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Sobre o autor
Fonte: https://educacao.uol.com.br/biografias/gaston-bachelard.htm
Sobre a Obra
Uma das obras mais importantes dedicadas por Bachelard ao estudo da imaginação
poética e criadora. Descrevendo fenomenologicamente as imagens referentes ao
espaço – aquelas que constituem “os valores da intimidade do espaço interior” , o
filósofo mostra a função de imagens como casa, cofre, ninho, cocha, e traça “ a
dialética do pequeno e do grande sob o signo da Miniatura e da Imensidão”.
Introdução
Para um leitor de poemas , o apelo a uma doutrina que traz o nome, frequentemente
mal compreendido, de fenomenologia, corre o risco de não ser entendido. No entanto,
fora de toda doutrina, esse apelo é claro: pede-se ao leitor de poemas para não tomar
uma imagem como objeto, menos ainda como substituto do objeto, mas perceber-lhe a
realidade específica. É preciso para isso associar sistematicamente o ato da
consciência criadora ao produto mais fugaz da consciência: a imagem poética. (p.97)
Capítulo I
Pois a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz frequentemente, nosso
primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo.
Até a mais modesta habitação, vista intimamente, é bela. (p.112)
Nosso objetivo está claro agora: é necessário mostrar que a casa é um dos maiores
poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem.
Nessa integração, o princípio que faz a ligação é o devaneio. O passado, o presente e
o futuro dão à casa dinamismo diferente, dinamismos que frequentemente intervêm,
às vezes se opondo, às vezes estimulando-se um ao outro. (p.113)
É graças a casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas e se
a casa se complica um pouco, se tem porão se sótão, cantos e corredores, nossas
lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados. voltamos a ele durante
toda a vida em nossos devaneios. Um psicanalista deveria portanto dar atenção a
essa simples localização das lembranças. (...) A topoanálise seria então o estudo
psicológico sistemático dos lugares físicos de nossa vida intima. (p.114)
Todos os espaços de intimidade se caracterizam por uma atração. Repitamos uma vez
mais que seu ser é o bem-estar. Nessas condições, a topoanálise tem a marca de
uma topofilia. É no sentido dessa valorização que devemos estudar os abrigos e os
aposentos. (p.117)
Para que serviria, por exemplo, dar a planta do aposento que foi realmente o meu
quarto, descrever o pequeno quarto no fundo de um sótão, dizer que da janela,
através de um buraco no teto, via-se a colina? Só eu, nas minhas lembranças de outro
século, posso abrir o armário que guarda ainda, só para mim, o cheiro único, o cheiro
das uvas que secam sobre a sebe.( ...) quando é um poeta que fala, a alma do leitor
ecoa. (p.118)
A casa natal, mais que um protótipo de casa, é um corpo de sonhos. Cada um desses
redutos foi um abrigo de sonhos. E o abrigo muitas vezes particularizou o sonho . nela
aprendemos hábitos de devaneio particular. A casa, o quarto, o sótão em que
estivemos sozinhos, dão os quadros para um devaneio interminável, para um
devaneio que só a poesia poderia, por uma obra, acabar, perfazer. (p.119)
Capítulo II
A casa e o universo
Indicamos no capítulo anterior que há sentido em dizer que se “lê uma casa”, que se
“lê um quarto”, já que o quarto e a casa são diagramas de psicologia que guiam os
escritores e os poetas na análise da intimidade. (p.134)
Mas a fenomenologia da imaginação não se pode satisfazer com uma redução que faz
das imagens meios secundários de expressão: a fenomenologia da imaginação sugere
que se vivam diretamente as imagens como acontecimentos súbitos da vida. Quando
a imagem é nova, o mundo é novo. (p.140)
Com efeito a casa é, a primeira vista, um objeto que possui uma geometria rígida.
Somos tentados a analisá-las racionalmente. Sua realidade primeira é visível e
tangível. É feita de sólidos bem talhados, de vigas bem encaixadas. A linha reta é
dominante. O fio de prumo deixou-lhe a marca de sua sabedoria, de seu equilíbrio. Tal
objeto geométrico deveria resistir a metáforas que acolhem o corpo humano. Mas a
transposição ao humano se faz imediatamente, desde que se tome a casa como um
espaço de conforto e intimidade, como um espaço que deve condensar e defender a
intimidade. Abre-se então, fora de toda racionalidade, o campo do onirismo. (p.140)
Toda grande imagem é reveladora de um estado de alma. A casa, mais ainda que a
paisagem, é “um estado de alma”. Mesmo reproduzida em seu aspecto exterior, fala
de uma intimidade. (155)
Capitulo III
Como se sabe, a metáfora da gaveta assim como algumas outras como “terno de
confecção” são utilizadas por Bergson para exprimir a insuficiência de uma filosofia de
conceito. Os conceitos são gavetas que servem para classificar os conhecimentos; os
conceitos são ternos de confecção que desindividualizam os conhecimentos vividos.
Para cada conceito há uma gaveta no móvel das categorias. O conceito é um
pensamento morto, já que ele é, por definição, pensamento classificado.(p.157-158)
Uma metáfora não deveria ser senão um acidente de expressão e que há perigo em
fazer dela um pensamento. A metáfora é uma falsa imagem já que não tem a virtude
direta de uma imagem produtora de expressão, formada por devaneio falado. (p.159)
O armário e suas prateleiras, a escrivaninha e suas gavetas, o cofre e seu fundo falso
são verdadeiros órgãos da vida psicológica secreta. Sem esses “objetos” e alguns
outros igualmente valorizados, nossa vida íntima não teria modelo de intimidade. São
objetos mistos, objetos-sujeitos. Tem, como nós, para nós, por nós, uma intimidade.
(p.160)
No armário vive um centro de ordem que protege toda a casa contra uma desordem
sem limite. (p.160)
Capítulo IV
O Ninho
Com o ninho, sobretudo com a conha, encontraremos toda uma série de imagens que
procuraremos caracterizar como imagens primeiras, como imagens que suscitam em
nós uma primitividade. (p.169)
No nosso mundo dos objetos inertes, o ninho recebe uma valorização extraordinária.
Deseja-se que ele seja perfeito, que traga a marca de um instinto muito seguro. Desse
instinto todos se admiram, e o ninho passam facilmente por uma maravilha do mundo
animal. (p.169)
A casa-ninho nunca é nova, poder-se-ia dizer, de uma maneira pedante, que ela é o
lugar natural da função da habitar. A ela se volta, ou se sonha voltar, como o pássaro
volta ao ninho, como o cordeiro volta ao aprisco. Este signo do retorno marca infinitos
devaneios, pois os retornos humanos se fazem sobre o grande ritmo da vida humana,
ritmo que atravessa os anos, que luta contra todas as ausências através do sonho.
Sobre as imagens aproximadas do ninho e da casa repercute um componente de
íntima fidelidade. (p.174)
Capítulo V
A concha
À concha corresponde um conceito tão claro, tão seguro, tão rígido que, por não poder
simplesmente desenhá-la, o poeta, reduzido a falar sobre ela, fica a princípio com
deficiência de imagens. É interrompido em sua evasão para valores sonhados pela
realidade geométrica das formas. E as formas são tão numerosas por vezes tão
novas, que, a partir do exame positivo do mundo das conchas, a imaginação é vencida
pela realidade. (p.178)
O belo texto de Paul Valéry escreveu sobre o título “os moluscos” é iluminado de
espírito geométrico. Para o poeta: “um cristal, uma flor e uma concha, desprendem-se
da desordem comum do conjunto das coisas sensíveis. São objetos privilegiados, mais
inteligíveis para a vista, se bem que mais misteriosos para a reflexão que todos os
outros que vemos indistintamente. (...) Paul valéry fica muito tempo diante do ideal de
um objeto modelado, de um objeto cinzelado que justificasse seu valor de ser, pela
bela e sólida geometria de sua forma, deixando de lado preocupação simples de
proteger sua matéria. O lema do molusco seria então: é preciso viver para construir
sua casa e não construir sua casa para viver nela. (p.178-179)
O fenomenólogo que quer viver as imagens da função de habitar não deve seguir as
seduções das belezas exteriores. em geral, a beleza exterioriza, incomoda a
meditação da intimidade. (p.179)
Com um detalhe poético, a imaginação nos coloca diante de um mundo novo. Desde
então o detalhe prima sobre o panorama. Uma simples imagem, se for nova, abre um
mundo. Visto das mil janelas do imaginário, o mundo é mutável . ele renova,então, o
problema de fenomenologia. (p.197).
Capítulo VI
Os Cantos
Recolher-se no seu canto é, sem dúvida, uma expressão pobre. Mas, se ela é pobre, é
também aquela que possui numerosas imagens, imagens de uma grande antiguidade,
talvez mesmo imagens psicologicamente primitivas. Muitas vezes, quanto mais
simples é a imagem, maiores são os sonhos. (p.199)
Capitulo VII
A miniatura
É preciso no entanto dar uma certa objetividade a essas imagens, pelo próprio fato de
que elas recebem a adesão, até mesmo interesse, de numerosos sonhadores. Pode-
se dizer que essas casas em miniatura são objetos falsos providos de uma
objetividade psicológica verdadeira.o processo de imaginação é aqui típico. (p.206)
A miniatura literária – isto é, o conjunto das imagens literárias que tratam das
inversões da perspectiva das grandezas – ativa valores profundos. (p.207)
Capitulo VIII
A imensidão íntima
A imensidão está em nós. Está presa a uma espécie de expansão do ser que a vida
refreia, que a prudência detém, mas que volta de novo na solidão. Quando estamos
imóveis, estamos além; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o movimento
do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinâmicas do devaneio
tranquilo. (p.229)
Capítulo IX
O ser do homem é um ser não fixado.(...) a vista diz muitas coisas de uma vez. O ser
não se vê. Talvez se escute. O ser não se desenha. Ele não é cercado pelo nada.
Nunca está certo de encontra-lo ou reencontrá-lo como sólido aproximando-o de um
centro de ser. (p.249)
De qualquer modo, o interior e o exterior vividos pela imaginação não podem mais ser
tomados na sua simples reciprocidade; por conseguinte, não se referindo mais ao
geométrico para dizer das primeiras expressões do ser, escolhendo saídas mais
concretas, mais fenomenologicamente exatas, nós nos damos conta de que a dialética
do interior e do exterior se multiplica e se diversifica em inúmeros matizes. (p.250)
Precisamente, a fenomenologia da imaginação poética nos permite explorar o ser do
homem como o ser de uma superfície, da superfície que separa a região do próprio
ser da região do outro. Não esqueçamos que nessa zona de superfície sensibilizada,
antes de ser é preciso dizer. Dizer, senão aos outros ao menos a si mesmo. E avançar
sempre. (p.253-254)
Capitulo X
A fenomenologia do Redondo
Do enorme livro de Jaspers: Von der Wahrheit, extraio este julgamento lacônico:
“jedes dasein scheint in sich rund” (pág.50). “todo o ser parece em si redondo” (...)
assim, sem comentário, Van Gogh: “ a vida é provavelmente redonda” e joe Bousquet,
sem conhecer a frase de Van Gogh, escreve: ‘Disseram-lhe que a vida era bela. Não!
A vida é redonda”. Enfim, eu gostaria de saber em que parte da sua obra La Fontaine
disse: ‘Uma noz me faz redondinha”(...) Com esses quatro textos de origem tão
diferentes fica o problema fenomenológico claramente colocado. Devemos resolvê-lo
enriquecendo-o com outros exemplos, reunindo outros dados, tendo o cuidado de
reservar a esses dados sua característica de dados íntimos, independentes dos
conhecimentos do mundo exterior.
Diríamos então: das Dasein ist rund, o ser é redondo. Pois, acrescentar que parece
redondo, é guardar a dicotomia do ser e da aparência; enquanto que se quer dizer
todo o ser em sua redondeza. Não se trata de contemplar, mas de viver o ser em seu
imediatismo. A contemplação se desdobraria em ser contemplante e ser contemplado.
A fenomenologia, no domínio restrito em que trabalhamos, deve suprimir qualquer
intermediário, qualquer função superposta. Para se ter a pureza fenomenológica
máxima, é preciso tirar da fórmula jaspersiana tudo o que mascaria o valor ontológico,
tudo o que complicaria a significação radical. (p.262)