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Lenda de Santa Iria

Contam velhos documentos que na antiga Nabância nasceu um dia uma linda menina
chamada Iria, ou Irene, filha de Hermígio e Eugénia, gente nobre da região. Educada
por duas irmãs de seu pai, Iria entrou mais tarde para um mosteiro dirigido por seu
tio materno, o abade Célio.
O abade apressou-se a vir falar-lhe.
— Minha filha... Sentes coragem de abandonar o mundo para te vires refugiar aqui?
A donzela sorriu timidamente.
— Senhor meu tio, saiba que estou disposta a seguir apenas a vontade de Deus.
Houve um ligeiro silêncio, em que os olhos do abade não deixavam o rosto da bela
Iria. Por fim, ele falou:
— Louvo as tuas palavras. Velarei por ti. Mas… és nova e formosa... As poderosas
tentações do mundo poderão vir ainda chamar-te!
Que estranha luminosidade transformou a expressão de Iria ao ouvir as palavras do
abade Célio! A sua voz perdeu toda a timidez.
— Nada receie, senhor meu tio. As tentações do mundo poderão chamar-me, que eu
não as escutarei. Sou uma serva do Senhor... e nada mais pretendo ser.
— Pois que se faça a vontade de Deus, minha filha... Vai juntar-te às tuas
companheiras. Elas esperam por ti.
Serenamente, tal como tinha entrado, a sobrinha do abade Célio retirou-se. A tarde
perdia aquele dourado fulvo que dá calor aos corpos e uma sensação de confiança a
quem a contempla. E a bela Iria, de cabeça reclinada, olhos postos nas lajes do
convento, foi juntar-se às companheiras, levando no coração e nos lábios a mais pura
das orações. À sua volta tudo era tranquilidade. Iria tinha o pensamento todo
entregue a Deus e usufruía uma felicidade quase extraterrena!
Certa vez, porém, um caso imprevisto veio alterar um pouco essa tão doce
tranquilidade. Era então senhor da Nabância o príncipe Castinaldo, casado com a
bela Cássia e pai estremoso de Britaldo, inspirado trovador.
Pois, Britaldo costumava compor as suas trovas junto à pequena igreja de S. Pedro.
Um dia em que lá se encontrava, viu passar um grupo de monjas. Entre elas,
destacava-se pela sua juventude e beleza aquela que a História designou com o nome
de Iria. E nesse instante, segundo a lenda conta, o moço príncipe Britaldo ficou
apaixonado por ela. Iria, de olhos baixos e coração ao alto, nem sequer deu pela sua
presença. Mas Britaldo, louco de entusiasmo, sentiu ter encontrado aquela por quem
ansiava o seu exigente coração e não mais a pôde esquecer. E de tal modo esse amor o
abrasou, que caiu doente com febres altas e em perfeito delírio.
No palácio do senhor de Nabância entrou a dor e morreu a alegria. A mãe do príncipe
velava com carinho à cabeceira do filho. Eram, porém, quase desconexas as frases que
conseguiam ouvir-lhe:
— Aqueles olhos... Meu Deus! Será possível que ela não tivesse reparado em mim? Eu
morro... eu sofro... Preciso vê-la! Preciso que ela me diga alguma coisa!
Aflitos, os pais de Britaldo chamaram físicos dos mais afamados. E a resposta destes,
depois de observarem o doente, era sempre a mesma: «É preciso fazer-lhe a vontade.
Chamem a donzela que originou tudo isto...»
Porém, o senhor de Nabância, sabendo já quem era aquela por quem seu filho se
definhava, sentia-se impotente para lhe fazer a vontade.
Certa manhã, com o desespero na alma, ao príncipe Castinaldo pareceu que o filho
estava um pouco mais sereno, e então ousou falar-lhe:
— Britaldo, é preciso que te cures! Afasta-a dos teus pensamentos, meu filho! Tu és
um homem. Ela pertence a Deus!
Ele olhou o pai, num desvario, e como resposta gritou, soerguendo-se no leito:
— Vão buscá-la! Quero-a aqui, junto de mim! Não ouvem? Tragam-na, miseráveis! Ou
preferem que eu morra? Eu não posso mais! Que Deus vos amaldiçoe se não me
fizerem a vontade!
O príncipe Castinaldo endireitou-se na cadeira onde se sentara junto do filho. Sofria
quase tanto como ele. Meneou a cabeça, levantou-se de súbito e, tomado de firme
resolução, abandonou o aposento. Como num gemido, o filho ainda lhe disse:
— Pai! Eu amo-a com todo o resto da minha vida! Fazei-me a vontade, meu pai!
Quero vê-la… vê-la!
Como resposta, apenas se ouviram os soluços abafados da princesa sua mãe e das suas
damas de companhia...
Ainda o Sol abraçava com todo o ardor a terra sua enamorada, quando o senhor da
Nabância saiu do gabinete onde estivera conversando com o abade Célio. Como pai e
soberano, o príncipe Castinaldo expôs o pedido de seu filho enfermo e ajuntou que era
essa também a sua vontade. Não sabendo opor-se a uma ordem dada sob a aparência
de um pedido, o abade Célio, um tanto confuso, prometeu não só falar com a
sobrinha, como ainda o seu próprio auxilio. Prometeu e cumpriu.
Iria ouviu o tio com assombro e aflição. Seria possível o que o seu cérebro entendia?
Mas como havia ela de ser útil ao príncipe, sem fugir à sua promessa a Deus? Com voz
serena e incisiva, o abade tentava explicar-lhe a situação:
— Compreendes, sobrinha da minha alma? O moço príncipe somente se poderá salvar
se tu quiseres...
Iria afligia-se cada vez mais.
— Mas, senhor meu tio... Eu não posso amar o príncipe... Todo o meu amor é para
Deus!
— Decerto... Decerto. Basta que lhe fales, que lhe sorrias... Ele salvar-se-á e a nada
mais és obrigada.
Iria baixou a cabeça. Os olhos inundaram-se-lhe de lágrimas.
— Que pena eu sinto de ele se ter apaixonado por mim!...
O abade tocou-lhe na fronte.
— Que queres? Há desvarios que atravessam o coração e corrompem a alma!
Iria levantou o olhar e foi poisá-lo num crucifixo de marfim colocado na parede. Dos
seus lábios saiu uma inaudível oração. Depois, voltando-se para o abade que a
interrogava com o olhar, decidiu-se:
— Vamos então, meu tio. Se é que eu, na verdade, o posso salvar!
E rematou num suspiro:
— Pobre príncipe!
A chegada do abade Célio e de sua sobrinha ao palácio senhorial constituiu um
acontecimento. Britaldo, avisado da presença de Iria, acalmou-se subitamente, e aos
seus lábios assomou um sorriso de felicidade. Quis vestir-se e recebê-la na sua salinha
predilecta.
Foi bem rara, na verdade, essa entrevista. Dois corações frente a frente,
transbordando de amor. Um por uma estranha donzela, tão bondosa como linda.
Outro, por Aquele cujo reino não é deste mundo. E o diálogo começou assim:
— Oh, senhora, como vos agradeço a vossa visita! Vedes bem?... A febre passou...
Sinto-me outro! Estou salvo!
— Podeis agradecer a Deus, senhor meu príncipe...
— Não! Tudo quanto tenho a agradecer... é a vós… e ao vosso amor!
— Perdoai, senhor! Estais enganado no que respeita ao amor... Quero ser sincera
porque vós assim o mereceis... Eu... nunca vos poderei amar!...
— O quê? Isso é possível?
— Sim, meu senhor!
— E porquê? Há outro homem na vossa vida?
— Ninguém mais, senhor. Apenas Deus. A Ele me consagrei e d’Ele serei para sempre.
Por isso vos peço, meu bom príncipe, que vos cureis e que deixeis de pensar em mim.
— Aprecio a vossa sinceridade. Um pedido vosso é para mim como uma ordem.
Porém, se me permitis, imponho uma condição...
— Qual, senhor meu príncipe? Pensai bem no que ides dizer!
— Já pensei. Ouvi, minha bela Iria... Procurarei curar-me e voltar a ser o mesmo de
outrora, já que assim o desejais. Procurarei até esquecer o meu amor por vós… desde
que me prometeis que jamais dareis o vosso amor a outro homem...
— Assim o prometo. E Deus, que nos está escutando, não me deixará faltar à
promessa!
— Adeus, Iria...
— Adeus, meu senhor...

O tempo foi passando sobre esta estranha entrevista.


Britaldo, aparentemente, voltava a ser o mesmo de outrora. Porém, os seus versos
tornaram-se mais tristes. Dir-se-ia que todos eles eram escritos com penas da própria
saudade. Mas certo dia, vozes cruéis e invejosas meteram nos ouvidos do nosso
príncipe que a jovem monja o atraiçoara, quebrando a promessa e amando outro
homem...
Então o príncipe, de novo alucinado, logo ali jurou vingança. Um plano diabólico
nasceu no seu cérebro doentio. Sentia necessidade de lavar a afronta. Ela enganara-
o... Quebrara a promessa... Pois ela saberia quem era Britaldo, quando ultrajado!...
Sentindo na alma a cavalgada do ciúme e do desespero, o príncipe descobriu que Iria,
depois das matinas, tinha por costume dirigir-se até junto do rio Nabão. Isso fez-lhe
nascer a suspeita de que era esse o local dos seus pérfidos encontros... E, então, ali a
esperou, dominando a sua impaciência.
Quando Iria chegou e o viu, fitando-a de olhos em brasa, sentiu gelar-se-lhe o coração.
Todavia, conseguiu perguntar.
— Vós aqui, senhor meu príncipe? Que vindes fazer?
A resposta terrível não se fez esperar:
— Matar-vos, traidora! Castigar a vossa perfídia!
E mais rápido ainda do que a palavra, o príncipe Britaldo apunhalou aquela que fora a
mais devota, a mais pura monja do seu tempo!
Cometido o crime, semilouco, Britaldo olhou a morta que sorria de olhos voltados
para o Céu. E a tremer de medo, sentindo nos ouvidos um zumbido estranho, ele viu a
necessidade de fazer desaparecer o corpo agora inanimado. Com gestos febris,
aproximando-se de novo, despiu-lhe o hábito e atirou Iria às águas do Nabão. As
águas do Nabão levaram-no à corrente do Zêzere, e este ao rio Tejo. Assim
desaparecia o corpo da bela e pura monja chamada Iria, ou Irene.

Entretanto, o abade Célio descobrira o nefando crime; e, seguido pelo povo, começou
a procurar por toda a parte o corpo daquela que fora objecto do amor e da loucura
dum homem, embora todo o seu pensamento fosse apenas para Deus.
Esse corpo tão procurado, só o vieram encontrar diante da cidade deScalabis. Porém,
ele já não andava vogando ao sabor das águas. Deus fizera um grande milagre àquela
que sempre O procurara servir e amar. O corpo de Iria estava encerrado num sepulcro
de mármore, tão belo que olhos humanos não tinham visto ainda outro igual. E diante
de tal prodígio, o povo ajoelhou maravilhado e rendido. E desde então, reza a lenda, a
cidade de Scalabis ficou a chamar-se a cidade de Santa Iria — nome que mais tarde se
transformou em Santarém.

É esta a lenda de Santa Iria.


Seis séculos e meio mais tarde, outra santa quis venerá-la: a rainha Santa Isabel. De
novo as águas do Tejo se abriram, revelando o milagroso túmulo. E a fim de que
ficasse perpetuado para sempre tal milagre, a Rainha Santa aí mandou colocar um
padrão que ainda hoje lá se encontra: o padrão de Santa Iria, na Ribeira de Santarém.
SANTA IRIA
SANTA IRIA
Era uma vez ... ali para os lados da Torre havia um lugar chamado de
Magueixa.
Lá viviam Emírgio e a sua mulher Eugénia Magueixa, assim apelidada por ter
nascido naquele pequeno lugar.
Como eram muito trabalhadores e económicos, juntaram uns dinheiros e
construíram uma casa a que o povo passou a chamar a Torre da Magueixa, em
lembrança
do nome da mulher do Emírgio.
Tempos depois nasceu naquela casa uma menina a quem seus pais puseram o nome
de Iria.
Passaram os anos da infância de Iria. E, um dia, os pais mandaram-na para um
recolhimento de uma terra chamada Nabância - é hoje a cidade de Tomar - onde
viviam duas tias de Iria, irmãs do pai Emírgio, que se chamavam Casta e
Júlia.
Em Nabância também vivia um outro parente de Iria, que era abade dos
religiosos de S. Bento e que recomendou Iria a um santo monge chamado
Remígio.
Iria mostrara sempre uma profunda Fé, uma devoção total, e, por isso, muito
bondosa e caridosa, começou a tornar-se notada pelos seus sentimentos
cristãos.
Tão profundamente sentia a Verdade pregada por Cristo que procurava a
clausura para melhor se sentir junto de Deus, e só saía no dia de S. Pedro
para ir
rezar na Igreja deste Apóstolo.
Por aquele tempo vivia em Nabância um jovem chamado Bristaldo, filho do
Governador, que ao ver na Igreja de S. Pedro a Iria, muito linda, muito
formosa,
se apaixonou por ela.
A paixão de Britaldo foi tão forte que adoeceu gravemente.
Iria, por inspiração divina, soube da doença do rapaz e da razão que a
provocara e, por caridade, foi visitá-lo, desenganando-o dos seus desejos de
se casar
com ela. Então Britaldo pediu a Iria que nunca casasse nem amasse a outro
rapaz, o que Iria prometeu imediatamente. Com esta promessa tão prontamente
feita,
o filho do Governador sentiu-se logo melhor.
Mas ... o bom Monge Remígio, a cujos cuidados Iria havido sido entregue,
começou a sentir-se apaixonado pela linda Iria e a tentá-la.
Iria não aceitou as tentações do Monge Remígio, o que levou este a tramar
uma vingança contra a doce e inocente Iria. E a vingança consumou-se.
O monge, que tinha muito de sábio, preparou uma beberagem com ervas, que
conhecia, e que provocou a inchação do ventre, dando a aparência de uma
falta.
Iria bebeu a tisana de boa fé. E o ventre de Iria começou a inchar, e quanto
mais os dias corriam mais ele se avolumava e mais a sua fama de Santa
desaparecia.
Todas passaram a duvidar da pureza e da virtude de Iria. Britaldo, o jovem
filho do Governador, ao saber o que constava e julgando que Iria faltara à
sua
promessa, jurou vingar-se e ordenou a um dos seus familiares que a fosse
matar.
E o familiar matou Iria, no dia 20 de Outubro de 653, degolando-a, quando
Iria, sempre pura e inocente, estava ajoelhada e de mãos postas a rezar, à
beira
do rio Nabão, que passava junto ao Convento onde estava Iria. E o corpo foi
rio abaixo.
No mesmo momento Célio, também tio de Iria, por revelação de Deus, sentiu a
trama de Remígio e conheceu o sítio onde estava o corpo de Iria. E tudo
revelou
ao povo que, cheio de dó e reconhecendo a inocência e a pureza de Iria, deu
graças a Deus e foi buscar, em solene procissão, à baixa de Santarém chamada
ribeira, o corpo de Iria.
Ali chegados deu-se o grande milagre de se abrirem as águas do Tejo, na
margem, até onde estava o corpo imaculado da Santa, sobre um túmulo feito
pelas
mãos diáfanas dos Anjos.
Era o desejo de seus conterrâneos levar o corpo de Santa Iria, mas ninguém o
pôde fazer. Ninguém o movia. Apenas lhe levaram, para recordação, alguns
cabelos
e pedaços do pano da camisa que milagrosamente serviram para tratamento de
cegos e aleijados no Convento de Santa Iria.
Muitos milagres, segundo dizem, se devem a esta Santa, que séculos mais
tarde, teve a visita de outra Santa, a Rainha Santa Isabel.
E na Torre, na terra que a viu nascer, ainda hoje existe uma capela da
invocação de Santa Iria que, segundo a tradição oral, foi construída no
mesmo sitio
onde esteve edificada a casa onde Ela nasceu.

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