficiente será necessário algum tempo, até que surja o grande


movimento

libertário e naturalista e pregar


a igualdade de direitos entre os homens e a combater a artificialidade

dos fins, métodos e conteúdos do ensino usual, mesmo que destinado,

então, apenas a educandos

normais.

Condillac e a estátua

A influência mais sistemática do Essay sobre esse processo de mudança


na

filosofia e na prática educacionais será exercida através de um outro

ensaio, este de Condillac

(1715-1780), e publicado em 1746 com o título quase lockeano de Essai


sur

l'origine des connaissances humaines, bem como através do Traité des

sensations, de 1749,

também impregnado do sensualismo de Locke. Nessas duas obras, Condillac

dá à doutrina de Locke sobre o conhecimento uma formulação praticamente

psicológica, chegando

em alguns pontos a transformar uma teoria do conhecimento em teoria da

aprendizagem, de evidente significado pedagógico.

A este trabalho interessa mostrar que à educabilidade do deficiente,

irrecusável após o Essay de Locke, se acrescenta agora um esboço de

metodologia do ensino na

qual se poderia fundar

De Marguités a Victor de Aveyron - 27

método de educação infantil que, explorado adequadamente certos


aspectos,

viria a tornar-se uma didática especial para o deficiente mental.


Essa didática, que aparecerá, ainda inarticulada, no trabalho Itard,

estará solidamente ancorada na análise do processo de aprendizagem

contida no Essai e no Traité

de Condilac, que convém, pois, examinar.

As conclusões principais dessa análise são: não deve haver máximas


sobre

nada; todas as idéias devem nascer da sensação as operações da mente;

desse modo, as definições

são inúteis. i, as próprias operações da mente não são mais que a

sensação transformada. Por isso, qualquer conhecimento ou idéia é

basicamente uma sensação, seja produzida

pelos objetos externos (sensação) seja gerada pela percepção de


operações

mentais, isto é, objetos internos (reflexão).

Assim, as faculdades mentais como atenção, comparação, julgamento


(juízo)

ou, como as propunha Locke, a imaginação, a memória, o julgamento ou o

raciocínio são elaboração

da informação sensorial.

A estátua de Condillac é o símbolo dessa teoria. De fato, se qualquer

sensação pode gerar todas as faculdades, um organismo totalmente tabula

rasa, praticamente uma estátua,

ao qual se conferisse separadamente cada uni dos sentidos, deveria ser

capaz de ter todas aquelas faculdades a partir de um único canal senai,


o

olfato, por exemplo.

Assim, o entendimento abrangeria mas as operações (reflexivas e

conseqüentes "idéias de reflexão") o se dispusesse dos cinco sentidos.

Tomando-se como exemplo o sentido do olfato, como sensação primeira

existe na consciência da estátua somente uma coisa, ou um objeto: o


odor,
de uma rosa, por exemplo,

depois seguido aroma de jasmim ou de cravo. Se, então, existir na

consciência da estátua apenas unia dessas sensações, o odor de jasmim,

exemplo, com exclusão dos outros

aromas, o que ocorre é a atenção. Se, afastado o jasmim, persistir a

sensação de seu aroma, s a memória como a impressão persistente de um

objeto. A tua pode atentar

simultaneamente para a sensação anterior ou a impressão residual,


atual,

e assim exercerá a comparação; essa comparação percebe semelhanças ou

diferenças, produz-se

28 - Deficiência mental

o juízo ou julgamento (avaliação). As repetições da comparação

e do juízo constituem a reflexão e se a estátua, diante de uma

sensação desagradável, recorda uma sensação agradável, essa lembrança,

mais forte, será a imaginação. Esse conjunto de faculdades, geradas


pela

percepção sensorial,

é o entendimento.

As faculdades, descritas como operações que elaboram o material

sensorial, são o funcionamento natural da mente, ou seja:

são o entendimento. Assim, o entendimento precede os sinais ou símbolos

e, portanto, a linguagem. Desse modo, o raciocínio mais elaborado é

apenas uma extensão daquelas

faculdades, assegurada pelos sinais.

A teoria da aquisição de idéias, de Condillac, além de indicar uma

estratégia geral para a educação, oferece claras sugestões sobre a

natureza de eventuais retardos


no entendimento e, por inferência inevitável, princípios para uma

didática da aquisição de idéias por pessoas privadas de uni ou mais

órgãos sensoriais, ou incapazes

de operações simbólicas ou privadas de linguagem.

É óbvia a importância dessas idéias para os esforços ulteriores de


Itard

(e Seguin), que criarão a educação especial para deficientes mentais

entendida como metodologia

especial de ensino. Mas Condillac vai além, ao mostrar que limitada

apenas ao olfato ou a uni outro sentido qualquer, a estátua consegue

abstrair e generalizar idéias

e, ainda, tem- a idéia de número, de possibilidade, de duração, de

sucessão e de eu, esta constituída pelo conjunto das sensações que

experimenta e pelas que recorda.

Quando o ministro do Interior confia o selvagem Victor aos cuidados

médicos e pedagógicos de Itard a "teoria da estátua" encontra uma

oportunidade ímpar e inesperada

de comprovação. Desse fato resultarão acertos, erros e vieses de ltard,

como se verá mais adiante, tornado por um compreensível entusiasmo. Um

entusiasmo que, de

certo modo, destoa de considerações gerais do capítulo XVI do Traité.

Ali, a análise, ou seja, o método de Condilac aparece, como é visto por

Bréhier (1942), corno

unia declaração de humildade. De fato, ali se afirma que os métodos


mais

sofisticados são formas dos mais simples e que qualquer espírito ode

passar desses àqueles.

Assim, a invenção e a descoberta são mais que tudo uma questão de

estádio nessa marcha, da mera sensação à mais elaborada abstração. O

saber é o produto fatal do


método: "Quem inventa é o método, assim como quem descobre são os

telescópios." É bem verdade que ltard armou-se de uma natural humildade

ao assumir a educação de

Victor de Aveyron

De Marguités a Victor de Aveyron - 29

, mas é possível que o interesse em demonstrar a validade da teoria de

Condillac conduzisse a algumas mais que perdoáveis afoitezas.

Graças à obra doutrinária de Locke e de Condillac a educação especial


de

deficientes mentais se inaugura com caracteres definitivos: ela é

sensualista, admite a

gênese de idéias e processos mentais complexos a partir de idéias e

processos simples, admite que da percepção se passa a operações


incutais

não necessariamente

formais; que a formalização é apenas um modo de estender as operações

precedentes; que há estádios necessários e gradativos entre a percepção


e

as operações com

signos ou formais; que para efeito do exercício das faculdades mentais

não importa quais e quantos órgãos dos sentidos sejam empregados na

origem de conhecimento,

ou seja, na percepção sensorial; que

o domínio da linguagem não é essencial para o desenvolvimento do

entendimento (funcionamento das faculdades mentais); e, acima de tudo,

que as capacidades ou incapacidades

mentais são produto da experiência e das oportunidades de exercício de

funções intelectuais e não necessariamente dotes inatos, de natureza

anátomo-fisiológico ou
metafísica. Itard é o primeiro a empreender a aplicação prática desses

princípios de forma rigorosa e fiel.

Itard, Péreire e os surdos-mudos

Jean Marc Gaspard Itard (1774-1838), nascido nos Baixos-Alpes e educado

em diversos colégios religiosos, destinado por seu pai a ser bancário,

designado na guerra

revolucionária a trabalhar no hospital militar de Soliers sem nada


saber

de medicina, apaixona-se então pelo trabalho médico e prepara-se para a

carreira clínica;

após brilhantes estudos assume, aos 25 anos, o cargo de médico-chefe do

Instituto Imperial dos surdos-mudos na rua Saint-facques. Nesse ano,

graças a seu prestígio

profissional como reeducador de surdos-mudos, o ministro do Interior da

França, Champagny, que bem sabia de sua habilidade e da "importância do

caso para o conhecimento

humano", confia-lhe a tarefa de educar o menino selvagem de Aveyron.

Esse encargo mostra bem a argúcia de Champagny. De fato, Itard era o

homem melhor preparado de paris para a empre

30 - Deficiência mental

sa, e não foi sem motivo que, ainda muito jovem, assumiu o Instituto a

convite do abade Card, então diretor do mesmo, substituindo o abade de

L'I2pée, que fora

o grande pioneiro no ensino de cegos. Itard vencera brilhantemente uni

concurso nacional como cirurgião, associando-se depois a Larrey e


Pinel,

dois grandes nomes

da ciência médica francesa. E, por seus trabalhos sobre gagueira,

educação oral e audição já despontava como o fundador da

otorrinolaringologia, campo em que criou

diversas técnicas e instrumentos que se tornariam de uso corrente.


Assim,

sua fama de teórico da fisiologia da fala e da audição crescia com sua

reputação como clínico.

Atendia sua clientela pela manhã, no centro de Paris, e dedicava todas


as

tardes ao asilo de surdos-mudos, como fisiologista e

otorrinolaringologista. A impotência

da medicina diante de numerosos casos de surdez e mudez o impressiona

vivamente, e Itard começa a colocar sua genialidade a criticar o atraso

da ciência médica e

a procurar um método para reeducar os surdos-mudos da rua Saint-


Jacques.

Quando os educadores do tempo, quase unanimemente, defendem o ensino do

gesto e da mímica,

Itard propõe a desumanização e adota a leitura de lábio e a expressão

oral como os recursos ideais para a reeducação. Nessa busca de um


método,

e sobretudo nessa

dedicação humanista e~ generosa aos pacientes do Instituto, Itard


emprega

quase quarenta anos de intensa atividade de pesquisa e de ensino num.'

devotamento tão

grande que o leva a cerrar as portas de seu rendoso consultório

particular.

A pertinácia e engenhosidade da pedagogia de Itard mio ensino de


linguagem aos surdos-mudos, bem como na reeducação do menino de
Aveyron,

que se sobrepõe à sua atividade

no Instituto, encontra clara explicação em sua sólida cultura médica e

filosófica. Suas idéias, derivadas cristalinamente do Essay de Locke e


da

teoria da estátua

de Condillac, o sensibilizam para as relações estreitas entre fonação e

audição, linguagem e pensamento, percepção e abstração, cultura e

inteligência, experiência

e criação. Desse modo, não surpreende que tenha sido um dos grandes

pioneiros da educação de surdos-mudos além de ser o primeiro pedagogo


da

oligofrenia e teórico

da educação especial de deficientes mentais.

No campo da educação de surdos-mudos, Itard teve que redescobrir, em

alguns aspectos, princípios e procedimentos que um seu precursor não

legara aos pósteros e muito

menos teria legado ao Instituto criado pelo abade de I'e.

De Marguités a Victor d Aveyron - 31

Como Itard fora conduzido, mais que tudo por sua generosidade e

altruísmo, a devotar-se ao Instituto desde 1799, assim também o


espírito

altruísta levara, algumas

décadas antes, um outro homem a dedicar-se ao ensino da fala aos surdos-

mudos: foi Jacob Rodrigues Péreire (1715-1780).

Apresentado ora como médico francês (Dickerson, 1980), ora como

matemático português, ora como pedagogo espanhol, Jacob Rodrigues


Péreire

nasceu de pais portugueses,


residiu em zona fronteiriça da Espanha, por motivo de perseguições

político-religiosas por ser judeu converso, e brilhou em Paris como

criador de uma revolucionária

metodologia para ensinar linguagem a surdos-mudos.

A preocupação com o problema nascera como um gesto de amor, no caso de

Péreire ou Pereira, pela irmãzinha nascida surda-muda vários anos


depois

dele. A observação

original e genialmente explorada que desencadeou sua pesquisa

metodológica teria sido a de que enquanto acalentada e abraçada pela


mãe

a irmãzinha emitia sons vocais,

mas quando acomodada no berço cessava qualquer vocalização.

Jacob imaginou e comprovou depois, o que hoje parece óbvio à distância


de

dois séculos, que a criança percebia pelo tato as vibrações toráxicas e

guturais do canto

materno, além de ver os movimentos labiais, concomitantes, da mãe.

Seu método, que começou a elaborar aos 19 ou 20 anos de idade,


consistia

em ensinar a articulação de fonemas e palavras a partir da sensação


tátil

visual e/ou auditiva

e, principalmente, com base na "memória dos movimentos dactilológicos".

Ao que parece, os 80 sinais dactilológicos de Pereira não se referiam a

símbolos gráficos e sim a movimentos labiais ou orais de articulação.


Não

eram unia espécie

de alfabeto gráfico, mas um código prosódico no qual os sinais digitais

indicavam pronúncias e não grafias. Numa segunda etapa Pereira ensinava


a

percepção e reprodução
da voz humana, a partir da percepção tátil das vibrações sonoras.

Finalmente, corno terceiro passo vinha o ensino da entonação e da

acentuação tônica, a primeira

assegurada pelo gesto e a segunda pelo compasso, o que lembra de perto


a

comunicação de um maestro com o solista da orquestra. Infe

De Marguités a Victor de Aveyron - 33

lizmente, não restaram da metodologia de Pereira mais que menções e

relatos de discípulos e admiradores.

Pereira antecipa - como Itard, a seu tempo - os princípios básicos

daquilo que vim-ia a ser no século XX a análise do comportamento


aplicada

ao utilizar os sinais

digitais, ou sua dactilologia, como estímulo para confirmar pronúncias

corretas e como indicador ou lembrete a recordar constantemente ao mudo

os movimentos labiais,

orais ou faciais essenciais a cada articulação específica.

A ligação da operação articulatória à sensação e da emissão


articulatória

concreta à sua simbolização formal (de modo a que o gesto seja não uma

linguagem expressiva

mas a instigação pai-a a diferenciação prosódica da articulação) parece

constituir o cerne do método de Pereira. Um método que ele jamais

publicou mas transmitiu

a numerosos discípulos entre os quais o abade Deschamps, sobre o qual

escreveu o Curso de educação de surdos-mudos e Corno substituir o


ouvido

pela visão. Seu método

foi atacado e contestado por outro pioneiro na área, o abade de l'Épée,

que receberia de Luís XVI aquilo com que Pereira sempre sonhara: o
financiamento da criação

de uni Instituto Nacional de surdos-mudos, o mesmo que depois seria

dirigido por seu adepto Itard.

A perda catastrófica do método de Pereira obrigaria Itard a redescobrir

praticamente todo o procedimento pedagógico de instalação da fala,

coordenada com a audição

ou com a percepção tátil das vibrações vocais. 12 óbvia aqui a quase

fatalidade do apelo à teoria da estátua de Condillac e, para além, ao

Essay de Locke.

A engenhosidade didática de Itard aliada à impossibilidade de


comunicação

fluente e precisa com seus pacientes e à experiência de obstinada

elaboração de programas

e recursos eficazes de treino prepara-o plenamente para inaugurar, com


a

chegada do selvagem de Aveyron, a história da educação especial de

deficientes mentais.

II

o mestre e o selvagem

O selvagem e o diagnóstico de Pinel

Os ideais do naturalismo humanista que floresciam com a segunda metade


do

século XVIII já haviam atraído a atenção dos intelectuais para as

distorções impostas pela cultura à livre manifestação e desenvolvimento


da natureza humana.

Mais, os filósofos começavam a ver na prática pedagógica a camisa-de-

força a tolher e deformar o homem que, agora, enfraquecida a inquisição


e

a fúria purgadora da Reforma e da Contra-Reforma, passava a ser visto

como naturalmente bom, institivamente puro e instintivamente generoso.

O homem selvagem como protótipo da pureza afetiva e intelectual passa

a ser um ideal da cultura pré-revolucionária e a

educação formal oficial começa a sofrer pesados ataques de Condillac,

Diderot, D'Alembert e principalmente de Rousseau, com a teoria do "bom

selvagem" formulada no Discours de 1754. Nessa obra Rousseau cita cinco

exemplos de selvagens naturalmente inteligentes e generosos, entre eles


o

menino-lobo de Hesse (descoberto em 1344), o 2.0 menino-urso da


Lituânia

(descoberto em 1694), os dois rapazes dos Pireneus (descobertos em


1719)

e o selvagem Peter de Hanover (achado em 1724).

Condillac, o grande inspirador de Itard, já mencionara em 1746, no

Essai, o segundo menino-urso da Lituânia.

36 - Deficiência mental

È nesse fluxo de idéias que se insere a decisão de Champagny de

enviar a Itard o selvagem de Avcyron como protótipo vivo do ideal

rousseauniano do selvagem inculto, naturalmente inteligente e generoso,

portanto um desafio ao engenho e à pertinácia virtudes que o trabalho


no

Instituto acrisolara cm ltard, e ao mesmo tempo uma promissora

oportunidade de confirmar seja a teoria do "bom selvagem" de Rousseau,

seja a da "estátua" de Condillac e, por ela, e da "tabula rasa" de


Locke.
O selvagem de Aveyron, a quem Itard daria o nome de Vmctór por seu

interesse especial pelo som o, fora capturado em 1797 na floresta de La

Caune, conseguira fugir do cativeiro para errar pela mata durante 15

meses, ao cabo dos quais alguns caçadores o recapturaram e confiaram à

guarda de uma viúva, da qual fugiu passada uma semana. Em 1800 deixa-se

prender no jardim do tintureiro Vidal e no dia seguinte é internado no

asilo de Saint-AfInque; um mês depois é examinado pelo naturalista

Bonnaterre, que registra em minuciosas observações sua estatura, seu


mur-

múrio ao comer, suas cóleras súbitas, o gosto pelas chamas, o sono

controlado pela aurora e ocaso, seus esforços para fugir, sua

incapacidade de compreender a imagem especular de si mesmo. Após a

inevitável repercussão jorna1ística~ CliampagllY, o ministro do


Interior,

ordena que ele seja enviado a Paris e confiado à ciência, ao afeto e a

habilidade de Itard, que o submete ao exame do mais célebre psiquiatra

francês da época, Philippe Pinel.

O diagnóstico de Pinel é desolador: Victor não é um indivíduo

desprovido de recursos intelectuais por efeito de sua existência

peculiar, mas um idiota essencial como os demais idiotas que conhece no

asilo de Bicêtre.

Malson (1964) lembra que a oposição de ltard ao diagnostico

jupiterianO de Pinel se deve à convicção de que o homem não nasce como

homem mas é construído como homem. Percebia, obviamente, a idiotia do

selvagem, mas não a entendia como devida a uma deficiência biológica e

sim como um fato de insuficiência cultural: ele era o bom selvagem, a

estátua e a tábula rasa.

lá, um ano após, Itard narra em sua genial Ménzoire sur les premiers

développemefltS de Victor de l'Aveyron (1801), o estado de enorme


déficit
perceptivo e intelectual do menino, incapaz de discriminações mesmo

grosseiras entre odores, ruídos, imagens, o que o torna um retardado

mental profundo, mais despreparado que um animal doméstico, incapaz de

articular qualquer som vo

38 - Deficiência mental

cal humano e de fixar sua atenção cm um dado objeto ou evento; Lis o


que

diz textualmente a Mémotre de 1801: "Procedendo, inicialmente, pela

exposição das funções sensoriais do jovem selvagem, o cidadão Pinel nos

apresenta seus sentidos reduzidos a um estado de inércia tal que esse

infeliz se encontrava, a tal respeito, muito abaixo de qualquer dos

nossos animais domésticos; seus olhos sem fixidez, sem expressão,


errando

vagamente de um objeto a outro sem jamais deter-se sobre algum, tão

~)ouCo i115-truídos e tão pouco exercitados pelo tato que não


distinguiam

um objeto em relevo de um corpo em pintura; o órgão do ouvido


insensível

aos mais intensos ruídos, como à música mais envolvente; a voz reduzida
a

um estado de completa mudez e não deixando escapar mais que um som

gutural e uniforme; o olfato tão pouco refinado que ele recebia com a

mesma indiferença o odor dos perfumes e a exalação fétida das


imundícies

de que estava repleto seu leito; enfim, o órgão do tato restrito às

funções mecânicas de preensão dos corpos. Passando em seguida ao estado

das funções intelectuais desse menino o autor do relato no-lo apresenta

incapaz de atenção, senão a objetos de suas necessidades, e,

consequentemente, incapaz de todas as operações do espírito que


implicam

essa primeira; desprovido de memória, de julgamento, de capacidade de


imitação e tão limitado nas idéias, mesmo que relativas às suas

necessidades, que ele não conseguiu ainda nem mesmo abrir uma porta ou

subir a uma cadeira para atingir alimentos pendurados acima do alcance


de

sua mão: finalmente desprovido de qualquer mcio de comunicação, não

ligando nem expressão nem intenção aos gestos e movimentos de seu


corpo;

passando com rapidez e sem qualquer motivo presumível de uma tristeza

apática às explosões de riso mais imoderadas; insensível a todo tipo de

afecções morais; seu discernimento não era mais que um cálculo de

glutoneria, seu prazer uma sensação agradável dos órgãos do gosto, sua

inteligência a aptidão de produzir algumas idéias incoerentes relativas

às suas necessidades; toda a sua existência, numa palavra, uma vida

puramente animal."

O quadro desanimador que nos oferece o diagnóstico de Pinel só não

desencorajaria quem tivesse ampla experiência no en51110 de outros

deficientes (surdos-mudos, por exemplo), quem tivesse engenho e arte


para

criar métodos, técnicas e materiais dc ensino, quem acreditasse nas

doutrinas da tábula 1-asa, da estátua e do bom selvagem, quem


conhecesse

as limitações do diagnós

O mestre e o :4 vagem - 39

tico e da terapêutica médica em casos como o de Victor, quem tivesse


pela

humanidade e pelo progresso do conhecimento hu;miano o mais generoso

interesse, quem por sua cultura e preparo profissional pudesse opor ao

saber da autoridade a autoridade de seu saber.

Não surpreende, pois, a recusa de Itard a abandonar Victor aos

depósitos de Bicêtre, uma idéia insinuada indisfarçavelmente no


relatório
de Pincl, que na Métnoire de Itard prossegue assim:

"Relatando em seguida diversas histórias colhidas cm Bicêtre, sobre

crianças atacadas irrecuperavelmente de idiotismo, o cidadão Pincl

estabeleceu entre o estado desses infelizes e o que apresentava o


menino

que nos ocupa, as aproximações mais rigorosas que davam necessariamente

ior resultado uma perfeita e completa identidade entre esses jovens

idiotas e o Selvagem de Am'eyron. Tal identidade conduzia


necessariamente

a concluir que, atacado por unia doença considerada, até o presente,

incurável ele não era capaz de qualquer espécie de sociabilidade ou

instrução. Tal foi também a conclusão a que chegou o cidadão Pinel . -

Itard e a medicina moral

Mais chegado às questões filosóficas que o grande clínico de Bicêtrc,

ltard vê o caso sob luz diversa: "Eu não aceitava tal opinião

desfavorável, e apesar da verdade do quadro e da justeza das apro-

ximações, ousava conceber algumas esperanças. Eu as fundamentava mia

dúplice consideração sobre a causa e sobre a curabilidade desse


idiotismo

aparente . - . essas duas considerações repousam sobre uma série de


fatos

que devo narrar e aos quais me verei forçado a acrescentar minhas

Próprias reflexões."

Aqui Itard aponta um problema permanente na área da deficiência

mental: o da avaliação. O diagnóstico de Pinel, pelo menos na


transcrição

de Itard, descura totalmente de fatores arnl)icntais e de história

pessoal do menino selvagem. Pohidamente ltard lembra que o quadro


traçado

por Pinel omite considerações sobre a causa da desoladora deficiência


de

desenvolvimento de Victor. Uma análise longitudinal desse


desenvolvimento

deficitário poderia mião só alterar o prognóstico devastador de Pinel

como

40 - Deficiência mental

também indicar condições a serem manipuladas para recuperar o

desenvolvimento faltante. Assim, a descrição preciosa de I'immel não

basta pai-a decidir. É necessário acompanhá-la de uni exame da gênese


do

quadro descrito. A identificação dos eventos determinantes do déficit é

imprescindível para decidir sobre a incurabilidade ou curabilidade do

"idiotismo" do selvagem.

Ê desse modo que as reflexões sobre a causa conduzem ltard a

prognosticar a curabilidade. Sua atitude é exemplar e precede de quase

dois séculos opiniões atuais. A avaliação deve levam cm conta a


história

de desenvolvimento, implicando-se a noção dc gênese do comportamento

complexo pelo comportamento simples, das operações formais pelas

concretas, das abstrações, em última análise, pelas sensações. Outra

idéia implícita na análise de Itard é a de que o "idiotismo" aparente


do

selvagem é mia verdade um retrato do desenvolvimento.

O mestre e o selvagem - 41

E para ele esse retardo aparece, em diferentes pontos da Mémoire, ora

entendido como mero atraso cronológico ora concebido como déficit do

processo genético do comportamento, implicando uma inexorável seriação


na
aquisição dos desempenhos e cujo ritmo pode ser retardado ou acelerado

dependendo da instalação de repertórios ou noções que são pré-


requisitos

evolutivos pala outras ações e noções.

A Mémoire lança, pois, e vigorosamente, fundamentos da teoria da

avaliação e da didática atuais na área da deficiência mental -

A causa do retardo de Victor ~, para seu mestre, a carência de

experiências de exercício intelectual devida ao seu isolamento e não


uma

doença incurável dita idiotismo. É na escassez da experiência e na

inércia intelectual dela resultante que reside a origem, a causa da

deficiência; e, em conseqüência, é na estimulação e ordenação da

experiência que se encontra a "curabilidade" do retardo.

Desse modo, refere ltard, "esse menino passou em absoluta solidão

quase sete anos em doze - . - É portanto provável e praticamente


provado

que ele foi abandonado aos quatro ou cinco anos, e que, se em tal época

ele devesse algumas idéias e umas J)OUC~5 palavras a um começo de

educação, tudo isso se teria cancelado de sua memória por efeito de seu

isolamento."

O que Itard pensa do retardo fica claro na citação seguinte:

"De fato, considerando-se o curto tempo de sua estada entre os homens,


o

Selvagem de .4veyron é muito menos um adolescente imbecil que uma


criança

de dez ou doze meses, e uma criança que tenha ciii desfavor seus
hábitos

anti-sociais, uma patológica inatenção, órgãos capazes de pouca

flexibilidade e uma sensibilidade acidentalmente embotada."

Diz ainda Itard: "Desse último ponto de vista sua situação tornava-se

uru caso puramente médico e cujo tratamento pertencia à medicina moral,


essa arte sublime criada na Inglaterra 1)01 Willís . . .

A medicina moral era a designação genérica para as atividades da

psicologia clínica e da psiquiatria, que se organizariam como


profissões

muito mais tarde. Alguns pontos devem sem- sahientados a propósito


desse

trecho: a deficiência é um problema médico, portanto passível de

tratamento; cabe ao médico alterar

42 - Deficiência mental

os hábitos (mores) pelo exercício de uma medicina moral. O exercício

dessa medicina é a correção ou instalação de noções e de repertórios

comportamentais; daí, designar ele de "ortopedia mental" ou


"ortofrenia"

tal medicina moral, verdadeiro método de modificação de comportamento,


na

conotação atual desses termos, em nenhum momento visa produzir,

neutralizar ou eliminar atividades otm estruturas neurais ou cerebrais:

consiste em arranjar condições emocionais e ambientais ótimas para a

ocorrência de comportamentos desejáveis e para a cessação de atividades

não queridas.

Efetivamente, era difícil para um médico de vinte e poucos anos, em

1800, admitir que a deficiência - fosse ela idiotia ("idiotismo"),

imbecilidade, amência ou oligofrenia - pudesse ser confiada aos


pedagogos

de seu tempo, seja pelo completo desinteresse das doutrinas pedagógicas

pelo assunto, seja porque não havia qualquer tradição didática para a

educação especial, seja ainda porque, tradicionalmente desde Paracelso


e

Cardano, amência e demência eram processos de patologia cerebral e,

portanto, assunto privativo do médico.

De todo modo, diversas vantagens se oferecem para o deficiente ao


passar das mãos do inquisidor às mãos do médico. Similarmente, o ganho
do

conhecimento humano nessa área é gigantesco quando a teoria da

deficiência é buscada nos tratados de patologia cerebral de Willis e de

Pinel e não mais no .Directorium dos inquisidores ou no Malleus

maleficaru,n. Há, de par, uma considerável evolução quando os

determinantes da deficiência não são demônios, miasmas e sortilégios e

sim disfunções ou displasia corticais, ainda quando meramente inferidas

ou totalmente hipotéticas. Mas o grande progresso ocorre quando tais

determinantes são procurados também mia história de experiências do de-

ficiente, pouco importando que a tal busca e subsequente tratamento se


o nome de medicina moral (remediação de hábitos) ou ortopedia cerebral

(reeducação de funções encefálicas).

O organicismo de Willis, que alcançaria sua versão mais refinada cm

tratados de Pinel, de Esquirol e de outros, e que marca o fim do dogma


na

teoria da deficiência mental, gerará, como veremos, sérios problemas em

séculos seguintes.

A metodologia de ltard, pioneira indiscutível na teoria e na didática

da deficiência mental, derivava muito menos do organi

O mestre e o selvagem - 43

cismo de seu mestre Pincl que dc sua intimidade com o pensamento de

Locke, Condihlac e Rousseau e, talvez em muito menor proporção, de

I'ereim-a e do abade de L'Ëpée.

Victor e a vida social


O programa traçado para a educação especial de Victor é um modelo de
bom

senso e humildade, indicação salutar para os adeptos de unia condução

tecnocrática, mais que tecnológica, do ensino.

O primeiro objetivo de ensino geraria hoje a mais santa cólera dos

técnicos em definição teórica de objetivos de ensino; é candidamemite

formulado por Itard: "Ligá-lo à vida social, tornando-a mais suave que
a

conduzida até então e, sobretudo, mais análoga à vida que acabara de

deixar.

Além do transparente respeito à pessoa do educando, essa formulação

caracteriza a estratégia de, Itard, baseada na contínua atenção às

oscilações motivacionais e na gradação das alterações ambientais

introduzidas na vida de Victor. ltard percebe que ao menino faltam

destrezas mínimas de convivência social e que, portanto, sua inserção

plena na vida sociocultural deve ser precedida de adequado treino


prévio

de socialização em condições menos traumáticas que as sofridas desde


sua

captura até a entrega ao desvelo de Itard e de Madame Guérin.

A experiência penosa de ser aprisionado, exibido como curiosidade

para leigos e especialistas, e sobretudo a percepção do próprio

despreparo para as exigências da cultura e a perda dos espaços e da

relativa segurança de sua vida anterior, aparecem para ltard corno


óbvias

explicações para o retraimento e a apatia que substituem a vivacidade e

hiperatividade de Victor, após sua chegada a Paris. Qualquer um que o

olhasse "encolhido em um canto do jardim" ou "escondido no segundo

pavimento atrás de entulhos" não prognosticaria grandes progressos ao

selvagem de ltard.

O risco de superficialidade em avaliações, mesmo as que hoje


chamaríamos de "levantamento de repertório", a confundir domínio de

tarefas com execução delas e, portanto, motivação para

44 - Deficiência mental

exercê-las, é claramente apontado por Itard (Mémoire): "É messe estado

deplorável que o viram certos curiosos de Paris, e que, após um exame


de

alguns minutos o julgaram digno de ser enviado às Petites Maisons; como

se a sociedade tivesse o direito de arrancar unia criança de uma vida

livre e inocente para mandá-la morrer de tédio num hospício e ali


expiar

a desgraça de haver decepcionado a curiosidade pública."

Após o diagnóstico de Pinel e o prognóstico que fez é difícil não ver

aqui o grande clínico como destinatário da crítica; de outro lado,


parece

meridiana a adesão de ltard à doutrina do "bom selvagem" de Rousseau e

sua rejeição à costumeira prática de segregar em hospícios os


deficientes

mentais.

É bem verdade que nesse tempo os hospícios haviam perdido sua função

de prisão ou masmorra, mas continuavam a servir comodamente para


segregar

os incômodos, fossem eles dementes, amentes ou mutilados. Terminara a

época dos açoites, dos grilhões e da fome, mas afora alimentação e


abrigo

nada mais se oferecia aos asilados senão, às vezes, uma precaríssima

assistência médica.

De todo modo, para o deficiente era o abandono definitivo, o

banimento irrevogável da sociedade e de seus recursos. Fora Valsava

(1666-1723), na Itália, o primeiro a alterar as condições restritivas


dos

asilos, freqüentemente antigos leprosários, abolindo algemas, grilhões


e

açoites e introduzindo a assistência médica nos hospícios. Por volta da

revolução francesa a Salpêtrière e Bicêtre foram reestruturados de modo


a

se tornarem instituições liospitalares, com a exclusão dos


delinqüentes,

alcoólatras, "possessos" e prostitutas.

Victor estaria destinado a l3icêtre, portanto a cuidados médicos e

total abandono social e à carência mais completa de oportunidades de

ensino ou educação. A confiança na educabilidade do selvagem não se

acompanha de qualquer precipitação: atento às questões de motivação e


às

peculiaridades da percepção de Victor, seu mestre sabe que qualquer

progresso médico-moral do educando deverá ser conseguido gradualmente.

Por ora, é "necessário torná-lo feliz à sua maneira, pondo-o a dormir

ao cair da noite, oferecendo-lhe com abundância os alimentos de seu

gosto, respeitando sua indolência e acompanham

O mestre e o selvagem - 45

dôo-o em seus passeios, ou melhor, em suas correias ao ar livre, e isso

em qualquer momento que as fizesse." (Mémoire)

A freqüência de passeios, brincadeiras na neve, giros pelo jardim e

períodos de contemplação quase estática dos caninos e do luar sugenb a

Itard algo que insinua o famoso "Princípio de Pm-emiiack": "Teria sido

tão inútil quanto inumano contrariar esses últimos hábitos, e era mesmo

parte de meus objetivos associá-los à sua nova existência para torná-la

mais agradável." Era diverso o caso dos hábitos "que tinham a


desvantagem

de excitar constantemente seu estômago e seus músculos e assim deixar


sem

ação a sensibilidade dos nervos e as faculdades do cérebro".


Após essa breve reminiscência da "estátua" de Comdihlac, ltard

conclui: "e assim consegui finalmente, e por graus, tornam suas comidas

mais mamas, suas refeições menos copiosas e menos frequentes, sua

permanência no leito muito mais curta e seus dias mais proveitosos para

sua instrução." A semelhança com conclusões dos melatómios de

"modificação do comportamento" é sentida, aqui.

Não se impõe qualquer "objetivo instrucional", nessa estratégia, comi

base mia literatura da área, que não existia, nem a partir de

procedimentos formais de programação de ensino: usam-se as atividades

preferidas como algo a ser respeitado e aproveitado para o ensino,

selecionam-se gradualmente os hábitos que favorecem a administração de

práticas, a serem escolhidas de acomodo com sua adequação às


deficiências

de sensibilidade e de exercício das "faculdades do cérebro". Uni modelo

acabado de atitude ante a tarefa da educação especial de deficientes

mentais.

Se ltard se deixa conduzem, nessa primeira empreitada, pela natureza

do educando, como pregava Rousseau (após Locke, Comenius, Montaigne e

Rabelais), na segunda etapa do trabalho reparte sua fidelidade emite a

natureza do aluno e a teoria pedagógica de que se imbuíra comi a


leitura

de Commdillac e Locke.

O despertar da estátua

Ntnmna segunda etapa da educação de Victor o objetivo é "despertar a

sensibilidade nervosa, pelos estimulantes mais enérgicos

46 - Deficiência mental
e, às vezes, pelas vivas afecções da alma". Em termos moldem-nos o

objetivo seria, talvez, exposto como: "compensar as deficiências

sensoriais, devidas à carência de estimulação oportuna, através de

intensa carga de estimulações exteroceptivas e interceptavas."

É o que se depreende das observações registradas por ltard, da

insensibilidade do selvagem de Aveyron a temperaturas extremamente


baixas

ou altas, como a dos ventos chuvosos, a de água fervente ou das brasas


da

lareira. ltard procedeu a um verdadeiro mapeamento da sensibilidade de

Victor comi - o emprego de poderosos estímulos olfativos, como o rapé


ou

tabaco introduzido nas narinas sem provocar espirro ou lágrima.

Não escapa à argúcia do médico-educador o quanto é seletiva a

hipossensibilidade geral do educando: um ouvido apto a captar

imediatamente o rumor de uma noz ao ser partida não revela qualquer

susceptibilidade a intensos ruídos e até a estampidos de armas de fogo


e

petardos. Fiel à doutrina das faculdades da alma, Itard interpreta essa

seletividade lembrando que "urna falta de atenção por parte da alma

poderia simular unia falta de sensibilidade no órgão", a despeito de

Victor revelar uma debilidade sensorial geral.

Dessa consideração deriva a decisão de expor o menino a variações

abruptas de estimulação: "era meu plano desenvolver (a propriedade

nervosa da sensibilidade) por todos os meios possíveis e preparar o

espírito à atenção, dispondo os sentidos a receber as mais vivas

impressões." O efeito visado é mental -a atenção - como resultante do

exercício sensorial diferencial.

O treino se inicia com a sensibilidade tátil, através da exposição a

temperaturas muito altas em banhos de duas ou três horas com duchas


quentes repetidas sobre a cabeça. Após algum tempo "nosso jovem
selvagem

mostrava-se sensível à ação do frio, usava a mão para provar a

temperatura do banho e o rejeitava se não estivesse morno".

A estratégia flexível da pedagogia de Itard aparece clara nesse ponto

da Mémoire, como em muitos outros; da recusa do banho muito quente e da

sensibilidade ao frio Itard aproveita-se para conseguir que Victor

aprecie a função das roupas como recurso para obter unia temperatura

confortável e, imediatamente, "uma vez conhecida essa utilidade não


havia

mais que um passo a dar-se para forçá-lo a vestir-se sozinho. Nós o

conseguimos após alguns dias deixando-o toda manhã exposto ao frio, ao

48 - Deficiência mental

lado de suas roupas, até que ele mesmo conseguiu servir-se delas." E o

oportunismo do método não pára aí, a nova aquisição

- vestir-se - é agora aproveitada como degrau de comportamento


preliminar

ou pré-requisito para nova aprendizagem: a de manter secas suas roupas


e,

por extensão, sua cama. ltard prossegue: "Um recurso semelhante bastou

para dar-lhe, ao mesmo tempo, hábitos de asseio; a ponto de a certeza


de

passar a noite numa cama fria e úmida acabar por acostumá-lo a levantar-

se para satisfazer suas necessidades."

A habilidade de explorar uma aquisição como pré-requisito de outra, e

que Itard demonstra em inúmeros pontos de trabalho, corresponde a

estratégias muito recentes da chamada modificação de comportamento. Mas

esse pioneirismo corre por conta da criatividade de Itard. Sua

preocupação é, sempre, despertar- a estátua partindo da sensação; aqui

reside outra marca de sua pedagogia: os desempenhos adequados não são


seus objetivos, são apenas sinais de exercício de funções da mente e, a

um tempo, recursos para provocar o exercício de outras faculdades ou da

mesma faculdade diante de novos objetos, internos e/ou externos.

Por isso, não é de causar espanto sua decisão de juntam' aos

excitantes térmicos, outros, das afecções da alma. Convém notar que a

consciência dos próprios estados emocionais ou outros estados internos,

uma das metas prioritárias de ltard e de seu discípulo Seguin, é hoje

olimpicamente transcurada por muitos tecnólogos da educação e da


educação

especial.

Diversamente, para Ltard o progresso do aluno não reside apenas mia

extensão e crescente complexidade de suas operações sobre o meio;


requer

também, e essencialmente, a "reflexão" apregoada por Condiilac: a

elaboração mental da experiência, agora utilizada como objeto interior


a

ser conhecido com justeza a precisão. Tal é a função das "afecções da

alma": servirem como estímulos ou excitantes internos. Obviamente, a

"reflexão" de Condihlac é mais abrangente que o conhecimento da mera

sensação ou estados emocionais, mas é nesse nível que ltard resolve

trabalhar, ainda para desenvolver a sensibilidade, e agora para objetos

interiores.

"Eu não provocava sua cólera senão a grandes intervalos de tempo, para

que seu acesso fosse mais violento e sempre com uma aparência bem

evidente de justiça. E notei então que, às

O mestre e o selvagem - 49

vezes, no ímpeto de sua cólera, sua inteligência parecia adquirir uma

certa extensão que lhe fornecia, para superar o problema. alguns

expedientes engenhosos."
Após narrar outros procedimentos para provocar a cólera e, muitos,

para evocar a alegria de Victor, Itard resume seu êxito:

"Tais foram, dentre uma multidão de outros, os estimulantes tanto


físicos

como morais com que procurei desenvolver a sensibilidade de seus


órgãos."

Trata-se, a despeito de todos os sucessos de aquisição de repertório

comportamental, de meros exercícios para desenvolver a sensibilidade.

Convém notar, Ltard não programa tarefas a serem dominadas: ajusta

tarefas a funções (sensoriais ou mentais) que quer desenvolver. Essas

funções são visadas de forma hierarquizada e gradual e, note-se também,

são definidas ou escolhidas segundo sua importância para o ajustamento

social e emocional do educando.

São "critérios" de programação que convém recordar nos dias de hoje no

campo da educação especial.

A esta altura, fica evidente a vinculação determinante de ltard à

teoria da estátua, ou seja, à metafísica de Condihlac, uni aspecto que

nierccc realce pois determinará impasses no processo educativo de


Victor.

O princípio da equivalência dos sentidos para efeito de funcionamento


da

mente ou do intelecto é. por exemplo, plenamente adotado por ltard, mas


a

possibilidade de o exercício de uni sentido favorecer e refinar a

sensibilidade de outro, também admitida por Condillac. não se confirma

plenamente no caso de Victor, o que leva seu mestre a uma brilhante

hipótese de fisiologia sensorial.

"Obtive após três meses um excitamento geral de todas as forças

sensitivas: o tato se mostrou sensível à impressão de corpos quentes e

frios, lisos e ásperos, moles ou duros . . O olfato também ganhou muito


a

partir dessa mudança. A menor irritação levada a esse órgão provocava


uni

espirro - . . O refinamento do sentido do gesto foi ainda mais


marcado ..

Contudo, esses resultados não se estenderam a todos os órgãos. Os da

vista e do ouvido não os partilharam, sem dúvida porque esses órgãos,

muito menos simples que os outros, necessitavam de uma educação

particular e mais demorada. como se verá mais adiante. O melhoramento

simultâneo dos três sentidos em conseqüência de estimulantes aplicados

sobe a pele, enquanto esses dois últimos

permaneceram estacionários, é um fato precioso digno de se apresentar à

atenção dos fisiologistas. Isso parece provar - . - que os sentidos do

tato, do olfato e do gosto não são mais que modificações do órgão da

pele; enquanto os do ouvido e da vista, menos exteriores, ... estão

sujeitos a outras regras de aperfeiçoamento e devem, de algum modo,

familiar uma classe separada."

Com esta citação queremos sublinhar duas características da pedagogia

itardiana e, a nosso ver, distintivas também de urna genuína educação

especial: a consideração dos repertórios comportamentais e sua produção

como uma questão de funções do organismo, além do problema de


metodologia

ou procedimento de treino e a natureza propedêutica atribuída ao treino

sensorial, com seu corolário: os materiais e os passos da instrução


devem

adequar-se aos limiares perceptivos peculiares do órgão sensorial

implicado.

São cuidados de Itard pouco a pouco esquecidos por nós, como efeito

dos êxitos de uma abordagem tecnológica do ensino, derivada dos estudos

sobre o condicionamento operante, a minimizar aspectos orgânicos em


favor

da supervalorização das técnicas de manipulação de estímulos.

As lições que nos ficaram da Mémoire de Jean Itard são muitas. A


Ménzoire não é texto que se absorve em apenas uma ou duas leituras. Há

unia riqueza de conteúdos em cada procedimento ou explicação de Itard


que

deriva da natureza especial de seu trabalho, determinado a um só tempo

por razões afetivas e humanitárias poderosas, por princípios


filosóficos

definidos e ordenados numa doutrina do conhecimento, por- restrições e

peculiaridades fisiológicas do aluno e por limitações e precariedades


dos

recursos e da situação de ensino. Em síntese, a educação de Victor é


uni

esforço humanitário, metodológico e didático condicionado cm cada passo

por peculiaridades biológicas do educando.

É dessa multiplicidade de determinações que resulta a múltipla riqueza

do n'dato de Itard. A atualidade, presente em muitos aspectos de sua

doutrina, à distância de quase dois séculos, resulta porém de uma

característica inalienável, ontem como hoje, da educação especial: a

individualização do ensino entendida não como mera segregação

metodológica do educando, aias como ajustamento de programas,

procedimentos e critérios de avaliação às

mestre e o selvagem - 51

peculiaridades do aluno como pessoa com desejos, aversões, interesses e

inércias e como organismo biológico mais ou menos equipado de funções

sensoriais e corticais.

O método de educação foi criado para Victor segundo suas motivações,

sucessos e limitações.

Em Itard, essa individualização não é unia necessidade, devida à

carência de experiências similares conhecidas, mas o produto de unia

postura filosófica ante o ser humano, diante do educando e frente ao


organismo biológico a ser posto em funcionamento adequado.

O selvagem descobre os outros seres

O repertório final de noções e idéias não é, pois, produto da mera

parafernália técnica ou tecnológica do ensino. As idéias aparecem e se

estendem como conseqüência da curiosidade e de outras necessidades,


mais

biológicas ou mais culturais, bem como da multiplicação das relações


que

se estabelecem com os objetos ou pessoas do ambiente. É esse,

literalmente, o objetivo da terceira etapa do treino de Victor.

Desiludido, após numerosas tentativas de conquistar o interesse do

aluno em jogos infantis, Itard percebe que as motivações predominantes


do

aluno são ainda primárias, corno suas necessidades digestivas, nas


quais,

portanto, deve fundamental seus esforços de ampliar os interesses e,


com

isso, as idéias de seu selvagem.

O emprego de jogos que agucem a atenção e a curiosidade poderá ser

eficaz mas somente se ao cabo de seu manuseio resultar alguma


recompensa

digerível. Deixemos que o médico pedagogo nos conte seu procedimento:

"Consegui, contudo, ligá-lo algumas vezes a alguns divertimentos que

tinham relação com suas necessidades digestivas - - . eu colocava


diante

dele, viradas de boca para baixo, sem qualquer ordem simétrica, várias

taças de prata sob uma das quais eu colocava uma castanha. Certo de
haver

obtido sua atenção eu revirava cada uma das taças, exceto a que
escondia
a castanha. Após haver-lhe demonstrado dessa maneira que elas miada

continhanii e havê-las recolocado na mesma

54 - Deficiência mental

Empolgado pelo fato, em si mesmo comovente, ltard parece

esquecer que o relato é dirigido ao ministro do Interior, mas ele

está atento para a dificuldade de ser entendido: "Talvez eu seja

compreendido se recorda a influência enorme que têm sobre

o espírito da criança essas ternuras inesgotáveis, essas

pequenas ninharias rotineiras, postas pela natureza no coração de tinia

mãe, que fazem desabrochar os primeiros sorrisos e nascer as primeiras

alegrias da vida." Afora a beleza literária, esse trecho repete uma


idéia

freqüente de ltard e também de óbvia atualidade: ele vê a deficiência

mental, ou o desenvolvimento bem-sucedido, como um processo cumulativo


no

qual há fases ou estádios encadeados, de sorte que carências graves nos

primeiros comprometerão o desemprego nas idades ulteriores, como se o

desenvolvimento fosse uma contínua gênese de operações e desempenhos


mais

complexos e refinados a partir de aquisições preliminares.

É com essa preocupação "genética" que ltard inicia o relato

1 da quarta etapa da educação de Victor, atribuindo a surdez seletiva


do

aluno à falta de experiências mais precoces com os sons

da voz humana. De fato, o selvagem de Aveyron mostrava grande

acuidade auditiva para ruídos que se referissem às suas necessidades

básicas, como "quando se estalava o mais suavemente

possível a casca de uma noz" ou quando "apenas se tocava levemente

a chave do quarto onde se achava trancado". Contudo,

seu ouvido não era capaz senão em mínima medida de captar e


1 discriminar a articulação de sons.

1 Por que Victor não fala?

Essa consideração preliminar é fundamental para explicar o me-

1 lancólico resultado da quarta etapa, que visava "conduzi-lo ao

uso da palavra determinando o exercício da imitação dela pela

lei imperiosa da necessidade". A questão básica é: se o selvagem

não é surdo, por que ele não fala? E a resposta vem logo após:

1 "Para falar, não basta perceber o som da voz, é preciso distinguir

a articulação desse som; são duas operações bem distintas

e que exigem do órgão duas condições diferentes. Para a primei

1)

56 - Deficiência mental

ra, basta um certo grau de sensibilidade do nervo acústico; para a

segunda, é necessária uma modificação especial dessa sensibilidade ...;


a

palavra é unia espécie de música, à qual certos ouvidos, ainda que bem

constituídos, podem ser insensíveis." O que não parece a Itard ser o


caso

de Victor, embora essa opinião repouse sobre escassas observações. Aqui

se registra a preocupação de ltard com ajustar seu ensino aos rígidos

similares que o isolamento fixara à sensibilidade auditiva de Victor e

que restringem as opções didáticas, dada a escolha preliminar da


imitação

como recurso de ensino.

Se esta parte da Mémoire não ostenta o tom vitorioso que os êxitos

anteriores proporcionavam, é nela que se retrata com meridiana limpidez


a

teoria da deficiência mental cm que se ancora a didática itardiana.

Excluída a hipótese de lesão orgânica dos órgãos da fala, escreve

Itard: "se não repetia os sons da voz não se deveria acusar uma lesão

orgânica desta, mas o desfavor das circunstâncias. A falta total de

exercício torna nossos órgãos incapazes para suas funções: e se isso

ocorre com órgãos já postos em uso, o que ocorrerá aos que crescem e se

desenvolvem sem que qualquer agente tenda a pô-los em ação?"

Até aqui transparece a permanente consciência do mestre da poderosa

determinação orgânica de seus resultados pedagógicos, à qual se junta a

seguir mais unia evidência de sua concepção psicogenética da


deficiência:

"são necessários pelo menos dezoito meses de unia educação solícita


para

que a criança balbucie algumas palavras; e se desejaria que um rude

habitante das florestas que não está na sociedade senão há catorze ou

quinze nesses, dos quais passou cinco ou seis entre os surdos-mudos,

estivesse já em estado de falar! Não apenas isso não se deve esperar,

aias será necessário, para atingir esse ponto importante de sua


educação,

muito mais tempo, muito mais esforços que os necessários com a menos

precoce das crianças. Esta miada sabe, mas possui em grau elevado a

capacidade (de aprender tudo: pendor inato à mutação, flexibilidade e

sensibilidade excessiva de todos os órgãos, mobilidade perpétua da

língua, consistência quase gelatinosa da laringe - . ." Além dessas

condições preliminares de equipamento anatomofisiológico, e graças a

elas, comportamentos arquétipicos, pré-requisitos para o de falar são

assegurados na criança normal, conforme os enumera Itard: "tudo, em uma

palavra

O mestre e o selvagem: - 57
tudo concorre para produzir na criança esse murmúrio constante,

aprendizagem involuntária da voz, que favorece ainda a tosse, o espiro,

os gritos dessa idade e mesmo os choros, os choros que devem ser

considerados não apenas indícios de uma viva excitabilidade como,


ainda,

um móvel poderoso, aplicado sem interrupção e nos tempos mais oportunos

aos desenvolvimentos simultâneos dos órgãos da respiração, da voz e da

palavra. Que me assegurem essas grandes vantagens e eu respondo pelos

seus resultados."

A qualquer estudioso da educação especial não escapará, sem dúvida, a

atualidade do enfoque metodológico e teórico que essas palavras


resumem.

Pouca importância tem, à vista de tal argúcia, que o esforço de


produzir

a pronúncia de algumas palavras por Victor tenha redundado quase em


pleno

fracasso, de resto um insucesso abundantemente desculpável, diante das

precaríssimas condições orgânicas e, portanto, psicogenéticas do

educando.

Não é, pois, a educação especial uma questão de procedimento,

meramente. Por mais engenho que o método ostente ele é condicionado


pelos

limites que a ontogênese fixa ao educando, enquanto ser capaz de

perceber, refletir e atuar sobre o seu meio. Nenhum milagre resultará


da

mais dedicada e acurada seriação de dificuldades perceptivas ou

intelectivas como marca da mais "adequada" técnica de ensino se a

programação dos materiais e procedimentos de instrução não respeitar,

antes e durante a aplicação, as restrições orgânicas do educando.

No ensino da fala, Itard tentou e conseguiu comi relativa rapidez que

o alumio pronunciasse eau (água) e lait (leite). A despeito de todo o


seu

organicismo realista e funcionalista, não obstante sua obstinada

confiança e paciência, e apesar da plena consciência das limitações de

Victor, o mestre demonstra aqui uma rigidez quase inexplicável, que


beira

a ingenuidade, não fora a impregnação de sua didática pela filosofia de

Condillac.

Para que essa nnsmnuação não soe injusta é preciso voltar ao texto da

Mémoire. Ali se afirma que de nada valia, para o objetivo colirnado,


que

Victor pronunciasse bem ou mal as palavras eau ou lait, e isso porque


não

as dizia como designativos de objetos, "como sinal da necessidade". E o

mestre deplora que, recebido o leite "a maneira de recompensa" Victor

diga lait "como uma vã exclamação de alegria". A idéia de que a palavra

deve

58 - Deficiência mental

surgir como sinal da necessidade e, portanto, corno uni código ou

símbolo, implicando a ausência do objeto ou, pelo menos, a precedência


do

sinal, foi o calcanhar-de-aqtniles da tentativa pedagógica de Itard.


Essa

idéia proviria, cru linha direta, das obras de Condillac. Despertada a

estátua, como demonstrado mios capítulos precedentes da Mémoire, cabia

agora fazê-la falar, mas falar com o sentido que a palavra deveria ter

"se essa palavra houvesse brotado de sua boca antes da concessão da


coisa

desejada, teríamos conseguido: o verdadeiro uso da palavra teria sido

distinguido por Victor; ter-se-ia estabelecido uni ponto de comunicação

entre ele e eu e os mais rápidos progressos decotretianrn desse


primeiro
sucesso."

Um gênio precursor de numerosas técnicas do que hoje se chamaria

modificação de comportamento, que entende a função das recompensas para

fortalecer comportamentos não percebe aqui algo óbvio: que a palavra

deveria ser recompensada muitas vezes independentemente de sua função


de

sinal para, somente num segundo tempo, poder-se exigir que adquirisse
tal

função. Itard pretende que, imediatamente, a palavra seja o "sinal da

necessidade".

As razões do insucesso

Três fatores poderiam explicar a pressa do mestre: com os surdos-mudos


do

abade Sicard, as primeiras palavras já tinham tal função e a longa

convivência com os surdos-mudos intelectualmente normais distorcia a

avaliação das possibilidades de Victor; a palavra como elemento de

comunicação e corno recurso de enriquecimento cultural era a


consagração

da autonomia de Victor corno pessoa civilizada e, portanto, o


coroamento

de todo o esforço pedagógico precedente: era a verdadeira meta,

subjetiva, de Itard; por último, a ânsia de demonstrar que em todos os

seus passos a aquisição do conhecimento seguiria o modelo de Condillac.

O qn~ne se nota rua Mémoire é que desse ponto em diante a didática de

Itard continua criativa, embora perca em flexibilidade, corno se,


falhado

o alvo principal, Victor continuasse merecedor de dedicação e engenho

pedagógico mas sem o fascínio

O mestre e o selvagem - 59
do desafio revolucionário que ostentava ao chegar às mãos do mestre. É
a

intenção do treino que muda desde então: "Somente quando acabei de

despejá-lo na caneca que me adiantava é que a palavra lait lhe escapou

com grandes demonstrações de prazer, e não foi senão quando despejei


mais

uni pouco, como uma recompensa, que ele a pronunciou pela segunda vez.

Por aí se vê que esse tipo de resultado estava longe de cumprir minhas

intenções.

Eis a questão:. pela primeira vez ltard define uni teto a ser

atingido pelo educando, e pela primeira vez sua argúcia é comprometida

pela definição prévia do objetivo a alcançar. Victor lhe mostra de modo

irrecusável que a recompensa produz a repetição da palavra, mas não é a

palavra sinal, código.

Mas aqui, de par com o equívoco, o mestre de Victor depressa se

redime: "eu não dei mais importância às repetições espontâneas da


palavra

lait que ele passou a fazer e que ainda faz no correr da noite, quando

desperta. Após esse primeiro resultado renunciei totalmente ao método

pelo qual o obtive." Abandona-se o método, não o objetivo maior: a


plena

autonomia intelectual e social de Victor, à espera de condições "que me

permitam substituir tal método por outro, mais eficaz".

Após narrar os notáveis progressos ulteriores de Victor em linguagem

gestual, langage d'action, a quarta etapa se fecha com renovada

confiança: "sem dúvida virá uru dia em que as necessidades


multiplicadas

de Victor lhe farão sentir a necessidade de usar novos sinais - . -


Será,

talvez, nada mais nada menos que o que acontece à criança que de início
balbucia a palavra papa sem ligar a ela qualquer idéia e a vai
repetindo

em todo lugar e em diversas ocasiões, aplica-a depois a todos os homens

que vê, não chegando senão através de uma multidão de raciocínios e


mesmo

de abstrações a fazer dela unia única e correta aplicação."

Eis aí, magnificamente descrito, o processo de discriminação

progressiva da coisa a ser designada, do conteúdo ou significado da

palavra papa, exatamente como começara a ocorrer com a palavra lait.

Falhado o ensino, troca-se o método e procura-se seguir o curso natural

do processo de aprender.

Por considerar a Mémoire de ltard a pedra angulam do que hoje se

chama educação especial de deficientes mentais, e por nela ver um dos

mais geniais relatos pedagógicos da história no

60 - Deficiência mental

que tange à metodologia de ensino, é que nos detivemos a analisá-la,

projetando os trechos mais expressivos na sua forma textual. Forma essa

que Maria Montessori quis transcrever por mIem-o, à mão, vertendo-a


para

o italiano como recurso de apreender em seu pleno sentido a didática

itardiania.

Seguimos, em mais algumas páginas, essa análise, na segurança da alta

significação que a Mémoire temi, como exemplo de escrito e de esforço

didático, para a formação dos jovens educadores de deficientes mentais;

acompanharemos Itard na quinta etapa de seu esforço, repleta, como

veremos, de criações e reflexões precursoras da atual educação especial.

Criatividade e método
A mestria do médico-pedagogo retorna plena e brilhante, agora visando

"estabelecer por algum tempo sobre os objetos de suas necessidades

físicas as operações mais simples do espírito e determinar, a seguir, a

aplicação destas sobre objetos de instrução". Por operações simples

entende-se aqui as de identificar semelhanças e diferenças entre


objetos,

implicando processos de discriminação, generalização, basicamente a

abstração de propriedades dos objetos de modo a obter a formação de

diferentes tipos de conceitos. A noção de que as operações concretas


são

distintas das abstratas ou formais é nítida no relato de ltard, embora

designe estas últimas de "discernimento" ou "raciocínio", sobre a

operação concreta ou concomitante a ela. De fato, aqui o treino passa,

graças a engenhosas criações, da identificação grosseira de objetos à

discriminação de diferenças sutis e de matizes até a identificação de

letras e, finalmente, à associação de um padrão gráfico ao objeto que


lhe

corresponde, ou seja, de algum modo, a designação escrita do objeto. Os

preciosos materiais que ltard inventa serão aproveitados ulteriormente

por Seguia e por Maria Montessori, dada a riqueza e adequação que

ostentam.

Convém notar aqui algo curioso: o mestre visa primeiro os objetivos

de necessidades físicas e depois o domínio dos "objetos de instrução".


É

intrigante esse enfoque didático das operações

O mestre e o selvagem - 61

cometas e formais quando hodiernamente os estudiosos de programação de

ensino entendem os objetivos instrucionais como alvos preliminares a

atingir, secundados pelos chamados objetivos comportamentais de ensino.


Mais unia vez: Itard entende o desempenho observado, do aluno, apenas

corno recurso ou evidência do exercício de funções mentais, hoje

chamadas, com pequeno ganho semântico, processos cognitivos.

Primeiro, a didática se além ao concreto, enquanto nível de execução

exigido do educando, e à significação biológica do treino (e do

desempenho exigido). Só em uni segundo momento as operações com


materiais

"instrucionais" são visadas, já corno generalização daquele treino comi

"objetos das necessidades físicas". Contrariamente, o usual entre

tecnuólogos da educação é prescrevem- a cuidadosa gradação de

dificuldades do material instrucional corno condição preliminar para a

extensão ou generalização das operações daí decorrentes às situações


"não

pasteurizadas" da vida biológica ou social quotidiana.

A obra de ltard parece a cada momento urna advertência de que não há

sofisticação do material ou do procedimento didático que baste quando

falta a significação biológica da atividade requerida pelo treino,

enquanto satisfação ou redução de necessidades individuais do educando.

Na quinta fase do treino de Victor o relato é rico de invenções e

aplicações pioneiras de procedimentos como discriminação,


generalização,

inversão de discriminação, ,natching-to-samnple, discriminação

condicional, encadeamento, /ading ia e /ading out., que seriam criados


ou

descobertos (e devidamente adotados com mais ou menos deslumbramento)

apenas nos meados do século XX.

É paradoxal que hoje se veja nesses recursos tecnológicos uma

contribuição ex. novo da análise experimental do comportamento aplicada

ao ensino de deficientes mentais. A didática especial dos retardados

precede de quase dois séculos essa tecnologia. Considerando a teoria da


aprendizagem subjacente à moderna tecnologia do ensino poder-se-ia

argumentar que o sentido e o programa em que hoje são empregados


aqueles

recursos é que os toma originais: o amgumniciito não resiste ao mais


leve

exame, pois a teoria da aprendizagem - ou science o! leurning -

subjacente ao trabalho de Itard, de resto explicitada em numerosas

60 - Deficiência mental

que tange à metodologia de ensino, é que nos detivemos a analisá-la,

projetando os trechos mais expressivos na sua forma textual. Forma

essa que Maria Montessori quis transcrever por inteiro,

à mão, vertendo-a para o italiano como recurso de apreender em seu


pleno

sentido a didática ítardiana.

Seguimos, em mais algumas páginas, essa análise, mia segurança

da alta significação que a Ménzoire temi, como exemplo de

escrito e de esforço didático, para a formação dos jovens educa-

dores de deficientes mentais; acompanharemos Itard na quinta etapa

de seu esforço, repleta, como veremos, de criações e reflexões

precursoras da atual educação especial.

Criatividade e método

A mestria do médico-pedagogo retorna plena e brilhante, agora


visando "estabelecer por algum tempo sobre os objetos de suas

necessidades físicas as operações mais simples do espírito e

determinar, a seguir, a aplicação destas sobre objetos de ins-

trução". Por operações simples entende-se aqui as de identificar

semelhanças e diferenças entre objetos, implicando processos de

discriminação, generalização, basicamente a abstração de proprie-

dades dos objetos de modo a obter a formação de diferentes tipos de

conceitos. A noção de que as operações concretas são distintas das

abstratas ou formais é nítida no relato de ltard, embora designe

estas últimas de "discernimento" ou "raciocínio", sobre a operação

concreta ou concomitante a ela. De fato, aqui o treino passa,

graças a engenhosas criações, da identificação grosseira de objetos

à discriminação de diferenças sutis e de matizes até a

identificação de letras e, finalmente, à associação de um padrão

gráfico ao objeto que lhe corresponde, ou seja, de algum modo, a

designação escrita do objeto. Os preciosos materiais que Itard

inventa serão aproveitados ulteriormente por Seguin e por Maria

Montessori, dada a riqueza e adequação que ostentam.

Convém notar aqui algo curioso: o mestre visa primeiro os

objetivos de necessidades físicas e depois o domínio dos "objetos

de instrução". É intrigante esse enfoquem didático das operações

O mestre e o selvagem - 61

concretas e formais quando hodiernamente os estudiosos de programação


de

ensino entendem os objetivos instrucionais como alvos preliminares a

atingir, secundados pelos chamados objetivos comportamentais de ensino.

Mais unia vez: Itard entende o desempenho observado, do alumio, apenas

corno recurso ou evidência do exercício de funções mentais, hoje


chamadas, com pequeno ganho semântico, processos cognitivos.

Primeiro, a didática se além ao concreto, enquanto nível de execução

exigido do educando, e à significação biológica do treino (e do

desempenho exigido). Só em uni segundo momento as operações com


materiais

"instrucionais" são visadas, já como generalização daquele treino comi

"objetos das necessidades físicas". Contrariamente, o usual crmtt-e

tecnólogos da educação é prescrevei- a cuidadosa gradação de


dificuldades

do material instrucional corno condição preliminar para a extensão ou

generalização das operações daí decorrentes às situações "não

pasteurizadas" da vida biológica ou social quotidiana.

A obra de ltard parece a cada momento unia advertência de que não há

sofisticação do material ou do procedimento didático que baste quando

falta a significação biológica da atividade requerida pelo treino,

enquanto satisfação ou redução de necessidades individuais do educando.

Na quinta fase do treino de Victor o relato é rico de invenções e

aplicações pioneiras de procedimentos como discriminação,


generalização,

inversão de discriminação, matching-to-sample, discriminação


condicional,

encadeamento, fading iii e fading out., que seriam criados ou


descobertos

(e devidamente adotados com mais ou menos deslumbramento) apenas nos

meados do século XX.

É paradoxal que hoje se veja nesses recursos tecnológicos uma

contribuição ex. novo da análise experimental do comportamento aplicada

ao ensino de deficientes mentais. A didática especial dos retardados

precede de quase dois séculos essa tecnologia. Considerando a teoria da

aprendizagem subjacente à moderna tecnologia do ensino poder-se-ia

argumentar que o sentido e o programa em que hoje são empregados


aqueles
recursos é que os torna originais: o argumento não resiste ao mais leve

exame, pois a teoria da aprendizagem - ou science o! learning - sub-

jacente ao trabalho de Itard, de resto explicitada em numerosas

62 - Deficiência mental

passagens da Ménzoire, também precede a rationcl teórica da tecnologia

atual. Houve, na verdade, tiniu catastrófico esquecimento secular da


obra

de Itard cai favor- da difusão de outras tendências da psicologia e da

pedagogia. Pana-te desse esquecimento se deve, como veremos, à

popularidade da obra de Seguin, seu discípulo, mios Estados Unidos; uma

obra cuja originalidade não parecerá total menos mios aspectos teóricos
e

estritamente pedagógicos, a quem conheça os escritos de Jcami Jtard.

Quanto às operações sobre "objetos de suas necessidades físicas", o

procedimento do mestre consiste cai antepor obstáculos à satisfação dos

apetites do aluno. Esses obstáculos cr-anii sempre crescentes e sempre

novos, de modo que "só fossem superados com o exercício contínuo da

atenção, da memória, do julgamento e de todas as faculdades de seus

sentidos". Por- não poder contar com a sensibilidade auditiva de Victor


o

treino comi "objetos de instrução" se assemelha ao dos surdos-mudos. E,

de novo, ltard se vale dos procedimentos usados ria rua Sainit-Jacques

pelo abade Sicard, sucessor do abade de l'Épée, e cujo método para

ensinar a fala aos surdos-mudos era basicamente o de Jacob Péreire.

Seguindo a técnica de Sicard, Itard desenhou em um quadro-negro o

contorno de alguns objetos: unia chave, urna tesoura e um martelo, e

repetidamente colocava sobre cada desenho o correspondente objeto,


diante

dos olhos atentos do seu selvagem. A seguir solicitava o mestre que


este
lhe entregasse o objeto cuja figura indicasse comi o dedo. Na falta de

sucesso as tentativas se repetiam, ora com um objeto, ora comi uni dos

dois restantes, e como conseqüência Victor- resolveu a seu modo,

inteligentemente, a questão, trazendo, a cada pedido, os três objetos,

num verdadeiro "cálculo de preguiça". Era necessário que dirigisse sua

atenção para cada um dos objetos. Aqui se revela novamente a


criatividade

didática do mestre: ao invés de apresentam--lhe unia figura para

emparelhá-la a um objeto, por que não dai--lhe os objetos para que,


ainda

uma vez partindo do nível mais concreto, os apresasse com as


respectivas

figuras? Assim, os objetos foram postos sobre a mesa e os respectivos

desenhos pendurados corri pregos nas paredes do quarto, cuja arrumação

perfeita era um dos grandes gostos de Victor, já que rotineiramente

insistia em acertar a posição de quadros ou ornamentos das paredes


mesmo

que só ligeiramente incorretas. O sucesso foi nm-on lo: cada oh-

O mestre e o selvagem - 63

jeto foi imediatamente pendurado sobre o respectivo desenho. Sucessivas

mnuversoest da ordem, aumentos do número de desenhos e objetos e da

freqüência de inversões foram gradualmente superados, de modo tal que o

domínio das relações objetos figuras fosse completo.

O passo ulterior pai-a os alunos de Sicard era associar aos objetos

sinais gráficos postos ao redor de cada uni, riais precisamente letras

recortadas que compunham o nome do objeto. A relação, agora, é entre o

objeto e uru "desenho novo" (letras) não figurativo, tarefa que,

facilmente superada pelos surdos-mudos do abade, apresentou enorme

dificuldade ao pupilo de Itard.


Mais uma vez, se o ensino falha, muda-se o método. Mas essa troca é

precedida de uma análise da falha, uni exame cujo resultado reafirma o

cuidado com as peculiaridades orgânicas como marca imprescindível da

educação especial; é melhor ler ltard para que se perceba o alcance de

seu pensamento: •"Da figura de una objeto à sua representação


alfabética

a distância é imensa, e tanto maior para o aluno quando ela surge nos

primeiros passos da instrução. Se os surdos-mudos não se detêm diante

dessa distância é porque eles são, de todas as crianças, as mais


atentas

e as mais observadoras. Acostumados desde a mais tenra infância a ouvir


e

falai- comi os olhos eles são, riais que ninguém, treinados a apreciar

todas as relações dos objetivos visíveis. Era preciso, pois, encontrar


um

método mais análogo às faculdades ainda mais entorpecidas do nosso

selvagem, uni método no qual cada dificuldade vencida o elevasse ao


nível

da dificuldade a vencer. Foi com esse espírito que eu tracei nosso

plano."

Aqui não se sabe o que mais louvar; a flexibilidade dos pro-

cedimentos, o organicismo realista, a solidez da filosofia de cmi-sino,


a

modernidade do método, o apelo à individualização da didática ou, para

além de tudo isso, a modéstia e o pioneirismo do autor.

O novo programa explora as capacidades visuais de Victor e se reveste

de uma cuidadosa gradação de dificuldades: da comparação de figuras

diferentes na fora-ma e na cor passa-se à diferença só de cor, a novas

formas, a novas cores, a menores diferenças de forma e de cor e o

selvagem supera honrosamente os obstáculos sempre mais difíceis,


através

de novas comparações e novos julgamentos.


64 - Deficiência mental

Entusiasmado pelo sucesso, Itard intensifica demais o treinamento e

provoca a fadiga e irritação do educando, que ele mesmo atribui ao fato

de Victor não compreender a finalidade das tarefas que lhe impunha.


Essa

observação merece realce: as dificuldades da transição do domínio das

"operações concretas" ao das "operações formais" não é apenas uma


questão

de nível de abstração mas também um assunto de nível de significação


pes-

soal da atividade formal requerida.

Mas a insistência de Itard em progredir na direção de uma maior

abstração nas operações de Victor torna excessivamente aversivo o


treino,

de a modo a provocar agressões e destruições do aluno. O remédio

encontrado pelo mestre para reconquistar a docilidade do alumio é

espantosamente punitivo: simular intensa cólera, tomar o menino pelos


pés

e suspendê-lo sobre o vazio através de uma janela situada no quarto

pavimento do edifício. A descrição das reações de Victor é realmente

comovente, bem amais que a explicação do mestre sobre os motivos de tal

prática "de choque", De todo modo, "esse estranho recurso foi seguido
de

um sucesso, senão completo, pelo menos suficiente" para que o treino

prosseguisse: de formas coloridas, passa-se ao emparelhamento de

contornos dessas formas geométricas, com piem-mo brilho do aluno.

Agora, e só agora, "com o método novo, amais análogo às faculdades"

do educando, Itard retorna ao problema do emparelhamento de caracteres

gráficos aos objetos. Foram impressos em cartões os vinte e quatro

caracteres do alfabeto localizados um a um em três filas de seis


caixas.
Nelas Victor deveria colocam, conforme o modelo impresso, letras de
metal

recortado, primeiro dispostas era ordem alfabética e depois


embaralhadas.

Pouco a pouco Victor passa a dominar totalmente a tarefa.

Mas ainda não se tinha um desempenho comparável ao das crianças do

abade Sicard; para isso ltard, inspiradamente, resolve aproveitar-se de

uma motivação inesperada: a impaciência de Victor à espera de sua


caneca

de leite na hora do café da manhã. Madame Guérin, prevenida, retarda o

leite até que Itard disponha diante de si mesmo quatro letras, L-A-I-T,

simula ler a palavra lait e o serve ao mestre. Instado a repetir a

disposição das letras Victor o faz de forma inversa: T-l-A-L. O passo

seguinte é importantíssimo: o instrutor indica com o dedo, lentamente,

O mestre e o selvagem - 65

as transposições de letras a serem executadas para que resulte a


palavra

LAIT e Victor afoitamente as faz e recebe sua desejada caneca de leite.

O coroamento do "novo método mais análogo" e sem acréscimos abruptos

de dificuldade não tarda: cinco ou seis provas bastaram para que o

selvagem aprendesse ruão só a mecânica da composição da palavra como

também a relação desta com o objeto; e aqui convém, de novo, que o

próprio Itard nos conte o episódio ocorrido oito dias após a


experiência

acima: "E então se viu Victor vestido para a visita vespertina ao

Observatório, munir-se por sua própria iniciativa das quatro letras em

questão; colocou-as rio bolso e apenas chegou à casa do cidadão Lemeri

onde, coa-mo foi dito acima, vai todos os dias saborear leite, dispôs
os

caracteres sobre uma mesa, formando a palavra LAIT."

66 - Deficiência mental
O fato dispensa comentários e Itard passa a urna breve síntese dos

progressos de Victor e interpreta seus resultados: "Que conseqüências

maiores relativas à história filosófica e natural do homem decorrem já

dessa primeira série de observações! Que sejam agrupadas, classificadas

comi método, que sejam reduzidas ao seu justo valor, e se verá nelas a

prova Material das amais importantes verdades, daquelas verdades cuja

descoberta Locke e Condillac não deveram senão à força de seu gênio e à

profundidade de suas meditações."

Assim, coa-mo queríamos demonstrar, de nossa parte, Itard buscava e

achou nos progressos de Victor a confirmação concreta da tabula-rasa,


da

"estátua" e do "bom-selvagem" de Rousseau. É um resultado que


transcende

a essa epopéia pedagógica em que os heróis foram Victor e Itard, para

servir de filosofia básica de toda uma tecnologia de educação especial,

de uni-ma autêntica didática da deficiência mental. Boa parte do atraso

do conhecimento e da atuação social nesse campo se deve ao desastroso

esquecimento da Mémoire de 1801 de Jean Itard, cuja leitura deveria ser

obrigatória a quem se dedica ao ensino dos retardados mentais.

III

Pré-ciência e pseudociência

O nefasto "Tratado do bócio"

Pinel terá, certamente, sabido dos auspiciosos resultados de Itard

no ensino de Victor, o selvagem, que pelo prognóstico do grande


alienista

deveria estar inovando nas Petites Maisons de Bicêtre.


Como é possível tamanho descompasso entre a pedagogia (ou medicina

moral) de Itard e a rigidez fatalista da neuropsiquiatria de Pinel? O

diagnóstico e o prognóstico não admitem dúvidas sobre a

irrecuperabilidade do selvagem, rotulado, então, de idiota.

Quando Paracelso e Cardano entenderam e proclamaram que os amentes

(e dementes) não eram uma questão teológica ou moral, mas configuravam


um

problema médico, a intenção primeira era livrá-los de maus tratos e

injustiças já que sua anormalidade se explicaria por infortúnios


naturais

e não por atuação de forças infernais ou divinas. Abolir o fatalismo

teológico era a meta; e com esse resultado aboliu-se o dogmatismo

clerical mas não se inaugurou o enfoque realista científico da

deficiência mental.

A característica altamente especulativa da medicina de então, ainda

pré-científica, substituiu a autoridade do inquisidor ou do reformador

pela do clínico, enquanto a argumentação canônica e teológica cedia


lugar

à afoita classificação anatomofisiológica dos pacientes segundo quadros

clínicos compostos, de costume, mais segundo a lógica e a semântica do

que de acordo com a observação objetiva.

68 - Deficiência mental

A mesma arbitrariedade que mascara o deficiente corno bruxo

possesso ou herege, agora, a partir de Paracelso e Cardano, o denomina

cretino, idiota ou amente. A linguagem não é a do clero ou das bulas

papais, mas o autoritarismo e o dogmatismo são os mesmos, trazendo no

bojo a marca do inapelável.

Não é, pois, de estranhar que o fatalismo ainda perdure, embora

humanitário e embora baseado na experiência clínica ao invés dos


cânones
e decretos conciliares, até meados do século XIX, mais de duzentos anos

após.

A fatalidade hereditária ou congênita assume o lugar da danação

divina, para efeito de prognóstico. A ineducabilidade ou

irrecuperabilidade do idiota é o novo estigma, que vem substituir o

sentido expiatório e propiciatório que a deficiência recebera durante


as

negras décadas que antecederam a medicina, também supersticiosa, de

Cardano e Paracelso.

O médico é o novo árbitro do destino do deficiente. Ele julga, ele

salva, ele condena.

Ante a óbvia variedade dos casos de amência, não se multiplicam

tanto as observações de relações causa e efeito quanto proliferam os

"quadros clínicos", os chavões anatomopatológicos e a terminologia

nosológica. Não se progride tanto de Cardano a Pinel no conhecimento

etimológico quanto no apuro das descrições formais e na classificação

semiológica das variedades de deficientes e amentes. A incipiente

indagação etimológica corre, até o século XIX, um alto risco de


confundir

correlações com causas, e esse risco, associado à autoridade clínica


dos

tratadistas, passa a constituir uma séria ameaça à objetividade de

diagnósticos e prognósticos e à validade das teorias que se difundem.

A esse propósito, foi particularmente nefasto o Traité du goitre et

du crétinisme publicado em 1791 por 1. E. Fodéré (1764-1835), em Turim,

dez anos antes do famoso prognóstico de Pinel.

É muito provável que Pinel se tenha influenciado pela obra de

Fodéré, de resto livro de consulta obrigatória, na época, para qualquer

alienista, neurologista, médico moral, ortofrenista ou freniatra.

Fodéré, adepto de primeira hora do "no-restraint" inaugurado por


Valsava, por volta de 1700, e difundido por Chiaruggi em 1774, tornara-
se

famoso pelas amplas reformas que introduziu nos hospitais destinados a

dementes e amentes, de modo a humanizar-lhes a vida e a renovar os

processos de tratamento médico-hospitalar.

Pré-ciência e pseudociência - 69

Natural da Sabóia, região famosa pela grande incidência de bócio

endêmico, o famoso médico aceitou o encargo de compor uma comissão

encarregada pelo governo de propor medidas que eliminassem aquela

endemia. É dessa experiência que resultou o seu Tratado do bócio e do

cretinismo, importante contribuição para a medicina social mas


deletério

para a teoria e a pedagogia da deficiência mental.

Doze anos antes do tratado, eis o que a 3•a edição da Enciclopédia

de Diderot e D'Alembert registrava no verbete Crétins, retratando o

entendimento de 1779 e dos anos imediatamente seguintes: ". . . dá-se

esse nome a uma espécie de homens que nascem no Valais em grandíssima

quantidade, e sobretudo em Sion, sua capital. Eles são surdos, mudos,

imbecis quase insensíveis aos golpes e têm bócios pendentes, até a

cintura, muito boas pessoas, aliás; eles são incapazes de idéias e não

têm senão um tipo de atração muito violenta por suas necessidades.

Abandonam-se aos prazeres sensuais de toda espécie e sua imbecilidade

lhes impede de ver nisso qualquer crime. A simplicidade das populações


do

Valais as leva a considerar os cretinos anjos tutelares das famílias, e

as que não os têm acreditam estar muito mal diante do céu. É difícil

explicar a causa e o efeito da cretinice (cretinage). A sujeira, a

educação, o calor excessivo dos vales, as águas, os próprios bócios,


são

comuns a todas as crianças dessas populações. Contudo, nem todos eles

nascem cretinos. Morreu um deles em Sion durante a permanência do Sr.


Conde de Maugiron, da Sociedade Real de Lyon; não lhe permitiram abri-
lo.

Dessa descrição bizarra até o Tratado de J. Emanuel Fodéré pouca

coisa muda, na essência, na conceituação do cretino e da relação entre

bócio e cretinismo. Nós consideramos nefasto o tratado porque com um

enfoque pré-científico avaliza, reforça e consagra a idéia do fatalismo

hereditário da deficiência mental, como veremos a seguir.

Nesse tratado que se formula a lei de que o bócio é o primeiro

degrau de uma degenerescência cuja última expressão é o cretinismo: "o

cretinismo não se encontra senão onde se acha o bócio e por isso


presumo

que ele não é mais que o efeito imediato do bócio tendo por causa
remota

a mesma que a do bócio . . . A propagação do cretinismo implica sempre

pais afetados de bócio."

Pré-ciência e pseudociência - 71

Assim fica demonstrada a transmissão do cretinismo por pais doentes

de bócio. Se a isso se acrescenta que a idiotia passa a constituir, já


na

época de Fodéré, um sintoma conclusivo ou uma forma atenuada da doença

chamada cretinismo, hereditária ou congênita, vê-se inaugurado, com


base

em minuciosas necrópsias e descrições antroponlétricas e morfológicas,


o

fatalismo genético da idiotia e de suas supostas formas brandas: a

imbecilidade e a debilidade mental.

Se não há o cretinismo, forma grave de deficiência mental, sem que

os pais ou avós do cretino sejam doentes de bócio, o cretinismo é


herdado

e, por conseqüência, as formas outras de deficiência intelectual passam


a
ser graus menores de cretinismo, formas atenuadas, mesmo recessivas, da

doença hereditária. E essa tese do Tratado do Bócio que dirigirá o

pensamento médico na área, pelo menos até as primeiras décadas do


século

XX.

No Tratado é lançada claramente a semente da teoria da

degenerescência de Morel, que surgiria em 1857, com um efeito ainda


mais

catastrófico sobre a sorte dos deficientes mentais. Mas, as idéias de

Fodéré já são suficientemente funestas: o cretinismo implica sobretudo


a

degradação intelectual que será maior ou menor conforme o grau de

cretinismo. Desse modo, as diferentes gradações do retardo no

desenvolvimento intelectual serão vistas como diferentes graus de tara

hereditária, de modo a sugerir que o problema da deficiência mental

encontra sua solução radical na segregação ou esterilização dos adultos

afetados por bócio, de uni lado. De outro, implica que a erradicação


das

causas da incidência do bócio eliminaria, senão todas, a maior parte


das

incidências de deficiência mental. Isto porque, eliminado o bócio não

mais existiriam cretinos e, portanto, não haveria os semicretinos a

procriar filhos que fatalmente seriam cretinos ou, no mínimo, idiotas


ou

imbecis. Uma tal análise médica da endemia do bócio deveria ganhar


enorme

repercussão e gerar atitudes e posições teóricas ante o deficiente

mental, exatamente como a doutrina clerical católica ou luterana haviam

feito, a seu tempo.

Unitarismo e topologia
As evidentes diferenças entre tipos de deficiências mentais não

motivaram contestações à visão unitária de Fodéré, para o qual:

70 - Deficiência mental

72 - Deficiência mental

São todos formas ou graus de cretinismo. Os quadros clínicos

preexistentes determinam e distorcem a observação dos casos. É o novo

dogma a reger o trato da deficiência mental: o dogma médico, também

carregado da idéia de fatalismo e irrecuperabilidade da deficiência. E


o

início das tipologias da deficiência mental.

A obra de Itard parece deslocada e desarraigada na história do

conceito da deficiência mental. Mas, não é uni acidente histórico: ela


é

o produto natural da evolução histórico-filosófica do naturalismo

pedagógico desde Rabelais a Locke, deste a Rousseau, aos


revolucionários

igualitaristas, a Condillac, a Itard: este, como realizador de um ideal


e

de um ideário pedagógico. O saber médico fica totalmente ausente nesse

processo, que terá sua evolução ulterior relativamente independente da

medicina, como Seguin, Belhomme, Guggenbuhl, Froebel, Montessori,


Decroly

e outros.

Mas •a evolução filosófico-pedagógica não enriquece o conhecimento

da deficiência mental: lida com ela, combate-a, redime-a, porém não a

explica, não a evita, não a previne. Ë a evolução do conhecimento


médico,

na ausência da psicologia ou outra ciência do comportamento, que guiará


a

teoria, e, grosso modo, a "terapia", enquanto a deficiência mental for


um

problema orgânico e medicável.


A educação especial de hoje, enquanto tecnologia, enfrenta óbices

por desconsiderar as carências orgânicas (estruturais e funcionais) dos

pacientes que a medicina ainda pré-científica do século XVIII começara


a

identificar.

De outro lado, a teoria da deficiência mental (e as atitudes que

possa gerar) defronta-se com preconceitos que têm sua origem na


hegemonia

doutrinária daquela mesma medicina, durante os séculos XVIII e XIX.

l~ do estilo médico de então, encontrada uma hipótese que explique

razoavelmente um tipo de doença, estender a explicação a quadros


clínicos

semelhantes com base na analogia descritiva da sintomatologia. Assim


como

a "contratilidade muscular", ou a "elasticidade da fibra", ou as

simpatias, ou a "irritabilidade" criadas para explicar um conjunto

limitado de eventos neuromusculares passaram a explicar distúrbios

cardiocirculatórios, endocrinológicos, gastrointestinais e sensoriais.

A tentação de unificar apressadamente o conhecimento leva por vezes

a explicações unitárias que englobam eventos funcionalmente e

etiologicamente incompatíveis. O unitarismo da análise médica da

deficiência mental é um bom exemplo: achada uma explicação plausível


(!)

para o cretinismo, estende-se a mesma a idiotia, à imbecilidade, à

debilidade mental e até à surdo-mudez, como se essas carências ou

distúrbios não fossem ou não pudessem ser funcionalmente e

etiologicamente diversos e até incompatíveis.

Para manter a visão unitária e ao mesmo tempo dar conta da óbvia

diversidade dos distúrbios a solução, meio mágica, é considerar a

multiplicidade como uma gama de variações de um processo patológico

único. É assim que surgirão as tipologias ou classificações e com elas


a

mentalidade classificatória mia concepção da deficiência mental: o

cretinismo é a doença unitária e herdada, que se apresenta, para


Fodéré,

em diversos graus e/ou tipos, como cretino puro, idiota e imbecil.


Esses

tipos serão acompanhados de outros, por volta de 1875: os semicretinos


e

os cretinóides.

Todos esses tipos serão designados comumente de cretinos (ou

idiotas) já em 1811 no censo ordenado por Napoleão na região de


Simplon,

e em numerosos censos e tratados, todos descendentes do Tratado do


Bócio.

Uma criança, em 1805 ou 1810, era normal ou cretina; no segundo caso

seria encaixada em um dos tipos supracitados e, consequentemente,

declarada incapaz, dependente, inútil e, portanto, marginalizada do

processo cultural e educacional. A teoria da deficiência começará a ser

abalada apenas no século XX graças aos progressos da psicologia, da

biologia, da genética, e graças a iniciativas pedagógicas ousadas, a

desafiar e revolucionar as teorias da deficiência, nascidas no ambiente

médico e, portanto, marcadas a ferro, pelo viés organicista mais ou


menos

fatalista. Este sobreviverá, na segunda metade do século XX, apenas no

seu campo eletivo e inalienável: o da genética médica.

Pré-ciência e pseudociência - 73

A inércia de uma cultura para mudar sua atitude e suas praticas ante a

deficiência mental parece diretamente proporcional à difusão do


fatalismo

e do unitarismo na concepção do retardo mental. É por isso que, após

quase dois séculos, o Tratado do Bócio ainda determina o pensamento,

embora essa influência seja mediada por tratados, tipologias e


genealogias, como as de Esquirol, Belhomme ou Dubois, por exemplo,

hipótese da hereditariedade do cretinismo, a partir do bócio dos pais,

este tido ora corno endêmico ora como hereditário ou congênito.

Enquanto isso o esforço pedagógico de Itard prossegue, fundado na

filosofia, mia observação e na reformulação sistemática do método da

observação.

Pré-ciência e pseudociência - 75

Pinel

O grande Philippe Pinel publicou sua obra mestra, o Tratado médico-

filosófico sobre a alienação mental, em 1801, no mesmo ano em que Itard

escrevia a Mémoire sobre o selvagem de Aveyron e convidava Edouard


Seguin

a colaborar em sua tarefa médico-moral.

A análise mais severa da contribuição de Pinel à teoria da

deficiência mental será precisamente a de Seguin, aluno de Esquirol e

discípulo de Itard.

O diagnóstico sobre Victor mostrava a rigidez da avaliação de

Pinel: não sendo normal, Victor é um idiota; e sendo grave essa


idiotia,

o menino de Aveyron é irrecuperável. Mas Pinel escreve sob a influência

do Tratado do bócio e do cretinismo, numa época em que, portanto, a

idiotia era apenas uni sintoma do cretinismo, então incurável. No


Traité

de 1801 a preocupação maior é com a demência sob a forma de mania, e a

deficiência mental recebe unia atenção apenas secundária enquanto tipo


de

insanidade mental, ao lado de outros.

Com essa obra, entretanto, Pinel consagra o fatalismo de Fodéré ao

colocar o problema da idiotia no domínio da patologia cerebral. A


deficiência recebe com Pinel um locus anatomofisiológico que o Tratado
do

Bócio não lhe assegura. Com Fodéré ela fora proposta como herdada (sob
a

forma de cretinismo, atenuado ou não) e inevitável; com Pinel ela se

apresenta definitivamente orgânica e questão de neuropatologia.

Nas obras de Pinel, Esquirol, Belhonmme e, até certo ponto, do

próprio Seguiu, que os critica, um traço comum é a busca mais ou menos

desesperada de aspectos orgânicos e/ou funcionais dos pacientes, que

permitam distinguir cretinos, idiotas, cretinóides, imbecis e


retardados

ou, ainda, graus dessas categorias ou tipos.

Não se procuram etiologias típicas, mas quadros típicos que

encaixem as diversidades na etiologia conhecida. Na composição desses

quadros juntam-se, a igual título, dados anatômicos, antropométricos,

comportamentais, misturando-se longos registros de observação com

informações interpretativas sem qualquer objetividade, ou com dados

visados por condições transitórias em que se executa a observação.

O importante é compor quadros peculiares, com sintomas claramente

orgânicos ou redutíveis a distorções anatômicas ou disfunções

fisiológicas, umas e outras inferidas de respostas fisiológicas ou

comportamentais, provocadas e registradas quase sem objetividade e

irreplicáveis.

Propor quadros diversos a partir de uma única matriz ao invés de

procurar relações causais especiais para as variedades de deficiências

encontradas: tal é a direção da teoria da deficiência mental sob a

hegemonia doutrinária da medicina, como denunciará Seguin (1846).

76 - Deficiência mental

Os elencos de sintomas componentes de cada quadro, da idiotia, por

exemplo, são diversos para Pinel, Esquirol, Belhomme e outros, embora


alguns elementos possam ser comuns a dois ou mais autores; e essa

diversidade, aliada à autoridade doutrinária do médico, resultará em

polêmicas mais ou menos acres e inúteis que distinguem a evolução da

teoria da deficiência mental durante quase todo o século XIX.

Na medida em que os quadros se enriquecem de novos traços ou

sintomas, a probabilidade de um destes ser incorporado a quadros


diversos

por diferentes autores aumenta, gerando obviamente confusão e polêmica.


É

assim que, por exemplo, Seguiu critica Pinel por "haver confundido a

imbecilidade e até mesmo a demência com o idiotismo".

E a síntese de Pinel, em forma de definição, presta-se bem a tal

crítica quando define a idiotia como "abolição mais ou menos absoluta,

seja das funções do entendimento, seja das afecções do coração". Com


tais

abolições genéricas, 33mais ou menos absolutas" pode-se, de fato,

designar qualquer forma de demência ou amência, e para não parecer que


a

subjetividade e imprecisão se devem a conveniências de síntese ou

concisão é importante ilustrar os próprios dados em que a definição se

escora, tomando de Seguiu (1846) uma das observações ciosas de Pinel

transcrita ipsis litteris com o comentário de que a riqueza de


pormenores

é tal que "lendo-a não se percebe que ela conduz a nada".

Pré-ciência e pseudociência - 77

Escreve Pinel, na 2.~ edição do Traité, em 1809: "Um dos casos mais

singulares e dos mais extraordinários que jamais foram observados é o


de

uma jovem idiota, com idade de 11 anos que, pela forma da cabeça, seus

gostos e sua forma de vida, parecia aproximar-se do instinto de uma

ovelha. Durante os dois meses e meio que ela ficou no hospício da


Salpêtrière ela evidenciava unia, repugnância particular pela carne, e

comia com avidez substâncias vegetais como pêras, maçãs, salada, pão,
que

ela parecia devorar, bem como uma bolacha particular de sua aldeia que
a

mãe lhe levava de vez em quando. Ela não bebia senão água e demonstrava
a

seu modo um vivo reconhecimento por todos os cuidados que a atendente


lhe

dispensava. Essas demonstrações de sensibilidade limitavam-se a

pronunciar estas duas palavras, bé, ina tante, pois ela não podia

proferir outras palavras e parecia inteiramente muda pela mera falta de

idéias, pois que, aliás, sua língua parecia conservar toda a sua

mobilidade. Ela tinha também o costume de executar movimentos

alternativos de extensão e flexão da cabeça, apoiando, à maneira das

ovelhas, essa parte contra o ventre da atendente corno testemunho de

gratidão. Ela tomava a mesma atitude em suas brigas com as outras

crianças de sua idade, que ela tentava golpear com a parte superior de

sua cabeça inclinada. Abandonada a um instinto cego que a aproximava

daquele tipo de animais, ela não podia pôr um freio a seus movimentos
de

cólera e suas irritações que, por causas das mais banais ou mesmo sem

causas, iam até as convulsões. Jamais se conseguiu fazê-la sentar-se

sobre uma cadeira para repousar ou para fazer suas refeições, ela
dormia

com o corpo estendido no chão, encolhido, à maneira das ovelhas. Todo o

seu dorso, as costas e os ombros, estavam cobertos de uma espécie de


pelo

flexível e escuro, com extensão de unia e meia ou duas polegadas e que


se

assemelha à lã por sua finura; o que constituía um aspecto muito

desagradável. Tanto que os saltimbancos que haviam tido notícia do


estado
dessa jovem idiota tinham proposto à mãe exibi-la nas festas e feiras
da

vizinhança, corno um objeto de muito rara curiosidade, o que lhes foi

recusado, embora os pais fossem muito pobres. Essa jovem idiota, pela

separação dos pais acabou por cair num estado progressivo de languidez
e

sucumbiu após dois meses e meio de permanência na Salpêtrière: eu

conservei cuidadosamente seu crânio, que é muito interessante por suas

dimensões e forma."

78 - Deficiência mental

Eis aqui caracterizada a idiotia, segundo Pinel. É de espantar a

frieza com que se assiste ao abandono e ao desamparo, e depois se

conserva o crânio como algo muito interessante, tão interessante quanto


a

exibição da "jovem idiota" numa feira livre. Seguin escolheu essa

descrição para mostrar a confusão de Pinel e para denunciar a omissão


dos

médicos da época em relação aos cuidados com os idiotas. Mas o trecho

vale como amostra do que significou para o deficiente escapar do

inquisidor para tornar-se um assunto médico. A sorte de Víctor e da

educação especial seria bem diversa se Ltard houvesse acatado a


sugestão

do grande alienista de encaminhar o selvagem para o meio dos idiotas de

Bicêtre ou da Salpêtrière. Afora as merecidas censuras de seus

contemporâneos e o nosso justo espanto, o trecho acima mostra a extrema

imprecisão do conceito de idiotia, de urna alta autoridade médica, ao

juntar aspectos morfológicos e anatômicos a julgamentos afoitos sobre a

sensibilidade e a possibilidade de fala, instintos animais, convulsões,

hábitos alimentares, movimentos estereotipados e demonstração de

sentimentos, como gratidão e languidez.

Em nenhum momento se cogita de qualquer esforço de educação ou


mesmo de tratamento moral. Pinel estende aos idiotas o estigma que
Fodéré

impusera aos cretinos, baseado no seu fatalismo organicista. O abandono


e

a omissão são a decorrência lógica dessa postura teórica. A ameaça que

essa atitude representa é mais assustadora ainda quando se lembra que

pode ser considerada idiota e, pois, como tal tratada qualquer criança

que apresente: "abolição mais ou menos absoluta, seja das funções do

entendimento, seja das afecções do coração". Além de reacionária, a

posição de Pinel héretrograda, se recorda que Chiaruggi, já em 1793,

definira a demência como déficit de entendimento e de vontade,


exatamente

como faz Pinel oito anos após.

Pré-ciência e pseudociência - 79

Não é fácil conciliar essa concepção da deficiência com o fato de

Pinel ter, em 1795, seis anos antes, imposto na Salpêtrière a abolição


de

algemas, grilhões e cadeias que aprisionavam os dementes. O abandono


dos

idiotas tinha uma atenuante teórica, pois o tratamento moral de Pinel

baseava-se na idéia, aristotélica, de que a saúde mental dependia do

equilíbrio das paixões, que no idiota estariam mais ou menos abolidas.


A

idéia de Pinel de que a idiotia é incurável repousa no postulado da

disfunção orgânica de terapia difícil ou impossível, pois dificilmente

identificável; alguma forma de patologia cerebral: eis a causa da

idiotia. Mas a doutrina funda-se também na visão unitária da


deficiência,

segundo a qual idiotia, imbecilidade e deficiência mental são sintomas


de

degeneração no nível do sistema nervoso central, de origem hereditária

como o cretinismo, aliás como doutrinara Fodéré em 1791.


Essa teoria unitária da deficiência mental durará no mínimo um

século, mio qual florescerão tipologias, quadros clínicos, polemicas,

cujo único ponto em comum é a idéia da irreversibilidade da deficiência

independentemente de sua ocorrência em formas atenuadas.

A natureza constitucional atribuída ao cretinismo, cujos traços

enfraquecidos e difusos se espargem por toda a população de

4'cada zona onde o bócio é endêmico, como ensina Ferrus, é a razão 4

última, porque a "jovem idiota" de Pinel personifica a volta ao

leprosaria.

Pré-ciência e pseudociência - 79

Os novos progressos de Victor

Mas enquanto o modelo teórico dos médicos e de Pinel, unitário e

fatalista, prescreve o abandono do jovem idiota ou Victor aos


corredores

ou porões de Bicêtre, Itard, médico embora, insiste em acreditar na

educabilidade de Victor. E será de seus esforços e dos que gerou, por

parte de Seguiu e, mais tarde, de Maria Montessori, que resultará o fim

do fatalismo unitarista da teoria médica da deficiência mental, ainda


que

tardio, somente no século XX.

Enquanto o Traité Pinel atraía aplausos e nova glória, ltard, com a

seriedade que o caracterizava, deve ter refletido longamente sobre os

sucessos e insucessos e seu ensino, e, por conseqüência, sobre a teoria

da estátua cm que o alicerçara, conforme publicara na Mémoire (1801).

Tema percebido, lúcido e crítico como era, que suas decisões quanto a

programas e métodos didáticos eram poderosamente determinadas pela

intenção de demonstrar a validade daquela doutrina..


No Rapport sur les nouveaux développements de Victor de l'Aveyron

(1806, impresso em 1807) nota-se uma patente mudança de intenção geral:

embora os princípios da metafísica de Condillac nom-teicni a

interpretação e a narração dos novos passos da educação de Victor, os

conteúdos e a condução do ensino respeitam prioritariamente, senão

exclusivamente, os requisitos individuais do repertório incipiente do

aluno. O Rapport parece libertado do compromisso de demonstrar ou


testar

hipóteses ou doutrinas. Agora, a metodologia é mais flexível, o


discurso

perde em polêmica e lucra em fluidez e clareza e, sobretudo, as


decisões

são toniadas cciii base em conveniências didáticas ou práticas do

enriquecimento cultural e técnico do educando. Após os esforços da

Métnoire a estátua está desperta e atenta, raciocina, avalia, ama,


odeia,

detesta e quer: apenas não fala, mas para a teoria esse corolário
prático

não é fundamental. Agora Itard busca decididamente a autonomia do

educando. As seqüências de tarefas e passos miado visam, miem de longe,

aferir capacidade e limites como era freqüente na Ménmoire.

Agora, o que interessa é tornar o aluno capaz de conseguir mio meio

social e por si mesmo as condições de sobrevivência pessoal a que tem

direito. Se o avanço em tal rumo comprovar a teoria de partida, tanto

melhor para a teoria: objetivo prioritário, senão único, é o progresso


de

Victor, e para consegui-lo a metodologia e as opções didáticas se

desvinculam de quadros doutrinários assumidos a priori. O Rapport tem

três partes, das quais a primeira versa sobre "O desenvolvimento das

funções dos sentidos", que passa a ser narrado após unia curta

introdução, onde sobressai uma advertência preliminar de espírito

claramente antinormatívo: "para avaliar o estado do jovem selvagem de


Aveyron seria necessário recordar seu estado passado. Esse rapaz, pai-a

ser julgado sensatamente, não deve ser comparado senão a ele mesmo.

Impõe-se, diante dessa afirmação, convir em que "repertório de


entrada",

"linha de base comportamental" e outras expressões similares são vestes

novas para idéias não tão jovens., de 1806, ou ainda mais idosas.

A engenhosidade do mestre e a tolerância do aluno ficam evidentes nessa

primeira parte do Rapport. Victor é conduzido gradualmente a perceber

diferenças sutis entre sons. Começando pela discriminação entre os sons

de uma sineta e uni tambor, o selvagem, de olhos vendados pai-a impedir

que se distraia, passa a distinguir sons de diversos objetos


percutidos,

como o couro de tambor ou o aro que o circunda ou a parede cilíndrica


do

instrumento.

Das percussões o programa passa às discriminações entre sons de um

instrumento de sopro, "mais análogos aos da voz", até que Victor

percebesse sons vocais mesmo que tenuemente emitidos. O passo seguinte

consiste em comparar sons da voz humana e discriminar eiitre eles.

Sabidas as dificuldades auditivas de Victor o acesso a tal

discriminação implicava um desafio formidável, já que ouvir um som e

outro é bem diverso de perceber diferenças entre eles. O progresso de

Victor foi lento e difícil mas conseguiu discriminar as vogais.

82 - Deficiência mental

De olhos vendados, Victor deveria estender um dos dedos das mãos

para cada vogal que ouvisse: o polegar ao escutar o A, o indicador


quando

ouvisse o E, o médio se percebesse o 1, etc.

Sendo-lhe muito difícil discriminar entre E, 1 e o U francês o

aluno passou a distrair-se facilmente e a fornecer respostas


aleatórias,
o que motivou, após muitos esforços para assegurar a atenção de Victor,

uma decisão desastrosa de Itard: golpear levemente a mão do aluno cc.m


a

baqueta do tambor, a cada resposta errada. Victor entendeu os golpes


como

brincadeira e seu desempenho piorou rapidamente, e então Itard passou a

golpear com força as mãos do aluno até que, de tanta dor, este começou
a

chorar.

Se para Itard não era fácil perceber que as "distrações" do aluno

eram "esquivas" de uma tarefa excessivamente difícil para seu ouvido

deficitário, foi-lhe fácil perceber, dali por diante, quanta ansiedade

resultou da associação entre a percepção de impotência e a ameaça de

punição, uma associação resultante da decisão, em má hora adotada, de

punir os erros de Victor.

Desde então, a cada vogal pronunciada o alumio estendia nitidamente

um dedo, recolhia-o, estendia outro, hesitante, incerto e, acima de


tudo,

aterrorizado. Itard esperava "que o tempo, muita doçura e modos

encorajadores pudessem dissipar essa exagerada timidez", mas "esperei


em

vão e tudo foi inútil. Assim se diluíram as brilhantes esperanças

fumidadas, talvez com alguma razão, sobre uma cadeia ininterrupta de

experiências tão úteis quanto interessantes. Muitas vezes mais tarde, e

em épocas muito distanciadas, eu tentei as mesmas provas e me vi


forçado

a renunciar a elas novamente, bloqueado pelo mesmo obstáculo."

Pré-ciência e pseudociência - 83

Amarga, a lição que nos fica desse relato é a de que a programação

do ensino e sua execução não podem menosprezar a emotividade do


deficiente, uni risco freqüente dadas as limitadas possibilidades que

costumeiramente eles apresentam pai-a comunicar seus estados


emocionais.

Outro viés do procedimento de Itard está na antigüidade e


arbitrariedade

com que a punição é aplicada: ouvindo mal, de olhos vendados e


esperando

uma brincadeira provavelmente indicando que podia distrair-se, Victor

recebe, sem qualquer advertência ou aviso, uma autentica paulada, como

uru raio em céu sereno, e sem saber se era a última ou a primeira de


urna

série e, sobretudo, sem saber qual erro cometera e que transformara seu

protetor em agressor. A percepção da arbitrariedade e da própria

impotência podem ser mais agudas, no deficiente mental, do que possam

imaginar o tecnólogo do ensino ou o mais dedicado dos pais.

Inutilmente Itard esperou que o tempo e o carinho dissipassem a

"excessiva timidez" que Victor passou a exibir desde então e "mesmo em

épocas muito distantes" as tentativas de repetir aquelas provas

fracassaram pelo retraimento e medo do aluno.

No tremido da visão a facilidade foi enorme, de modo que Victor

passou em poucos meses da discriminação de letras a de palavras, à

leitura, à composição de palavras com letras recortadas e à escrita.

Quanto ao tato, progrediu da discriminação simples de temperaturas,

de relevos, à de volumes e formas, incluindo os comitornos de letras

metálicas, mesmo que fossem pouco diversas entre si como 1 e 1~ ou C e


G,

ou B e R. Desse treino resultou - agudamente, assinala Itard - um


aumento

na capacidade de atenção. O gosto, por sua vez, foi refinado até que

Victor aceitasse alimentos com novos sabores e vinho.

Refinada a percepção sensorial, o programa de ltard concentra seus

esforços no aperfeiçoamento das "futições intelectuais" de Victor e


lembra que o treino sensorial já implicava algum exercício intelectual

pois "concebe-se, na verdade, que instruindo os sentidos a perceber e

distinguir objetos novos eu forçava a atenção a deter-se neles, o

julgamento a confrontá-los e a memória a retê-los".

O preconceito de que a aquisição da linguagem deveria começar pela

expressão simbólica da necessidade antes de o objeto necessário estar

presente continua a viciar o programa de ltard, mas agora o método muda


e

passa por nove níveis de dificuldades, incluindo graus decrescentes de

ajuda, até que "eu vi Victor servir-se a cada instante, seja nos nossos

exercícios, seja espontaneamente, das diversas palavras cujo sentido eu

lhe ensinara", para exprimir necessidade ou para designar objetos. Da

designação dos objetos o treino progride até a generalização e desta à

formação de conceitos dos objetos. Os conceitos de objetos são seguidos

pelos conceitos das funções deles e, enfim, pelo treino de invenção de

objetos novos para funções necessárias, quando Víctor constrói o seu

porta-lápis encaixando o toco de seu lápis num improvisado

tubo.

84 - Deficiência mental

Com esses sucessos se estabelece completamente no espírito de

Victor a relação dos objetos com seus sinais. Dali em diante as


relações

entre palavras foram aprendidas e enriquecidas: adjetivos, verbos e até

regras sintáticas são adquiridas, "seguindo também aqui o método das

aproximações insensíveis".

Quanto às funções afetivas o último tópico do Rapport descreve as

progressões de Victor na aquisição de sentimentos e emoções, do

relacionamento social e a adequação de suas manifestações de afeto a

diferentes situações.
O organismo realista da pedagogia de ltard, diverso e ate oposto ao

organicismo fatalista e hipotético de Pinel e Fodéré, reaparece nas

conclusões do Rapport: "não se pode evitar a conclusão de: 1.0 que, por

uma conseqüência da nulidade quase total dos órgãos do ouvido e da


fala,

a educação desse moço ainda é e será sempre incompleta; 2.0 que, em

conseqüência da longa inatividade as faculdades intelectuais se

desenvolvem de modolento e penoso - - -; 32 que as faculdades afetivas,

saindo de seu longo entorpecimento, encontram-se subordinadas, cru sua

aplicação, ao sentimento do egoísmo e ... são o fruto de sua educação."

Esquirol e a teoria negativa

A obra de Itard, cuja riqueza teórica e metodológica apenas

apontamos, exerceu escassa influência na teoria da deficiência mental e

praticamente nenhuma alteração a curto prazo e as atitudes da sociedade

em relação ao problema. Sua eficácia, revolucionária, se exerceria


apenas

algumas décadas mais tarde, através dos trabalhos de seu genial


discípulo

Seguin, mais atento à divulgação dos métodos e técnicas especiais, mais

agonístico na argumentação teórica e, sobretudo, bem menos humilde.

A despeito do grande afeto que o unira ao mestre, as menções que

Seguiu faz à obra de Itard lembram irresistivelmente o discurso de


Marco

Antônio sobre Júlio César.

Pré-ciência e pseudociência - 85

A respeito dos que antes se ocuparam da educação de deficientes

mentais o julgamento de Seguiu se reveste de unia talentosa vaidade e


até
de certa petulância, principalmente ao criticar as doutrinas dos
médicos

sobre a deficiência mental.

Mas, até surgir o texto iconoclasta de Seguiu a hegemonia

doutrinária dos médicos prosseguirá incontestada difundindo e


infundindo

a atitude fatalista, resignatária que, como vimos, é fruto da visão

unitária da deficiência mental como doença hereditária ou congênita

sujeita a variações de intensidade ou a diversidade semiológicas, mas

sempre vinculada a uma citologia única. Essa etiologia única, na versão

mais difundida graças às obras de Fodéré, Pinel e outros era,

fundamentalmente, a relação fatal entre bócio e cretinismo.

Idiotia e imbecilidade seriam graus do cretinismo ou sindromes mais

suaves, compostas segundo os sintomas que cada autoridade médica

interessada julgasse associados, a partir da experiência clínica (e das

vacações semânticas da terminologia médica).

Dessas autoridades, a que mais influenciou o pensamento medico

sobre a deficiência foi Esquirol (1772-1840). Não só pela autoridade


que

seu brilho como clínico e ortofrenista lhe congregara mas também pela

evidente preocupação de organizar o conhecimento médico sobre a

deficiência mental no aspecto doutrinário. Os textos de Esquirol

tornaram-se de consulta obrigatória para médicos e pedagogos pelo menos

até as primeiras décadas do século XX.

Pré-ciência e pseudociência - 85

A definição lapidar de Esquirol aparece em 1818 e se refere à

idiotia que, desde as obras de seu mestre Pinel (1801) e de Fodéré

(1791), se confundira com cretinismo atenuado, entendido este como

conseqüência, endêmica ou hereditária, do bócio. Tese seria

convincentemente examinada pela chamada Comissão Francesa, a partir de


1873, após as pesquisas relativamente ingênuas da Comissão Sarda ou do

Piemonte, de 1848, conforme discutiremos adiante.

Mas Esquirol escreve sob a influência de Pinel, numa poça

tipicamente pré-científica da medicina, sob o influxo das contradições


e

polêmicas sobre a herdabilidade ou hereditariedade do cretinismo


através

de pais atacados de bócio. Em favor da hereditariedade estavam, por


esse

tempo, os resultados do censo de 1811, que na região do Simplon


revelara

a existência de três mil idiotas exatamente em zonas com alta


incidência

do bócio.

O texto fundamental de Esquirol, publicado no volume 23 do

Dictionnaire des Sciences Medicales, de 1818, marca um claro progresso

sobre a doutrina de Pinel, que sob o nome de "idiotismo" abrangia

qualquer forma de deficiência intelectual grave, independentemente de


sua

etiologia ou duração. Como recorda Perron (1971), Esquirol cria o termo

novo idiotia e a noção, isolando uma nova entidade nosologica dentro da

categoria ampla do "idiotismo" que ocupara momentaneamente a atenção de

Pinel, absorvido, como reconhece seu crítico Seguin, com o tratamento


dos

quinhentos dementes de Bicêtre que lhe cabia supervisionar e conduzir.

Escreve Esquirol: "O homem louco ‚ privado dos bens de que outrora

gozava: ‚ um rico tornado pobre. O idiota sempre esteve no infortúnio e

na miséria. O estado do homem louco pode variar; o do idiota ‚ sempre o

mesmo. Este tem muitos tratos da infância, aquele conserva muito da

fisionomia do homem feito.

Em ambos, as sensações são nulas, ou quase nulas; mas o homem

louco, na sua organização e mesmo na sua inteligência demonstra


qualquer

coisa da sua perfeição de outrora; o idiota ‚ o que sempre foi, ‚ tudo


o

que sempre foi, ‚ tudo o que pode ser, relativamente... sua organização

primitiva ...

"A idiotia não ‚ uma doença, ‚ um estado em que as faculdades

intelectuais nunca se manifestaram, ou não puderam desenvolver-se

suficientemente para que o idiota adquirisse os conhecimentos relativos


...

educação que recebem os indivíduos da sua idade, e nas mesmas condições

que ele. A idiotia começa com a vida ou na idade que precede o

desenvolvimento completo das faculdades intelectuais e afetivas; os

idiotas são o que virão a ser durante toda a sua vida; neles, tudo
revela

uma organização imperfeita ou incompleta no seu desenvolvimento.

Essa 86 Ä deficiência mental

Não se concebe a possibilidade de alterar este estado. Nada seria,

pois, capaz de dar aos infelizes idiotas, por uns instantes que fosse,
um

pouco mais de razão, um pouco mais de inteligência."

Esquirol, portanto, estabelece claramente a identidade da idiotia,

explicitamente distinta da loucura com a qual se confundira através dos

séculos. Deve-se notar que sob o nome de idiotia são agrupadas no

dicionário de 1818 quaisquer formas de oligofrenia ou deficiência


mental

profunda, embora mais tarde, em 1838, já se formulem critérios para

discriminar graus de deficiência. Por ser mais típica, a deficiência

profunda se prestava mais, em 1818, à composição de um quadro clínico

próprio distinto da loucura.

88 - Deficiência mental
Com Esquirol, ficam então diagnosticáveis diferencialmente a

confusão mental passageira e de incidência mais ou menos geral, a


loucura

caracterizada como perda irreversível da razão e suas funções, e a

idiotia definida como ausência de desenvolvimento intelectual desde a

infância e devida a carências infantis ou condições pré-natais ou

pernatais.

Mais ainda, a idiotia, já na obra de Esquirol, de 1818, se reveste

de características que perdurarão até os dias de hoje no enfoque da

deficiência mental: ela tem base orgânica, é constatável no presente

(qualquer que seja a etiologia passada) e é, em si mesma, incurável.

À vista dó que se disse pouco acima sobre a hegemonia da doutrina

médica da deficiência, como a marca de um longo período na história


desse

conceito, as afirmações de Esquirol requerem algum comentário

principalmente dada a posição histórica especial de seu autor, a


escrever

sobre o assunto após Pinel e antes de Seguiu, aluno que foi do primeiro
e

mestre do segundo.

A visão unitarista de Fodéré, que ligava a um único processo

etimológico o bócio, o cretinismo, o idiotismo, a imbecilidade e a

debilidade mental, havia gerado numerosas polêmicas e pesquisas


voltadas

principalmente para a verificação - ou afirmação - da possibilidade de

ocorrência de idiotismo sem conexão com a incidência de bócio, muito


mais

que verificar se o idiotismo podia existir sem qualquer nexo com o

cretinismo, embora também esse tema fosse objeto de indagações e

tratados.

Desse modo persistia, sem refutação definitiva ao tempo de Pinel, a

hipótese de o idiotismo ser apenas um sintonia de cretinismo atenuado,


sendo os imbecis e os débeis mentais portadores da síndrome do
idiotismo

em graus progressivamente menores.

Pré-ciência e pseudociência - 89

Ora, ao discutir o idiotismo Esquirol não se liberta da influência

unitarista de Pinel nem da preocupação organista radical que remontava


ao

Tratado do bócio, de Fodéré. Mas, enquanto alienista, a deficiência

mental o interessa também por sua diversidade em relação à demência,


quer

quanto à patologia quer quanto à etiologia.

Pouco o atrai a questão das eventuais diversidades incluídas na

categoria do "idiotismo" de Pinel. Importa-lhe distinguir o demente do

anhcnte, o louco do deficiente mental: na terminologia de então, o

demente do idiota.

A troca do termo "idiotismo" por "idiotia" não é mói-a contribuição

semântica de Esquirol, mas a designação de uni princípio gerador,

substantivo, subjacente às formas e intensidade diversas de amência,

ausente em qualquer caso de demência ou estupor; para Pinel, não havia

uma clara distinção etimológica ou nosológica entre demência e amência.

Esquirol distingue claramente os aspectos descritivos típicos da

idiotia e alude a um processo etimológica específico. Mas o grande

alienista não se interessava pelo problema dos idiotas e,


prudentemente,

nos oferece uma demonstração eloqüente de cautela. Porque, examinado

criticamente, o texto acima é na verdade urna definição negativa da

idiotia: "ela não é uma doença": o que, então, ela é de fato? Esquirol

escreve: "é um estado no qual as faculdades intelectuais nunca se


manifestaram ou não puderam desenvolver-se. "Ora, não há nada de

positivo: é um "estado" de ausências e carências de algo que, isso sim,

seria o núcleo positivo da definição.

Mas, que é esse algo de que o idiota carece ou foi privado?

Esquirol afirma: a manifestação das faculdades intelectuais e seu

desenvolvimento suficiente para adquirir a educação comum.

Deixando à margem as farpas que Seguiu (1846) distribui aos

seguidores de Esquirol a propósito, da avidez míope com que se

"apropriaram" da definição deste, é importante, aqui, notar que na

evolução do conceito de deficiência mental o texto de Esquirol é uni

marco e uma semente de transformação dou trinaria. Seguiu parece


obcecado

pela idéia de que sua teoria de idiotia é a primeira definição positiva

da idiotia como tipo especial de deficiência mental. Daí sua crítica

mordaz ao texto de Esquirol e seus adeptos de mais renome mia época.

90 - Deficiência mental

Dissemos que a definição negativa de Esquirol é tini marco

histórico por dois motivos: a idiotia deixa de sem- urna doença e o

critério para avaliá-la é, em última análise, o rendimento educacional.

São dois aspectos transcendentes que gerarão discussões e mudanças

teóricas e assistenciais importantes em épocas ulteriores.

Quando do alto de seu nome, como autoridade médica, Esquirol afirma

que a idiotia não é uma doença, começa a fluir uma corrente de


pensamento

que terminará, muito mais tarde. Por abalar a hegemonia doutrinária dos

médicos mio campo da deficiência mental.

De outro lado, e complementarmente, ao indicar corno critério

último para aferição da deficiência o rendimento na aprendizagem,

Esquirol legitima o ingresso do pedagogo na área de estudo da


deficiência

mental. Obviamente, o texto em questão representa, isolado, um abalo


mais

ou menos catastrófico da postura organista radical, mas é preciso

ponderar, aqui, que Esquirol possivelmente estivesse interessado em que

os idiotas fossem confiados a cuidados outros que os do alienista, que


se

liberasse o clínico da responsabilidade de atender a pacientes cuja

melhora, se viável, não se poderia esperar da medicina.

Essa idéia parece plausível à vista de outro trecho de Esquirol, no

qual aponta a diversidade de causas da . idiotia, várias delas


acidentais

ou inevitáveis e, sobretudo, não orgânicas, vale dizer, não médicas:


"As

causas da idiotia são quase sempre locais e físicas. No número das


causas

físicas, das que predispõem pai-a a idiotia, é preciso ter em conta as

influências das águas e do ar, o modo de vida das mães, a

hereditariedade, certas localidades favoráveis às escrófulas, os países

montanhosos, tais como a Escócia e a Noruega.

À parte o descaso pelos Pirineus e pelos Alpes enquanto regiões

montanhosas, bem mais à vista que a Escócia e a Noruega, esse texto é

expressivo: inclui um único termo médico, escrófula, e mesmo assim

associado a condições geográficas; também inclui, como único termo

biológico ou biomédico, hereditariedade, embora ao lado de outras


causas

"locais e físicas". O fatalismo genético semeado pelo Traité, de


Fodéré,

começa a ser ameaçado.

Pré-ciência e pseudociência - 91

Um exame mais demorado nos mostra, porém, que Esquirol não abre mão da

etiologia organista já que as condições mencionadas como causas físicas


ou predisponentes implicam sempre algum modo de lesão ao organismo ou,

para usar o termo de Esquirol, à organização do paciente. Começa a

abalar-se o fatalismo hereditário, mas não a posição organista.

Esquirol, de fato, prossegue: "há mais idiotas nos campos do que

mias cidades. Não é raro que haja vários idiotas numa família: conheci

dois 'jovens, únicos herdeiros de uma grande família, que eram idiotas.

Algumas vezes, também, numa mesma família há um idiota e outras


crianças

que são alienadas .. As causas da idiotia são numerosas. As emoções

fortes da mãe durante a gestação influenciam a organização da


criança...;

os trabalhos errados do parto; o antigo costume, apontado por


Hipócrates,

de certas parteiras comprimirem a cabeça da criança recém-nascida,

causando lesão no cérebro, podem custar a idiotia; os golpes na


cabeça...

as convulsões - a epilepsia provocam também essa afecção; já se viu a

idiotia produzida por uma febre cerebral ou meningite ocorrida na

infância."

A ampla diversidade de causas "locais e físicas", incluindo os

acidentes pré-natais e pré-natais, representa um enorme progresso da

teoria se recorda o Tratado do bócio e do cretinismo, de Fodéré. A

propósito, o texto de Esquirol menciona a idiotia sem preocupação de

associá-la ao cretinismo e ao bócio endêmico, embora admita até a


relação

com as escrófulas.

Mas a idéia de incurabilidade da idiotia ganha uma solidez

praticamente definitiva na obra de Esquirol.

92 - Deficiência mental

Bellmonmmne e os tipos de Esquirol


No Dictionnaíre Scientifique des Sciences Médicales, de 1889,

Chambard afirma que o "movimento pela fundação de estabelecimentos

consagrados especialmente e unicamente aos idiotas" para "tornar a

idiotia menos pesada e mais suportável, senão para curá-la" foi

conseqüência do Essai sur lidiotie de Belhomme, apresentado à Faculdade

de Paris, em 1814.

Esse ensaio, publicado em 1824, representa um progresso teórico cm

relação à doutrina de Esquirol. A especificidade da idiotia em relação


à

demência estabelecida por Esquirol não toca a questão do unitarismo da

deficiência mental. Entendida, sim, como não-doença e como produto de

carências ou acidentes pré ou perinatais ela permanece, contudo,

incurável e etiologicamente única, mesmo podendo variar em graus ou

tipos.

Tipos e graus de que Esquirol não trata, aliás. E seu discípulo

Belhomme que define e ordena tais graus ou tipos numa tipologia ou

classificação sistemática; propõe então que se distinga a idiotia, com

dois graus, da imbecilidade, com três graus. No total, cinco graus de

deficiência mental em duas categorias ou tipos, dos quais o Essãi

apresenta exemplos característicos descritas com precisão comparável à

dos casos típicos que Esquirol, seu mestre, apresentaria em 1838 como

"Observações para servir à história da Idiotia".

A definição de Belhomme sobre a idiotia lembra claramente a de

Esquirol: ela é "menos uma doença do que um estado constitucional no


qual

as funções intelectuais nunca se desenvolveram ou não puderam

desenvolver-se muito para que o idiota adquirisse as idéias, os

conhecimentos que a educação dá aos indivíduos colocados nas mesmas

condições que ele". Nessa definição de 1824 Seguiu encontrará, em 1846,


pretexto para reduzir a pó qualquer doutrina sobre a idiotia, lato
senso,

anterior à sua própria obra. Entretanto, é com essa definição que se


abre

dentro dos ambientes médicos a possibilidade de remediar a sorte dos

idiotas, já que seu mal é incurável.

De fato, embora muito semelhante ao de Esquirol, o conceito de

Belhomme inclui uma variação de graus na carência de desenvolvimento


das

funções intelectuais: "ou não puderam desenvolver-se o bastante para


que

o idiota houvesse adquirido - -. conhecimentos".

Em 1838 Esquirol também distinguirá a idiotia da imbecilidade e

graus diferentes em cada uma, a exemplo de Belhomnie, que de sua parte

apenas modifica um pouco, e de modo decisivo, em 1824, a definição

clássica de Esquirol, de 1818. Behhomme, sério como poucos de seus

colegas, a juízo de Seguiu, considera ser "inconveniente mudar a

terminologia para designar nuanças de uma mesma doença. Não bastaria a

palavra idiotia", à qual eu juntaria o epíteto completa ou incompleta?

"Contudo, corno o termo imbecilidade designa bem a impotência do

espírito, que impede o homem de poder pensar, eu o conservará, mesmo a

contragosto."

Pré-ciência e pseudociência - 93

E Belhomme propõe sua tipologia ou classificação: "O idiota

completo não tem sequer o sentimento de sua conservação, enquanto o

idiota incompleto conserva ainda o sentimento de sua existência e come

como um bruto. E será a mesma coisa com a imbecilidade. Há uma


variedade

na qual o indivíduo não obedece senão aos seus instintos ... Em um grau

superior há algum ato intelectual e há, enfim, o primeiro degrau no


qual
o indivíduo age e raciocina como todos, é educável; fias, não pode

atingir o grau de desenvolvimento intelectual que o homem comum chega a

atingir. Essas cinco categorias parecem-me essenciais e mantenho ainda

hoje essa classificação como importante à explicação da idiotia."

Ao pedagogo de hoje não terá passado despercebido o sentido moderno

da palavra educável empregada por Belhomme. Se sobre isso houvesse

dúvidas, bastaria acrescentar um parágrafo do Essai: "Parece-me, aliás,

necessário limitar bem as variedades nas quais há possibilidade de

educação, se pretende aplicar eficazmente os princípios do

desenvolvimento intelectual .."

A progressão da teoria, de Esquirol a Belhornme, fica clara aqui;

distinguem-se categorias dentro da idiotia unitária de Esquirol, e


graus

dessas categorias. Além disso considera-se que existem graus de

imbecilidade que asseguram a educabilidade para desempenhos manuais


(2.0

grau) e mesmo para "agir e raciocinar como todo mundo . . . " (1."
grau).

Em 1838 Esquirol completa sua teoria também com uma classificação

em graus: "Para além do homem que goza das faculdades sensitivas e

intelectuais mas que, debilmente organizado, está colocado no último

nível da vida intelectual e social, existem inumeráveis graus; quem

poderia descrever todos os matizes de degradação que separam o homem


que

pensa do idiota, que não tem sequer o instinto?"

"De todo modo, estudando os fatos, podemos classificar os idiotas

em duas séries nas quais todos eles ficam agrupados: na primeira ficam
os

imbecis; na segunda, os idiotas propriamente ditos. Na primeira a

organização é mais ou menos perfeita, as faculdades sensitivas e

intelectuais são mais desenvolvidas; os imbecis têm sensações, idéias,


memórias, afetos, paixões e mesmo pendores, mas em reduzido grau eles

semitem, pensam, falam, são susceptíveis de alguma educação."

"Na segunda série a organização é incompleta, os sentidos são

apenas esboçados; a sensibilidade, a atenção e a memória são nulas ou

quase nulas. Os idiotas não têm mais que um número reduzidíssimo de

idéias, limitadas, como suas paixões às necessidades instintivas, que

eles exprimem por alguns gestos. Não é a razão que dirige suas ações
que,

pouco numerosas, se repetem por hábito ou por imitação."

94 - Deficiência mental

À parte a especificação qualitativa dos tipos, a classificação de

Esquirol se assemelha muito à de Belhomnme ao introduzir a idéia de

educabilidade que, note-se bem, não se opõe à da inculpabilidade da

idiotia, com suas variantes e gradações. O fato novo é a exclusão dos

imbecis da grande massa que compunha o idiotismo de Pinel e a idiotia


de

Esquirol na obra de 1818. Mas, mesmo excluídos ou separados os imbecis,


a

idiotia passa a comportar graus, a exemplo da imbecilidade.

Tomando como sintoma a linguagem oral Esquirol declara: "No

primeiro grau da imbecilidade a palavra é livre e fácil; no segundo é

menos fácil e o vocabulário mais restrito. No primeiro grau da idiotia

propriamente dita o idiota não tem para seu uso mais palavras e frases

muito curtas. Os idiotas do segundo grau não articulam senão


monossílabos

e alguns gritos. Enfim, no terceiro grau da idiotia não há nem fala,


nem

frase, nem palavras, nem monossílabos."

Embora discutíveis, as classificações de Belhiomnie (1824) e

Esquirol (1838) representam a admissão médica da educabilidade e um


abalo
da teoria unitarista da deficiência, à maneira de Pinel, que encontrará

em épocas subsequentes novos modos de expressão.

Pré-ciência e pseudociência - 95

O redentor dos cretinos

O Essai de Belhomme' (1824), como se viu acima, significou o aval

da ciência aos planos dos que, por caridade, por amor do desafio

científico ou por necessidade de manter a economia doméstica dos

hospícios ou asilos procuravam, de algum modo, instruir os idiotas e

imbecis (já divididos em duas categorias) na execução de tarefas


manuais

ou no domínio dos processos intelectuais exigidos pela vida em


sociedade.

Entre esses pioneiros da educação especial, muitos anônimos, sobressaem

pela sua criatividade e competência metodológica Ltard e Seguiu, seu

discípulo, fiel no afeto e desviaste na atitude profissional.

Ao lado desses dois luminares da educação especial, um deles vítima

de Pinel, o outro, discípulo de Esquirol, outros renomados mestres-

cientistas criaram instituições, métodos e recursos pioneiros.

Segundo Chanibard (1889), as primeiras tentativas sistemáticas

foram de Ferrus, que criou em seu serviço no hospital de Bicêtre a

"primeira escola destinada a imbecis e idiotas aperfeiçoáveis"

(perfectibles). Em 1834 Féhix Voisimi fundou seu Instituto Ortofrênico,

embora escrevesse sobre a ortofrenia desde 1830. Na própria Salpêtrière

Falret também criou uma escola de idiotas.

Mas, antes da escola de Ferrus, em Paris, em 1816 ocorrera a

tentativa de Goggenmoos de fundar em Salzburgo um asilo-escola para

cretinos e idiotas, que fechou por falta de apoio do governo.


Igualmente

fracassara um esforço análogo de Iphoden em Saxe (cujo príncipe, nos

remotos dias de Lutemos, não aceitara a proposta deste para afogar um


ser

sobrenatural malcomportado e sem controle de esfíncteres).

É então que um jovem e brilhante médico suíço, estudioso do

cretinismo, deixa sua clientela e funda uma colônia para cretinos e

idiotas sobre uma montanha de Ãbendberg, situada no cantão de Berna,


numa

altitude de 1.000 metros. A escola desse médico, chamado Guggenbuhl,

prosperou brilhantemente graças a diversos apoios financeiros, entre os

quais o mais importante foi o da Condessa Ida Han-Han, além da


subvenção

do governo suíço.

A escola de Abendberg, criada em 1840, tornou-se, principalmente

graças as peregrinações de Guggenbuhl, a quem não faltava uma certa

habilidade projetista ou promocional, um modelo para numerosas

instituições análogas, como as criadas por lvemiing, em Londres, e por

Conolly no bairro de Highgate, também em Londres, ou as surgidas em

Earlswood, em Edimnburgo ou ainda as criadas na Holanda, na Dinamarca,


na

Alemanha e nos Estados Unidos.

96 - Deficiência mental

Como registro de crônica é de mencionar-se aqui a queixa de

Chambard, em 1889, de que, embora de origem francesa, "graças à

resistência ora passiva, ora ativa, de unia administração rotineira e

amiga do repouso", como a do governo francês, "os asilos-escolas de

idiotas só se implantaram com atraso e muita dificuldade, uma


dificuldade

que não se poderia atribuir a um corpo médico que produziu alienistas

como Ferrus, Voisin, Falret, Leuret, Delassieuve ou Bourrmevihle, que

consagraram grande parte de sua atividade ao melhoramento dos idiotas."

Guggenbuhl, como os demais precursores citados, era médico, como

fora médico ltard; esse fato é até certo ponto intrigante porque a
doutrina médica, até Belhomme e a segunda grande obra de Esquirol
(1838),

apregoava a incurabilidade da idiotia. 12 um paradoxo aparente, por


duas

razões: primeiro porque para os médicos educados idiota não era curá-lo
e

desse modo parece apressado ver contradição entre incurável e educável;

segundo, porque a idiotia é às vezes tomada em sentido amplo, incluindo


a

imbecilidade que, após Belhomme, representa a categoria educável ou

"perfectible" da idiotia lato senso.

O que é deveras curioso é que Guggenbuhl empreende a educação de

idiotas e cretinos, esses últimos notoriamente tidas como


irrecuperáveis,

ao lado de portadores de idiotia profunda, e o fai coni um sucesso que


o

próprio Seguin, impiedoso e por vezes tendencioso ao apreciar esforços


e

textos alheios, teve que reconhecer em 1846.

Assim, a idéia de incurabilidade, corolário da visão organicista,

não repete a de educabilidade, entendida como possibilidade de maior ou

menor ajustamento sociocultural de portadores de uma disfunção ou lesão

orgânica incurável, hereditária ou não.

Guggenbuhl, na teoria como na prática, cuida essencialmente de

organismos afetados pelo cretinismo ou pela idiotia para que ganhem


certa

autonomia para sobreviver sem dependência de outrem. Sua postura

doutrinária é radicalmente organicista. Qualquer dúvida sobre esse

aspecto rui diante do seu relatório da autópsia de "Marie H.",


transcrito

por Seguiu (1846), no qual revela seu profundo conhecimento de anatomia

em cuidadosa descrição de numerosas lesões encefálicas. Mas, o que é


mais
expressivo para este nosso estudo é a conclusão de Guggenbuhl: "Esta

autópsia prova que a causa principal do mal" - trata-se de um exemplo


de

cretinismo - "provinha de um estado hidrocefálico dos ventrículos

laterais do cérebro com amolecimento das circunvoluções contíguas. Esse

estado se desenvolvera graças a fraqueza congênita da criança nos

primeiros anos de sua vida."

Incidental ou hereditária a etiologia é orgânica e o mal é

incurável, sem que isso impeça uma certa redenção graças a métodos

especiais de educação.

98 - Deficiência mental

O sucesso internacional de Guggenbuhl e sua colônia de Abendberg

deve haver-se fundado numa genuína eficácia didática da instituição, já

que Seguiu, arvorado em árbitro de tudo o que se fizera e se fazia em

educação de deficientes, chegou a afirmar com certo arroubo verbal:

"Guggenbuhl, antes de falar sobre os cretinos, curou-os" já que era


nesse

assunto "um homem prático". O prestígio de Guggenbuhl parece derivar

também de uma certa habilidade política e promocional, pois em 1841, já

encarregado de planejar a educação de cretinos para toda a Suíça por

convite da Sociedade Helvética de Ciências Naturais, dispunha de apoio

financeiro internacional, da Alemanha, da Holanda e da Inglaterra.

A disseminação de instituições similares à de Abendberg pela Europa

foi assegurada por uma constante peregrinação de Guggenbuhl, que pouco

antes de 1850 já se considerava o redentor dos cretinos e assumindo, já

como missão divina, o esforço de despertar nos subnormais uma alma

imortal adormecida ou entorpecida, segundo Perron (1971).

Não é fácil aceitar que um organicista rigoroso fosse ao mesmo

tempo promovido a redentor dos cretinos e despertador de almas, a menos

que convivessem em Guggetibtmhil o medico e o profeta, a misturar


anatomia patológica com discursos e nussões messiânicas.

Como refere Perron (1971), enquanto Guggenbuhl propagava seu método

pela Europa ele descurava da colônia de Abendberg, onde "os cretinos

continuavam cretinos", a ponto de suscitar críticas públicas à obra e


ao

autor desde 1850. A abundância de fama e as subvenções financeiras

ironicamente contribuíram para arruinar a carreira pedagógico-


messiânica

de Guggenbuhil, desde 1858, quando, diante das etescentes críticas à

escola de Abendberg, o cônsul inglês cm Berna decidiu visitar a

instituição, onde se haviam internado alguns cretinos estrangeiros,

súditos de Sua Majestade Britânica. Essa visita foi fatal para


Abendberg

e Guggenbuhl: os internos estavam em completo abandono, toda a equipe

médico-pedagógica fora substituída por dois camponeses da vizinhança,


um

dos pacientes morrera ao cair de um barranco sem que ninguém na

instituição tivesse conhecimento do acidente.

Do relatório do cônsul inglês resultou unia comissão cantoria1 de

inquérito que foi implacável e decidiu desativar totalmente a colônia-

escola de Abendberg.

Pré-ciência e pseudociência - 99

A obra de Guggenbuhil teria começado, segundo Perron (1971), quando

aos 20 anos ele observou um cretino a rezar, de memória, uma conhecida

oração diante de uma igreja, o que multiplicava alguma sorte de

aprendizagem e, portanto, de educabilidade.. Mas é mais provável que os

tratados de Esquirol e de Belhiommne e as iniciativas de Itard, Ferrus


e

Voisin tenham sido a verdadeira origem do projeto de "medenção dos

cretinos. Os recursos metodológicos, sui generis, de Abendberg eram


principalmente: ar puro, leite de cabra, carne e legumes, exercícios

físicos, banhos e massagens e medicação com base de cálcio, cobre e

zinco, exercícios de memória e treino da fala.

Há razões para essa metodologia avançada e bizarra ao mesmo tempo.

O ar puro das grandes altitudes é a certeza da imunidade aos efeitos da

"mala-ana" das regiões paludosas, abundantes de cretinos e idiotas como

no Simplon e no Piemonte; o leite de cabra excluía a possibilidade de

escrófulas devidas à tuberculose bovina; carne e legumes eram uma

adequada nutrição; os exercícios físicos, banhos e massagens eram

recursos para desenvolver a sensibilidade e a motricidade; a medicação

justifica-se obviamente e os exercícios de memória e de fala eram,

finalmente, o cerne do programa educacional.

Infelizmente, não temos de Guggenbuhl um relato metodológico

minucioso como os que nos deixou Itard; mas é fácil concluir que sua

contribuição maior não foi metodológica e nem doutrinária, e sim a

difusão da idéia da educabilidade dos deficientes mentais de categorias

antes voltadas ao abandono social definitivo mios asilos. Guggenbuhl

provocou polêmicas, estimulou criação de instituições e sobretudo


abalou

o preconceito da irremperabilidade do deficiente dito severo ou


profundo,

além de estimular discussões sobre a metodologia de ensino para os

deficientes.

100 - Deficiência mental

Os jardins de Froebel e a fazenda de Syrnit

No mesmo ano da fundação da colônia-escola de Abendberg (1840) a

história da deficiência mental entra num período em que se intensifica


e

se exacerba o já velho conflito de duas tendências: uma, devida aos

inegáveis êxitos pedagógicos de Itard, de alguns abades e das escolas


ou

institutos similares que se haviam criado após o Essai de Belhomme

(1824); outra, derivada do tabagismo organista de Fodéré (1791) e de

Pinel (1801). A tentativa de síntese desses dois contrários será a


obvia

mestra de Seguiu, de 1846, um esforço de conciliar a incurabilidade e

inviabilidade dos organicistas radicais com a educabilidade partilhada

por pedagogos e médicos adeptos da "medicina moral" ou da ortofrenia.

Nas várias escolas e asilos os deficientes demonstravam alguma

capacidade de aprender, principalmente tarefas simples manuais quando

formalizadas e gradativamente treinadas a partir de atividades naturais

de interação com os objetos e problemas do ambiente físico.

Havia, aliás, do lado pedagógico, sólida doutrina sobre a

necessidade e conveniência de uma didática natural que resultava das

obras de Pestalozzi, Rousseau, Condillac, Locke, Comenius e, ainda mais

remotamente, de Montaigne. Nas instituições caritativas de Pestalozzi

(1746-1887) desenvolvia-se uma metodologia inarticulada mas naturalista

já desde o esforço épico do mestre de Neuhof (1774-1780) e


principalmente

na escola de Yverdon, que recebeu por volta de 1808 a visita de um

sofrido e arguto mestre-escola de nome Augusto Frederico Froebel (1782-

1852).

Dessa visita nasceu uma ponderada reflexão de Froebel sobre algumas

falhas do método de seu venerado mestre Pestalozzi e, mais que isso,

surgiu um sistema de educação especial para a primeira infância, cujas

características o tornavam aplicável também a crianças deficientes

mentais.

O método exigia toda uma revolução na organização escalam física e

funcional, além de requerer alguns materiais especiais, simples mas

eficazes, para os propósitos do sistema de Froebel. É assim que, da


rusticidade de Neuhof e Yverdon e dos cuidados ecológicos de Abendberg,
a

história da escola chega aos bucólicos "jardins de infância" de


Froebel,

criados a partir de 1840, sobre o modelo do primeiro, em Blankemuburg.

As escolas de tipo montessoriano que surgirão na primeira década do

século XX terão muito dos "jardins" de Froebel, embora sua criadora se

ache mais ligada as idéias de Itard e Seguiu.

Pré-ciência e pseudociência - 10:

A metodologia de Froebel essencialmente naturalista e, pois

antiformalista, baseia-se em princípios definidos: cada criança temi


sua

individualidade, que deve ser respeitada; mais executiva que receptiva,

cada criança deve desenvolver-se livremente; toda criança gosta de

observar, de movimentar-se e de ter uma ocupação e um lugar

exclusivamente seu; as ocupações manuais são as únicas que satisfazem a

atividade da criança, pois são um jogo; a educação deve começar antes


dos

seis anos e a escola assim concebida é mais proveitosa que a família,

onde são inevitáveis a coerção e a imposição de atividades. Esses

princípios são os que regem, ainda hoje, numerosas escolas para

deficientes mentais ou crianças normais. Mas os recursos "didáticos" de

Froebel são ainda mais significativos e atuais, na área da educação

especial.

Eis alguns recursos: jogos ginásticos e cantos limitativos,

histórias e poesias muito simples e vivas; uni canteiro de jardim,

individual, "prendas" ou "dons" constituídos de objetos aptos a


servirem

como brinquedo e como instrumento de atividade manual, como a bola, o

cubo, o cilindro; blocos de madeira para construção e exercícios


sensoriais; prismas, caixilhos, molduras.

Entre os exercícios ou ocupações Froebel propõe: trabalhos com

figuras e sólidos geométricos recortados em madeira; dobraduras e

recortes; tecedura com diferentes fios; composição de contornos ou

figuras, com fios, palitas, contas, argolas; bordados sobre placas já

perfuradas; moldagem com argila, caixas de areia para moldar paisagens


e

construções.

Programada antes de 1840, essa relação de materiais satisfaria hoje

as exigências de muitas escolas para deficientes mentais.

Enquanto Froebel preparava seu kinderganten, continuavam

prosperando as idéias de Fodéré sobre a relação entre bócio e


cretinismo

e entre cretinismo e idiotia.

O cretinismo, herdado ou endêmico, se manifestava pela idiotia,

além dos sintomas clínicos que podiam ser mais, ou menos, evidentes. E

prosperava também nas regiões mais diversas da Europa o bócio endêmico,


o

cretinismo e também a idiotia.

Dessa propagação intrigante do cretinismo e da idiotia,

erroneamente entendidos como produtos de uma só etiologia - o bócio dos

ascendentes - não escapava unia aldeia da Áustria, Syrnitz, onde o

governo austríaco realizou em 1844 um levantamento que produziu

resultados alarmantes.

100 - Deficiência mental

Devido aos inegáveis êxitos pedagógicos de Itard, de alguns abades

e das escolas ou institutos similares que se haviam criado após o Essai

de Belhomme (1824); outra, derivada do latahismo organista de Fodéré

(1791) e de Pinel (1801). A tentativa de síntese desses dois contrários

será a obvia mestra de Seguiu, de 1846, um esforço de conciliar a


incurabilidade e inviabilidade dos organistas radicais com a

educabilidade partilhada por pedagogos e médicos adeptos da "medicina

moral" ou da ortofrenia.

Nas várias escolas e asilos os deficientes demonstravam alguma

capacidade de aprender, principalmente tarefas simples manuais quando

formalizadas e gradativamente treinadas a partir de atividades naturais

de interação com os objetos e problemas do ambiente físico.

Havia, aliás, do lado pedagógico, sólida doutrina sobre a

necessidade e conveniência de uma didática natural que resultava das

obras de Pestalozzi, Rousseau, Condillac, Locke, Comenius e, ainda mais

remotamente, de Montaigne. Nas instituições caritativas de Pestalozzi

(1746-1887) desenvolvia-se unia metodologia inarticulada mas


naturalista

já desde o esforço épico do mestre de Neuhof (1774-1780) e


principalmente

na escola de Yverdon, que recebeu por volta de 1808 a visita de um

sofrido e arguto mestre-escola de nome Augusto Frederico Froebel (1782-

1852).

Dessa visita nasceu uma ponderada reflexão de Froebel sobre algumas

falhas do método de seu venerado mestre Pestahozzi e, mais que isso,

surgiu um sistema de educação especial para a primeira infância, cujas

características o tornavam aplicável também a crianças deficientes

mentais.

O método exigia toda uma revolução na organização escolar física e

funcional, além de requerer alguns materiais especiais, simples mas

eficazes, para os propósitos do sistema de Froebel. É assim que, da

rusticidade de Neuhof e Yverdon e dos cuidados ecológicos de Abendberg,


a

história da escala chega aos bucólicos "jardins de infância" de


Froebel,
criados a partir de 1840, sobre o modela do primeira, em Blankenburg.

As escalas de tipo montessoriano que surgirão na primeira década do

século XX terão muito dos "jardins" de Froebel, embora sua criadora se

ache mais ligada às idéias de Itard e Seguiu.

Pré-ciência e pseudociência - 101

A metodologia de Froebel essencialmente naturalista e, pois,

antiformalista, baseia-se em princípios definidas: cada criança tem sua

individualidade, que deve ser respeitada; mais executiva que receptiva,

cada criança deve desenvolver-se livremente; toda criança gosta de

observar, de movimentar-se e de ter uma ocupação e um lugar

exclusivamente seu; as ocupações manuais são as únicas que satisfazem a

atividade da criança, pois são um jogo; a educação deve começar antes


dos

seis anos e a escola assim concebida é mais proveitosa que a família,

onde são inevitáveis a coerção e a imposição de atividades. Esses

princípios são os que regem, ainda hoje, numerosas escolas para

deficientes mentais ou crianças normais. Mas os recursos "didáticos" de

Froebel são ainda mais significativos e atuais, na área da educação

especial.

Eis alguns recursos: jogos ginásticos e cantos limitativos,

histórias e poesias muito simples e vivas; uni canteiro de jardim,

individual, "prendas" ou "dons" constituídos de objetos aptos a


servirem

coma brinquedo e como instrumento de atividade manual, coma a bola, o

cubo, o cilindro; blocos de madeira para a instrução e exercícios

sensoriais; prismas, caixilhos, molduras.

Entre os exercícios ou ocupações Froebel propõe: trabalhos com

figuras e sólidos geométricos recortados em madeira; dobraduras e

recortes; tecedura com diferentes fios; composição de contornos ou

figuras, com fios, palitas, contas, argolas; bordados sobre placas já


perfuradas; moldagem com argila, caixas de areia para moldar paisagens
e

construções.

Programada antes de 1840, essa relação de materiais satisfaça hoje

as exigências de muitas escolas para deficientes mentais.

Enquanto Froebel preparava seu kindergarten, continuavam rosetando

as idéias de Fodéré sobre a relação entre bócio e oreinismo e entre

cretinismo e idiotia.

O cretinismo, herdado ou mudêmico, se manifestava pela idiotia,

além das sintomas clínicos que podiam ser mais, ou menos, evidentes. E

prosperava também nas regiões mais diversas da Europa o bócio endêmico,


o

cretinismo e também a idiotia.

102 - Deficiência mental

Dessa propagação intrigante do cretinismo e da idiotia,

erroneamente entendidos como produtos de uma só etiologia, ócio dos

ascendentes - não escapava unia aldeia da Áustria, ;yrnitz, onde a

governo austríaca realizou em 1844 um levantamento que produziu

resultados alarmantes. O proprietário da fazenda em que ficava a aldeia


a

comprara de uma família em que todos os membros eram cretinas e


afetadas

pelo bócio, sendo o comprador e sua esposa provenientes de uma "aldeia

sadia". A esposa morreu "com bócio e semi cretina", segundo o relata de

Baihlarger e Krishaber, que descrevei o caso e que assim prosseguem: "o

proprietário casou-se de novo com unia mulher sadia que, por sua vez,

sucumbiu à mesma degenerescência; o próprio marido tornou-se


semicretino;

os cinco filhos do primeiro leito foram vitimados pela degenerescência;

quanto aos dois filhos do segundo leito, uni de três anos e outro de
apenas um alio, até o momento desta comunicação ainda estavam sãos de

aparência. Mas o Sr. Wihleger, autor desta observação, afirma que os

cinco filhos do primeiro leiga também pareciam sadios nos primeiros


amuos

que se seguiram ao nascimento, o que não impediu que degenerassem

completamente mais tarde. E ele acrescenta que seu pai assinalara que
os

empregadas que vinham de regiões estrangeiras habitar na fazenda - . -

perdiam gradualmente as faculdades intelectuais e terminavam em cair no

mais completo cretinismo. Deve-se acrescentar que todas as crianças

nascidas nessa fazenda são cretinas no mais alta grau e a


degenerescência

ataca até a gado de chifre - . ." (Baillarger e Knishaber, 1879).

Relatos como esse davam força à visão untanista e fatalista de

Fodéré, já que a idiotia, com suas formas ou graus atenuados - chamados

imbecilidade e debilidade mental - seriam efeito ou correlato


inevitável

do cretinismo ao semi cretinismo, senda este herdado ou congênito, ou

mesmo endêmica. Mas a filho de pais com bócio carregava sempre a

tendência inata ao cretinismo e suas manifestações: idiotia e outras.

Ao panorama virginais dos jardins de Fmoebel contrapõe-se o quadro

tenebroso da degenerescência pela qual, segundo Fodéré, a idiotia é o

grau último de uma degradação da espécie, que começa com o bócio e o

cretinismo.

A teoria sistemática e abrangente da degenerescência será elaborada

mais tarde, em 1857, por Morei (1809-1837), acentuando o inatisma da

deficiência mental proposto e defendido por Fodéré já em 1791.

Pré-ciência e pseudociência - 103

Narrativas e registros, como os do Sr. Willeger, e pesquisas como

as do governo austríaco tornavam-se cada vez mais freqüentes e


alarmantes. A conclusão que apontavam e que convinha invalidar era a de

que em numerosas regiões, às vezes extensas e populosas, a maior parte

das crianças, quando não todas, carregavam o gene da oligofrenia, fosse

ela a idiotia ou outra afeção análoga. Urgia um estudo amplo e

aprofundado do problema e para isso foram convocados os luminares da

biologia e da medicina reunidos em comissão de investigação.

O rei da Sariema convocou em 1848 grandes sábios da medicina

européia para comparecer a chamada Comissão Sarda que deveria estudar a

questão cretinismo-idiotia numa das regiões mais afetadas, o Piemonte;

daí a denominação de Comissão do Piemonte à equipe instituída pelo

governo sardo e com a qual passou à história. Vale lembrar que na mesma

região um censo ordenado por Napoleão em 1811 apontava três mil idiotas.

A deficiência mental, que após a inquisição se tornara um problema

médico e não mais teológico, passara de um enfoque supersticioso a um

tratamento naturalista, por parte de muitos médicos e raros pedagogos;

essa atitude naturalista, porém, não implica necessariamente a


abordagem

científica da questão. A verdade não é mais buscada no dogma traduzido

pelo clero, mas ainda emana de uma autoridade, que domina o saber e o

poder diante da deficiência mental. Essa autoridade que dirige a busca


de

explicações e as iniciativas educacionais, terapêuticas institucionais


e

que arbitra as polêmicas é o médico. Tal foi, na história que tios

interessa, o papel de Wilhis, Valsava, Chiaruggi, Fodéré, Pinel,

Esquirol, Belhomme, Ferrus e outros.

Na medida em que a autoridade do sábio e não o rigor e a repucabilidade

da metodologia de pesquisa é o critério de validade e fidedignidade, o

enfoque da deficiência já não é necessariamente supersticioso e já não


é

metafísico; é naturalista mas pré-científico, e pai- vezes


pseudocientífica.

Tal é o caráter das numerosas e seríssimas pesquisas realizadas

pela Comissão Francesa cujo relatório mais crítico, publicado em 1873,

também não escapa do feitio pré-científico que, de nesta, se identifica

nas obras de todos os luminares acima citados.

104 - Deficiência mental

Com tais relatórios, o princípio da autoridade médica como critério

de validade doutrinária no campa da oligofrenia fica, senão abalado,

arranhado, pois além de incompatibilidades e contradições entre

autoridades diversas e resultados de pesquisa discrepantes os


relatórios

dividem os estudiosos em pelo menos dois campos: pró fatalismo e


inatisma

ou contra tais posturas.

Mas a crítica à onisciência e à hegemonia doutrinária dos médicos

viria de um deles, cano se verá adiante.

III

Pré-ciência e pseudociência

O nefasto "Tratado do bócio"

Pinel terá, certamente, sabido dos auspiciosos resultados de Itard

no ensino de Victor, o selvagem, que pelo prognóstico do grande


alienista

deveria estar inovando nas Petites Maisons de Bicêtre.

Como é possível tamanho descompasso entre a pedagogia (ou medicina

moral) de Itard e a rigidez fatalista da neuropsiquiatria de Pinel? O

diagnóstico e o prognóstico não admitem dúvidas sobre a

irrecuperabilidade do selvagem, rotulado, então, de idiota.

Quando Paracelso e Cardano entenderam e proclamaram que os amentes


(e dementes) não eram uma questão teológica ou moral, mas configuravam
um

problema médico, a intenção primeira era livrá-los de maus tratos e

injustiças já que sua anormalidade se explicaria por infortúnios


naturais

e não por atuação de forças infernais ou divinas. Abolir o fatalismo

teológico era a meta; e com esse resultado aboliu-se o dogmatismo

clerical mas não se inaugurou o enfoque realista científico da

deficiência mental.

A característica altamente especulativa da medicina de então, ainda

pré-científica, substituiu a autoridade do inquisidor ou do reformador

pela do clínico, enquanto a argumentação canônica e teológica cedia


lugar

à afoita classificação anatomofisiológica dos pacientes segundo quadros

clínicos compostos, de costume, mais segundo a lógica e a semântica do

que de acordo com a observação objetiva.

68 - Deficiência mental

A mesma arbitrariedade que mascara o deficiente corno bruxo

possesso ou herege, agora, a partir de Paracelso e Cardano, o denomina

cretino, idiota ou amente. A linguagem não é a do clero ou das bulas

papais, mas o autoritarismo e o dogmatismo são os mesmos, trazendo no

bojo a marca do inapelável.

Não é, pois, de estranhar que o fatalismo ainda perdure, embora

humanitário e embora baseado na experiência clínica ao invés dos


cânones
e decretos conciliares, até meados do século XIX, mais de duzentos anos

após.

A fatalidade hereditária ou congênita assume o lugar da danação

divina, para efeito de prognóstico. A ineducabilidade ou

dementes e amentes, de modo a humanizar-lhes a vida e a renovar os


processos de tratamento médico-hospitalar. Natural da Sabóia, região

famosa pela grande incidência de bócio endêmico, o famoso médico


aceitou

o encargo de compor uma comissão encarregada pelo governo de propor

medidas que eliminassem aquela endemia. Ë dessa experiência que


resultou

o seu Tratado do bócio e do cretinismo, importante contribuição para a

medicina social mas deletério para a teoria e a pedagogia da


deficiência

mental.

Doze anos antes do tratado, eis o que a 3•a edição da Enciclopédia

de Diderot e D'Alembert registrava no verbete Crétins, retratando o

entendimento de 1779 e dos anos imediatamente seguintes: ". . . dá-se

esse nome a uma espécie de homens que nascem no Valais em grandíssima

quantidade, e sobretudo em Sion, sua capital. Eles são surdos, mudos,

imbecis quase insensíveis aos golpes e têm bócios pendentes, até a

cintura, muito boas pessoas, aliás; eles são incapazes de idéias e não

têm senão um tipo de atração muito violenta por suas necessidades.

Abandonam-se aos prazeres sensuais de toda espécie e sua imbecilidade

lhes impede de ver nisso qualquer crime. A simplicidade das populações


do

Valais as leva a considerar os cretinos anjos tutelares das famílias, e

as que não os têm acreditam estar muito mal diante do céu. Ë difícil

explicar a causa e o efeito da cretin ice (cretinage). A sujeira, a

educação, o calor excessivo dos vales, as águas, os próprios bócios,


são

comuns a todas as crianças dessas populações. Contudo, nem todos eles

nascem cretinos. Morreu um deles em Sion durante a permanência do Sr.

Conde de Maugiron, da Sociedadc Real de Lyon; não lhe permitiram abri-


lo.

Dessa descrição bizarra até o Tratado de J. Emanuel Fodéré pouca

coisa muda, na essência, na conceituação do cretino e da relação entre


bócio e cretinismo. Nós consideramos nefasto o tratado porque com um

enfoque pré-científico avaliza, reforça e consagra a idéia do fatalismo

hereditário da deficiência mental, como veremos a seguir.

Nesse tratado que se formula a lei de que o bócio é o primeiro

degrau de uma degenerescência cuja última expressão é o cretinismo: "o

cretinismo não se encontra senão onde se acha o bócio e por isso


presumo

que ele não é mais que o efeito imediato do bócio tendo por causa
remota

a mesma que a do bócio. . . A propagação do cretinismo implica sempre

pais afetados de bócio."

Pré-ciência e pseudociência - 71

Assim fica demonstrada a transmissão do cretinismo por pais doentes

de bócio. Se a isso se acrescenta que a idiotia passa a constituir, já


na

época de Fodéré, um sintoma conclusivo ou uma forma atenuada da doença

chamada cretinismo, hereditária ou congênita, vê-se inaugurado, com


base

em minuciosas necrópsias e descrições antroponlétricas e morfológicas,


o

fatalismo genético da idiotia e de suas supostas formas brandas: a

imbecilidade e a debilidade mental.

Se não há o cretinismo, forma grave de deficiência mental, sem que

os pais ou avós do cretino sejam doentes de bócio, o cretinismo é


herdado

e, por conseqüência, as formas outras de deficiência intelectual passam


a

ser graus menores de cretinismo, formas atenuadas, mesmo recessivas, da

doença hereditária. E essa tese do Tratado do Bócio que dirigirá o

pensamento médico na área, pelo menos até as primeiras décadas do


século

XX.
No Tratado é lançada claramente a semente da teoria da

degenerescência de Morel, que surgiria em 1857, com um efeito ainda


mais

catastrófico sobre a sorte dos deficientes mentais. Mas, as idéias de

Fodéré já são suficientemente funestas: o cretinismo implica sobretudo


a

degradação intelectual que será maior ou menor conforme o grau de

cretinismo. Desse modo, as diferentes gradações do retardo no

desenvolvimento intelectual serão vistas como diferentes graus de tara

hereditária, de modo a sugerir que o problema da deficiência mental

encontra sua solução radical na segregação ou esterilização dos adultos

afetados por bócio, de uni lado. De outro, implica que a erradicação


das

causas da incidência do bócio eliminaria, senão todas, a maior parte


das

incidências de deficiência mental. Isto porque, eliminado o bócio não

mais existiriam cretinos e, portanto, não haveria os semicretinos a

procriar filhos que fatalmente seriam cretinos ou, no mínimo, idiotas


ou

imbecis. Uma tal análise médica da endemia do bócio deveria ganhar


enorme

repercussão e gerar atitudes e posições teóricas ante o deficiente

mental, exatamente como a doutrina clerical católica ou luterana haviam

feito, a seu tempo.

70 - Deficiência mental

Unitarisnio e tipologias

As evidentes diferenças entre tipos de deficiências mentais não

motivaram contestações à visão unitária de Fodéré, para o qual

('1

3-.
o

3-.

o.

N o

- .~J - - - o.

~z

o.

o K 2

o.

1-.

4.3~ -

72 - Deficiência mental

São todos formas ou graus de cretinismo. Os quadros clínicos

preexistentes determinam e distorcem a observação dos casos. Ë o novo

dogma a reger o trato da deficiência mental: o dogma médico, também

carregado da idéia de fatalismo e irrecuperabilidade da deficiência. E


o

início das tipologias da deficiência mental.

A obra de Itard parece deslocada e desarraigada na história do

conceito da deficiência mental. Mas, não é uni acidente histórico: ela


é

o produto natural da evolução histórico-filosófica do naturalismo

pedagógico desde Rabelais a Locke, deste a Rousseau, aos


revolucionários

igualitaristas, a Condillac, a Itard: este, como realizador de um ideal


e

de um ideário pedagógico. O saber médico fica totalmente ausente nesse

processo, que terá sua evolução ulterior relativamente independente da

medicina, como Seguin, Belhomme, Guggenbuhl, Froebel, Montessori,


Decroly

e outros.

Mas •a evolução filosófico-pedagógica não enriquece o conhecimento

da deficiência mental: lida com ela, combate-a, redime-a, porém não a

explica, não a evita, não a previne. Ë a evolução do conhecimento


médico,

na ausência da psicologia ou outra ciência do comportamento, que guiará


a

teoria, e, grosso modo, a "terapia", enquanto a deficiência mental for


um

problema orgânico e medicável.

A educação especial de hoje, enquanto tecnologia, enfrenta óbices

por desconsiderar as carências orgânicas (estruturais e funcionais) dos

pacientes que a medicina ainda pré-científica do século XVIII começara


a

identificar.

De outro lado, a teoria da deficiência mental (e as atitudes que

possa gerar) defronta-se com preconceitos que têm sua origem na


hegemonia

doutrinária daquela mesma medicina, durante os séculos XVIII e XIX.

Do estilo médico de então, encontrada uma hipótese que explique

razoavelmente um tipo de doença, estender a explicação a quadros


clínicos

semelhantes com base na analogia descritiva da sintomatologia. Assim


como

a "contratilidade muscular", ou a "elasticidade da fibra", ou as

simpatias, ou a "irritabilidade" criadas para explicar um conjunto

limitado de eventos neuromusculares passaram a explicar distúrbios

cardiocirculatórios, endocrinológicos, gastrointestinais e sensoriais.


Pré-ciência e pseudociência - 73

A tentação de unificar apressadamente o conhecimento leva por vezes

a explicações unitárias que englobam e-ventos funcionalmente e

etiologicamente incompatíveis. O unitarismo da análise médica da

deficiência mental é um bom exemplo: achada uma explicação plausível


(!)

para o cretinismo, estende-se a mesma a idiotia, à imbecilidade, à

debilidade mental e até à surdo-mudez, como se essas carências ou

distúrbios não fossem ou não pudessem ser funcionalmente e

etiologicamente diversos e até incompatíveis.

Para manter a visão unitária e ao mesmo tempo dar conta da óbvia

diversidade dos distúrbios a solução, meio mágica, é considerar a

multiplicidade como uma gama de variações de um processo patológico

único. É assim que surgirão as tipologias ou classificações e com elas


a

mentalidade classificatória mia concepção da deficiência mental: o

cretinismo é a doença unitária e herdada, que se apresenta, para


Fodéré,

em diversos graus e/ou tipos, como cretino puro, idiota e imbecil.


Esses

tipos serão acompanhados de outros, por volta de 1875: os semicretinos


e

os cretinóides.

Todos esses tipos serão designados comumente de cretinos (ou

idiotas) já em 1811 no censo ordenado por Napoleão na região de


Simplon,

e em numerosos censos e tratados, todos descendentes do Tratado do


Bócio.

Uma criança, em 1805 ou 1810, era normal ou cretina; no segundo caso

seria encaixada em um dos tipos supracitados e, consequentemente,

declarada incapaz, dependente, inútil e, portanto, marginalizada do

processo cultural e educacional. A teoria da deficiência começará a ser


abalada apenas no século XX graças aos progressos da psicologia, da

biologia, da genética, e graças a iniciativas pedagógicas ousadas, a

desafiar e revolucionar as teorias da deficiência, nascidas no ambiente

médico e, portanto, marcadas a ferro, pelo viés organicista mais ou


menos

fatalista. Este sobreviverá, na segunda metade do século XX, apenas no

seu campo eletivo e inalienável: o da genética médica.

A inércia de uma cultura para mudar sua atitude e suas praticas

ante a deficiência mental parece diretamente proporcional à difusão do

fatalismo e do unitarismo na concepção do retardo mental. É por isso


que,

após quase dois séculos, o Tratado do Bócio ainda determina o


pensamento,

embora essa influência seja mediada por tratados, tipologias e

genealogias, como as de Esquirol, Belhomme ou Dubois, por exemplo.

Pré-ciência e pseudociência - 75

Hipótese da hereditariedade do cretinismo, a partir do bócio dos

pais, este tido ora corno endêmico ora como hereditário ou congênito.

Enquanto isso o esforço pedagógico de Itard prossegue, fundado na

filosofia, mia observação e na reformulação sistemática do método da

observação.

Pinel

O grande Philippe Pinel publicou sua obra mestra, o Tratado médico-

filosófico sobre a alienação mental, em 1801, no mesmo ano em que Itard

escrevia a Mémoire sobre o selvagem de Aveyron e convidava Edouard


Seguin

a colaborar em sua tarefa médico-moral.

A análise mais severa da contribuição de Pincl à teoria da

deficiência mental será precisamente a de Seguin, aluno de Esquirol e

discípulo de Itard.
O diagnóstico sobre Victor mostrava a rigidez da avaliação de

Pinel: não sendo normal, Victor é um idiota; e sendo grave essa


idiotia,

o menino de Aveyron é irrecuperável. Mas Pinel escreve sob a influência

do Tratado do bócio e do cretinismo, numa época em que, portanto, a

idiotia era apenas uni sintoma do cretinismo, então incurável. No


Traité

de 1801 a preocupação maior é com a demência sob a forma de mania, e a

deficiência mental recebe unia atenção apenas secundária enquanto tipo


de

insanidade mental, ao lado de outros.

Com essa obra, entretanto, Pinel consagra o fatalismo de Fodéré ao

colocar o problema da idiotia no domínio da patologia cerebral. A

deficiência recebe com Pinel um locus anatomofisiológico que o Tratado


do

Bócio não lhe assegura. Com Fodéré ela fora proposta como herdada (sob
a

forma de cretinismo, atenuado ou não) e inevitável; com Pinel ela se

apresenta definitivamente orgânica e questão de neuropatologia.

76 - Deficiência mental

Nas obras de Pinel, Esquirol, Belhonmme e, até certo ponto, do

próprio Seguiu, que os critica, um traço comum é a busca mais ou menos

desesperada de aspectos orgânicos e/ou funcionais dos pacientes, que

permitam distinguir cretinos, idiotas, cretinóides, imbecis e


retardados

ou, ainda, graus dessas categorias ou tipos.

Não se procuram etimologias típicas, mas quadros típicos que

encaixem as diversidades na etiologia conhecida. Na composição desses

quadros juntam-se, a igual título, dados anatômicos, antropométricos,

comportamentais, misturando-se longos registros de observação com

informações interpretativas sem qualquer objetividade, ou com dados

visados por condições transitórias em que se executa a observação.


O importante é compor quadros peculiares, com sintomas claramente

orgânicos ou redutíveis a distorções anatômicas ou disfunções

fisiológicas, umas e outras inferidas de respostas fisiológicas ou

comportamentais, provocadas e registradas quase sem objetividade e

irreplicáveis.

Propor quadros diversos a partir de uma única matriz ao invés de

procurar relações causais especiais para as variedades de deficiências

encontradas: tal é a direção da teoria da deficiência mental sob a

hegemonia doutrinária da medicina, como denunciará Seguin (1846).

Os elencos de sintomas componentes de cada quadro, da idiotia, por

exemplo, são diversos para Pinel, Esquirol, Belhomme e outros, embora

alguns elementos possam ser comuns a dois ou mais autores; e essa

diversidade, aliada à autoridade doutrinária do médico, resultará em

polêmicas mais ou menos acres e inúteis que distinguem a evolução da

teoria da deficiência mental durante quase todo o século XIX.

Na medida em que os quadros se enriquecem de novos traços ou

sintomas, a probabilidade de um destes ser incorporado a quadros


diversos

por diferentes autores aumenta, gerando obviamente confusão e polêmica.


É

assim que, por exemplo, Seguiu critica Pinel por "haver confundido a

imbecilidade e até mesmo a demência com o idiotismo".

Pré-ciência e pseudociência - 77

E a síntese de Pinel, em forma de definição, presta-se bem a tal

crítica quando define a idiotia como "abolição mais ou menos absoluta,

seja das funções do entendimento, seja das afecções do coração". Com


tais

abolições genéricas, 33mais ou menos absolutas" pode-se, de fato,

designar qualquer forma de demência ou amência, e para não parecer que


a
subjetividade e imprecisão se devem a conveniências de síntese ou

concisão é importante ilustrar os próprios dados em que a definição se

escora, tomando de Seguiu (1846) uma das observações minuciosas de


Pinel

transcrita ipsis litteris com o comentário de que a riqueza de


pormenores

é tal que "lendo-a não se percebe que ela conduz a nada".

Escreve Pinel, na 2.~ edição do Traité, em 1809: "Um dos casos mais

singulares e dos mais extraordinários que jamais foram observados é o


de

uma jovem idiota, com idade de 11 anos que, pela forma da cabeça, seus

gostos e sua forma de vida, parecia aproximar-se do instinto de uma

ovelha. Durante os dois meses e meio que ela ficou no hospício da

Salpêtrière ela evidenciava unia, repugnância particular pela carne, e

comia com avidez substâncias vegetais como pêras, maçãs, salada, pão,
que

ela parecia devorar, bem como uma bolacha particular de sua aldeia que
a

mãe lhe levava de vez em quando. Ela não bebia senão água e demonstrava
a

seu modo um vivo reconhecimento por todos os cuidados que a atendente


lhe

dispensava. Essas demonstrações de sensibilidade limitavam-se a

pronunciar estas duas palavras, bé, ina tante, pois ela não podia

proferir outras palavras e parecia inteiramente muda pela mera falta de

idéias, pois que, aliás, sua língua percebia conservar toda a sua

mobilidade. Ela tinha também o costume de executar movimentos

alternativos de extensão e flexão da cabeça, apoiando, à maneira das

ovelhas, essa parte contra o ventre da atendente corno testemunho de

gratidão. Ela tomava a mesma atitude em suas brigas com as outras

crianças de sua idade, que ela tentava golpear com a parte superior de

sua cabeça inclinada. Abandonada a um instinto cego que a aproximava


daquele tipo de animais, ela não podia pôr um freio a seus movimentos
de

cólera e suas irritações que, por causas das mais banais ou mesmo sem

causas, iam até as convulsões. jamais se conseguiu fazê-la sentar-se

sobre uma cadeira para repousar ou para fazer suas refeições, ela
dormia

com o corpo estendido no chão, encolhido, à maneira das ovelhas. Todo o

seu dorso, as costas e os ombros, estavam cobertos de uma espécie de


pelo

flexível e escuro, com extensão de unia e meia ou duas polegadas e que


se

assemelha à lã por sua finura; o que constituía um aspecto muito

desagradável.

78 - Deficiência mental

Tanto que os saltimbancos que haviam tido notícia do estado dessa

jovem idiota tinham proposto à mãe exibi-la nas festas e feiras da

vizinhança, corno um objeto de muito rara curiosidade, o que lhes foi

recusado, embora os pais fossem muito pobres. Essa jovem idiota, pela

separação dos pais acabou por cair num estado progressivo de languidez
e

sucumbiu após dois meses e meio de permanência na Salpêtrière: eu

conservei cuidadosamente seu crânio, que é muito interessante por suas

dimensões e forma."

Eis aqui caracterizada a idiotia, segundo Pinel. É de espantar a

frieza com que se assiste ao abandono e ao desamparo, e depois se

conserva o crânio como algo muito interessante, tão interessante quanto


a

exibição da "jovem idiota" numa feira livre. Seguin escolheu essa

descrição para mostrar a confusão de Pinel e para denunciar a omissão


dos

médicos da época em relação aos cuidados com os idiotas. Mas o trecho

vale como amostra do que significou para o deficiente escapar do


inquisidor para tornar-se um assunto médico. A sorte de Víctor e da

educação especial seria bem diversa se Ltard houvesse acatado a


sugestão

do grande alienista de encaminhar o selvagem para o meio dos idiotas de

Bicêtre ou da Salpêtrière. Afora as merecidas censuras de seus

contemporâneos e o nosso justo espanto, o trecho acima mostra a extrema

imprecisão do conceito de idiotia, de urna alta autoridade médica, ao

juntar aspectos morfológicos e anatômicos a julgamentos afoitos sobre a

sensibilidade e a possibilidade de fala, instintos animais, convulsões,

hábitos alimentares, movimentos estereotipados e demonstração de

sentimentos, como gratidão e languidez.

Em nenhum momento se cogita de qualquer esforço de educação ou

mesmo de tratamento moral. Pinel estende aos idiotas o estigma que


Fodéré

impusera aos cretinos, baseado no seu fatalismo organicista. O abandono


e

a omissão são a decorrência lógica dessa postura teórica. A ameaça que

essa atitude representa é mais assustadora ainda quando se lembra que

pode ser considerada idiota e, pois, como tal tratada qualquer criança

que apresente: "abolição mais ou menos absoluta, seja das funções do

entendimento, seja das afecções do coração". Além de reacionária, a

posição de Pinel éretrógrada, se recorda que Chiaruggi, já em 1793,

definira a demência como déficit de entendimento e de vontade,


exatamente

como faz Pinel oito anos após.

Pré-ciência e pseudociência - 79

Não é fácil conciliar essa concepção da deficiência com o fato de Pinel

ter, em 1795, seis anos antes, imposto na Salpêtrière a abolição de

algemas, grilhões e cadeias que aprisionavam os dementes. O abandono


dos

idiotas tinha uma atenuante teórica, pois o tratamento moral de Pinel


baseava-se na idéia, aristotélica, de que a saúde mental dependia do

equilíbrio das paixões, que no idiota estariam mais ou menos abolidas.


A

idéia de Pinel de que a idiotia é incurável repousa no postulado da

disfunção orgânica de terapia difícil ou impossível, pois dificilmente

identificável; alguma forma de patologia cerebral: eis a causa da

idiotia. Mas a doutrina funda-se também na visão unitária da


deficiência,

segundo a qual idiotia, imbecilidade e deficiência mental são sintomas


de

degeneração no nível do sistema nervoso central, de crigem hereditária

como o cretinismo, aliás como doutrinara Fodéré em 1791.

80 - Deficiência mental

Essa teoria unitária da deficiência mental durará no mínimo um

século, mio qual florescerão tipologias, quadros clínicos, polêmicas,

cujo único ponto em comum é a idéia da irreversibilidade da deficiência

independentemente de sua ocorrência em formas atenuadas.

A natureza constitucional atribuída ao cretinismo, cujos traços

enfraquecidos e difusos se espargem por toda a população de 4'cada zona

onde o bócio é endêmico, como ensina Ferrus, é a razão 4 última, porque


a

"jovem idiota" de Pinel personifica a volta ao leprosário.

Os novos progressos de Victor

Mas enquanto o modelo teórico dos médicos e de Pinel, unitário e

fatalista, prescreve o abandono do jovem idiota ou Victor aos


corredores

ou porões de Bicêtre, Itard, médico embora, insiste em acreditar na

educabilidade de Victor. E será de seus esforços e dos que gerou, por

parte de Seguiu e, mais tarde, de Maria Montessori, que resultará o fim

do fatalismo unitarista da teoria médica da deficiência mental, ainda


que
tardio, somente no século XX.

Enquanto c~mn o Traité Pinel atraía aplausos e nova glória, ltard,

com a seriedade que o caracterizava, deve ter refletido longamente


sobre

os sucessos e insucessos de seu ensino, e, por conseqüência, sobre a

teoria da estátua cm que o alicerçara, conforme publicara na Mémoire

(1801). Terá percebido, lúcido e crítico como era, que suas decisões

quanto a programas e métodos didáticos eram poderosamente determinadas

pela intenção de demonstrar a validade daquela doutrina..

Pré-ciência e pseudociência - 81

No Rapport sur les nouveaux développements de Victor de l'Aveyron

(1806, impresso em 1807) nota-se uma patente mudança de intenção geral:

embora os princípios da metafísica de Condillac nom-teicni a

interpretação e a narração dos novos passos da educação de Victor, os

conteúdos e a condução do ensino respeitam prioritariamente, senão

exclusivamente, os requisitos individuais do repertório incipiente do

aluno. O Rapport parece libertado do compromisso de demonstrar ou


testar

hipóteses ou doutrinas. Agora, a metodologia é mais flexível, o


discurso

perde em polêmica e lucra em fluidez e clareza e, sobretudo, as


decisões

são tomadas cciii base em conveniências didáticas ou práticas do

enriquecimento cultural e técnico do educando. Após os esforços da

Métnoire a estátua está desperta e atenta, raciocina, avalia, ama,


odeia,

detesta e quer: apenas não fala, mas para a teoria esse corolário
prático

não é fundamental. Agora Itard busca decididamente a autonomia do

educando. As seqüências de tarefas e passos não visam, miem de longe,

aferir capacidade e limites como era freqüente na Ménmoire.


Agora, o que interessa é tornar o aluno capaz de conseguir mio meio

social e por si mesmo as condições de sobrevivência pessoal a que tem

direito. Se o avanço em tal rumo comprovar a teoria de partida, tanto

melhor para a teoria: objetivo prioritário, senão único, é o progresso


de

Victor, e para consegui-lo a metodologia e as opções didáticas se

desvinculam de quadros doutrinários assumidos a priori. O Rapport tem

três partes, das quais a primeira versa sobre "O desenvolvimento das

funções dos sentidos", que passa a ser narrado após unia curta

introdução, onde sobressai uma advertência preliminar de espírito

claramente antinormatívo: "para avaliar o estado do jovem selvagem de

Aveyron seria necessário recordar seu estado passado. Esse rapaz, pai-a

ser julgado sensatamente, não deve ser comparado senão

a ele mesmo. impõe-se, diante dessa afirmação, convir em que


"repertório

de entrada", "linha de base comportamental" e outras expressões


similares

são vestes novas para idéias não tão jovens., de 1806, ou ainda mais

idosas.

82 - Deficiência mental

A engenhosidade do mestre e a tolerância do aluno ficam evidentes

nessa primeira parte do Rapport. Victor é conduzido gradualmente a

perceber diferenças sutis entre sons. Começando pela discriminação


entre

os sons de uma sineta e uni tambor, o selvagem, de olhos vendados pai-a

impedir que se distraia, passa a distinguir somas de diversos objetos

percutidos, como o couro de tambor ou o aro que o circunda ou a parede

cilíndrica do instrumento.

Das percussões o programa passa às discriminações entre sons de um

instrumento de sopro, "mais análogos aos da voz", até que Victor

percebesse sons vocais mesmo que temente emitidos. O passo seguinte


consiste em comparam sons da voz htmmatia e discriminar eiitre eles.

Sabidas as dificuldades auditivas de Victor o acesso a tal

discriminação implicava um desafio formidável, já que ouvir um som e

outro é bem diverso de perceber diferenças entre eles. O progresso de

Victor foi lento e difícil mas conseguiu discriminar as vogais.

De olhos vendados, Victor deveria estender um dos dedos das mãos

para cada vogal que ouvisse: o polegar ao escutar o A, o indicador


quando

ouvisse o E, o médio se percebesse o 1, etc.

Sendo-lhe muito difícil discriminar entre E, 1 e o U francês o

aluno passou a distrair-se facilmente e a fornecer respostas


aleatórias,

o que motivou, após muitos esforços para assegurar a atenção de Victor,

uma decisão desastrosa de Itard: golpear levemente a mão do aluno cc.m


a

baqueta do tambor, a cada resposta errada.

Victor entendeu os golpes como brincadeira e seu desempenho piorou

rapidamente, e então Itard passou a golpear com força as mãos do aluno

até que, de tanta dor, este começou a chorar.

Se para Itard não era fácil perceber que as "distrações" do aluno

eram "esquivas" de uma tarefa excessivamente difícil para seu ouvido

deficitário, foi-lhe fácil perceber, dali por diante, quanta ansiedade

resultou da associação entre a percepção de impotência e a ameaça de

punição, uma associação resultante da decisão, em má hora adotada, de

punir os erros de Victor.

Desde então, a cada vogal pronunciada o alumio estendia timidamente

um dedo, recolhia-o, estendia outro, hesitante, incerto e, acima de


tudo,

aterrorizado. Itard esperava "que o tempo, muita doçura e modos

encorajadores pudessem dissipar essa exagerada timidez", mas "esperei


em
vão e tudo foi inútil. Assim se diluíram as brilhantes esperanças

fumidadas, talvez com alguma razão, sobre uma cadeia ininterrupta de

experiências tão úteis quanto interessantes. Muitas vezes mais tarde, e

em épocas muito distanciadas, eu tentei as mesmas provas e me vi


forçado

a renunciar a elas novamente, bloqueado pelo mesmo obstáculo."

Pré-ciência e pseudociência - 83

Amarga, a lição que nos fica desse relato é a de que a programação

do ensino e sua execução não podem menosprezar a emotividade do

deficiente, uni risco freqüente dadas as limitadas possibilidades que

costumeirafliCntC eles apresentam pai-a comunicar seus estados

emocionais. Outro viés do procedimento de Itard está na antigüidade e

arbitrariedade com que a punição é aplicada: ouvindo mal, de olhos

vendados e esperando uma brincadeira provavelmente indicando que podia

distrair-se, Victor recebe, sem qualquer advertência ou aviso, uma

autentica paulada, como uru raio em céu sereno, e sem saber se era a

ultimai ou a primeira de urna série e, sobretudo, sem saber qual erro

cometera e que transformara seu protetor em agressor. A percepção da

arbitrariedade e da própria impotência podem ser mais agudas, no

deficiente mental, do que possam imaginar o tecnólogo do ensino ou o


mais

dedicado dos pais.

Inutilmente Itard esperou que o tempo e o carinho dissipassem a

"excessiva timidez" que Victor passou a exibir desde então e "mesmo em

épocas muito distantes" as tentativas de repetir aquelas provas

fracassaram pelo retraimento e medo do aluno.

No tremido da visão a facilidade foi enorme, de modo que Victor

passou em poucos meses da discriminação de letras a de palavras, à

leitura, à composição de palavras com letras recortadas e à escrita.


Quanto ao tato, progrediu da discriminação simples de temperaturas,

de relevos, à de volumes e formas, incluindo os comi-tornos de letras

metálicas, mesmo que fossem pouco diversas entre si como 1 e 1~ ou C e


G,

ou B e R. Desse treino resultou - agudamente, assinala Itard - um


aumento

na capacidade de atenção. O gosto, por sua vez, foi refinado até que

Victor aceitasse alimentos com novos sabores e vinho.

Refinada a percepção sensorial, o programa de ltard concentra seus

esforços no aperfeiçoamento das "futições intelectuais" de Victor e

lembra que o treino sensorial já implicava algum exercício intelectual

pois "concebe-se, na verdade, que instruindo os sentidos a perceber e

distinguir objetos novos eu forçava a atenção a deter-se neles, o

julgamento a confrontá-los e a memória a retê-los".

Pré-ciência e pseudociência - 85

O preconceito de que a aquisição da linguagem deveria começar pela

expressão simbólica da necessidade antes de o objeto necessário estai-

presumiste continua a viciar o programa de ltard, e praticamente


nenhuma

alteração a curto prazo iias atitudes da sociedade em relação ao

problema. Sua eficácia, revolucionária, se exerceria apenas algumas

décadas mais tarde, através dos trabalhos de seu genial discípulo


Seguin,

mais atento à divulgação dos métodos e técnicas especiais, mais

agonístico na argumentação teórica e, sobretudo, bem menos humilde.

A despeito do grande afeto que o unira ao mestre, as menções que

Seguiu faz à obra de Itard lembram irresistivelmente o discurso de


Marco

Antônio sobre Júlio César.

A respeito dos que antes se ocuparam da educação de deficientes

mentais o julgamento de Seguiu se reveste de unia talentosa vaidade e


até
de certa petulância, principalmente ao cm-iticar as doutrinas dos
médicos

sobre a deficiência mental.

Mas, até surgir o texto iconoclasta de Seguiu a hegemonia

doutrinária dos médicos prosseguirá imicontestada difundindo e


infundindo

a atitude fatalista, m-esignatária que, como vimos, é fruto da visão

unitária da deficiência mental como doença hereditária ou congênita

sujeita a variações de intensidade ou a divei-sidades scniiológicas,


mas

sempre vinculada a uma ctiologia única. Essa etiologia única, na versão

mais difundida graças às obras de Fodéré, Pinel e outros era,

fundamentalmente, a relação fatal entre bócio e cretinismo.

idiotia e imbecilidade seriam graus do cretinismo ou sindromes mais

suaves, compostas segundo os sintomas que cada autoridade médica

interessada julgasse associados, a partir da experiência clínica (e das

variações semânticas da terminologia médica).

Dessas autoridades, a que mais influenciou o pensamento medico

sobre a deficiência foi Esquirol (1772-1840). Não só pela autoridade


que

seu brilho como clínico e ortofrenista lhe granjeara mas também pela

evidente preocupação de organizar o conhecimento médico sobre a

deficiência mental no aspecto doutrinário. Os textos de Esquirol

tornaram-se de consulta obrigatória para médicos e pedagogos pelo menos

até as primeiras décadas do século XX.

A definição lapidar de Esquirol aparece em 1818 e se refere à

idiotia que, desde as obras de seu mestre Pinet (1801) e de Fodéré

(1791), se confundira com cretinismo atenuado, emitendido este como

conseqüência, endêmica ou hereditária, do bócio.

84 - Deficiência mental
Essa, mas agora o método muda e passa por nove níveis de

dificuldades, incluindo graus decrescentes de ajuda, até que "eu vi

Victor servir-se a cada instante, seja nos nossos exercícios, seja

espontaneamente, das diversas palavras cujo sentido eu lhe ensinara",

para exprimir necessidade ou para designar objetos. Da designação dos

objetos o treino progride até a generalização e desta à formação de

conceitos dos objetos. Os conceitos de objetos são seguidos pelos

conceitos das funções deles e, enfim, pelo treino de invenção de


objetos

novos para funções necessárias, quando Víctor constrói o seu porta-


lápis

encaixando o toco de seu lápis num improvisado tubo.

Com esses sucessos se estabelece completamente no espírito de

Victor a relação dos objetos com seus sinais. Dali em diante as


relações

entre palavras foram aprendidas e enriquecidas: adjetivos, verbos e até

regras sintáticas são adquiridas, "seguindo também aqui o método das

aproximações insensíveis".

Quanto às funções afetivas o último tópico do Rapport descreve as

progressões de Victor na aquisição de sentimentos e emoções, do

relacionamento social e a adequação de suas manifestações de afeto a

diferentes situações. O organmcmsmno meahista da pedagogia de ltard,

diverso e ate oposto ao organicismo fatalista e hipotético de Pinel e

Fodéré, reaparece nas conclusões do Rapport: "não se pode evitar a

conclusão de: 1.0 que, por uma conseqüência da nulidade quase total dos

órgãos do ouvido e da fala, a educação desse moço ainda é e será sempre

incompleta; 2.0 que, em conseqüência da longa inatividade as faculdades

intelectuais se desenvolvem de modo lento e penoso - - -; 32 que as

faculdades afetivas, saindo de seu longo entorpecimento, encontram-se

subordinadas, cru sua aplicação, ao sentimento do egoísmo e... são o


fruto de sua educação."

88 - Deficiência mental

Esquirol e a teoria negativa

A obra de Itard, cuja riqueza teórica e metodológica apenas

apontamos, exerceu escassa influência na teoria da deficiência mental a

possibilidade de alterar este estado. Nada seria, pois, capaz de dar


aos

infelizes idiotas, por uns instantes que fosse, um pouco mais de razão,

um pouco mais de inteligência."

Esquirol, portanto, estabelece claramente a identidade da idiotia,

explicitamente distinta da loucura com a qual se confundira através dos

séculos. Deve-se notar que sob o nome de idiotia são agrupadas no

Dictionnaire de 1818 quaisquer formas de oligofrenia ou deficiência

mental profunda, embora mais tarde, em 1838, já se formulem critérios

para discriminar graus de deficiência. Por ser mais típica, a


deficiência

profunda se prestava mais, em 1818, à composição de um quadro clínico

próprio distinto da loucura.

Com Esquirol, ficam então diagnosticáveis diferencialrnente a

confusão mental passageira e de incidência mais ou menos geral, a


loucura

caracterizada como perda irreversível da razão e suas funções, e a

idiotia definida como ausência de desenvolvimento intelectual desde a

infância e devida a carências infantis ou condições pré-natais ou

perinatais.

Mais ainda, a idiotia, já na obra de Esquirol, de 1818, se reveste

de características que perdurarão até os dias de hoje no enfoque da

deficiência mental: ela tem base orgânica, é constatável no presente

(qualquer que seja a etiologia passada) e é, em si mesma, incurável.


À vista dó que se disse pouco acima sobre a hegemonia da doutrina

médica da deficiência, como a marca de um longo período na história


desse

conceito, as afirmações de Esquirol requerem algum comentário

principalmente dada a posição histórica especial de seu autor, a


escrever

sobre o assunto após Pinel e antes de Seguiu, aluno que foi do primeiro
e

mestre do segundo.

A visão unitarista de Fodéré, que ligava a um único processo

etimológico o bócio, o cretinismo, o idiotismo, a imbecilidade e a

debilidade mental, havia gerado numerosas polêmicas e pesquisas


voltadas

principalmente para a verificação - ou afirmação - da possibilidade de

ocorrência de idiotismo sem conexão com a incidência de bócio, muito


mais

que verificar se o idiotismo podia existir sem qualquer nexo com o

cretinismo, embora também esse tema fosse objeto de indagações e

tratados.

Pré-ciência e pseudociência - 89

Desse modo persistia, sem refutação definitiva ao tempo de Pinel, a

hipótese de o idiotismo ser apenas um sintonia de cretinismo atenuado,

sendo os imbecis e os débeis mentais portadores da síndrome do


idiotismo

em graus progressivamente menores.

Ora, ao discutir o idiotismo Esquirol não se liberta da influência

unitarista de Pinel nem da preocupação organicista radical que


remontava

ao Tratado do bócio, de Fodéré. Mas, enquanto alienista, a deficiência

mental o interessa também por sua diversidade em relação à demência,


quer

quanto à patologia quer quanto à etiologia.

Pouco o atrai a questão das eventuais diversidades incluídas na


categoria do "idiotismo" de Pinel. Importa-lhe distinguir o denlente do

anhcnte, o louco do deficiente mental: na terminologia de então, o

demente do idiota.

A troca do termo "idiotismo" por "idiotia" não é mói-a contribuição

semântica de Esquirol, mas a designação de uni princípio gerador,

substantivo, subjacente às formas e intensidade diversas de amência,

ausente em qualquer caso de demência ou estupor; para Pinel, não havia

uma clara distinção etiológica ou nosológica entre demência e amência.

Esquirol distingue claramente os aspectos descritivos típicos da

idiotia e alude a um processo etiológica específico. Mas o grande

alienista não se interessava pelo problema dos idiotas e,


prudentemente,

nos oferece uma demonstração eloqüente de cautela. Porque, examinado

criticamente, o texto acima é na verdade urna definição negativa da

idiotia: "ela não é uma doença": o que, então, ela é de fato? Esquirol

escreve: "é um estado no qual as faculdades intelectuais nunca se

manifestaram ou não puderam desenvolver-se - . - ". Ora, não há nada de

positivo: é um "estado" de ausências e carências de algo que, isso sim,

seria o núcleo positivo da definição.

Mas, que é esse algo de que o idiota carece ou foi privado?

Esquirol afirma: a manifestação das faculdades intelectuais e seu

desenvolvimento suficiente para adquirir a educação comum.

Deixando à margem as farpas que Seguiu (1846) distribui aos

seguidores de Esquirol a propósito, da avidez míope com que se

"apropriaram" da definição deste, é importante, aqui, notar que na

evolução do conceito de deficiência mental o texto de Esquirol é umii

marco e uma semente de transformação dou trinaria. Seguiu parece


obcecado

pela idéia de que sua teoria de idiotia é a primeira definição positiva


da idiotia como tipo especial de deficiência mental. Daí sua crítica

mordaz ao texto

de Esquirol e seus adeptos de mais mcnonie mià época.

90 - Deficiência mental

Dissemos que a definição negativa de Esquirol é tini marco

histórico por dois motivos: a idiotia deixa de sem- urna doença e o

critério para avaliá-la é, em última análise, o rendimento educacional.

São dois aspectos transcendentes que gerarão discussões e mudanças

teóricas e assistenciais importantes em épocas ulteriores.

Quando do alto de seu nome, como autoridade médica, Esquirol afirma

que a idiotia não é uma doença, começa a fluir uma corrente de


pensamento

que terminará, muito mais tarde. por abalar a hegemonia doutrinária dos

médicos mio campo da deficiência mental.

De outro lado, e comnplementarmente, ao indicar corno critério

último para aferição da deficiência o rendimento na aprendizagem,

Esquirol legitima o ingresso do pedagogo na área de estudo da


deficiência

mental. Obviamente, o texto em questão representa, isolado, um abalo


mais

ou menos catastrófico da postura organicista radical, mas é preciso

ponderar, aqui, que Esquirol possivelmente estivesse interessado em que

os idiotas fossem confiados a cuidados outros que os do alienista, que


se

liberasse o clínico da responsabilidade de atender a pacientes cuja

melhora, se viável, não se poderia esperar da medicina.

Essa idéia parece plausível à vista de outro trecho de Esquirol, no

qual aponta a diversidade de causas da . idiotia, várias delas


acidentais

ou inevitáveis e, sobretudo, não orgânicas, vale dizer, não médicas:


"As
causas da idiotia são quase sempre locais e físicas. No número das
causas

físicas, das que predispõem pai-a a idiotia, é preciso ter em conta as

influências das águas e do ar, o modo de vida das mães, a

hereditariedade, certas localidades favoráveis às escrófulas, os países

montanhosos, tais como a Escócia e a Noruega - -

À parte o descaso pelos Pireneus e pelos Alpes enquanto regiões

montanhosas, bem mais à vista que a Escócia e a Noruega, esse texto é

expressivo: inclui um único termo médico, escrófula, e mesmo assim

associado a condições geográficas; também inclui, como único termo

biológico ou biomédico, hereditariedade, embora ao lado de outras


causas

"locais e físicas". O fatalismo genético semeado pelo Traité, de


Fodéré,

começa a ser ameaçado.

Pré-ciência e pseudociência - 91

Um exame mais demorado nos mostra, porém, que Esquirol não abre não

da etiologia organicista já que as condições mencionadas como causas

físicas ou predisponentes implicam sempre algum modo de lesão ao

organismo ou, para usar o termo de Esquirol, à organização do paciente.

Começa a abalar-se o fatalismo hereditário, mas não a posição

organicísta.

Esquirol, de fato, prossegue: "há mais idiotas nos campos do que

mias cidades. Não é raro que haja vários idiotas numa família: conheci

dois 'jovens, únicos herdeiros de unia grande família, que eram idiotas
-

- - Algumas vezes, também, numa mesma família há um idiota e outras

crianças que são alienadas .. As causas da idiotia são numerosas. As

emoções fortes da mãe durante a gestação influenciam a organização da


criança ...; os trabalhos errados do parto; o antigo costume, apontado

por Hipócrates, de certas parteiras comprimirem a cabeça da criança


recém

nascida, causando lesão no cérebro, podem custar a idiotia; os golpes


na

cabeça ... as convulsões - . . a epilepsia provocam também essa


afecção;

já se viu a idiotia produzida por uma febre cerebral ou meningite

ocorrida na infância."

A ampla diversidade de causas "locais e físicas", incluindo os

acidentes pré-natais e perinatais, representa um enorme progresso da

teoria se recorda o Tratado do bócio e do cretinismo, de Fodéré. A

propósito, o texto de Esquirol menciona a idiotia sem preocupação de

associá-la ao cretinismo e ao bócio endêmico, embora admita até a


relação

com as escrófulas.

Mas a idéia de incurabilidade da idiotia ganha uma solidez

praticamente definitiva na obra de Esquirol.

Bellmonmmne e os tipos de Esquirol

No Dictionnaíre Scientifique des Sciences Médicales, de 1889,

Chambard afirma que o "movimento pela fundação de estabelecimentos

consagrados especialmente e unicamente aos idiotas" para "tornar a

idiotia menos pesada e mais suportável, senão para curá-la" foi

conseqüência do Essai sur l'idiotie de Belhomme, apresentado à


Faculdade

de Paris, em 1814.

92 - Deficiência mental

Esse ensaio, publicado em 1824, representa um progresso teórico cm

relação à doutrina de Esquírol. A especificidade da idiotia em relação


à

demência estabelecida por Esquirol não toca a questão do unitarismo da

deficiência mental. Entendida, sim, como não-doença e como produto de


carências ou acidentes pré ou perinatais ela permanece, contudo,

incurável e etiologicamente única, mesmo podendo variar em graus ou

tipos.

Tipos e graus de que Esquirol não trata, aliás. seu discípulo

Belhomme que define e ordena tais graus ou tipos numa tipologia ou

classificação sistemática; propõe então que se distinga a idiotia, com

dois graus, da imbecilidade, com três graus. No total, cinco graus de

deficiência mental em duas categorias ou tipos, dos quais o Essai

apresenta exemplos característicos descritas com precisão comparável à

dos casos típicos que Esquirol, seu mestre, apresentaria em 1838 como

"Observações para servir à história da Idiotia".

A definição de Belhomme sobre a idiotia lembra claramente a de

Esquirol: ela é "menos uma doença do que um estado constitucional no


qual

as funções intelectuais nunca se desenvolveram ou não puderam

desenvolver-se muito para que o idiota adquirisse as idéias, os

conhecimentos que a educação dá aos indivíduos colocados nas mesmas

condições que ele". Nessa definição de 1824 Seguiu encontrará, em 1846,

pretexto para reduzir a pó qualquer doutrina sobre a idiotia, latu


senso,

anterior à sua própria obra. Entretanto, é com essa definição que se


abre

dentro dos ambientes médicos a possibilidade de remediar a sorte dos

idiotas, já que seu mal é incurável.

De fato, embora muito semelhante ao de Esquirol, o conceito de

Belhomme inclui uma variação de graus na carência de desenvolvimento


das

funções intelectuais: "ou não puderam desenvolver-se o bastante para


que

o idiota houvesse adquirido - -. conhecimentos".

Em 1838 Esquirol também distinguirá a idiotia da imbecilidade e


graus diferentes em cada uma, a exemplo de Belmonte, que de sua parte

apenas modifica um pouco, e de modo decisivo, em 1824, a definição

clássica de Esquirol, de 1818. Behhomme, sério como poucos de seus

colegas, a juízo de Seguiu, considera ser "inconveniente mudar a

terminologia para designar nuanças de uma mesma doença. Não bastaria a

palavra idiotia", à qual eu juntaria o epíteto completa ou incompleta?

Pré-ciência e pseudociência - 93

"Contudo, corno o termo imbecilidade designa bem a impotência do

espírito, que impede o homem de poder pensar, eu o conservar, mesmo a

contragosto." E l3elhomme propõe sua tipologia ou classificação: "O

idiota completo não tem sequer o sentimento de sua conservação,


enquanto

o idiota incompleto conserva ainda o sentimento de sua existência e


come

como um bruto. E será a mesma coisa com a imbecilidade. Há uma


variedade

na qual o indivíduo não obedece senão aos seus instintos ... Em um grau

superior há algum ato intelectual e há, enfim, o primeiro degrau no


qual

o indivíduo age e raciocina como todos, é educável; fias, não pode

atingir o grau de desenvolvimento intelectual que o homem comum chega a

atingir . - - Essas cinco categorias parecem-me essenciais e mantenho

ainda hoje essa classificação como importante à explicação da idiotia."

Ao pedagogo de hoje não terá passado despercebido o sentido moderno

da palavra educável empregada por Belhomme. Se sobre isso houvesse

dúvidas, bastaria acrescentar um parágrafo do Essai: "Parece-me, aliás,

necessário limitar bem as variedades nas quais há possibilidade de

educação, se pretende aplicar eficazmente os princípios do

desenvolvimento intelectual .."

A progressão da teoria, de Esquirol a Belhornme, fica clara aqui;


distinguem-se categorias dentro da idiotia unitária de Esquirol, e
graus

dessas categorias. Além disso considera-se que existem graus de

imbecilidade que asseguram a educabilidade para desempenhos manuais


(2.0

grau) e mesmo para "agir e raciocinar como todo mundo. . . " (1." grau).

Em 1838 Esquirol completa sua teoria também com uma classificação

em graus: "Para além do homem que goza das faculdades sensitivas e

intelectuais mas que, debilmente organizado, está colocado no último

nível da vida intelectual e social, existem inumeráveis graus; quem

poderia descrever todos os matizes de degradação que separam o homem


que

pensa do idiota, que não tem sequer o instinto?" "De todo modo,
estudando

os fatos, podemos classificar os idiotas em duas séries nas quais todos

eles ficam agrupados: na primeira ficam os imbecis; na segunda, os

idiotas propriamente ditos. Na primeira a organização é mais ou menos

perfeita, as faculdades sensitivas e intelectuais são mais


desenvolvidas;

os imbecis têm sensações, idéias, memórias, afetos, paixões e mesmo

pendores, mas em reduzido grau eles sentem, pensam, falam, são

susceptíveis de alguma educação."

94 - Deficiência mental

"Na segunda série a organização é incompleta, os sentidos são

apenas esboçados; a sensibilidade, a atenção e a memória são nulas ou

quase mnmlas. Os idiotas não têm mais que uni número reduzidíssimo de

idéias, limitadas, como suas paixões às necessidades instintivas, que

eles exprimem por alguns gestos. Não é a razão que dirige suas ações
que,

pouco numerosas, se repetem por hábito ou por imitação."

À parte a especificação qualitativa dos tipos, a classificação de

Esquirol se assemelha muito à de Belhomnme ao introduzir a idéia de


educabilidade que, note-se bem, não se opõe à da incurabilidade da

idiotia, com suas variantes e gradações. O fato novo é a exclusão dos

imbecis da grande massa que compunha o idiotismo de Pinel e a idiotia


de

Esquirol na obra de 1818. Mas, mesmo excluídos ou separados os imbecis,


a

idiotia passa a comportar graus, a exemplo da imbecilidade.

Tomando como sintoma a linguagem oral Esquirol declara:

"No primeiro grau da imbecilidade a palavra é livre e fácil; no

segundo é menos fácil e o vocabulário mais restrito. No primeiro grau


da

idiotia propriamente dita o idiota não tem para seu uso mais palavras e

frases muito curtas. Os idiotas do segundo grau não articulam senão

monossílabos e alguns gritos. Enfim, no terceiro grau da idiotia não há

nem fala, nem frase, nem palavras, nem monossílabos."

Embora discutíveis, as classificações de Belhiomnie (1824) e

Esquirol (1838) representam a admissão médica da educabilidade e um


abalo

da teoria unitarista da deficiência, à maneira de Pinel, que encontrará

em épocas subseqüentes novos modos de expressão.

Pré-ciência e pseudociência - 95

O redentor dos cretinos

O Essai de Belhomme' (1824), como se viu acima, significou o aval

da ciência aos planos dos que, por caridade, por amor do desafio

científico ou por necessidade de manter a economia doméstica dos

hospícios ou asilos procuravam, de algum modo, instruir os idiotas e

imbecis (já divididos em duas categorias) na execução de tarefas


manuais

ou no domínio dos processos intelectuais exigidos pela vida em


sociedade.
Entre esses pioneiros da educação especial, muitos anônimos, sobressaem

pela sua criatividade e competência metodológica Ltard e Seguiu, seu

discípulo, fiel no afeto e desviaste na atitude profissional.

Ao lado desses dois luminares da educação especial, um deles vítima de

Pinel, o outro, discípulo de Esquirol, outros renomados mestres-

cientistas criaram instituições, métodos e recursos pioneiros.

Segundo Chanibard (1889), as primeiras tentativas sistemáticas

foram de Ferrus, que criou em seu serviço no hospital de Bicêtre a

"primeira escola destinada a imbecis e idiotas aperfeiçoáveis"

(perfcctibles). Em 1834 Féhix Voisimi fumigou seu Instituto


Ortofrênico,

embora escrevesse sobre a ortofrenia desde 1830. Na própria Salpêtrière

Falret também criou uma escola de idiotas.

Mas, antes da escola de Ferrus, em Paris, em 1816 ocorrera a

tentativa de Goggenmoos de fundar em Salzburgo um asilo-escola para

cretinos e idiotas, que fechou por falta de apoio do governo.


Igualmente

fracassara um esforço análogo de Iphoden em Saxe (cujo príncipe, nos

remotos dias de Lutero, não aceitara a proposta deste para afogar um


ser

sobrenatural malcomportado e sem controle de esfíncteres).

Ë então que um jovem e brilhante médico suíço, estudioso do

cretinismo, deixa sua clientela e funda uma colônia para cretinos e

idiotas sobre uma montanha de Ãbendberg, situada no cantão de Berna,


numa

altitude de 1.000 metros. A escola desse médico, chamado Guggenbuhl,

prosperou brilhantemente graças a diversos apoios financeiros, entre os

quais o mais importante foi o da Condessa Ida Han-Han, além da


subvenção

do governo suíço.

A escola de Abendberg, criada em 1840, tornou-se, principalmente


graças as peregrinações de Guggenbuhl, a quem não faltava uma certa

habilidade proselitista ou promocional, um modelo para numerosas

instituições análogas, como as criadas por lvemiing, em Londres, e por

Conolly no bairro de Highgate, também em Londres, ou as surgidas em

Earlswood, em Edimnburgo ou ainda as criadas na Holanda, na Dinamarca,


na

Alemanha e nos Estados Unidos.

96 - Deficiência mental

Como registro de crônica é de mencionar-se aqui a queixa de

Chambard, em 1889, de que, embora de origem francesa, "graças à

resistência ora passiva, ora ativa, de unia administração rotineira e

amiga do repouso", como a do governo francês, "os asilos-escolas de

idiotas só se implantaram com atraso e muita dificuldade, uma


dificuldade

que não se poderia atribuir a um corpo médico que produziu alienistas

como Ferrus, Voisin, Falret, Leuret, Delassieuve ou Bourrmevihle, que

consagraram grande parte de sua atividade ao melhoramento dos idiotas."

Guggenbuhl, como os demais precursores citados, era médico, como

fora médico ltard; esse fato é até certo ponto intrigante porque a

doutrina médica, até Belhomme e a segunda grande obra de Esquirol


(1838),

apregoava a incurabilidade da idiotia. 12 um paradoxo aparente, por


duas

razões: primeiro porque para os médicos educai-o idiota não era curá-lo
e

desse modo parece apressado ver contradição entre incurável e educável;

segundo, porque a idiotia é às vezes tomada em sentido amplo, incluindo


a

imbecilidade que, após Belhomme, representa a categoria educável ou

"perfectible" da idiotia lato senso.

O que é deveras curioso é que Guggenbuhl empreende a educação de

idiotas e cretinos, esses últimos notoriamente tidas como


irrecuperáveis,

ao lado de portadores de idiotia profunda, e o vai com um sucesso que o

próprio Seguin, impiedoso e por vezes tendencioso ao apreciar esforços


e

textos alheios, teve que reconhecer em 1846.

Assim, a idéia de incurabilidade, corolário da visão organicista,

não repete a de educabilidade, entendida como possibilidade de maior ou

menor ajustamento sociocultural de portadores de uma disfunção ou lesão

orgânica incurável, hereditária ou não.

Guggenbuhl, na teoria como na prática, cuida essencialmente de

organismos afetados pelo cretinismo ou pela idiotia para que ganhem


certa

autonomia para sobreviver sem dependência de outrem. Sua postura

doutrinária é radicalmente organicista. Qualquer dúvida sobre esse

aspecto rui diante do seu relatório da autópsia de "Marie H.",


transcrito

por Seguiu (1846), no qual revela seu profundo conhecimento de anatomia

em cuidadosa descrição de numerosas lesões encefálicas. Mas, o que é


mais

expressivo para este nosso estudo é a conclusão de Guggenbuhl: "Esta

autópsia prova que a causa principal do mal" - trata-se de um exemplo


de

cretinismo - "provinha de um estado hidrocefálico dos ventrículos

laterais do cérebro com amolecimento das circunvoluções contíguas. Esse

estado se desenvolvera graças a fraqueza congênita da criança nos

primeiros anos de sua vida."

Incidental ou hereditária a etiologia é orgânica e o mal é

incurável, sem que isso impeça uma certa redenção graças a métodos

especiais de educação.

Fig. 16 - Protótipo de cretino apresentado por Baillarger e

Krishaber, em 1879. para ilustrar alguns sintomas. Trata-se de um rapaz


de 39 anos, não púbere, com dentes de leite, encontrado na Gironde,
fora

de zona endêmica. O primeiro a tentar a educação sistemática de


cretinos

foi Guggenbuhl.

98 - Deficiência mental

O sucesso internacional de Guggenbuhl e sua colônia de Abendberg

deve haver-se fundado numa genuína eficácia didática da instituição, já

que Seguiu, arvorado em árbitro de tudo o que se fizera e se fazia em

educação de deficientes, chegou a afirmar com certo arroubo verbal:

"Guggenbuhl, antes de falar sobre os cretinos, curou-os" já que era


nesse

assunto "um homem prático". O prestígio de Guggenbuhl parece derivar

também de uma certa habilidade política e promocional, pois em 1841, já

encarregado de planejar a educação de cretinos para toda a Suíça por

convite da Sociedade Helvética de Ciências Naturais, dispunha de apoio

financeiro internacional, da Alemanha, da Holanda e da Inglaterra.

A disseminação de instituições similares à de Abendberg pela Europa

foi assegurada por uma constante peregrinação de Guggenbuhl, que pouco

antes de 1850 já se considerava o redentor dos cretinos e assumindo, já

como missão divina, o esforço de despertar nos subnormais uma alma

imortal adormecida ou entorpecida, segundo Perron (1971).

Não é fácil aceitar que um organicista rigoroso fosse ao mesmo

tempo promovido a redentor dos cretinos e despertador de almas, a menos

que convivessem em Guggetibtmhil o medico e o profeta, a misturar

anatomia patológica com discursos e nussões messiânicas.

Como refere Perron (1971), enquanto Guggenbuhl propagava seu método

pela Europa ele descurava da colônia de Abendberg, onde "os cretinos

continuavam cretinos", a ponto de suscitar críticas públicas à obra e


ao

autor desde 1850. A abundância de fama e as subvenções financeiras


ironicamente contribuíram para arruinar a carreira pedagógico-
messiânica

de Guggenbuhil, desde 1858, quando, diante das crescentes críticas à

escola de Abendberg, o cônsul inglês cm Berna decidiu visitar a

instituição, onde se haviam internado alguns cretinos estrangeiros,

súditos de Sua Majestade Britânica. Essa visita foi fatal para


Abendberg

e Guggenbuhl: os internos estavam em completo abandono, toda a equipe

médico-pedagógica fora substituída por dois camponeses da vizinhança,


um

dos pacientes morrera ao cair de um barranco sem que ninguém na

instituição tivesse conhecimento do acidente.

Do relatório do cônsul inglês resultou unia comissão cantoria1 de

inquérito que foi implacável e decidiu desativar totalmente a colônia-

escola de Abendberg.

Pré-ciência e pseudociência - 99

A obra de Guggenbuhil teria começado, segundo Perron (1971), quando

aos 20 anos ele observou um cretino a rezar, de memória, uma conhecida

oração diante de uma igreja, o que implicava alguma sorte de


aprendizagem

e, portanto, de educabilidade.. Mas é mais provável que os tratados de

Esquirol e de Belhiommne e as iniciativas de Itard, Ferrus e Voisin

tenham sido a verdadeira origem do projeto de "redenção dos cretinos.

Os recursos metodológicos, sui generis, de Abendberg eram

principalmente: ar puro, leite de cabra, carne e legumes, exercícios

físicos, banhos e massagens e medicação com base de cálcio, cobre e

zinco, exercícios de memória e treino da fala.

Há razões para essa metodologia avançada e bizarra ao mesma tempo.

O ar puro das grandes altitudes é a certeza da imunidade aos efeitos da

"mala-ana" das regiões paludosas, abundantes de cretinos e idiotas como


no Simplon e no Piemonte; o leite de cabra excluía a possibilidade de

escrófulas devidas à tuberculose bovina; carne e legumes eram uma

adequada nutrição; os exercícios físicos, banhos e massagens eram

recursos para desenvolver a sensibilidade e a noutra cidade; a


medicação

justifica-se obviamente e os exercícios de memória e de fala eram,

finalmente, o cerne do programa educacional.

Infelizmente, não temos de Guggenbuhl um relato metodológico

minucioso como os que nos deixou Itard; mas é fácil concluir que sua

contribuição maior não foi metodológica e nem doutrinária, e sim a

difusão da idéia da educabilidade dos deficientes mentais de categorias

antes voltadas ao abandono social definitivo mios asilos. Guggenbuhl

provocou polêmicas, estimulou criação de instituições e sobretudo


abalou

o preconceito da irrectmperabilidade do deficiente dito severo ou

profundo, além de estimular discussões sobre a metodologia de ensino


para

os deficientes.

100 - Deficiência mental

Os jardins de Froebel e a fazenda de Syrnitz

No mesmo ano da fundação da colônia-escola de Abendberg (1840) a

história da deficiência mental entra num período em que se intensifica


e

se exacerba o já velho conflito de duas tendências: uma, devida aos

inegáveis êxitos pedagógicos de Itard, de alguns abades e das escolas


ou

institutos similares que se haviam criado após o Essai de Belhomme

(1824); outra, derivada do tatalismo organicista de Fodéré (1791) e de

Pinel (1801). A tentativa de síntese desses dois contrários será a obra

mestra de Seguiu, de 1846, um esforço de conciliar a incurabilidade e

inviabilidade dos organicistas radicais com a educabilidade partilhada


por pedagogos e médicos adeptos da "medicina moral" ou da ortofrenia.

Nas várias escolas e asilos os deficientes demostravam alguma

capacidade de aprender, principalmente tarefas simples manuais quando

formalizadas e gradativamente treinadas a partir de atividades naturais

de interação com os objetos e problemas do ambiente físico.

Havia, aliás, do lado pedagógico, sólida doutrina sobre a

necessidade e conveniência de uma didática natural que resultava das

obras de Pestalozzi, Rousseau, Condillac, Locke, Comenius e, ainda mais

remotamente, de Montaigne. NmIs instituições caritativas de Pestalozzi

(1746-1887) desenvolvia-se uma metodologia inarticulada mas naturalista

já desde o esforço épico do mestre de Neuhof (1774-1780) e


principalmente

na escola de Yverdon, que recebeu por volta de 1808 a visita de um

sofrido e arguto mestre-escola de nome Augusto Frederico Froebel (1782-

1852).

Dessa visita nasceu uma ponderada reflexão de Froebel sobre algumas

falhas do método de seu venerado mestre Pestalozzi e, mais que isso,

surgiu um sistema de educação especial para a primeira infância, cujas

características o tornavam aplicável também a crianças deficientes

mentais.

O método exigia toda uma revolução na organização escalam física e

funcional, além de requerer alguns materiais especiais, simples mas

eficazes, para os propósitos do sistema de Froebel. É assim que, da

rusticidade de Neuhof e Yverdon e dos cuidados ecológicos de Abendberg,


a

história da escola chega aos bucólicos "jardins de infância" de


Froebel,

criados a partir de 1840, sobre o modelo do primeiro, em Blankemuburg.

As escolas de tipo montessoriano que surgirão na primeira década do

século XX terão muito dos "jardins" de Froebel, embora sua criadora se


ache mais ligada ias idéias de Itard e Seguiu.

Pré-ciência e pseudociência - 10:

A metodologia de Froebel essencialmente naturalista e, pois

antiformalista, baseia-se em princípios definidos: cada criança temi


sua

individualidade, que deve ser respeitada; mais executiva que receptiva,

cada criança deve desenvolver-se livremente; toda criança gosta de

observar, de movimentar-se e de ter uma ocupação e uni lugar

exclusivamente seu; as ocupações manuais são as únicas que satisfazem a

atividade da criança, pois são um jogo; a educação deve começar antes


dos

seis anos e a escola assim concebida é mais proveitosa que a família,

onde são inevitáveis a coerção e a imposição de atividades. Esses

princípios são os que regem, ainda hoje, numerosas escolas para

deficientes mentais ou crianças normais. Mas os recursos "didáticos" de

Froebel são ainda mais significativos e atuais, na área da educação

especial.

Eis alguns recursos: jogos ginásticos e cantos limitativos,

histórias e poesias muito simples e vivas; uni canteiro de jardim,

individual, "prendas" ou "dons" constituídos de objetos aptos a


servirem

como brinquedo e como instrumento de atividade manual, como a bola, o

cubo, o cilindro; blocos de madeira para construção e exercícios

sensoriais; prismas, caixilhos, molduras.

Entre os exercícios ou ocupações Froebel propõe: trabalhos com

figuras e sólidos geométricos recortados em madeira; dobraduras e

recortes; tecedura com diferentes fios; composição de contornos ou

figuras, com fios, palitas, contas, argolas; bordados sobre placas já

perfuradas; moldagem com argila, caixas de areia para moldar paisagens


e

construções.
Programada antes de 1840, essa relação de materiais satisfaria hoje

as exigências de muitas escolas para deficientes mentais. Enquanto

Froebel preparava seu kinderganten, continuavam prosperando as idéias


de

Fodéré sobre a relação entre bócio e cretinismo e entre cretinismo e

idiotia.

O cretinismo, herdado ou endêmico, se manifestava pela idiotia,

além dos sintomas clínicos que podiam ser mais, ou menos, evidentes. E

prosperava também nas regiões mais diversas da Europa o bócio endêmico,


o

cretinismo e também a idiotia.

100 - Deficiência mental

Dessa propagação intrigante do cretinismo e da idiotia,

erroneamente entendidos como produtos de uma só etiologia - o bócio dos

ascendentes - não escapava unia aldeia da Áustria, Syrnitz, onde o

governo austríaco realizou em 1844 um levantamento que produziu

resultados alarmantes. O proprietário da fa uma, devida aos inegáveis

êxitos pedagógicos de Itard, de alguns abades e das escolas ou


institutos

similares que se haviam criado após o Essai de Belhomme (1824); outra,

derivada do latahismo organicista de Fodéré (1791) e de Pinel (1801). A

tentativa de síntese desses dois contrários será a obra mestra de


Seguiu,

de 1846, um esforço de conciliar a incurabilidade e inevitabilidade dos

organicistas radicais com a educabilidade partilhada por pedagogos e

médicos adeptos da "medicina moral" ou da ortofrenia.

Nas várias escolas e asilos os deficientes demonstravam alguma

capacidade de aprender, principalmente tarefas simples manuais quando

formalizadas e gradativamente treinadas a partir de atividades naturais

de interação com os objetos e problemas do ambiente físico.


Havia, aliás, do lado pedagógico, sólida doutrina sobre a

necessidade e conveniência de uma didática natural que resultava das

obras de Pestalozzi, Rousseau, Condillac, Locke, Comenius e, ainda mais

remotamente, de Montaigne. Nas instituições caritativas de Pestalozzi

(1746-1887) desenvolvia-se unia metodologia inam-ticulada mas


naturalista

já desde o esforço épico do mestre de Neuhof (1774-1780) e

primmcipahmnentc na escola de Yvcrdon, que recebeu por volta de 1808 a

visita de um sofrido e arguto mestre-escola de nome Augusto Frederico

Froebel (1782-1852).

Dessa visita nasceu uma ponderada reflexão de Froebel sobre algumas

falhas do método de seu venerado mestre Pestahozzi e, mais que isso,

surgiu um sistema de educação especial para a primeira infância, cujas

características o tornavam aplicável também a crianças deficientes

mentais.

O método exigia toda uma revolução na organização escolar física e

funcional, além de requerer alguns materiais especiais, simples mas

eficazes, para os propósitos do sistema de Froebel. É assim que, da

rusticidade de Neuhof e Yverdon e dos cuidados ecológicos de Abendberg,


a

história da escala chega aos bucólicos "jardins de infância" de


Froebel,

criados a partir de 1840, sobre o modela do primeira, em Blankenburg.

As escalas de tipo unontessoriano que surgirão na primeira década

do século XX terão muito dos "jardins" de Froebel, embora sua criadora


se

ache mais ligada i~s idéias de Itard e Seguiu.

Pré-ciência e pseudociência - 101

A metodologia de Froebel essencialmente naturalista e, pois,

antiformahista, baseia-se em princípios definidas: cada criança tem sua

individualidade, que deve ser respeitada; mais executiva que receptiva,


cada criança deve desenvolver-se livremente; toda criança gosta de

observar, de movimentar-se e de ter uma ocupação e uni lugar

exclusivamente seu; as ocupações manuais são as únicas que satisfazem a

atividade da criança, pois são um jogo; a educação deve começar antes


dos

seis anos e a escola assim concebida é mais proveitosa que a família,

onde são inevitáveis a coerção e a imposição de atividades. Esses

princípios são os que regem, ainda hoje, numerosas escolas para

deficientes mentais ou crianças normais. Mas os recursos "didáticos" de

Froebel são ainda mais significativos e atuais, na área da educação

especial.

Eis alguns recursos: jogos ginásticos e cantos limitativos,

histórias e poesias muito simples e vivas; uni canteiro de jardim,

individual, "prendas" ou "dons" constituídos de objetos aptos a


servirem

coma brinquedo e como instrumento de atividade manual, coma a bola, o

cubo, o cilindro; blocos de madeira para amistrução e exercícios

sensariais; prismas, caixilhos, molduras.

Entre os exercícios ou ocupações Froebel propõe: trabalhos ~omn

figuras e sólidos geométricos recortados em madeira; dobraduras e

recortes; tecedura com diferentes fios; composição de :contornos ou

figuras, com fios, palitas, contas, argolas; bordados sobre placas já

perfuradas; moldagem com argila, caixas de areia para moldar paisagens


e

construções.

Programada antes de 1840, essa relação de materiais satisana hoje

as exigências de muitas escolas para deficientes mentais.

Enquanto Froebel preparava seu kindergarten, continuavam

)rosperauido as idéias de Fodéré sobre a relação entre bócio e


oreinisnuo
e entre cretinismo e idiotia.

O cretinismo, herdado ou ~mudêmico, se manifestava pela idiotia,

além das sintomas clínicos que podiam ser mais, ou menos, evidentes. E

prosperava também nas regiões mais diversas da Europa o bócio endêmico,


o

cretinismo e também a idiotia.

102 - Deficiência mental

Dessa propagação intrigante do cretinismo e da idiotia,

erroneamente entendidos como produtos de uma só etiologia - o ,ócio dos

ascendentes - não escapava unia aldeia da Áustria, ;yrnitz, onde a

governo austríaca realizou em 1844 um levantamento que produziu

resultados alarmantes. O proprietário da fazenda em que ficava a aldeia


a

comprara de uma família em que todos os membros eram cretinas e


afetadas

pelo bócio, sendo o comprador e sua esposa provenientes de uma "aldeia

sadia". A esposa morreu "com bócio e semicretina", segundo o relata de

Baihlarger e Krishaber, que desct-eveni o caso e que assim prosseguem:


"o

proprietário casou-se de novo com unia mulher sadia que, por sua vez,

sucumbiu à mesma degenerescência; o próprio marido tornou-se


semicretino;

os cinco filhos do primeiro leito foram vitimados pela degenerescência;

quanto aos dois filhos do segundo leito, uni de três anos e outro de

apenas um alio, até o momento desta comunicação ainda estavam sãos de

aparência. Mas o Sr. Wihleger, autor desta observação, afirma que os

cinco filhos do primeiro leita também pareciam sadios nos primeiros


amuos

que se seguiram ao nascimento, o que não impediu que degenerassem

completamente mais tarde. E ele acrescenta que seu pai assinalara que
os

empregadas que vimihanu de regiões estrangeiras habitar na fazenda - .


-
perdiam gradualmente as faculdades intelectuais e terminavam pam cair
no

mais completo cretinismo. Deve-se acrescentar que todas as crianças

nascidas nessa fazenda são cretinas no mais alta grau e a


degenerescência

ataca até a gado de chifre - . ." (Baillarger e Knishaber, 1879).

Relatos como esse davam força à visão unitanista e fatalista de

Fodéré, já que a idiotia, com suas formas ou graus atenuados - chamados

imuubecihidade e debilidade mental - seriam efeito ou correlato

inevitável do cretinismo au senuicretinisnio, senda este herdado ou

congênito, ou mesmo endêmica. Mas a filho de pais com bócio carregava

sempre a tendência inata ao ctetinismo e suas manifestações: idiotia e

outras.

Ao panorama virgihiamuo dos jardins de Fmoebel cantrapõe-se o

quadro tenebroso da degenerescência pela qual, segundo Fadéré, a


idiotia

é o grau último de uma degradação da espécie, que começa com o bócio e


o

cretinismo- A teoria sistemática e abratugente da degenerescência será

elaborada mais tarde, em 1857, por Morei (1809-1837), acentuando o

inatisma da deficiência mental proposto e defendido por Fodéré já em

1791.

Pré-ciência e pseudociência - 103

Narrativas e registros, como os do Sr. Willeger, e pesquisas como

as do governo austríaco tornavam-se cada vez mais freqüentes e

alarmantes. A conclusão que apontavam e que convinhia invalidar era a


de

que em numerosas regiões, às vezes extensas e populosas, a uuuaior


parte

das crianças, quando não todas, cai-regavam o gernue da oligofrenia,

fosse ela a idiotia ou outua afecção análoga. Urgia um estudo amplo e


aprofundado do problema e para isso foram convocados os luminares da

biologia e da medicina reunidos em comissão de investigação.

O rei da Sardenuua convocou em 1848 grandes sábios da medicina

européia para comporeni a chamada Comissão Sarda que deveria estudar a

questão cretinismo-idiotia numa das regiões niais afetadas, o Piemonte;

daí a denominação de Comissão do Pie-monte à equipe instituída pelo

governo sardo e com a qual passou à história. Vale lembrar que na mesma

região um censo ordenado por Napoleão em 1811 apontava três nuil


idiotas.

A deficiência mental, que após a inquisição se tornara um problema


médico

e não mais teológico, passara de um enfoque supersticioso a um


tratamento

naturalista, por parte de muitos nuédicos e raros pedagogos; essa


atitude

naturalista, porém, não implica necessariamente a abordagem científica


da

questão. A verdade não é niais buscada no dogma traduzido pelo clero,


mas

ainda emana de uma autoridade, que domina o saber e o poder diante da

deficiência nuental. Essa autoridade que dirige a busca de explicações


e

as iniciativas educacionais, terapêuticas e institucionais e que


arbitra

as polêmicas é o médico. Tal foi, na história que tios interessa, o


papel

de Wilhis, Valsalva, Chiaruggi, Fodéré, Pinel, Esquirol, Belhomme,


Ferrus

e outros.

Na medida em que a autoridade do sábio e não o rigor e a

replicabilidade da metodologia de pesquisa é o critério de validade e

fidedignidade, o etmfoque da deficiémucia já não é necessariamente

supersticioso e já não é metafísico; é naturalista mas pré-cicmutífico,


e
pai- vezes pscudocientífica.

Tal é o caráter das numerosas e seríssinuas pesquisas realizadas

pela Conuissão Francesa cujo relatório mais crítico, publicado em 1873,

tambénu muão escapa do feitio pré-científico que, de m-esta, se

identifica nas obras de todos os luminares acima citados.

104 - Deficiência mental

Com tais relatórios, o princípio da autoridade médica conio

critério de validade doutrinánia no campa da ohigofremuia fica, senão

abalado, arranhado, pois além de incompatibilidades e comi-tradições

entre autoridades diversas e resultados de pesquisa discrepantes os

relatórios dividem os estudiosos em pelo nuenos dois campos: pró

fatalismo e inatisma ou contra tais posturas.

Mas a crítica à onisciência e à hegenuonia doutrinária dos médicos

viria de um deles, cano se verá adiante.

Incompetência e método

As credenciais de Següin

O primeiro especialista em deficiência mental e em ensino para

deficientes mentais na nossa história é Edouard Seguin que, a julgar


por

sua obra 'mestra, de 1846, é o primeiro a reconhecer e a propagar tais

qualidades, quase a ponto de se propor como autoridade no assunto.

Não lhe faltavam credenciais para doutrinar na área nem para

discutir as questões médicas e pedagógicas da deficiência mental,

principalmente nos aspectos que legitimavam sua designação como


idiotia.

Isso porque tivera excelente formação acadêmica e porque, privilegiado,

fora discípulo de Itard em constante contato com o trabalho

e as idéias geniais deste.

Ocorre também que Seguin privara de contato freqüente com Esquirol,

com o qual trabalhou alguns anos, tendo mesmopublicado pelo menos um


trabalho como co-autor do grande alienista. As referências de Seguin a

esses mestres lembram inevitavelmente, como dissemos, a oração de Marco

Antônio sobre César na tragédia Shakesperiana. Seguin apresenta-se como


o

fim de uma época e o início de nova, atribuindo-se originalidades e

contribuições pioneiras, nem sempre de forma simpática e, obviamente,


sem

a humildade de Itard, seu mestre.

106 - Deficiência mental

O Traitctnent moral, hygiène et éducation des idiots et dcs autres

enfanis arriérés, de 1846, e que doravante chamaremos de Traitement

moral, abre-se com um avant-propos expressivo: "Tendo eu contribuído


mais

do que ninguém a chamar a atenção sobre a classe abandonada dos


Idiotas,

tendo oferecido alguma esperança a muitas famílias e dado alívio a um

pequeno numero de outras; tendo obtido . . . os elogios e


encorajamentos

da Academia de Ciências, tendo, sozinho e antes de qualquer outro,

aplicado um método e meu método à educação de jovens idiotas ... em

virtude de designação ministerial . . . ". São as primeiras palavras de

um texto cujo autor se considera primeiro e único. E, de fato, no que


se

refere à sistematização metodológica do ensino especial Seguin é o

primeiro, a nosso ver, já que Péreire, Guggenbuhl e o próprio Itard não

nos legaram uma sistematização clara quer de suas idéias teóricas, quer

de suas técnicas e metodologia didática.

Seguín representa uma equilibrada combinação de vaidade e

competência que recorda a postura de Albrecht von Haller na questão da

"irritabilidade". Mas, o texto não esconde nem uma nem outra dessas

características.
"Durante esse longo período de 10 anos de observações, orientado

primeiro por Ltard e depois por Esquirol, deixado, mais tarde, às


minhas

próprias forças, precisei procurar unicamente em mim os recursos que

outros tomam emprestado da cmencma toda feita de livros, ou da ciência

que se faz à sua volta. Dessa posição . . . resultou. . . um trabalho

inteiramente novo, não só sobre a idiotia, mas também sobre a Educação."

E Seguin diz contentar-se com o segundo lugar na história, pois

atribuir-se o primeiro "não condiz nem com a minha consciência, nem com
o

reconhecimento que professo a ltard, meu ilustre mestre, o primeiro que

tratou metodicamente um ldiota". A mansidão acaba logo, pois Seguin

prossegue: "e me teria sido menos conveniente ainda fazer endossar,


como

um bilhete de cumprimentos, os meus trabalhos teóricos e práticos por


um

desses banqueiros da medicina oficial, que cobram sua assinatura com

altos juros." Mais adiante diz Seguin: "no lugar dos nomes que se

quiseram ligar à questão da Idiotia eu escreveria o de Itard que, por

primeiro, ... abriu o caminho no qual eu entrei sozinho, em seguida."

Competência e método - 107

Ao insistir sobre suas credenciais, Seguin suscita perguntas sobre

as razões de tal insistência, questões que o seu Traitemeflt moral não

esclarece, deixando em aberto a dúvida sobre se não teria sido ele, de

indiscutível competência, uma vítima do que condena em outros: a


péssima

medicaram invídia, conforme o cáustico aforisma de Bordeu, para quem

nenhuma inveja é pior que a dos médicos. Veja-se, a propósito, a nota

virulenta e supérflua da página 29 do texto. Ali, após mencionar a

declaração de um escrito de Belhomme no qual este afirma que


reconhecerá

os méritos dos demais médicos autores de tratados desde que os seus


próprios merecimentos fiquem reconhecidos, Scguin acrescenta em rodapé:

"Declaração preciosa e que prova quanto é correto o ... pessiina

mcdicorum invídia, pelo menos no que concerne aos doutores


especialistas.

Esse ciúme é tão cego que se poderia citar um certo niédico,


encarregado

de tratar dos alucinados num de nossos principais estabelecimentos, e


que

é ele próprio Vítima de uma singular alucinação: pretende curar ou

ensinar os idiotas; e ele jamais pode permanecer ao lado de um de seus

pacientes durante cinco minutos: ele os cuida voando ... assim como

escreve."

Acusaçôes e desafio

Para se apreender a significação histórica para a teoria e para a

educação do Traitetnent moral é necessário conhecer o espírito de que


se

impregna a obra, diante da hegemonia doutrinária que a história


concedeu

aos médicos na área da deficiência mental.

Nesse aspecto Seguin não oculta seu organicismo e o texto dispensa

extensos comentários. Após criticar severamcnte as contribuições


teóricas

de Pinel, Esquirol e Belhomme com extensas citações textuais dos três,

relativas à caracterização da idiotia, Seguin nota agudamente "que


nessas

citações se vê que aos autores faltou método não menos que observação .
.

. eles apóiam suas opiniões, tão diversas na aparência, sobre o mesmo

fato, a falta de espírito dos idiotas. O ter mais, ou menos, espírito

seria o critério de definição, de análise, de diagnóstico? Como se o


mais

ou o menos constituísse uma variedade dentro da espécie, como se um


grau
fosse um gênero, como se o estado intelectual fosse o princípio do mal,

embora ele não seja mais que uma de suas numerosas conseqüências; como

se, finalmente, o estado anormal do sistema nervoso e a perturbação de

suas funções não fossem o fato radical, importante, decisivo na idiotia?

108 - Deficiência mental

"Eu acuso formalmente aqui os médicos que escreveram, seja

registros de observações curiosas, seja artigos mais ou menos teóricos,

seja prospectos de charlatão sobre a idiotia, de terem algumas


confundido

a idiotia com diversas afecções crônicas análogas; outros, confundido


na

idiotia estados patológicos que, ligando-se freqüentemente a ela, quase

sempre a agravam mas que não são nem sintomas, propriamente, nem

conseqüências da idiotia."

"E acuso a todos: primeiro, de haverem visto idiotas na sua prática

e nos hospitais sem lhes haverem consagrado uma hora assídua de seu

tempo, ainda que fosse por curiosidade científica. Segundo, de terem,


em

conseqüência, desvirtuado com prejuízo para eles o sentido médico do

termo observação ao apresentar sob tal título nada mais que a

nomenclatura de algumas faculdades intelectuais ausentes em um sujeito,

nomenclatura enfeitada com a descrição de alguns de seus hábitos

asquerosos ou singulares, sem completar esse tipo de retrato com a

indicação de algum tratamento, de algum melhoramento obtido por uma

sucessão de meios buscados na terapêutica ou na medicina moral.


Terceiro,

de haverem tomado como base de suas apreciações sobre o fato da idiotia


a

incapacidade intelectual dos idiotas, que não é mais que uma


conseqüência

da própria anomalia, da idiotia. Quarto, de terem, eles que desejam

passar por fisiologistas, repelido de seu estudo da idiotia os


numerosos

distúrbios fisiológicos que se ofereciam à sua observação como os

sintomas mais positivos de uma enfermidade positiva, para se lançar a

sutilezas metafísicas que não provam miada, nem, em princípio, sobre a

natureza da idiotia, nem, na prática, sobre a gravidade de casos

especiais."

"Em suma, eu acuso os médicos por não terem nem observado, nem

tratado, nem definido, nem analisado a idiotia, e de terem falado


demais

sobre ela."

A segurança e a abrangência dessa verdadeira catilinária só se

explicam pela seriedade e persistência com que Seguin se dedicara ao

assunto desde os tempos de sua colaboração com Itard, e é essa uma de

suas credenciais para deitar doutrina e crítica mio campo da idiotia e

seu atendimento educacional. A solidez de sua acusação repousa sobre

aguda e demorada reflexão, muito estudo, muitas tentativas


experimentais

e muita observação.

O exame do Traitement moral revela de pronto seu amplo domínio

teórico e metodológico na área, como se vet~á adiante.

110 - Deficiência mental

Embora essa competência se apresente quase sempre acompanhada de

uma não menos óbvia e justificada vaidade. Competência e vaidade que se

põem em plena luz na nota final do avant-propos: "Após a aprovação do

Conselho Geral dos Hospícios aos meus trabalhos de 1842 no Hospital dos

Incuráveis, e a da Academia de Ciências aos meus escritos e minha


prática

em Bicêtre, durante o ano de 1843, ignoro se algum outro método foi

produzido: para me informar a esse respeito e também para edificar o

público, que nem sempre sabe sobre esses assuntos tudo o que ele, que é
o
juiz soberano, precisaria saber, eu desafio aqui não um homem, mas

qualquer pessoa a apresentar antes de um ano um método de educação de

crianças idiotas, que seja um método e não seja o meu; e aceito, sobre

esse ponto no qual a ciência e a probidade estão igualmente envolvidas,

quaisquer juizes que sejam designados. Paris, 6 de maio de 1846."

Seguin e a idiotia

O Tratamento moral tem 729 páginas, das quais 200 tratam de

questões. teóricas sobre a idiotia e distúrbios correlatos. Como


assinala

Netchine (1971), Seguin, enquanto teórico, coloca-se como crítico e

superador de Esquirol mas não consegue resolver alguns problemas

fundamentais, que deixará esboçados para que Binet os resolva. As

inovações teóricas sobre a doutrina de Esquirol são várias e consistem

principalmente da nítida distinção entre idiotia, imbecilidade e

debilidade, entendida não mais como meros graus de carência de funções

intelectuais, mas como enfermidades diversas com etiologias diferentes.

Seguin representa um abalo na doutrina unitarista da. deficiência, quer

associada ao cretinismo quer dissociada deste, e, portanto, do bócio

endêmico. O alarme suscitado por Fodéré e por pesquisas como a da


fazenda

de Syrnitz atenua-se ou dilui quando as sólidas observações e


argumentos

de Seguin apontam fatores ou causas pós-natais, acidentais, para várias

formas de oligofrenia.

Competência e método - 111

"A idiotia é congênita ou resultado de acidentes ocorridos nos

primeiros tempos de vida; manifesta-se sob a forma de incapacidades de

todos os tipos a partir do momento em que a criança deveria poder dar


os

primeiros sinais de atividade, inteligência e sensibilidade, ou o mais


tardar em seguida a convulsões que assinalam a primeira dentição; num e

mioutro caso, porém, a afecção nervosa e seus sintomas aparecem de uma

vez com toda a sua gravidade, ou não tendem a piorar senão durante esse

primeiro período que se poderia chamar inflamatório. A imcilidade, ao

contrário, resulta de causas acidentais, sempre posteriores aos


primeiros

desenvolvimentos da criança, como golpes ou que(las sobre a cabeça,

trabalhos cerebrais superiores às suas forças, uma doença cerebral


aguda,

a mania solitária, etc. Também se nota que a imbecilidade se produz

subitanicnte quando resulta de urna causa instantânea, corno a febre

cerebral, por exemplo, e se apresenta progressivamente quando ocorrer

como conseqüência de maus hábitos, causa crônica, e que não se agrava

senão enquanto a causa que a produz continua sua ação deletéria."

A diferença entre esse texto e a vaga e monolítica teoria de Pinel

ou a doutrina unitarista de uma idiotia única, passível de gradações

atenuadas, professada por Esquirol e sistematizada por Belhomme, é


clara

e dispensaria críticas não fora a exclusividade reservada aos fatores

orgânicos na etiologia da idiotia e da imbecilidade, a despeito da

expressão "maus hábitos", que tem para Seguin o significado de


sobrecarga

imposta ao sistema cerebral mais que o de "aprendizagem" de modos

inadequados de resposta ao ambiente.

A marca organicista da teoria de Seguin é coerente com sua radical

recusa de qualquer compromisso "com a metafísica", o que a seu ver na

verdade condenara Itard ao insucesso quanto ao método, não quanto aos

progressos, custosos, de Victor.

Itard vê como metafísica qualquer idéia sobre a deficiência

intelectual que não se refira, em última análise, ao sistema nervoso ou

neuromuscular.
Quanto ao cretinismo, cerne da visão unitarista de Fodéré e,

depois, de Morei, Seguin tem idéias igualmente claras: "O cretinismo

sempre endêmico embora às vezes hereditário, e às vezes acidental, não


se

deixa adivinhar nos primeiros momentos da vida. O estado de


imbecilidade

ou de idiotia, que é a conseqüência dele, resulta tanto da gravidade


dos

sintomas como da época e modo de sua invasão, rápido às vezes, quase

sempre lento e progressivo."

112 - Deficiência mental

Noutro ponto Seguin escreve: "o cretinismo é freqiienteniente causa

da idiotia e a idiotia nunca é causa de cretinismo", e essa nova


citação

é importante já que na precedente a linguagem pode insinuar uma idéia


de

relação causal fatalista entre cretinismo e idiotia ou imbecilidade, o

que estaria longe das idéias de Seguin e plenamente concorde com as

idéias já antigas de Fodéré se no princípio da seqüência colocássemos o

bócio endêmico.

Seguin nos oferece a seguir uma espécie de tipologia

neurofisiológica ou semiológica, curiosa num tratado que se define

freqüentemente pelo horror à metafísica.

Tal tipologia só se justifica pela intenção de caracterizar a

especificidade etiológica e sintomatológica de cada distúrbio e pelo

propósito de não recorrer aos desempenhos (ou faculdades) intelectuais

como critério de diferenciação diagnóstica.

Competência e método - 113

Diz Seguin: "A idiotia coincid3 sempre com um estado nervoso

particular ao qual se junta um temperamento linfático ou muito


sangüínea,

diferença da qual resultam manifestações diversas, distúrbios nervosos

que lhe são próprios: o raquitismo, a escrófula, a epilepsia, a

hemiplegia não aparecem junto à idiotia senão acidentalmente.

A imbecilidade, deixando predominar as constituições musculares e

biliosas, não se acompanha de qualquer distúrbio nervoso e exterior, a

menos que seja unia grande atonia e algumas insensibilidade locais. O

cretinismo carrega consigo a constituição linfática, a escrófula, o

bócio, o raquitismo e todo o cortejo de enfermidades resultantes da

abundância de fluidos brancos; ele altera secundariamente os aparelhos

nervosos como todos os demais . . .

Sublinhamos os aspectos mais curiosos, relativamente anacrônicos do

texto, que lembram estranhamente Hipócrates e seus humores. Mas, ao


lado

dessa tipologia um tanto arcaica Seguin propõe uma formulação


totalmente

original das relações entre os estados descritos e a inteligência.


Embora

discutível mios seus pormenores e no seu esquematismo, sua proposição

legitima exaustívaniente a veemência de suas críticas aos antecessores


e

"aos concorrentes".

"Nos casos de idiotia, imbecilidade, cretinismo e da demência a

inteligência apresenta-se, às vezes, no sentido inverso ao da gravidade

do mal. Assim, uni imbecil pode ser mais inteligente que uni idiota, um

demente mais estúpido que um cretino, como também o contrário sc


encontra

igualmente. Mas o grau de inteligência não existe entre eles em razão


da

espécie (de mal) e se encontra em razão do grau de inferioridade do

indivíduo em cada gênero; ao contrário, a aplicabilidade das


faculdades,
quaisquer que sejam, é em razão da espécie . . .

Desse modo, em geral um imbecil demonstra mais inteligência que um

idiota, mas um imbecil grave pode revelar-se menos inteligente que um

idiota não grave; e Seguin explica: "e por exemplo o idiota não aplica

sua inteligência, com continuidade, a nada mais que seus


empreendimentos

para satisfazer seus apetites, seus gostos ou a busca de ordem . . . O

imbecil é, ao contrário, capaz de trabalhos assíduos desde que exijam

quase nenhuma atenção . . . O cretino, quando não é tolhido, segue as

condições do idiota ou do imbecil, conforme seu caso; é por isso que

freqüentemente é capaz de trabalhos que requerem atenção, paciência e

repetição dos mesmos movimentos."

114 - Deficiência mental

A semente do inêtodo

Do que foi dito e do exame do Traitenient moral deduz-se que as

colunas mestras da doutrina de Seguin são a especificidade etiológica e

sintomatológica dos estados de oligofrenia, a natureza última

neurofisiológica de tais estados, a não correspondência entre tipos ou

espécies de estado e graus de manifestação de iiiteligência, a


existência

de inteligência com graus variáveis em cada tipo ou estado.

Bastam esses elementos para a construção de unia nova e monumental

teoria, mas tais elementos são perfeitamente compatíveis com o método


existente, de ltard, por exemplo, ou talvez o de Guggenbuhl. Em que,

pois, esses pressupostos con -duzem Seguin, logicamente, a um "novo e

seu" método de emisino?

A resposta se emitrevê após algumas dezenas de páginas, nas quais o

autor descreve em minúcia como a cada estado mencionado correspondem

alterações específicas mia ossatura craniana, na motricidade, na


sensibilidade, na anatomia cerebral, no tônus muscular, etc. ... E a

razão de tal descrição é que "essas alterações às vezes obscuras mas


mais

freqüentemente manifestas servem de base . . . para diagnosticar com

certa precisão os diversos estados que têm sido confundidos até o

presente".

Mais adiante, Seguin nos mostra o quanto esse diagnóstico

diferencial dos diversos comprometimentos orgânicos e funcionais é a

semente de seu método: "Ora, essas distinções são ainda mais


importantes

porque servem de ponto de partida para a higiene, a educação e o

tratamento moral dos sujeitos. Se confunde um imbecil com um idiota, ou

um idiota primitivo com um sujeito idiotizado pelo cretinismo, por onde

se deve começar? Buscar-se-á dar ao imbecil as noções primeiras que ele

possui, mas das quais não fará qualquer aplicação, antes de dar aos
seus

aparelhos nervosos o vigor sem o qual não há atividade nervosa, nem

cerebral? Será um fracasso."

Competência e método - 115

O método deve começar com a preparação das vias nervosas e

musculares; e a escolha correta das mesmas, garantia mmmiima da


eficácia

do método, depende estreitamente da precisão do diagnóstico. Ë ele a

semente do método; do contrário resultará o fracasso: "Querer alguém


dar

ao cretino uma educação literária pretendida, antes de fortalecer seus

tecidos de modo a dar força de estabilização e locomoção a seus

aparelhos? ls~ será absurdo. Tentar ensinar leitura a uma criança

retardada que compreende tudo o que se lhe diz mas não pode perceber
uma

só das noções que lhe chegam pelo sentido da visão, antes de efetuar a

educação desse órgão etc., etc será em todos os casos tentar o


impossível."

Em meio às claras inovações doutrinárias de Seguin pode passar

despercebida unia, implícita, de extrema importância para a evolução do

conceito de deficiência mental: a serena e tácita aceitação de que

qualquer que seja o gênero de deficiência o sujeito é educável e, mais,

os limites de seus progressos dependerão do quantum de inteligência, do

grau de comprometimento de funções orgânicas relevantes para a


instrução

pretendida e da perícia mia aplicação do método.

Com tal concepção, Seguin se afigura na história um genuímio

redentor dos idiotas, cretinos, imbecis e retardados, bem diverso do

"redentor dos cretinos" de Abendberg, Guggenbuhl, a quem, em niais de


um

trecho, Seguin reconhece méritos. Mas, paia a missão que se propunha

faltavam a Guggemibuhl os dez anos de observação, prática e estudo que

Scguin passou ao lado de ltard, de Esquirol e, principalmente, das

crianças deficientes: já em 1838 educara um idiota em 18 meses, e por

oito anos, antes do Traitememtt moral vir a público, dedicara-se à

educação sistemática de idiotas, primeiro no Hospital dos Incuráveis e

depois em Bicêtre, onde organizara uma verdadeira escola especial.

Ao ler as páginas de Seguin após a confusão e o pessimismo semeados

por Fodéré, Pinel e Esquirol, a impressão é a de que o conceito de

deficiência mental acaba de atravessar unia tormenta e passa a singrar

águas tranqüilas, e assim será por unia década, até que Morei insufle

nova borrasca.

116 - Deficiência mental

A abertura para a pedagogia - que Seguin enseja e estimula - que

inicia uma teoria funcionalista, não abala em nada a doutrina

organicista: "A idiotia é uma emiíermidade do sistema nervoso que tem


por
efeito radical subtrair tudo ou parte dos órgãos e faculdades da
criança

à ação regular de sua vontade e se apresenta sob duas formas


essenciais,

que são: 1.0) a afecção de toda ou parte das massas nervosas, que dá

lugar à idiotia profunda: 2.~) a afecção parcial ou total dos aparelhos

nervosos que se ramificam pelos tecidos e presidem à vida de relação,


de

onde resulta a idiotia superficial. O idiota padrão é um indivíduo que

nada sabe, nada pode, nada quer; e cada idiota se aproximai, niais, ou

menos, desse máximo de incapacidade."

A caracterização funcionalista ou comportamentista da idiotia é

apemias aparente: "a idiotia profunda resulta de uma afecção de um ou

mais centros nervosos, como os lobos cerebrais, o cerebelo, a medula

oblongata". E nessa classe Seguin inclui vários tipos de macrocefalia e

microcefalia, numa detalhada discussão dos aspectos cranianos típicos


da

idiotia profunda e nos quais se pode basear o diagnóstico.

A importância da comifiabihidade do diagnóstico diferencial para a

higiene e o tratamento moral é o tema básico de quase um terço do


extenso

tratado de Seguiu.

Um só método, fisiológico

A expressão empregada por Seguin, "vida de relação", constitui,

como veremos, o germe de vários problemas teóricos que ocuparão mais

tarde Binet, e fonte de questões pedagógicas decisivas para a pedagogia

seguiniana.

Da idiotia, os sintomas seguros e que importam para o diagnóstico

nada têm a ver com a posse de "maior ou menor espírito" pelos

oligofrênicos; são os sintomas diretos da doença nervosa profunda (ou

central) ou superficial, mais periférica em relação ao sistema nervoso


central.

A idiotia, com Seguin não é apenas urna vaga questão medica: é uma

doença cujo diagnóstico é puramente médico e cujo tratamento é

fisiológico. Esse tratamento é em grande parte uma antecipação do


contra-

condicionamento pavloviano e até mesmo de algumas idéias de Séchenov no

seu Reflexos do cérebro, de1863.

Competência e método - 117

Embora exista unia série de sintomas típicos de idiotia, eles se

apresentam em diferentes combinações em casos diversos; entretanto,

alguns são "exclusivamente próprios da idiotia" e por isso são os mais

seguros para o diagnóstico e o tratamento, enquanto outros, embora

freqüentes em casos de idiotia, "apresentam-se em diversos outros casos

patológicos". Entre os primeiros estão "o olhar vazio e a incapacidade


de

olhar com precisão, o excesso de. semisibilidade parcial, os movimentos

mecânicos, o balançar-se e a titubeação, a incapacidade de mover


segundo

a vontade certos aparelhos miiotores não paralisados." No rol dos


demais

sintomas, não exclusivos da idiotia, estão o mutismo, a não-audição, a

insensibilidade local ou geral, o relaxamento dos esfíncteres, as

depravações do gosto e do olfato, a atonia ou excesso de irritabilidade

geral e os distúrbios de funções orgânicas ou secretarias.

Com essa semiologia clara e até certo ponto categórica e completa a

idiotia se torna objeto de "uma ciência positiva como qualquer


outra ...

enquanto, se considerada psicologicamente, qualquer classificação vem a

despedaçar-se contra as teorias opostas dos materialistas, dos

espiritualistas, dos cépticos e dos nihilistas, se é que existem."


Pois,
ao contrário da segurança do quadro fisiológico, "o estado psicológico
de

um idiota em dado momento depende menos de sua enfermidade primitiva do

que das condições morais em que é relegado, do quanto ou quão pouco de

cultura intelectual e de sentimentos afetuosos obteve em sua família,


do

maior ou menor caráter de seus diretores; . . . o estado psicológico

varia, de um sujeito para outro, na medida em que podem variar as

circunstâncias morais ou intelectuais, de tal modo que sobre dez mil

idiotas do mesmo grau as condições morais e intelectuais estabelecem,

seguramente, outros tantos graus de dcsemivolvimnento psicológico


(outros

tantos gêneros de idiotia, portanto, no dizer dos doutores que

fundamentam seus gêneros de idiotia sobre o grau de inteligência) ..."

Desse modo, não descartaremos "os simitomiias psicológicos da

idiotia mas apenas tatuamos a liberdade de relegá-los ao segundo plano".

A psicologia que Seguiu refere é, obviamente, utna psicologia das

faculdades mentais ou intelectuais: unia metafísica da aprendizagem;


mas

o trecho citado é a primeira abertura para uma crítica dos critérios de

atribuição de intehigêmucia e graus de inteligência e para a avaliação

psicológica e quantitativa da deficiência mental que se implantará com


os

testes de Binet-Simon, 1904.

118 - Deficiência mental

Mas a frase mais pioneira do trecho talvez seja "... graus de

desenvolvimento psicológico" correspondendo a diferentes "gêmicros de

idiotia" baseados "sobre graus de inteligência". Seguiu confunde ou

identifica graus de inteligência com graus de' desenvolvimento

psicológico e, o que é mais surpreendente, condiciona esse

desenvolvimento às circunstâncias ambientais e sociais em que o sujeito


(afetado organicamente ou não) cresce.

A rejeição de Seguin não é das variáveis ambientais e psicológicas

per se, embora as considere produtoras de sintomas secundários da

idiotia: a recusa se refere à identificação de graus de desempenho

psicológico (intelectual ou outro) com gêneros ou mesmo graus de

oligofrenia, e é nesse contexto que a opção fisiologista da teoria de

Seguiu planta o germe de toma depuração e revisão conceitual e

metodológica na avaliação psicológica da deficiência. Por outro lado,

após denunciar e acusar a medicina de seu tempo e "relegar ao segundo

plano" as avaliações psicológicas, não resta a Seguia senão unia opção

organicista porém não clínica: daí ele dar ao seu método o nome de
método

fisiológico ou educação fisiológica.

Para isso ele desenvolve técnicas especiais, certamente alheias e

estranhas às clínicas de seu tempo, e que ganhariam uma genuína

fundamentação científica graças à psicologia experimental do século XX.

De fato, o resumo que Seguiu faz dessas técnicas parece uma alusão

direta a conceitos de Pavlov e mesmo a idéias mais recentes de Wolpe e


de

outros; o Traitement moral diz: ". . . o que iniporta é reconhecer a

anomalia fisiológica e opor a ela hábitos tão norniais, tão regulares e

de tal modo assíduos que a anomalia de funções cessa ipso facto, na


falta

de tempo e de órgãos livres e desocupados; é o que tratarei na terceira

parte que tem por objeto a educação fisiológica."

O método de Seguin seria típico da prática corrente cmii psicologia

clínica nos dias de hoje quando, após a obra de Pavlov e o neo-

coniportarnentisnio, a ciência do comportamento se afastou

consideravelmente da metafísica das faculdades mentais.


Competência e método - 119

Um velho programa para a psicologia de hoje

Como as instruções e observações de ltard, dedicado a fazer

medicina moral, foram precursoras de métodos e técnicas de nosso tempo


no

ensino de deficientes e de questões pedagógicas que ocupam a pedagogia


de

hoje, assim seu discípulo Edouard Seguia antecipa procedimentos


hodiernos

de diagnóstico e avaliação de deficientes e precede temas que são


objetos

atuais da pesquisa psicológica sobre os excepcionais. A visão de Seguiu

sobre as diferentes faculdades psicológicas, para ele, enquanto

fisiologista, meras funções do organismo, revoluciona o conhecimento

estabelecido pela simples afirmação de que a inteligência não varia


entre

os deficientes segundo os gêneros ou tipos de estados (em que se

classificam por seus sintomas fisiológicos, principalmente), mas


segundo

o grau de doença nervosa típica de cada estado.

Mas sua revolução teórica, calcada em precisas observações, vai

além: "Não falta ao idiota nem a percepção distinta nem a sensação

interna ... nem a sensação externa... nem a atenção, nem a comparação,

nem o julgamento . .. nem o entendimento, nem a previdência . . . nem

seus apetites . . . nem seus gostos . . . nem seus desejos. . . nem


suas

afeições e antipatias pessoais ... nem sua vontade."

E após exemplificar tais funções mentais Seguiu conclui: "não falta

ao idiota sequer uma faculdade intelectual; mas ele não tem a liberdade

necessária para aplicar suas faculdades ditas intelectuais à ordem dos

fenômenos morais e abstratos; falta-lhe a sinergia, a espontaneidade de

onde brota a vontade moral."


A originalidade e atualidade da teoria fica ainda mais clara nas

linhas seguintes: "O idiota goza do exercício de todas as faculdades

intelectuais mas não quer aplicá-las senão a nível dos fenômenos

concretos e apenas àqueles de tais fenômenos concretos cuja textura,

forma, sabor, gosto, som ou alguma outra propriedade particular (e que

freqüentemente ele somente aprecia) solicitam nele um desejo, urna

manifestação de inteligência, de vida. Entretanto, há mais: não só o

idiota entra em relação voluntária apenas com fenômenos concretos; não


ele limita os fenômenos concretos com os quais voluntariamente entra em

relação a um número muito pequeno, às vezes a um único; mas abuda sobre

esse fenômeno ou esse pequeno número, tão pensem que ele tenha uma
idéia

ou somente uma noção exata ou completa. Nada disso.

120 - Deficiência mental

Em cada fenômeno sua inteligência ativa, dentro dos limites de sua

preguiça, parece apressar-se em eliminar todas as propriedades que não

são o objetivo de sua eleição; ela não quer ver num desenho senão a
cor,

nem sentir num metal mais que a lisura, nem ouvir senão certos ruídos

dentre um grande número deles reunidos. E por um processo de eliminação

talvez impossível às naturezas mais bem organizadas, ela consegue não


se

deixar impressionar senão por uma propriedade das coisas . . .; o


idiota

goza, assim, instintivamente o fascínio de sensações muito nítidas e

muito prolongadas, sem distração possível, quer por parte dos sentidos

que não são chamados a funcionar, quer por parte do intelecto que

permanece sempre e por inteiro subordinado a uma percepção única."

O descaso maior ou menor pelos aspectos motivacionais da

deficiência mental e a formalização apressada dos conteúdos de ensino


são
vícios freqüentes na educação especial; a julgar pela teoria de Seguin,

hoje à distância de quase 140 anos, estamos em rumo errado.

As palavras de Seguin são claras e conclusivas após o trecho

anterior: "Tais são . . . os sintomas psicológicos da idiotia; tal é o

estado intelectual do idiota, idios, solitarius, só, com sua sensação

única sem relação abstrata ou convencional voluntária, sem vontade

intelectual ou moral. Fisiologicamente ele não pode, intelectualmente,

não sabe; psiquicamente ele não quer; ele poderia e saberia se


quisesse;

mas antes de tudo e acima de tudo, ele não quer."

Eis um magnífico conjunto de hipóteses sensatas, derivadas de anos

de observação e de ensino de idiotas. Fatos para Seguin, fatos para

muitos outros, são para nós pelo menos hipóteses fascinantes.

Os trechos há pouco referidos, corno todo o Traitement moral,

encerram, além de uma aguda crítica ao que se pensava e se pensa da

deficiência em muitos centros, um programa fascinante de pesquisa para


a

psicologia de hoje, que além de não alcançar uma teoria mais ou menos

coerente da deficiência mental, está por demais voltada para os


aspectos

tecnolt5gicos da educação. divorciada de seu próprio passado. Daí serem

freqüentes as descobertas da pólvora em psicologia da deficiência


mental.

Competência e método - 121

Os aspectos orgânicos e funcionais da oligofrenia, que vieram para

substituir os demônios, tendem nitidamente a tornar-se os novos


demônios,

para uma psicologia que acredita quase dogmaticamente num comportamento

ou aprendizagem redutível a relações entre mamuipulações e respostas,

exatamente como ocorre na programação e operação de computadores.

Uma hipótese adicional para os psicólogos e pedagogos na área da


deficiência mental poderia ser a de que quanto mais evoluiu a análise

experimental do comportamento no sentido de sugerir novos métodos e

técnicas de ensino para deficientes, menos estudos surgiram sobre a

influência de fatores motivacionais na aprendizagem de tais sujeitos.

Unia indicação clara é a "certeza" e segurança com que às vezes se


admite

estar o deficiente muito mais próximo ao modelo do comportamento animal

para efeito de análise e modificação do comportamento. Nessa crença se

esconde a ignorância e a incúria dos aspectos motivacionais e afetivos,

lato senso, do alumio deficiente ante sua tarefa instrucional. É Seguin

que adverte.

Um estudo exaustivo da emotividade e da motivação do deficiente

mental como determinantes de suas peculiaridades de percepção e de

pemisamento, eis o programa para a psicologia de nosso tempo, na área


em

questão. A simples atenção a existência desses determinantes já implica

alterações nas estratégias de ensino. E essa idéia não é nova, embora

pouco repartida entre os que cuidam, ensinam e estudam deficientes.


Maria

Montessori, além de outras celebridades, já emutrevira nas páginas de

Seguiu a semente de uma nova estratégia didática, embora influenciada

decisivamente pelos escritos de Itard, aos quais faltava, por serem

pioneiros, uma sistematização de princípios, métodos e técnicas sobre a

base de uma exaustiva análise teórica da deficiência mental. Tudo o que

Itard apresenta de intuição e invenção, Seguiu oferece de análise e de

prática sistematizada.

122 - Deficiência mental

Toda metodologia de ensino supõe a eficácia produtiva ou corretiva

das condições ambientais, adequadamente manejadas, e desse ângulo

parecerá paradoxal o organicismo da doutrina seguiniana da idiotia. O


paradoxo é aparente: a idiotia é umna doença orgânica, nervosa (embora

tenha simutomatologia psicológica típica). Mas também outras doenças


são

distúrbios orgânicos curáveis, remissíveis, corrigíveis. Ora, o mesmo

vale para a doença chamada idiotia, que se apresenta às vezes curável e

às vezes imucurável enquanto doença nervosa. Para Seguiu, um método

fisiológico, adequado às peculiaridades de cada caso, pode não só per

também, em numerosos casos, fazer regredir a disfunção orgânica


(nervosa,

no caso da idiotia e outros estados congêneres) e, desse modo,


assegurar

a cura da doença.

OrganicisniO não significa admitir a incurabilidade (ou a

curabihidade) de todos os casos.

Mais ainda, a extensa obra de Seguiu esclarece e traça rumos para a

análise teórica em outro campo, o da etiologia. 131 de o primeiro a

indicar as causas específicas da idiotia (da inibecihidade, do


cretinismo

e do retardo mental) sem o fatalismo que precedera até Esquirol. Há

causas orgânicas, hereditárias ou não, e há causas ambientais ou

psicológicas.

A tese da curabihidade do deficiente com seus corolários,

recuperahilidade e educabilidade, não é privilégio de quem só admite

causas ambientais para a idiotia e seus congêneres.

Mesmo que para Seguiu a idiotia (como outros estados oligofrênicos)

seja uma doença orgânica (nervosa), sua etiologia não é necessariamente

hereditária, podendo as causas ser: "o cretinismo, a hinfatização das

raças, as afecções cerebrais hereditárias e as degenerescência de


órgãos

essenciais à economia, desde que produzidas desde o nascimento, e de

natureza capaz de reagir sobre o desenvolvimento dos aparelhos


nervosos";

mas, além dessas Seguiu enumera diversas outras causas referentes à

nutrição e sanidade da mãe ou dos pais, infecções na primeira


jmufância,

condições tóxicas em que trabalham os pais; e, ademais, Seguiu enumera

diversos fatores de natureza ambiental que contribuem para agravar a

idiotia.

Competência e método - 123

A teoria psicogenética

Ao acompanhar a sucessão de episódios, obras e autores que de algum

modo compõem uma história do conceito de "deficiência mental", são

inevitáveis a procura da originalidade de cada obra ou autor em relação

aos que o precedem e a tentativa de apontar a influência que exerce


sobre

autores e obras posteriores. Obviamente, o julgamento dessa


originalidade

e dessa influência sofre distorções diversas, o que recomenda o máximo


de

cautela na proposição desses juízos ou, o que seria mais cômodo, a

omissão de tais apreciações, o que transformaria este trabalho em mera

cronologia bibliográfica, algo como um volume de Psychological


Abstracts

ou Educational Abstracts. 131 intenção deste trabalho apontar os homens


e

obras que determinaram a gênese e transformações da idéia de


deficiência

mental, documentando quanto possível as contribuições de cada um. Mas é

também objetivo nosso assinalar a importância teórica ou prática de


cada

autor. Por isso, com a cautela devida temos apontado o Traité de Fodéré

como muefasto, por exemplo, porénu não como mal-intencionado ou


sectário:

são os seus efeitos que permitem aquela atribuição.


Similarnuemute. quando se diz qtie ltard é o criador de uma

educação especial de deficientes mentais, o título lhe vem dos efeitos

que gerou mia literatura subseqüente e na prática educacional. Além


dessa

fundamentação no efeito histórico subseqüente, os julgamentos de

originalidade ou importância são freqüentemente proferidos por outros

protagonistas da história, como quando Seguiu julga seus antecessores,

Binet julga Seguiu, Montessori julga Seguiu e Binet, etc. . . . Às


vezes,

porém, o julgamento corre por conta e risco de quem escreve a história

sem amparo dos personagens da mesma. Tal é o sentido de algumas

afirmações anteriores deste texto e da que se faz agora: Seguiu é o

primeiro a propor uma teoria psicogenética da deficiência mental.

Dizemos propor porque o autor não a formaliza como tal, embora a

apresente formalizada em outros termos.

124 - Deficiência mental

Por "teoria psicogenética" entendemos aqui um sistema de conceitos

que explica o desenvolvimento do comportamento, e portanto os retardos


ou

desvios ou distúrbios desse processo, a partir de alguns princípios que


a

nosso ver são: 1) um comportamento complexo requer o domínio de outros

comportamentos. mais simples; 2) esses comportamentos mais simples têm

que ser selecionados e combinados de algum modo para que seja possível
o

mais complexo; 3) essa seleção e combinação dependem da maturação do

sistema nervoso; 4) a efetuação e adequação dos comportamentos mais

simples também requer um certo grau de maturação de sistemas


sensoriais,

efetores e de coordenação central; 5) para cada comportamento há um

momento ótimo do processo de maturação orgânica; 6) a experiência

necessária para o surgimento de um dado comportamento tem seu efeito


máximo quando ocorrida mio respectivo momento ótimo da maturação

orgânica; 7) quando há urna defasagem entre a experiência (ou ensino) e


a

maturação, tal defasagenu pode ser maior ou menor; 8) tal defasagem,

maior ou menor, pode prolongar-se por mais, ou menos, tempo; 9) da

grandeza e da duração dessa defasagem dependerão retardos e custos

maiores na aqumsmçaO de comporta mentos; 10) como esses comportamentos

são pré-requisitos para outros, mais refinados ou mais complexos, não é

possível compensar a defasagem saltando etapas no processo de aquisição

para sincronizar esse processo com o da maturação; 11) a defasagen'u


pode

dever-se a erros no ritmo de ensino ou distúrbios no ritmo de


maturação,

ou a ambos; 12) como o processo de maturação e o menos manipulável, é a

ele que deve ser ajustado o processo de experiência ou ensino; 13) para

isso ele deve ser regularmente avaliado e, quando for o caso,


estimulado;

principalmente quando defasado ele próprio em relação à idade

cronológica; 14) o processo de maturação, que enu certo tempo pode


estar

no nível ótimo para uma dada aquisição, noutro tempo pode dificultá-la
ou

impedi-la.

Em resumo, um comportamento é produzido a partir do domínio de

outro, preliminar ou pré-requisito, para a aquisição do primeiro; nias,

um e outro só podem ocorrer quando o sistema nervoso central e o

organismo como um todo apresentarem uni nível adequado de maturação.


Essa

maturação tem aspectos anatômicos e funcionais, cujo conhecimento e

eventual controle deve ser preocupação indispensável e preliminar do

educador, principalmente na educação de deficientes mentais.

Competência e método - 125


A prática atenta e longa de Seguiu, ao observar e tratar seus

idiotas de Bicêtre e de Os Incuráveis, e seu sólido conhecimento de

neurologia e fisiologia devem ter-lhe mostrado tudo isso. O seu famoso

quadro monográfico é um verdadeiro e amplo roteiro para avaliação do

deficiente (idiota ou não) em seus aspectos de: desenvolvimento ósseo,

muscular, neurológico, sensorial, além de registrar funções

"fisiológicas" como atividade geral, irritabilidade, efetuações

musculares variadíssiniaS, locomoção e inúmeros outros aspectos da

motricidade, coordenaçao motora, coordenação sensório-motora, limiares


e

discriminações sensoriais, funções de eliminação, respiração, fomuação


e

emissão de sons; inclui também p "estado psicológico", mios aspectos de

atenção, percepção, comparação, julgamento. reflexão, dedução,

combinação, invenção, repertório de conhecimentos acadêmicos ou não,

memória, previsão e previdência; a seguir constani itens do "estado

instintivo e moral", tais como conservação, ordenação, agressividade,

crueldade, possessividade, gratidão, vaidade, rebeldia, obediência,


etc.;

concluem o roteiro registros de filiação, moléstias dos ascendentes,

ambientes climáticos da primeira imufância, eventos importantes da

concepção, gestação, parto, amamentação, enfermidades da infância,

variações ou estabilização do estado da criança do nascimento até o

momento da observação.

Visto hoje, esse "quadro monográfico" aqui resumido é um verdadeiro

roteiro de avaliação da maturação orgânica em seus aspectos


morfológicos

e funcionais, das funções aferentes e eferentes do sistema nervoso, das

capacidades sensoriais e cognitivas, dos hábitos de' vida diária. 131


um

genuíno mapeamento dos pré-requisitos maturaciomiaiS (conu seus


aspectos

de domínio de funções de relação com o meio) para efeito de decidir


sobre

questões de ensino (tratamento).

É esse organicismo fecundo e construtivo que distingue Seguiu e que

já se apresentava bissextamente nos escritos de Itard como um


organicismo

"realista".

Itard percebeu e especificou vários princípios dos que acima

emularemos e seu recurso a um exaustivo treino sensorial é evidência de

quanto admitia a natureza propedêutica ou prelmtrnnar de certos

comuuportarnentoS, em relação a níveis mais complexos de desempenho.


Mas,

tal treino não se destinava a preparar o sistema orgânico e receptor ou

efetuador para a aquisição da experiência: visava produzir sensações e

comparações: Itard também - e foi o primeiro a fazê-lo - aponta a

defasagem entre o treino da fala e a maturação do aparelho fonador,


porém

não generaliza essa idéia a ponto de derivar princípios gerais para a

didática. O fato não o leva, como ocorreria talvez a Seguiu, a reeducar


o

aparelho orgânico, como pré-requisito para o ensino da emissão e depois

da articulação vocal.

ltard tanubém admite que o domínio de comportamentos (faculdades)

siniples é pré-requisito para adquirir os complexos, mas as seqüências


de

tarefas que propõe "por aproximações insensíveis" respeita mais graus


de

abstração e complexidade lógica crescente que níveis de domínio de cada

tarefa.

Itard é, sem dúvida, o precursor, mas Seguiu é o criador da teoria

psicogenética, a nosso ver. E não é sem motivo: ltard queria mais


confirmar unia teoria e redimir unta criatura infeliz. Seguiu pretende

chegar a um método aplicável não só aos idiotas mas a qualquer


deficiente

mental.

126 - Deficiência mental

Para o escopo de Itard basta relatar situações, desempenhos nelas

obtidos e ritmos de progresso, além de obter a autonomia biológica e

social de Victor; para os fins de Seguiu é necessário denunciar a


omissão

de ensino aos idiotas, com argumentos científicos, aptos a demolir as

falsidades e imposturas teóricas que a fundamentavam, experimentar

métodos de diagnóstico e de cri-sino, sistematizar procedimentos e

demonstrar a eficácia e versatilidade do método resultante.

Daí o cuidado de Seguiu com as diversidades orgânicas e funcionais

entre vários estados de deficiência mental; seu método deve servir para

ensinar qualquer idiota e, se possível, qualquer outro deficiente. Vale

dizer: deve ajustar-se aos mais diversos distúrbios da maturação


orgânica

e às mais diversas luistórías de defasagem entre esse processo e o de

experiência ou ensino.

É por essas razões que o Traitement moral é o primeiro texto de

teoria psicogenética do desenvolvimento, e da deficiência mental. Não


por

nada, a parte da obra referente à educação dos idiotas é precedida de


200

páginas que tratam de diagnóstico, avaliação e higiene dos idiotas,


esta

entendida como correção de problemas de saúde; e não por nada, todo o

método começa pela educação do sistema muscular e pela ginástica e

educação do sistema nervoso. Seguiu, niais que ninguém, sabia que os

repertórios motores, verbais ou intelectuais se constróem sobre o

processo de evolução ontogenética (dos "aparelhos nervosos" ou do


sistema

nervoso central).

Isso quanto à relação entre niaturaçãO e comportamento; pois Seguiu

merece o título que lhe atribuímos também por seu enfoque (e doutrina)

sobre a relação entre comportamento e comportamento (mais complexo ou

mais refinado).

Competência e método - 127

O Traitement moral está repleto de técnicas de ensino especiais,

ilustradas com abundância de exemplos de sua aplicação a diferentes


tipos

e níveis de deficientes e referentes às mais diversas áreas de vida do

educando. Não há qualquer área importante do ensino de deficientes

mentais que não tenha recebido no texto de Seguimu preciosas sugestões

metodológicas. A esse propósito, a riqueza e principalmente a segurança

das técnicas superam, em muito, o legado escrito de Itard. Mas para a

argumentação que nos interessa agora, o aspecto decisivo dessas


técnicas

é a seriação das tarefas de modo a que a execução ou domínio de uma


delas

seja exigido quando todo o repertório perceptivo e operativo requerido,

preliminar ou pré-requisito, esteja plenamente donnimuado pelo educando.

São numerosíssimos os exemplos dessa seriação genética das tarefas

ou dessa genealogia de noções. Tomemos por amostra a programação do

ensino da escrita. Após unia aguda análise da diferença entre os

hieróglifos como alfabeto figurativo e os caracteres simbólicos, Seguiu

escreve: "Essa dupla passagem da representação da coisa à do nome e do

caráter sólido ao caráter linear constitui a história dos sinais

gráficos. É assim que o espírito humano para chegar ao abstrato


precisou

passar por todas as fases do concreto; e é somente fazendo o idiota

passar por todas essas transições históricas do pensamento humano que


podemos esperar que transponha unia parte da distância intelectual que
o

separa de nós. Ora, esse abismo pode, a meu ver, ser aterrado pelo
ensino

metódico de todas as noções que supõe a escrita e seu correlativo, a

leitura, noções que as crianças comuns adquirem sozinhas, mais ou


menos,

noções que só a educação fisiológica pode dar aos idiotas. As noções


que

a leitura e a escrita moderna supõem são: 1.0, o plano; 2.0, a cor;


3•o,

a abstração linear; 4•U, a dimensão; 52, a configuração; 6.0, a

combinação de partes para formar uni todo.

Nós tratamos (acima) do modo de crismar todas essas noções de um

modo tão preciso, tão positivo que para fazer uma criança passar do

desenho propriamente dito, que é a aplicação mais imediata de tais

noções, à escrita não resta ao mestre mais que chamar "D" a uma porção
do

círculo apoiada por suas extremidades a uma vertical. . .

128 - Deficiência mental

Eis outra amostra da teoria psicogenética de Seguiu, esta referente

à leitura: ". . . certamente eu não posso ensinar a leitura e a escrita

aos idiotas sem iniciá-los nas noções que elas supõem: é preciso que o

conhecido conduza logicamente ao desconhecido." É preciso que "sua

atenção saia do quadro de fenômenos instintivos onde vagava como

aprisionada, para . . . fenômenos que só adquiriram valor graças à

apreciação raciocinada que ele teve que fazer sobre suas propriedades

evidentes, tangíveis, necessárias. Essas primeiras ginásticas do


espírito

tinham dois objetivos: o primeiro . . . era fazer entrar em


funcionamento

as faculdades intelectuais e perspectivas da criança; o segundo ... era


dar à criança, uma a uma, na melhor ordem, toda as noções preliminares

que supõe e que exige o estudo da leitura.'

Os pré-requisitos capazes de gerar a leitura e produzidos pelas

"ginásticas do espírito" ou noções preliminares "são as seguiu tes:


1.0,

do plano; 2.0, da cor; 3•0, da abstração linear; 42, da dimensões; 52,


da

configuração; 6.0, da relação do nome com uma figura; 7,0, da relação


da

figura com o nome; 8.0, da relação entre uma só emissão de voz ou


sílaba

e diversos sinais; 92 relação de diversos sinais a diversas


articulações

sucessivas; 10." da relação da palavra, escrita e pronunciada, cciii a

sílaba que ela representa. As cinco primeiras mios ocuparam a propósito

de desenho e da escrita; as seguintes são diretamente aplicáveis à

leitura das letras, das sílabas, das palavras, e a criança deve estai

suficientemente preparada para isso pelos exercícios de combinações e

relações, entre as partes, que analisei no capítulo 39.-

Mais adiante, declara Seguiu: ". . . de todas as noções que a

leitura supõe, as sete primeiras mios conduziram a conhecer as letras;


as

duas noções seguintes vão iniciar-nos na leitura mecânica. São as


noções:

1.0 Da relação de uma só emissão de voz ou sílaba com diversos sinais e

2.0 Da relação entre diversos sinais e várias articulações sucessivas.


A

décima e última noção requerida como preliminar para a leitura, a da

relação entre a palavra escrita e pronunciada com a idéia que ela

representa, nos fará passar do domínio das noções ao das idéias ..."

Não é preciso insistir muito para que se vejam nessas citações do

Traitement moral exemplos de aplicação de uma teima psicogenética do

desenvolvimento e da deficiência mental. Ademais, é de Seguiu a


distinção

entre operações concretas e operações formais, estas geradas a partir

daquelas. Os exemplos transcritos mostram a construção genética de um

repertório (leitura e escrita) pelo domínio de noções preliminares que

tal construção "supõe e exige". Mas Seguiu admite também unta gênese
das

idéias a partir das noções e do treino de abstração, esse por sua vez

produzido pela "ginástica semosorial ".

Se, como dizemos, Seguiu é o criador da teoria psicogenética, por

que em nenhum momento utiliza essa designação ou qualquer equivalente?

Simplesmente porque esse é o sentido que têm para ele as expressões

"educação fisiológica" e "método fisiológico".

V pessimismo e retrocesso

Os párocos do Piemonte

O clero católico ocupou nossa atenção ao tratarmos do conceito de

deficiência mental nos tempos medievais, na figura cruel dos


inquisidores

e nos ardilosos textos e códigos que regeram a perseguição e a tortura


de

hereges, bruxos e devassos. Agora o clero volta a ocupar-nos, ainda que

de passagem, na figura simpática do pároco de aldeia na região do

Piemonte, em 1848.

Corno é sabido, nesse ano o rei da Sardenha criou a Comissão Sarda,

ou Comissão do Piemonte, como passou às crônicas. Composta por


sumidades

médicas, tinha por função investigar a incidência de cretinismo naquela

região e propor medidas para reduzir ou eliminar tal incidência.

Em tempos anteriores, comissões semelhantes haviam sido criadas,

uma delas integrada por Fodéré, para pesquisas equivalentes, no mesmo

Piemonte ou em regiões adjacentes.

De tais pesquisas resultaram relatórios e tratados de relevância


histórica na medicina social e na área da deficiência mental como, por

exemplo, o texto lapidar (e nefasto) do Tratado do bócio e do


cretinismo,

de Fodéré (1791).

O relatório da Comissão do Piemonte, datado de 1848, estremeceu o

mundo médico, criando uma celeuma na qual entraram praticamente todas


as

sumidades clínicas da época. A razão é simples: o relatório negava a


"lei

de Fodéré"; e ao mesmo tempo descrevia uma situação médico-social

assustadora.

130 - Deficiência mental

Baillarger e Krishaber (1879) descreveram com riqueza de

documentação os alinhamentos quase automáticos das grandes autoridades

médicas do tempo numa ala de apoio e noutra de oposição às conclusões


do

relatório da Comissão Sarda.

O trabalho dos dois autores, para quem acompanha a evolução das

idéias relativas à deficiência mental, expõe e opõe argumentos e dados


de

unia ou outra ala, quase a lembrar a elegância e a determinação de uma

competição de esgrima. Nesse torneio, ao fim, o argumento mais poderoso

contra o relatório e, pois, a favor da velha tese de Fodéré, será o

envolvimento dos padres na pesquisa da Comissão do Piemonte.

Nada de ideológico ou teológico agora, como veremos.

O relatório, em meio a tabelas e argumentos, dizia que os

"habitantes dos lugares onde as causas de insalubridade existem cm


maior

número e onde elas atuam com mais intensidade têm, quase todos, um

aspecto caquético; as escrófulas e o raquitismo são ali freqüentes. A

maioria tem uma ossatura desmedida, uma cabeça volumosa, as


articulações
das extremidades inferiores de um tamanho extraordinário, o que pode

depender de seu exercício. Jamais atingem uma estatura elevada. Um bom

número deles têm bócio. Sua figura tem algo de grosseiro ... têm olhos

afastados ... e . . . mais ou menos um aspecto estúpido ... ". Até


aqui,

nada de mais, exceto o alarme de Ferrus a sustentar que no Piemonte não

havia "só cretinos, mas toda unia população a ser tratada".

Pessimismo e retrocesso - 13 1

Mas no decurso do relatório a Comissão chega a conclusões

diametralmente opostas às de Fodéré. "Ela admite que bem uni terço dos

cretinos estão atacados de bócio, que as crianças cujo desenvolvimento

mostra o estigma do cretinismo são freqüentemente atacados por um

rudimento de bócio na sua primeira idade; ela acrescenta, porém, que

muitos cretinos são desprovidos de bócio, que o volume desse não tem

relação direta com o grau de cretinismo e que, doutro lado, existem

indivíduos, com bócio, não cretinos." Esse trecho é de Baíllarger e

Krishaber (1879), que nos transmitem a conclusão textual da Comissão:


"Se

considera que há cretinos inteiramente privados de bócio; que o grau de

cretinismo não está sempre em razão direta com o volume do tumor; que,

enfim, encontram-se indivíduos portadores de uni bócio volumoso sem

apresentar o menor indício de cretinismo, é lícito concluir que o bócio

não constitui um sintoma essencial mas forma uma concomitância


puramente

acidental dessa triste degenerescência. O bócio endêmico nas aldeias

montanhosas existe por ele mesmo; tem causas que lhe são próprias, e se

desenvolve e progride sem ser nem a causa nem o efeito do cretinismo.

Há regiões nas quais os habitantes estão quase todos afetados sem

que se encontre entre eles traços de cretinismo.

Essa conclusão explosiva encontra apoio em posições de grandes


homens da medicina; Koeberlc, por exemplo, escreveu: "Por conseqüência,

não existindo o bócio senão na metade dos cretinos, e sendo ele muito

difundido entre os indivíduos inteligentes e entre os idiotas que não

apresentam os caracteres do cretinismo, disso resulta que o bócio não

pode ser considerado um atributo dessa degenerescência, e que o


idiotismo

complicado de bócio não é necessariamente cretínico. Já basta esse


trecho

para entender o terremoto teórico que a Comissão desencadeou; mas

Koeberle completa: "o idiotismo simples, o cretinismo, a afecção de

bócio, são estados mórbidos distintos, independentes, mas que se podem

encontrar associados."

Ao lado das idéias de Koeberle e das conclusões da Comissão tomam

posição também Ferrus, Moretin e, de certo modo, Parchappe.

Em defesa da teoria unitária de Fodéré perfilam-se Tourdes,

Chabrand e Fabre. Chabrand escreveu: "a relação que liga, uma a outra,

essas duas afecções é tão evidente que ela não escapa nem mesmo aos

habitantes de nossas montanhas. Perguntem-lhes, por exemplo, como pode

ocorrer que em tal ou tal família se encontrem crianças atacadas de

cretinismo enquanto o pai e a mãe parecem bem constituídos e sadios.


Eles

não deixarão de responder que entre os ascendentes que eles' conheceram

havia portadores de bócio."

O argumento de Chabrand não honra muito seu bom nome científico e

não abala a conclusão da Comissão, diversamente do que fará o tratado


de

Morei, muito mais tarde, em 1857.

132 - Deficiência mental

Mas a esgrima de opiniões cuja amostra referimos não atinge o cerne

do relatório. Quem o faz, anos mais tarde, é o relator de outra


Comissão,
e é na crítica desse relator que entra como argumento a questão dos

padres. A crítica é metodológica: a Comissão distribuiu dois


instrumentos

para colher dados; um, foi um questionário endereçado a todos os


párocos

das localidades, convidados a colher informações dos prefeitos; outro

questionário foi enviado aos médicos de todas as províncias, esperando-


se

deles esclarecimentos mais precisos e completos. Os padres, pouco

entendidos em cretinismo ou em bócio, limitaram-se a preencher as

respectivas colunas com o que colheram dos prefeitos e paroquianos

enquanto os médicos enviavam "memórias" mais ou menos desenvolvidas-


Como

a proporção de párocos é muito maior que a de médicos, da província de

Aosta, por exemplo, foram recebidos 84 quadros preenchidos pelos padres


e

apenas li memórias, dos médicos. Como numa região de muito bócio não se

notam senão os bócios volumosos, que qualquer pároco percebe, e como

somente os médicos podem perceber certos sintomas de cretinismo, os

resultados da Comissão do Piemonte são espantosos: em onze comunas

compreendendo 9 .437 habitantes a pesquisa aponta apenas 15 1 cretinos


e

nenhum caso de bócio, sendo os cretinos com bócio 80 e os sem bócio 71,

dois totais pouco diversos, a justificar as ponderações de Koeberle,

mencionadas há pouco, de que bócio e

Os dados da Comissão do Piemonte, transcritos por Baillarger e

Krishaber (1879) estão na Figura 19.

Pessimismo e retrocesso - 133

A questão suscitada pela Comissão tinha dois pólos polêmicos: um

era o do nexo causal entre bócio e cretinismo, e é ali que a


participação

dos párocos no levantamento poderia gerar dúvidas sobre as conclusões


do

relatório opostas à tese de Fodéré, e seus muitos adeptos, de que os

cretinos são gerados por portadores de bócio, mesmo que numa geração a

relação não se manifeste. O outro pólo da querela, para nós mais

relevante, refere-se ao nexo da degenerescência cretinismo-idiotia,


pois

a idiotia seria também herdada de ascendentes com bócio, visto ser


apenas

o grau último e mais grave da degradação cretínica.

Obviamente, esse aspecto pouco importava na disputa entre as duas

facções médicas.

O relatório e sua contestação mostram que, a despeito da obra de

Seguin e das já numerosas escolas para deficientes, a doutrina médica

continua impregnada do fatalismo hereditarista que, se


metodologicamente

defensável e em muitos casos irrecusável, mostrou-se deletério por sua

exagerada abrangência. Há, sim, deficiências mentais resultantes de

lesões ou déficits orgânicos herdados e hereditários, mas nem todas as

deficiências mentais são deste tipo. Ademais, o que torna a posição de

Fodéré mais deletéria é o nexo apressado entre cretinismo, idiotia,

imbecilidade e debilidade ou retardo mental, postos em série como graus

de uma só e mesma entidade nosológica e gerados por unia mesma


etiologia

básica: o bócio (endêmico ou herdado).

A Comissão Francesa que em 1873 impugnará o relatório da Comissão

do Piemonte, levantando o argumento da imperícia dos párocos, voltará


ao

assunto, com resultados plenamente favoráveis à teoria unitária,

agrupando numa só categoria cretinos e idiotas, chegando até mesmo, em


um

momento, a escrever "cretinos ou idiotas".

134 - Deficiência mental


Afora a questão da coleta de dados pelos curas de aldeia, a

polêmica é um torneio de autoridades, mais que um cotejo de argumentos.

Jtard, Belhomme, Seguin, Ferrus, Guggenbuhl parecem não ter

existido ou escrito entre o tempo de Fodéré e o da Comissão do


Piemonte.

ii que a hegemonia doutrinária continua apanágio da medicina


tradicional,

avessa a evidências ou argumentos procedentes de origens outras que não


a

anatomopatologia, a semiologia neurológica, e a autoridade clínica.

A fúria antimédica de Seguir' era perfeitamente explicável. Os

pioneiros da "medicina moral" formam uma dissidência, promissora de um

lado, ameaçadora de outro, o da medicina oficial, indisfarçavelmente

conservadora.

Morei e as degenerescência

Um bom exemplo desse conservadorismo é o Tratado das

degeimerescências, de Morei (1857).

Ë próprio do homem estender a explicação do conhecido ao que se

desconhece, e é normal na história da ciência que a denionstração da

veracidade de uma hipótese explicativa conduza logicamente a estendê-la


a

fatos novos que se afigurem, por alguns aspectos, explicáveis pela


mesma

hipótese acertada. Essa generalização, mais prudente ou mais afoita, é

condição de progresso do conhecimento quando o teste da hipótese para

explicar os fatos originais houver sido rigoroso e replicável. A mesma

generalização, cauta ou imprudente, é, porém. deletéria quando faltam

àquela verificação original da hipótese o rigor e a verificabilidade

pública. A freqüência dessas generalizações ilegítimas e sua

popularização são maiores quando predomina o culto da autoridade sobre


o
cultivo da metodologia ou quando as urgências socioculturais apressam a

indagação científica a exigir intervenções práticas impostergáveis.

Ë precisamente esse o caso da teoria-unitária de Fodéré e da teoria

da degenerescência de Morei. Esta última é tão abrangente quanto vaga e

sua difusão tão ampla nos ambientes médicos se deve principalmente a


três

condições: a autoridade de Morei, o conteúdo alarmista e eugenista que

carrega, a plasticidade com que se ajusta às mais díspares categorias


de

fatos. Isso, se analisada com referência à época em que se difundiu,

porque da perspectiva de hoje ela parece dever-se à inexistência da

bioquímica, da genética médica, da microbiologia e outros ramos do


saber

biomédico; de resto, é um fenômeno recorrente na história de qualquer

ciência.

Pessimismo e retrocesso - 135

A idéia de degenerescência da espécie humana vem, em última

análise, da doutrina do pecado original e substitui perfeitamente em

meados do século X1X a danação divina do deficiente mental pela danação

da natureza. Incorpora o mesmo fatalismo, a mesma marca do inapelável e


o

mesmo apelo à segregação como recurso para salvar os puros não


condenados

e a posteridade.

Numerosas obras de diversos autores empregam a palavra e o conceito

de degenerescência com significado de degradação da natureza, perda da

perfeição. Mas o que "degradação" tem de descritivo, "degenerescência"

tem de princípio ativo, processo dinâmico, causal ou determinante, da

degradação descrita.

ii essa a característica fundamental da teoria de Morei. O Tratado

das degenerescência físicas, intelectuais e morais da espécie humana


aponta, explica e defende um princípio geral a presidir o curso da

espécie humana. As amplas alterações morfológicas e funcionais do

organismo humano, características do cretinismo, o transformam no "caso

típico" da teoria moreliana da degenerescência. "Todas as povoações que

incluem cretinos possuem portadores de bócio e não se pode apontar

qualquer exemplo em contrário. A observação atenta dos fatos prova que


o

bócio é a primeira etapa do cretinismo. Nas regiões onde o bócio é

endêmico pode-se logo distinguir na figura dos indivíduos os primeiros

sinais do cretinismo: lábios grossos, nariz largamente achatado,


arcadas

zigotnáticas mais salientes, marcha pesada, torpor muito grande da

inteligência . .

Morei se explica: "Essa maneira de considerar a evolução do

cretinismo não é uma simples noção especulativa; se o cretinismo é a

evolução, através das gerações, de um elemento mórbido cujo germe os

ascendentes carregavam e que lhes havia alterado a constituição, é de

toda evidência que não é contra o cretinismo que convém dirigir os


meios

de tratamento, mas contra o mal do qual o cretinismo é o termo último.

Ora, esse mal é o bócio; não que bócio e cretinismo sejam sinônimos,

porque é possível ter bócio sem ser cretino, mas há entre esses dois

estados um liame de parentesco que nos fixa irrevogavelmente na direção


a

ser dada às pesquisas etiológicas e às aplicações terapêuticas."

136 - Deficiência mental

Não há muita diferença entre o Traité du goitrc, de Fodéré, e o

Traité dcs dégénérescenses, de Morei, no que se refere à deficiência

mental ao entender o cretinismo como produto fatal do bócio. Morei,

porém, admite que a idiotia e a imbecilidade podem também resultar de

outra linha de degenerescência da espécie: a das causas tóxicas, mais


precisamente o alcoolismo dos pais. A idiotia não perde, porém, o
triste

atributo que lhe dei-a FodémC: ela é o último degrau da degradação

intelectual (quer imitada esta com o bócio-cretinismo, quer com o

alcoolismo da mãe ou do pai).

O quadro da Figura 20, apresentado por Robin em 1882, mostra como a

degenerescência de Morei vem ordenar superficialmente uma imensa e

caótica massa de dados referentes a quadros clínicos, patologias,

etiologias, aberrações mieonatais, quadros infecciosos, virais e outros

cujas verdadeiras explicações viriam ' da genética, da bioquímica, da

obstetrícia, da microbiologia, etc. Sua aceitação tão ampla só se


explica

por essa falsa ordenação do saber médico pré-científico, ou já


científico

em alguns domínios, pois a teoria em si mesma é demasiadamente vaga. A

própria definição de Morei é um amontoado de termos pouco definidos: "é

uni desvio doentio do tipo normal da humanidade." Desm~'io doentio e


tipo

normal são o que Morei pensa que sejam!

Pessimismo e retrocesso - 137

Dally (1879) tentou obviar essas evidentes imprecisões COlli nova

definição: "e uma alteração orgânica e funcional transmissível por

hereditariedade e atingindo a esterilidade.''

Na história da idéia de deficiência mental a "hereditariedade" tem

sido o grande fantasma, de quando em quando invocada pelos médicos.

Fodéré, Pinel, Morei e tantos outros a propuseram como se o termo

designasse o agente transmitido e o processo de transmissão, quando não


é

esse o sentido correto. A hereditariedade não pode confundir-se com

etioiogia, "ela não é uma causa; de herança em herança é preciso


remontar

à causa, fora dessa condição" como escreveria Cornii (1879). Mas o

próprio Cornil reintroduz o fatalismo ao acrescentar que essa causa


pode

ser "as heranças acumuladas", o que é claramente um sofisma e não uma

explicação. A contribuição maior da teoria de Morei não se deu no campo

do conhecimento, onde propiciou improvisações teóricas e,

consequentemente, absurdos clínicos. Sua ressonância mais duradoura

ocorreu no campo das atitudes que gerou na sociedade e na cultura ante


o

doente, o deformado, e toda sorte de deficientes, principalmente os

mentais.

Foram atitudes de medo, rejeição, segregação e asco que resultaram

em propostas eugenistas catastróficas para os deficientes, como veremos.

Chambard (1879) resumiu e explicou a teoria de Morei, da qual foi


adepto

fervoroso, a ponto de escrever: "Ora, não há dúvidas de que os idiotas

sejam degenerados e, mesmo, como bem demonstrou Morei, os últimos

representantes de famílias em via de degenerescência." Além do aspecto

categórico, note-se bem o texto: agora não é o cretino, mas o idiota,

plenamente identificado com o primeiro, que é o grau último da

degradação! 12 a própria expressão do deletério sucesso da teoria de

Morei: consolidar a visão unitarista da deficiência transformando

idiotia, imbecilidade e outros estados com cretinismo mitigado ou, com

designação mais unificante ainda, "degenerescência mental", de Morei.

Enquanto Fodéré apregoava o nexo fatalista entre bócio e cretinismo,

Morei o estende a toda e qualquer deficiência, acomnamihando-o do mais

perigoso alarme.

138 - Deficiência mental

Os preconceitos de hoje quanto à hereditariedade mais ou menos


indiscriminada da deficiência mental, presentes até entre os que tentam

educar deficientes é, em parte, produto da Teoria das Degenerescência.

Porque é dali que deriva a idéia de tendência inata à deficiência, uma

idéia que extravasa do preconceito da hereditariedade, necessária, para


a

metafísica da hereditariedade, reintroduzindo a superstição agora

pseudocientífica na conceituação da deficiência mental. Essa volta da

superstição é mais um despertar. já que a tnedicimia dos nicados do

século XIX não a destruíra, como não afastara o dogmatismo, aliando ao

culto da autoridade clínica a indigência metodológica da pesquisa

biomédica. Assim, a "degenerescência" ou a "tendência inata à idiotia"

eram apenas novos demônios a possuir os corpos e as mentes.

O novo exorcismo virá da pesquisa biomédica.

Vista por Perron (1971), a "degenerescência", de Morei, assim se

resume: "é . . . uma degradação progressiva do ser humano. Na primeira

etapa do processo acham-se os simples desequilibradas, preguiçosos e

delinqüentes menores. Os seus filhos apresentam condutas mais

repreensíveis ou mais anormais, devidas aos seus impulsos


incontrolados:

estão sujeitos às perversões, à histeria, a epilepsia, à hipocondria.


Na

geração seguinte, constatam-se efeitos de tendências inatas para a

loucura, nomeadamente a deterioração intelectual. E finalmente, no fim


do

processo, a última geração atinge a degenerescência total, com o


retardo

mental, a imbecilidade, a idiotia."

A julgar por essa teoria, a deficiência mental podia resultar de

uma tendência inata de quem tivesse mãe epiléptica ou apenas um avô

preguiçoso ou dado ao vinho e que, como pequeno delinqüente, houvesse

apedrejado os vitrais de um mosteiro ou, num pecado mais venial,


tivesse
furtado um castiçal da hospedaria.

A Comissão Francesa

Quando o governo austríaco recenseou a fazenda de Syrnitz, onde

"todas as crianças" eram cretinas e/ou idiotas e na qual os aldeões de

outras terras, sadias, também ficavam cretinos e perdiam as faculdades

intelectuais; omite, enfim, a degenerescência atingia sua plenitude,

Pasteur e Mendel tinham 22 anos e Claude Bernard 31.

Pessimismo e retrocesso - 139

Esses homens, que desvendariam e divulgariam os primeiros segredos

da microbiologia e das infecções, da genética e do metabolismo, são os

novos exorcistas para os novos demônios chamados tendência inata,

degenerescência, degradação etc. ... Mas o avanço que eles trazem à

pesquisa biomnédica não alterará a doutrina medica e o autoritarismo

científico senão muito depois do Traité de Morei e depois do

recenseamento da Comissão Francesa.

Os resultados de tal censo, realizado cm 1864, só foram publicados

no Rapport de la Conimission Française, em 1873, redigido provavelmente

por Baillarger.

Desnecessário dizer que o Rapport confirma inapelavelmente a teoria

da degenerescência e mais remotamente a "lei de Fodéré", ao mesmo tempo

em que critica sem contemplações sua rival histórica, a Comissão do

Piemonte, que não vira nexo algum, além da coincidência, entre o bócio
e

o cretinismo (com suas seqüelas mentais).

Num artigo de Baillarger e Krishaber - publicado somente em 1879 -

para o Dictionnaire Encyclopédique des Sciences Médicales, vol. 23, no

verbete "Crétinisme et goitre endémique" são resumidos e discutidos os

dados mais importantes do Rapport da Comissão Francesa escrita seis


anos
antes e fundamentado em levantamentos dirigidos por ela ou realizados
por

pesquisadores diversos e independentes de seu projeto. Uma das fontes

principais do Rapport, o recenseamento de 1864, apresentou "dados

irrefutáveis" sobre a incidência de "cretinos e idiotas" tomados em

bloco, em correlação com a ocorrência de bócio na população. 12 o que


se

vê na Figura 21, que confronta os dados obtidos na Sabóia com os que

precedentemente publicara a Comissão do Piemonte e referentes à mesma

região.

Da tabela resulta que as "11 comunas citadas, em lugar de 151

cretinos sem um só caso de bócio, abrigavam, pelo contrário, 257

portadores de bócio e 87 apenas cretinos". Logo, Fodéré e MoreI tinham

razão: o cretinismo resulta do bócio dos ascendentes, até aí nada de

novo, conhecendo-se a metodologia sui generis dessas pesquisas e a

devoção do redator do Rapport à doutrina da degenerescência. Mas a

distorção maior salta aos olhos: o título da última coluna agrupa sem

distinção e sem escrúpulos de diagnóstico cretinos e idiotas, numa


prova

material de adesão prévia à teoria unitarista.

140 - Deficiência mental

A explicação é candidamente apresentada por Baiilarger e Krishaber,

em 1879: "Enquanto a existência do bócio pode ser constatada e


verificada

por qualquer pessoa estranha à medicina é tudo diferente no caso do

cretinismo. Já dissemos que o idiotismo é freqüente nos países


endêmicos,

o que já levaria a confusões inevitáveis . . - é necessária unia grande

prática de observação para reconhecer os indícios de cretinismo na

primeira infância. Do que dissemos resulta que as tabelas estatísticas

não se referem senão à degenerescência já confirmada, por isso foi


obrigatório tomar em bloco os cretinos e os idiotas."

Pessimismo e retrocesso - 14

No mínimo, era mais fácil, para os autores, identificar a idi tia

do que o cretinismo do recém-nascido ou da primeira infância.

O radicalismo do redator da Comissão vai além: "... a endemia do

cretinismo não existe ... sem . . . que exista um grande número de

doentes de bócio. A endemia de bócio ... apresenta-se


freqüentemente ...

sem ser acompanhada pelo cretinismo propriamente dito; mas se ela


aumenta

não se pode deixar de constatar uma tendência à degenerescência da


raça".

Agora a degenerescência atinge a raça. A Comissão Francesa

retrocede ao saber de 1779, quase um século de distância, quando a

Etmcyclopédie de Diderot e D'Alembert dizia no verbete "Cretins", numa

igual, mas então desculpável, confusão de "diagnósticos" e


preconceitos:

"dá-se esse nome a uma espécie de homens . . . que nascem. . . em


grande

quantidade ... são surdos, imbecis; e carregam bócios pendentes até a

cintura . . .

A questão da preservação de raça começa a alarmar a medicina e o

resto das elites culturais, plantando a semente da rejeição e da

hostilidade à raça "degenerescente", decadente, em suma: a outra raça.

Mas, enquanto Diderot, D'Alembert e seus auxiliares confessam, em

1779, que lhes "é difícil explicar a causa e os efeitos do cretinismo

[crctinage]", Morei e seus adeptos, Baihlarger e Krishabei', não vêem

muita dificuldade: a causa é o bócio e o efeito é a degenerescência. E


o

que era "espécie de homens" para a Encyclopédie é a raça


degenerescente,

para Bailiarger e Krishaber, uni deles redator e outro provavelmente co-

autor do Rapport da Comissão Francesa.

Semeada a idéia da degenerescência da raça, identificada com o

crctinismo-idiotia "tomados em bloco" fica plantada também a idéia de


que

o deficiente mental - fosse ele idiota, imbecil ou retardado - era o

portador do princípio degradador, uma triste e perigosa função, uni

repulsivo papel social.

E, criteriosaínentc, a Comissão Francesa esclarece que conforme os

dados do censo de 1864 existiam na França nada menos de 41.525 "idiotas

recenseados", sendo 23.407 homens e 18.118 mulheres, na proporção de 7


a

6, exatamente igual à encontrada entre os cretinos ou entre os surdos-

mudos.

142 - Deficiência mental

Esses números, desacompanhados de qualquer menção ao procedimento

para a coleta de dados e aos critérios de classificação, armam de

argumentos científicos os preconceitos de raça, de sexo e de


proveniência

geográfica ou genealógica. Mas, talvez para exemplo e modelo aos

tecnocratas de hoje, a Comissão Francesa apresenta dados. Como se o


fato

de exibir dados, numéricos, de preferência, já assegurasse a validade


da

pesquisa. Em 1873 tal atitude parece até compreensível. Como é

compreensível que a Comissão Francesa se ache imune a qualquer crítica,

só por apresentar tabelas numéricas mesmo sem qualquer definição dos

critérios para diagnosticar o cretinismo e a idiotia; de resto, a


própria

Comissão junta cretinos e idiotas, explicitamente por ser difícil

diagnosticá-los. Mesmo assim, mostra dados, de um levantamento extenso


que apontava um total de 120.000 "cretinos e idiotas reunidos",

registrados em toda a França na pesquisa de 1864.

Se já cretino e idiota são equivalentes, se eles revelam a

degenerescência da raça, se há raças mais degradadas que outras, não é


de

estranhar que sua uma classificação étnica dos idiotas dois anos após o

levantamento da Comissão Francesa.

A volta à raça primitiva

Observations ou Ethnic Classificatíon o! Idiots foi a obra mais

famosa de Langdon Down, publicada em 1866, em Londres, e que celebrizou

seu autor por descrever a chaniada "Síndrome de Down", por ele mesmo

designada de mongolismo.

Dois anos antes E. Seguin publicara mios Estados Unidos seu livro

Idiocy and its Diagnosis and Treatment by Physiological Method, revisto

depois, em 1866. Nessa obra Seguiu havia descrito o mongolismo sem o


viés

da "degenerescência" e de suas implicações especulativas de cunho


étnico

ou racial: "O cretinismo das terras baixas da Bélgica e da Virgínia -


com

discreto bócio, pele cor de palha suja - tem a mesma relação com a

idiotia e a imbecilidade que a variedade aipimia de cretinismo, muito

mais disseminada. O mesmo cabe dizer do cretinismo Jurfuráceo com sua


cor

bramica-rosada, as deséamações cutâneas, a curteza de todos os

tegumentos, o que dá uni aspecto de inacabado aos dedos truncados e ao

nariz, com sua língua e lábios cheios de pregas, com sua conjuntiva

vermelha, ectrópica, tendendo a suprir a curteza da pele das bordas

paipebrais."

Pessimismo e retrocesso - 143

Clemens Benda (1946), autoridade incontestável mio campo do


mongolismo, comenta a síndrome de Seguiu: "esta descrição contém, em

poucas palavras, o essencial das características do mongolismo e inclui

uma observação que passou despercebida por mais de meio século. 12

interessante que Seguin atribui a prega do epicanto miiongolóide a um

encurtamento da "pele das bordas paipebrais". Se essa observação


houvesse

sido levada em conta não teria prosperado a idéia de que o mongolóide é

um indivíduo da raça mongólica, nem se teriam escrito muitos trabalhos

sobre a absurda "retrogressão racial".

Mas o que para Seguin era um tipo de cretinismo, chamado

furfuráceo, pai-a Langdon Down é um tipo étnico de idiotia, numa prova


de

que os critérios de diagnóstico eram ambíguos: "'Tratase de um

representante da grande raça mongólica. Quando se colocam lado a lado é

difícil crer que não se trata-se filhos dos ruem-mos pais.

O cabelo não é negro como o dos verdadeiros mongóis, mas de cor

castanha, liso e escasso. A face é plana, alargada e desprovida de

proeminências. As bochechas são redondas e estendidas lateralmente. Os

olhos estão situados obliquamente e as comissuras internas dos mesmos

distam entre si 'mais do que o normal. A fenda palpebral é muito


estreita

. . . os lábios são grandes, grossos e com pregas transversais. A


língua

é comprida, grossa e rugosa. O nariz é pequeno. A pele tem uma


tonalidade

amarelada e sua elasticidade é escassa . .

Como se vê, o que há de mais original mia síndrome de Down,

comparada à de Seguin, é seu apelo à absurda "retrogressão racial".

Down estava influenciado "pelo dogma dominante em sua época,

segundo o qual os fenômenos patológicos freqüentemente são regressões


aos
tipos primitivos da história do homem", como escreve Benda (1946). O

mongolismo era a degeneração da raça em direção regressiva, de modo a


se

multiplicarem os nascimentos de tipos étnicos já ultrapassados na

história da humanidade; era uni exemplo de regressão que apoia a idéia


da

unidade das espécies humanas".

Como se haveria Langdon Down se notasse semelhanças entre os

portadores da síndrome que leva seu. ,miome não com os habitantes da

Mongólia mas com esculturas maias

ou do antigo Egito?

144 - Deficiência mental

Se a tese fosse a da regressão às raças passadas bem se poderia ter

uni "egotismo" ou "assinismo", mas se o dogma era o da regressão a


raças

inferiores ou de menor evolução sociocultural o nome de "mongolismo"

vinha a calhar.

Não era o caso da descrição de Seguiu, puramente objetiva e

descompromissada com qualquer tendência filosófica.

Os primeiros resultados de Mendel, ainda alheios a qualquer

implicação médica, haviam sido publicados um ano antes da descrição de

Down, em 1865; e sua incorporação ao saber médico ainda demoraria


muito.

Era atrativa então, por sua inclusividade e plasticidade, a idéia da

degenerescência racial, como a de reinogressão da espécie

humana.

Para a evolução doutrinária da história da deficiência mental a

interpretação de Down nada carreou de positivo, pois se limitou a


repisar

a tese do inatismo da deficiência mental e em miada contribuiu para

elucidar a etiologia do mongolismo e nem para esclarecer a relação


entre
a doença herdada e a deficiência mental, mesmo entendida por idiotia,

como supõe Down.

Mas, na medida em que Down especifica uni tipo "novo" de deficiente

mental ou uma categoria nova dentro da idiotia, começa a motivar a

pesquisa biomédica para o estudo do novo tipo de idiota e que

determinará, muito nemotamente, a superação da teoria unitária da

deficiência mental.

Pessimismo e retrocesso - 145

Para isso será necessário que o mitológico "mongolismo" passe a ser

uma "acromicnia congênita", depois atribuída a unia disfunção


glandular;

que essa seja entendida como o oposto do princípio causador de

acromegaiia (o hiperpituitanismo); que, enfim, o mongolismo perca sua

conotação de atavismo e se transforme num objetivo "hipopitui tarismo

congênito".

Só então se chegará, já em pleno século XX, a esclarecer,

aprofundando a indagação etiológica, que "a relação entre o mongolismo

(hipopituitarismo congênito) e o chamado nanismo hipofisíiruo e a mesma

que a existente entre a aplasia tireoidea congênita e o niixedemiia

infantil ('cretinismo adquirido') ... Ao reconhecer que o mouigolismo é

uma acromicnia congênita, livramos essa enfermidade do estigma do

misticismo e da mutação racial." (Benda, 1954)

Eis aí a emidocninologia a espantar novos demônios criados pela

medicinai pré-científica ou pseudocientífica. Outros exorcistas


entrarão

em ação mais tarde, pnimicipalmente na primeira metade do século XX.


Até

lá ainda surgirão novos demônios a possuir não mais uma pessoa ou o


corpo

dela, mas famílias inteiras ou mesmo raças.


Os novos leprosos

A partir do Tratado das degenerescência, de Morei, a deficiência

mental regride ao status de ameaça à segurança pública e à saúde das

famílias e povoações. 12 a nova peste, a nova lepra a requerer a

mobilização defensiva dos imunes; não que pudesse alguém ser contagiado

enquanto pessoa: o sangue, a genealogia, a raça é que ficavam expostos


ao

contágio fatal.

E a pré-ciência não era injusta ao denunciar a nova lepra: ela

apresenta dados. Dados que mostram hoje apenas o despreparo


metodológico

e atraso do conhecimento biomédico indicavam, nas últimas décadas do

século XIX e mesmo nas duas primeiras do nosso século, o avanço

avassalador e catastrófico da hereditariedade da deficiência mental.

146 - Deficiência mental

Bourneville e Seglas foram as sentinelas avançadas que assimilaram

a iminência do desastre da espécie com provas. Essa prova, que


Chamnbard

considera imidiscutível (1779), é o quadro genealógico da família Horn,

onde se misturam semi qualquer objetividade aspectos pessoais, morais,

infecciosos e acidentes obstétricos, como traços indicadores de um


germe

doentio a se transmitir de pais a filhos.

O germe doentio da deficiência mental diabolícamente toma as mais

variadas formas, de geração em geração: aparece em itálico no quadro,


com

os disfarces de instabilidade mental, excesso de bebida, imbecil,

convulsões, inteligência mal ponderada, excessos de toda sorte, idiota,

convulsões, pouco inteligente, meningite com convulsões.

A obra de Dugdale (1877), que cobria sete gerações dos Juke,

ascendia até Max Juke, nascido entre os anos de 1720 e 1740, um dos
patniarcas dessa família mal comportada, pela qual a sociedade toda

poderia ser contaminada. Foi encomendada pela polícia e aponta como

traços hereditários não só a deficiência mental, mas três novos e

bisonhos disfarces do novo demônio: crime, pobreza e prostituição,

correlatos sociais da deficiência mental.

Pessimismo e retrocesso - 147

O deficiente mental, com a obra de Dugdale, torna-se um perigo

genético e uma ameaça à paz pública e à propriedade.

A volta ao leprosário é uma idéia que renasce, diante de "provas"

como a de Dugdale, como forma de isolar a nova lepra. A reclusão e a

esterilização começam a afigurar-se como soluções aceitáveis e


prudentes.

Já em 1933, após criticar os exageros de Dugdale, Pintner afirma

que a incidência de oligofrenia é maior entre os desempregados,

principalmente em famílias de "desempregados crônicos". Temos, assim,

mais uma forma de tara a ser transmitida de uma geração a outra, o

"desemprego crônico"; e por que não o "desemprego agudo", a formar em

bloco junto com os demais estigmas hereditários, como a prostituição e


o

crime?

A involução da teoria da deficiência mental fica evidente também na

proliferação de estudos genealógicos semelhantes ao de Dugdale, nas

primeiras décadas do século

XX.

Tudo prossegue, na doutrina, como se Seguiu não houvesse existido:

a deficiência mental é hereditária ou congênita, e se eu-tente por

deficiência a falta maior ou menor de espírito, devida ao cretinismo e

abrangendo suas variantes: idiotia, imbecilidade, retardo mental.

O único efeito positivo das formulações alarmistas de Dugdale e

seus adeptos foi atrair a atenção para as condições sócio-econômicas da


família como fonte de distúrbios no desenvolvimento infantil, um efeito

que deveria ocorrer remotamente, em meados do século XX, já após ter

causado enormes retrocessos na teoria e no atendimento da deficiência

mental.

Até lá o deficiente reassume seu papel medieval de besta redimida,

pronta a degenerar, e cuja dignidade como homens depende da graça


celeste

(travestida agora de dotação hereditária), do trabalho e da repressão


dos

instintos. Retorna-se, em 1877, a Calvino ou ao Malleus malejicarum.

O revigoramemito da teoria inatista disfarça o dogma do pecado

onigimial e o conseqüente apelo à expiação como forma de salvar a


aldeia;

apelo agora fundamentado em dados "científicos" como os da Comissão

Francesa, ou os de Dugdale. 12 preciso que o deficiente volte ao

leprosário.

148 - Deficiência mental

Estabrook (1916) reviu e completou a gemiealogia dos Juke,

compreendendo 2.820 pessoas até 1915, enquanto Dugdalc incluía apenas


709

casos. A nova pesquisa mostrou que "dos 1.258 descendentes vivos em


1915,

110 eram oligofrênicos, 83 eram bebedores e 171 laboriosos . . . Só

quando se misturavam a estirpes menos taradas é que se podia observar


um

melhoramento da descendência. Estabrook é de opinião que a


característica

marcante dessa f amília é a deficiência mental, mesmo quando muitos dos

membros não tinham uma oligofrenia tão acentuada que requeresse seu

internamento em uma instituição para sua custódia." (Pintner, 1933) O

traço "marcante", muitas vezes pouco acentuado, aparece em 110 de um

total de 1.258 pessoas. Bons tempos os de Estabrook!


O "Dicionário"

A despeito dos resultados de Ltard e Seguin, e da pregação deste,

de Belhomme e de Guggenbuhl sobre a educabilidade dos deficientes,

indicando a eficácia das alterações .ambientais e do treino na

recuperação de idiotas e cretinos, a gênese do conceito de deficiência

mental, de clara extração médica, jamais prescindia de uma ênfase maior

ou menor sobre sua determinação genética ou perinatal. A oligofrenia é


no

todo ou em parte uma deficiência orgânica. Na medida em que é orgânica

escapa do controle pedagógico e pertence ao reino da medicina: na


medida

em que é hereditária, escapa do controle médico e pertence ao reiuio


das

doenças incuráveis como sustentarão, em diferentes épocas, Morei, Down,

Goddard e Pjntner, entre outros.

De fato, a medicina, ditadora da teoria, procurava cobrir com

conceitos unificadores a contraditória e variegada safra de dados que a

clínica quotidiana e as pesquisas das comissões estatais produziam. Pré-

científica no método, indigente de conhecimentos biomédicos


experimentais

foi-lhe confortável propor e propagar a teoria unitária de Fodéré e a

degenerescência de Morei, por mera imposição de sua função teorizadora.

Pessimismo e retrocesso - 14~

A razão inconsciente desse apego a princípios fatalistas era outra:

a real e evidente impotência do médico ante a deficiência mental. O

esforço mais brilhante para capacitá-lo a enfrentar o problema fora o


de

Seguiu (após Itard) ao propor a medicina moral e seu método


fisiológico.

E as únicas explicações que nos ocormcm para a falta de adesão à


proposta

de Seguiu são três: cm pri meiro lugar, repugnava ao organicismo


radical

de então a idéia d que o médico devesse recorrer a treinos e


programação

de tarefa de ensino ou de refinamento sensorial, como terapia; em


segundo

o método fisiológico de Seguiu implicava um diagnóstico minucioso

e demorado, além de impor um indispensável consumo de tempo com cada

paciente dada a individualização do programa de treino; em terceiro

lugar, Seguiu e consequentemente suas idéias enfrentavam um evidente e

deliberado ostracismo por parte dos barões da medicina, devido à

irreverência com que atacara não só a autoridade mas principalmente a

legitimidade da doutrina médica da deficiência mental. E Seguiu fora

além: negara competência e até seriedade a tal doutrina.

Em obras fundamentais para miossa história, e posteriores à de

Seguiu, esta é mencionada com extrema raridade e somente no que contém


de

classificação do cretinismo e da idiotia. Tudo prossegue como se a


idéia

"medicina moral" jamais houvesse surgido.

Entre essas obras, teve extraordinária difusão nos ambientes

médicos e influência decisiva em toda a medicina o Dictionnaire

Encyclopédique des Sciences Médicales, freqüentemente citado quase

coloquialmente como le Dictionnaire. Em verdade, essa obra


indispensável

agrupava em seus verbetes monografias inteiras firmadas por autores da

mais alta nomeada e competência.

Além de depositário da mais elevada doutrina médica, o Dictionnaire

tornou-se o registro de famosas polêmicas onde se confrontavam

autoridades, escolas e facções doutrinárias, não obstante a alta

qualidade dos escritos.

Essas monografias constituem, via de regra, revisões críticas


amplamente documentadas da literatura recente e clássica sobre os

verbetes abordados. Por vezes repletos de dados de pesquisa, tais

verbetes contêm esplêndidas análises teóricas que representam,

incontestavelmente, a síntese do pensamento médico então vigente. Têm

essa qualidade as monografias ou verbetes escritos por Robin (1822)


sobre

"Dégénérescence", por Baillarger e Kt-isliaber (1879) sobre


"Crétinisme",

e por Chanibard (1889) sobre "IUiotie" e "Imbéciliité", que nos

interessam primordialmente neste trabalho.

O Dictionnaire é o retrato crítico da niedicina do século XIX e é

nas momiografias citadas que se pode encontrar uma teoria médica desse

século sobre a deficiência mental, autêntica e de primei150 - Def

iciência merrtalra mão. É possível, ademais, encontrar aí, confrontando

épocas, transformações daquela teoria ao longo dos anos.

Para a história do conceito de deficiência mental o Dictionrruire é

particularmente importante, pois retrata o saber médico na área antes


do

impacto das ciências biomédicas, antes do terremoto devido à genética,


à

bioquímica, à micrabiologia, à endocrinologia, ciências que alterariam

radicalmente aquele saber e aquela doutrina.

Qual é, pais, a teoria da deficiência mental veiculada no

Dictionnaire? Antes de tudo, nos verbetes relevantes e posteriores à


obra

de Seguin, ela e ele não são citados por outros, senão nos pontos em
que

corroboram a visão morelíana da oligofrenia. Não se aponta nunca o


método

ou a doutrina da medicina moral de Seguin.

Mais ainda, Chambard (1889), ao escrever sobre "Idiotie" e sobre

"Imbécillité", termina ambos os verbetes discorrendo sobre a educação e


higiene dos oligofrênicos e sequer menciona o nome de Seguin; mesmo

quando enumera as escolas criadas na França para aquele fim, as

iniciativas de Seguin em Os Incuráveis e em Bicêtre, referendadas e

elogiadas até pela Academia de Ciências, são totalmente esquecidas (ou

detiberadamente omitidas).

O Dictior:naire - vale dizer, o saber médico desse tempo de um modo

geral adota e defende a "lei de Fodéré", pela qual o cretinismo deriva


do

bócio dos pais ou ascendentes mais remotos. A idiotia, que para Pinel

fora o idiotismo, é uma forma atenuada do cretinismo, enquanto

transformação sintomática de utna mesma etiologia. Quase toda pesquisa


da

época na área da oligofrenia é dirigida para a especialização da

etiologia do cretinismo e de suas relações com o bócio endêmico, de um

ido, e com a idiotia, de outro.

Mas a investigação se faz apenas sobre dois tipos de dados: os

sensos regionais ou nacionais e a observação ctíníco-pato(ógiea. Não


há,

a rigor, uma fisiologia do cretino ou da idiotia, mas uma minuciosa

antropometria e uma semiologia mais que tudo anatômica. Procura-se, por

exemplo, o crânio típico do idiota ou v quadro clínico do imbecil. A

história clínica é levada em conta quase que apenas para corroborar

hipóteses sobre o quadro clínico ou sobre a aberração anatômica;

rarissimamente como fator etiológico.

E essa c;tiologia em última análise é reduzida a uma causa única,

fatal: a hereditariedade. Chega-se a essa causa abstrata, que em si


mesma

nada explica, a partir de dados pouco fidedignos, com

Pessirnisrrro e reirocesso - 151

Fig. 24 - Rapaz cretino do Piemonte, apresentado por flaillargcr e

Krishaber, em 1879. Trata-se de um homem de 20 anos, com 93 centímetros


de attura. Tipos como este eram apontados no Dictionrtaire, em 1889,
como

evidência da doutrina da degenerescência das raças e famílias.

152 - Deficiência rnental

Uma metodologia inadequada mas com a mesma segurança de Lutero ou

Emérico sobre a possessão do deficiente pelo diabo.

A adesão da tnedicina oficial e ortodoxa a essa tese de Morcl (e de

Fodéré) era uma questão de lógica. O reflexo desse endosso, por vezes

entusiasta e arrogante, na doutrina da oligofrenia era também


decorrência

lógica: toda deficiência, de qualquer tipo ou grau, é transmitida ao

longo das gerações, é herdável ou herdada. Um só e mestno processo


causal

que explica o surgimento do cretinismo, da idiotia, da imbecilidade e


do

retardo ou debilidade mental e ainda da "fatuidade".

E um só método, portanto, conduz o diagnóstico: a observação

clínica e antropométrica. Consagra-se, assim, uma metodologia de


trabalho

que embarga, impede qualquer observação ou ilação que não seja

rigidamente organicista. ~; óbvio: admitir qualquer função etiológica


da

experiência ou da história pessoal era incompatível com o fatalismo,

assumido, da degenerescência, cujo veíctilo devia ser necessariamente

orgânico.

A postura dos verbetes em apreço é, pois, a de um organicismo

fatalista apoiado no que Netchine (1971) chamaria de mor:isrno

metodológico.

Para o diagnóstico diferencial, porém, um sintoma é freqüentemente

mencionado, na composição dos quadros clínicos: "o mais ou menos de

espírito" do oligofrênico, como formulou Seguin (1846), é o critério


para
rotular o oligofrênico (degenerado ou degenerescente) como idiota ou

imbecil. Mas a ininteligência ou amência maior ou menor não é um


sintoma

conclusivo ou decisivo, ou mesmo relevante, para a sentença de

oligofrenia; ele é importante para distinguir níveis de degeneração dos

quais o mais baixo é a idiotia, para uns, ou o cretinismo-idiotia para

muitos dos pesquisadores considerados nos verbetes.

As carências intelectuais, é curioso, não indicam a deficiência

mental mas refletem as anomalias orgânicas características de maior ou

menor degradação da espécie, ou da família. Os dados sobre as

insuficiências intelectuais servem como dados de corrtrofe da

classificação clínica gerada da observação clínico-patológica (ou

antropométrica) mera e sitnples.

Pessimismo e retrocesso - 153

Escrevendo sobre Irnbécillité, Chambard usa em 1889 a expressão

degenerescência rnental, entendendo a atividade mental como uma função


em

declínio. Mas tem o próprio Chambard nem os demais tratadistas do

Díctionnaire percebem aí a semente para

uma nova metodologia de diagnóstico, e tudo permanece no sólido e vesgo

monismo organicista.

Quanto ao prognóstico, mantém-se a lógica: a fatalidade da

degenerescência arreda qualquer esperança da prevenção e de cura,

restando a prescrição de medidas para limitar o dano que o deficiente

pode causar à família e à espécie e o sofrimento dele próprio.

Tal é o sentido de tratamento e educação do oligofrênico que

aparece nos vários verbetes citados. Admite-se para os imbecis a

possibilidade de alguma aprendizagem graças a métodos especiais em

instituições, valendo o mesmo para o retardo mental.


Quanto ao idiota ou o cretino completo, apesar da obra de Seguin,

dos escritos de Guggenbuhl, eis o que escrevem em 1879 I3aillarger e

Krishaber: "As crianças que sofreram a degenerescência completa são

refratárias a todos os recursos curativos ou profiláticos; os cuidados


a

dar-lhes são os da caridade, ao mesmo título que os dados aos idiotas,


e

eles devem ser admitidos nas casas de saúde, onde não se deveria

negligenciar a salubridade e boas acomodações."

Eis aí, solene e caridosa, a síntese da doutrina (médica) da

oligofrenia e sua derivação prática: a volta do leprosário.

Vale a pena, talvez como justiça, conceder aqui uma revanche a

Seguin (1846): "Eu acuso os médicos de não haverem observado, nem

tratado, nen~ definido, nem analisado a idiotia, e de terem falado


demais

sobre ela."

154 - Deficiência mental

Da Ileócia à Comissão do Mixedema

Neste e nos seguintes itens do capítulo apontaremos as

características que fundamentam as classificações dos deficientes


mentais

como cretinos, idiotas, imbecis e débeis mentais legadas pelo saber do

século XIX ao nosso. São as raízes da visão classificatória no século


XX,

ante a deficiência mental.

O emprego da palavra cretino para designar um certo tipo de

deficiência rnental remonta pelo menos ao Observationurn de Félix


Plater,

de 1614. O registro do cretinismo como oligofrenia ligada de algum modo

às águas de beber é muito mais remoto: Teofrasto (374-287) anotou que a

água do rio Asopus, na Beócia, era nociva em uma das margens pois

enfraquecia a inteligência das pessoas, o que talvez explique porque


"beócio" ficou associado à escassez de brilho intelectual, em francês

como em português. Além de Teofrasto, Vitrúvio e Ovídio também aludiam


à

relação entre águas e bócio.

Na Beócia começa a classificação dos deficientes em categorias que

serão pouco a pouco consagradas, ao longo dos séculos, até se legitimar


a

definição da última delas, o débil mental, pela liritish Royal


Comission

on the Feebleminded, em 1904.

A partir do Dictionnaire é possível traçar a caracterização das

várias categorias de deficientes mentais, antes da contribuição

ambivalente de Binet.

Não se pode faiar de cretinismo sem lembrar Fodéré, como nos

adverte Seguin. Mas, de outro lado, enquanto classe de deficientes

mentais, para efeito de teorização, o cretinismo e os cretinos de


Fodéré

e de seus adeptos não apresentam qualquer traço definitivo, exclusivo,

peculiar. Nas descrições clínicas do século XIX ora são confundidos com

doentes de bócio, ora com os idiotas, ora com os hidrocéfalos, ora cotn

os mongolóides. Por outro lado, ao relacioná-los cotn a idiotia, a

literatura científica de vanguarda é totalmente confusa, 1 falta de


dois

recursos que surgirão só depois da revisão crítica de I3ailiarger e

Krishaber no Dictioftnaire de 1879, e que nos traça o panorama da aérea

em sua época. Bases dois recursos, a medida da inteligência e o

conhecimento da patologia da glândula tireóide, trariam luz e ordem ao

caos, em que mergulharam Fodéré, Seguin e outros.

Por possuir uma variante endêmica o cretinismo era um desafio

urgente e uma ameaça à espécie. Como defini-lo na ausência de uma

patologia científica? através, do apelo às estatísticas. Visadas e


superficiais, elas mostravam em certos levantamentos altíssima
correlação

com a incidência de bócio endêmico. Por isso o cretinismo passou a ser

produto do bócio, mas o princípio patológico causal do cretinismo está

fora dele, está na origem do bócio. Somente em 1879 será localizado na

água o "agente tóxico" causador do bócio e, pois, do cretinismo


endêmico

e, portanto, da idiotia, já que Krishaber e I3aillarger tranqüilamente

juntam numa só categoria os pacientes idiotas e os cretinos endêmicos


ou

não, unta vez que a relação com a idiotia independe da origem endêmica
do

cretinismo.

Pessìtnismo e retrocesso - 155

Fig. 25 - Exemplo de degenerescência cretínica. E uma jovem de 27

anos nascida em região de bócio endêmico. O desenho é do Iloletim da

Academia de Meaicina, de Paris. de 1859.

156 - Def iciência mental

Mas', o que distingue um cretino e a categoria de oligofrênicos

chamada cretinismo? Agora as estatísticas não nos socorrem. Restam os

sintomas anatomoclínicos. Quais?

O bócio, a amência, a ossatura, a baixa sensibilidade? Ou os

aspectos fisionômicos, o comportamento? Ou, ainda, a anatomia do


sistema

nervoso, ou as aberrações morfológicas? O que é um cretino?

"É um ser fisicamente e intelectualmente degenerado. . . " Esta é a

frase mestra do verbete "Crétin", também de l3aillarger e Krishaber

(1879), que prossegue com as costumeiras descrições fisionômicas e

anatômicas, incluindo 14 páginas de aspectos como cabelos e pelos,


face,

pescoço, tórax, abdômen, genitália e extremidades.


Nota-se que todos esses aspectos são atributos e que o único real

substantivo da definição é "ser". l3oa parte desses atributos cabem ao

mongolóide não cretino, ou ao cretino /ur~uráceo, de Seguin, ou ao


idiota

mixedematoso de l3ourneville. Mais ainda, esses caracteres ocorrem em

diferentes combinações e nem sempre todos eles se apresentam em um ou

outro caso; o que os torna pouco seguros como critérios de definição ou

qualificação.

Na falta de uma nosografia não ambígua, o verbete recorre ao vício

característico da época: criar tipos e subtipos de modo a acomodar o

maior número de variações do quadro clínico básico: então surge o


cretino

completo, o cretino menos degradado, o semicretino e o cretinóide. Para

alicerçar o organicismo fatalista era de esperar-se algo de unívoco e

objetivo por baixo de tantos aspectos, tipos ou quadros: há apenas o


ser

degenerado.

E a espera de objetividade se frustra também quando se descrevem as

f unções típicas do cretino e seus congêneres de graus menores.

Entre as funções o texto versa sobre as faculdades intelectuais,

voz e linguagem, órgãos dos sentidos, respiração, circulação e

temperatura, sono, funções digestivas, secreções (com três linhas

apenas), reprodução, hábitos (mendicância e exibicionismo, por


exemplo),

duração da vida e doenças gerais. Completa o quadro uma .minuciosa

descrição de achados de exarnes post morlem do sistema nervoso central,

ouvido, pescoço, coração, coluna vertebral.

Pessimismo e retrocesso - 157

Em nenhum desses aspectos aparece algum critério definidor, não

ambíguo, a menos que se tome como tal a frase que abre o item sobre as

faculdades intelectuais: ")á sabetnos que o caráter mais saliente do


cretino é a degradação intelectual." Esta frase é explosiva: indica que

toda a caracterização organicista apresentada não é válida, ou pelo


menos

não permite uma definição cabal. E note-se que o indicador mais seguro
do

cretinismo é a degradação intelectual. "Le crétinisrne intpligue avant

toc~t la d(gradalion ir:tel~ctuelle", diz o texto noutro ponto. Veja-se

agora como fica a definição dessa categoria de oligofrênicos: "O


cretino

é um ser física e intelectualmente degenerado que se reconhece

principalmente por sua degradação intelectual."

Gúbvia, agora, a confusão entre cretinismo e idiotia, sendo esta a

marca distintiva do primeiro. É por isso que os graus menores de

cretinismo passaram a corresponder a graus menores de amência, de modo


a

que idiotia, imbecilidade e debilidade mental fossem entendidas como

gradações de cretinismo, vale dizer, de degeneração intelectual do


"ser".

O próprio mongolismo foi entendido como um tipo de idiotia apesar de


seu

estreito parentesco com o cretinismo. I~enda (1954) lembra que "nas


zonas

de cretinismo

endêmico da Europa qualquer débil mental, qualquer idiota ou qualquer

imbecil é chamado cretino. ~ mais que justificada a suspeita de que as

estatísticas do cretinismo

incluem muitos débeis mentais com bócio . . . Nessas características

pode-se incluir, responsabilizando o bócio endêmico, qualquer tipo de

deficiência mental ou

alteração endócrina." E I3enda prossegue: "Nada tem de surpreendente a

conclusão de que, ao contrário do cretinismo esporádico, o endêmico não

se deve a uma enfermidade


tireóidea ou que tal insuficiência, quando existe, é apenas um fenômeno

acrescentado a uma degeneração geral. Conforme suas preferências o


autor

dá maior ou menor

importância à herança, às infecções, aos transtornos pluriglandulares


ou

à degeneração geral." l~enda refere-se a resquícios da teoria da

degenerescência em estudos

estatísticos das duas primeiras décadas do século XX para mostrar a

fragilidade do fatalismo bócio-cretinismo ou cretinismo-idiotia, ou

idiotia-cretinismo.

O conteúdo pré-científico e mesmo mágico da doutrina novecentista do

cretinismo não é muito diverso entre o artigo de Baillarger e Krishaber


e

o tratado de Fodéré,

como não difere muito do que l3enda aponta em trabalhos do início deste

século.

Houve, sem dúvida, algum progresso na definição de cretinismo desde

Damerow, que em 1858 considerava o cretinismo uma forma degenerativa da

raça malaia, e Ramond

De Carbon

158 ~ Deficiência mental

I'essirnismo e retrocesso - 159

Nière, que já em 1879 o entendera como descendência dos godos. De 1858


a

1888 a patologia da tireóide foi abundantemente esclarecida a ponto de

nesse ano a Comissão

de Mixedena, de Londres, declarar: "Há provas demonstrativas de que o

mixedema, o cretinismo esporádico, o cretinismo endêmico, a caquexia

estrumipriva e o mixedema
operatório dos animais são espécies de um mesmo gênero e que um fato

patológico comum de todos esses estados é a existência de processos

morbosos que causam a destruição

da glândula tireóídea." (Benda, 1954)

Eis novamente a pesquisa biomédica, já no século passado, a exorcizar

novos demônios.

Da irreverência de Diderot ao asilo-escola

No item precedente discorreu-se sobre a classificação dos cretinos no

finai do século XIX. Aqui veremos como se configurou nessa época a

classificação da idiotia,

questão eivada dos mesmos vícios básicos de metodologia.

O verbete "Idiot" da 3 ~ edição da Encyclopédie ( 1779), sob a

responsabilidade de Diderot, assim define o tema: "Diz-se daquele em


que

uma deficiência natural

dos órgãos que servem às operações do entendimento é tão grande que ele
é

incapaz de combinar qualquer idéia, de sorte que sua condição


pareceria,

soli esse aspecto,

mais limitada que a do animal. A diferença entre idiota e imbecil

consiste, pareceste, em que idiota se nasce e imbecil se fica. A


palavra

idiota vem de idiótes,

que significa hontern particular; que se confinou numa vida retirada,

longe dos negócios do governo; isto é o que hoje chamaríamos de sábio.

Houve urn célebre místico

que tomou por modéstia a qualidade de idiota, que Ihe cabia muito mais
do

que imaginava."

Essa definição, à parte a gratuita e graciosa irreverência do autor,


marca, já na segunda metade do século XVIII, o caminho que o conceito
de

idiota percorrerá até

pelo menos fins do século XIX. Para a Encyclopédie o idiota ë antes de

tudo privado de inteligência por doença nos órgãos responsáveis pela

atividade intelectual

ou do entendimento. Trata-se de uma enfermidade orgânica e, ademais,

congênita: "idiota se nasce e imbecil se fica".

160 - Deficiência mental

Mais ainda, a idiotia é o grau máximo de carência do entendimento,

inferior mesmo ao do animal.

Organicistno, déficit intelectual máximo e o caráter de congênita são


as

características da idiotia que reaparecem quase com a mesma


terminologia

em numerosas obras

do século XIX; é o que reflete o Dictionnaire, que continua a nos guiar

nessa indagação sobre as classificações da deficiência mental ou

oligofrenia.

O verbete "Idiotie" é de 1889, no volume 15, e tem a autoria de


Chambard,

que escreve dez anos após Baillarger e Krishaber haverem tratado do

cretinismo com as cornpreensíveis

mas decisivas superficialidade e ambigüidade, apontadas pouco acima.


Ali

se patenteara que o critério mais seguro para a definição era o grau de

ininteligência.

No verbete de Charnbard será ainda esse o critério decisivo, à espera


de

alguém que possa medir graus de amência ou ininteligência, papel que

caberá, em última análise,

a Binet na primeira década do nosso século.


Chambard agarra-se à definição de Esquirol, já clássica, e dá ao termo

uma conotação substantiva: "lesão evolutiva, parada de desenvolvimento


da

organização psíquica,

a idiotia é para as funções intelectuais e morais o que a surdo-mudez é

para a linguagem: ela não difere, portanto, senão pelo grau, da

irnbecilidade e da simples

debilidade tnental." Esse portanto (clone) encobre um sério viés


lógico;

mas a definição de idiotia está bem mais aceitável que a do cretinismo,

como vimos. Aceitável

porque se diz o que a idiotia é (lesão evolutiva) e como ela se


distingue

de estados do mesmo gênero mas de espécie diversa, entoar a fixação dos

graus-limites

entre unra categoria e outra., seja espertamente transcurada. Deve-se

notar, aqui, algo muito ir portanto para a teoria de Binet que viria em

1905: a idéia de continuidade

quantitativa da inteligência, entendida como função, de uma a outra

categoria de oligofrênicos. Há urna gradação contínua da função

intelectiva, crescente do idiota

ao débil mental. As conseqüências teóricas dessa idéia serão


evidenciadas

ïnais adiante.

Entre o verbete da Ertcyclopécüe de Diderot e este, o organicismo perde

ênfase: em lugar da "deficiência dos órgãos que servem as funções"


temos

"parada do desenvolvimento

da organização psíquica" e "lesão evolutiva". Em ambos os conceitos de

Chambard transparece a natureza /uricional da idiotia. Na verdade, a

evolução tem muito de


aparente: a definição de Cham

Pessimismo e retrocesso - 161

bard, que representa bem o pensamento médico geral da época, é, no


fundo,

a mesma de Esquirol: a idiotia não é algo, é a carência ou indigência

definitiva de algo.

G elementar que definir 'uma coisa pela ausência, nela, de utn dado

atributo significa abrir caminho para confundi-la com qualquer outra

coisa à qual falte aquele

atributo. A definição positiva de Diderot tinha o mérito de limitar a

confusão, razão de ser de qualquer definição. Resta aqui esquecer um

pouco a epistentologia

e entender que o substrato "positivo" da definição de Chambard se


oculta

na palavra parada (arrêt).

E essa parada tem um duplo sentido: orgânico e funcional; aliás, o


termo

"organização" de Esquirol, e agora de Chambard, é de uma feliz

ambigüidade. Embora sem a

ênfase de outrora, a essência organicista da noção de oligofrenia

persiste. Ainda que dez anos mais tarde continuemos no século de


Esquirol

e de Baillarger e Krishaber;'

e de Seguin. A essência do conceito é organicista: a parada de

desenvolvimento se refere à "atrofia geral ou parcial do cérebro", ao

"volume da caixa craniana",

"a diversos órgãos encefálicos que são rudimentares ou rílesmo


ausentes".

Desse modo, o século XIX se conclui com um conceito de idiotia

organicista quanto à etiologia da doença, e provavelmente funcionalista

quanto às suas manifestações


sintomáticas: no quadro clínico se incluem muito mais déficits
funcionais

~(fisiológicos ou comportamentais) do que lesões morfológicas ou

anatôtnicas, não obstante

o costumeiro e extenso catálogo de estigmas fisionômicos.


Principalmente

as funções intelectuais e sua gradação compõem o quadro clínico típico


do

final do século.

A tendência a uma conceituação comportamental da oligofrenia começa a

desenvolver-se no bojo da idéia da continuidade gradativa da função

intelectual nas diversas

categorias de deficientes mentais.

Sobre a parada das funções intelectuais, como característica


definitiva,

Chambard parece pouco seguro: após a brilhante definição (que o brilho

nem sempre acompanha

a verdade), na qual essa parada aparecia como o caráter inconfundível


do

idiota, o texto se etnbaraça na usual caracterização clinicopatológica


e

na enumeração de

fatores etiológicos diversos e chega, ofegante, aos sintomas objetivos


da

idiotia. Ali nada se refere a funções intelectuais, e o artigo envereda

pela sintomatologia

fisionômica e funções orgânicas sensitivas e motoras.

162 - Deficiência mental

Como esse artigo é uma revisão crítica. pode-se tomai-lo como

representativo de sua época, e então se é conduzido a afirmar que a

ênfase sobre o comprometimento

intelectual não é reflexo de uma doutrina consolidada, da idiotia, a


tomar por critério de classificação o grau desse cotnprometimento. Seja

porque tal 1esão não

aparece como "síntoma objetivo", seja porque ao iratar das funções

mentais como sintoma Chambard divide os idiotas entre autômatos e

irtteligentes. "É difícil fazer

uma idéia do estado das funções mentais dos idiotas automáticos", nada
se

pode saber sobre sua memória, "seu sentimento de eu", "se têm idéias

rudimentares" e "penetrar

no sentido íntimo de um idiota é tão difícil como no de uma carpa ou


uma

ostra". Cotno se vê, a função mental é, apenas em tese, um critério de

classificação do

idiota.

Os idiotas inteligentes mostram, em grau variável, capacidade de


lembrar,

mas "imaginação, associação de idéias, comparação, julgamento, atenção


e

determinação volitava

raciocinada que constituem, em conjunto, a razão dos psicólogos e

moralistas, estão totalmente ausentes".

Após a obra de Seguin essa afirmação é ousada e, adernais,


contraditória,

já que esse mesmo idiota inteligente "incapaz de aprender a ler,


aprende

a dançar, a tocar

um instrumento e a contar". E é nisso que ele se distingue do autômato.

Mais clara e sem contradição é a caracterização do idiota em confronto

com o imbecil: "no primeiro, todas as funções psíquicas: intelectuais,

morais e afetivas estão

paradas no seu desenvolvimento, em um nível tnuito baixo e


aproximadamente o mesmo; no imbecil elas são, ao invés, dissociadas, e

enquanto algumas, as funções coordenadoras

cujo conjunto constitui a razão dos psicólogos, estão ausentes ou são

rudimentares, outras, as funções imaginativas, adquiriram um

desenvolvimento muito considerável,

até mestno excepcional. O primeiro é um ser vegetativo, impróprio para


a

vida social; o segundo pode ocupar na sociedade um degrau modesto, c3e

costume; às vezes,

porém, se tiver as qualidades de seus defeitos pode ter um lugar


bastante

brilhante."

~ curioso que em toda essa doutrina o nome de Seguin fique omitido a


não

ser para uma gratuita alfinetada no início do verbete, em defesa da

definição, negativa,

de Esquirol.

I'essirr~isrno e retrocesso - 163

Oc um modo geral, csquccido Scguin, o conceito de idiota muda quase


nada,

em essência. Já sublinhamos a idéia tímida, confusa, mas nova, da

continuidade da função

intelectual (variando em grau) ao longo da hierarquia de ctasses de

oligofrenia.

, No mais, as marcas da visão organicista e inatista se rnantcm,


ficando

o comportamento e a função intelectual na categoria de sintomas

secundários ou acessórios

da enfermidade orgânica.

; Se disso sobrassem 'dúvidas, bastaria consultar, no artigo de que

tratamos, a parte referente à c~tiologia da idiotia: "Quando se indaga


seriamente as causas da

idiotia, constata-se que, se alguns idiotas . .. parecem dever sua

inferioridade a alguma afecção acidental da vida intra-uterina ou dos

primeiros tempos de seu

nascimento, a maior parte pertence a famílias em via de


degenerescência."

Segue-se a indispensável e nunca satisfatória defesa da dou- trina de

Morel, aqui levada ao extremo: após aceitar due "a idiotía é o úttímo

grau de uma série de

formas degenerativas cada vez mais graves", o autor lembra que há


alguns

idiotas filhos de homens geniais, de brilhante inteligência. Como


manter

o dogma de Morel?

O recurso costumeiro é lembrar que algum ascendente remoto carregava o

germe doer~tio. Mas Chambard excede: vai invocar a tese de Luys, para

quem "uma simples análise

do estado psicológico . . . do homem de gênio . . . mostra o quanto são

indivíduos mal equilibrados . . . que . . . exibem ao observador a

associação estranha de

grandes qualidades e grandes aberrações mentais." Ou, como já havia


dito

Moreau (de Tours) com mais concisão: "O gênio é uma neurose."

A idiotia, no final do século XIX, é, como o cretinismo e o


rnongolismo,

utna doença devida principalmente à degenerescência, seja esta de


origem

patológíca, climática

ou tóxica. Consiste na parada do desenvolvimento de funções orgânicas e

psíquicas, sendo mais evidente o bloqueio da evolução das funções


intelec

' tuais, mantidas em nível baixíssimo ou nulo.


Que se pode fazer, diante da fatalidade degenerativa, no caso da
idiotia?

Para o cretino, já vimos, a solução é a volta ao Iepi~osaírio em pleno

fim do século XIX.

Chambard tem idéias muito claras a respeito. Após mencionar as causas

degenerescentes e acidentais da idiotia, sem qualquer alusão ao elenco


de

causas proposto por

Seguin e praticamente repetido aqui, o texto propõe antes de tudo a

prevenção da idiotia, sugerindo educar o povo

164 - Deficiência mental

para evitar o casamento entre degenerados e a criação de "leis sábias

contra as causas da degenerescência", como o alcoolismo. A educação dos

pais para não forçarem

seus filhos "por uma vaidade besta" a brilharem prematuramente (como

pensava Seguin em 1846) ou para impor repouso cerebral aos filhos


quando

aprendessem a perceber

a iminência de complicações infeciosas.

Com tais recursos se chegaria a "extinguir a idiotia"; mas, que fazer


com

o idiota já congenitamente e degenerativamente afetado? "Não se pode

transformar uma criança

idiota num homem inteligente . . mas é possível, graças a um conjunto


de

recursos higiênicos e pedagógicos que não podem ser aplicados senão em

estabelecimentos

especiais . . . desenvolver o que resta dos suprimentos cerebrais,

transformando um bruto inconveniente, perigoso, inútil e perturbador em

um sujeito decente, inofensivo

e capaz de prestar à sociedade alguns serviços em troca dos cuidados e


da
proteção que recebe dela." lsto porque, cumprindo 0 dever de assistir o

idiota, "a sociedade

tem o direito de exigir do idiota ... que ajude ... a aliviar a carga
que

esse lhe impõe", o que "só se consegue ensinando o idiota a não


destruir

e a trabalhar

. . . "

Se a doutrina novecentista sobre o cretinismo revive, de certo modo, o

dogma do pecado original, a teoria da idiotia resumida por Chambard

revigora a moral decorrente:

o idiota "deverá ganhar o seu pão com o suor de sua fronte." Como?

Aprendendo bons costumes e algum tipo de trabalho no estabelecimento

especial chamado asilo-escola.

Um quadro pessimista e mórbido

Terminamos com este item o balanço da contribuição teórica do século


XIX

à caracterização e classificação dos deficientes rnentais. Comentado o

que se refere ao

cretinismo e à idiotia, veremos aqui como o experiente e ilustre E.

Chambard resume criticamente o conhecimento de seu tempo sobre o


imbecil

e sobre o débil mental,

que aparecem pela primeira vez na nossa história com uma caracterização

própria.

Se no início dos anos vinte deste século 23 estados norteamericanos

dispunham de leis que pt;rmitiam a esterilização de

Pessimismo e retrocesso - 165

idiotas e imbecis, é possível que algum zeloso promotor público ; tenha

baseado sua peça acusatória nos argumentos e informações


de Chambard no verbete "Imbécillité" do Dictionnaire.

; Parece que, à medida que o deficiente se distancia dos níveis mais

severos, quase de "ser vegetativo", ascendendo aos graus ~ tnais

atenuados da oligofrenia, mais

se afirma a rejeição da sociedade e sua dureza de julgamento e

tratamento. Enquanto 0 cretino, totalmente tutelável, é destinado

caridosamente à reclusão definitiva

acompanhada de piedosas advertências de que não lhe deixem faltar


comida

e cuidados médicos, ao idiota se propunha o asilo-escola onde


aprendesse

a trabalhar para

retribuir a alimentação e instrução recebida, respeitando "um direito


da

sociedade".

Assim, ao cretino se tolera; ao idiota se cobra; e ao imbecil, como

veremos, se esconjura e se condena.'Freud, que tinha então ;

trinta e tlês anos, talvez pudesse explicar porque quanto rnais 0

oligofrênico se aproxima das capacidades do homem normal mais se


sublinha

seu papel de ameaça à

espécie, à família e aos bons costumes. Teriam a mesma motivação

inconsciente as torturas medievais a bruxas' e possessos?

O itnbecil é antes de tudo um perigo público, eis a idéia i mestra do

artigo de Chambard: "Acima dos idiotas . . . que devem ser mantidos


(sic)

em estabelecimentos

especiais ... estão os irnbecis, nos quais as faculdades psíquicas,

paradas em um nível menos uniforme, atingiram um grau médio mais

elevado." Como se mede esse

grau médio é assunto por ora irrelevante e que ficará para l3inet
estudar; a definição prossegue: "Susceptíveis de alguma educação . . .

eles são usualmente utilizáveis

(sic) e dignos de uma liberdade relativa (sic) mitigada por uma

vigilância incessante, ainda que discreta, pois as menores


circunstâncias

podem despertar neles maus

instintos, que sua fraca razão e seu

' senso moral todo rudimentar mal conseguiriam refrear, e transformar


em

um ser perigoso o mais manso e o mais inofensivo . deles."

O apelo à liberdade relativa e à eterna vigilância numa de-, finição

científica, de consulta indispensável nos ambientes médicos, tem algo


de

ameaçador, de uma ameaça

maior que a dos "seres perigosos'.' que são os imbecis (e tem algo de

profético, visto do ângulo da história política, mesmo brasileira). E


não

se vis= lumbra nessa

curiosa e passional "definição" e nas páginas que

166 - Deficiência rnental

se lhe seguem qualquer generosidade ou abertura, ainda que lenta e

gradual, a uma visão mais tolerante.

A doutrina é categórica: a imbecilidade é um grau (íntermediário entre


a

idiotia e a debilidade mental) de agenesia psíquica que pode ser devida


a

acidentes pré-natais

e pós-natais, portanto acidental, ou constitucional. Neste caso é a

"manifestação da degenerescência hereditária". E Clmmbard prossegue

afirmando, com base em Morel,

que a "degenerescência é na realidade o resultado da transmissão

hereditária".
Mais não é preciso para esclarecer a etiologia da imbecilidade, nem o

autor se demora em tal matéria: a degenerescência ou os acidentes (que

Seguin já arrolara em

1846) são a causa dessa degenerescência mental ou agenesia psíquica, ou

disgenesia rnental.

Como se vê, os termos brotam, fáceis, e suficientemente vagos para


seretn

intercambiáveis setn maiores escrúpulos semãnticos ou metodológicos.

Quanto às evidências clínicas da enfermidade ou sintomatologia,


Chambard

despeja o costumeiro rol de aspectos cranianos, esqueletais e

fisionômicos. "Além desses

estigmas físicos observam-se ... distúrbios funcionais . .. como os


tics

. .. da face, o estrabismo ... gagueira ... etc. ...''.

E aqui começa o autor a desfilar aspectos estéticos que compõem tipos


tão

rudes e deformados, diante dos quais as figuras de Breugel ou de J.


Bosch

lembrariam o

nascimento da Vênus de Boticelli. Em mais de um ponto o artigo resvala

para a ~nenção inoportuna mas irreprimível de aspectos doentios - por

exemplo, ao final dessa

galeria dos horrores, ao discorrer sobce aspectos cutâneos e


musculares:

"e rapazinhos dotados daquela fineza de pele e rnaciez de formas que

caracterizam o feminismo

e os levam a buscar os amantes da pederastia ativa."

Quanto às faculdades afetivas e morais, são de dois tipos os imbecis:

inofensivos ou de maus instintos. Os primeiros não respeitam a

propriedade, são incapazes de


decência de atitudes, profundamente egoístas e insaciáveis. Esses são
os

inofensivos!

E os outros? Merecem um capítulo à parte, intitulado "Imbecis

inofensivos. Imbecis perversos e criminosos". Os primeiros lembra

Chambard, "são capazes de algum trabalho

e po~iem até mesmo aceitar caçoadas, muitos deles tendo sido `bobos da

corte',

Pessirnisrno e retrocesso - 167

e eventualmente são até cordiais ... mas há que não

confiar muito neles, pois ... podem despertar inopinadamente os

maus instintos

que estão adormecidos nos imbecis mais bonachões. A uma

brincadeira mais pesada pode seguir-se um impulso violento e ...

conseqüências fatais."

A idéia de perigo imprevisível trai o fatalismo que

perpas- sa todo esse artigo. Partidário

ardoroso da

degenerescência

é, em resultado, um modelo de organicismo fatalista: os órgãos do

feto carregam o germe da tara. Não há nesse artigo

sequer

a sombra da preocupação com objetividade e clareza doutrinária

que o mesmo Chambard exibira ao tratar da idiotia. Se alguém

quiser achar

as raízes ideológicas e "científicas", ou

clínicas, do movimento eugenista das primeiras décadas

do século

XX
deverá buscá-las principalmente no pensamento médico sobre os

deficientes menos graves e cuja segregação ou confinatnento no

leprosário é

mais difícil de impor e de expor. Ainda sobre os

inofensivos o artigo é pródigo de informa- ções moralistas e

alarmantes: "... as

crises menstruais são fre- qüentemente acompanhadas, nelas, de

uma excitação sexual pe- rigosa . . . para a moral pública e se

conhece a história

daquela doente de Esquirol que levava regularmente seu pecúlio a

um operário ao qual se entregava até que ele a engravidou." E há

mais: "certo

s doentes inofensivos podem tornar-se perigosos até por

influência de um bom sentimento." Mas há também pior: "os

imbecis . . . do tipo criminal

. . . com fisionomia grosseira e brutal ou fina ... são

falsos, velha- cos, mentirosos, preguiçosos, gulosos e se

entregam a todos os

excessos

. . . degenerados . . . pelo prazer de prejudicar . . . têm ...

instintos perversos e ... não há crimes

e delitos

contra

pessoas e propriedades que esses doentes não

possam cometer ... mentirosos e cruéis ...

têm

prazer

de maltratar os fra- cos ... prazer

indizível de rasgar roupas e quebrar louças


.

. . jogar animais domésticos no fogo . . . ". São ainda

capazes de "atiçar incêndios pelo prazer de destruir ou por

espírito de vingança

... de roubos ... violência feroz ... atentados ao

pudor, violações e incestos . . . exibem seus órgãos genítais,

mas- !

turbam-se

em ptíblico, atiram-se com violência sobre as pessoas do outro

sexo ou, principalmente as mulheres, procuram sedu-

zir as pessoas por

atitudes, gestos e linguagem lascivas. Gall cita um que

tentou abusar de sua irmã e quase a estrangulou." E

168 - Deficiêr:cia rnental

outros "três imbecis não recuaram nem diante da própria mãe: um entrava

em ereção ao se falar dela, outro levantava-lloe a saia e também


entrava

em ereçâo, e o terceiro

fez uma tentativa de coito no leito materno que partilhava." As


imbecis,

"por sua coguetterie, sua preguiça, sua gula, sua incapacidade de

trabaIhar . .. são jogadas

pouco a pouco na prostituição se n~to furem vigiadas pelas famílias ou

recolhidas em tempo aos asilos . . . a maior parte das prostitutas de

classe inferior (sic)

são atingidas por certo grau de debilidade mental." E o autor não se

detém e nem consegue deter-se nessa denúncia zelosa dos perigos e da

depravação dos imbecis:

"Ao lado da prostituição feminina é preciso colocar os prostitutos


homens." Veja-se agora que distinção curiosa: "Se a maior parte dos

pederastas por gosto, e não

por ocasião ou por necessidade, são homens inteligentes, bem


situados ...

os imbecis são freqüentemente vítimas intimidadas ou interessadas da

pederastia passiva;

não somettte enquanto estão em liberdade mas também, por mais


vigilância

que se exerça, nos asilos, nas casas de detenção e nas prisões (sic)."
E

o texto não consegue

deixar de mencionar mais uma conclusiva escabrosidade ao mencionar a

excessiva generosidade oral de um imbecil de Ville-Evrard ante scu

cornpanheiro de prisão, ainda

que com um eufemismo que mal esconde a intenção e a motivação pouco

científicas dessa descrição gratuita.

Não há nesse verbete do Dictionrraire muita contribuição teórica


stricto

senso: a imbecilidade e a debilidade, como a idiotia, são diferentes

graus de agenesia,

de falta de desenvolvirnento mental devida à degenerescência ou a


causas

acidentais. A enfermidade é congênita e quase sempre hereditária.


Quanto

à etiologia, uma

pequena novidade: o excesso de esforço mental em idades precoces pode

gerar a imbecilidade a título de causa acidental. De resto, essa


novidade

já fora proposta

nos mesmos termos e com mais sobriedade por Seguin ( 1846), aqui

injustamente esquecido.

A sintomatologia é a descrita acima, e o prognóstico segue a lógica:


embora alguns imbecis sejam educáveis (o termo é de Chambard), os

imbecis, mestno inofensivos

são perigosos e convém vigiá-los continuamente; logo, o ideal é a

reclusão em asilos; o texto é explícito: "Bem mais que os idiotas, os

imbecis são educáveis, mas

apenas em estabelecimentos especiais é possível transformar, por uma

educação apropriada, esses indiví-~

t'essimismo e retrocesso - 169

duos inúteis e perigosos em hotnens dignos de alguma liberdade e


capazes

de prestar alguns serviços."

Como se vê, o que conta é a defesa da sociedade e da economia, tnesmo

porque "os imbecis ... são delinqüentes constituciorrais . .. e não nos

interessa saber se

... têm consciência de seus atos e se puderam lutar contra seus maus

instintos . . . " A Chambard não interessam "os aspectos metafísicos .e

religiosos da liberdade

e da responsabilidade moral"; interessa "prevenir os perigos que sua

permanência em liberdade acarretam à ordem social".

"Se sua seqüestração é necessária, importa, como no caso dos demais

dclinqücntes por constituição, separaí-los radicalmentc dos


delinqüentes

por ocasião .. , é no

asilo de alienados que convém colocá-los."

O autor não se limita a esse estranho prognóstico obviamente derivado


de

um "di.agnóstico" passional e doentio. Seu ardor morali.sta c ordenador

aspira a uma espécie

de blitz generalizada: "quanto aos imbecis perigosos e criminosos se


lhes

destinará um pavilhão em asilos de alienados crirninosos, cuja criação


é

justamente prevista

no projeto de lei senatorial."

Na definição do cretino se regredia ao leprosário; na caracterização do

idiota se retrocede à inculpação do deficiente. Agora, ao tratar do

imbecil, a doutrina médica

do século XIX retorna à prisão disciplinar.

Está lançada a setnente da rejeição política do deficiente, com seus

subprodutos: confinamento, segregação e esterilização, tudo obviamente

sem preocupaçôes com

"nuances metafísicas ou religiosas ... de responsabilidade moral" e sim

para evitar perigos para a ordem social.

Tudo isso em 1889. E pensar que o movimento pela ~ igualdade de


direitos

dos homens triunfara avassalador apenas cem anos antes. Volta-se, agora

com cânones médicos,

ao "martelo das bruxas".

IV o século XX

Uma herança onerosa

Na ségunda metade do século XIX já se mencionavam, sem rubores,


sintomas

psicológicos da idiotia, da imbecilidade e da debilidade mental. Mesmo

para .além do sintoma,

mas antes da causa (sempre neuroanatômica ou neurofisiológica),


colocava-

se uma entidade híbrica de fisiológico e de psíquico: a agenesia


merttal.

Ela não era sinônimo

das faculdade deficitárias, nem a causa primeira da oligofrenia. Num

momento ulterior da teoria a agenesia se identifica com a


degenerescência
intelectual e passa,

enquanto degenerescência, a receber graus. Graus que na última década


do

século vêm a servir de critérios, acessórios em verdade, para a

classificação dos oligofrênicos

numa ou noutra Ï categoria.

; A despeito da ditadura médica na doutrina, os aspectos filosóficos do

naturalismo pedagógico, graças a Itard e Seguin, não foram totalmente

banidos, embora ficassem

confinados à margem do processo científico de análise e teorização


sobre

a oligofrenia; as faculdades, o entendimento, o sentimerito de eu, o

conflito instinto-moral,

a memória, o grau de docilidade continuaram a fazer parte, na zona de

sombra, dos quádros clínicos mais ou menos aterradores que configuravam

as diversas categorias

de deficientes mentais.

Mas, no campo da investigação etiológica imperava, é óbvio, o mais


total

e totalitário organicismo, o que não foi nem é pecado mas foi e é

lamentável (há mesmo virtudes

lamentáveis).

172 - Deficiência mer:tal

Perdeu-se no deserto a insistente voz de Itard a advertir sobre a

itnportância da possibilidade de uma etiologia psicogenética .de

deficiência, que consistia na

defasagem entre rnaturação ontogenética e exposição ao treino ou à

experiência. O próprio Seguin afastou-se do rumo que I tard apontara,


no

afa de fisiologizar sua


teoria, embora no método, dito fisiológico, perfilhasse a mais genuína

teoria psicogenética.

A teoria, desse modo, prosseguiu como campo exclusivo da ciência


médica,

o que se explica também pelo estado embrionário das ciências do

comportatnento na época.

Por isso a deficiência mental chega ao século XX com etiologia orgânica

nervosa, diagnóstico clínico e estatístico, sintomatologia heterogênea

com predominância

morfológica e anatômica, embora incluindo distúrbios de funções

digestivas, genitais e mentais.

A organização sociocultural, por conseqüência, assegura tratamentos

diferenciados: abandono, confinamento com ensino de trabalhos ou

"seqüestração", ou volta ao

hospício, conforme a categoria do oligofrênico e o correspondente risco

para a ordem social ou o equilíbrio familiar.

Iniciado o século XX, a idéia e os primeiros produtos de uma psicologia

científica já eram de dornínio público; os estudos'sobre percepção e

memória proliferavam

e o exame dos limites das capacidades mentais atraía a atenção de

numerosos pesquisadores.

Tais pesquisas partiam da capacidade "normal" para a busca dos desvios


da

norm.a, seguindo em sentido inverso ao da medicina, cujo conhecimento


do

aberrante, patológico

era mais sólido que o dos casos quase normais (já que o normal não et~a

problema médico). Quanto à oligofrenia, essa conjuntura da ciência se

manifestava pelo interesse

crescente da psicologia pela deficiência intelectual leve e,


curiosamente, por um aumento do interesse médico pelo mesmo assunto;
isso

porque o saber do clínico

quanto às ~ategorias mais graves de oligofrenia parecia acabado,


completo

ou pelo menos satisfatório. Satisfatório para fins de prescrever os

diversos "tratamentos"

já mencionados, ainda que batizados já então de "educação especial". E

era especial; especial para proteger a sociedade e reduzir os custos da

manutenção pública

ou familiar do oligofrênico.

n sécrrlo X X --- 173

Mas, tanto a medicina quanto a "pedagogia científica" e a

psicologia encontram-se diante de dilemas complementares: para

médico, a ducstão é saber como tratar os débeis mentais não

confinávcis; para o pedagogo, o problema é saber como esten- der

a esses deficientes

o ensino vigente, e o psicólogo se pergunta corno medir as

diferenças de capacidade mental entre os normais e os débeis

mentais, supondo-sc que os

outros deficienles estão excluídos liminarmente da didática e da

psicologia normais, quer por serem - ninguém o contestaria -

problemas médicos,

quer por não haver recursos mctodológicos para investigar-lhes as

ca- pacidades mentais ou ensinar-Ihes o repertório escolar.

O panorama

das quatro últimas décadas do século XIX e dus primciros anos do

nosso século é resumido por Netchine ( 1 97 1 ) : "o


desenvolvimento dos

conhecimentos anatomopatológicos consecutivo à multiplicação das

autópsias, o progresso da medi- cina em geral e,

sobretudo, o aperfeiçoamento

da neurologia vão transformar as pesquisas etiológicas

no objetivo principal dos especialistas. Não somente as causas

da deficiência

merital são dadas com uma precisão crescente como, sobretudo,

tornam- se, cada uma na sua particularidade, partes integrantes

das sín- dromes

difcrenciadas. Assim, distingue-se o mongolismo e a sua

presuraívcl etiologia, o cretinismo ou idiotia mixedcmatos, e a

idiotia sintomática,

da malformação cerebral congênita ou de uma esclerose atrófica,

etc. . .. A idiotia desembocou numa plenitude de síndromes que se

reagrupam na deficiência

mental, enquanto " seu sintoma comum . . . .

Esse texto se destina a situar a posição da psicologia nessa

conjuntura

histórico-científica, representada por um eminente no- me da

ciência do comportamento, Alfred I~inet, ao qual, segundo

Netchine, "não resta senão

aceitar ou criticar os frutos do tra- ¡ balho médico. Ao mesmo

tempo ele aceitará os dados c contes- ! tará sua

importância para o objetivo

que

Ihe interessa: o do diagnóstico psicológico da deficiência

mental. As considerações ¡ etiológicas são secundárias para

l3inet, não somentc


porque a con- tribuição delas para o diagnóstico da deficiência

mental lhe pa- rece incerta, mas também porque essa contribuição

incerta só é

válida

para uma minoria de indivíduos" deficientes. ¡ A

contribuição psicométrica de i3inet, inegável e mal enten- dida,

obscurece sua decisiva influência

teórica na área que nos interessa.

174 - Deficiência mental

Para propor um diagnóstico psicológico da deficiência era preciso negar


o

diagnóstico médico ou aceitá-lo apenas para as formas mais graves do

distíwbio, ou; ainda,

considerá-lo um método e não o método ideal de avaliação da


deficiência,

principalmente no caso da debilidade mental ero que as evidências

anatomopatológicas são

mínimas e inseguras. Pelo menos nesse último caso a metodologia médica

precisa ser substituída ou complementada por um outro método,

psicológico. Por conseqüência,

essa complementaridade não traria mais que proveitos se estendida


também

aos graus mais acentuados da deficiência mesrno "satisfatoriamente"

cobertos pela metodologia

médica.

As razões de Binet são claras: "o anormal não se assinala necessária e

constantemente por um conjunto de taras anatômicas evidentes. As

descrições físicas do idiota

e do imbeçil que se encontram nos tratados clássicos nem sempre são

ajustadas e mesmo que o fossem não se aplicam, de nenhum modo, ao


débil.

Ora, é o débil que constitui

a maioria; é o débi( que é necessário saber reconhecer na escola, onde


se

acha misturado aos normais, é ele que exige os maiores recursos

educativos. O diagnóstico

do débil é ao mesmo tempo o mais importante e o mais difícil de todos."

(1905)

A proposta de Binet é a de um dualismo metodológico (Netchine, 1971)


que

leve em conta a sintomatologia anatomofisiolGgica ao lado da avaliação

psicológica. Avaliação

do que? De algo que varia etn graus, desde o idiota mais "vegetal" até
o

débil mental ligeiro.

O esboço da idéia de continuidade de uma função variando em graus

decrescentes, do "homem completo" ao idiota, já fora traçado por


Esquirol

que, na linha da doutrina

de Fodéré, atribuía graus diversos de degradação às diferentes


gravidades

da idiotia. Mas, esse grau de degradação, que é mais baixo no idiota e

atenuado no imbecil,

é um conceito organicista ou, melhor, fisiológico, o que torna ambígua


a

concepção de Esquirol; uma ambigüidade que será agudamente denunciada


por

Seguin. Ela consiste

em apregoar a continuidade de um processo orgânico de degradação ao


mesmo

tempo em que se adota para efeitos de diagnóstico diferencial a

quantidade maior ou menor

de desenvolvimento mental.
E na crítica a esse dualismo metodológico primitivo e historicamente

"prematuro" que Seguin lega a Binet sua herança

O século XX - 175

teórica, enquanto o método será deixado a Maria Montessori. A herança


que

irrecuperabilidade do idiota é o novo estigma, que vem substituir o

sentido expiatório e propiciatório que a deficiência recebera durante


as

negras décadas que antecederam a medicina, também supersticiosa, de

Cardano e Paracelso.

O médico é o novo árbitro do destino do deficiente. Ele julga, ele

salva, ele condena.

Ante a óbvia variedade dos casos de amência, não se multiplicam

tanto as observações de relações causa e efeito quanto proliferam os

"quadros clínicos", os chavões anatomopatológicos e a terminologia

nosológica. Não se progride tanto de Cardano a Pinel no conhecimento

etiológico quanto no apuro das descrições formais e na classificação

semiológica das variedades de deficientes e amentes. A incipiente

indagação etiológica corre, até o século XIX, um alto risco de


confundir

correlações com causas, e esse risco, associado à autoridade clínica


dos

tratadistas, passa a constituir uma séria ameaça à objetividade de

diagnósticos e prognósticos e à validade das teorias que se difundem.

A esse propósito, foi particularmente nefasto o Traité du goitre et

du crétinisme publicado em 1791 por 1. E. Fodéré (1764-1835), em Turim,

dez anos antes do famoso prognóstico de Pinel.

É muito provável que Pinel se tenha influenciado pela obra de

Fodéré, de resto livro de consulta obrigatória, na época, para qualquer

alienista, neurologista, médico moral, ortofrenista ou freniatra.


Fodéré, adepto de primeira hora do "no-restraint" inaugurado por

Valsava, por volta de 1700, e difundido por Chiaruggi em 1774, tornara-


se

famoso pelas amplas reformas que introduziu nos hospitais destinados a


toca a Binet não é livre de taxas e emolumentos: exigirá do herdeiro um

árduo trabalho,

e mesmo tributos, até que frutifique. Oual a herança, e qual o


trabalho,

é o que veremos a seguir.

A herança era a idéia de variação contínua de inteligência dentro de


cada

categoria de oligofrênicos, mas admitindo que as categorias sejam

definidas por critérios

fisiológicos; para Seguin, o dualismo teórico de Esquirol ao admitir o

"mais ou menos de espírito" como critério de diagnóstico, ao lado dos

sintomas orgW icos,

é inaceitável porque " . . . o estado psicológico varia de um sujeito a

outro, do mesmo modo que podem variar as circunstâncias morais e

intelectuais; noutros termos

... em dez mil idiotas do mesmo grau (sic) as circunstâncias morais e

intelectuais estabelecem, necessariamente, tantos graus de

desenvolvimento psicológico (sic)

como tipos de idiotia, por conseguinte . . . ". Aqui está a herança,

pouco clara mas valiosa.

A oposição de Seguin é referente à impossibilidade que ele vê de se

medirem graus de desenvolvimento psicológico sem que a medida seja

viesada pela diversidade de

experiências "morais e' intelectuais" dos sujeitos. No mais; não há


como

negar a variação de inteligência em graus, embora, para Seguin, o menos

grave dos idiotas


possa ser mais inteligente quc o mais grave dos imbecis, numa opção
pela

prioridade da definição qualitativa das categorias de oligofrênicos

(dentro das quais se

admite que a 'inteligência varie em graus).

Assim, o legado que Binet recebé é a idéia de que há uma continuidade


de

graus de inteligência, que são geralmente mais baixos na categoria dos

idiotas e mais altos

na dos retardados ou dos débeis mentais, sendo essas categorias não

identificáveis rigorosamente com faixas hicrarquizadas daquelas

gradações. E isso porque as circunstâncias

morais e intelectuais alteram o desempenho intelectual, mesmo

transitoriamente.

Segundo Netchine (1971), o próprio Binet reconhece que a posição de

Seguin quanto à idiotia coloca-lhe problemas para resolver. Mas, ao

tratar do "atraso mental"

Seguin supera o obstáculo da classificação qualitativa prévia e, assim,

resolve um problema para Binet.

I3inet reconhece, de fato, que "a própria denominação dada por Seguin a

essa forma ligeira da deficiência mental basta para

l76 - Deficiência mental

indicar que ele lhe aplica uma definição psicológica, estabclecida a

partir de uma perspectiva de comparação entre o psiquismo normal e o

deficiente, e não de uma

ótica onde um e outro são considerados separadamente." A essa afírmação

Netchine ( 197 I ) acrescenta: "mas é a Binet que caberá definir a

inteligência em termos

que permitam comparar, efetivamente, o desenvolvimento ,

normal e o atrasado. '


A herança de Seguin, embora fecunda, é obviamente um encargo para
t3inet,

que, de resto, não a queria: falando do Trniternent rnoral de Seguin,

considera-o "notável

como obra de prático e tão fraca como obra de teórico [na qual~

encontramos essa idéia extraordinária de que a idiotia depende de uma

debilidade da vontade ... Inútil

será demorarmo-nos na discussão deste absurdo, sobre o qual vários

autores que tiveram a paciência de ler a empolada obra de Seguin


fizeram

boa justiça." Netchine

(1971), que nos transcreve esse trecho, considera quc Binet não parece

haver tido tal paciência, vistos os seus nítidos contra-sensos ao

referir-se à obra de Seguin;

e salienta um aspecto que Maria Montessori saberá avaliar e valorízar

como ninguém: a tentativa pouco feliz, de Seguin, de "classificação

psicológica dos estados

inferiores da inteligência . . . não se apviava no grau de inteligência

mas tenta muitas vezes destacar as características psicológicas que

cxplicariam a infcrioriclade

de funcionamento das faculdades intelectuais nos idiotas."

Na verdade, ao mencionar graus de inteligência Seguin se apercebe de


seu

significado merameute descritivo e aponta para uma explicação plausível


e

brilhante em 1846:

"não falta ao idiota nenhuma faculdade intelectual; o que ele não tem é
a

liberdade necessária para aplicar essas faculdades intelectuais . . . ".

É provável que um pouco mais de atenção à "empolada obra de Seguin"


teria
poupado a Binet muitas incompreensões do trabalt~o que a incôtnoda

herança lhe exigiu no

campo da teoria do deficiente mental.

A transformação importante da teoria, proposta por l3inet, é a


seguinte,

sem menção do que nela é herdado, a nosso ver, de Seguin. Enquanto para

as classificações

médicas as deficiências intelectuais eram sintomas relativamente


seguros

de lesões funcionais ou estruturais no organismo, principalmente no

sistema nervoso central,

para Binet, não havendo sempre uma relação de necessidade causal entre
a

lesão orgânica e a deficiência

O sécolo XX ~ 177

mental, o fato de a atividade intelectual ser sempre uma função

comprometida em maior ou menor grau (qualquer que seja o quadro

orgânico), transforma a inteligência

num sintoma seguro, não da lesão, mas do airaso ou pacada do

desenvolvimento. E ainda quc o atraso se deva a lesão orgânica a mcdida

da inteligência será a medida

segura do atraso. Mais ainda, as lesões orgânicas são meros "sinais

possíveis de atraso". Agora, deficiência maior ou menor é sinôuimo e

atraso maior ou menor do

desenvolvimento intelectual ou menlal, qualquer que seja a etiologia,

orgânica ou não, do atraso.

Desse modo, para obier sinais concretos de atra só é necessário medir a

inteligência em graus.

Inverte-se a prioridade de Seguin: primciro I3inet yuer a quantificação

da inteligência, para depois, e a partir dela, estabelecer categorias


ou
definiçôes qualitativas

hierarquizadas da oligofrenia. As idéias de variação quantitativa

contínua da inteligência, e de perda gradaliva da função intelectual,

tinham já várias décadas

de uso ao tempo de Binet. Seu trabalho, genial, foi entender a

continuidade de graus da função intelectiva como o princípio


diagnóstico

por excelência da oligofrenia,

fazendo corresponder aos graus mais baixos categorias de maior

deficiência.

O nome e o nínnero das catcgorias, bem como sua dcfiniçao nosográfica


ou

cotnportamental são, do ângulo da teoria, questões secundárias e até

irrelevantes; no dizer

de l3inet, "Toda série contínua permüe um número infinito de divisões.

Porém, as necessidades práticas exigem que tal número seja


restrito . ..

são, portanto, meras

razões de conveniencia que nos levam a adotar uma divisão tripartida de

inferioridade intelectual. Resta saber, agora, onde situar as


fronteiras

que separam idiota

e imbecil, imbecil e débil e, por fim, débil e normal." (Binet, 1905)

Para situar essas fronteiras Binet não herdou critérios, já que a

instituição do diagnósüco psicológico da deficiência. mental através da

medida de inteligência

foi obra genuinamente sua: "Por convenção, consideramos que uma criança

mais velha é mais inteligente que uma criança mais nova . .. A idéia de

medida conduz ...

à da classificação hierárquica: de duas crianças, a mais inteligente é


a
que foi mais bem sucedida numa certa ordem de provas . . . Por outro

lado, . . . quer para

a inteligência, quer para a in.struçâ o . . . medimo-la pelo atraso ou

avanço de

178 - Deficiêrrcia mental

tantos anos que ... tal criança apresente em relação aos seus
camaradas."

(Binet, 1909)

E Binet, citado por Netchine, diz ainda sobre a elaboração da medida de

inteligência: "~ no seguimento de muitas tentativas que estabelecemos

esta ordem (entre as

provas da escala) ... temos ensaiado num grande número de crianças de

todas as idadaes . . . ".

A idéia de medida não tetn para Binet, a rigor, um sentido métrico ou

matemático como muitos pensaram e clamaram, obrigando-o assim a pagar o

tributo de ter que

defender-se repetidamente de acusações que, a bem da verdade, não lhe

cabem. Cabem, porém, aos que deturpam o quociente de inteligência

aplicando-o como medída díreta

de uma capacidade mental ou intelectual. Já em 1905 Binet esclarecia


que

para medir o atraso mental dos retardados é preciso determinar "em

quantos anos um atrasado

o está em confronto com o normal da mesma ídade. O procedimento . . .

consiste em aplicar à criança, sem qualquer idéia preconcebida, a

totalidade das provas (da

escala . . . ) e compará-las à série dos normais sem ter em conta a


idade

. . . ". "A consideração da sua idade permite . . . saber se eIe está

atrasado, e quanto,
em relação à média." (Binet, 1905)

Zazzo (1965) resume o procedimento de avaliação da deficiêncía mental

pelo C2.I. dizendo: "A noção de debilidade mental, pelo menos segundo
os

psicólogos infantis,

de/ine-se, portanto, por critérios pedagôgicos; uma vez admitidos estes

critérios, veri f íca-se a quais idades correspondem, c uma vez

conhecidas as mesmas calcula-se

a que nível cronológico de crescimento correspondem . . . ".

O conteúdo das provas é escolhido, fundamentalmente, pela sua

significação pedagógica. Desse modo o Q.I. mede eventuais graus de

afastamento do desempenho pedagógico

(ou outro) em relaçâo ao desempenho da média das crianças de igual


idade:

ele não mede graus de capacidade ou potencialidade, mas graus de


execução

de uma função.

Assim, o idíota não é quem apresenta o Q.I. abaixo de um certo índice,

mas quem não consegue executar certas tarefas que seriam executadas
pela

média dos coetâneos.

A esse respeito deixemos que fale Binet: "Conservaremos os temos usuais

de idiota, imbecil e débil dando-Ihes utna definição precisa . . . O

idiota é o ser que

não pode comunicar-se com seus semelhantes pela

O século XX - 179

linguaguem; não fala e não pode compreender: corresponde ao nívei de

inteligência normal entre o nascimento e a idade de dois anos. 1'ara

efetuar o diagnóstico diferencial

entre o idiota e o imbecil, basta aplicar os testes seguintes: ... A


fronteira entre a imbecilidade e a debilidade já não é difícil de

esfabelecer. O imbecil é o

incapaz de comunicar-se com os semelhantes pela linguagem escrita; não

pode, pois, compreender o que lê ... a imbecilidade vai dos dois aos
sete

anos (do nível da

escala); a debilidade começa a partir dos sete anos."

Com Binet, o problema da deficiência menta) deixa de ser propriedade da

medicina e torna-se atríbuição da psicología enquanto questão teórica.


No

ptano da prática

passa dos asilos e hospícios para a escola especial ou comum. Pouco

importa, diante dessa gigantesca transformação, que I~inet tenha tido

precursores num ou noutro

aspecto de sua obra; ou que tenha tido seguidores irresponsáveis e -


por

que não? - ingratos, já que é da obra desses seguidores incapazes de

entender a contribuição

teóríca do Q.I. e seu verdadeiro signíficado diagnóstico que resultaram

avaliações injustas da contribuição dE Binet ao estudo e ao ensino dos

deficientes mentais.

A "Dottoressa"

Como no Evangelho a melhor parte, ouvir os ensinamentos do Mestre,


ficou

com Maria, também aqui etn nossa modesta história a parte mais
importante

do legado de Seguin

foi escolhìda amorosamente por María Montessori, que ganhou na hístórí~


o

afetuoso apelido de "Dottoressa". Se Binet herdou a contragosto a


questão

teôrica da gradação
e medida da inteligência, Maria Montessori abraçou com o entusiasmo da

mais pura escolha o fegado prático de Seguín: o "método fisiológico de

tratamento moral dos

idiotas e de outras crianças retardadas". E o método é, de fato, a


melhor

parte da herança; primeiro, porque Seguin o deixou plenamente provado,

além de formulado

de maneira cabal; segundo, porque deixou abundantes informações sobre

técnicas de ensino e sobre material didático especializado para

deficientes mentais.

18U - De f iciência rnerua!

A parte de I3inet exigiu ârdua elaboração para frutificar, mas o


quinhão

de Maria Montessori requeria apenas entusiasmo e fidelidade para gerar

seus frutos. E se

Seguin pudesse ter adivinhado o afeto que essa primeira médica da

Universidade italiana consagraria ao seu rnétodo, à sua doutrina e


mesmo

ao seu nome, talvez tirasse

de sua obra a nota amarga de quem se acha ìncompreendido, pregando no

deserto talvez para ouvintes de uma época ulterior.

Em sua Pedagagia cicntí/ica Montessori tnenciona com revercncia os


noroes

e as obras de Itard e de Seguin, tributando a este a criação de um

"verdadeiro sistema

educativo para crian~as deficientes". Ela notara que embora Seguin


fosse

freqüentemente citado na Ingiaterra "as aplicações educativas descritas

eram muito diversas

das que ele preconizava em seu sistema ... o material didático especial

existia ... nos museus pedagógicos das


" escolas para defieientes mas praticamente jamais fora usado . . .

"Também em Iücêtre . . . observei que se adotavam os mecanismos


didáticos

preferentementé ao sistema de Seguit~ ... pois o fato enunciado por

Seguin, isto é, que

realmente era possível educar os deficientes aplicando os seus métodos,

permanecia praticamente no terreno das quimeras."

È Montessori aponta a causa desse abandouo: a persistcncia da convicção

de que as crianças deficientes, por serem inferiores, deveriam ser

educadas com métodos cuja

eficácia já houvesse sido aquilatada no ensino de crianças normais. A f

ragilidade desse preconceito fica hoje mais evidente quando se


considera

que Pestalozzi,

Montessori, Decroly, que criaram sistemas pedagógicos eficazes para a

infância em geral, basearam seus mêtodos na educação de crianças

intelectualmente deficitárias

e só depois o estenderam aos educandos normais. Certamente, como


escreve

Montessori, não seria fácil acreditar na eficácia de um método brotado

das escolas de deficientes

mentais para o ensino de crianças normais.

Seguin, ao apontar a ineficiência da medicina na recuperação dos

oligofrênicos, começara um movimento em favor do que depois se chamou

"cura pedagógica", um método

médico-pedagógico aplicâvel aos deficientes mentais, aos paralíticos,


aos

idiotas, aos raquíticos. Mas, já em 1898, cinqüenta e dois anos após o

TraiJernenf moral

de Seguin, no Congresso Pedagógico de Turim, Maria Montessori espanta a

audiência ao propor a "educa~ão


O séecrlo XX ~- 18t

moral" como o método essencial da educação de deficientes mentais,


visto

tralar-se de um problema muito mais pedagógico que médico. A "cura

pedagógica" é substituída

pela educação moral.

Aqtri se deve letnbrar que essa "educação moral" difere pouco do

I'raíter~umt utvral. Mas essa díferença, embora dítnínuta, é essencial

para se entender a cc~ntribuição

doutritlária (pouco explícíta) de Montessorí ao entendimento da

deficíéncía mental. Ela, diferentemente de Seguin, entende que o método

não deve límitar-se a eficâcia

didática (enquanto modo de ensinar repertórios acadcmicos ou não) trurs

deve alcan~ar a pessoa do educando, seus valores, sua auto-afirmação,

seus níveis de aspiração,

sua auto-estitna e sua aulocot~sciência.

O respeilo às peculiaridades individuais de experiência e de ritmos de

progresso dos educandos, como requisito de um

Fig. 27 - Crian~as de un 2a escola de Londres cantando para Maria

Monlessori na última visita da "Dotioressa" à Inglaterra, aos oitenta

anos de

idade.

182 - Deficiência mentnl

bom método, já estava claro na obra de ltard e de Seguin e eram a

expressão da adequação dos conteúdos às capacidades individuais do

educando. Montessori quer .adequar

a didática também às peculiarídades motívacionaís do 'aluno. E nesse

aspecto que a "Casa dei I3ambini" inova na pedagogia do deficíente;


pois
o método em si, como

técnica de ensino, os recursos didâticos e os materiais empregados são


em

últirna anãlíse os de Itard e Seguin, como a Mestra declara


repetidamente

em sua Pedagogia

científica: ` . . . prossegui em Roma minhas experiências com os

deficientes mentais . . . Guiava-me pelo livro de Seguin e as

experiências de Itard constituíam

para mim verdadeiro tesouro. Além disso, baseada nesses textos fiz

fabricar riquíssimo material didático ... Esse material ... era

maravilhoso instrumento ... mas

passava despercebido entre os deficientes. Compreendi logo a razão . ..

do abandono do método. A convicção de que o educador deve colocar-se no

mesmo nível do educando

leva-o a uma espécie de apalia: ele sabe que educa personalidades

inferiores e é por isso que não os consegue educar . . . É


necessário ...

proceder de maneira contrária

... despertar na alma infantil o homem que ali está."

Seguin, porém, não legou a Montessori apenas técnicas para transmitir

noções. A esse respeito. diz ela: " . . . lendo as suas pacientes

tentativas compreendi que

o primeiro material de que Seguin fazia uso era de natureza espiritual.

Por isso . . . o autor concluíra que a eficácia de sua obra . . . "

implicava "que se preparassem

educadores. E sobre isso Seguin tem uma concepção original: pertencem

conselhos para quem se prepara para o papel de sedutor! Para Seguin, o

educador deveria ter aspecto

físico atraente e voz agradável e sedutora. Deveria cuidar


minuciosamente
de sua pessoa, estudando os gestos e modulação da voz, como se fosse um

artista dramático

preparando-se para entrar em cena, pois deve conquistar almas frágeis e

despreparadas . . . ".

Eis aí, com Seguin, segundo Montessori. a chave secreta do êxito

pedagógico "na educação dos deficientes onde . . . meus esforços foram

coroados do melhor êxito".

Na Pedagogia científica de Montessori é muito freqüente o


reconhecimento

da influência decisiva e constante de ltard e Seguin, cujas obras

principais a autora copiou

à mão "com a paciência de um beneditino" para melhor meditar sobre elas.

O século XX - 183

A primeira "Casa dei Bambini" foi fundada em 1907 e já no mesmo ano uma

segunda Casa, em Roma, foi aberta por M. Montessori. Duas outras


escolas

surgiram em 1908,

t.tma em lZoma e outra em Milão, e rapidamente inúmeras se abriram na

ltâüa e muitos outros países.

Embora os materiais e as técnicas do método Montessorí resultem

diretamente das obras de Seguin e seu mesire Itard, sua dedicação


deriva,

mais remotamente, dos homens

que fizeram a Revolução Francesa, entre os quais ela não se sentiria

estranha, tal a sua devoção à pessoa ~ do educando e seus direitos e


tal

o empenho social que

impregna seu trabalho e seus escritos.

A herança de ltard, pelo sistema Montessori, chegou ao século XX

começando pela Escola Ortofrênica, pela "Casa dei I3ambini", e


desenvolvendo-se pela formação de

professores e pelos escritos da "Dottoressa" acabou por derramar-se em

incontáveis instituições escolares para alunos deficientes e normais e

prolifera até hoje

a ponto de ser difícil encontrar utna escola mais ou menos eficiente e

criativa que não seja, de algum modo, fruto da doutrina montessoriana,

arraigada de tal modo

no pensamento pedagógico e didático que sua influência é já natural,

inadvertida.

, embora tardia, a vitória da doutrina de Seguin e de Itard, assegurada

peta inovação de Montessori ao ajustar o método à individualidade

motivacional do deficiente

(ou outro educando).

Progressista ou reacionária, a doutrina ou teoria da deficiência mental

se constrói inteiramente dentro do saber médico, ao sabor dos fatores

socioculturais e

históricos que regem a evolução desse saber. Dentre esses fatores ê

relevante mencionar o prestígio do "facultativo" na cultura, a


etiologia

orgânica de muitas formas

de deficiência e o comprometimento de atividades corporais em muitos

casos de oligofrenia. Sim, toda a conjuntura histórica determina essa

evolução na conceituação

de deficiência mental, mas essa determinação se exerce através da

evolução da medicina. Os três grandes inovadores da pedagogia para a

deficiência - Itard, Seguin

e Montessori - foram médicos; e o fluxo das idéias essencialmente

pedagógicas é saltatório: não há um processo contínuo de evoluçâo-

involução como ocorre com a teoria.


184 - Deficiência mental

Pareceria que a herança pedagógica salta de Condillac a Itard, deste a

Seguin (sem grande "continuidade") e de Seguin a Maria Montessori,. Mas


é

mais correto admitir

que a evolução pedagógica, na área que nos ocupa, não é correlata nem

paralela à da teoria; que os criadores de idéias e recursos pedagógicos

praticamente tiveram,

cada um, que redescobrir as questões educacionais e didáticas sem que

houvesse entre eles uma continuidade histórica de pensamento. Mas a

revolução montessoriana

no ensino implica o método "fisiológico" de Seguin, que implica, por


sua

vez, a Mémoire e o Rapport de Itard.

De outro lado da análise, a evolução pedagógica no campo que tratamos

aqui influi claramente menos que a teoria, dos médicos, na formação das

atitudes socioculturais.

Fig. 28 - A lição do silêncio, uma das técnicas montessorianas, para a

educação do ouvido e da autodisciplina.

O século XX - 185

Um cálculo funesto

;' O fatalismo da teoria de Morel gerou idéias e argumentos

, como os de Chambard sobre os imbecis, atribuindo a esses uma

preciosidade

ostensiva nos "perversos" e latente nos "inofensivos". E os argumentos

são científicos: baseiam-se em levanta- mentos censitários

como os

da Comissão Francesa e são endossados por autoridades indiscutíveis

da clínica médica, o que também confere validade à tese. Chambard

repete
em 1889 0 funesto erro de Dugdale quando apresentou em

1877 a genealogia dos Juke, tarada pela herança de defeitos como

crime,

pobreza e prostituição. A idéia original de inferir de aspectos

estatísticos, quantitativos portanto, privilégios ou estigmas

qualitativos

para justificar (mais que explicar) discriminações de classe, raça ou

nacionalidade fora de Galton, em 1833. Contudo, ° o uso médico

desse recurso

é contribuição das últimas três décadas do século devida a Dugdale, a

I3ourneville e Sagal, como mostramos há pouco. Mas o

século XX,

que assistiu à floração das "Casa dei Bambini" a inaugurar

a difusão sistemática da pedagogia especial do deficiente mental,

e que registrara

a quase milagrosa eficácia do método Montessori é,

paradoxalmente, o mais extremado na propagação alarmista do

perigo social que o deficiente representa.

A involução teórica e fisiológica é intrigante e o paradoxo

é mais surpreendente que o das posições de Chambard e Dally no

século anterior,

pois então era possível justificar a ingênua ou cruel apreensão

pela carência de conhecimentos biomédicos e psicológicos. Agora,

porém, essa desculpa

não cabe e somente . a sinuosa determinação política da produção

científica poderia explicar a miopia dos alarmistas. Essa

influência vai além e parece contaminar o próprio pensamento


científico.

Que Dugdale, a pedido da polícia, houvesse exposto à uxecração pública


a

família Juke

poderia até ser tolerado, visto seu zelo (elitista) pela

tranqüilidade pública e seu desconhecimento de genética. Mas que

após a primavera das escolas

Montessori, após as publicações mestras de Pasteur, Mendel e

Claude Bernard se ressuscite o fantasma da aniquilação da espécie pela

procriação

dos deficientes mentais só pode explicar-se pela adesão prévia

das novas cassandras a tendências políticas interessadas

186 - Deficiência mental

na divulgação do alarme. Não nos cabe aqui julgar ninguém, nem


afirmarmos

que aquela adesão fosse de má fé ou, de algum modo, irresponsável.


Apenas

se registre que

afora essa adesão prévia, possivelmente até inconsciente, não


conseguimos

explicar o caráter a científico ou mesmo anticientífíco dos escritos

alarmistas de Tredgold

(1909), Fernal (1912), Goddard (1914), llollingworth ( 1920), Tredgold


(

1922), Pintner ( 1933) e Cattell ( 1936).

Em 1909, Tredgold escreveu: "Proponho, como princípio geral, que a


partir

do momento em que uma nação alcance um dado nível de civilização, e em

que a ciência médica

e os sentimentos humanitários concorram para prolongar a vida dos

desequilibrados, se torne então indispensável que essa nação adote leis

sociais que garantam que

esses incapazes não propagarão a sua (sic) espécie."


Após a descrição hedionda que Chambard fez do imbecil, esse trecho de

Tredgold é até ranço, não fossem as palavras finais, em que o autor

parece considerar-se de

espécie outra que a dos desequilibrados ou incapazes. Veja-se agora o


que

disse Fernal, em 1912, lembrando de perto o quadro que nos deixara

Chambard (1889). A bem

da justiça, registre-se a retratação de Fernal quinze anos mais tarde,

quando os efeitos nefastos de sua postura já não podiam ser coibidos:


"O

período atual caracteriza-se

por uma tomada de consciência brutal, tanto por parte dos profissionais

como do público, a respeito da extensão considerável da deficiência

mental, e de sua influência

como fonte de miséria para o próprio doente e sua família, como fator

causal do crime, da prostituição, da pobreza, dos nascimentos


ilegítimos,

da intemperança,

e de outras doenças soíeis complexas. O fardo social e econômico da

deficiência mental simplesmente não é muito conhecido. Os deficientes

mentais constituem uma

classe parasita, rapace, completamente incapaz de bastar-se e de tratar

de seus próprios assuntos. A sua grande maioria vem a tornar-se, de uma

maneira ou de outra,

num encargo público. Causam um desgosto inconsolável à sua família e


são

uma ameaça e um perigo para a comunidade. As mulheres deficientes


mentais

são quase invariavelmente

imorais e, em liberdade, são geralmente agentes de propagação de


doenças

venéreas, ou dão origem a crianças tão deficientes como elas . . . Todo


deficiente mental,

e principalmente o imbecil ligeiro, é um criminoso em potencial, que

necessita apenas de um meio favorável para desenvolver e exprimir suas

tc:ndêricias criminosas."

O século XX - 187

A conferência em que Fernal fez essas declarações não se destinava,

certamente, a discutir aspectos teóricos da deficiência mental, mas

reflete uma postura teórica

comum a muitos, desde Morel. Ao fatalismo hereditarista mescla-se v


viés

passional das descrições e das advertências alarmistas. A superstição

retorna com toda

a sua .força em pleno século XX; não é mais a cólera divina ou as


ameaças

solertes dos demônios que o deficiente carrega. O perigo, agora, é ele

próprio. Não é o

demônio, perverso, que de dentro do oligofrênico ataca e arruina: é o

próprio imbecil ou idiota que traz o dano, e a ruína social. A


etiologia

dessa patologia comprometedora

do futuro da espécie é a hereditariedade da deficiência, qualquer

deficiência mental. A superstição é óbvia quando se considera que o

conteúdo do que se herda é

totalmente desconhecido!

Freqüentemente, ria história dos povos, o medo do desconhecido tem


gerado

ansiedades cuja amenização é buscada na eliminação' das fontes de

incerteza sobre o futuro

da paróquia, da aldeia, da nação ou da espécie: Os demônios eram


expulsos

com os açoites ou a fogueira. Agora que o perigo está no próprio


deficiente é ele que se

deve expulsar.

Um ano após as declarações de Fernal, o alarma recebe argumentos

poderosos das centenas de histórias genealógicas publicadas por


Goddard.

Ele conclui que em 54%

das genealogias "não havia qualquer dúvida sobre o caráter hereditário


da

deficiência mental . . . que se transmite . . . como a cor dos olhos".


A

mais expressiva

dessas genealogias é a dos Kalükak, pseudônimo cuja etimologia mostra a

atitude maniqueísta do trabalho: em grego, kallós significa bonito,

agradável, e kakós equivale

a feio, repulsivo. Tudo começou quando, na época da Revolução Princesa,

um homem descendente de três gerações normais teve filhos de uma mulher

normal e de uma mulher

oligofrênica. Goddard, sabe-se lá por quê, esclarece que a mulher


normal

era legítima esposa e que com a outra não houvera casamento,

acrescentando no gráfico ilustrativo

que ela era desconhecida! Do cruzamento com a esposa descenderam 496

pessoas, entre as quais eram numerosos os médicos, advogados,


pedagogos,

juizes e comerciantes

(Pintner, 1933). Já do outro cruzamento, da "linha ilegítima", houve


480

descendentes, entre os quais os deficientes mentais somavam 1 /3 do

total, três eram criminosos

e, nyna estapafúrdia "prova" de hereditariedade, os demais eram

188 - Deficiência mental


ou filhos ilegítimos (sic) ou prostitutas ou alcoólatras, com acréscimo

de três epilépticos e três criminosos (sic). A total desconsideração de

aspectos sócio-econômico,

obstétricos e gestacionais, bem como a leviandade das classificações e

diagnósticos, não empanaram o fascínio da teoria da hereditariedade da

deficiência mental,

que constitui ainda hoje um obstáculo à educação dos excepcionais. O

caráter mova(ísta é evidente nessas genealogias: no esquema que

representa a descendência tarada,

ilegítima, num certo momento uma mulher oligofrenia uniu-se a um .


hometn

normal e gerou uma filha oligofrenia, mas o gráfico indica "não


casados",

como se a ilegitimidade

da relação fosse relevante para

Fig. 29 - Um esquema genealógico de Goddard (t914) apresentado por

Pintner, em 1933. O esquema é discutido no texto.

O século XX - 189

explicar por que esse homem não alterou a seqüência de heranças


anormais.

f-iollingworth, em 1920, estimou em 80°ó o índice de oligofrenia

hereditárias, e '1'redgold

elevou essa estimativa a 905ó dvís anos mais tarde.

A involução da teoria científica acompanha o mais evidente retrocesso


da

cultura diante do oligofrênico a tnodos de pensamento claramente

perigosos. Não:: cabe

aqui apontar as origens econômicas e políticas desse retrocesso. Mas,

após a marcha regressiva ao asilo piedoso, ao hospício, ao leprosário e


à

masmorra falta apenas


que o oligofrênico retorne à fogueira: para tanto, o estardalhaço

alarmista pseudocientífico começa a justificação prévia das "soluções"

nazistas. Mais argumentos

vieram de Pintner, em 1933: "Posto que a oligofrenia é incurável ... os

únicos recursos que tetnos são a educação, a~ segregação e a

esterilização. A educação .

. . para que se tornem menos perigosos e inúteis para a comunidade. A

segregação da comunidade é prudente porque assim se reduzem as

probabilidades de procriação

de novos oligofrênicos. ~ particularmente necessário separar da

comunidade as oligofrênicas que estiverem em idade de engravidar. A

esterilização é outro meio de

evitar um maior incremento da natalidade de oligofrênicos. Ela foi

adotada e.n alguns estados, embora não se pratique em grande escala.

Ainda é combatida duramente

por motivos legais e sentimentais. Com toda segurança, jamais será

implantada na extensão necessária para diminuir o número de deficientes

mentais."

É preciso convir que, no ano de 1933, afirmações como as de Pintner já

não se podem desculpar pela ínexíslêncía de pesquisa e divulgação em

áreas como genética,

embriologia, microbiologia e endocrinologia.

Poder-se-ia argumentar que as palavras agourenias de Tredgold, Fernal e

Pintner não foram relevantes para a rejeição ou a esterilização, ou o

confinamento do deficiente

mental, dada a sua aparente gratuidade. A bem da prudência, que valha

essa atenuante. ~ inegável, porém, que declarações como essas e


pesquisas

como as "genealogias"
de Goddard chamaram a atenção dos políticos e dos planejadores e

detnógrafos não para os problemas que o deficiente enfrenta, mas para o

problema que o deficiente

representa para a ordem e para a saúde públicas.

Apaixonados, com Fernal, "científicos" com Goddard, os argumentos pró

reclusão e esterilização ficam depois matema

190 - Deficiência mental

ticamente demonstrados e fundamentados quando, em 1936, K. B. Cattell

publica um resultado apocalíptico: o Q.t. nacional médio se reduzia

sensivelmente ao longo

das gerações com o aumento de 24% do total de deficientes na população


a

cada geração. Pelos cálculos de Cattell, de notória seriedade, em 300

anos metade da população

seria constituída por retardados mentais. Esse cálculo funesto e outros

similares foram responsáveis por terríveis medidas governamentais: como

proteção contra a

ameaça consolidou-se e ampliou-se a legislação de caráter eugenista, a

ponto de mais de 20 estados dos EUA disporem de permissão legal para a

esterilização de

idiotas, imbecis e violadores. Em 1940, Castiglioni apresenta uma

intrigante coincidência entre as práticas do nacional-socialismo alemão


e

as de alguns estados

norte-americanos: "Nos últimos anos, de acordo com a concepção alemã de

defesa eugênica da raça, alcançou uma importância crescente o problema


da

esterilização obrigatória

do indivíduo incapaz de gerar filhos sadios ... Dada a aspiração de

evitar quanto possível o nascimento de débeis mentais, epilépticos


futuros criminosos, muitos

eugenistas reconhecem que com nosso conhecimento atual ainda


incompleto,

da transmissão hereditária das qualidades mentais e das combinações

herdadas que vão originar

um criminoso, é impossível fazer uma legislação que produza tais

resultados sem lesar profundamente os direitos do indivíduo e as leis


da

natureza. São numerosos

os indivíduos da mais alta capacidade tonal e mental cujas origens

prometiam muito pouco. Até agora nenhum pais europeu seguiu o exemplo

alemão, nesse particular.

Entretanto, a esterilização compulsória dos criminosos habituais, dos

bêbados e alienados está sendo praticada em alguns estados norte-

americanos." Aparentemente,

o texto. de Castiglioni chove no molhado, mas ele já não se refere à

esterilização ocasional ou consentida: fala em esterilização


compulsória

como prática rotineira.

O cálculo de Cattell provavelmente estava certo, seus dados que eram

contestáveis; sobretudo seus critérios para decidir sobre a incidência


do

retardo ou da deficiência

mental é que eram demasiadamente 'visados. Ao demônio da


degenerescência

junta-se em 1936 um belzebu estatístico. E para afugentar uma hoste de

demônios, um feixe

de exorcismos: os progressos da bioquímica, da genética, do diagnóstico

médico, da obstetrícia e sobretudo da psicologia do desenvolvimento

infantil e da pueri

O século XX - 191
cultura desmistificaram as "genealogias" e os índices estatísticos,

esvaziando a segurança da postura eugenista e fatalista.

O nosso tempo

Esse esvaziamento resultou de três condições: o progresso no


diagnóstico

psicológico da deficiência mental, cujo efeito maior foi invalidar sua

concepção unitária,

apontando diferenças de qualidade, de grau e de recuperabilidade, de

sorte a atenuar os alarmas eugenistas; como outra condição ocorreu o

avanço da medicina a descrever

novas entidades clínicas nas áreas de audiologia, fonação, neurologia e

psiquiatria infantil, o que significou a invalidação das estatísticas


de

Cattell e outì~os,

nas quais todas essas entidades nosológicas haviam sido designadas

afoitamente de deficiências mentais; uma terceira condição foi a

descoberta de possibilidades

de prevenção da deficiência mental e de técnicas especiais de educação.

Esses progressos demoliram os argumentos demográficos e, assim, o apelo


à

eugenia pela esterilização do deficiente; mas, não bastaram para


libertar

a deficiência

da marca metafísica de maldição ou castigo do céu, nem do fatalismo

clínico da hereditariedade inevitável.

Para afastar esses dois fantasmas foram e são fundamentais os


progressos

da bioquímica, da embriologia, da obstetrícia e da genética médica.


Como

exemplo basta

considerar que a velha "degenerescência mental" de Morel hoje é


sinônimo
de: 1) distúrbios no metabolismo de aminoácidos: fenilcetonuria, doença

de Menkes, doença

de Hartnup, citrullinuria, hiperamonemia, aciduria argininosuccínica,

hiperglicemia idiopática, histidinemia, homocistinuria, distrofia

oculorenal de Lowe, cistationiuria,

hiperprolinemia, tirosinose, hiperlisinemia; 2) distúrbios do

metabolisrno de lipídios: degenerações cerebromaculares, moléstia de

Niemann-Pick, moléstia de Gaucher,

leucodistrofia metacromática, síndrome de Bigler e Hsia,

leucoencefalopatias progressivas; 3) distúrbios do metabolisrno de

glucídios: galactosemia, moléstia do

armazenamento de glicogênio, hipoglicemia tipo McQuarrie, hipoglicemia

leucino-sensitiva, intolerância à frutose; 4) distúrbios rnetabólicos

cornplexos: hipercalcetnia

idiopática, hipoparatireoidismo, pseudo

192 - Deficiência mental

hipoparatireoidismo, hipotireoidismo, moléstia de Crigler-Najjar,

dependência de piridoxina, moléstia de Wilson, mucopolisacaridoses,

sindrome de Hurler, síndrome

de Lesch-Nyhan; 5) aberrações cromossômicas: distúrbios autoss6micos;


6)

anomalias neuropatológicas pré-natais: distrofia miotônica, esclerose

tuberosa, neurofibromatose,

angiomatoses, aracnodactilia, ictiose congênita, condrodistrofia,

craniosinostose, hipertelorismo, etc.; 7) infeções maternas na


gravidez:

sífilis, rubéola, etc.;

8) intoxicações maternas; 9) fatores perinatais: lesões de parto,

kerrücterus, eritroblastose fetal, etc. Eis o que significa

"degenerescência mental" na segunda metade do século XX. Esse elenco


basta para exemplificar o exorcismo científico dos demônios criados por

Morel, Dugdale e Goddard. Já para pôr em fuga os fantasmas de Fernal,

Pintner e Cattell, foram importantes, além dos progressos biomédicos,


os

avanços da psicologia e da pedagogia, que no campo da deficiência


mental

se complementar de maneira indissociável. O progresso principal da

psicologia foi a substituição dos rótulos qualitativos (idiota,


imbecil,

débil) ou quantitativos (Q.I. 0-20, 20-50, 50-75, por exemplo) por

critérios de avaliação e classificação baseados em desempenhos


observados

nas mais diversas situações; e pelo emprego combinado de múltiplas

escalas de avaliação com roteiros de levantamento de repertório e

indicação de graus de domínio nas mais diversas tarefas, como o de R.


C.

Pessotti (1981), para citar um exemplo nacional. Quanto aos métodos de

recuperação ou educação, a aplicação humana dos princípios da análise

experimental do comportamento ao ensino dos deficientes foi o grande

progresso, iniciado em 1959, aportado pela psicologia. A eficácia


desses

métodos, indiscutível, tem conduzido a alguns vieses didáticos que

consistem principalmente em minimizar ou mesmo esquecer os aspectos

motivacionais da aprendizagem (que Itard, Seguin e Montessori

brilhantemente exploraram), e em atrelar o ensino às disponibilidades


de

"material cientificamente preparado", como se o material ensinasse


(leia-

se Itard, a respeito), e, o que é pior, como se existisse o material

ideal, empacotável; como se, do ponto de vista sensorial, todos os

deficientes fossem imutáveis e iguais (leia-se a respeito Itard,


Seguin,

Montessori e - por que não? - Froebel e Comenius).


O século XX - 193

194 - Deficiência mental

O século XX - l95

Uma terceira distorção é subestimar os processos orgânicos de maturação

do sistema nervoso central, implicando os mecanismos sensoriais e

efetuadores. Não há pedagogia e didática especial para o deficiente

mental que não derivem de uma teoria psicogenética do desenvolvimento,


na

qual a ontogênese orgânica impõe momentos ótimos para a construção

seqüencial de repertórios motores, sensoriais e intelectuais. ~

necessário que nos libertemos da postura organicista no que ela tem de

fatalismo e unitarismo etiológico. Mas é preciso não resvalar para uma

metafísica da deficiência, avessa à abordagem psicogenética por ignorar

os processos orgânicos de maturação, coordenação e efetuação e mesmo a

etiologia orgânica de um grande número de deficiências mentais. Afinal,


a

mente (deficitária ou não) é uma entidade metafísica: concretos e, de

certo modo, físicos são as estruturas orgânicas, os processos neurais


de

sensação e elaboração da experiência e os de efetuação verbal ou


motora,

bem como os desempenhos da criança nas situações variadas da vida. Se

para algo deve servir um conceito ou definição da deficiência mental, é

sobre esses aspectos do homem que devem ser baseados o conceito, o

diagu5stico e a classificação.

Entre os anos de 1957-1958 e o biênio 1980-1981 o conceito de

deficiência mental vem se transformando, na direção que apontamos, como

mostra uma pesquisa recente de Maestrello (1983). O estudo científico


da

deficiência mental no i3rasit é ainda incipiente; desde a dissertação

pioneira de Ulysses Pernambuco ( 1918) e os esforços "missionários" de


Krynski ( 1979) e outros pesquisadores já se formam no país núcleos

promissores de pesquisa e estudo. Na urgente tarefa de desenvolver

métodos e formar docentes especializados deve-se citar o Programa de

Mestrado em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos, de

onde começam a surgir contribuições valiosas para a teoria e a prática

pedagógica no campo da deficiência mental.

Mas a história dessa evolução brasileira deverá brotar de outra

pena, em outro tempo. E essa história provavelmente mostrará que o

desafio para as últimas décadas deste século é o de ajustar a


metodologia

da avaliação e do ensino às peculiaridades motivacionais de cada

deficiente em diferentes momentos da sua educação. A análise dessas

peculiaridades e de suas transformações é a pedra angular da nova

educação especial que se deve construir c da futuro teoria do século XX

sobre a deficiência mental. Para isso será preciso. de certo modo,


voltar

a Itard, Seguin e Montessori.

referências bibliográficas

; Aristóteles, A política. Hemus, São Paulo, 1966.

Baillarger e Krishaber, "Crétin" - Dictionnaire Encyclopédique i des

Sciences Médicales. Vol. 23, 1879.

Baillarger e Krishaber, "Crétinisme et goitre endémique" - Dictionnaire

Encyclopédigue des Sciences Médicales. Vol. 23, 1879. Benda; C.,

Mongolism and Cretinísm.

Grune & Stratton, Nova York, 194G.

Binet, A. e Th. Simon, "Sur la nécessité d'établir un diagnostique des

états inférieurs de I'inteligence". L'Année Psycho! logique. 1905, 11,

161-190.

Binet, A., e Th. Simon, "Le développement de 1'inteligence chez i les


enfants". L'Année Psychologique. 1908, 14, 1-94. Bréhier, E., Historía
de

la fílosofía.

Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 3.a ed., 1948.

Cardano G., De subtilitate, Nuremberg 1550. Apud Baillarger e


Krishaber,

"Crétinisme et goitre endémique" - Dictionnaire ', Eticyclopédigue des

Sciences Médicales.

Vol. 23, t879.

Castiglioni, A., História da medicina. Editora Nacional, São Paulo,


1947

(trad. do original em inglês, de 1940, 2.a ed.). ', Cattell, R. B., "Is

National Intelligence

Declining?". Eugenics

Review, 1936, XXVIII, 181-203.

Chabrand, Du goítre et du crétinisme. Paris, 1864. Citado por


Baillarger

e Krishaber (1879).

' Chambard, E., "Idiotie" - Dictionnaire Encyclopédígue des , Sciences

Médícales. Vol. 15, 1889.

Chambard, E., "Imbécillité" - Dictionnaire Encyclopédigue des ,


Sciences

Médicales. Vol. 15, 1889.

198 - Deficiência mental

Condillac, E., "Essay sur 1'origine des conaissances humaines", 1746,

apud E. Bréhier, Historia de la filosofía, Editorial Sudamericana,


Buenos

Aires, 1948.

Condillac, E., "Traité des Sensations", 1754, apud E. Brébier, Historia

de la filosofía, Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 1948.

Cytrin, L., e R. S. Louríe, "Mental Retardation", irr A. M. Freedman,


H.
I. Kaplan e B. J. Sadock, Comprehensive Texbook of Psychiatr'y, 2.a
ed.,

Williams & Wilkins,

Baltimore, 1975.

Dennis, W., Readings in the History of Psychology. AppletonCentury-

Crofts, Nova York, 1948.

Dickerson, M., Social Work Practice with the Mentally Retarded. Free

Press, Nova York, 1891.

Diderot, D., e J. D'Alembert, "Idiot" - Encyclopédie ou Dictíonnaíre

Raísonné des Scíences des Arts e des Métiers. j. J. Pellet et Societé

Typographique, Genève-Neufchâtel,

3.e ed., 1779.

Down, J. L., "Observations on Ethnic Classification of Idiots". Londorr

Hosp. Rep. 1866, 3, 259, citado por Pintner ( 1933). Dugdale, R. L.,
The

Jukes. Putnam's

Nova York, 1877, 3.a ed., cit. por Pintner ( 1933).

Emérico, N., Directorium Inquisitorurn ( 1370); versão portuguesa

adaptada: O manual dos inquisidores, Ed. Afrodite, Lisboa, 1972.

Esqulrol, J., Dictioranaire des Sciences Médicales. Paris, 1818, t. 23,

cit. por Perron (I971).

Esquirol, J., Des rnaladies mentales considérés sous les rapports

ntêdical, Irygiénique et rnédico-légal, t. II, Cap. XIV: "De


1'idiotie",

76-132, Paris, Baillière,

1838; apud Netchìne ( 1971 ).

Fernald, W. E., Conferência sobre "O fardo da deficiência menta(,

sinônimo de impotência humana e uma das maiores fontes da miséria e da

degradação humana", 1912;

apud Perrón (1971).


Fitz-Herbert, Sir A., The New Natura l3reviurn, Dublin, 1793 ( 1 ~ ed.,

Londres, 1534), citado por R. Pintner, 1933.

Fodéré, F. E., Traifê du goitre et du crétirlisme. Turim, 1971; Paris,

Bernard, 1800; cit. por Perron (1971).

Freedman, A. M., H. I. Kaplan e B. S. Sadoçk, Conrprehensive Textbook


of

Psychiatry. Williams & Wilkins, Baltimore, 1975, 2.a ed.

Gíbbons, G. (org.), Sechenov: Physíologícal and Psyclrological Works.

Academia de Ciências da URSS, Moscou, 1952/6.

Referências bibliográficas - IJ9

Gilforli, "Asili-scuole e 1'educazione degli idioti" - cit. por E.

Chambard, "Idiotie", Dicfionnaire Encyclopêdique des Sciences


Médicales.

Vol. 15, 1889.

Goddard, I-I. I-I., The Kallikak Family. Macmillan, Nova York, 1914;
cit.

por Pintner (1933).

Guggenbuhl, Die Ileilung ur~d Verhütung des Cretinísrnus, Berlim, 1835,

cit. por E. Seguin, Traiten2ent nToral, lzigièrte et éducation des


idiots

et des autres enfants

arriérés. Baillière, Paris, 1846.

ttard, J., Mérnoire sur les prerniers développrnerrts de Victor de

I'Aveyrorr. I'aris, 1801 , in L. Malson, Les en fants sauvages ( 1964).

(tard, J., Rapport sur les norcveaux développrrrents de Victor de

1'Aveyron. I'aris; 1807 (escrito em 1806), in L. Malson, Les en/ants

sauvages (1964).

Kamen, H., A Inquisição na Espanha. Civilização Brasileira, Rio de

Janeiro, I966.

Kanner, L., A History of the Care and Sfudy of Mentally Retarded. Ch.

Thomas, Springfield, 1964; cit. por Perron ( 1971 ). Kittredge, G. L.,


Witclreraft in Old arid

New England. Nova

Yvrk, 1956, cit. pvr Ii. Kamen (1966).

Kocbcr(c, "Crétinisme et goitre endémique" - Dïctionnaire


Errcyclopédique

des Sciences Médicales, 1879.

Krinsky, S., "Dimensões atuais da prevenção da deficiência mental no

Brasil". Rev. I3ras. Def. Mental. Vol. 14, n.° 3/4, 1979. Locke, J., An

Essay Concerning Hurnan

Undersfanding (1690),

in W. Dennis, Readings in the History of Psycology. Appleton-Century-

Crofts, Nova York, 1948.

Maestrello, H. F. R., "O conceito de deficiência mental em uma revista

especializada: um procedimento para análise". Dissertação de mestrado.

Universidade Federal

de São Carlos, 1983.

Malson, L., Les infants sauvages. Union Générale d'Éditíon, Paris, 1964.

Montessori, M., Pedagogia científica. Flamboyant, São Paulo, 1965.

Morel, P., Traité des dégénérescences physiques, infellectirelles ef

n2orales de l'espèce Imnrairre. Paris, 1857, cit. por Robin:

"Dégénérescence" ~ Dictionnaire

Encyclopêdique des Sciences Médicales, 1882.

Murchison, C., Manual de psicologla ciel níiro. Francisco SeiX,

I3arcelona, 1955 (trad. da 2.a ed. em inglês, 1933).

200 - Deficiência mental

Netchine, G.~ "Idiotas, débeis e sábios do século XIX", in R. Zazzo et

al., A debilidade em questão, Sociocultural Divulgação Cultural, Lisboa

(trad. do francês Les

débilités mentales, Colin, Paris, 1971, 2 ~ ed.). '


Paracelso, T., De generatione stultorum (Genebra, 1552 e 1553), apud

Baillarguer e Krishaber, "Crétinisme et goitre endémique" -


Dictionnaire

Encyclopédique des

Sciences Médicalc.~s, 1879.

Pernambucano, U., Classificação das crianças anormais; a parada do

desenvolvimento intelectual e suas formas; a instabilidade e a astenia

mental. Imprensa Industrial,

Recife, 1918.

Perron, R., "Atitudes e idéias face às deficiências mentais", in R.


Zazzo

et al., A debilidade em questão, Sociocultural Divulgação Cultural,

Lisboa (trad. do francês

Les débilités mentales, Colin, Paris, 1971, 2.a ed.).

Pessotti, R. C., "Uma análise crítica de avaliações psicológicas do

deficiente mental: proposição de um roteiro de avaliação de habilidades

de auto-cuidados a partir

de critérios de execução". Dissertação de mestrado. Universidade


Federal

de São Carlos, 1982.

Pinel, Ph., Traité médico-philosophique sur l'aliénation mentale ou la

manie. Paris, Richard Caille et Ravier, 1801. Apud E. Seguin,


Traitement

moral, Baillière,

Paris, 1846.

Pintner, R., "EI nino deficiente mental u oligofrenico" (1933), in C.

Murchison, Manual de psicología del niuo, Francisco Seix, Barcelona,

1955.

Platão, A República (459 d), cit. por J. Hirschberger, História da f

ilosof ia na ar:figüidade, Herder, São Paulo, 1969.


Robin, C., "Dégénérescence" - Dictionnaire Encyclopédigue des Sciences

Médicales, 1882.

Rousseau, J.-J., Discours sur l'origine de I'inégalité parrni les


hommes

(1754), apud L. Malson, Les enfants sauvages, Union Générale


d'Éditions,

Paris, 1964.

Sechenov, J., "Reflexes of the Brain" (1863/6), in G. Gibbons (org.),

Sechenov - Selected Physiological and Psychological Works. Academia de

Ciências da URSS. Moscou,

1952/6.

Seguin, E., Traitement moral, hygiène et éducation des idiots et des

autores enfants arriérés. Baillière, Paris, 1846.

Singer, C., e E. A. Underwood, A Short History of Medicin. Oxford

University Press, Nova York, 1962.

Sprenger, I., e H. Kramer, "Malleus maleficarum", cit. por L. Cytrin e


R.

S. Lourie in A. M. Freedman et al., Comprehensive Textbook of

Psyclziatry, Baltimore, Williams

& Wilkins, 1975. 2." ed.

Referências bibliográficas - 201

Teixeira Brandão, Elernerrtos fundamentais de psiquiatria clinica e

forense. Leite Ribeirv e Maurillo, Rio de Janeiro, 1918.

'hredgold, A. F., Mental Deficiency (amentia). Wood, Nova York, 1922,


4.a

ed., cit. por Pintner (1933).

Willis, T., "Cerebri anatome", Opera omnía. Lyon, 1681, cit. por
Pintner

(1933).

Zazzo, R., et al., A debilidade ern questão. Sociocultura Divulgação

Cultural, Lisboa (trad. do francês: Les débilités Mentales. Colin,


Paris,
1971 , 2.~ ed.).

Você também pode gostar