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As Antinomias de Kant

Immanuel Kant nasceu na Prússia em 1724. Tinha 46 anos quando foi nomeado
professor titular da Universidade de Königsberg – sua cidade natal –, responsável pela
cátedra de Lógica e Metafísica. Onze anos depois, em 1781, publicou a sua obra mais
importante, a Crítica da Razão Pura, que haveria de ter uma segunda edição,
consideravelmente revista (e com um novo prefácio), em 1787. O objectivo principal de
Kant nesta obra era investigar a possibilidade de a metafísica se constituir como uma
verdadeira ciência. Nessa investigação, Kant considerou que o problema central seria o
de saber como são possíveis os juízos sintéticos a priori, uma vez que é em tais juízos
que o conhecimento metafísico, se for possível, se expressará.

Kant chegou a uma conclusão negativa, segundo a qual a metafísica não é possível, se a
entendermos no sentido antigo (“dogmático”) do termo, enquanto conhecimento a
priori das coisas em si e do supra-sensível (onde se incluem, nomeadamente, Deus, a
liberdade e a imortalidade). Nós só conhecemos as coisas como fenómenos, quer dizer,
enquadradas nas formas da intuição e do pensamento, como objectos de uma
experiência possível. A ideia de um conhecimento metafísico transcendente, com o qual
pudéssemos ultrapassar os limites da nossa experiência, constitui uma ilusão. Trata-se,
no entanto, de uma ilusão inevitável, que tem origem na dialéctica natural da razão
humana. Como alternativa, Kant propõe uma nova concepção da metafísica, a que
também chama “filosofia transcendental”, cuja tarefa consistiria em reunir num sistema
coerente todos os conceitos e todos os princípios que constituem condições a priori da
possibilidade da própria experiência.

O conhecimento humano, segundo Kant, requer a colaboração da sensibilidade –


faculdade das intuições, através das quais os objectos nos são dados – com o
entendimento – faculdade dos conceitos, através dos quais os objectos são pensados.
“Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas. Pelo que é
tão necessário tornar sensíveis os conceitos (isto é, acrescentar-lhes o objecto na
intuição) como tornar compreensíveis as intuições (isto é, submetê-las aos conceitos).
[...] O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada podem pensar. Só pela sua
reunião se obtém conhecimento” (Kant 1985: 89). Mas, a rigor, o entendimento não é a
única faculdade que opera segundo conceitos, pois isso também é verdade da razão. A
distinção kantiana entre entendimento e razão parece ser sobretudo uma distinção entre
dois modos de operar com conceitos (ou duas maneiras de pensar): na primeira,
aplicando-os aos objectos da experiência; na segunda, formando novos conceitos, aos
quais nenhum objecto de qualquer experiência possível corresponde. Homenageando
Platão, Kant chama Ideias aos conceitos puros da razão, que diz serem três: a ideia de
alma, a ideia do mundo como totalidade e a ideia de Deus. Estas ideias seriam geradas
quando tomamos uma certa forma de inferência e tentamos torná-la absoluta, quer dizer,
tentamos usá-la para chegar a uma conclusão que não dependeria já de nenhuma
premissa. Seria assim, por exemplo, que formamos o conceito puro de “o mundo como
um todo” (algo que nunca poderia ser dado numa experiência), a partir da simples forma
das inferências causais: das relações causa-efeito entre objectos empíricos passamos à
ideia do mundo como totalidade que contém em si todas as causas e todos os efeitos.

Ao pensar sobre o mundo como totalidade, a razão é inevitavelmente conduzida a


antinomias. Para Kant, uma antinomia é um par de argumentos cujas conclusões são

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contraditórias (ele chama-lhes “tese” e “antítese”). São quatro as antinomias da razão
pura que Kant nos apresenta. O objectivo, em todas elas, é mostrar que a razão é
naturalmente levada a contradizer-se a si mesma quando pensa sobre o mundo como um
todo.

1ª antinomia:
Tese: «O mundo tem um começo no tempo e é também limitado no espaço.»
Antítese: «O mundo não tem nem começo nem limites no espaço, mas é infinito tanto
no tempo como no espaço.»

Uma série infinita é, diz Kant, uma série que nunca se pode completar. Não é possível,
então, que já tenha existido uma série infinita de mundos. Este é o argumento a favor da
Tese. Por outro lado, a Antítese é obtida pelo seguinte raciocínio: Se o mundo teve um
começo, houve um momento do tempo em que ele não existia. Se considerarmos esse
“tempo vazio” em que o mundo não existia, todos os seus momentos se equivalem, não
há nenhuma diferença entre eles. Por isso, o mundo não pode ter começado num desses
momentos, em detrimento dos outros.

2ª antinomia:
Tese: «Toda a substância composta, no mundo, é constituída por partes simples e não
existe nada mais que o simples ou o composto pelo simples.»
Antítese: «Nenhuma coisa composta, no mundo, é constituída por partes simples e não
existe nada no mundo que seja simples.»

O argumento para estabelecer a Tese tem a forma de uma reductio ad absurdum.


Tomemos um objecto qualquer e suponhamos que ele não é composto por partes
simples. Decomponhamo-lo em partes e, depois, decomponhamos cada uma dessas
partes, e as partes dessas partes, etc. Uma vez que não existem simples, o processo de
decomposição continuará sem fim. Mas isso implica que nada restará desse processo – o
que não é possível, pois o objecto é uma substância. Logo, a suposição é falsa e conclui-
se que o objecto é composto por partes simples.

O argumento da Antítese começa por supor que existe uma parte simples. Essa parte
ocupará um certo espaço e este, como todo o espaço, será divisível. Mas então aquela
parte simples também será divisível – o que não é possível. Logo, a suposição é falsa e
conclui-se que não existem partes simples.

Kant chama “antinomias matemáticas” a estas duas primeiras e considera que, em


ambas, tanto a Tese como a Antítese são falsas. O erro que está na base de todos os
argumentos apresentados é a ideia de um todo cósmico, à qual nenhum objecto poderia
corresponder na experiência.

3ª antinomia:
Tese: «A causalidade segundo as leis da natureza não é a única de onde podem ser
derivados os fenómenos do mundo no seu conjunto. Há ainda uma causalidade pela
liberdade que é necessário admitir para os explicar.»
Antítese: «Não há liberdade, mas tudo no mundo acontece unicamente em virtude das
leis da natureza.»

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O argumento a favor da Tese é: Suponhamos que a cadeia de causas de um certo
acontecimento não tem um primeiro membro. Então, ela será infinita e, por isso, o
acontecimento não terá nenhuma causa suficiente – o que é impossível. Logo, a
suposição é falsa e conclui-se que há uma primeira causa de cada acontecimento.

O argumento a favor da Antítese é: Suponhamos que a cadeia de causas de um


acontecimento tem um primeiro membro. Então, este primeiro membro não foi
causalmente determinado por nada. Mas, pela lei da causalidade, sabemos que todo o
acontecimento tem uma causa. Logo, a suposição é falsa e conclui-se que nenhuma
cadeia causal tem um primeiro membro.

4ª antinomia:
Tese: «Ao mundo pertence qualquer coisa que, seja como sua parte, seja como sua
causa, é um ser absolutamente necessário.»
Antítese: «Não há em parte alguma um ser absolutamente necessário, nem no mundo,
nem fora do mundo, que seja a sua causa.»

A quarta antinomia diz respeito à existência de um ser necessário. Este ser necessário é
considerado como causa do mundo, mas tanto a tese como a antítese contemplam a
possibilidade de ele pertencer ao mundo, como sua parte (ou, talvez, de ser idêntico ao
próprio mundo). O que está aqui em causa é a relação de dependência em que cada
causa contingente está com outras causas que a antecedem: deverá esta dependência
terminar numa causa que exista necessariamente? Nas palavras de Kant (1985: 412-4):

“O mundo sensível, como conjunto de todos os fenómenos, contém ao mesmo tempo


uma série de mudanças. [...] Mas toda a mudança está sujeita a uma condição que a
precede no tempo e que a torna necessária. Ora, todo o condicionado que é dado supõe,
relativamente à sua existência, uma série completa de condições até ao incondicionado,
que é o único que é absolutamente necessário. Portanto, deve existir algo absolutamente
necessário, para que uma mudança exista como sua consequência. [...] Eis porque no
mundo há algo de absolutamente necessário, quer seja a própria série inteira do mundo,
quer uma parte dela.”

Este é o argumento em defesa da Tese. Kant fala de “mudanças”, mas é evidente que o
que tem em vista é a circunstância em que um objecto depende para existir de outro que
o precede. Essa relação de dependência gera uma cadeia de objectos, cujo limite é ou o
primeiro membro da cadeia (o qual haveria de ser causalmente independente) ou a
própria totalidade da cadeia (“a série inteira do mundo”). Quer num caso quer noutro,
esse limite não dependerá ele próprio de nenhuma condição e, por isso, terá uma
existência necessária.

Contra isto, o argumento da Antítese diz que, se o limite for a própria série inteira, ele
não poderá ser necessário, uma vez que nenhuma parte dele é necessária; e, se for o
primeiro membro da série, será um objecto que faz parte do mundo e que, por isso, terá
de depender de alguma outra coisa para existir.

Kant adopta uma atitude diferente relativamente às duas últimas antinomias, uma vez
que considera que na terceira está em causa a existência de livre arbítrio e que a quarta
diz respeito à existência de Deus. A solução que propõe consiste em dizer que, nestas
duas antinomias, a tese e a antítese podem ser ambas verdadeiras e que a contradição

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entre elas é apenas aparente, ficando a dever-se a uma desconsideração da distinção
entre fenómenos (objectos dados na sensibilidade) e númenos (objectos do
pensamento). É apelando para esta distinção, e recuperando num certo sentido a
distinção platónica entre mundo sensível e mundo inteligível, que Kant pretende
mostrar que a liberdade é compatível com o determinismo. Ele defende que o homem é
dotado de uma vontade livre, capaz de auto-determinar-se a agir. As acções que
resultam do exercício dessa liberdade são, ao mesmo tempo, efeitos de uma causa
inteligível (de um ponto de vista, que é o da vontade enquanto númeno e do homem
enquanto ser racional) e parte da cadeia de causas e efeitos sensíveis que obedecem às
leis da natureza (de outro ponto de vista, que é o das acções humanas enquanto
fenómenos no mundo natural).

Nos Prolegómenos a toda a Metafísica Futura (obra publicada em 1783 com o


propósito de dar maior divulgação às ideias apresentadas na mais extensa e difícil
Crítica da Razão Pura), Kant expõe assim a maneira como deve resolver-se o conflito
da razão consigo mesma que está presente na quarta antinomia: “[...] se se distinguir a
causa no fenómeno da causa dos fenómenos, na medida em que ela pode ser concebida
como coisa em si, as duas proposições podem bem subsistir uma ao lado da outra, a
saber, que não existe causa do mundo sensível (segundo leis similares da causalidade)
cuja existência seja absolutamente necessária e que, por outro lado, este mundo está, no
entanto, ligado a um ser necessário como sua causa (mas causa de um género diferente e
segundo uma outra lei); a incompatibilidade destas duas proposições baseia-se
unicamente no mal-entendido em estender o que vale apenas para os fenómenos às
coisas em si e, em geral, em misturar estas duas coisas num só conceito” (1982: 136-7).

A Tese desta quarta antinomia, segundo a qual há uma causa do mundo cuja existência é
necessária, só teria de ser vista como falsa se a considerássemos do ponto de vista dos
fenómenos. Pois em nenhuma experiência nos poderá ser dado observar uma mudança
não causada por nada ou um ser cuja existência seja absolutamente independente de
todos os outros. Mas se considerarmos esse ser necessário como simples objecto de
pensamento, não há nenhuma contradição em supormos a sua existência. Não podemos
é pretender, como faz o argumento da Antítese, aplicar-lhe o mesmo princípio da
causalidade que aplicamos aos fenómenos.

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Bibliografia
Bayne, S. M., 2004, Kant on Causation: On the Fivefold Routes to the Principle of
Causation, Albany: State University of New York Press.

Bennett, J., 1974, Kant’s Dialectic, Cambridge: Cambridge University Press.

Guyer, P. (ed.), 2010, The Cambridge Companion to Kant’s Critique of Pure Reason,
Cambridge: Cambridge University Press.

Kant, I., 1982, Prolegómenos a toda a Metafísica Futura, tradução de A. Morão,


Lisboa: Edições 70.

Kant, I., 1985, Crítica da Razão Pura, tradução de M. P. dos Santos e A. F. Morujão,
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Kemp Smith, N., 1923, Commentary to Kant’s Critique of Pure Reason, 2ª ed., London:
Macmillan.

Priest, G., 2002, Beyond the Limits of Thought, Oxford: Clarendon Press.

Wike, V. S., 1982, Kant’s Antinomies of Reason: Their Origin and Resolution,
Washington, D.C.: University Press of America.

Wood, A. W., “The Antinomies of Pure Reason”, in Guyer (ed.) 2010, pp. 245-265.

 2011
Ricardo Santos
Universidade de Évora

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