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Esporte e

atividade física
na infância e
na adolescência
E77 Esporte e atividade física na infância e na adolescência [recurso
eletrônico]: uma abordagem multidisciplinar / [organizado por
] Dante De Rose Jr. ; Alessandro H. Nicolai Ré ... [et al.]. – 2.
ed. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : Artmed, 2009.

Editado também como livro impresso em 2009.


ISBN 978-85-363-1933-9

1. Educação física e treinamento – Educação. I. De Rose Jr.,


Dante. II. Ré, Alessandro H. Nicolai.
CDU 796:37

Catalogação na publicação: Renata de Souza Borges CRB-10/Prov-021/08


796:37
Catalogação na publicação: Renata de Souza Borges CRB-10/Prov-021/08
Esporte e
atividade física
na infância e
na adolescência
uma abordagem
multidisciplinar

2a edição

Dante
De Rose Jr.
e colaboradores

2009
© Artmed Editora S.A., 2009

Capa
Paola Manica

Preparação do original
Juliana Escalier Ludwig Gayer
Leitura final
Carolina Rübensam Ourique
Supervisão editorial
Laura Ávila de Souza

Projeto e editoração
Armazém Digital ® Editoração Eletrônica – Roberto Carlos Moreira Vieira

Reservados todos os direitos de publicação, em língua portuguesa, à


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IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
AUTORES

Dante De Rose Jr.: Doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo (USP). Professor Livre-Docente pela Escola de Educação Física e Esporte da USP. Pro-
fessor Titular e Diretor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.

Alessandro H. Nicolai Ré: Doutor em Educa- GEPPSE) da Escola de Educação Física e Es-
ção Física pela Escola de Educação Física e Es- porte da USP. Psicólogo/Pedagogo.
porte da USP. Membro do Laboratório de Trei-
namento e Esporte para Crianças e Adolescen- Antonio Prista: Professor Catedrático da Fa-
tes e do Grupo de Estudos e Pesquisa em Es- culdade de Ciências de Educação Física e Des-
porte e Treinamento Infanto-Juvenil da Escola porto da Universidade Pedagógica, Maputo,
de Educação Física e Esporte da USP. Moçambique.

Alex Antonio Florindo: Pós-Doutor em Nu-


Cláudia Lúcia de Moraes Forjaz: Professora
trição e Saúde Coletiva pelo Departamento de
Livre-Docente pela Escola de Educação Física
Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da
e Esporte da USP. Docente da Escola de Educa-
USP. Doutor em Saúde Pública – subárea de
ção Física e Esporte da USP.
Epidemiologia – pela Faculdade de Saúde Pú-
blica da USP. Professor Doutor da Escola de
Crivaldo Gomes Cardoso Jr.: Mestre em Edu-
Artes, Ciências e Humanidades da USP.
cação Física pela Escola de Educação Física e
Esporte da USP. Professor Substituto da Disci-
Aline Bigongiari: Fisioterapeuta. Mestre em
plina de Crescimento e Desenvolvimento Hu-
Educação Física pela Universidade São Judas
mano da UNESP.
Tadeu. Professora do Curso de Fisioterapia da
Universidade São Judas Tadeu.
Cynthia Y. Hiraga: Doutora em Ciências da
Ana Maria Pellegrini: Professora Livre-Docente Motricidade (PhD) pela University of Tasmania,
pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Austrália. Professora Doutora da Escola de Ar-
Professora Titular do Instituto de Biociências da tes, Ciências e Humanidades da USP.
UNESP – Rio Claro.
Evelyn Helena Corgosinho Ribeiro: Licencia-
Antonio Carlos Simões: Doutor em Ciência da e Bacharel em Educação Física pela Univer-
pela Escola de Comunicações e Artes da USP. sidade Camilo Castelo Branco. Professora de
Professor Titular e Coordenador do Laborató- Educação Física da Secretaria de Estado da Edu-
rio de Psicossociologia do Esporte (LAPSE/ cação do Governo do Estado de São Paulo.
vi Autores

Fabiana de Sant’Anna Evangelista: Doutora Patrícia Junqueira Grandino: Doutora em


em Ciências pela Universidade Federal de São Educação pela USP. Professora Doutora da Es-
Paulo (UNIFESP). Professora Doutora da Es- cola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
cola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. Psicóloga.

Hermes Ferreira Balbino: Doutor em Educa- Paula Korsakas: Mestre em Pedagogia do


ção Física pela Universidade Estadual de Cam- Movimento Humano pela Escola de Educação
pinas (UNICAMP). Pesquisador do Grupo de Física e Esporte da USP. Sócia-consultora da
Estudos Psicopedagógicos em Educação Motora Interação Assessoria e Consultoria em Esporte
(GEPEM) e do Grupo de Estudo e Pesquisa em e Psicologia.
Psicopedagogia (GEPESP) da UNICAMP.
Pedro Winterstein: Professor Livre-Docente
Léia Priszkulnik: Doutora em Psicologia Clí- pela UNICAMP. Professor Associado da Facul-
nica pelo Instituto de Psicologia da USP. Pro- dade de Educação Física da UNICAMP.
fessora Doutora do Departamento de Psicolo-
gia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. Renata Garrido Cosme: Mestranda em Edu-
Psicanalista. cação Física pela Escola de Educação Física e
Esporte da USP – Laboratório de Biomecânica
Luis Mochizuki: Professor Livre-Docente pela do Movimento Humano.
Escola de Artes, Ciências e Humanidades da
USP. Doutor em Educação Física pela Escola Renato de Moraes: Doutor em Cinesiologia
de Educação Física e Esporte da USP. Coorde- pela University of Waterloo, Canadá. Professor
nador do Curso de Ciências da Atividade Físi- Doutor da Escola de Artes, Ciências e Humani-
ca e Professor Associado da Escola de Artes, dades da USP.
Ciências e Humanidades da USP.
Ricardo Ricci Uvinha: Doutor em Ciências da
Márcia Greguol Gorgatti: Doutora em Biodi- Comunicação (Turismo e Lazer) pela Escola de
nâmica do Movimento Humano pela Escola de Comunicação e Artes da USP. Professor Livre-
Educação Física e Esporte da USP. Professora -Docente pela Escola de Artes, Ciências e Hu-
Adjunta do Departamento de Esporte da Uni- manidades da USP. Coordenador do Bachare-
versidade Estadual de Londrina. Coordenado- lado em Lazer e Turismo da Escola de Artes,
ra de natação da Associação Esporte Atitude Ciências e Humanidades da USP. Líder do Gru-
para pessoas com deficiência. Professora dos po Interdisciplinar de Estudos do Lazer (CNPq/
cursos de pós-graduação da Universidade Gama GIEL) da USP.
Filho e do Centro Universitário das Universida-
des Metropolitanas Unidas (UniFMU). Roberto Rodrigues Paes: Professor Livre-Do-
cente pela UNICAMP. Professor Associado da
Maria Tereza Silveira Böhme: Doutora em Faculdade de Educação Física da UNICAMP.
Ciências do Esporte pela Universidade Justus Diretor Executivo da Fundação de Desenvolvi-
Liebig – Giessen , Alemanha. Professora Titu- mento da UNICAMP.
lar da Escola de Educação Física e Esporte da
USP. Coordenadora do Laboratório de Treina- Rubens Venditti Jr.: Mestre em Pedagogia do
mento e Esporte para Crianças e Adolescentes Movimento pela UNICAMP. Professor da Uni-
do Departamento de Esporte da Escola de Edu- versidade Adventista de São Paulo (UNASP) e
cação Física e Esporte da USP. das Faculdades Integradas Metropolitanas de
Campinas (METROCAMP).
Osvaldo Luiz Ferraz: Doutor em Educação
pela Faculdade de Educação da USP. Professor Victor Matsudo: Professor Livre-Docente pela
Doutor do Departamento de Pedagogia do Mo- Universidade Gama Filho. Coordenador Cien-
vimento do Corpo Humano da Escola de Edu- tífico do Centro de Estudos do Laboratório de
cação Física e Esporte da USP. Aptidão de São Caetano do Sul (CELAFISCS).
PREFÁCIO

Escrever sobre criança, esporte e ativida- nados a pedagogia, fisiologia, psicologia,


de física continua sendo polêmico e, ao sociologia, treinamento e medicina espor-
mesmo, desafiador. Na primeira edição tiva. Além disso, diversos novos autores
deste livro, buscou-se trazer ao leitor tex- foram convidados a participar, aumentan-
tos com abordagens variadas sobre a rea- do o número de capítulos e, consequente-
lidade esportiva de nossas crianças e ado- mente, a abrangência do livro. Temas im-
lescentes, escritos com muita competên- portantes e atuais, como aprendizagem
cia por profissionais renomados e jovens motora, coordenação motora, postura,
ávidos por demonstrar os conhecimentos obesidade, atividade física para portado-
obtidos ao longo de uma recente carreira res de necessidades especiais e lazer, são
acadêmica. agora contemplados.
Nesta segunda edição, foi mantida a Como já havia mencionado no pre-
proposta de unir a experiência de especia- fácio da edição anterior, o tema em ques-
listas da área ao entusiasmo de novos ta- tão é amplo e complexo, motivo pelo qual
lentos, mas apenas isso não parecia sufici- seria impossível abordá-lo integralmente
ente. Era preciso trazer atualizações que em um único volume. Ainda há muito a
levassem em consideração as mudanças ser discutido, mas o resultado desta nova
ocorridas nos últimos anos na prática es- edição certamente constitui uma grande
portiva infanto-juvenil. contribuição para os estudos da área, au-
Desse modo, foi elaborado um pro- xiliando os profissionais a estabelecerem
jeto que certamente ampliará a discussão propostas de atividades condizentes com
e provocará novas demandas para o de- as diferentes condições dos jovens, funda-
senvolvimento do assunto. Todos os auto- mentadas no que há de mais moderno e
res que participaram da primeira edição científico.
colaboraram novamente, trazendo uma Dante De Rose Jr.
perspectiva atualizada sobre temas relacio- Organizador
SUMÁRIO

1 A criança que a psicanálise freudiana descortina: considerações ................... 11


Léia Priszkulnik

2 Atividade física e saúde em crianças e adolescentes ...................................... 23


Alex Antonio Florindo, Evelyn Helena Corgosinho Ribeiro

3 O esporte, a criança e o adolescente: consensos e divergências .................... 45


Osvaldo Luiz Ferraz

4 O esporte infantil: as possibilidades de uma prática educativa ....................... 61


Paula Korsakas

5 A pedagogia do esporte e os jogos coletivos .................................................. 73


Roberto Rodrigues Paes, Hermes Ferreira Balbino

6 A psicossociologia do vínculo do esporte – adultos,


crianças e adolescentes: análise das influências ............................................ 85
Antonio Carlos Simões

7 Esporte, competição e estresse: implicações na infância


e na adolescência ........................................................................................ 103
Dante De Rose Jr.

8 A motivação para as práticas corporais e para o esporte ............................. 115


Pedro Winterstein, Rubens Venditti Jr.

9 Aprendizagem motora implícita em crianças e adolescentes ........................ 137


Renato de Moraes

10 Coordenação motora: da teoria à prática .................................................... 149


Cynthia Y. Hiraga, Ana Maria Pellegrini
10 Sumário

11 Aspectos fisiológicos do crescimento e do desenvolvimento:


influência do exercício físico ......................................................................... 159
Cláudia Lúcia de Moraes Forjaz, Antonio Prista,
Crivaldo Gomes Cardoso Jr.

12 O talento esportivo e o processo de treinamento a longo prazo ................... 171


Maria Tereza Silveira Böhme, Alessandro H. Nicolai Ré

13 Postura na infância e na adolescência:


características biomecânicas e do comportamento motor ............................ 185
Aline Bigongiari, Renata Garrido Cosme, Luis Mochizuki

14 Lesões e alterações osteomusculares na criança e


no adolescente atleta ................................................................................... 197
Victor Matsudo

15 Atividade física e peso corporal na infância e na adolescência ..................... 211


Fabiana de Sant’Anna Evangelista

16 Atividades físicas e esportivas para crianças e


adolescentes com deficiência ....................................................................... 223
Márcia Greguol Gorgatti

17 Aspectos sobre a relevância do campo do lazer na adolescência ................. 235


Ricardo Ricci Uvinha

18 As atividades físicas como forma de mediação das


relações intergeracionais na escola .............................................................. 245
Patrícia Junqueira Grandino
A CRIANÇA QUE A
PSICANÁLISE FREUDIANA
DESCORTINA: CONSIDERAÇÕES
1
Léia Priszkulnik

A criança, pelo menos a maioria das que temos hoje de criança não é um dado
vivem em sociedades industrializadas, tem atemporal. Pode-se dizer que é uma “in-
como principal ocupação a escola. O fato venção” da modernidade. Segundo o his-
de ela precisar frequentar a escola, ser edu- toriador francês Philippe Ariès (1981), no
cada e se preparar gradualmente para a decorrer da História, a criança tem ocupa-
vida adulta aparece como “natural” e in- do diferentes posições ante as expectati-
questionável. vas dos pais e da sociedade.
Atualmente, a criança está no centro Tomando como ponto de partida a
dos estudos de várias áreas de conhecimen- sociedade medieval, Ariès (1981, p. 156)
to: não só a psicologia, mas também a me- afirma que nesse período, “assim que a
dicina, a biologia, a pedagogia, a psicaná- criança tinha condições de viver sem a so-
lise, a educação física, a história, a socio- licitude constante de sua mãe ou de sua
logia, entre outras, pesquisam e escrevem ama”, ela passava a fazer parte do grupo
sobre ela. Mas qual a ideia de criança que dos adultos, participando das mesmas ati-
permeia todos esses trabalhos? A criança vidades e frequentando os mesmos espa-
como “um adulto em miniatura”, como ços. Não havia uma preocupação com a
“uma tábula rasa”, como “um ser inocen- educação escolar. A diferença e a passa-
te” ou como “um ser plenamente feliz”? gem entre o mundo da criança e o mundo
Essa criança que vem sendo estudada sem- do adulto não se constituíam em proble-
pre existiu? ma, já que a criança, independente da mãe,
O presente capítulo visa buscar algu- passava a integrar o grupo dos adultos, no
mas respostas a essas indagações, e, para qual fazia seu aprendizado para a vida.
isso, o caminho a ser trilhado passa por al- Consequentemente, a transmissão dos co-
guns aspectos considerados na história da nhecimentos prescindia de instituições
criança no Ocidente e nos escritos de Freud. especializadas e de textos escritos. Em re-
lação a isso, o autor escreve (Ariès, 1981,
p. 229):
A CRIANÇA NO OCIDENTE
Não havia lugar para a escola
nessa transmissão através da
Com o passar dos séculos, o conceito
aprendizagem direta de uma ge-
de criança e de infância modificou-se de ração a outra. [...] E a escola era
acordo com visões de mundo peculiares a na realidade uma exceção, e o
um determinado tempo e lugar. A ideia que fato de mais tarde ela ter-se es-
12 Dante De Rose Jr. e colaboradores

tendido a toda a sociedade não civilidade da linguagem” (Ariès, 1981, p.


justifica descrever por meio dela 135); e as relações e os contatos recomen-
a educação medieval; seria con- dados revelam a necessidade de se evitar
siderar a exceção como a regra. associá-la “a brincadeiras que giravam em
A regra comum a todos era a
aprendizagem direta. torno de temas sexuais” (Ariès, 1981, p.
129). Ou seja, as conversas e os contatos
Com o passar do tempo, a situação físicos associados a assuntos sexuais pas-
começa a se modificar e aparece a cons- sam a ser proibidos para não “corromper”
ciência de separar e distinguir a criança a criança em sua inocência.
do adulto. Ariès assinala que é entre os Ariès (1981, p. 164) aponta que os
educadores e os moralistas do século XVII, moralistas e os educadores do século XVII
preocupados com a disciplina e a raciona- mostravam-se também preocupados com
lidade dos costumes, que vemos formar- o cuidado corporal, mas o objetivo é mo-
se um outro sentimento da infância. Assim, ral: “um corpo mal-enrijecido inclinava à
“o apego à infância e à sua particularidade moleza, à preguiça, à concupiscência, a to-
[se exprime nesse momento] por meio do dos os vícios”.
interesse psicológico e da preocupação Por surgir a preocupação de separar
moral” (Ariès, 1981, p. 162). A criança pas- e distinguir a criança do adulto, os crité-
sa a ser vista como imperfeita e, com isso, rios usados para marcar a diferença em re-
surge a necessidade de conhecê-la melhor lação ao mundo dos adultos merecem ser
para poder corrigi-la e torná-la um adulto destacados. Como bem assinala Ariès
honrado. Vários textos do fim do século (1981, p. 181), a diferença começa “pelo
XVI e do século XVII incluem observações sentimento mais elementar de sua fraque-
sobre a psicologia infantil. A educação, za, que a rebaixava ao nível das camadas
então nos estabelecimentos de ensino, tor- sociais mais inferiores”, ou seja, começa
na-se um importante meio de formação pela humilhação; essa “preocupação em
moral e intelectual por meio de uma disci- humilhar a infância para distingui-la e
plina rígida, que adota o castigo corporal melhorá-la se atenuaria ao longo do sécu-
(até surras) quando necessário. A preocu- lo XVIII”. Também nesse século, o senti-
pação maior é, segundo Ariès (1981, p. mento de a criança ser uma frágil criatura
163), “fazer dessas crianças pessoas hon- de Deus que precisa, ao mesmo tempo, ser
radas e probas e homens racionais”. preservada e disciplinada passa para a vida
Com a crescente preocupação moral familiar. Além disso, surge também a preo-
e uma farta literatura moral e pedagógi- cupação com o corpo que goza de boa
ca, uma nova noção se impõe, a da “ino- saúde, ou seja, com a higiene e a saúde
cência infantil”. Ariès (1981, p. 140) mos- física da criança. Para apontar o novo lu-
tra como a concepção moral da infância gar que a criança passa a ocupar na famí-
insistia na sua fraqueza, “associava sua fra- lia, Ariès (1981, p. 164) escreve:
queza à sua inocência, verdadeiro reflexo
Tudo o que se referia às crianças
da pureza divina, e colocava a educação
e à família tornara-se um assun-
na primeira fileira das obrigações huma- to sério e digno de atenção. Não
nas”. Assim, essa noção aparece para “pro- apenas o futuro da criança, mas
teger” a criança e, em consequência disso, também sua simples presença e
as leituras recomendadas “revelam uma existência eram dignas de preo-
nova preocupação com o pudor e um novo cupação – a criança havia assu-
cuidado em evitar afrontas à castidade e à mido um lugar central na família.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 13
A partir do século XVIII, vários pensa- castigos corporais mais suaves. Com isso,
dores começam a chamar a atenção para a a importância moral e social da educação
infância. Segundo Martins (2008, p. 138), aumenta e a formação metódica da crian-
ça em instituições especializadas é adap-
[...] pensadores como Rousseau, tada às novas finalidades. A infância, en-
Madame d’Épinay e Pestalozzi tão, acaba sendo prolongada até quase
chamaram a atenção para a espe- toda a duração do ciclo escolar. Ariès
cificidade e as necessidades da
(1981, p. 233) assinala que “nossa civili-
infância, denunciando práticas e
métodos educativos inadequados zação moderna, de base escolar, [é] então
para a compreensão das crianças definitivamente estabelecida”.
e para o seu desenvolvimento fí-
sico, moral e intelectual. Esses au-
tores desenham uma nova ima-
gem da criança semelhante à se- A partir do século XVIII, a educação e a
mente de uma árvore, promessa saúde passam a ser as duas principais
de futuro, contanto que bem preocupações dos pais em relação aos
orientada e conduzida. As publi- filhos. A família passa a se organizar em
cações desses autores e o méto- torno da criança.
do educativo proposto por eles
encontraram guarida ainda no sé-
culo XVIII, mas foi no século se- Assim, a partir do século XVIII, Ariès
guinte que suas ideias foram apli- destaca que a educação e a saúde passam
cadas pelas escolas e principal-
a ser as duas principais preocupações dos
mente pelos pais, que começaram
a ver suas crianças de uma forma pais em relação aos filhos. A família passa
mais afetiva. a “se organizar em torno da criança e [er-
guer] entre ela e a sociedade o muro da
Uma das consequências dessa preo- vida privada” (Ariès, p. 278), aparecendo,
cupação com a educação da criança é a assim, a família moderna.
organização da escola nos moldes mais No final do século XIX, a ciência que
próximos da que prevalece atualmente, ou se desenvolve começa a mostrar uma crian-
seja, o início da separação dos alunos por ça mortalmente atingida pelas doenças
idade e em classes regulares; a correspon- infecciosas e vítima do regime escolar. A
dência entre idade e classe escolar torna- higiene infantil, então, inicia o combate à
-se cada vez mais rigorosa nos anos subse- mortalidade, e os novos conhecimentos co-
quentes, ou melhor, “a preocupação com meçam a questionar os princípios educa-
a idade se [torna] fundamental no século tivos. Inicia-se uma série de estudos e pes-
XIX e em nossos dias”, como afirma Ariès quisas tendo a criança como temática, ou
(1981, p. 166). seja, a criança passa a ser objeto específi-
No século XIX, novas concepções de co de estudo das várias áreas de conheci-
criança e de educação se consolidam. A mento. Outro fato importante é a institui-
infância encarada como fraqueza que ne- ção da escolaridade primária obrigatória,
cessita da humilhação para ser melhorada que é adotada, mais ou menos a partir de
cede lugar à ideia de a criança precisar ser 1890, nos países ocidentais atingidos pela
preparada para a vida adulta, preparação industrialização crescente.
que exige cuidados e uma formação com Vale a pena ressaltar que no Brasil essa
disciplina rigorosa e efetiva, sem as surras história tem alguns aspectos característicos.
de antigamente, mas ainda recorrendo a Como aponta Del Priore (1999, p. 10),
14 Dante De Rose Jr. e colaboradores

entre nós, tanto a escolarização ros trabalhos realizados sob o


quanto a emergência da vida pri- ponto de vista dos processos de
vada chegaram com grande atra- aprendizagem começam a flores-
so. Comparado aos países ociden- cer no século XX, com o estudo
tais, onde o capitalismo instalou- sistemático da criança, por meio
-se no alvorecer da Idade Moder- de investigações acerca de seu de-
na, o Brasil, país pobre, apoiado senvolvimento, seu pensamento
inicialmente no antigo sistema e sua inteligência (Priszkulnik,
colonial e posteriormente em 1997, p. 134).
uma tardia industrialização, dei-
xou sobrar pouco espaço para tais
questões. Sem a presença de um
sistema econômico que exigisse Os primeiros trabalhos realizados sob o
a adequação física e mental dos ponto de vista dos processos de apren-
indivíduos a uma nova forma de dizagem começam a florescer no século
trabalho, os instrumentos que XX, com o estudo sistemático da crian-
permitiriam tal adaptação não ça, por meio de investigações acerca de
foram implementados com a mes- seu desenvolvimento, seu pensamento e
ma eficácia. sua inteligência.

Assim, no Brasil, a expansão da edu-


cação começa sobretudo a partir de 1930,
época em que também algumas condições Nesse período, final do século XIX e
estão concorrendo para a implantação início do século XX, Freud, com a psicaná-
definitiva do processo de industrialização lise, abre um campo de investigação antes
no país. desconhecido. Introduz a noção de incons-
Voltando à escolaridade obrigatória, ciente, abalando a confiança que a cultu-
com ela e com o funcionamento regular ra ocidental deposita na razão, e “desco-
das classes, surge um grupo de crianças bre” a sexualidade infantil, provocando
que se mostra com dificuldades acentua- também abalo na concepção que o ser hu-
das em acompanhar as exigências da esco- mano tem dele mesmo. A neuropsiquiatria
la. Essa nova categoria de criança, a crian- infantil começa a buscar uma semiologia
ça com problemas de leitura e de escrita, realmente característica da criança e dife-
desperta o interesse de profissionais como rente da do adulto. No campo da psicolo-
pedagogos, professores, psicólogos e até gia, os estudos sistemáticos sobre crian-
médicos, tanto que ças realmente florescem nas primeiras dé-
cadas do século XX. A partir de 1930, os
estudos científicos começam a enfocar os
as primeiras observações e des-
problemas e as inadaptações da, então,
crições sobre distúrbios de leitu-
ra e de escrita são realizadas por “criança escolar”.
médicos no final do século XIX. O século XX vai assistir à extraordi-
Consequentemente, as primeiras nária aceleração das descobertas científi-
teorias elaboradas se caracteri- cas e à utilização dos instrumentos tecno-
zam por um pensamento orga- lógicos decorrentes. Da máquina de escre-
nicista, em que as pesquisas de ver ao microcomputador, do telefone sem
alterações anatomofisiológicas, fio à internet, da penicilina ao Prozac®,
de fatores inatos e de herança
do raio X à tomografia computadorizada,
genética têm papel preponderan-
te, e por uma busca de classifica- etc. Todo esse conhecimento científico e
ção centrada na ordenação de seus efeitos tecnológicos “passaram a fa-
nosografias precisas. Os primei- zer parte das forças econômicas produti-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 15
vas da sociedade e trouxeram mudanças tes em periódicos científicos, em revistas
sociais de grande porte na divisão social semanais, em artigos de jornais, em repor-
do trabalho, na produção e na distribui- tagens na televisão e em sites na internet.
ção dos objetos, na forma de consumi-los” Esses especialistas, muitas vezes, indicam
(Chauí, 1996, p. 285). como tratar a criança, como falar com ela,
Como exemplo, pode-se citar o desen- como agir com ela, etc., e essas indicações,
volvimento de novos medicamentos. Essas frutos de pesquisas científicas, podem in-
novas drogas têm aparecido com uma ve- terferir de tal maneira no relacionamento
locidade espantosa e têm corroborado com entre adulto e criança que acabam levan-
a ideia de que qualquer sofrimento huma- do muitos pais a desconfiarem de sua com-
no pode e deve ser tratado, quase que ex- petência para educar um filho e muitos
clusivamente, pelo uso de um medicamen- professores a desconfiarem de sua com-
to apropriado. Essa situação tem alterado petência para ensinar um aluno.
a forma do ser humano (criança e adulto)
relacionar-se com seu corpo, com suas do-
res, com suas dificuldades, etc.
É importante ressaltar também o pa- Nesse final do século XX e início do sé-
pel da mídia em relação aos medicamen- culo XXI a educação, a saúde, o bem-
-estar, as relações entre pais e filhos, etc.
tos. As novidades são lançadas pelos labo-
são assuntos constantes em periódicos
ratórios e pelos centros de pesquisas com científicos, em revistas semanais, em
muito alarde. Essas novidades prometem artigos de jornais, em reportagens na
curar a depressão, a impotência sexual, a televisão e em sites na internet.
obesidade, o pânico, o transtorno do défi-
cit de atenção, etc., e até problemas do
cotidiano de qualquer ser humano, como
a timidez ou a ansiedade. As informações Hoje, os espaços que a criança ocupa
são difundidas maciçamente e acabam sen- se ampliaram. Ela pode ser vista na esco-
do assimiladas, muitas vezes, sem qualquer la, na rua, no parque de diversão, mas tam-
crítica, terminando por influenciar o pú- bém em um programa de televisão, na pro-
blico em geral e membros de várias pro- paganda de um produto de consumo, em
fissões (inclusive a médica). Melman um desfile de moda, em um filme de cine-
(2008) salienta a excessiva utilização de ma. Nossa sociedade de consumo vem per-
psicotrópicos atualmente e como a hiperme- cebendo que a criança pode ser um bom
dicação “contém mais riscos do que van- consumidor e, também, um excelente
tagens”, principalmente para as crianças, agente para induzir o consumo. Por estar
sobretudo no que diz respeito ao uso pre- exposta à mídia, ela tem acesso aos anún-
coce, recomendado pelos laboratórios, de cios de produtos e, também, a informações
neurolépticos (inibidores das funções psi- que antes eram vedadas a ela (pedofilia,
comotoras). O autor ainda adverte para estupro, assassinato, sexualidade, etc.).
“as implicações nefastas tanto sobre o de- Atualmente, o ciclo escolar se esten-
senvolvimento quanto sobre o estado físi- de por vários anos, e a escola é o lugar
co da criança”. privilegiado para formar a criança e torná-
Nesse final do século XX e início do -la um adulto preparado para enfrentar os
século XXI, pode-se afirmar que a criança desafios do novo milênio. Mas existem
se torna ainda mais o centro das atenções cada vez mais pais que, além da escola,
e das preocupações dos adultos. A educa- praticamente obrigam seus filhos a apren-
ção, a saúde, o bem-estar, as relações en- der uma segunda ou terceira língua, apren-
tre pais e filhos, etc. são assuntos constan- der computação, praticar algum esporte,
16 Dante De Rose Jr. e colaboradores

o que faz com que algumas crianças te- Para Chauí (1996, p. 169), com a no-
nham o dia repleto de atividades. ção de inconsciente surge algo desconhe-
A história atual da criança, no Brasil cido – ou só indiretamente conhecido – pa-
e no mundo, tem evidenciado contradições ra a consciência, algo sobre o qual a cons-
relevantes. Como escreve Del Priore (1999, ciência nunca poderá refletir diretamente
p. 8): e que determina tudo que a consciência e
o sujeito sentem, falam, dizem e pensam.
Existe uma enorme distância en- Com a noção de inconsciente, Freud des-
tre o mundo infantil descrito pe- cobre “uma poderosa limitação às preten-
las organizações internacionais, sões da consciência para dominar e con-
pelas não governamentais ou pe-
trolar a realidade e o conhecimento”.
las autoridades e aquele no qual
a criança encontra-se cotidiana- O inconsciente freudiano não deve
mente imersa. O mundo do qual ser pensado como o lugar da irracio-
a “criança deveria ser” ou “ter” nalidade em oposição à racionalidade da
é diferente daquele onde ela vi- consciência. Ele tem seus atributos e sua
ve, ou, no mais das vezes, sobre- lógica própria (lógica do inconsciente),
vive. O primeiro é feito de ex- que diferem marcadamente das leis da ati-
pressões como “a criança precisa”, vidade psíquica consciente (lógica do cons-
“ela deve”, “seria oportuno que”,
ciente). O inconsciente freudiano designa
“vamos nos engajar para que”,
etc., até o irônico “vamos torcer um sistema psíquico que possui um modo
para”. No segundo, as crianças próprio de funcionamento (processo pri-
são enfaticamente orientadas pa- mário, deslocamento e condensação) e
ra o trabalho, o ensino, o ades- opera segundo leis próprias (desconhece
tramento físico e moral, sobran- o tempo, a negação, a contradição). A
do-lhes pouco tempo para a ima- melhor maneira para se admitir a existên-
gem que normalmente se lhes cia do inconsciente é prestando atenção
está associada: aquela do riso e
nas suas formações. Nasio (1999, p. 33)
da brincadeira.
escreve de forma clara sobre isso.

As formações do inconsciente
O mundo do qual a “criança deveria ser” apresentam-se diante de nós
ou “ter” é diferente daquele onde ela como atos, falas ou imagens ines-
vive, ou, no mais das vezes, sobrevive. peradas, que surgem abrupta-
mente e transcendem nossas in-
tenções e nosso saber conscien-
te; esses atos podem ser condu-
tas corriqueiras, por exemplo, os
CONTRIBUIÇÕES DA atos falhos, os esquecimentos, os
PSICANÁLISE FREUDIANA sonhos, ou mesmo o aparecimen-
to repentino desta ou daquela
Freud, com a psicanálise, traz um ideia, ou a invenção improvisada
novo discurso sobre o ser humano, não de um poema ou de um conceito
como indivíduo (objeto da ciência), mas abstrato, ou ainda certas manifes-
marcado pelo inconsciente, por essa “ou- tações patológicas que fazem so-
frer, como os sintomas neuróticos
tra cena” ao mesmo tempo inquietante e ou psicóticos; (...) os produtos do
familiar, um ser humano passível de so- inconsciente são sempre atos sur-
nhar, amar, desejar, construir crenças, preendentes e enigmáticos para
odiar, culpar-se, etc. a consciência do sujeito.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 17
Com a “descoberta” da sexualidade
infantil (perverso-polimorfa), Freud pro- Freud aponta para um sujeito que esca-
pa ao controle da educação.
voca uma enorme onda de protestos. Ele
mesmo se refere a isso, assinalando que

a infância era encarada como ino- O conceito de sexualidade, para


cente e isenta dos intensos dese- Freud, é bem específico. A sexualidade está
jos do sexo, e não se pensava que
separada de uma ligação estreita com os
a luta contra o demônio da sen-
sualidade começasse antes da agi- órgãos sexuais e o sexo genital, e é consi-
tada idade da puberdade; tais derada uma função corpórea mais abran-
atividades sexuais ocasionais, gente que visa basicamente ao prazer e que
conforme tinha sido impossível pode vir, ou não, a servir às finalidades de
desprezar nas crianças, eram pos- reprodução. Laplanche e Pontalis (1976,
tas de lado como indícios de de- p. 619), no verbete sobre sexualidade, re-
generescência ou de depravação sumem nitidamente o conceito.
prematura, ou como curiosa aber-
ração da natureza; poucos dos Na experiência e na teoria psica-
achados da Psicanálise tiveram nalíticas, sexualidade não desig-
tanta contestação universal ou na apenas as atividades e o pra-
despertaram tamanha explosão zer que dependem do funciona-
de indignação como a afirmativa mento do aparelho genital, mas
de que a função sexual se inicia toda uma série de excitações e de
no começo da vida e revela sua atividades presentes desde a in-
presença por importantes indí- fância que proporcionam um pra-
cios mesmo na infância (Freud, zer irredutível na satisfação de
1976, p. 46-47). uma necessidade fisiológica fun-
damental (respiração, fome, fun-
ção de excreção, etc.) e que se
A “descoberta” da sexualidade infan-
encontram a título de componen-
til, sem indícios de degenerescência ou de tes na chamada forma normal de
depravação prematura ou como curiosa amor sexual.
aberração da natureza, provoca, então,
protestos e espanto na sociedade conser- Assim, para a psicanálise, o ser hu-
vadora do final do século XIX, já que até mano não tem seu destino sexual garanti-
essa época a criança era vista como um do (p. ex., a heterossexualidade), pois ele
símbolo de pureza, um ser assexuado. As- depende das vicissitudes de sua própria
sim, para escândalo da comunidade cien- vida e de sua estruturação inconsciente,
tífica e da moralidade cristã-vitoriana de ou seja, o destino sexual humano não é
então, a sagrada associação entre a crian- igual para todos.
ça e a inocência fica abalada. Mais ainda, O conceito freudiano de sexualidade
ao propor uma criança dotada de uma se- questiona a noção de instinto sexual como
xualidade (perverso-polimorfa), Freud uma sequência estereotipada de ações em
aponta para um sujeito que escapa ao con- que o objeto visado é mais rígido e mais
trole da educação, pois não é possível do- fixo (sentido biológico), e propõe a noção
mesticar as pulsões (pulsões de vida – de pulsão sexual, em que o objeto não é
pulsões sexuais e de autoconservação – e fixo, nem os fins são “naturais”, caracte-
pulsões de morte – tendem para a redu- rística da sexualidade humana. Com suas
ção completa das tensões). reflexões no campo da sexualidade infan-
18 Dante De Rose Jr. e colaboradores

til, Freud descobre o corpo erógeno: o cor- Esse autor, seguindo o espírito da obra
po representado investido sexualmente; o freudiana, mostra de forma enfática a im-
corpo representado originário, ou a ima- portância da linguagem para a constitui-
gem que se tem do corpo, marcado pela ção do sujeito humano, já que somos hu-
pulsão, “no qual as manifestações somáti- manos porque falamos. O inconsciente,
cas surgem articuladas à fantasmática do como formulado por Freud, revela-se na
sujeito e suas vicissitudes” (Cukiert; Prisz- fala, mesmo que o sujeito não queira e
kulnik, 2000, p. 57). além de seu conhecimento consciente, ou
Como consequência, a noção de cor- seja, a linguagem opera fora de nosso con-
po para a psicanálise tem uma espe- trole consciente. Para estudar o discurso
cificidade que merece ser mencionada, pois humano, já que o humano é um sujeito
difere da noção de corpo para a biologia. falante, Lacan (1985) recorre à linguísti-
ca e ao signo linguístico (esse signo com-
O corpo biológico é um corpo porta duas faces, o significado ou o con-
objetivado (objeto da ciência), ceito da palavra e o significante ou a ima-
um organismo, para ser estuda-
gem acústica do som material), reexamina
do em termos de suas funções
(digestão, respiração, etc.), do o campo da linguagem e centra esse cam-
funcionamento específico dos po sobre o conceito de significante. Pro-
vários órgãos e seus tecidos, do curando articular o inconsciente freudiano
funcionamento das células. O cor- e a linguagem, Lacan (1985, p. 139) afir-
po, para a Psicanálise, é um corpo ma que o inconsciente é “estruturado, tra-
tecido e marcado pela sexualida- mado, encadeado, tecido de linguagem; e
de e pela linguagem (Priszkulnik, não somente o significante desempenha ali
2000, p. 20).
um papel tão grande quanto o significa-
Freud, portanto, propõe uma nova do, mas ele desempenha ali o papel fun-
leitura da corporeidade, que acaba ofere- damental”.
cendo uma nova leitura da construção do Um significante pode produzir várias
sujeito humano. significações, ou seja, uma mesma imagem
A psicanálise freudiana enfatiza a pa- acústica pode querer dizer coisas diferentes
lavra e o poder da palavra. Freud (1976a, p. para sujeitos diferentes; posso querer di-
214) destaca isso quando escreve: zer uma palavra com determinada signifi-
cação, mas quando falo, falo sem saber e
Não desprezemos a palavra; afi- sempre mais do que sei (além do conheci-
nal de contas, ela é um instru- mento consciente); portanto, ao falar, pos-
mento poderoso; é o meio pelo so estar dando à palavra uma significação
qual transmitimos nossos senti- diferente daquela que realmente queria
mentos a outros, nosso método dar. Quem ouve pode dar à mesma pala-
de influenciar outras pessoas; as
vra uma outra significação, bem diferente
palavras podem fazer um bem
indizível e causar terríveis feridas. da minha, da qual também não tem co-
nhecimento. Essa situação também abala
A palavra nomeia, ordena, alivia, con- a ilusão do ser humano de saber perfeita-
sola, cura; chega a criar quando nomeia mente o que está falando, de ter certeza
algo. O poder da palavra e o fato de o su- que o outro está entendendo plenamente
jeito humano estar inserido na linguagem o que está sendo falado e de ter a convic-
e falar merecem, de Jacques Lacan, um ção de que é possível uma comunicação
nome de peso no universo psicanalítico, sem ambiguidades. A fala tem a caracte-
um desenvolvimento teórico considerável. rística de ser inevitavelmente ambígua.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 19
Lacan, nas suas formulações, também inevitável, e é inevitável pelo fato de o ser
se refere ao corpo marcado pela lingua- humano pertencer a uma dada filiação, a
gem, o corpo que pode ser “tocado” por uma dada sociedade, a uma dada cultura.
meio da palavra. Essa ideia de a palavra Portanto, nasce inserida na linguagem e
poder “tocar” e modificar o corpo aparece em um determinado contexto familiar e
em Freud (1972, p. 297), em um texto em socioeconômico-cultural. Essa criança
que discorre sobre o tratamento psíquico. freudiana, que já existe antes mesmo do
nascimento biológico, persiste no adulto,
[...] um leigo sem dúvida achará porque o que Freud acentua é a importân-
difícil compreender de que forma cia das impressões nos primeiros anos de
os distúrbios patológicos do cor- vida para a compreensão dos distúrbios
po e da mente podem ser elimi-
futuros.
nados por “meras” palavras. Ele
achará que lhe estão pedindo que Se pensarmos na palavra criança, ela
acredite em mágica. também é uma criação da linguagem, e
vimos como essa noção se modifica no
decorrer da História, e como a noção de
A CRIANÇA PARA FREUD criança, nos dias atuais, está muito ligada
à “criança escolar”. Então, a criança freu-
Com esses parâmetros – inconscien- diana está aquém e além da criança estuda-
te, sexualidade, corpo, linguagem –, como da, por exemplo, pela biologia e também
pensar a criança na perspectiva de psica- está aquém e além da criança escolar.
nálise freudiana? Demora algum tempo para a criança
A criança que Freud (1976b, p. 139) ter acesso à sua própria fala, para dispor
descortina, portadora de sexualidade, “é de uma função simbólica própria. Mas isso
capaz da maior parte das manifestações não significa que não se possa conversar
psíquicas do amor, por exemplo, a ternura, com ela. Ela nasce inserida na linguagem
a dedicação e o ciúme”, vive conflitos e e, portanto, precisará aprender a falar; os
contradições. Ela é um sujeito desejante, adultos que não conversam com crianças
está submetida às leis da linguagem que a pequenas pela simples razão de acredi-
determinam, demandando amor e não só tarem que elas não entendem o sentido
os objetos que satisfaçam suas necessida- das palavras estão equivocados; é eviden-
des. Não é a criança “inocente”, aquele ser te que o vocabulário delas é mais reduzi-
em quem o “demônio da sensualidade” não do, entretanto, quando nos dirigimos a elas
provoca abalos, inquietações e perturbações. com palavras mais simples, não só enten-
A construção desse sujeito humano dem o que está sendo dito, como as pala-
criança começa antes mesmo de ela nas- vras dirigidas a elas adquirem um sentido
cer biologicamente. Antes de vir ao mun- “humanizador” (somos seres humanos por-
do, já é falada pelos outros, já é marcada que falamos). Resgatar a criança por meio
pelo desejo inconsciente dos pais e ocupa de sua fala possibilita separá-la das con-
um lugar no imaginário deles (esses pais cepções que os adultos possam estar fa-
têm as marcas de seus pais, estes últimos zendo dela.
têm as marcas dos respectivos pais, e as- A criança freudiana nasce com o cor-
sim sucessivamente); ela é esperada de po-organismo que passará pelas etapas de
determinado jeito, já representa algo para desenvolvimento e de maturação estuda-
ambos os pais em função da história de das pela biologia. Entretanto, irá cons-
cada um, já tem um lugar marcado simbo- truindo seu corpo de modo que seja teci-
licamente. Ao nascer, encontra essa trama do e marcado pela sexualidade e pela lin-
20 Dante De Rose Jr. e colaboradores

guagem (dependente das vicissitudes de esse fracasso pode ser até “saudável”, na
sua própria vida e de sua estruturação in- medida em que fracassar diante de um
consciente). Esse corpo, muitas vezes, não ideal inatingível é uma condição para se
coincide com o corpo-organismo e pode buscar um caminho próprio, para buscar
chegar a alterar seu funcionamento. usufruir suas características específicas e
Freud observa que o nascimento de singulares.
uma criança nunca corresponde exatamen- A psicanálise sublinha que idealizar
te ao que os pais esperam dela, pois o que o outro (criança, aluno, amigo, cônjuge,
eles esperam é a perfeição. Refere-se a isso etc.) é inevitável, uma vez que qualquer
escrevendo que os pais relação com o outro traz a marca do nar-
cisismo, faz parte da constituição do su-
acham-se sob a compulsão de atri- jeito humano, e ninguém se livra ou se
buir todas as perfeições ao filho “cura” dele.
[...] e de ocultar e esquecer todas Outro aspecto importante que mere-
as deficiências dele. [...] A crian-
ce ser enfatizado na relação entre a crian-
ça concretizará os sonhos doura-
dos que os pais jamais realizaram. ça e o adulto é a amnésia infantil. Freud
[...] O amor dos pais, tão como- se refere a essa questão, conhecida e ex-
vedor e no fundo tão infantil, nada plicada pela ciência como uma imaturida-
mais é senão o narcisismo dos pais de funcional da criança para registrar as
renascido, o qual, transformado suas impressões, apresentando uma expli-
em amor objetal, inequivocamen- cação específica. Laplanche e Pontalis
te, revela sua natureza anterior (1976, p. 52), no verbete amnésia infan-
(Freud, 1974, p. 108).
til, escrevem de maneira clara que é a
Assim, os pais sempre idealizam a
amnésia que geralmente cobre os
criança. Esperam que ela seja inteligente, fatos dos primeiros anos de vida.
educada, obediente, boa aluna, asseada, [Para Freud] ela resulta do recal-
ordeira, etc., enfim, uma supercriança que camento que incide na sexualida-
se transformará em um superadulto. Como de infantil e se estende à quase
é impossível para qualquer ser humano totalidade dos acontecimentos da
atingir a perfeição, quanto mais se espera infância. O campo abrangido pela
de uma criança, mais ela pode fracassar, e amnésia infantil encontraria o seu
limite temporal [por volta dos 5
ou 6 anos].

A amnésia infantil distancia o adulto


Os pais sempre idealizam a criança. Es-
da própria infância e é inevitável. É inevi-
peram que ela seja inteligente, educada,
obediente, boa aluna, asseada, ordeira, tável também que essa distância da pró-
etc., enfim, uma supercriança que se pria infância afaste o adulto da criança a
transformará em um superadulto. Como ponto de esta se tornar um enigma para
é impossível para qualquer ser humano ele. Assim, a psicanálise afirma que a crian-
atingir a perfeição, quanto mais se es- ça é sempre um enigma para o adulto
pera de uma criança, mais ela pode fra- (como o adulto também é um enigma para
cassar, e esse fracasso pode ser até “sau- a criança), pois a criança sempre interpe-
dável”, na medida em que fracassar di-
la o adulto (como o adulto também sem-
ante de um ideal inatingível é uma con-
dição para se buscar um caminho pró- pre interpela a criança). Muitas vezes, para
prio, para buscar usufruir suas caracte- encontrar soluções para lidar com a crian-
rísticas específicas e singulares. ça, o adulto busca respostas nos livros que
a descrevem, em experiências já conheci-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 21
das, etc., que podem trazer algum resul- res, pois esses são adultos e estão em po-
tado, mas, na maioria das vezes, acabam sição de educadores (os pais também es-
dificultando que ele perceba a criança (su- tão em posição de educadores, além de
jeito) na sua singularidade. Quanto mais provedores e protetores). O professor idea-
angústia a interpelação da criança provo- liza a criança e espera que ela seja um
car, mais o adulto recorrerá a qualquer aluno inteligente, disciplinado, estudioso,
solução para conter essa angústia. Assim, obediente, etc. Ele também pode se sentir
aceitar que ela é sempre um enigma para interpelado pela criança e buscar respos-
o adulto significa reconhecer que a rela- tas prontas nas diversas teorias ou valer-
ção com a criança não está resguardada -se de soluções preestabelecidas. Como pro-
de contradições, de choques e de confli- fissional que lida com a criança, sua con-
tos, e pode-se até tentar buscar conheci- cepção em relação a ela também pode in-
mentos, por exemplo, nas teorias, mas para fluenciar sua atitude diante dos adultos;
servirem de inspiração. se a criança é vista como um ser “menor”,
O pensamento do adulto sobre a ele pode assumir o papel de “defensor per-
criança implica necessariamente as con- pétuo da infância” e, dessa forma, hostili-
cepções e preconceitos dele em relação a zar e culpar os adultos responsáveis por
ela. Construir um ideal para a criança su- ela pelas dificuldades e sofrimentos que
põe obrigatoriamente construir um ideal ela apresenta; se a criança é vista como
para o adulto. Se existe a ideia da criança um ser “muito especial”, ele pode consi-
como um “adulto em miniatura”, o adulto derar que suas necessidades e seus dese-
é o padrão a ser atingido e, consequente- jos estão acima de tudo e que os adultos
mente, a criança pode ser vista como “infe- têm o dever de dedicar-se integralmente
rior” enquanto não atingir o padrão espe- a ela, mesmo em detrimento de suas pró-
rado. Se a criança é vista como uma “tábula prias vidas, o que também pode levá-lo a
rasa”, é vista como um “pedaço de barro” hostilizar e culpar os adultos responsáveis
(algo “menor”) que precisa ser moldado por ela por todas as dificuldades que ela
pelo adulto provedor e protetor. Assim, in- tenha. Essas duas situações evidenciam, de
dependentemente de como a criança é vis- novo, que determinada concepção de crian-
ta, existe o padrão de adulto a ser atingido. ça envolve, necessariamente, determina-
Dito de outra maneira, o adulto idealiza a da concepção de adulto.
criança sem perceber que também está Finalmente, podemos destacar que a
construindo um ideal para ele; pode ser um relação entre a criança e o adulto é mar-
ideal de pai ou de mãe, de professor(a), de cada por possibilidades e por impossibili-
trabalhador(a), de atleta, etc. dades. É possível, se o adulto procurar ul-
trapassar suas concepções e vencer seus
preconceitos, tentar enxergar a criança
“concreta” que está na sua frente, tentar
O adulto idealiza a criança sem perce- fazê-la falar em vez de só falar por ela e
ber que também está construindo um
para ela, tentar encará-la como ser huma-
ideal para ele; pode ser um ideal de pai
ou de mãe, de professor(a), de trabalha- no, com peculiaridades que não a tornem
dor(a), de atleta. “melhor” ou “pior” que ele. É impossível
porque nenhum ser humano consegue se
“curar” da amnésia infantil, porque ne-
nhum ser humano consegue anular suas
É importante ressaltar que muito do concepções e seus preconceitos e porque
que foi escrito até aqui em relação aos pais a comunicação entre os seres humanos é
aplica-se da mesma forma aos professo- marcada por ambiguidades.
22 Dante De Rose Jr. e colaboradores

CONSIDERAÇÕES FINAIS DEL PRIORE, M. Apresentação. In: DEL PRIORE, M.


(Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo:
Contexto, 1999. p. 7-17.
A psicanálise, ao trazer um novo dis-
FREUD, S. A questão da análise leiga. In: –––––––––– .
curso sobre o ser humano, destaca que Edição standard brasileira das obras psicológicas com-
qualquer relação entre sujeitos implica pletas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
desentendimentos, choques entre ideias, 1976a. v. 20, p. 205-293.
sentimentos de amor e ódio, culpas, ter- –––––––––– . O esclarecimento sexual das crianças. In:
nura mútua, enfim, toda a vasta gama de –––––––––– . Edição standard brasileira das obras psico-
lógicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
emoções e afetos que existem em cada um Imago, 1976b. v. 9, p. 135-144.
de nós. Consequentemente, a relação en-
–––––––––– . Sobre o narcisismo: uma introdução. In:
tre sujeitos não ocorre sem tropeços, e es- –––––––––– . Edição standard brasileira das obras psico-
ses tropeços são inevitáveis por sermos su- lógicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
jeitos marcados pelo inconsciente (o in- Imago, 1974. v. 14, p. 85-119.
consciente freudiano), por nossas relações –––––––––– . Tratamento psíquico (ou mental). In: ––––––– .
Edição standard brasileira das obras psicológicas com-
serem mediadas pela linguagem.
pletas de Sigmund Freud. v.7. Rio de Janeiro: Imago,
Freud, pela amplitude e a audácia 1972. v. 7, p. 293-327.
de suas especulações, contestou e conti-
–––––––––– . Um estudo autobiográfico. In: –––––––––– .
nua contestando, por meio de sua obra, Edição standard brasileira das obras psicológicas com-
tabus sociais, culturais, religiosos e cien- pletas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
tíficos. Afinal, ele descortina uma concep- 1976c. v. 20, p. 13-92.
ção de criança muito peculiar, inclusive LACAN, J. O seminário. Rio de Janeiro: J. Zahar,
1985. Livro 3: As psicoses.
contestando a concepção de as crianças
LAPLANCHE, J.; PONTALIS J.-B. Vocabulário da psi-
viverem um período calmo e tranquilo ao
canálise. 3. ed. Lisboa: Moraes, 1976.
enfatizar que elas também vivem confli-
MARTINS, A. P. V. Vamos criar seu filho: os médicos
tos e contradições diante de questões es- puericultores e a pedagogia materna no século XX.
senciais do ser humano em relação a si Hist. Ciênc. Saúde – Manguinhos, v. 15, n. 1, p. 135-
mesmas e aos grandes mistérios da vida 154, jan./mar. 2008.
e do universo. MELMAN, C. A psicanálise não promete a felicida-
de. Revista Veja, São Paulo, 23 abr. 2008. Entrevista
concedida a Ronaldo Soares.
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Rio de Janeiro: LTC, 1981. canalítica. In: Anais do ENCONTRO SOBRE PSICO-
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. 7. ed. São Paulo: Ática, LOGIA CLÍNICA, 1., 1997, SÃO Paulo. Anais...São
1996. Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 1997.
p. 133-135.
CUKIERT, M.; PRISZKULNIK, L. O corpo em psica-
nálise: algumas considerações. Psychê, v. 4, n. 5, p. –––––––––– . Clínica(s): diagnóstico e tratamento. Psi-
53-63, 2000. co. – USP, v. 11, n. 1, p. 11-28, 2000.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 23

ATIVIDADE FÍSICA E SAÚDE


EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES
2
Alex Antonio Florindo
Evelyn Helena Corgosinho Ribeiro

As atividades físicas fazem parte do desen- PROBLEMAS DE SAÚDE EM CRIAN-


volvimento humano, e muitos benefícios ÇAS E ADOLESCENTES NO BRASIL
começam com a sua prática na fase de in-
fância e adolescência. Na atualidade, ob- A obesidade entre crianças e adoles-
servamos uma mudança no estado nu- centes tem aumentado de forma alarman-
tricional, com aumento, desde a adoles- te em diversos países de renda média no
cência, de casos de excesso de peso e obe- mundo, e no Brasil não é diferente. A pre-
sidade e, evidentemente, aumento de agra- valência de excesso de peso entre crianças
vos e doenças crônicas não transmissíveis, e adolescentes brasileiros (6 a 18 anos)
em grande parte causados por mudanças aumentou de 4% na década de 1970 para
no estilo de vida, com níveis insuficientes mais de 13% em 1997 (World Health Orga-
de atividades físicas e alimentação inade- nization, 2004), ou seja, um aumento de
quada. Por isso, torna-se imprescindível es- mais de 200%. Diversos inquéritos trans-
tudar os níveis de atividades físicas e seus versais têm mostrado prevalências alar-
fatores associados em crianças e adoles- mantes de excesso de peso e obesidade em
centes, bem como as estratégias de inter- algumas cidades brasileiras.
venção para maximizar as atividades físi- Em 1998, Guedes e Guedes realiza-
cas nessa população. Este capítulo fará uma ram um estudo transversal com o objetivo
breve revisão de agravos e doenças crôni- de descrever as prevalências de excesso de
cas não transmissíveis em crianças e ado- peso e obesidade em 4.289 crianças e ado-
lescentes no Brasil, discutirá as novas reco- lescentes de 7 a 17 anos do município de
mendações de atividades físicas para essa Londrina (PR). A obesidade foi determi-
faixa etária, as prevalências e os fatores as- nada pela quantidade de gordura em re-
sociados às atividades físicas, bem como os lação ao peso corporal superior a 20% para
benefícios imediatos e na idade adulta, fi- os meninos e 30% para as meninas, e o
nalizando com as estratégias de interven- ponto de corte estabelecido para o exces-
ção para se maximizar os níveis de ativida- so de peso foi estar no valor ou acima do
des físicas em crianças e adolescentes. percentil 85 do índice de massa corporal
24 Dante De Rose Jr. e colaboradores

relativo à idade e ao sexo, utilizando como co muito comuns em pessoas adultas tam-
critério as tabelas do National Health and bém já estão afetando adolescentes. Cali
Nutrition Examination Survey. Os autores e Caprio (2008) argumentam que compli-
encontraram prevalência de excesso de cações metabólicas e cardiovasculares as-
peso de 12,3% nas meninas e 11,3% nos sociadas com a obesidade são apresenta-
meninos e prevalência de obesidade de das já na infância, como a resistência à
13,7% nas meninas e 12,3% nos meninos. insulina e a hipertensão arterial.
Freedman e colaboradores (1999)
utilizaram pontos de corte derivados de
estudos nacionais e examinaram a relação
A obesidade é considerada um dos prin- da obesidade com fatores de risco cardio-
cipais problemas de saúde pública de vascular em crianças e adolescentes. A
crianças e adolescentes de países como amostra foi composta por 9.165 escolares
o Brasil.
dos Estados Unidos (Louisiana), com ida-
de entre 5 e 17 anos, avaliados em sete
estudos transversais conduzidos pelo Bo-
Abrantes, Lamounier e Colosino galusa Heart Study – estudo de base comu-
(2002) estudaram a prevalência de obesi- nitária sobre fatores de risco cardiovas-
dade entre crianças e adolescentes com cular na infância e na adolescência – en-
idade entre 0 e 19 anos das regiões Sudes- tre 1973 e 1994. A obesidade foi definida
te e Nordeste do Brasil, utilizando dados pelo índice de massa corporal acima do
da pesquisa sobre padrões de vida realiza- percentil 95, de acordo com dados combi-
da pelo Instituto Brasileiro de Geografia e nados de cinco pesquisas nacionais con-
Estatística (IBGE) em 1996 e 1997. Por duzidas entre 1963 e 1994 (Health Exami-
meio da classificação do índice de massa nation Survey II e III; National Health and
corporal relativo à idade e ao sexo, usan- Nutrition Examination Surveys I, II e III).
do como critério as tabelas da World Pontos de corte para níveis elevados de
Health Organization (1995), com a classi- colesterol total, lipoproteína de baixa den-
ficação de excesso de peso com valores sidade (LDL), triglicerídeos e lipoproteínas
iguais ou superiores ao percentil 85 e, para de alta densidade (HDL) foram definidos
obesidade, valores iguais ou superiores ao como > 200 mg/dL, > 130 mg/dL, > 130
percentil 95, os autores encontraram uma mg/dL e < 35 mg/dL, respectivamente
prevalência de excesso de peso de 6,6% (American Academy of Pediatrics, 1998).
no Nordeste e 10,4% no Sudeste. Quanto As prevalências encontradas foram de 11%
à obesidade, a região Sudeste apresentou para obesidade, 7% para triglicerídeos ele-
maior prevalência de obesidade entre crian- vados e 10% para colesterol total eleva-
ças (11,9% vs. 8,2%), enquanto a região do. As crianças obesas tiveram 2,4 vezes a
Nordeste apresentou maior prevalência de chance de terem colesterol elevado em
obesidade em adolescentes (4,2% vs. comparação com as crianças com peso
1,7%). normal, bem como para níveis elevados de
Além dos graves problemas que o LDL, com três vezes mais chances, e níveis
excesso de peso e a obesidade podem pro- elevados de triglicerídeos, com sete vezes
vocar já na própria fase de infância e ado- mais chances na comparação com as crian-
lescência, a maior preocupação é que esse ças e adolescentes com o peso normal.
problema pode persistir na idade adulta. Moura e colaboradores (2004) ava-
Como se não bastasse o excesso de peso e liaram a prevalência de pressão arterial
a obesidade serem problemas importan- elevada em uma amostra de 1.253 crianças
tes nessa faixa etária, outros fatores de ris- e adolescentes entre 7 e 17 anos de Maceió
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 25
(AL). A pressão arterial elevada foi deter- Franca e Alves (2006) descreveram
minada quando a medida da pressão arte- a prevalência de dislipidemia e excesso de
rial sistólica e/ou diastólica apresentou-se peso entre 414 crianças e adolescentes de
igual ou maior que a encontrada no per- 5 a 15 anos do estado de Pernambuco. Os
centil 95 nas tabelas de referência do Upda- resultados mostraram que 29,7% foram
te on the 1987 Task Force Report on High classificados como dislipidêmicos (perfil
Blood Presssure in Children and Adolescents lipídico caracterizado por altos níveis de
(Task, 1996). Observou-se prevalência de triglicerídeos, colesterol total e colesterol
9,4% de pressão arterial elevada quando LDL), e, entre as crianças e adolescentes
as medidas foram avaliadas de forma iso- avaliados, 18,9% e 12,4% apresentavam
lada e prevalência de 7,7% quando consi- níveis plasmáticos de triglicerídeos mais
derada apenas a média das duas medidas. altos que os recomendados para a faixa
Encontrou-se maior prevalência de pres- etária.
são arterial elevada entre os escolares e Um outro grave problema é o taba-
adolescentes classificados com excesso de gismo, que é considerado o maior fator de
peso seguindo as classificações do Center risco para todas as doenças crônicas. Es-
for Disease Control and Prevention (2001). tudo realizado em 5.914 adolescentes com
Souza e colaboradores (2004) avalia- 18 anos em 2000 mostrou prevalências de
ram 39 crianças e adolescentes obesos, en- 15,6% de fumantes, e por volta de 50%
tre 5 e 16 anos, para identificar a presença dos fumantes com 18 anos experimenta-
de resistência à insulina e estabelecer rela- ram cigarro na adolescência (Menezes;
ções entre essa resistência, idade, sexo, trigli- Hallal; Horta, 2007).
cerídeos, colesterol, acantose nigricans e his- A Tabela 2.1 apresenta as principais
tórico familiar de diabete melito tipo II. Co- características dos estudos citados. Ressal-
mo critério de inclusão, as crianças e os ta-se que são dados preocupantes de pro-
adolescentes tinham que apresentar índi- blemas anteriormente mais comuns em
ce de massa corporal igual ou superior ao pessoas adultas, cuja prevalência, hoje
percentil 95 para sexo e idade, seguindo comum em crianças e adolescentes, é con-
os critérios do Center for Disease Control siderada alarmante.
and Prevention (2001). Todos os partici-
pantes foram submetidos ao teste de tole-
rância à glicose oral e foi calculado o Ho- ATIVIDADES FÍSICAS PARA
meostatic Model Assessment-Insulin Resis- CRIANÇAS E ADOLESCENTES
tance (HOMA). Diabete melito tipo II e in-
tolerância à glicose foram determinados A recomendação atual para a prática
como glicemia de jejum maior ou igual a de atividade física na adolescência é de que
126 mg/dL e glicemia 120 minutos pós- todo jovem deveria envolver-se, diaria-
-sobrecarga de glicose maior ou igual a 140 mente, por cerca de 60 minutos ou mais
mg/dL. Os resultados mostraram que 5,1% em atividades físicas moderadas e/ou vi-
apresentavam diabete melito tipo II, 15,4%, gorosas pelo menos cinco vezes por sema-
intolerância à glicose e 90,8%, índice na (Strong et al., 2005; Pate et al., 2002).
HOMA. Essas atividades físicas devem ser desen-
volvidas de forma apropriada, divertida e
conter uma grande variedade de movimen-
Problemas comuns em adultos, como tos (Strong et al., 2005).
pressão arterial elevada, estão começan- Essa recomendação tem origem no
do a aparecer já nos adolescentes. United Kingdom Expert Consensus Group
e foi confirmada como ideal no estudo re-
26 Dante De Rose Jr. e colaboradores

TABELA 2.1 Estudos de fatores de risco e doenças crônicas realizados com amostras de adolescentes
em diversas regiões do Brasil
Autores N Idade Local Fator de risco Prevalência

Guedes e Guedes 4.289 7 – 17 anos Londrina (PR) Obesidade 13,7%


(1998) 12,3%

Excesso de peso 12,3%


11,3%

Abrantes, 7.260 0 – 19 anos Regiões Sudeste e Obesidade


Lamounier e Nordeste do Brasil – crianças Nordeste: 8,2%
Colosimo (2002) Sudeste: 11,9%

– adolescentes Nordeste: 4,2%


Sudeste: 1,7%

Excesso de peso
– adolescentes Nordeste: 6,6%
Sudeste: 10,4%

Moura e cols. 1.253 7 – 17 anos Maceió (AL) Pressão arterial 9,41%


(2004) elevada
Diabete melito 5,1%
tipo II

Souza e cols. 39 5 – 16 anos São José do Rio Intolerância à 15,4%


(2004) Preto (SP) glicose
Resistência à 90,8%
insulina

Franca e Alves 414 5 – 15 anos Recife (PE) Dislipidemia 29,7%


(2006)

Menezes, Hallal 5.915 18 anos Pelotas (RS) Tabagismo 15,6%


e Horta (2007)

a 12a séries que utilizaram acelerômetro


Crianças e adolescentes devem realizar (CSA, modelo 7164) por sete dias conse-
pelo menos 60 minutos de atividades fí-
cutivos. Os participantes foram avaliados
sicas moderadas ou vigorosas cinco ve-
zes por semana. quanto à prática de atividade física de acor-
do com as recomendações apresentadas no
Quadro 2.1.
Observou-se que 91,7% dos estudan-
alizado por Pate e colaboradores (2002). tes atingiram o objetivo 22.6 e 69,3% atin-
Os autores realizaram um estudo com o giram o objetivo 22.7 do Healthy People
objetivo de determinar a porcentagem de 2010, enquanto apenas 2,4% dos partici-
crianças e jovens em certa população que pantes atingiram a recomendação do
atingiam as recomendações para prática United Kingdom Expert Consensus Group.
de atividade física. Foram pesquisados 375 Nesse sentido, os autores concluíram que
estudantes de Massachusetts (EUA) da 1a o objetivo 22.6 apresenta um padrão mui-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 27

QUADRO 2.1 Recomendações de atividades físicas e definições operacionais estabelecidas para


o estudo

Fonte Recomendação Definição operacional

Healthy People 2010 Atividade física moderada > 30 Intensidade >3 METs
Objetivo 22.6 minutos/dia em 5 ou mais dias por
semana

Healthy People 2010 >20 minutos/dia de atividade Intensidade >6 METs


Objetivo 22.7 física vigorosa que promova 20 minutos contínuos
melhora e manutenção da
capacidade cardiorrespiratória em
3 ou mais dias por semana

United Kingdom Expert >60 minutos/dia de atividades Intensidade >3 METs


Consensus Group físicas moderadas ou vigorosas em
5 ou mais dias por semana

Fonte: Pate e cols. (2002).

to baixo de exigência, já que a maioria dos cas no deslocamento e no lazer, e os fato-


jovens atingiu a recomendação, enquanto res associados em 4.452 adolescentes en-
o objetivo 22.7 não é adequado para jo- tre 10 e 12 anos de idade da cidade de
vens, porque recomenda uma forma de ati- Pelotas (RS). Dentre os 4.413 adolescen-
vidade física mais comum entre adultos e tes que frequentavam a escola, 72,8% fa-
difere das formas de atividades físicas rea- ziam uso do transporte ativo (caminhada
lizadas por crianças e adolescentes. A re- ou bicicleta) para chegar até ela. O deslo-
comendação do United Kingdom Expert camento ativo para a escola foi maior em
Consensus Group foi considerada como a crianças e adolescentes com baixo nível
ideal para crianças e adolescentes e tem socioeconômico, que moravam em casas,
sido adotada em estudos de diversos paí- que estudavam em escolas públicas e cujas
ses, incluindo o Brasil (Figura 2.1). mães eram inativas no lazer e obesas. Além
disso, crianças e adolescentes que tinham
o menor tercil de índice de massa corpo-
Alguns estudos realizados no Brasil mos- ral e que não usavam o computador regu-
traram que mais de 50% das crianças e larmente também deslocavam-se mais ati-
dos adolescentes não atingiram as re- vamente para a escola. As modalidades es-
comendações atuais de atividade física. portivas mais praticadas foram futebol
para os meninos e voleibol para as meni-
nas. Entre todas as crianças avaliadas,
Um dos primeiros estudos de base 99,1% participavam das aulas regulares de
populacional utilizando esse ponto de cor- educação física escolar; 13,6% praticavam
te em adolescentes no Brasil foi realizado atividades físicas com instrutor dentro da
por Hallal e colaboradores (2006). Por escola; e 15,8% participavam de ativida-
meio de um estudo de coorte, os autores des físicas com instrutor fora da escola.
descreveram os níveis de atividades físi- Quanto às atividades físicas no lazer, os
28 Dante De Rose Jr. e colaboradores

Figura 2.1 Proporção de crianças e adolescentes que não atingiram as recomendações de pelo
menos 300 minutos por semana de atividades físicas em alguns estudos realizados no Brasil.

meninos praticavam mais do que as meni- tre 16 e 19 anos (em comparação com ado-
nas, os adolescentes de maior nível socio- lescentes de 14 a 15 anos), nos alunos que
econômico praticavam mais em compara- estavam cursando o terceiro ano do ensi-
ção com os adolescentes de menor nível, no médio, em níveis socioeconômicos mais
quem teve a mãe ativa no lazer praticou altos, nos adolescentes que relataram fu-
mais em comparação com quem não teve, mar cigarros, usar bebidas alcoólicas, em
e quem jogou videogame por mais de uma adolescentes que não participavam das
hora por dia foi mais ativo em relação a aulas de educação física escolar, que não
quem não jogou ou jogou menos de uma tinham incentivo dos pais, que permane-
hora por dia. ciam mais do que três horas assistindo te-
Ceschini, Florindo e Benício (2007) levisão e que jogavam uma hora ou mais
avaliaram a prevalência de inatividade fí- de videogame diariamente. Alguns resul-
sica e fatores associados entre 775 adoles- tados encontrados nesse estudo, como a
centes (14 a 19 anos), estudantes de uma utilização do videogame por mais de uma
escola pública localizada em uma região hora ao dia e o nível socioeconômico da
com alto índice de vulnerabilidade juve- família, foram similares aos resultados en-
nil, no município de São Paulo. O questio- contrados no estudo com adolescentes de
nário utilizado para avaliar o nível de ati- 10 a 12 anos da cidade de Pelotas (Hallal
vidade física foi composto por questões re- et al., 2006a). É interessante ressaltar que
ferentes à prática de exercícios físicos ou a maior parte das atividades físicas prati-
esportes fora da escola e atividades físicas cadas pelos adolescentes teve contribuição
de deslocamento para a escola. Os resul- do deslocamento ativo, pois, caso este não
tados mostraram que 77,9% dos adoles- fosse considerado, a prevalência de ado-
centes relataram caminhar ou ir de bici- lescentes que não atingiriam as recomen-
cleta para a escola. As principais modali- dações aumentaria para 84,4% (Ceschini;
dades praticadas no lazer foram futebol, Florindo; Benício, 2007).
treinamento com pesos e caminhada. A Seabra e colaboradores (2008) rea-
prevalência de adolescentes que não atin- lizaram uma revisão bibliográfica para re-
giram as recomendações, considerando os ver alguns aspectos do estado atual do co-
300 minutos por semana, foi de 64,3% e nhecimento acerca da influência de deter-
foi maior nos adolescentes com idade en- minantes de âmbito demográfico, biológi-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 29
co e sociocultural das atividades físicas de
adolescentes. Os autores identificaram um Estudos no Brasil mostram que os ado-
lescentes de menor nível socioeconômico
declínio na atividade física com o avanço
se deslocam mais a pé ou de bicicleta,
da idade. Apesar da opinião generalizada enquanto os de maior nível socioeconô-
da importância da escola, muito parti- mico são mais ativos no lazer e na práti-
cularmente da disciplina de educação físi- ca de esportes e exercícios físicos.
ca e o seu professor, na promoção e de-
senvolvimento de estilos de vida saudáveis,
os autores observaram que os resultados
disponíveis na literatura atual são ainda município de Piracicaba, SP. A análise de
controversos e não permitem obter con- atividade física mostrou que 54,9% dos
clusões esclarecedoras acerca da possível adolescentes não atingiram as recomen-
influência do professor de educação física dações dos 300 minutos por semana, sen-
sobre a atividade física de seus alunos. De do 65% do sexo feminino e 35% do sexo
acordo com os autores, os meninos apre- masculino.
sentaram maior participação em ativida- Reis e colaboradores (2008, no pre-
des físicas (principalmente atividades es- lo) avaliaram a associação da prática de
portivas e de intensidade vigorosa), en- atividade física entre adolescentes e a per-
quanto as meninas parecem preferir ativi- cepção dos mesmos em relação às carac-
dades de lazer e baixa intensidade. Os re- terísticas ambientais dos parques públicos
sultados acerca da associação entre ní- de Curitiba (PR). A amostra foi composta
vel socioeconômico e atividade física não por 1.718 adolescentes (671 rapazes e 979
são suficientemente esclarecedores, pro- moças) de 14 a 18 anos. Foram classifica-
vavelmente devido à grande variabilidade dos como ativos os adolescentes que pra-
dos métodos utilizados para avaliar o ní- ticavam 60 minutos de atividade física
vel socioeconômico. O suporte social ofe- moderada ou vigorosa em cinco ou mais
recido pela família e pares representa um dias da semana. Os adolescentes informa-
fator significativo no envolvimento e na ram o número de dias por semana que pra-
participação de crianças e adolescentes em ticavam atividades físicas em parques e o
comportamentos saudáveis como a práti- o tempo de percurso (caminhando) até o
ca de atividades físicas. Os resultados de- local. As características ambientais perce-
monstram que, com o decorrer da idade, bidas pelos adolescentes que poderiam in-
a influência da família em relação à ativi- fluenciar a prática de atividade física fo-
dade física dos adolescentes tende a dimi- ram avaliadas por meio de questões sobre
nuir, enquanto a dos pares costuma au- as facilidades do parque, segurança, com-
mentar. portamento social dos outros frequenta-
dores e acessibilidade. A análise das ativi-
dades físicas mostrou que 78,3% dos ra-
pazes e 90,9% das moças não atingiram
Os meninos são mais ativos no lazer e as recomendações dos 300 minutos de ati-
no deslocamento do que as meninas.
vidades físicas moderadas ou vigorosas por
semana. Mais da metade dos rapazes
(54,4%) e 46,2% das moças relataram a
Romero (2007) estudou as relações existência de um parque a menos de 30
entre atividades físicas e o índice de mas- minutos de caminhada. As principais ca-
sa corporal em 328 adolescentes (meni- racterísticas ambientais percebidas pelos
nas e meninos) com idade entre 10 e 15 adolescentes e que foram associadas com
anos, estudantes de escolas públicas do o não engajamento na prática de ativida-
30 Dante De Rose Jr. e colaboradores

de física em parques públicos foram: ter BENEFÍCIOS IMEDIATOS


pessoas da mesma idade, dificuldade para DA ATIVIDADE FÍSICA EM
se chegar ao parque, falta de espaço para CRIANÇAS E ADOLESCENTES
a atividade, falta de equipamentos, não ter
oferta de diferentes atividades para esco- Nas últimas duas décadas, observou-
lher a que mais agrade, comportamento -se um aumento no número de estudos que
dos outros usuários, pouca iluminação. investigaram os efeitos da prática de ati-
Os resultados dos estudos realizados vidades físicas na prevenção e na reabili-
em diversas cidades do Brasil mostram que tação de doenças crônicas e seus fatores
mais de 50% dos adolescentes não atin- de risco na infância e na adolescência. Al-
gem as recomendações atuais de ativida- guns estudos foram selecionados para a
des físicas, fato muito preocupante e que discussão neste capítulo (Tabela 2.2).
merece atenção das políticas públicas para Um dos benefícios imediatos de maior
essa faixa etária. magnitude que a prática de atividades fí-
sicas oferece para crianças e adolescentes
é a melhora na aptidão física relacionada
Não fumar, não consumir álcool e ter à saúde. Benefícios advindos da melhora
apoio da família, além da existência de na aptidão cardiorrespiratória, força mus-
estruturas ambientais como locais ade- cular, flexibilidade e composição corporal
quados, são fatores que contribuem para contribuem para a melhora das atividades
que crianças e adolescentes sejam mais da vida diária nessa faixa etária.
ativos no lazer. Cooper e colaboradores (2006) ava-
liaram a relação entre transporte ativo para
a escola e aptidão cardiorrespiratória de
Quanto aos diferentes fatores sociais, crianças com média de idade de 9,7 anos
demográficos e de estilo de vida associa- (dp = 0,5 anos) e adolescentes com mé-
dos às atividades físicas, os estudos mos- dia de idade de 15,5 anos (dp = 0,4 anos).
traram que: os meninos são mais ativos que A aptidão cardiorrespiratória foi determi-
as meninas; o deslocamento ativo (por meio nada por cicloergômetro com aumento
de caminhada e bicicleta) é mais comum progressivo da carga até a exaustão. Os
em crianças e adolescentes de menor nível participantes responderam a um questio-
socioeconômico e é o que determina mais nário computadorizado que incluía itens
o total de atividades físicas praticadas; fa- relativos às atividades físicas, como o modo
tores como não fumar e não consumir ál- como se locomoviam de casa para a esco-
cool contribuem para a atividade física; os la e o tempo total desse deslocamento.
mais jovens e os que têm apoio da família Além disso, as atividades físicas foram
são mais ativos. Porém, quando se analisa mensuradas por acelerometria. O ponto de
somente as atividades físicas no lazer, ado- corte estipulado para estimar atividade fí-
lescentes de nível socioeconômico mais alto sica total diária de intensidade moderada
são mais ativos, além dos que recebem in- e vigorosa foi de 3 mil contagens de movi-
centivo da família, sem contar que a estru- mentos por minuto. Entre as crianças, a
tura ambiental de locais adequados é pri- forma mais comum de transporte de casa
mordial para o aumento do nível de ativi- para a escola foi a bicicleta (38,3%), se-
dades físicas no lazer como um todo, con- guida de caminhada (25,8%), carro
tando esportes e exercícios físicos nessa fai- (23,2%) e ônibus/trem (12,6%). A bici-
xa etária. cleta também foi a forma de transporte
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 31
TABELA 2.2 Resumo dos estudos que investigaram os benefícios imediatos da atividade física para
crianças e adolescentes
Autores N Idade Tipo de estudo Variável Conclusão

Fernandez e cols. 28 15-19 anos Ensaio clínico Obesidade Exercício aeróbio e


(2004) randomizado e anaeróbio são efetivos
controlado na redução da gordura
corporal.

Mello, Luft e 38 7-13 anos Ensaio clínico Obesidade Aumento do nível de


Meyer (2004) randomizado atividade física e
redução do índice de
massa corporal.

Cooper e cols. 919 Crianças: Transversal Aptidão Pedalar para ir à escola


(2006) 9,7+0,5 anos física contribui para uma
melhor aptidão
Adolescentes: cardiovascular em
15,5+0,4 anos jovens.

Baquet e cols. 551 11-16 anos Ensaio clínico Aptidão Treinamento aeróbio de
(2001) randomizado e física intensidade alta contribui
controlado de forma significativa
para melhora da
aptidão aeróbia e
da força muscular.

Kontulainen 99 12,5+1,5 anos Ensaio clínico Massa Um ganho adicional na


e cols. (2002) controlado mineral massa mineral óssea,
óssea alcançado por meio de
um treinamento de
saltos, é mantido por
menos de um ano após
o término do mesmo.

Molt e cols. 4.594 – Ensaio clínico Saúde Mudanças ocorridas de


(2004) randomizado mental forma natural na
atividade física
encontram-se negativa-
mente relacionadas
com mudanças nos
sintomas depressivos.

Bonhauser e cols. 198 15 anos Ensaio clínico Saúde Um programa de


(2005) randomizado e mental intervenção com objetivo
controlado de elevar a atividade
física de adolescentes de
baixo nível socioeco-
nômico promove
benefícios significativos
na aptidão física e na
saúde mental dos
participantes.

(continua)
32 Dante De Rose Jr. e colaboradores

TABELA 2.2 Resumo dos estudos que investigaram os benefícios imediatos da atividade física para
crianças e adolescentes (continuação)
Autores N Idade Tipo de estudo Variável Conclusão

Castelli e cols. 259 – Transversal Desempe- Existe associação


(2007) nho positiva e significativa
acadêmico entre melhor condicio-
namento aeróbio e
menor índice de massa
corporal com desempe-
nho acadêmico.

Ewart, Young e 99 – Ensaio clínico Pressão O exercício aeróbio


Hagberg (1998) randomizado arterial promove reduções na
pressão arterial sistólica
e apresenta-se como
uma estratégia possível
e efetiva na promoção
da saúde para garotas
com alto risco de
hipertensão arterial.

Basaram e cols. 62 10,04 +2,1 Ensaio clínico Asma Oito semanas de


(2006) anos randomizado e exercício submáximo
controlado regular oferecem efeitos
benéficos na qualidade
de vida de crianças com
asma.

mais comum entre os adolescentes (65,6%), centes entre 11 e 16 anos. Os adolescen-


seguida de caminhada (20,8%), ônibus/ tes foram divididos em dois grupos (trei-
trem (10,8%) e carro (2,8%). As crianças namento e controle). O grupo controle rea-
e os adolescentes que fizeram uso da bici- lizou três horas semanais de educação físi-
cleta para ir à escola apresentaram apti- ca (jogos como handebol e badminton). O
dão cardiorrespiratória significativamen- grupo treinamento participou de duas ho-
te melhor do que os estudantes que faziam ras semanais de educação física e foi sub-
uso de carro, ônibus ou trem. metido a uma hora adicional de sessões
específicas de treinamento intervalado,
com execuções de exercícios de curta du-
ração de 10 segundos em alta intensidade
As atividades físicas na adolescência
melhoram a aptidão cardiorrespiratória
com base nos resultados do teste de corri-
e a força muscular. da de vai e vem de 20 metros. Todos os
participantes foram submetidos a testes
para avaliar a aptidão física nas capacida-
des de flexibilidade, agilidade, velocida-
Baquet e colaboradores (2001) ana- de, aptidão cardiorrespiratória e força
lisaram os efeitos de um programa de trei- muscular antes e após o período de inter-
namento aeróbio de alta intensidade com venção. Os resultados mostraram que, tan-
duração de 10 semanas em diferentes com- to para os meninos quanto para as meni-
ponentes da aptidão física de 551 adoles- nas, o treinamento de alta intensidade con-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 33
tribuiu de forma significativa para melho- ergométrica e seguindo recomendação
ra da aptidão aeróbia e da força muscular. para perda de massa gorda do American
Além da melhora na aptidão física College of Sports Medicine, que reco-
relacionada à saúde como benefício ime- menda trabalhar com aproximadamen-
diato, alguns estudos mais recentes têm te 60 a 70% do consumo máximo de
procurado discutir o quanto as atividades oxigênio;
físicas podem contribuir na prevenção e 3. grupo controle: não treinou.
reabilitação da obesidade, que, como foi
discutido anteriormente, é um dos princi- Para todos os grupos foram ofereci-
pais problemas de saúde pública de crian- das orientações nutricionais. Os autores
ças e adolescentes na atualidade. concluíram que, independentemente do
Summerbell e colaboradores (2003) tipo de exercício físico escolhido para o
avaliaram as evidências científicas quanto tratamento da obesidade, a intensidade da
aos efeitos das intervenções de estilo de atividade física deve ser sempre progres-
vida no tratamento da obesidade infantil siva, já que crianças e adolescentes não
no período de 1985 a 2001. Foram selecio- treinados e/ou inativos fisicamente não
nados 18 ensaios clínicos randomizados e são capazes de realizar atividades de alta
controlados com 975 participantes. Os intensidade no início do tratamento.
autores não puderam chegar a uma con-
clusão segura quanto ao papel da ativida-
de física no tratamento da obesidade na
adolescência, devido principalmente às li- Alguns estudos no Brasil mostram que
mitações metodológicas e à qualidade dos as atividades físicas contribuem para a
prevenção e, principalmente, para a rea-
dados dos estudos originais. Outro traba-
bilitação da obesidade na adolescência.
lho de revisão sistemática mostrou que são
poucos os estudos longitudinais que mos-
tram que a atividade física atua na pre-
venção da obesidade em crianças e ado- Mello, Luft e Meyer (2004) realiza-
lescentes (Reichert et al., 2009, no prelo). ram um estudo com o objetivo de testar
Porém, alguns estudos no Brasil têm mos- duas diferentes estratégias de reabilitação
trado que as atividades físicas podem con- da obesidade infantil em crianças e ado-
tribuir na reabilitação desse problema em lescentes de 7 a 13 anos. Os participantes
crianças e adolescentes. foram divididos em dois grupos: atendi-
Em estudo realizado com 28 adoles- mento ambulatorial individualizado e pro-
centes obesos entre 15 e 19 anos de idade, grama de educação em saúde em grupo.
Fernandez e colaboradores (2004) obser- O programa ambulatorial foi conduzido no
varam que tanto o exercício aeróbio quan- ambulatório de suporte nutricional pediá-
to o anaeróbio foram efetivos no tratamen- trico do Hospital de Clínicas de Porto Ale-
to da obesidade, no aumento da massa li- gre. Para esses participantes, foi assegura-
vre de gordura e na redução da gordura da uma consulta mensal, quando eram pe-
corporal. Durante o estudo, os adolescen- sados, medidos e orientados quanto à ali-
tes foram alocados em três grupos: mentação e ao aumento da atividade físi-
ca. O programa de educação foi composto
1. treinamento anaeróbio: treinamento por encontros mensais com aulas exposi-
intervalar em bicicleta ergométrica (12 tivas de 45 minutos. Após as aulas, os par-
execuções de 30 segundos); ticipantes eram divididos em quatro gru-
2. treinamento aeróbio: realizado tam- pos, de acordo com sexo e idade, e reali-
bém com a utilização de bicicleta zavam atividades como revisão da aula e
34 Dante De Rose Jr. e colaboradores

do compromisso do encontro anterior, rea- lhora na aptidão cardiorrespiratória e


lização de uma tarefa relacionada com o maior redução nos valores da pressão ar-
tema da aula, planejamento de objetivos terial sistólica quando comparadas ao gru-
para o próximo mês e atividades livres. Os po de educação física padronizada e con-
resultados mostraram que houve redução cluíram que esses tipos de exercícios físi-
dos níveis de inatividade física, do índice cos são estratégias efetivas na promoção
de massa corporal e do consumo energé- da saúde para garotas com alto risco de
tico total no grupo do atendimento ambu- hipertensão arterial.
latorial, e os participantes do grupo do Outro benefício imediato das ativida-
programa de educação apresentaram au- des físicas está relacionado com a maximi-
mento na prática esportiva, na frequência zação do pico de massa óssea, variável
de caminhada, na prática de atividades fí- extremamente importante para a preven-
sicas de finais de semana e redução da ina- ção de doenças futuras, como a osteo-
tividade física, do colesterol total, do índice porose. Segundo Ortega e colaboradores
de massa corporal e do consumo energé- (2008), recomenda-se iniciar a prática es-
tico total. portiva ou o exercício físico na infância e
Outros problemas crônicos, como hi- manter esse hábito durante a adolescên-
pertensão arterial, também têm a contri- cia para obter o máximo de benefício na
buição imediata da reabilitação por meio manutenção da massa óssea futura.
da prática de atividades físicas. Torrance Kontulainen e colaboradores (2002)
e colaboradores (2007) realizaram revisão avaliaram o efeito imediato e um ano após
bibliográfica com o objetivo de reunir o término de uma intervenção de nove me-
atuais evidências existentes na literatura ses de exercícios físicos de saltos no ganho
que descrevam a influência negativa da de massa óssea e performance física de 99
obesidade na pressão arterial e seus deter- meninas com média de idade no início do
minantes em crianças. Uma das evidências estudo de 12,5 anos (dp = 1,5 anos). As
encontradas na revisão foi que pelo me- participantes foram divididas em dois gru-
nos 40 minutos de atividades físicas aeró- pos, treinamento e controle, e submetidas
bias moderadas ou vigorosas, de 3 a 5 ve- a testes e medidas que avaliaram antropo-
zes por semana, parecem promover me- metria, maturação sexual, ingestão de cál-
lhora na função vascular e reduzir a pres- cio, desempenho muscular, aptidão motora
são arterial em crianças obesas. e massa mineral óssea. A intervenção con-
Ewart, Young e Hagberg (1998) ava- sistiu em duas sessões semanais, com dura-
liaram o efeito do exercício aeróbio na ção de 50 minutos cada, de treinamento
pressão arterial de 99 adolescentes afro- de step, sendo acrescidos saltos adicionais
-americanas com alto risco de hipertensão. no final de cada sessão. Os resultados mos-
Adolescentes com pressão arterial acima traram que as participantes do grupo trei-
do percentil 67 foram alocadas em dois namento apresentaram aumento de 4,9%
grupos: Projeto Heart com exercícios aeró- na massa mineral óssea da espinha lom-
bios e instruções didáticas ou educação bar quando comparadas às participantes
física padronizada. A intervenção consis- do grupo controle, indicando que o pico
tiu em exercícios aeróbios e instruções di- de massa óssea pode ser maximizado com
dáticas durante um semestre. Foram men- a prática de atividades físicas.
suradas a pressão arterial e a aptidão car- Problemas respiratórios, como a as-
diorrespiratória por meio de teste submá- ma, sem dúvida afetam a saúde e a quali-
ximo de step. Ao final do estudo, os auto- dade de vida de muitas crianças e adoles-
res observaram que as participantes do centes que vivem principalmente nos gran-
grupo exercício aeróbio apresentaram me- des centros urbanos, e algumas pesquisas
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 35
buscaram verificar os benefícios imedia- locomoção, sintomas e estado emocional.
tos das atividades físicas nesse tipo de pro- Um programa diário de exercícios respi-
blema. Em revisão sistemática realizada ratórios para serem realizados em casa,
com o objetivo de reunir evidências sobre fundamentado em técnicas de relaxamen-
os efeitos do treinamento físico na função to e respiração, foi sugerido para os dois
pulmonar, nos sintomas, na aptidão cardio- grupos. Não houve mudança significativa
pulmonar e na qualidade de vida em crian- na função pulmonar em nenhum grupo;
ças e adolescentes com asma, Ram, Robin- porém, houve mudanças benéficas na qua-
son e Black (2000) evidenciaram que o lidade de vida de crianças com asma no
treinamento físico não tem efeito na fun- grupo que praticou exercícios físicos.
ção pulmonar em descanso de crianças e O estudo dos benefícios imediatos
adolescentes com asma e concluíram que das atividades físicas na saúde mental de
o exercício físico melhora a capacidade car- crianças e adolescentes é um dos grandes
diopulmonar sem alterar a função pulmo- desafios na área de atividade física e saú-
nar, além de ter efeitos significativos na de, pois a literatura ainda é muito escas-
melhora da qualidade de vida de crianças sa. De acordo com Ortega e colaborado-
com asma. res (2008), após resumir os estudos rela-
tivos à aptidão física e à saúde em pessoas
jovens, as pesquisas sugerem que melho-
ras na aptidão cardiorrespiratória possuem
As atividades físicas na infância e na efeitos positivos a curto e longo prazo na
adolescência contribuem para diminuir
os níveis de pressão arterial e maximizar
depressão, na ansiedade, nos estados de
o pico de massa óssea na adolescência. humor e na autoestima em jovens, estan-
do também associadas com um melhor de-
sempenho acadêmico nessa faixa etária.
Molt e colaboradores (2004) exami-
Basaran e colaboradores (2006) in- naram durante dois anos a relação entre
vestigaram o efeito de exercícios físicos mudanças naturais na atividade física e sin-
submáximos na qualidade da função pul- tomas de depressão entre adolescentes. Os
monar de crianças asmáticas. Foram estu- participantes relataram a frequência de ati-
dadas 62 crianças com média de idade de vidade física realizada fora da escola e
10 anos (dp = 2,1 anos) alocadas aleato- completaram a escala do Center for Epide-
riamente em dois grupos: exercício físico miologic Studies Depression no início da 7a
e controle. O grupo exercício físico foi sub- série, no final da 7a série e no final da 8a
metido a um programa de treinamento de série. Os autores observaram que os valo-
basquetebol que incluía atividades mode- res mais altos de atividade física no início
radas e intensas. Durante dois meses, o do estudo foram associados com os valores
programa foi desenvolvido em uma fre- mais baixos dos sintomas depressivos, e a
quência de três vezes por semana, com mudança na atividade física ao longo do
duração de uma hora por sessão. As ses- tempo foi inversamente associada com a
sões eram constituídas de aquecimento (15 mudança nos níveis dos sintomas depressi-
minutos), treinamento submáximo de bas- vos. Concluiu-se que mudanças ocorridas
quetebol (30 a 35 minutos) e relaxamen- de forma natural na atividade física encon-
to com exercícios de flexibilidade (10 mi- tram-se negativamente relacionadas com
nutos). A qualidade de vida foi avaliada mudanças nos sintomas depressivos.
por meio do questionário PAQLQP, um ins- Bonhauser e colaboradores (2005)
trumento específico para asmáticos que realizaram um estudo quase experimen-
inclui 23 itens que avaliam atividade de tal com o objetivo de verificar os efeitos
36 Dante De Rose Jr. e colaboradores

de um programa de atividade física na ap- Além dos benefícios imediatos já abor-


tidão e na saúde mental de 198 adoles- dados, as atividades físicas podem ofere-
centes (15 anos) moradores de uma área cer benefícios psicológicos na formação da
de baixo nível socioeconômico em Santi- personalidade, educacionais e sociais.
ago, no Chile. O modelo educacional ado-
tado para o programa de intervenção te-
ve como base o sistema adult learning
approach, no qual as pessoas decidem o As atividades físicas contribuem para a
que querem aprender e são ativos quanto melhora da saúde mental de crianças e
às tomadas de decisões no processo ensi- adolescentes.
no-aprendizagem. Para tanto, os professo-
res das escolas participantes pesquisaram
as atividades de preferência dos estudan-
tes para que estes pudessem selecionar as A participação em atividades físicas
atividades das quais gostariam de partici- proporciona contatos sociais, e as crian-
par. Após um ano de intervenção, ao com- ças e adolescentes aprendem que entre eles
pararem os participantes do grupo inter- e o mundo existem outras pessoas, que
venção com o grupo controle, os autores para a convivência social é preciso obede-
observaram melhora significativa da capa- cer regras e ter determinados comporta-
cidade cardiorrespiratória, velocidade, an- mentos, aprendem a conviver com vitó-
siedade e autoestima, e concluíram que rias e derrotas, aprendem a vencer por
um programa de intervenção com objeti- meio do esforço pessoal, desenvolvem a
vo de elevar a atividade física de adoles- independência e a confiança em si mesmos
centes de baixo nível socioeconômico pro- e o sentido de responsabilidade (Martins
move benefícios significativos na aptidão et al., 2002).
física e na saúde mental dos participantes.
Castelli e colaboradores (2007) in-
vestigaram a relação entre aptidão física e BENEFÍCIOS DA ATIVIDADE
desempenho acadêmico em 259 estudan- FÍSICA PARA CRIANÇAS E
tes norte-americanos de 3a e 5a séries. A ADOLESCENTES NA IDADE ADULTA
aptidão física foi avaliada por meio do
Fitnessgram, bateria de testes rotineira- A fase de adolescência é um período
mente administrada nas aulas regulares de de grandes mudanças, e os ganhos relacio-
educação física com o objetivo de identifi- nados à prática de atividades físicas pare-
car aptidão muscular, capacidade aeróbia cem persistir e contribuir para melhor saú-
e composição corporal. O desempenho de e qualidade de vida também na idade
acadêmico foi avaliado através do Illinois adulta (Figura 2.2).
Standards Achievement Test (ISAT), que é Na revisão sistemática de Hallal e
um teste administrado anualmente em es- colaboradores (2006c) para avaliar os be-
tudantes de 3a a 8a séries de escolas públi- nefícios a curto e longo prazo da prática
cas de Illinois e serve como notificação de atividades físicas na adolescência, prin-
pública do desempenho acadêmico dos es- cipalmente quanto a algumas doenças crô-
tudantes, monitoramento do progresso in- nicas como as cardiovasculares, os autores
dividual do estudante e identificação da concluíram que os resultados de benefícios
eficácia da escola. Houve associação posi- imediatos dessa prática não persistem para
tiva entre melhor condicionamento aeró- a vida adulta. Portanto, para que os bene-
bio e menor índice de massa corporal com fícios de prevenção perdurem, os adoles-
desempenho em leitura e matemática. centes devem continuar praticando ativi-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 37

Figura 2.2 Benefícios imediatos e na idade adulta da prática de atividades físicas na infância e
adolescência.

dades físicas na vida adulta. Porém, os au- diovascular, como gordura corporal eleva-
tores concluíram também que comporta- da, níveis alterados de pressão arterial e
mentos sedentários na infância e na de lipídeos e baixa aptidão cardiorrespi-
adolescência, bem como baixa aptidão físi- ratória aos 40 anos. Foram selecionados
ca na adolescência, foram associados a pio- 166 homens com 40 anos participantes do
res desfechos relacionados à saúde na ida- estudo Leuven Longitudinal Study on
de adulta, como baixa aptidão cardiorres- Lifestyle, Fitness and Health. Os dados fo-
piratória, maior índice de massa corporal, ram coletados entre 1969 e 1974, quando
aumento nos níveis de colesterol total e os participantes tinham entre 13 e 18 anos,
tabagismo. em 1986 aos 30 anos, 1991 aos 35 anos e,
Nesse sentido, alguns estudos têm finalmente, em 1996 aos 40 anos. Na pri-
procurado estabelecer as relações entre meira fase (adolescência), a atividade fí-
práticas de atividades físicas na infância e sica foi estimada por meio de um questio-
adolescência e saúde cardiovascular na nário padronizado no qual eram registra-
idade adulta. das as atividades realizadas no último ano.
Lefevre e colaboradores (2002) inves- Na idade adulta, utilizou-se uma versão
tigaram a relação entre participação em adaptada do Tecumseh Community Health
esportes/atividades físicas na adolescên- Questionnaire, que estima as atividades
cia e na idade adulta e fatores de risco car- físicas no trabalho e no lazer. Os autores
38 Dante De Rose Jr. e colaboradores

não encontraram nenhuma relação entre Florindo e colaboradores (2002) rea-


atividade física na adolescência e risco lizaram um estudo com objetivo de deter-
cardiovascular aos 40 anos. minar a relação entre atividade física habi-
Um outro estudo nessa mesma linha tual ao longo da vida e densidade mineral
examinou a relação entre fatores de risco óssea em 326 homens com idade igual ou
para doença cardiovascular em adultos superior a 50 anos. A atividade física foi
jovens, aptidão física e atividade física aos avaliada por meio do questionário Baecke,
12 e 15 anos (Boreham et al., 2002). A que foi padronizado para a avaliação re-
amostra foi composta por 1.015 participan- trospectiva de atividades físicas estrutu-
tes do Young Hearts Project, e os partici- radas no lazer (exercícios físicos e espor-
pantes foram avaliados pela primeira vez tes) e no trabalho nos períodos de 10 a 20
aos 12 anos em 1989 e 1990, reavaliados anos, 21 a 30 anos e 31 a 50 anos, bem
em 1992 e 1993 aos 15 anos e, finalmen- como nos últimos 12 meses. Os autores evi-
te, em 1997 e 1999 aos 20 e 25 anos. Fo- denciaram que a prática de esportes e exer-
ram avaliados peso, estatura, maturação cícios físicos de 10 a 20 anos foi associada
sexual, espessura de dobras cutâneas, co- positivamente com a massa óssea atual dos
lesterol total, padrões de atividade física homens, mostrando que as atividades físi-
e tabagismo de todos os participantes. Os cas praticadas na fase da adolescência con-
autores não encontraram relação entre ati- tribuem para a preservação da massa ós-
vidade física ou participação em esportes sea e para a prevenção da osteoporose.
na adolescência e risco cardiovascular na Rideout, McKay e Barr (2006) avalia-
idade adulta. ram a prática de atividades físicas ao longo
Esses dois resultados ressaltam bem da vida e a densidade mineral óssea atual
o que Hallal e colaboradores (2006c) en- em mulheres na pós-menopausa. A ativida-
contraram na revisão sistemática, pois indi- de física foi avaliada com a utilização do
cam que os ganhos fornecidos pela práti- Historical Leisure Activity Questionnaire,
ca de atividades físicas na infância e na que avalia o tempo despendido em ativi-
adolescência são facilmente perdidos, e dades físicas de lazer desde os 12 anos de
indivíduos fisicamente ativos poderiam ter idade. A densidade mineral óssea foi de-
chances similares para as doenças cardio- terminada por meio da absortometria de
vasculares em comparação com os indiví- raio X de dupla energia. A atividade física
duos que não praticaram atividades físi- na adolescência foi associada à densidade
cas nessa fase da vida. mineral óssea na espinha lombar e no fê-
Os estudos evidenciam resultados mur proximal das mulheres. Os autores
muito promissores com relação à prática concluíram que a atividade física modera-
de atividades físicas na infância e na ado- da durante o período de maior aquisição
lescência para a manutenção da massa óssea (adolescência) traz benefícios dura-
óssea na idade adulta e consequente pre- douros para os ossos em mulheres no pe-
venção da osteoporose. ríodo pós-menopausa.
Hallal e colaboradores (2006c) evi-
denciaram resultados consistentes na lite-
ratura em relação ao efeito protetor (a lon-
A atividade física praticada na infância go prazo) da atividade física na adolescên-
e na adolescência contribui para a pre- cia para a saúde óssea, e esse fato pode
venção de osteoporose no futuro. ser explicado porque os ganhos extras em
massa óssea durante o pico de crescimen-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 39
to podem ser importantes na prevenção de adolescentes, principalmente por permitir
fraturas provocadas pela osteoporose na a realização de intervenções interdiscipli-
idade adulta (Ortega et al., 2008). nares, propostas voltadas para a educação
Fora o efeito protetor a longo prazo em saúde, além de incluir a disciplina de
das atividades físicas em doenças como a educação física escolar, a qual proporcio-
osteoporose, o maior benefício que se pode na grande potencial na educação para a
ter dessa prática na infância e na adoles- atividade física e saúde.
cência é referente aos hábitos e compor-
tamentos futuros, pois estes costumam
persistir na idade adulta.
A escola é o local ideal para a promo-
ção da atividade física em crianças e
adolescentes.
Crianças e adolescentes mais ativos fisi-
camente têm mais chances de manterem
esse comportamento na idade adulta.

Nesse sentido, Florindo e colabora-


dores (1999) mostraram, em levantamen-
Azevedo e colaboradores (2007) ava- to de necessidades e expectativas sobre
liaram a associação entre prática de ativi- conteúdos da educação física escolar rea-
dade física na adolescência e atividade fí- lizado com alunos do ensino fundamental
sica de lazer na idade adulta em homens e (5a a 8a séries) de uma escola pública da
mulheres do município de Pelotas, RS. A zona leste do município de São Paulo, que
atividade física na idade adulta foi men- os alunos manifestaram interesse em es-
surada por meio da seção de lazer do ques- tudar temas relacionados à educação para
tionário internacional de atividade física atividade física, saúde e cultura corporal
(IPAQ – versão longa), e considerou-se por meio de vivências e aulas teóricas. Po-
como ponto de corte para classificação de rém, intervenções pedagógicas na educa-
adequadamente ativos a recomendação ção física escolar relacionadas à saúde e à
atual de 150 minutos de atividades físicas qualidade de vida ainda são muito escas-
por semana. Os autores verificaram que sas. Marques e Gaya (1999), em estudo
os indivíduos envolvidos em atividades fí- de revisão que analisou a produção do co-
sicas no lazer entre 10 a 19 anos, incluin- nhecimento da área pedagógica relaciona-
do esportes e exercícios físicos, tiveram da à atividade física, à aptidão física e à
mais chances de serem ativos no lazer na educação para saúde em Portugal e no
idade adulta independentemente de sexo, Brasil, argumentaram que é muito reduzi-
cor da pele, idade e nível socioeconômico. do o número de estudos abordando essa
temática e grande parte dos estudos exis-
tentes é de natureza especulativa ou re-
ESTRATÉGIAS PARA AUMENTAR produção de países desenvolvidos.
OS NÍVEIS DE ATIVIDADES FÍSICAS A educação física escolar, como dis-
EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES ciplina integrante do currículo escolar,
deveria contribuir para a formação das
Acreditamos que a escola seja um dos pessoas. Porém, grande parte dos alunos
ambientes mais favoráveis para a promo- que passaram por essa disciplina no ensi-
ção das atividades físicas em crianças e no fundamental e médio continua não
40 Dante De Rose Jr. e colaboradores

possuindo conhecimentos básicos dos as-


pectos referentes às atividades físicas, prin- Conteúdos de atividade física e saúde
devem ser trabalhados na educação fí-
cipalmente quando relacionados a temas
sica escolar para a promoção da ativi-
importantes, como saúde e qualidade de dade física.
vida.
É interessante ressaltar que as vi-
vências práticas dentro das aulas de edu-
cação física escolar, por si só, não são efi- tinuada, resguardando a percepção de
cazes para manutenção ou melhora da autocompetência dos indivíduos (Nahas et
aptidão física (Guedes; Guedes, 1997). al., 1995; Guedes; Guedes, 1994).
Além disso, quando essas vivências são res- Florindo (1999) testou um progra-
tritas principalmente a atividades físicas ma de educação física escolar baseando-
vigorosas com o objetivo de melhora da -se nas propostas de Betti (1992), Nahas e
aptidão física, estas podem resultar em colaboradores (1995) e Guedes e Guedes
experiências negativas que contribuem (1994) em uma amostra de 20 estudantes
para a inatividade física no futuro (Taylor do ensino médio de escolas públicas da zona
et al., 1999). leste do município de São Paulo. Os estu-
dantes tinham idade entre 15 e 18 anos e
fizeram parte do Projeto Miramundo, um
curso profissionalizante em Vídeo e Foto-
Experiências negativas com atividades
físicas na infância e na adolescência es- grafia promovido em 1997, na Universi-
tão relacionadas com inatividade física dade Camilo Castelo Branco, como parte
na idade adulta. do programa de Capacitação Solidária do
Governo Federal. A estrutura de conteúdo
aplicada no curso de capacitação profissio-
As propostas de cultura corporal nal é expressa no Quadro 2.2. Foram mi-
(Betti, 1992) e educação para atividade nistradas três aulas semanais de 90 minu-
física e saúde (Nahas et al., 1995; Guedes; tos cada no período de agosto a dezembro
Guedes, 1994) são inovadoras. A primei- de 1997, e as estratégias didáticas ado-
ra tem como objetivo levar o aluno a des- tadas foram aulas expositivas, exibição de
cobrir os motivos para a prática de ativi- vídeos, leituras de textos, discussões em
dades físicas, favorecer o desenvolvimen- grupos, trabalhos individuais e em grupos,
to de atitudes positivas para com as ativi- trabalhos de expressão corporal, vivências
dades físicas, levar a aprendizagem de de atividades físicas e um trabalho indivi-
comportamentos adequados na prática de dual de conclusão de curso. Os resultados
atividades físicas e levar ao conhecimen- mostraram que houve mudança significa-
to, à compreensão e à análise do intelecto tiva na aprendizagem de conceitos como
de todas as informações relacionadas às atividade física, saúde e qualidade de vida
conquistas materiais e espirituais da cul- e que a maior parte dos alunos gostou e
tura corporal, dirigindo sua vontade e sua aprovou os conteúdos trabalhados, porém
emoção para a prática e a apreciação do ressaltando que gostariam de mais vivên-
corpo em movimento (Betti, 1992). A se- cias práticas.
gunda objetiva influenciar o comportamen- Outras estratégias mais amplas e in-
to dos alunos, proporcionando a aquisição terdisciplinares que não fiquem restritas
de conhecimentos, estimulando atitudes po- somente à educação física escolar devem
sitivas, propiciando independência e opor- fazer parte do planejamento das ações
tunizando experiências de atividades físi- quando o objetivo é a promoção das ativi-
cas agradáveis, que permitam a prática con- dades físicas para crianças e adolescentes.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 41

QUADRO 2.2 Tópicos do conteúdo programático elaborado para as oficinas de educação física
do Projeto Miramundo, São Paulo, SP, 1997

1. Saúde, doença, qualidade de vida, aptidão física, atividade física, exercício físico e esporte:
conceitos.
2. Histórico da atividade física e do processo saúde-doença.
3. Relações das atividades físicas com temas contemporâneos: obesidade; drogas; estética; futebol;
lazer; esportes radicais; estresse; meio ambiente; violência; trabalho.
4. Componentes de uma sessão de exercício físico: aquecimento; intensidade, frequência e
duração das atividades; controle da frequência cardíaca; relaxamento muscular.
5. Treinamento físico para a saúde: avaliação física; avaliação e treinamento da força; avaliação e
treinamento da flexibilidade; avaliação e treinamento da aptidão aeróbia; avaliação da composi-
ção corporal.

3. Capacitação de professores de Educa-


Estratégias como a implantação de pro- ção Física e outros líderes no ambiente
gramas de educação para a atividade
escolar.
física, treinamento de professores nas
escolas e mudanças ambientais com
aumento e melhora dos locais para a prá- A intervenção do Saúde na Boa foi
tica de atividades físicas nas escolas são realizada de março a dezembro de 2006
necessárias para o aumento do nível das em 20 escolas públicas, 10 na cidade do
atividades físicas de crianças e adoles- Recife e 10 na cidade de Florianópolis,
centes. sendo que cada cidade estabeleceu cinco
escolas de intervenção e cinco escolas de
controle. Antes e após a intervenção, fo-
ram avaliados os níveis de atividades físi-
Um exemplo recente foi o projeto cas e alimentação saudável por meio de
Saúde na Boa (www.saudenaboa.ufsc.br), questionários do projeto PACE, traduzidos
realizado de forma concomitante nas ci- e validados para essa intervenção (Nahas
dades de Florianópolis e Recife no ano de et al., 2008, no prelo). As intervenções in-
2006. O projeto fundamentou-se nas pro- cluíram três áreas principais caracteriza-
posições do programa Escolas Promotoras das por: educação para prática de ativida-
de Saúde, da Organização Mundial da Saú- de física e alimentação saudável com
de, e no Guia para Programas de Saúde website (www. saudenaboa.ufsc.br) desti-
nas Escolas e Comunidades, do Centro de nado ao uso de professores e estudantes,
Controle e Prevenção de Doenças (CDC/ pôsteres temáticos, panfletos para discus-
EUA). Esse estudo de intervenção teve são em aula; mudanças ambientais e
como objetivo a promoção das atividades organizacionais simples, como estaciona-
físicas e da alimentação saudável em ado- mento seguro para bicicletas, dia da fruta
lescentes de 15 a 24 anos de escolas pú- (distribuição de frutas da estação uma vez
blicas. As atividades foram organizadas em por semana durante 10 semanas), kit de
três áreas principais: educação física (U$500 para serem gastos
na compra de equipamentos e materiais
1. Mudanças organizacionais e ambientais; simples selecionados pelos alunos e pro-
2. Modificação curricular em Educação fessores de educação física) e eventos es-
Física; e peciais nos finais de semana, como cami-
42 Dante De Rose Jr. e colaboradores

nhadas e passeios ciclísticos; treinamento CONSIDERAÇÕES FINAIS


especial para professores em geral e profis-
sionais que trabalharam na coleta e treina- As crianças e adolescentes de hoje en-
mento de professores de educação física frentam problemas cada vez mais seme-
para modificação do currículo das aulas. lhantes aos dos adultos, principalmente
A intervenção foi planejada para atin- como a obesidade, que tem grande contri-
gir comportamentos associados ao aumen- buição de um estilo de vida inadequado,
to da obesidade em adolescentes (ativida- com níveis de atividades físicas insufi-
de física e hábitos alimentares) de acordo cientes e alimentação não saudável. Nos
com os seguintes critérios: deveria incluir inquéritos de atividades físicas que pesqui-
atividades culturalmente relevantes e re- samos no Brasil, a maioria das crianças e
cursos de baixo custo; as atividades deve- adolescentes não atingem as recomenda-
riam ser prazerosas e de fácil implanta- ções de atividades físicas. Sabemos que
ção; a educação física deveria incluir com- muitos fatores pessoais, demográficos e
ponentes relacionados à promoção da saú- ambientais podem influenciar as ativida-
de no seu currículo; as atividades deve- des físicas de crianças e adolescentes e
riam ser facilmente mantidas (após o pe- devem ser considerados no trabalho com
ríodo de intervenção) e possíveis para se essa faixa etária. Alguns benefícios ime-
disseminarem em outras escolas. Os alvos diatos, como controle e principalmente
específicos relacionados ao comporta- reabilitação da obesidade, melhora da saú-
mento foram: aumento do número de dias de mental, da qualidade de vida e de as-
em que o estudante acumulava 60 minu- pectos psicológicos em geral, e outros be-
tos ou mais de atividade física moderada nefícios na idade adulta, como a manu-
ou vigorosa; redução na proporção de tenção da massa óssea e a prevenção da
participantes que não acumulavam 60 osteoporose, além de manutenção dos ní-
minutos ou mais em nenhum dia da se- veis de atividades físicas e de um estilo
mana; aumento no consumo de frutas, de vida mais saudável, são conquistados
verduras e legumes por dia; e redução na pela prática de atividades físicas na in-
proporção de participantes que não con- fância e na adolescência. Estratégias para
sumiam nenhuma porção de frutas, ver- aumentar os níveis de atividades físicas
duras e legumes (Nahas et al., 2008, no em crianças e adolescentes devem ser am-
prelo). Os resultados mostraram que os plas e interdisciplinares. A escola é o me-
participantes do grupo de intervenção acu- lhor local para a promoção de atividades
mulavam 60 minutos ou mais de ativida- físicas, e a educação física escolar, junta-
des físicas em mais dias da semana em mente com modificações ambientais, tem
comparação com os participantes do gru- grande potencial de contribuição para a
po controle. A prevalência de inatividade promoção das atividades físicas em crian-
física diminuiu de 14,1% para 10,6% no ças e adolescentes.
grupo intervenção e aumentou de 14,8%
para 17,3% no grupo controle. Em Floria-
nópolis, a inatividade física caiu de 11,5% REFERÊNCIAS
para 8,3% no grupo intervenção e aumen-
tou de 13,2% para 13,6% no grupo con- ABRANTES, M. M.; LAMOUNIER, J. A.; COLOSIMO,
trole, enquanto em Recife a inatividade E. A. Prevalência de sobrepeso e obesidade em crian-
ças e adolescentes das regiões Sudeste e Nordeste.
física aumentou de 16,5% para 21,2% no J. Pediatr., v. 78, p. 335-340, 2002.
grupo controle e diminuiu de 19,8% para AMERICAN ACADEMY OF PEDIATRICS (AAP).
13,3% no grupo intervenção (Barros et al., Committee on Nutrition. Cholesterol in childhood.
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Esporte e atividade física na infância e na adolescência 43
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Esporte e atividade física na infância e na adolescência 45

O ESPORTE, A CRIANÇA E O
ADOLESCENTE: CONSENSOS
E DIVERGÊNCIAS
3
Osvaldo Luiz Ferraz

A opinião dos adultos sobre a prática es- cipalmente, à precocidade com que crianças
portiva de crianças e de adolescentes é são submetidas a competições esportivas e
unânime, ou seja, os pais não se opõem a a processos de treinamento sistematizado,
que seus filhos pratiquem esporte. Além podendo provocar efeitos psicológicos ne-
disso, devido à valorização da atividade gativos ao desenvolvimento harmônico da
física para a qualidade de vida, a tendên- personalidade. No caso dos adolescentes,
cia em considerar a prática esportiva tão em função de o esporte historicamente
importante quanto as atividades intelec- estar associado a propagandas políticas de
tuais tem crescido bastante nos últimos governos totalitários, muitos educadores
anos. Pesquisas têm demonstrado que os e pesquisadores o veem como uma forma
pais consideram a prática de esportes be- sutil de alienação da juventude.
néfica para a saúde e favorável ao rendi- Tanto em um caso quanto no outro,
mento escolar. trata-se de análises que procuram estabe-
Os argumentos que sustentam essa lecer um paralelismo entre a situação es-
posição relacionam-se à aquisição de regras portiva, sua estrutura e suas tradições e a
de conduta, de normas de comportamento organização político-econômica em que
e de valores sociais que fundamentam nos- vivemos, além do sistema de valores de
sa cultura. Pressupõe-se que atitudes de per- nossa civilização.
severança, de disciplina e de cooperação Apesar de o tema ser controverso e
exigidas na prática esportiva contribuam de a produção científica, sobretudo no
para a formação da personalidade. Outro Brasil, ainda não fornecer elementos para
aspecto mencionado é o de que a competi- um posicionamento mais específico, estu-
tividade adquirida no esporte pode ser dos em desenvolvimento humano têm
transferida para a competitividade ineren- apontado princípios básicos para a estrutu-
te à vida social, sobretudo profissional, pre- ração de programas esportivos adequados
parando a criança e o adolescente para en- às crianças e aos adolescentes. Essas pes-
frentar a vida mais adequadamente (Tani; quisas podem auxiliar na indicação de
Teixeira; Ferraz, 1994). parâmetros gerais de adequação, inibindo
Entretanto, muitos pais, professores análises carregadas de preconceitos, com
e pesquisadores têm questionado o en- base na experiência particular da vida de
volvimento de crianças e de adolescentes renomados atletas ou até mesmo de pais
em práticas esportivas sem restrições. O que gostariam de compensar frustrações
argumento apresentado diz respeito, prin- antigas no campo esportivo.
46 Dante De Rose Jr. e colaboradores

meios de comunicação. É fundamental que


Estudos em desenvolvimento humano eventuais restrições à participação em
têm apontado princípios básicos para a
competições no esporte não sejam inter-
estruturação de programas esportivos
adequados às crianças e aos adolescen- pretadas como restrições à prática de ati-
tes. Essas pesquisas podem auxiliar na vidades esportivas em geral.
indicação de parâmetros gerais de ade- O esporte no Brasil é conceituado
quação, inibindo análises carregadas de como uma ação social institucionalizada,
preconceitos, com base na experiência com regras convencionais, apresentando
particular da vida de renomados atletas caráter lúdico na forma de competição
ou até mesmo de pais que gostariam de entre duas ou mais pessoas oponentes ou
compensar frustrações antigas no cam-
contra a natureza, cujo objetivo é a com-
po esportivo.
paração de desempenhos para se estabe-
lecer o vencedor ou registrar recorde. Seu
resultado é influenciado pela técnica, pela
Portanto, há de se olhar para a práti- tática e pela estratégia do participante, e
ca esportiva sem pré-julgamentos, consi- é gratificante tanto intrínseca como extrin-
derando a competição sob o ponto de vis- secamente (Betti, 1991).
ta da criança imersa nessa experiência, e Contudo, considerando-se a ênfase
não sob a perspectiva do adulto. em determinados aspectos, é possível dis-
Entretanto, é importante ressaltar tinguir duas perspectivas da prática espor-
que as crianças e os adolescentes necessi- tiva: a prática lúdica informal, que se de-
tam de abundância de oportunidades em senvolve essencialmente na família, nos
uma variedade de atividades motoras vi- bairros e nos centros esportivos, e a práti-
gorosas e diárias, com o objetivo de de- ca institucionalizada do esporte de rendi-
senvolver suas capacidades singulares de mento, que, frequentemente, se desenvol-
movimento, contribuindo para a formação ve nos clubes e nas escolas especializadas
de um cidadão apto a participar de pro- (Tani; Teixeira; Ferraz, 1994).
gramas esportivos em geral e de um con- Enquanto a primeira objetiva apren-
sumidor crítico em relação a espetáculos dizagem e difusão do esporte submeten-
esportivos e informações veiculadas pelos do o aluno à prática geral, dando oportu-
nidades de acesso a diferentes modalida-
des, a segunda visa à competição median-
te treinamento sistematizado e específico,
É importante ressaltar que as crianças e
cujos interesses podem ser econômicos,
os adolescentes necessitam de abundân-
cia de oportunidades em uma variedade
culturais e políticos. Portanto, a prática
de atividades motoras vigorosas e diári- lúdica informal orienta-se para a pessoa
as, com o objetivo de desenvolver suas comum, com suas capacidades e limita-
capacidades singulares de movimento, ções; já o esporte institucionalizado ocu-
contribuindo para a formação de um ci- pa-se do talento, orientando-se para o pro-
dadão apto a participar de programas duto e a especificidade das atividades.
esportivos em geral e de um consumidor Este capítulo abordará, essencialmen-
crítico em relação a espetáculos espor-
te, a questão da prática esportiva sistema-
tivos e informações veiculadas pelos
meios de comunicação. É fundamental
tizada para crianças e adolescentes, dis-
que eventuais restrições à participação cutindo aspectos importantes para a estru-
em competições no esporte não sejam turação e a implementação de programas
interpretadas como restrições à prática esportivos em geral. Para tanto, serão con-
de atividades esportivas em geral. siderados os processos de desenvolvimen-
to humano nos domínios cognitivo-moral,
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 47
social-afetivo e motor, abordando, especi- identificados caracterizando um processo
ficamente, os seguintes temas: prontidão ordenado e sequencial, embora a veloci-
para competição, iniciação esportiva, ra- dade com que essas fases ou esses estágios
zões de prática e abandono, gênese e de- são percorridos seja extremamente variá-
senvolvimento de regras/estratégias do vel de indivíduo para indivíduo, sofrendo
jogo e especificidade versus variabilidade fortes influências ambientais.
das modalidades esportivas. Quando se analisa o problema de a
Finalmente, a ludicidade presente criança estar preparada para participar de
nas ações esportivas constitui um dos as- competições no esporte, é necessário con-
pectos que necessitam ser considerados, siderar a questão da prontidão e do perío-
tanto na estruturação e no planejamento do ótimo de aprendizagem, que se consti-
das atividades de ensino quanto no mo- tuem conceitos importantes da perspecti-
mento de sua implantação. Desse modo, va teórica adotada neste capítulo. A pron-
serão propostos indicadores que permitem tidão está relacionada com os pré-requisi-
inferir a presença do lúdico nas atividades tos necessários para o envolvimento de
de ensino, para que profissionais envol- crianças e de adolescentes em novas ex-
vidos com o ensino do esporte possam con- periências. O período ótimo de aprendi-
siderá-los em seus programas. A ideia cen- zagem baseia-se na noção de que, duran-
tral é que grande parte das resistências, te o desenvolvimento, alguns momentos
dos desinteresses e das dificuldades de são ideais para promoverem-se novas
envolvimento dos aprendizes pode ser aprendizagens, significando que as capa-
minimizada se aspectos lúdicos forem con- cidades necessárias estão presentes no in-
templados nas atividades de ensino. divíduo, ou seja, a prontidão. Antes desse
período, determinados conteúdos de
aprendizagem ficam prejudicados e, após
O DESENVOLVIMENTO HUMANO esse período, perde-se a oportunidade de
E A PRONTIDÃO PARA A se explorar o melhor potencial do indiví-
COMPETIÇÃO ESPORTIVA duo. É importante esclarecer que não exis-
te um período ótimo para todos os con-
Em linhas gerais, para se explicar o teúdos, uma vez que há especificidades
desenvolvimento humano, pode-se recor- para os vários domínios do comportamen-
rer a três hipóteses (La Taille, 1984). A to e grande variabilidade de conteúdos
primeira delas afirma que as característi- (Tani; Teixeira; Ferraz, 1994).
cas comuns dos indivíduos estão pré-pro-
gramadas, dependendo quase exclusiva-
mente do processo de maturação. Para a
Quando se analisa o problema de a crian-
segunda hipótese, elas são consequência ça estar preparada para participar de
da aprendizagem e, nesse caso, fruto do competições no esporte, é necessário con-
meio social em que se vive. Finalmente, a siderar a questão da prontidão e do perío-
terceira hipótese, adotada neste capítulo, do ótimo de aprendizagem, que se cons-
baseia-se em uma construção realizada tituem conceitos importantes da perspec-
pelo ser humano a partir de suas experi- tiva teórica adotada neste capítulo.
ências, sofrendo influência da herança
hereditária e do ambiente.
Nessa perspectiva teórica, um proble- A seguir é apresentada uma discussão
ma central diz respeito à existência ou não da noção de prontidão aplicada ao desen-
de uma sequência básica durante o desen- volvimento dos domínios do comportamen-
volvimento. Fases ou estágios podem ser to cognitivo, moral, social, afetivo e motor.
48 Dante De Rose Jr. e colaboradores

PRONTIDÃO COGNITIVA E MORAL da de futebol vista pela televisão por duas


crianças de idades muito diferentes pode
A participação de uma criança em dar lugar a duas versões bastante díspares
uma situação de competição no esporte sobre o que está acontecendo.
implica não somente adesão a um sistema Somente analisando a informação
de recompensa e de motivação, mas tam- que é relevante para uma e para outra po-
bém consideração de um processo cogni- deremos entender as discrepâncias entre
tivo extremamente complexo. Isso ocorre as duas versões. Se duas crianças, uma de
porque, para participar de uma competi- 6 anos de idade e outra de 12 anos de ida-
ção esportiva, supõe-se que a criança já de, respectivamente, estão assistindo a uma
tenha alcançado maturidade psicológica partida de futebol, é muito provável que
suficiente que lhe permita enfrentar outra no intervalo do primeiro tempo a criança
criança (Haste, 1990). No entanto, nesse de 12 anos faça comentários a respeito das
processo, nem tudo é permitido, e a re- faltas cometidas e do pênalti não sancio-
gra, que normatiza as interações entre os nado. Por sua vez, a criança menor pode-
competidores e o resultado, possibilita es- rá perguntar por que os jogadores estão
paço ao jogar bem, levando os participan- pegando a bola com as mãos, mas nunca
tes a situações difíceis de enfrentar, prin- questionará a validade ou não do gol assi-
cipalmente se os envolvidos são crianças. nalado devido à situação de impedimento
(Ferraz, 1997).
Crianças muito pequenas não conse-
guem considerar simultaneamente as posi-
A participação de uma criança em uma ções da bola, do atacante e do defensor, im-
situação de competição no esporte im- possibilitando assim a noção do que seja
plica não somente adesão a um sistema
uma situação de impedimento.
de recompensa e de motivação, mas
também consideração de um processo Em que pese a possibilidade de dife-
cognitivo extremamente complexo. rentes interpretações da aplicação de uma
regra por dois adultos, por exemplo, se o
defensor cometeu pênalti ou não, o que se
deseja ressaltar é que a diferença pode
A vida das crianças e dos adultos está estar na limitação das estruturas cognitivas
repleta de regularidades de origem natu- para a aprendizagem de uma regra. No
ral (estações do ano, leis físicas) e de ori- caso de duas crianças com níveis de de-
gem social (costumes culturais, hábitos senvolvimento cognitivo muito diferentes,
familiares). Pesquisas têm demonstrado o que pode estar em jogo é a incapacidade
que, quanto menor a criança, mais ela con- de entender certas regularidades.
funde as diferentes esferas de onde pro- Sendo assim, a questão crucial que
vêm as diversas regularidades e que são se levanta é: a partir de que idade a crian-
necessários vários anos de desenvolvimen- ça está em condições, sob o aspecto cogni-
to para que ela consiga compreender as tivo e moral, de entrar em um processo de
razões de ser de cada uma e, consequente- competição esportiva?
mente, conviver com elas, modificando-as Para se refletir sobre essa questão,
se necessário (La Taille, 1984). propõe-se a análise teórica dos seguintes
Essas regularidades, por outro lado, temas: o desenvolvimento da prática e a
abrigam todo um universo de diversida- consciência das regras na criança e no ado-
des. É o caso, por exemplo, do jogo de fu- lescente, a questão da intencionalidade e
tebol. Sabemos o quão delimitadas são a ideia de justiça e a moral da coerção e
suas regras. Contudo, uma mesma parti- da cooperação.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 49

Desenvolvimento da prática te porque em uma competição esportiva


e da consciência das regras pode-se desrespeitar uma regra por pura
incompetência ou incompreensão de seus
A regra é a normatização da relação mecanismos, mas também pode-se desres-
entre dois ou mais elementos. Contudo, é peitá-la como estratégia para levar vanta-
necessário esclarecer que, embora toda gem na competição.
regra genuinamente moral implique uma A análise de como crianças progri-
prática e uma consciência, as regras de um dem em sua compreensão das regras de
jogo infantil ou esportivo diferenciam-se um jogo supõe a consideração de uma
das regras morais, como não mentir e não questão mais geral que diz respeito à exis-
roubar. A diferença básica está na nature- tência, ou não, de uma sequência básica
za mutável e arbitrária das regras do jogo/ no desenvolvimento do campo moral. A
esporte; já as regras genuinamente morais análise dessas etapas sucessivas pode es-
traduzem um juízo de valor. Respeitar a tabelecer princípios metodológicos de en-
regra de um jogo é um ato moral que ex- sino adequados a questões do tipo:
pressa honestidade e respeito pelo adver-
sário; todavia, a regra do jogo em si não é a) quais são as condições educativas ade-
ela mesma moral e sim uma norma (espa- quadas para se introduzir o esporte
cial, temporal ou do objeto), uma vez que competitivo para as crianças?
não cumprir determinadas regras envolve b) essas condições variam à medida que
sanções previstas no próprio regulamento a criança progride em seu desenvolvi-
do jogo (Linaza; Maldonado, 1987). mento?
Contudo, a situação de jogo presu-
me, por parte dos seus integrantes, a pro- A teoria de Piaget sobre o juízo mo-
messa de respeito às regras e constitui-se ral apresenta elementos teóricos importan-
na condição básica para sua existência. tes para essa análise. Em suas pesquisas,
Outra característica fundamental do jogo o autor investigou a prática das regras me-
de regras é a exigência da eficácia: é pre- diante observação do comportamento das
ciso marcar pontos, ser eficiente, vencer. crianças enquanto jogavam ou mediante
Sabe-se que a vitória conquistada perguntas sobre as regras que compunham
mediante ações ilegais não deve ter reco- o jogo, e, para avaliar a consciência que
nhecimento, e isso remete ao sentido de elas possuíam sobre essas regras, pedia que
moralidade da regra. Frequentemente, em explicitassem as razões de seus atos (Piaget,
situações de jogo, pode-se observar uma 1994).
prática sem consciência ou, de modo con- Em resumo, os resultados dessas pes-
trário, a consciência sem prática. No pri- quisas possibilitaram responder às seguin-
meiro caso, diz-se que se trata de um com- tes questões:
portamento amoral, em que o sujeito age
segundo a regra, respeitando-a, sem con- a) como os indivíduos se adaptam, na sua
tudo fazer um juízo moral sobre ela. No prática, às regras, em função da idade
segundo caso, consciência sem prática, e do desenvolvimento?
tem-se uma situação de imoralidade, pois b) que consciência eles têm dessas regras?
o sujeito conhece as razões de ser de uma
regra, não discorda dela, mas age intencio- Para a primeira questão, Piaget, fin-
nalmente contra ela (Ferraz, 1997). gindo-se ignorante, solicitava à criança que
Sendo assim, é preciso verificar como descrevesse as regras de um jogo, poden-
se apresenta na criança esse binômio prá- do assim avaliar o conhecimento efetivo
tica/consciência da regra. Isso é importan- que ela possuía; em seguida, jogando com
50 Dante De Rose Jr. e colaboradores

a criança, verificava o quanto ela seguia das regras. Tem-se agora a presença da
essas regras. No caso da segunda questão, regra, provavelmente aprendida de
Piaget direcionava a pergunta no sentido crianças maiores, sem, contudo, o seu
da origem das regras ou de possíveis mo- cumprimento. Sendo assim, a criança
dificações ao longo do tempo e, ao propor nessa fase pronuncia alguns termos que
que a criança inventasse uma regra nova, caracterizam a regra, mas paradoxal-
perguntava se essa era justa e se seria acei- mente não realiza o menor esforço para
ta por outros companheiros de jogo. utilizá-la. É como se demarcássemos os
Por meio dessas pesquisas, foram es- limites espaciais do jogo e a todo mo-
tabelecidos quatro níveis para a prática da mento ultrapassássemos as linhas de-
regra e três níveis para a consciência da marcatórias. A incompreensão das re-
regra (Quadro 3.1). gras parece ser total, e a imitação al-
cança somente os aspectos superficiais
da atividade. Frequentemente obser-
Desenvolvimento da vam-se nesse tipo de jogo vários ven-
prática das regras cedores e nenhum perdedor! Parece
que seu prazer consiste simplesmente
a) Motor individual: Nessa fase, a criança em desenvolver suas habilidades moto-
não participa da relação social impli- ras e em ter êxito nas jogadas que se
cada no jogo, sendo esse essencialmen- propõe a realizar.
te individual e correspondendo à sim- c) Cooperação nascente: Nessa etapa, a
ples aplicação funcional dos esquemas regra normatiza realmente as ações
de ação. Ainda é prematuro falar de entre os competidores e, ao prazer
regras, por mais que esses comporta- motor que se apresentava no nível an-
mentos se repitam, ritualizando-se, e terior, acrescenta-se o gosto pela vitó-
de uma certa forma anunciando as re- ria sobre o oponente, respeitando-se ri-
gras que, com mais idade, a criança gorosamente as regras do jogo. Portan-
empregará em seus jogos sociais. Um to, a criança passa a ser fiel às regras,
exemplo desse tipo de “jogo” é o do vigiando cuidadosamente seus oponen-
bebê que arremessa sua chupeta ao tes; nesse caso, o não cumprimento da
chão repetidamente para que o adulto regra é um delito grave.
a pegue, revelando assim o início de d) Codificação das regras: Nessa última
uma coordenação mútua das ações. fase, a criança demonstra grande inte-
b) Egocêntrico: Essa segunda etapa carac- resse pela regra em si e por possíveis
teriza-se por uma “imitação superficial” estratégias para tirar proveito e vencer

QUADRO 3.1 Níveis de desenvolvimento de Piaget para a prática e a consciência das regras

Idade aproximada Prática da regra Consciência da regra

Até 3 anos Motor individual


Até 6 anos Egocêntrico Não obrigatoriedade da regra
Até 11 anos Cooperação nascente Obrigatoriedade sagrada
11 anos em diante Codificação das regras Obrigatoriedade devido ao
consentimento mútuo
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 51
dentro do cumprimento da própria re- Como se pode perceber, a evolução
gra. Não raras são as manifestações no da prática da regra não se dá somente no
sentido de elaborarem ou discutirem aspecto quantitativo, ou seja, no aumento
novas regras e estratégias de jogo. do número de regras; apresenta sim, es-
sencialmente, uma mudança qualitativa
expressa pela consciência.
Consciência das regras na criança

a) Não obrigatoriedade: No que diz respei- Como se pode perceber, a evolução da


prática da regra não se dá somente no
to à prática das regras, esse nível vai
aspecto quantitativo, ou seja, no aumen-
aproximadamente até a metade do ní- to do número de regras; apresenta sim,
vel egocêntrico. Como o próprio nome essencialmente, uma mudança qualita-
define, nesse primeiro nível a criança tiva expressa pela consciência.
não dá qualquer valor à necessidade da
regra. Além do fato de não praticar as
regras, demonstra não possuir respei-
to intelectual por elas, e, como conse- A questão da intencionalidade:
quência, quaisquer mudanças nas re- resultado da ação e
gras são facilmente aceitas. No que diz realismo moral
respeito à origem das regras, são atri-
buídas a uma criação divina, mitológi- Um ato esportivo possui duas dimen-
ca ou paterna. sões que são vistas de forma diferenciada
b) Obrigatoriedade sagrada: Esse nível vai pela criança e pelo adulto: o efeito ou o
até aproximadamente a metade do ní- resultado produzido pelo ato e o seu ca-
vel de cooperação nascente no que se ráter moral.
refere à prática das regras. A expres- Tem-se novamente um binômio que
são característica desse nível é a ilegi- se relaciona e que foi investigado por
timidade de qualquer modificação ou Piaget em temas clássicos da moralidade,
adaptação à regra tradicional do jogo. como a mentira, o roubo e o dano material.
A criança demonstra competência para Para tal, Piaget propôs o julgamento de
criar uma nova regra; todavia, do pon- condutas fictícias em que, no lugar de juiz,
to de vista da validade em se jogar com a criança deveria emitir um julgamento a
regras “inventadas”, ela manifesta-se respeito de uma história contada pelo
radicalmente contrária. A origem da experimentador (Piaget, 1994).
regra ainda se deve a uma criação divi- Esse método foi reconhecido e apli-
na ou paterna. cado a uma situação esportiva (Durand,
c) Obrigatoriedade devido ao consentimen- 1988). O experimento consistiu em pedir
to mútuo: Piaget define esse nível com que as crianças julgassem qual era o me-
a afirmação: “A democracia sucede a lhor jogador. Os atos esportivos eram bre-
teocracia e a gerontocracia”. A criança ves relatos de uma situação, enfatizando
passa a ter consciência do caráter arbi- o seu caráter legal e o consequente resul-
trário e necessário das regras, sendo tado. O estudo confirmou as proposições
estas resultado de cooperação e acei- de Piaget de que os atos são julgados pelas
tação mútua entre os competidores. consequências das ações dos sujeitos quan-
Sua origem é resultado de uma con- do esses são feitos por crianças pequenas.
venção social. No papel de juízes, no qual as crianças de
52 Dante De Rose Jr. e colaboradores

diversas faixas etárias foram colocadas, a A ideia de justiça na criança


criança menor tendeu a uma responsabi-
lidade objetiva, ou seja, à simples identifi- Nas situações de competição no espor-
cação da relação de causa e efeito sem le- te, um personagem que desempenha um
var em consideração os motivos da ação. papel fundamental é o árbitro. Pesquisas
Contudo, observou-se uma evolução para investigaram o status e a função do árbitro
o estágio chamado de responsabilidade na perspectiva da criança (Durand, 1988).
subjetiva, demonstrado por crianças mais Os resultados podem ser resumidos em três
velhas, em que a intenção é levada em fases de acordo com o desenvolvimento:
conta.
A explicação teórica para esse fato, a) o árbitro é visto como indispensável,
em parte, é encontrada na dimensão cog- infalível e incorruptível; sua função é a
nitiva da criança pequena que está impos- de, principalmente, impedir a violência;
sibilitada de inferir, de trabalhar com hi- b) o árbitro tem a função de impedir que
póteses, mas somente pode guiar-se por as regras sejam burladas e, no caso
algo observável, que é justamente o resul- dessa ocorrência, punir os infratores;
tado da ação, deixando a intencionalidade tem a função de polícia e juiz;
em segundo plano. c) as crianças mais velhas e os adolescen-
Um aspecto importante nesses estu- tes admitem que o árbitro pode equi-
dos é que, nas histórias contadas, a inten- vocar-se e que suas decisões podem ser
cionalidade do autor das ações era clara- discutidas.
mente explicitada. Já nas situações reais,
o fator intencionalidade não é tão claro Tais resultados encontram amparo
assim. Entretanto, mesmo com a intencio- nas pesquisas de Piaget, que definiu uma
nalidade claramente identificada, as crian- linha evolutiva da ideia de justiça. Em uma
ças pequenas não a consideravam como primeira etapa, a justiça e a autoridade são
um critério a ser julgado. entidades indiferenciadas, sendo justo o
O caráter egocêntrico de crianças que o adulto ou a autoridade decide. Em
com pouca idade explica a dificuldade de uma segunda fase, a do igualitarismo, a
se levar em conta a importância da inten- justiça se opõe radicalmente à obediência
cionalidade no sentido de ponderar seus cega e à punição. E finalmente, durante o
julgamentos. Sendo assim, crianças em si- terceiro período, surge o que Piaget cha-
tuações de competição esportiva necessi- mou de equidade, que consiste em jamais
tam de orientação diferente daquela ofe- definir a igualdade sem levar em conside-
recida aos adolescentes e adultos. ração a situação contextual de cada um.
Como se pode perceber, sob o ponto
de vista cognitivo-moral, há evidências
O caráter egocêntrico de crianças com suficientes para que se modifique a dinâ-
pouca idade explica a dificuldade de se mica inerente ao esporte de rendimento
levar em conta a importância da inten- quando as crianças estiverem no período
cionalidade no sentido de ponderar seus da segunda infância, ou seja, entre 7 e 10
julgamentos, e, sendo assim, crianças anos de idade. É necessário que se consi-
em situações de competição esportiva dere a demanda cognitivo-moral comple-
necessitam de orientação diferente
xa demais para essa fase de desenvolvi-
daquela oferecida aos adolescentes e
adultos. mento, devendo-se, portanto, enfatizar os
aspectos da prática esportiva lúdica.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 53
de pela vitória não se transforma em pres-
Como se pode perceber, sob o ponto de são geradora de ansiedade. Entretanto,
vista cognitivo-moral, há evidências su-
como a competição ocorre em contextos
ficientes para que se modifique a dinâ-
mica inerente ao esporte de rendimento sociais específicos, a compreensão que a
quando crianças estiverem no período da criança e o adolescente adquirem sobre
segunda infância, ou seja, entre 7 e 10 esse fenômeno é influenciada por valores
anos de idade. do ambiente social e cultural. Infelizmen-
te, muitos adultos e instituições colocam
ênfase muito grande na vitória ou, por
exemplo, em nossa cultura, a competição
PRONTIDÃO SOCIAL E PSICOLÓGICA esportiva é mais valorizada para os meni-
nos do que para as meninas. Esses aspec-
A compreensão das relações sociais tos têm refletido negativamente no enga-
é fundamental para que a criança e o ado- jamento de crianças e de adolescentes na
lescente possam beneficiar-se do processo prática esportiva, gerando desistências e
de competição no esporte. Reconhecer que ansiedade excessiva. Se as consequências
a competição é um processo de compara- naturais de competições esportivas, nos
ção social implica a existência de estrutu- moldes como se dão atualmente, são pou-
ras cognitivas complexas que não estão cas pessoas experimentarem sucessos e a
presentes nas crianças antes dos 7 anos grande maioria experimentar insucessos,
de idade, aproximadamente. como motivar as crianças e os adolescen-
As atividades motoras até os 7 anos tes para a continuidade da prática espor-
de idade são, segundo pesquisas, para as tiva se a vitória é transformada em única
crianças, fontes de prazer e de experiên- motivação?
cias de conhecimento de suas capacidades
e limitações. Entretanto, a performance com
significado social só ocorre a partir desse
Quando a prioridade da criança, em si-
período, mas ainda persiste, até os 10 anos
tuação de competição esportiva, é a
aproximadamente, a dificuldade em perce- oportunidade de jogar de acordo com as
ber a complexa relação causal entre os vá- regras, explorando-as técnica e tatica-
rios fatores que regulam seu desempenho, mente para jogar bem e entendendo que
tais como nível de habilidade (jogador e o mais importante é divertir-se, a respon-
oponente), esforço despendido, dificulda- sabilidade pela vitória não se transfor-
de da tarefa, tempo de prática, condições ma em pressão geradora de ansiedade.
de aprendizagem, entre outros. Assim, atri-
buir aos resultados relações causais incor-
retas pode gerar noções de incompetência
ou de impotência, levando à queda de mo- É preciso considerar o efeito que as
tivação e ao consequente abandono da prá- vitórias ou as derrotas provocam na moti-
tica esportiva (Tani; Teixeira; Ferraz, 1994). vação das pessoas para a prática esporti-
Quando a prioridade da criança, em va. Os efeitos dependem muito das origens
situação de competição esportiva, é a opor- que se dão às causas da vitória ou da der-
tunidade de jogar de acordo com as re- rota. Maior capacidade individual ou de
gras, explorando-as técnica e taticamente equipe, esforço, sorte ou dificuldade da
para jogar bem e entendendo que o mais tarefa são causas frequentemente atribuí-
importante é divertir-se, a responsabilida- das à vitória ou à derrota (Quadro 3.2).
54 Dante De Rose Jr. e colaboradores

QUADRO 3.2 Dimensões das atribuições causais

Estabilidade Locação

INTERNA EXTERNA

Estável Capacidade Dificuldade da tarefa


Instável Esforço Sorte

Fonte: Adaptado de Roberts (1980).

A combinação desses quatro elemen- to brevemente, minimizando os efeitos


tos pode fornecer informações importan- emocionais.
tes para a compreensão do comportamen- É razoável sugerir que a hipervalo-
to de crianças e de adolescentes após uma rização da vitória em detrimento da parti-
vitória ou derrota. Pesquisas demonstram cipação e do jogar bem, do fazer o melhor
que as consequências emocionais, ou seja, que se pode, não pode constituir-se na di-
vergonha da derrota e orgulho da vitória, nâmica predominante dos programas es-
são maximizadas quando as atribuições do portivos de crianças e de adolescentes. É
resultado estão relacionadas a elementos preciso que a noção do engajamento em
internos, tais como capacidade e esforço. atividades esportivas com perseverança e
Já esses mesmos sentimentos são minimi- regularidade, que leva à melhora do de-
zados quando o resultado é consequência sempenho quando o principal referente é
de elementos externos, tais como sorte ou o próprio jogador, seja enfatizada. Além
dificuldade da tarefa. A explicação se re- disso, sob o ponto de vista do desenvolvi-
fere à possibilidade de controle interno dos mento, não há necessidade de envolvi-
primeiros e à impossibilidade de controle mento de crianças antes dos 12 anos de
externo dos segundos. idade em atividades competitivas altamen-
Além disso, outro aspecto importan- te organizadas nos moldes das federações
te diz respeito ao tipo de estabilidade dos esportivas.
fatores no tempo, isto é, a possibilidade Finalizando, gostaria de discutir um
de modificação a curto e médio prazo (ins- aspecto bastante positivo que ocorre quan-
tável e estável, respectivamente). São con- do crianças se relacionam em programas
siderados instáveis os elementos esforço e esportivos. Para tal, é preciso investigar
sorte, pois mudam facilmente com o tem- mais de perto a influência da interação
po. Dentro da categoria estável, são con- social, pois o ser humano é um ser emi-
siderados os elementos capacidade e difi- nentemente social, sendo impossível pro-
culdade da tarefa. De acordo com esse
modelo, quando a vitória ou a derrota é
atribuída aos elementos estáveis, os efei-
tos emocionais são maximizados, signifi- É razoável sugerir que a hipervalorização
cando que a probabilidade de os resulta- da vitória em detrimento da participa-
dos se repetirem é maior. Em contraparti- ção e do jogar bem, do fazer o melhor
que se pode, não pode constituir-se na
da, quando a causa é atribuída a elemen- dinâmica predominante dos programas
tos instáveis – esforço e sorte –, há a possi- esportivos de crianças e de adolescentes.
bilidade de reverter esses resultados mui-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 55
ceder a essa análise sem considerar o con- Entretanto, quando as crianças inte-
texto cultural em que ele está inserido. ragem nas sessões de prática esportiva, o
Para Piaget (1994), o social se tra- que predomina são as relações entre os
duz em um conjunto de relações interindi- pares – criança/criança –, e, nesse caso,
viduais, e a “qualidade” dessa influência as crianças acabam se envolvendo em si-
vai depender do tipo de relação que acon- tuações em que são obrigadas a defender
tece. Retomando a esfera moral, verificam- seu ponto de vista entre iguais. É muito
-se basicamente dois tipos de relação social: comum que, nas atividades de jogos es-
a coerção e a cooperação. Na relação de portivos, as regras sejam modificadas em
coerção, a legitimidade da regra vai depen- benefício do próprio grupo. Sendo assim,
der da autoridade de quem ela provém, e, as crianças discutem quais as melhores
na relação de cooperação, dependerá do opções para se jogar, com estratégias va-
acordo firmado entre as partes. riadas para se obter o melhor resultado
Na teoria de Piaget, as relações de no jogo. Esse é, sem dúvida, um aspecto
coerção não podem ser consideradas como positivo do envolvimento de crianças e de
as únicas a explicar o desenvolvimento adolescentes na prática esportiva.
moral. Devido ao fato de a primeira rela-
ção social da criança ser essencialmente
uma relação de coerção, pode-se explicar PRONTIDÃO MOTORA
os comportamentos de responsabilidade
objetiva e obrigatoriedade sagrada da re- O processo de desenvolvimento mo-
gra discutidos anteriormente. Porém, a tor revela-se por meio de mudanças no
mudança de qualidade da moralidade in- comportamento que podem ser observa-
fantil para uma moralidade adulta, levan- das em dois aspectos: forma e performan-
do a comportamentos manifestados na ce. Esses dois aspectos expressam a capa-
responsabilidade subjetiva (consideração cidade de movimento do ser humano. O
da intencionalidade) e na obrigatoriedade primeiro diz respeito às características es-
da regra devido a consentimento mútuo, paçotemporais dos seguimentos do cor-
se deve a uma forma superior de relação po que definem um padrão de movimen-
social, que é a relação de cooperação. to, e o segundo refere-se aos resultados
A diferença básica consiste no fato obtidos pelo movimento, tais como distân-
de que, na relação de coerção, as regras e cia, força, velocidade, entre outros.
os papéis de cada um estão, de antemão, O movimento pode ser categorizado
definidos; já na relação de cooperação, eles como não locomotor, manipulativo e de
estão para ser constituídos. Nesse proces- estabilização (Gallahue, 1982). A catego-
so, a criança pode verificar, com o desen- ria de movimentos locomotores relaciona-
volvimento moral, que a justiça e a igual- se aos movimentos que envolvem uma mu-
dade são construídas com base em um res- dança na localização do corpo em relação
peito mútuo, e não em um respeito unila- a um ponto fixo no espaço. São exemplos
teral baseado somente na autoridade. dessa categoria os movimentos de andar,
Se o desenvolvimento moral depen- correr, saltar e saltitar. A categoria de mo-
de da demonstração, da explicitação do vimento manipulativo refere-se aos movi-
modo de produção das regras para que se mentos que implicam utilização de obje-
possa apreciar verdadeiramente o seu real tos, tais como arremessar, receber, chutar,
valor, ficam evidentes as preocupações quicar, rebater e volear. Finalmente, a ca-
quanto ao envolvimento das crianças em tegoria de estabilização diz respeito aos
competições esportivas infantis. movimentos que utilizam um eixo como
56 Dante De Rose Jr. e colaboradores

ponto de apoio para a manutenção do to à necessidade de o ser humano explo-


equilíbrio em relação à força da gravida- rar as várias categorias de movimento (lo-
de, por exemplo: giros, rolamentos e comoção, manipulação e estabilização)
apoios invertidos. É importante esclarecer para que seu potencial não fique prejudi-
que essa categorização considera somen- cado. Acontece que as modalidades espor-
te as habilidades básicas (padrões funda- tivas, frequentemente, utilizam somente
mentais de movimento), que são a base algumas dessas habilidades básicas, po-
dos movimentos utilizados no esporte. Ha- dendo, assim, gerar diminuição do reper-
bilidades específicas, como costurar, recor- tório motor.
tar, datilografar, entre outras, podem ser Outro aspecto importante refere-se
também categorizadas, mas fogem ao in- ao ensino das técnicas utilizadas nas di-
teresse desse tema. versas modalidades. Sabe-se que o ser hu-
Pesquisas em desenvolvimento mo- mano é capaz de alcançar uma mesma
tor têm demonstrado que esse é um pro- meta via diferentes movimentos. Nova-
cesso ordenado e sequencial, sendo que mente, está-se diante da possibilidade de
até os 7 anos de idade, aproximadamen- construção de um repertório motor rico e
te, o desenvolvimento motor da criança se flexível. Embora, do ponto de vista bio-
caracteriza pela aquisição e pela diversifi- mecânico, as técnicas específicas de uma
cação das habilidades básicas de locomo- modalidade esportiva sejam os meios mais
ção, de manipulação e de estabilização. eficientes de se realizar uma ação, é im-
Após esse período, o desenvolvimento ca- portante que elas se constituam no ponto
racteriza-se pela combinação dessas habi- de chegada do processo de aprendizagem
lidades básicas e seu aprimoramento. É in- esportiva das crianças e dos adolescentes,
teressante notar que os movimentos espor- e não no seu ponto de partida.
tivos são, essencialmente, combinações das
habilidades básicas. Por exemplo, a ban-
deja do basquete é a combinação das ha-
bilidades básicas de correr, saltar e arre-
messar (Tani et al., 1988). Embora, do ponto de vista biomecânico,
Entretanto, o refinamento e a espe- as técnicas específicas de uma modali-
cialização dessas combinações só são in- dade esportiva sejam os meios mais efi-
cientes de se realizar uma ação, é im-
dicados a partir dos 10 anos de idade. A
portante que elas se constituam no pon-
principal razão dessa indicação diz respei- to de chegada do processo de aprendi-
zagem esportiva das crianças e dos ado-
lescentes e não no seu ponto de partida.

Pesquisas em desenvolvimento motor


têm demonstrado que esse é um proces-
so ordenado e sequencial, sendo que até Portanto, como indicação geral, é a
os 7 anos de idade, aproximadamente, partir da faixa dos 10 aos 12 anos de ida-
o desenvolvimento motor da criança se de, aproximadamente, após passar pelo
caracteriza pela aquisição e pela diver- processo de aquisição, de combinação e de
sificação das habilidades básicas de lo- aprimoramento das habilidades básicas,
comoção, de manipulação e de estabili- que a criança está apta a relacionar esses
zação. Após esse período, o desenvolvi-
gestos motores às técnicas ou aos funda-
mento caracteriza-se pela combinação
dessas habilidades básicas e seu apri- mentos específicos do esporte, levando-se
moramento. em consideração os aspectos discutidos an-
teriormente.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 57

A LUDICIDADE E O petir algo pelo prazer do exercício, do fun-


ENSINO DO ESPORTE cionamento. É muito comum observarmos
nossos alunos realizando controle de bola
Propõe-se, nesse tópico, a análise de com os pés (embaixadinha do futebol) sem
indicadores da presença do lúdico nas ati- uma intenção específica de aprendizagem
vidades de ensino do esporte. Trabalhar ou de marcar gol, a não ser pelo simples
com indicadores para inferir a dimensão prazer do movimento. Esta característica
lúdica permite fazer observações, regula- da ludicidade da ação já se manifesta mui-
ções e avaliações mais adequadas quando to cedo na vida do ser humano, como, por
se pressupõe ser este um aspecto impor- exemplo, quando o bebê repete várias ve-
tante no ensino do esporte. zes o mesmo movimento pelo simples pra-
Valorizar o lúdico nos processos de zer do funcionamento.
ensino significa considerá-lo na perspecti- Outro indicador é o desafio, ou seja,
va dos aprendizes, uma vez que, para eles, a situação problema que se constitui em
apenas o que é lúdico faz sentido, sobre- um obstáculo a ser vencido. Caracteriza-
tudo se são crianças. Outra função da pro- -se por uma dificuldade que requer supe-
posição desses indicadores é contrapor a ração. É quando se depara com a surpresa
noção de que lúdico significa, necessaria- de não conseguir controlar todo o resulta-
mente, algo sempre prazeroso e agradá- do. No entanto, os conteúdos das ativida-
vel para aquele que realiza a atividade. des não podem ser repetitivos, e sua reali-
Sabe-se o quanto pode ser angustiante e zação e demandas não podem ser demasia-
não tão agradável o início de novas apren- damente previsíveis. O aprendiz avalia
dizagens. aquilo que é necessário fazer relacionan-
Pode-se analisar a dimensão lúdica do-o às suas competências e habilidades e
nas atividades considerando-se cinco indi- à situação ou ao adversário.
cadores, a saber: prazer funcional, desafio, O terceiro indicador é a mobilização
criação de possibilidades, dimensão simbó- de possibilidades. O que se quer dizer é que,
lica e expressão construtiva ou relacional na perspectiva do aprendiz, não se reali-
(Macedo; Petty;Passos, 2005). zam tarefas ou atividades impossíveis. É
necessário que a criança ou o adolescente
disponha de recursos suficientes para a
realização da tarefa ou de parte dela. Os
Pode-se analisar a dimensão lúdica nas recursos podem ser internos ou externos.
atividades considerando-se cinco indica- O primeiro refere-se às habilidades e com-
dores, a saber: prazer funcional, desa- petências e o segundo relaciona-se aos
fio, criação de possibilidades, dimensão
objetos, ao espaço, ao tempo e às pessoas
simbólica e expressão construtiva ou
relacional. com quem se realizam as atividades.
O quarto indicador refere-se à dimen-
são simbólica, significando que as ativida-
des são motivadas e históricas. O sentido
Inicialmente, tem-se o prazer funcio- e o significado das tarefas estabelecem
nal, que é o exercício de um certo domí- uma relação entre a pessoa que faz e aqui-
nio sobre uma habilidade. Nesse caso, as lo que é realizado. Este aspecto é funda-
atividades que compõem os jogos esporti- mental para a ludicidade da ação, pois
vos não são meios para outros fins, são fins constitui uma forma de se relacionar com
em si mesmos. Na perspectiva do apren- o mundo pela via da imaginação, do
diz, não se joga para ficar mais inteligen- conceito, do sonho e da representação. O
te, o interesse que sustenta a relação é re- jogo simbólico presente nas atividades das
58 Dante De Rose Jr. e colaboradores

crianças é o exemplo mais significativo da


gênese deste aspecto na dimensão lúdica. A ludicidade das ações no ensino do es-
porte pode ser enfatizada se, na cons-
Atribuem-se sentidos aos objetos, simulam-
trução dos ambientes de aprendizagem,
se personagens e acontecimentos, proje- considerarmos o prazer funcional, o
tam-se desejos, sentimentos e valores, ex- enfrentamento e superação de desafios,
pressando seus modos de incorporar o a mobilização de possibilidades e suas
mundo e a cultura em que vivem. No caso significações.
das crianças mais velhas e dos adolescen-
tes, pode-se observar o interesse nas dicas
de aprendizagem que as remetem a um
fazer mais próximo das técnicas esporti- CONSIDERAÇÕES FINAIS
vas praticadas pelos adultos ou jogadores
mais habilidosos. O saque “viagem ao fun- A atividade esportiva pressupõe a
do do mar” do voleibol, as “enterradas” competição, seja entre indivíduos, equipes,
no basquetebol e o drible “pedalada” no seja com a natureza. Historicamente, a com-
futebol são exemplos da expressão desse petição é inerente ao esporte. Por exemplo,
aspecto na dimensão lúdica das ações no o estabelecimento dos Jogos Olímpicos em
esporte. 776 a.C. coloca a competição esportiva na
Finalmente, propõe-se a expressão condição de instituição mais importante
construtiva ou relacional como o último entre as diversas cidades-estado da Grécia
indicador da presença do lúdico nas ativi- Antiga. Historiadores demonstram que,
dades de ensino do esporte. O que carac- para a realização dos jogos, era imposta
teriza esse aspecto é o desafio de conside- uma trégua sobre os conflitos bélicos, bem
rar algo segundo diversos pontos de vista. como pesadas multas para as cidades-esta-
A apreensão das características dos obje- do que a desrespeitassem.
tos do conhecimento não pode se dar de Atualmente, a competição está pre-
uma só vez, dada sua natureza relacional sente em vários aspectos da vida humana
e diversa. Por exemplo, quando se joga e, sobretudo para as crianças e os adoles-
futebol, é necessário observar as posições centes, pode ser encontrada nos jogos de
e deslocamentos dos adversários e com- regras e esportivos. Portanto, a competi-
panheiros, a bola, o ataque, a defesa, en- ção em si não é boa ou má, ela é o que
tre outros aspectos. Mesmo sabendo que fazemos dela. Especificamente em relação
isso tudo faz parte de um todo, o processo à competição esportiva, podem-se encon-
de aprendizagem implica considerar a re- trar efeitos negativos em quaisquer idades,
lação múltipla de fatores. Investigar, pla- dependendo das condições em que é rea-
nejar, estudar possibilidades, rever posi- lizada e de seu contexto.
ções, pensar estratégias e alternativas cons- Muitas das discussões polêmicas so-
tituem-se no estabelecimento de uma di- bre a participação de crianças e de adoles-
reção que ora diferencia esses aspectos, ora centes em programas esportivos têm pres-
os integra. cindido de um posicionamento conceitual
Em síntese, a ludicidade das ações no mais consistente. O presente trabalho pro-
ensino do esporte pode ser enfatizada se, curou discutir alguns elementos funda-
na construção dos ambientes de aprendi- mentais para a estruturação de um mode-
zagem, considerarmos o prazer funcional, lo de análise inicial sem, no entanto, a pre-
o enfrentamento e superação de desafios, tensão de esgotar tão complexa questão.
a mobilização de possibilidades e suas sig- O pressuposto básico adotado foi o
nificações. de que a elaboração e a implantação de
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 59
programas esportivos adequados às crian- GALLAHUE, D. Understanding motor behavior in
ças e aos adolescentes implicam identifi- children. New York: Wiley, 1982.
car as características de desenvolvimento HASTE, H. La adquisición de las reglas. In: BRUNER,
nos vários domínios do comportamento J.; HASTE, H. La contrucción del mundo por el niño.
Barcelona: Paidós, 1990. p. 155-181.
para que se possa evitar a superestimula-
ção e a subestimulação, além da valoriza- LA TAILLE, Y. J. J. R. Razão e juízo moral: uma aná-
lise psicológica do romance L’etranger (Camus) e uma
ção dos aspectos lúdicos presentes nas ati- pesquisa baseada em le jugment moral chez l’enfant
vidades de ensino. Por isso, indica-se con- (Piaget). Dissertação de mestado – Instituto de Psi-
siderar a ludicidade das ações nos progra- cologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1984,
mas de ensino, a qual pode ser analisada 199p.
a partir dos indicadores propostos. LINAZA, J.; MALDONADO, A. Los juegos y el deporte
O esporte é um patrimônio cultural en el desarrollo psicológico del niño. Barcelona:
da humanidade e um direito do cidadão. Anthropos Promat, 1987.
Nesse sentido, o conhecimento que per- MACEDO, L.; PETTY, A. L. S.; PASSOS, N. C. Os jo-
mite ao ser humano apreciar e usufruir gos e o lúdico na aprendizagem escolar. Porto Alegre:
Artmed, 2005.
esse patrimônio é fundamental para a qua-
PIAGET, J. O juízo moral na criança. São Paulo:
lidade de vida e deve ser oportunizado.
Summus, 1994.
ROBERTS, G. Children in competition: a theoretical
REFERÊNCIAS perspective and recomendations for practice. Motor
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BETTI, M. Educação física e sociedade. São Paulo: TANI, G. O.; TEIXEIRA, L. R.; FERRAZ, O. L. Compe-
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DURAND, M. El niño y el deporte. Barcelona: Paidós, CEIÇÃO, J. A. N. Saúde escolar: a criança, a vida e a
1988. escola. São Paulo: Sarvier, 1994.
FERRAZ, O. L. O desenvolvimento da noção de re- TANI, G. et al. Educação física escolar: fundamentos
gras do jogo de futebol. Revista Paulista de Educação de uma abordagem desenvolvimentista. São Paulo:
Física e Esporte, v. 11, n. 1, p. 27-39, jan./jun. 1997. EPU/EDUSP, 1988.
O ESPORTE INFANTIL:
AS POSSIBILIDADES DE
UMA PRÁTICA EDUCATIVA
4
Paula Korsakas

É POSSÍVEL UMA PRÁTICA


É verdade que, desde a Idade Antiga, já
ESPORTIVA EDUCATIVA? se pensava no esporte como elemento
importante na educação do homem. Os
O chamado esporte moderno, que gregos atribuíam um grande valor às ati-
teve sua origem no século XIX acompa- vidades físicas e esportivas na formação
nhando o desenvolvimento da sociedade física e moral de seus cidadãos, e, ain-
capitalista, evoluiu até o ponto em que se da que a própria concepção de esporte
encontra atualmente caracterizado, prin- tenha passado por enormes transforma-
ções durante todos estes séculos, as dis-
cipalmente, pelo esporte de rendimento.
cussões em torno das suas possibilida-
Porém, ainda no século XIX, em ra- des educativas continuam neste início do
zão da difusão do esporte por todo o mun- século XXI.
do, várias modalidades esportivas foram
criadas com objetivos aparentemente di-
versos deste esporte atual. O reconheci-
mento do caráter pedagógico do jogo e, parece muito mais esclarecido atualmen-
em especial, da prática esportiva como te, e mais por falta de um aprofundamento
meio de educação dos jovens foi um dos das inter-relações entre os sentidos de edu-
fatores que favoreceu sua disseminação cação e esporte no âmbito pedagógico.
nas escolas e outras instituições educa- Brotto (2001) diz entender o espor-
cionais. te como um fenômeno de natureza educa-
É verdade que, desde a Idade Anti- cional, afirmando que, se qualquer mani-
ga, já se pensava no esporte como elemen- festação do esporte educa, a questão a ser
to importante na educação do homem. Os respondida é em que direção se deseja edu-
gregos atribuíam um grande valor às ati- car e, consequentemente, qual pedagogia
vidades físicas e esportivas na formação é a mais adequada.
física e moral de seus cidadãos, e, ainda O fato é que não bastam os princí-
que a própria concepção de esporte tenha pios filosóficos para que o esporte seja pra-
passado por enormes transformações du- ticado adequadamente. É essencial que
rante todos estes séculos, as discussões em exista uma prática pedagógica capaz de
torno das suas possibilidades educativas transformar e concretizar o que as concep-
continuam neste início do século XXI. Isto ções filosóficas fundamentam.
acontece menos por incompreensões con- Muito vem sendo produzido no meio
ceituais acerca do fenômeno esportivo, que acadêmico a respeito, e um dos desafios
62 Dante De Rose Jr. e colaboradores

da nossa área é aproximar este conheci- que se envolve com o esporte, seja uma
mento teórico da atuação prática dos pro- criança ou um atleta veterano, é demons-
fissionais de Educação Física e Esporte. trar competência. No entanto, o sentido
O eixo condutor deste capítulo será de competência é atribuído subjetivamen-
a prática pedagógica desenvolvida pelo te, caracterizado pela orientação ao ego,
educador, por intermédio dos seus com- quando ser competente significa ser o me-
portamentos e atitudes, e pela forma como lhor, ou pela orientação à tarefa, quando
ele estrutura o ambiente para a aprendi- a competência é entendida como melhora.
zagem do esporte, valendo-se do conceito
de Clima Motivacional, originário da Teo-
ria das Metas de Realização.
Parte-se do pressuposto de que a princi-
pal meta ou objetivo de qualquer pes-
AS METAS DE REALIZAÇÃO: soa que se envolve com o esporte, seja
A TEORIA POR TRÁS DA PRÁTICA uma criança ou um atleta veterano, é
demonstrar competência. No entanto, o
sentido de competência é atribuído sub-
A Teoria das Metas de Realização, sin- jetivamente, caracterizado pela orienta-
teticamente, defende que as variações de ção ao ego, quando ser competente sig-
comportamento em um mesmo contexto nifica ser o melhor, ou pela orientação à
esportivo parecem não ser resultantes de tarefa, quando a competência é enten-
baixa ou alta motivação, mas de manifes- dida como melhora.
tações de diferentes percepções sobre qual
é a meta adequada em determinado con-
texto (Roberts, 2001).
Aplicando esse conceito no esporte Uma criança está orientada para a
infantil, crianças diferentes podem inter- tarefa quando o critério para avaliar a sua
pretar e atribuir significados diversos ao competência é autorreferenciado, ou seja,
esporte de acordo com seus próprios valo- quando o foco da ação está centrado no
res, expectativas e crenças, tidos como progresso e no aperfeiçoamento de de-
determinantes dos seus comportamentos terminada habilidade. Ela avalia seu de-
de motivação. Isto quer dizer que, em uma sempenho pessoal para checar se seu es-
mesma situação, duas crianças podem ter forço foi suficiente para aprender, utili-
comportamentos diferentes em razão dos zando a autocomparação em busca de
significados que atribuem subjetivamente melhora em relação aos seus desempe-
a ela, da mesma forma que podem de- nhos anteriores, e percebe que obteve
monstrar comportamentos semelhantes sucesso pela evolução pessoal, pelo pro-
em situações inteiramente diferentes, por gresso e pelo domínio.
possuírem interpretações distintas do con- Essa orientação faz com que a crian-
texto em que estão inseridas. ça demonstre comportamentos positivos
Tais interpretações e significados são para a aprendizagem, como escolha de ta-
representados nessa teoria pela orientação refas desafiadoras, esforço, persistência e
motivacional, tida como uma predisposi- interesse intrínseco pela atividade (Brustad,
ção individual que é influenciada por fa- 1993; Duda, 1992; Roberts, 2001).
tores situacionais e está relacionada a Já na orientação voltada para o ego,
como a criança avalia seu desempenho. a criança avalia seu desempenho pessoal
Parte-se do pressuposto de que a prin- com base no desempenho dos outros cole-
cipal meta ou objetivo de qualquer pessoa gas, utilizando a comparação social para
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 63
analisar sua competência. Isso faz com que
sua demonstração de competência seja As crianças cuja orientação está voltada
para o ego estão mais expostas a expe-
dependente da competência dos outros e
riências negativas e ameaçadoras de sua
com que ela reconheça que obteve suces- autoestima no esporte, pois as falhas e
so em uma tarefa somente quando alcan- os fracassos, inerentes ao processo de
ça desempenhos melhores que os outros. aprendizagem, assumem um caráter ex-
Os mesmos comportamentos positi- tremamente prejudicial para elas. Ao
vos de uma criança orientada para a tare- contrário destas, as crianças orientadas
fa, como escolha por tarefas desafiadoras, para a tarefa, por serem autorreferen-
esforço e persistência, são esperados para ciadas quanto às suas competências,
costumam manter o foco no processo,
crianças com orientação ao ego, desde que
não dando tanta importância aos erros
tenham uma alta percepção de competên- quando percebem que estão progre-
cia; porém, ao contrário do que ocorre na dindo.
orientação para a tarefa, quando a crian-
ça se percebe com pouca competência di-
ante do fracasso ou das dificuldades, es-
ses comportamentos se tornam muito frá-
geis, fazendo com que ela opte por tarefas podem interferir na forma de envolvimen-
muito fáceis ou muito difíceis, diminua o to da criança com esporte e, consequente-
esforço ou desvalorize a tarefa quando o mente, na educação dela, entendida como
sucesso parece improvável e falte persis- um processo que socializa conhecimentos,
tência principalmente após uma situação normas e valores.
de fracasso (Ames, 1992; Duda, 1992; Por esta razão, as pesquisas sobre esse
Roberts, 1992). tema têm procurado, entre outras coisas,
Percebe-se, portanto, que as crianças compreender de que forma aspectos pe-
cuja orientação está voltada para o ego dagógicos do ambiente de aprendizagem
estão mais expostas a experiências negati- no esporte infantil influenciam o grau pelo
vas e ameaçadoras de sua autoestima no qual as metas relacionadas à tarefa ou ao
esporte, pois as falhas e os fracassos, ine- ego são percebidas como salientes em um
rentes ao processo de aprendizagem, as- contexto e, sendo assim, como interferem
sumem um caráter extremamente preju- na adoção de metas individuais pelas
dicial para elas. Ao contrário destas, as crianças e em seus comportamentos fren-
crianças orientadas para a tarefa, por se- te às atividades (Ames, 1992; Treasure,
rem autorreferenciadas quanto às suas 2001). A seguir, apresento o clima motiva-
competências, costumam manter o foco no cional no esporte infantil.
processo, não dando tanta importância aos
erros quando percebem que estão progre-
dindo (Korsakas, 2003). CLIMA MOTIVACIONAL:
A relevância desses dados está no fato APLICANDO A TEORIA NA PRÁTICA
de que a orientação motivacional não é
compreendida como um traço de perso- Qualquer ação pedagógica está dire-
nalidade, podendo ser resultante do pro- tamente ligada aos princípios e valores
cesso de socialização da criança em um daquele que a executa. Nesse sentido, o
contexto esportivo que enfatize uma ou educador explicita seus objetivos em rela-
outra forma de envolvimento, pois a na- ção à prática esportiva pela forma que or-
tureza das experiências esportivas e as in- ganiza as atividades, como agrupa as
terpretações subjetivas destas experiências crianças, quais os critérios que utiliza para
64 Dante De Rose Jr. e colaboradores

a avaliação, e pela maneira que se relacio- tências, além de valorizar o esforço em-
na com elas, podendo estimular determi- preendido em uma tentativa, mais do que
nada orientação motivacional, moldando o resultado final, denotando a adoção de
a estrutura do contexto esportivo e, con- um critério relacionado à tarefa (Korsakas,
sequentemente, definindo um clima mo- 2003).
tivacional que expressa metas específicas A estruturação do clima motivacional
para as crianças. orientado por uma ou outra concepção
A orientação do clima motivacional, expõe às crianças diferentes critérios de
assim como a orientação motivacional in- julgamento de suas competências, que in-
dividual, se diferencia pelo significado atri- terferem diretamente na adoção de um ou
buído às capacidades das crianças e pela outro critério por elas. Se a ênfase do am-
maneira como a competência das mesmas biente está na orientação à aprendizagem,
é julgada, podendo estar voltada para a a tendência é de que a criança assuma uma
aprendizagem ou para a performance. orientação individual voltada à tarefa. In-
versamente, quando o educador enfatiza
no ambiente a orientação à performance,
a criança tem mais chances de desenvol-
A orientação do clima motivacional, as- ver uma orientação voltada ao ego.
sim como a orientação motivacional in- Retomando a ideia de esporte como
dividual, se diferencia pelo significado um fenômeno de natureza educacional, a
atribuído às capacidades das crianças e orientação do clima motivacional aponta
pela maneira como a competência das
as intenções do educador, indicando em
mesmas é julgada, podendo estar volta-
da para a aprendizagem ou para a que direção ele pretende educar e qual a
performance. prática pedagógica mais adequada para tal
realização, correspondentes às suas cren-
ças e valores sobre o esporte, a educação
e a criança.
Um clima motivacional orientado à
performance assume a vitória ou o resulta-
do do desempenho como critério de su- Retomando a ideia de esporte como um
cesso, semelhantemente à orientação para fenômeno de natureza educacional, a
o ego, reforçando a comparação de desem- orientação do clima motivacional apon-
ta as intenções do educador, indicando
penhos entre as crianças, diferenciando- em que direção ele pretende educar e
-as entre melhores e piores e criando um qual a prática pedagógica mais adequa-
ambiente que oferece oportunidades desi- da para tal realização, correspondentes
guais para as crianças se desenvolverem às suas crenças e valores sobre o espor-
por enfatizar sempre o resultado final al- te, a educação e a criança.
cançado ou não. Em contrapartida, um am-
biente orientado para a aprendizagem pre-
ocupa-se com o desenvolvimento de cada Nos últimos anos, experimentos fei-
um dos praticantes, respeitando a indivi- tos com base em uma proposta de inter-
dualidade de cada criança. Para isso, ba- venção elaborada para o ambiente esco-
seia-se na autorreferência e no progresso lar da sala de aula têm procurado adaptar
individual como critérios de avaliação, es- seus conceitos para o contexto esportivo.
timulando também a autoavaliação para As pesquisas que vêm sendo conduzidas
que a criança julgue suas próprias compe- no contexto esportivo tomam emprestado
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 65
o modelo de intervenção em que se consi- aprender e a orientação para a tarefa. Além
dera tarefa, autoridade, reconhecimento, disso, o autor dá outros exemplos de pes-
agrupamento, avaliação e tempo – identi- quisas que sugerem que o formato unidi-
ficados pelo acrônimo TARGET1 – como mensional da tarefa, em que as crianças
dimensões ou estruturas do ambiente de usam os mesmos materiais e/ou têm as
aprendizagem, tidas como variáveis inter- mesmas atribuições ao mesmo tempo, fa-
dependentes que, juntas, definem o clima vorece a comparação de desempenhos.
motivacional (Ames, 1992; Biddle, 2001; Em uma tarefa unidimensional, por
Treasure, 2001). exemplo, as crianças são alinhadas em um
Em um quadro comparativo, Biddle canto da quadra e, ao sinal do educador,
(2001) descreve sinteticamente as diferen- devem repetir o salto demonstrado por ele
ças da prática pedagógica, considerando até o outro lado. Essa forma de prática po-
essas dimensões em diferentes climas mo- de fazer com que as diferenças de desem-
tivacionais (Tabela 4.1). penho sejam vistas como diferença em ter-
mos de competência e, consequentemente,
estimular a comparação entre as crianças
Tarefa como critério de avaliação. Por outro lado,
uma sessão de prática multidimensional,
Essa dimensão trata da estrutura das em que as crianças são desafiadas a supe-
atividades, considerando aspectos como rarem diversos obstáculos espalhados pela
variação dos exercícios, envolvimento dos quadra executando os saltos que conhe-
praticantes, objetivos, utilização de mate- cem ou criando outros, faz com que elas
riais, etc. Oferecer a prática de uma habi- se envolvam em diferentes tarefas distri-
lidade em situações variadas parece im- buídas no espaço e no tempo, oferecendo
portante não só para motivar o educando menos oportunidade e necessidade de as
diante de novos desafios, mas também crianças se compararem, além de estimu-
para estimular sua capacidade de respon- lar o desenvolvimento do senso de com-
der à variação das condições ambientais. petência independente dessa comparação.
Os estudos citados por Treasure
(2001) demonstram que tarefas variadas
e diversificadas favorecem o interesse em Autoridade

Esse segundo aspecto aborda a ques-


Oferecer a prática de uma habilidade em tão da participação das crianças nos pro-
situações variadas parece importante cessos de tomada de decisão e em papéis
não só para motivar o educando diante de liderança, aspectos dependentes do es-
de novos desafios, mas também para es- tilo de liderança assumido pelo educador.
timular sua capacidade de responder à Novamente, Treasure (2001) cita evidên-
variação das condições ambientais. cias que sugerem que as crianças tendem
a se sentir mais competentes em contex-
tos que promovam sua autonomia, por
exemplo, oferecendo oportunidades de
1
TARGET significa alvo em inglês e refere-se a escolha da tarefa, que pode ser identificada
Task (tarefa), Authority (autoridade), Recognition também na situação citada anteriormente
(reconhecimento), Grouping (agrupamento), sobre os saltos. No primeiro caso, todos
Evaluation (avaliação) e Timing (tempo). deveriam repetir o mesmo movimento e,
66 Dante De Rose Jr. e colaboradores

TABELA 4.1 A orientação do clima motivacional e as dimensões do TARGET


Orientação para Orientação para
a aprendizagem Dimensões do TARGET a performance

Desafiadora e diversificada Tarefa Falta de desafios e variedade


(Task)

As crianças têm escolhas e Autoridade As crianças não participam dos


desempenham papéis de (Authority) processos de tomada de decisão
liderança

Privado e com base no progresso Reconhecimento Público e com base na compa-


individual (Recognition) ração social

Aprendizagem cooperativa e Agrupamento Formação de grupos com base


promoção de interação com (Grouping) na competência
pares

Com base no domínio Avaliação Com base na vitória ou na


das tarefas e na melhora (Evaluation) superação do desempenho dos
individual outros

Ajustado de acordo com as Tempo Tempo de aprendizagem


capacidades individuais (Time) uniforme para todos

Fonte: Adaptada de Biddle (2001).

no segundo, cada criança poderia escolher


o obstáculo e o salto para ultrapassá-lo. Um educador que acredita ser o deten-
tor de todo o saber tende a assumir uma
Um educador que acredita ser o de-
postura autoritária, restringindo qualquer
tentor de todo o saber tende a assumir uma possibilidade de participação das crian-
postura autoritária, restringindo qualquer ças nos processos decisórios e descon-
possibilidade de participação das crianças siderando seus saberes. Por sua vez, o
nos processos decisórios e desconsideran- educador democrático as instiga a atua-
do seus saberes. Por sua vez, o educador rem na elaboração tanto dos objetivos
democrático as instiga a atuarem na ela- quanto das estratégias da prática espor-
boração tanto dos objetivos quanto das tiva.
estratégias da prática esportiva.
Uma situação que ilustra essa dife-
rença entre o autoritarismo e a prática
democrática pode ser analisada em uma educador democrático teria maior proba-
atividade cujo objetivo é a execução de bilidade de apresentar o sistema defensi-
movimentações de ataque para a quebra vo como uma situação-problema e solici-
de determinado sistema defensivo. Um tar que as crianças elaborassem movimen-
educador autoritário provavelmente ela- tações de ataque que o suplantassem. Nes-
boraria algumas estratégias, as famosas sa ocasião, o educador não atua de forma
jogadas ensaiadas, e solicitaria que as determinista, mas orienta as crianças em
crianças as repetissem várias vezes. Já um busca das possíveis soluções que serão
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 67
construídas em conjunto. Mais do que re- Agrupamento
petir jogadas coreografadas, essa conduta
faz com que as crianças compreendam as Esse tópico fala da maneira e da fre-
razões pelas quais devem executar deter- quência com que as crianças são agrupa-
minadas ações, proporcionando a reflexão das para o desenvolvimento das ativida-
sobre o fazer, além do fazer em si, funda- des. É comum no contexto esportivo que
mental para o desenvolvimento da inteli- as crianças sejam divididas em grupos de
gência tática, atuando como praticantes acordo com suas competências, distinguin-
críticos. do as mais habilidosas das menos capa-
zes, ou então colocando meninos e meni-
nas em grupos distintos, estratégias que
Reconhecimento acabam por promover a estratificação no
ambiente esportivo, partindo do pressu-
O reconhecimento é, segundo Treasu-
posto que não podem trabalhar juntas por
re (2001), um dos fatores mais evidentes
serem diferentes.
no esporte durante a infância, e é repre-
Segundo Treasure (2001), essa ati-
sentado pelos incentivos e recompensas,
tude convida as crianças à comparação de
fazendo com que, muitas vezes, eles pare-
desempenhos, enquanto a formação de
çam mais importantes que a própria tare-
grupos heterogêneos e variados reduz essa
fa. Segundo o autor, eles podem ter efei-
oportunidade de comparação.
tos nocivos quando percebidos como
controladores ou como forma de suborno,
além de invocarem a comparação social
quando oferecidos publicamente e com É comum no contexto esportivo que as
base na comparação de desempenhos. crianças sejam divididas em grupos de
Quando o reconhecimento gerado por uma acordo com suas competências, distin-
realização ou um progresso é privado, fi- guindo as mais habilidosas das menos
cando apenas entre o educador e a crian- capazes, ou então colocando meninos e
meninas em grupos distintos, estratégias
ça, o sentimento de orgulho não deriva da
que acabam por promover a estratifi-
superação dos outros e, por isso, favorece cação no ambiente esportivo, partindo
a percepção de um clima orientado para a do pressuposto que não podem traba-
aprendizagem. lhar juntas por serem diferentes.
A utilização de referenciais indivi-
duais oferece oportunidades iguais a to-
das as crianças de serem recompensadas
por seus esforços, orientado-as para a bus- A heterogeneidade enriquece o pro-
ca da autossuperação e não da superação cesso de aprendizagem, na medida em que
dos outros. este é concebido como transformação re-
cíproca, pois permite que uma criança aju-
de outra na aprendizagem de algo que já
domina e, ao mesmo tempo, que ela vis-
A utilização de referenciais individuais lumbre novas possibilidades pelo contato
oferece oportunidades iguais a todas as com o diferente.
crianças de serem recompensadas por
Oferecer atividades em que a força
seus esforços, orientado-as para a bus-
ca da autossuperação e não da supera- dos meninos somada à flexibilidade das
ção dos outros. meninas facilite o alcance do objetivo pro-
posto em um momento e, em outro, em
68 Dante De Rose Jr. e colaboradores

que os papéis se invertem para que expe- do a elas que o critério avaliativo é a sua
rimentem situações que exijam dos meni- evolução individual.
nos a flexibilidade que lhes falta e das Nessa perspectiva, o progresso indi-
meninas a força que não desenvolveram vidual ou os pequenos sinais de evolução
pode ser uma estratégia interessante para da criança na execução de determinada
que valorizem a contribuição do outro e a tarefa serão os indicativos positivos de que
união de seus esforços para a conquista ela está aprendendo, tornando-a, portan-
de metas comuns. to, merecedora do reconhecimento do edu-
cador por meio de elogios e instruções para
que continue a progredir. A preocupação,
Avaliação nesse caso, está focada no processo de
aprendizagem e não simplesmente em seu
Essa dimensão vem sendo comenta- resultado.
da, ao longo deste capítulo, como uma das Desse modo, a autoavaliação passa a
principais diferenças entre as orientações ser um processo fundamental tanto para o
motivacionais, tanto da criança quanto do autoconhecimento e o desenvolvimento da
ambiente. Conforme Treasure (2001) autoestima quanto para o desenvolvimen-
aponta, a questão aqui está centrada no to de uma conduta de respeito e solidarie-
significado das informações avaliativas. dade diante do outro, já que é mediante o
Pesquisas indicam que, quando a avalia- reconhecimento dos nossos próprios limi-
ção baseia-se em critérios normativos, é tes e possibilidades que aprendemos a acei-
pública e está vinculada à avaliação da ca- tar a individualidade do nosso colega, va-
pacidade das crianças, ela pode ter efeitos lorizando a diversidade do grupo.
negativos, pois os sistemas de avaliação
que enfatizam a comparação social e os
padrões normativos evocam um estado de Tempo
orientação para o ego, prejudicando a
autovalorização e o interesse intrínseco da Essa última dimensão tem como as-
criança pela atividade. Quando o resulta- pectos relevantes a flexibilidade do plane-
do do desempenho é estabelecido como jamento, a velocidade e o ritmo de apren-
critério de avaliação, define-se uma única dizagem e a administração das atividades,
meta para todo o grupo, ignorando a indi- estando relacionada com todas as outras
vidualidade. Dessa forma, fica evidencia- dimensões abordadas até aqui.
da a comparação de desempenhos entre Como Ames (apud Treasure, 2001)
as crianças, que se identificarão como ca- exemplifica, o tempo tem relação com a
pazes ou não na realização de determina- tarefa quando ela tem um prazo determi-
da tarefa. nado para ser finalizada ou não; ou com a
Se, durante a aprendizagem da ban- autoridade, considerando se é permitido
deja no basquetebol, somente as crianças que as crianças programem o ritmo, a se-
que executam o movimento correto e acer- quência ou o tempo para completar uma
tam a cesta são elogiadas, fica claro que o tarefa. Além disso, o tempo também está
critério de avaliação é o resultado do de- ligado ao agrupamento e à avaliação quan-
sempenho. Por outro lado, quando o es- do se analisa se o educador distribui suas
forço da criança é recompensado pelo fato instruções e informações avaliativas igual-
de ela conseguir coordenar os movimen- mente no tempo entre as crianças e entre
tos dos membros superiores e inferiores – os grupos.
o que não fazia antes –, apesar de ainda Se a proposta educativa tem como fi-
não converter o arremesso, estamos dizen- nalidade o desenvolvimento das crianças,
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 69
preocupando-se com o processo de apren- em contexto real afeta as percepções e as
dizagem, é necessário dar-lhes tempo para reações das crianças, e seus resultados têm
que aprendam. Sendo assim, o planeja- sido bastante sugestivos.
mento e seus prazos não devem ser esta- Em um estudo pioneiro, Theeboom,
belecidos unicamente com base nas expec- De Knop e Weiss (1995) investigaram a
tativas do educador, mas de acordo com a influência de diferentes climas motiva-
evolução apresentada pelas crianças. Da cionais de um programa de ensino de ar-
mesma forma, não se deve seguir à risca o tes marciais para crianças entre 8 e 12
que foi planejado apenas para se ter a sen- anos, manipulando tais dimensões, e os
sação de tarefa cumprida, e sim ser sensí- resultados indicaram que as crianças que
vel e flexível diante das necessidades das participaram do ambiente orientado à
crianças. aprendizagem se divertiram e gostaram
Se o educador adota a evolução indi- mais das atividades do que o outro grupo,
vidual como critério para o reconhecimen- além de demonstrarem melhor desempe-
to e avaliação dos seus desempenhos, é nho nas habilidades aprendidas, o que su-
necessário também que atentemos para o gere que tal clima favorece a aprendiza-
fato de que crianças diferentes aprenderão gem e o desenvolvimento motor.
em ritmo e velocidade também distintos. Outro estudo semelhante foi desen-
Em uma situação em que lidamos volvido por Solmon (1996 apud Treasure,
com um grupo heterogêneo – como geral- 2001) nas aulas de educação física, em que
mente são os grupos de crianças –, o esta- dois grupos distintos de crianças partici-
belecimento de objetivos individuais e a param de aulas que diferiam quanto ao
definição de prazos para seu alcance po- clima motivacional. Seus resultados indi-
dem ser estratégias eficientes. caram que as crianças perceberam os am-
Assim, é possível que todas as crian- bientes de maneiras diferentes e suas res-
ças estejam praticando uma mesma ativi- postas a eles também divergiram. As crian-
dade, mas cada uma sabe qual o objetivo ças do clima orientado para a aprendiza-
a ser atingido, pois foi estabelecido den- gem demonstraram mais disposição para
tro de um plano de trabalho elaborado persistirem em tarefas difíceis, enquanto
pelo educador juntamente com a criança. as crianças do ambiente orientado para a
As questões referentes ao tempo são performance apresentaram maior tendên-
extremamente importantes, pois muitas cia a atribuírem o sucesso à capacidade.
das estratégias discutidas até aqui serão Treasure (2001) também cita outro
ineficazes se as crianças não contarem com estudo desenvolvido por ele próprio com
o tempo necessário para aprender. sessões de futebol, demonstrando que a
manipulação dessas dimensões afetou, de
fato, o clima motivacional percebido pe-
INVESTIGAÇÕES SOBRE las crianças, além de indicar que o educa-
O CLIMA MOTIVACIONAL dor era capaz de estruturar o clima motiva-
cional favorecendo determinada orienta-
Cada uma das dimensões do clima ção, assumindo um papel decisivo na qua-
motivacional possui características parti- lidade da experiência esportiva das crian-
culares, mas fica claro que representam um ças. Nessa pesquisa, as crianças que per-
sistema de ações que se complementam e ceberam um clima motivacional em que
se articulam, caracterizando o ambiente suas competências eram fundamentadas
esportivo com uma ou outra orientação em progresso individual e esforço demons-
motivacional. Estudos têm buscado anali- traram preferência pelo engajamento em
sar como a manipulação dessas dimensões tarefas desafiadoras, acreditaram que o su-
70 Dante De Rose Jr. e colaboradores

cesso estava atrelado à motivação e ao es- de que um ambiente orientado à aprendi-


forço individuais e experimentaram mais zagem motiva as crianças intrinsecamen-
satisfação nas atividades do que aquelas te, fazendo com que experimentem mais
que foram submetidas a uma orientação diversão durante as atividades, desenvol-
para a performance. Estas últimas, por sua vam um autoconceito mais positivo e uma
vez, reportaram que a trapaça era a chave autoestima mais elevada, além de favo-
do sucesso. recer um relacionamento mais amigável
A relevância dos dados encontrados entre os integrantes do grupo e facilitar a
nessas pesquisas reside no fato de que a aprendizagem, elevando o nível de desen-
orientação do clima motivacional expres- volvimento das habilidades aprendidas.
sa tanto a posição que o educador pode
assumir frente às alternativas pedagógicas
quanto também as possíveis consequências CONSIDERAÇÕES FINAIS
que tal escolha tem sobre o desenvolvi-
mento das crianças envolvidas com a prá- Muito do que escrevi na primeira
tica esportiva, já que a tendência é de que edição desta obra continua valendo para
elas percebam a orientação do contexto e encerrar este capítulo.
ajam de acordo. Isto reforça ainda mais a O papel dos adultos envolvidos com
noção de que a interação da criança com o esporte, sejam eles pais, educadores ou
o educador no ambiente de aprendizagem árbitros, e a orientação do ambiente es-
ensina mais do que simplesmente os ges- portivo – a mediação de seus significados
tos esportivos, já que nessa troca ela apren- – estão diretamente relacionados à visão
de também sobre os valores, normas e con- adulta dos propósitos do esporte e da edu-
dutas sociais. cação. A orientação a um ambiente exces-
Diante das evidências destes e de sivamente competitivo, por um lado, está
outros estudos, Treasure (2001) conclui ligada a uma visão de que o esporte tem
que o principal objetivo do esporte infan- como única finalidade a elevação do status
til deve ser oferecer oportunidades para social dos vitoriosos e a busca por re-
que todas as crianças experimentem su- compensas extrínsecas, reconhecimento
cesso, fomentando a orientação à tarefa. social e prêmios. Por outro lado, a prática
Para ele, os adultos responsáveis pelo de- esportiva orientada à aprendizagem rela-
senvolvimento das crianças devem orien- ciona-se com a motivação intrínseca de
tar o ambiente esportivo para a aprendi- seus praticantes, considerando a educação
zagem, por ela garantir igualdade de opor- como um processo incessante em busca
tunidades para todos. Principalmente pelo tanto do crescimento individual quanto do
fato de o desempenho da criança estar li- comprometimento social de todos os en-
gado ao nível de desenvolvimento físico, volvidos.
fisiológico, psicológico, cognitivo e motor Acredito que o compromisso assumi-
é que o autor considera sensato, mesmo do por nós, educadores que pretendem
para aqueles preocupados em formar atle- contribuir para a formação de crianças e
tas de alto nível, que se promova um envol- jovens, exige, antes de mais nada, um pro-
vimento esportivo orientado para a tarefa cesso constante de reeducação de nós
na infância, construindo um clima moti- mesmos, pois de nada adianta defender-
vacional orientado para a aprendizagem. mos princípios educativos se as nossas
Enfim, ainda que os resultados das ações relutam em transformar-se.
intervenções desenvolvidas de acordo com Portanto, espero que as novas infor-
as dimensões do TARGET não sejam con- mações acrescentadas neste capítulo con-
clusivos, os estudos apontam na direção tinuem a servir de estímulo para que os
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 71
leitores descubram suas próprias respos- DUDA, J. L. Motivation in sport settings: a goal
tas, refletindo sobre suas práticas e prati- perspective approach. In: ROBERTS, G. C. Motivation
in sport and exercise. Champaign: Human Kinetics,
cando suas teorias, em busca da constru- 1992. p. 57-92.
ção da sua própria identidade profissional KORSAKAS, P. O clima motivacional na iniciação es-
e pessoal e também de um mundo mais portiva: um estudo sobre a prática pedagógica e os
justo e solidário. Muito difícil? Que tal co- significados de esporte e educação. 2003. 138 f.
meçar pela transformação da sua prática Dissertação (Mestrado) – Escola de Educação Física
e Esporte, Universidade de São Paulo, 2003.
pedagógica?
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A PEDAGOGIA DO ESPORTE
E OS JOGOS COLETIVOS
5
Roberto Rodrigues Paes
Hermes Ferreira Balbino

O objetivo deste capítulo é propor, discu- No final do século XIX, a modalida-


tir e refletir a respeito de uma pedagogia de basquetebol usava como alvo cestos de
aplicada aos jogos esportivos coletivos que colher pêssegos. A cada arremesso conver-
visa a trabalhar com o esporte em seu tido, o jogo era paralisado para que o ár-
amplo sentido. O fascínio do esporte é cada bitro pudesse colocar uma escada próxi-
vez maior, e sua prática conquista novos ma à cesta e retirar a bola. Com a evolu-
adeptos a cada dia. Em todo o mundo, a ção da modalidade, o cesto de colher pês-
cultura esportiva se difunde de tal forma segos foi substituído por uma cesta fecha-
que, de alguma maneira, faz parte da vida da, mas equipada com um sistema que,
das pessoas. Existem mais países filiados acionado por uma pequena corda, abria o
ao COI (Comitê Olímpico Internacional) fundo da cesta. Após pouco mais de 100
do que à ONU (Organização das Nações anos, o alvo na modalidade basquetebol
Unidas). Fica constatada essa afirmativa passou a ser um aro retrátil com suporte
ao notarmos o impacto dos Jogos Olímpi- em tabelas de vidro e de fibra de vidro e
cos de Pequim, 2008. estruturas hidráulicas. Enfim, uma com-
paração da modalidade entre o final do
século XIX para o início do século XXI evi-
dencia a significativa evolução ocorrida.
Em todo o mundo, a cultura esportiva se
difunde de tal forma que, de alguma Propomos a seguinte reflexão: como será
maneira, faz parte da vida das pessoas. praticado o esporte ao final do século que
se inicia? Certamente, os avanços tecnoló-
gicos continuarão; com isso, haverá uma
melhor compreensão do fenômeno e, se-
A evolução desse fenômeno, aqui com- guramente, a busca por uma pedagogia
preendido como sociocultural de múltiplas que não apenas leve em conta procedimen-
possibilidades, é notória, uma evidência tos pedagógicos mas que, sobretudo, seja
constatada em diversas situações. É possí- vista como um processo capaz de lidar com
vel observar, por exemplo, na modalidade o esporte, respeitando seus diferentes sig-
basquetebol, as mudanças ocorridas des- nificados e intenções. Tal processo não se
de sua criação, em 1891, até hoje. Neste limita ao ensino e à aprendizagem espor-
capítulo destacaremos, por sua curiosida- tivos, mas sim ao que chamaremos de en-
de e singularidade, uma dessas mudanças. sino-vivência-aprendizagem socioesportiva.
74 Dante De Rose Jr. e colaboradores

do para portadores de necessidades espe-


Os avanços tecnológicos continuarão; ciais (Araújo, 1998) e no âmbito profissio-
com isso, haverá uma melhor compreen-
nal (Proni, 2000).
são do esporte e, seguramente, a busca
por uma pedagogia que não apenas leve A riqueza do esporte está, entre ou-
em conta procedimentos pedagógicos tros aspectos, intensamente presente na
mas que, sobretudo, seja vista como um sua diversidade de significados e ressigni-
processo capaz de lidar com o esporte, ficados, podendo, entre outras funções,
respeitando seus diferentes significados atuar como facilitador na busca da melhor
e intenções. Tal processo não se limita qualidade de vida do ser humano, em to-
ao ensino e à aprendizagem esportivos, dos os segmentos da sociedade. Entretan-
mas sim ao que chamaremos de ensino-
to, é preciso acuidade para com um assun-
-vivência-aprendizagem socioesportiva.
to tão abrangente, pois a falta de claras
definições quanto a alguns aspectos peda-
gógicos, sobretudo quanto aos objetivos,
Para tanto, faz-se necessário um novo poderá resultar em equívocos, sendo o
olhar acerca do fenômeno esporte. É pre- mais comum deles a cobrança inerente ao
ciso vê-lo não mais como uma prática esporte profissional, ou seja, a busca por
exclusiva para atletas e talentos, mas uma performance atlética em práticas es-
como uma alternativa para todos os cida- portivas com outros significados, como,
dãos. Nesse contexto, Bento (2000) po- por exemplo, o esporte na ocupação do
siciona-se: tempo livre. Portanto, ao se estruturar uma
proposta pedagógica para ensinar espor-
O desporto viu-se investido de um te, é preciso ter as seguintes questões
crédito extremamente valoriza- elucidadas: Qual a modalidade a ser ensi-
dor da sua relevância social, cul- nada? Em que cenário? Quais os persona-
tural e humana. E, assim, atingiu gens desta prática? E, por fim, quais os seus
uma expansão sem par em outros significados? Somente a partir das respos-
domínios, com índices de cresci- tas dadas a essas questões será possível dar
mento impressionantes, a ponto um tratamento pedagógico ao esporte.
de este século ser rotulado por
muita gente como o estranho sé-
Para alicerçar uma proposta pedagó-
culo do desporto. gica, é preciso considerar dois pontos re-
O desporto tem sido instrumen- levantes: a importância de trabalhar com
talizado para as mais diversas o aluno os aspectos técnicos da modalida-
funções e finalidades, numa re- de escolhida e a importância de intervir
lação de osmose com o tecido junto ao educando quanto a aspectos re-
social e com a evolução da civili- lativos a valores e princípios.
zação e da cultura. Isto é, temos A pedagogia do esporte não deverá
estado a assistir a uma crescente
ser analisada somente por seus aspectos
desportivização da sociedade e da
vida e a uma desportificação do técnicos, até porque, quanto a este ponto
desporto. de vista, há inúmeros estudos sinalizadores
de formas e procedimentos pedagógicos
Definitivamente, o esporte passa a ter para o ensino do esporte nas agências do
o status de patrimônio cultural da huma- ensino formal e não formal. Os fatores
nidade (Tani, 1998). Nessa perspectiva, diferenciadores da análise aqui sugerida
destacam-se algumas funções importantes são o equilíbrio e a harmonia entre os as-
do fenômeno: conteúdo da educação físi- pectos citados.
ca no âmbito da escola (Paes, 1996), con- Faz parte da natureza da criança a
teúdo do lazer (Almeida, 2008), adapta- curiosidade de aprender. Uma criança, ao
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 75
procurar uma escola de esporte, na maio- forma mais ampla, transformando-os em
ria das vezes revela seu interesse em apren- facilitadores no processo de educação do
der a fazer cestas, gols, saques, etc. Por- ser humano. Nesse contexto, é preciso ir
tanto, os aspectos técnicos, táticos e físi- além da técnica e promover a integração
cos da pedagogia do esporte tornaram-se dos personagens, o que só será possível se
o foco do processo de iniciação esportiva. essa proposta pedagógica estiver funda-
Entretanto, o profissional não deverá li- mentada também em uma filosofia nortea-
mitar a prática do esporte somente a ques- da por princípios essenciais para a educa-
tões da metodologia; é preciso considerar ção dos alunos. E é nessa perspectiva que
a possibilidade educacional do esporte. o referencial socioeducativo pode interfe-
rir no processo, mais precisamente auxilian-
do a responder o quarto questionamento
dessa proposta, ou seja, em que medida o
O profissional não deverá limitar a prá- esporte poderá contribuir para o processo
tica do esporte somente a questões da educacional do ser humano?
metodologia; é preciso considerar a pos-
sibilidade educacional do esporte.
A PEDAGOGIA DO ESPORTE
E O ENSINO FORMAL

Para promover o equilíbrio pretendi- Inicialmente, faz-se necessário deli-


do entre os aspectos técnicos e os valores mitar o campo de atuação pretendido. Esta
humanos, atendendo às necessidades e aos reflexão acerca da pedagogia do esporte e
interesses das crianças, é preciso estruturar do ensino dos jogos coletivos será organi-
uma pedagogia a partir de dois referen- zada levando-se em conta a escola como
ciais: o metodológico e o socioeducativo. cenário (educação infantil, ensino funda-
O referencial metodológico deverá mental e médio). Os personagens serão
responder basicamente a três questões: O alunos das fases de ensino citadas (crian-
que ensinar? Quando ensinar? Como en- ças e jovens), as modalidades serão os jo-
sinar? No entanto, como argumentado gos coletivos (basquetebol, futebol, han-
anteriormente, restringir a pedagogia do debol e voleibol), e o objetivo será dar uma
esporte somente a questões metodológicas contribuição para o processo educacional
significa limitar as possibilidades do espor- considerando o quadro apresentado.
te, reduzindo-o a uma prática simplista e Os temas esporte, escola, crianças e
descontextualizada do esporte contempo- jovens sugerem discussões com diferentes
râneo. abordagens e em diferentes áreas do co-
nhecimento, quase sempre controvertidas.
Aqui pretendemos tomar como eixo da
discussão o processo de ensino-vivência-
O referencial metodológico deverá res-
ponder basicamente a três questões: o
-aprendizagem socioesportiva para crian-
que ensinar? Quando ensinar? Como en- ças e jovens no ambiente escolar. Primei-
sinar? ramente, serão indicados quatro proble-
mas relativos à pedagogia do esporte, con-
siderando os limites de atuação já identi-
ficados.
A contemporaneidade do esporte exi-
ge que o profissional de educação física  Prática esportivizada – Trata-se de
compreenda o esporte e a pedagogia de uma prática que se vale dos fundamen-
76 Dante De Rose Jr. e colaboradores

tos e gestos técnicos (habilidades es- ca do esporte é feita de forma incom-


pecíficas) de diferentes modalidades, patível com o projeto pedagógico da
sem nenhum compromisso com os ob- escola, resultando em um distancia-
jetivos do cenário em questão. mento entre a educação física e as de-
A prática esportivizada limita-se à re- mais disciplinas e causando prejuízos
petição de movimentos, fazendo com significativos aos alunos.
que o aluno repita aquilo que já sabe,  Especialização precoce – Trata-se de
deixando de possibilitar o aprendizado um grave problema da pedagogia do
de algo novo. Hoje, na escola, essa prá- esporte, tanto na educação formal
tica é comum. A rigor, foi estabelecida quanto na educação não formal. A bus-
uma confusão entre esporte e prática ca pelo resultado positivo a curto pra-
esportivizada que gerou críticas ao es- zo, especialmente no Brasil, tem leva-
porte na escola, a nosso ver equivoca- do profissionais do esporte a promo-
das, pois o que há na escola é a prática ver a especialização como elemento de
esportivizada, não o esporte. constituição de seus procedimentos
 Prática repetitiva de gestos técnicos pedagógicos. Ela acontece cada vez
em diferentes níveis de ensino – Outra mais cedo, o que pode ser verificado
situação comum nas aulas de educação claramente na modalidade futebol, na
física no âmbito da escola é a repeti- qual existe até mesmo uma categoria
ção das mesmas práticas nas diferentes denominada “fraldinha”. Esse procedi-
fases do ensino formal, um procedi- mento acaba resultando em problemas
mento observado por meio do seguinte de diferentes dimensões: físicas, técni-
exemplo: o voleibol proposto na educa- cas, táticas, psicológicas e filosóficas.
ção infantil é o mesmo proposto no en- A maior incidência da especialização
sino fundamental e no ensino médio. precoce está centrada nos clubes, onde
No mínimo, essa situação revela falta o chamado senso comum, influencia-
de respeito às fases do desenvolvimento do por vários setores da sociedade, so-
do aluno, contribuindo para a redução bretudo pela mídia, entende equivoca-
do esporte a uma simples prática espor- damente que esse procedimento peda-
tivizada com o fim em si mesma. Tal gógico é eficiente na identificação do
procedimento tem sido apontado como talento esportivo. Não obstante hoje
uma das causas da evasão dos alunos esse problema ser maior em equipes
nas aulas de educação física na escola. participantes de eventos promovidos
 Fragmentação de conteúdos – É um por ligas e federações, cabe aqui um
problema clássico da pedagogia do es- alerta, pois, seguramente, a curto pra-
porte no ambiente escolar. O esporte é zo, esse problema ocorrerá também nas
oferecido de forma desorganizada, sem escolas.
a continuidade e a evolução necessá-
rias ao aprendizado. Esse conjunto de problemas aborda-
Na prática, esse comportamento pode dos aqui de forma introdutória pode in-
ser observado pela ausência de plane- terferir de maneira negativa na tentativa
jamento tanto no ambiente escolar de dar ao esporte, em especial na escola,
quanto fora dele. A falta de planeja- um tratamento pedagógico. Para contra-
mento pode levar o professor a traba- por os problemas citados, serão identifi-
lhar conteúdos fragmentados e isola- cados neste texto quatro aspectos relevan-
dos. No caso da educação formal, a si- tes e balizadores de uma proposta peda-
tuação se agrava, uma vez que a práti- gógica.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 77
 Esporte – O primeiro aspecto diz res- novo e preparar-se para aprendizados
peito à melhor compreensão do fenô- futuros. Sistematizar os conteúdos é um
meno esporte. Com o significado pre- pré-requisito fundamental para dar ao
tendido neste estudo, a função do es- esporte um tratamento pedagógico.
porte deve ser compreendida como  Consideração dos diferentes níveis
facilitadora no processo educacional, de ensino – Esse aspecto, apesar de pa-
no ambiente escolar. Sua prática terá recer óbvio, não é considerado quando
sentido à medida que estiver vincula- se trata de ensino do esporte na esco-
da aos objetivos estabelecidos pelo pro- la. A não observância desse aspecto por
jeto pedagógico da escola. Segundo parte do professor poderá reduzir e
Paes (1996): restringir o esporte a simples repetições
de gestos, ofuscando seu verdadeiro
O aprendizado do esporte na es- valor no processo de educação de crian-
cola poderá ocorrer privilegian- ças e jovens.
do-se seu caráter lúdico, propor-  Diversificação – O último ponto des-
cionando aos alunos a oportuni-
tacado como balizador de uma propos-
dade de conhecer, aprender, to-
mar gosto, manter o interesse ta pedagógica é a diversificação. Esse
pela ação esportiva e ainda con- procedimento é fundamental no pro-
tribuir para a consolidação da cesso de ensino e aprendizagem do es-
educação física como uma disci- porte, na escola ou fora dela, pois é por
plina. Tudo isso com objetivos meio da diversificação de movimentos
pedagógicos que transcendam os e de modalidades que os alunos pode-
objetivos do esporte com o fim so- rão ter acesso facilitado ao esporte, co-
mente na sua prática.
nhecendo alternativas práticas para, as-
sim, ampliar seu universo de possibili-
dades e até mesmo ter um referencial
A função do esporte deve ser compreen- maior para optar por práticas esporti-
dida como facilitadora no processo edu- vas de seu interesse.
cacional.

É por meio da diversificação de movimen-


 Sistematização de conteúdos – Como
tos e de modalidades que os alunos po-
todos os assuntos trabalhados na esco- derão ter acesso facilitado ao esporte.
la, o esporte deve ser desenvolvido de
forma planejada, organizada e sistema-
tizada. Dessa forma, para ensinar es-
porte é preciso que os alunos, nas au- Após identificar alguns problemas e
las de educação física, tenham a opor- indicar aspectos norteadores de uma pe-
tunidade de rever constantemente o dagogia do esporte preocupada com quem
que já foi aprendido, aprender algo joga e não somente com o jogo, a discus-
são será deslocada para os dois referenciais
elencados anteriormente, que darão sus-
O esporte deve ser desenvolvido de for- tentação à proposta na tentativa de dar
ma planejada, organizada e sistemati- ao esporte um tratamento pedagógico.
zada. Inicialmente, o eixo da discussão será
o referencial metodológico. Sem dúvida,
78 Dante De Rose Jr. e colaboradores

a organização do conhecimento a ser tra-


balhado é fundamental para o desenvol- Para estruturar metodologicamente a pe-
dagogia visando ao ensino dos jogos
vimento do esporte na escola.
coletivos, é preciso ter o conhecimento
Para adequar um tratamento peda- dessa lógica e ser capaz de organizar
gógico ao processo de ensino-vivência- esse conhecimento, planejando seu
-aprendizagem dos jogos esportivos coleti- aprendizado e promovendo intervenções
vos, é preciso conhecer e entender sua ló- com graus crescentes de dificuldade.
gica técnica e tática. Os jogos coletivos
possuem, do ponto de vista tático, basica-
mente dois sistemas: defensivo e ofensi-
vo; a passagem de um sistema para o ou- efetivamente uma pedagogia do esporte
tro é compreendida como transição; por- com o objetivo de contribuir com o pro-
tanto, os jogos coletivos são jogos de tran- cesso educacional no ambiente escolar, é
sição, em que as possibilidades de ter a preciso avançar em outra direção. Nesse
posse de bola e perdê-la configuram-se contexto, o referencial socioeducativo
como situações-problema, de inversão e da constitui-se em outro ponto sustentador da
compreensão da lógica do jogo. proposta apresentada. Esse referencial será
contemplado à medida que, além do en-
foque técnico-tático, importante na peda-
gogia do esporte, também se levará em
Os jogos coletivos são jogos de transi- conta princípios indispensáveis para o de-
ção em que as possibilidades de ter a senvolvimento da personalidade da crian-
posse de bola e perdê-la configuram-se ça e do jovem, como cooperação, parti-
como situações-problema, de inversão e cipação, convivência, emancipação e co-
de compreensão da lógica do jogo. educação.

Quanto aos aspectos técnicos, é im- Princípios indispensáveis para o desen-


portante eleger, primeiramente, funda- volvimento da personalidade da criança
e do jovem, como cooperação, partici-
mentos comuns às quatro modalidades pação, convivência, emancipação e co-
(domínio de corpo, controle de bola, pas- educação, devem também ser conside-
se, recepção, drible – reter a posse de bola rados.
ou conduzi-la ao alvo do jogo sem come-
ter violações – e finalização). Posterior-
mente, deve-se caminhar em direção ao
desenvolvimento das habilidades especí- A rigor, pretende-se com este capítu-
ficas de cada modalidade e, ainda, estru- lo defender a necessidade permanente de
turar ações que visem a trabalhar situa- buscar o equilíbrio entre os referenciais
ções-problema inerentes ao jogo. Para metodológicos (organização pedagógica
estruturar metodologicamente a pedago- dos conteúdos) e os socioeducativos
gia visando ao ensino dos jogos coletivos, (embasamento nos princípios norteado-
é preciso ter o conhecimento dessa lógica res). O propósito disso é a construção de
e ser capaz de organizar esse conhecimen- uma pedagogia que vise a ensinar esporte
to, planejando seu aprendizado e promo- no ambiente escolar com o propósito de
vendo intervenções com graus crescentes proporcionar ao educando o ensino-vi-
de dificuldade. Entretanto, para estruturar vência e a aprendizagem socioesportiva.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 79
Uma vez que os referenciais de sus-
tentação dessa proposta estejam claros, a O “jogo possível” possui um caráter lúdi-
co e, ao mesmo tempo, pode ser um faci-
discussão mudará novamente de foco e, a
litador para os alunos compreenderem
partir de então, a reflexão será em torno a lógica interativa de técnica e tática dos
das diferentes estratégias de ensino utili- jogos coletivos.
zadas no processo pedagógico dos jogos
coletivos.
Os facilitadores pedagógicos dispo-
níveis são vários (p. ex., exercícios analíti- ter lúdico e, ao mesmo tempo, pode ser
cos, sincronizados, específicos e de transi- um facilitador para os alunos compreen-
ção), além de jogos e brincadeiras, que derem a lógica interativa de técnica e táti-
também têm sido utilizados como facilita- ca dos jogos coletivos. O “jogo possível”
dores nesse processo. Neste ensaio, pre- permite ao professor promover interven-
tende-se destacar os jogos e as brincadei- ções no processo de educação dos alunos,
ras para melhor analisar suas possibilida- possibilitando-lhes o aprendizado dos fun-
des como forma de intervenção na pedago- damentos e das regras, trabalhando em
gia do esporte. Considerando que a origem espaços físicos que podem ser adaptados
do esporte está no jogo, este, situado na e, com o uso reduzido de materiais, per-
interface com o esporte, permite, de certa mitindo a integração de quem sabe jogar
forma, validar suas origens. com quem quer aprender. Afinal, o aluno
O jogo revela-se importante no pro- não precisa aprender para jogar, e sim jo-
cesso de aprendizagem do esporte. Já há gar para aprender. Além dos aspectos téc-
algum tempo discute-se, na educação fí- nicos e táticos, o “jogo possível” pode ser
sica, a utilização do jogo como um facili- facilitador das intervenções relativas aos
tador na educação de crianças e jovens. princípios norteadores, aos valores e aos
Orlick (1987) afirma que o esporte e o jogo modos de comportamento de crianças e
são reflexos da sociedade e que ambos po- jovens.
dem criar o que é refletido na sociedade. Além disso, devemos destacar sua
O autor, fortemente embasado na teoria importância como recurso pedagógico de
dos jogos cooperativos, diz que valores e uma proposta que tem como objetivo dar
comportamentos podem ser aprendidos ao aluno uma oportunidade de conhecer,
por meio de jogos e brincadeiras. Freire aprender e utilizar o esporte de acordo
(1989) defende a importância do jogo e com seus interesses.
das brincadeiras no processo de ensino e O esporte na escola é importante de-
na aprendizagem dos conteúdos da escola. vido a várias razões: por ser um dos con-
Historicamente, a educação física tem teúdos de educação física, por ser a escola
convivido com diversos tipos de jogos. Na uma agência de promoção e difusão da
literatura específica, temos acesso aos jo- cultura e até mesmo por uma questão de
gos pré-esportivos, jogos de regras, gran- justiça social, uma vez que em outras ins-
des jogos, jogos cooperativos, jogos adap- tituições o acesso ao esporte é restrito a
tados, entre outros. um número reduzido de crianças e jovens
Tenho proposto o “jogo possível” que se associam a clubes esportivos, tor-
como uma alternativa de jogo que, na nam-se clientes de academias ou partici-
interface com o esporte, pode proporcio- pam de escolas de esportes.
nar, durante o aprendizado, o equilíbrio Na educação formal, como todos os
necessário entre os dois referenciais já dis- seus demais conteúdos, o esporte deverá
cutidos. O “jogo possível” possui um cará- ser oferecido considerando-se as diferen-
80 Dante De Rose Jr. e colaboradores

tes fases do ensino, bem como as caracte- tacam-se a corporal cinestésica, espacial,
rísticas dos alunos em cada uma delas. interpessoal, intrapessoal e lógico-mate-
Nesse sentido, é preciso adequar a propos- mática), mas também trabalhar a auto-
ta pedagógica às necessidades e possibili- estima (reforçando acertos em geral e
dades do aluno. Na educação infantil, qua- promovendo intervenções positivas) e,
tro pontos devem ser destacados: desen- por fim, facilitar as intervenções dos pro-
volvimento das habilidades básicas, estí- fessores no sentido de trabalhar princí-
mulos das inteligências múltiplas (Balbino; pios essenciais à sua educação (coopera-
Paes, 2007), vivência de valores e apren- ção, participação, emancipação, coedu-
dizado de comportamentos. cação e convivência).
Já no ensino fundamental, é possível O esporte é considerado um dos
organizar o conhecimento e, de forma fle- maiores fenômenos socioculturais neste
xível, estabelecer um cronograma da 1a a início de novo milênio, e, mesmo com toda
8a séries considerando quatro momentos: a evolução, por si só não faz nenhum mila-
pré-iniciação (1a e 2a séries), quando os gre. Segundo Parlebas (apud Betti, 1991):
temas desenvolvidos seriam o domínio do
corpo e a manipulação da bola; iniciação I O desporto não possui nenhuma
(3a e 4a séries), quando os temas desen- virtude mágica. Ele não é em si
volvidos seriam passe, recepção e drible; mesmo nem socializante nem an-
tissocializante. É conforme: ele é
iniciação II (5a e 6a séries), quando os te-
aquilo que se fizer dele. A práti-
mas seriam finalizações e fundamentos ca do judô ou do rúgbi pode for-
específicos; e iniciação III (7a e 8a séries). mar tanto patifes como homens
Neste último, os temas seriam situações perfeitos, preocupados com o fair
de jogo, transições e sistemas. No caso do play.
ensino fundamental, os jogos coletivos se-
riam desenvolvidos por meio de aulas Essa afirmação de Parlebas eviden-
temáticas, envolvendo diferentes modali- cia a importância do professor de educa-
dades e não especificamente uma. ção física na condução do processo educa-
No ensino médio, os jogos coletivos cional e da utilização do esporte na pers-
poderão ser desenvolvidos considerando- pectiva de torná-lo mais socializante. Nesse
se suas especificidades, como, por exem- contexto, destacam-se três pontos impor-
plo, futebol, voleibol, basquetebol e han- tantes, aos quais o profissional deve estar
debol. É importante salientar que essa for- atento. Primeiro, a educação é uma área
ma de organização e distribuição de te- de intervenção, e o professor deverá sem-
mas não implica uma fragmentação dos pre promover intervenções construtivas,
conteúdos, mas sim uma tentativa de su- positivas, ou seja, mostrar para o aluno o
prir uma das mais graves deficiências no certo e não simplesmente comentar e cri-
ensino do esporte nas aulas de educação ticar o errado. Segundo, o professor deve-
física escolar, que é a repetição da mes- rá sempre incentivar e motivar todos os
ma prática em diferentes períodos esco- alunos a praticar esportes. Todas as crian-
lares. Em síntese, para que o esporte te- ças e jovens têm o direito de aprender e
nha um tratamento pedagógico na esco- vivenciar o esporte. Não se trata de excluir
la, deverá não apenas possibilitar aos alu- o talento, mas sim de incluir quem não tem
nos o desenvolvimento motor (aquisição talento. Terceiro, caberá ao professor de
de habilidades básicas e específicas) e o educação física promover e administrar a
desenvolvimento das inteligências (des- relação de ensino e aprendizagem do es-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 81
porte na escola. Para tanto, será necessá-
rio valer-se da pedagogia do esporte e não Na escola ou fora dela, o esporte para
crianças e jovens deve ser proposto no
da simples administração e condução da contexto educacional e contribuir para
prática esportivizada. sua educação e formação como cidadãos
que, no exercício pleno de sua cidada-
nia, podem ou não ser atletas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contexto do esporte, quando abar- ter como objetivo contribuir para sua edu-
ca crianças e jovens, lança-nos a discussões cação e formação como cidadãos que, no
em diferentes dimensões, sendo a pedago- exercício pleno de sua cidadania, podem
gia do esporte uma delas. Ao apresentar- ou não ser atletas.
mos este capítulo, uma das proposições foi A pedagogia do esporte, consideran-
a de promover uma articulação da pedago- do-se cenário, personagens, modalidades
gia do esporte com a escola nos períodos e objetivos delimitados no estudo, deverá
referentes à educação infantil, ao ensino proporcionar às crianças e aos jovens o
fundamental e ao ensino médio. Foi apon- conhecimento de diferentes modalidades,
tada a relevância de se estruturar uma pro- devendo sua prática ser organizada em
posta pedagógica para o ensino de modali- referência a um tempo pedagógico adequa-
dades esportivas na escola, levando em do, respeitando as características da faixa
consideração os aspectos técnicos e tam- etária do aluno, bem como a fase de ensi-
bém os aspectos relativos aos valores e aos no do qual o aluno faz parte.
modos de comportamento. Nesse contexto, Em se tratando dos jogos coletivos, é
os referenciais metodológico e sociocultu- preciso proporcionar ao aluno a compreen-
ral são norteadores da proposição de uma são da lógica interativa da técnica e tática
prática que visa a dar ao esporte o trata- do jogo e desenvolver amplamente as ha-
mento pedagógico necessário para seu de- bilidades básicas, como as corridas, os sal-
senvolvimento na escola. A prática descon- tos e os lançamentos e habilidades especí-
textualizada do esporte na educação for- ficas, referentes aos fundamentos e gestos
mal e não formal pode reduzir as suas pos- técnicos da modalidade.
sibilidades, limitando as suas funções. A A evolução do esporte transformou-
subutilização do esporte pode até mesmo o em um fenômeno sociocultural cuja ri-
torná-lo uma prática de caráter simplista queza maior é sua pluralidade de funções
e de exclusão. No entanto, é preciso deixar e intervenções. Essa multiplicidade de sig-
claro que esse problema não pode ser nificados propicia sua prática nos diferen-
atribuído ao fenômeno esporte, mas à fal- tes segmentos da sociedade. Ao tratarmos
ta da consideração de importantes elemen- de crianças e jovens, alguns aspectos de-
tos, aqui apontados para compreendê-lo vem ser destacados. Dos princípios sinali-
melhor. zados neste capítulo, a participação confi-
Na escola ou fora dela, o esporte para gura-se como um princípio básico de fun-
crianças e jovens deve ser proposto no con- damental importância para a prática de
texto educacional. Um dos equívocos cons- uma pedagogia do esporte em que a in-
tantemente observados é a busca pela ple- clusão é um fator preponderante em todo
nitude atlética em crianças ainda em for- o processo.
mação. Como apresentado neste capítulo, Outro aspecto importante refere-se
o esporte na vida de crianças e jovens deve ao reconhecimento dos problemas causa-
82 Dante De Rose Jr. e colaboradores

dos pela especialização precoce de movi- REFERÊNCIAS


mentos em modalidades esportivas, pois
ela apresenta, no mínimo, um efeito limita- ARAÚJO, P. F. de. Desporto adaptado no Brasil: ori-
gem, institucionalização e atualidade. Brasília: Mi-
do e duvidoso e, certamente, não respeita
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ALMEIDA, M. A. B. Análise de desenvolvimento das
nem da aprendizagem. práticas urbanas de lazer relacionadas à produção cul-
Contrapondo a especialização preco- tural no período nacional-desenvolvimentista à
ce, a pedagogia do esporte deverá pautar- globalização através da “teoria da ação comunicativa”.
se pela diversificação de movimentos e de 2008. Tese (Doutorado) – FEF, Unicamp, 2008.
modalidades, pois esse procedimento po- BALBINO, H. F; PAES, R. R.; Jogos desportivos coleti-
vos e as inteligências múltiplas: uma proposta em pe-
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promover intervenções com o objetivo de
o indivíduo multiplicar seu potencial de
competências e habilidades de forma mul- LEITURAS COMPLEMENTARES
tidimensional. Desse modo, ele irá se tor-
nar efetivo participante de um mundo em BOURDIEU, P. Como é possível ser esportivo. In:
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A PSICOSSOCIOLOGIA DO
VÍNCULO DO ESPORTE —
ADULTOS, CRIANÇAS E
6
ADOLESCENTES: ANÁLISE
DAS INFLUÊNCIAS
Antonio Carlos Simões

Quando se pergunta a qualquer criança ou a vida social esportiva dos professores de


adolescente por que está praticando espor- educação física, tanto como educadores
te, é comum ouvir: “Porque gosto de jogar quanto como técnicos; das crianças/jovens
com meus amigos”; “Porque quero ser um adolescentes; dos familiares (maternos e
jogador rico e famoso”; e/ou: “Porque paternos), entre outros agentes sociais. A
meus pais querem que pratique esporte”. predisposição desses personagens para o
Existem outras, e todas demonstrando que estabelecimento de vínculos psicossociais,
o esporte é um dos fenômenos mais notá- sociodinâmicos e institucionais passa por
veis da sociedade moderna. A partir dessa relacionamentos interindividuais, grupais
dinâmica complexa, postula-se como ob- e institucionais, que mobilizam ações e rea-
jetivo, neste capítulo, estabelecer uma aná- ções que expressam a natureza das repre-
lise do desenvolvimento das relações pró- sentações sociais. O marcante dessa obje-
sociais esportivas, que envolvem uma mo- tividade está no fato de que os motivos, as
bilizadora situação triangular entre crian- atitudes, as expectativas, as tensões, as
ças/jovens adolescentes, professores/téc- emoções e os sentimentos vitais de cada
nicos e familiares (maternos/paternos) agente esportivo constituem a base dos
com diversos níveis de complexidade so- fatores intervenientes no processo de par-
cial e esportiva escolar. ticipação e desenvolvimento social espor-
tivo dos indivíduos em idade escolar. Pode-
-se, assim, destacar a existência de uma
INTERAÇÕES ENTRE CRIANÇAS rede psicossocial, sociodinâmica e institu-
E SEUS CONTEXTOS SOCIAIS cional que serve como modelo, promoven-
ESPORTIVOS do um senso de forças/energias na cons-
trução da vida educativa escolar e esporti-
Em uma perspectiva interdisciplinar, va competitiva. Não menos significativa é
devemos considerar que o dinamismo es- a presença de valores socioculturais, con-
portivo requer cuidadosa organização e vicções e crenças morais e ideologias que
análise sobre os fenômenos sociointe- fazem parte dos caminhos de instituições
rativos e psicológicos que gravitam sobre de ensino, clubes e equipes esportivas.
86 Dante De Rose Jr. e colaboradores

Há razões para se acreditar que o e os clubes esportivos dão consistência às


participar, o jogar e o competir podem ser experiências de sucessos e insucessos in-
contraditórios quanto às características fantis. É claro que o meio social escolar
específicas do esporte escolar moderno, esportivo adquire relevância pelas suas
que acabou se transformando em um mo- formas de organização e de argumentos
delo dinâmico de realidade social, não pelo em prol ou contra as manifestações concei-
seu caráter social participativo, mas pelas tuais que abrangem as competições infan-
tendências de inclusão/exclusão dos mais tis. Nenhuma delas suscita maior atenção
e menos capacitados atleticamente. do que o dinamismo dos elementos nortea-
Nessa perspectiva, todas as manifes- dores dos processos de socialização e in-
tações esportivas estão alinhadas a um tegração à sociedade por meio dos jogos
modelo de realidade psicossocial, sociodi- pré-competitivos e escolares competitivos.
nâmico e institucional típico de cada tipo Nesse contexto, o processo de forma-
de esporte individual ou coletivo. ção e desenvolvimento da personalidade
Torna-se necessário reconhecer que esportiva é marcado, então, por uma adap-
o esporte educacional constitui um apego tação via mundo social esportivo, até cer-
entre as crianças/jovens adolescentes e as to ponto paradoxal. Esse desenvolvimen-
lideranças adultas na promoção de um to fornece evidências para a compreensão
modelo de realidade social que promove do mundo dos esportes infantis como um
as necessidades e os desejos de competên- modelo de realidade psicossocial. Isso im-
cia esportiva. plica o fato de o esporte escolar se conver-
ter em um instrumento de integração so-
cial e de socialização, com um interjogo
Torna-se necessário reconhecer que o do papel dos professores de educação físi-
esporte educacional constitui um apego ca (suas ideologias) confrontado com os
entre as crianças/jovens adolescentes e desejos das crianças e dos adolescentes de
as lideranças adultas na promoção de brincar, jogar e competir. Diante dessa si-
um modelo de realidade social que pro- tuação, o processo ensino-aprendizagem
move as necessidades e os desejos de decorre por meio das brincadeiras, jogos
competência esportiva.
pré-esportivos e esportivos educacionais
competitivos. Sage (apud Patriksson, 1996)
considerou o esporte como um campo
As investigações mostram que as va- sociocultural com múltiplas consequên-
riáveis situacionais e disposicionais são ex- cias. Prova disso está nas características
tremamente complexas e suscetíveis à in- do caráter participativo e das exigências
fluência de fenômenos sociais e psíquicos competitivas. As crianças e os jovens ado-
em um cenário que inclui todos os tipos lescentes entram em sincronia com o rit-
de manifestações às relações de gênero, mo dos relacionamentos interativos, pois
raça, credo religioso e ideologias. O cená- nascem com os componentes cognitivos,
rio é mais complexo entre os que ensinam, afetivos e comportamentais.
interferem e influenciam e os que passam O esporte infantil implica, então, co-
por um processo de formação e de- nhecimento não só daquilo que o jogo e a
senvolvimento de personalidade dentro competição trazem em si, mas do compor-
das práticas sociais. tamento apresentado por crianças/jovens
A importância dessas práticas tem adolescentes como alunos e das lideran-
relação direta com o ensino fundamental ças adultas, que vão buscar dentro e fora
e o médio, cujas relações sociais esporti- das escolas uma pluralidade de respostas
vas mantidas entre as famílias, as escolas ligadas às necessidades e aos desejos de
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 87
participação de seus filhos, no campo dos
esportes competitivos, que racionaliza e Verifica-se que o comportamento infan-
til é influenciado por fatores socioam-
quantifica as relações produtivas.
bientais complexos, predominantemen-
Essa situação suscita muitas reflexões te alinhados com as necessidades e os
e questionamentos a respeito das práticas desejos das lideranças adultas.
esportivas competitivas, principalmente
em relação à importância das manifesta-
ções desenvolvidas entre o esporte de com- as lideranças adultas (professores/técni-
petição e as lideranças adultas para o con- cos, familiares) e crianças/jovens adoles-
trole das normas que regulamentam o de- centes, considerando influências recípro-
sempenho de uma criança ou de um ado- cas entre os níveis individuais, grupais e
lescente no esporte de competição. Temos institucionais em termos educacional e
que reconhecer que as lideranças adultas esportivo. Os professores, tanto como edu-
desempenham um papel importante na cadores quanto como técnicos, sustentam
macro e na microestrutura social do espor- o processo de transposição educativa e es-
te, educando e orientando crianças/adoles- portiva em ideologias que caminham des-
centes a desenvolverem suas potenciali- de as expectativas dos alunos até os efei-
dades. Cada vez mais se reconhece o cará- tos persuasivos dos familiares e dos ami-
ter competitivo dessa dinâmica, já que as gos em geral. A incorporação de um com-
crianças e os jovens adolescentes e as li- portamento competitivo reforça a solici-
deranças adultas representam umas para tude e o investimento por parte dos pro-
as outras importantes agentes quanto à fessores de educação física e da família.
maneira de encarar a vida social escolar Acumulam-se indicadores de processos de
esportiva. Esses agentes estabelecem rela- influências, de tal modo que fica claro o
cionamentos que se alinham às oportuni- engano de se pensar que as crianças e os
dades e aos limites equivalentes dos com- jovens adolescentes se tornam atletas sem
portamentos competitivos e dos sonhos sofrer pressões dos educadores e dos fa-
das lideranças adultas e de crianças/jovens miliares maternos e paternos.
adolescentes de se tornarem reconhecidos Os comportamentos competitivos são
socialmente. tomados e justificados por acentuados pro-
Verifica-se que o comportamento in- cessos de inclusão e de exclusão, de senti-
fantil é influenciado por fatores socioam- mentos e de identidades pessoais/sociais,
bientais complexos, predominantemente que incluem, entre outras dimensões, a
alinhados com as necessidades e os dese- expressão “atleta em miniatura”. Grande
jos das lideranças adultas. parte do que acontece no mundo social
esportivo infantil se aplica para ambos os
sexos. É possível que uma compreensão
O cenário do desenvolvimento mais aprofundada desse contexto repre-
das relações entre crianças sente o ponto crucial para o entendimen-
e esporte infantil to dos fenômenos interativos e psíquicos
que assolam os comportamentos infantis.
Esse cenário abrange, ou pode abran- Assim, crianças/jovens adolescentes assi-
ger, uma série de argumentos que reali- milam competências, valores, atitudes e
mentam um complexo de reconhecimen- comportamentos que lhes permitem tor-
to dos problemas de compreensão da cul- nar-se membros do mundo dos esportes
tura social esportiva. Chama a atenção a individuais e coletivos.
frequência das contradições que existem O padrão de comportamento compe-
entre os relacionamentos mantidos entre titivo infantil favorece o papel das lideran-
88 Dante De Rose Jr. e colaboradores

ças adultas na direção das ideologias que


dão sentido à participação infantil nos di- A microanálise dos relacionamentos tra-
duz a forma como cada aluno/atleta
ferentes tipos de esportes. O macrossiste-
aprende a participar, competir, vencer e/
ma social esportivo maximiza o sentido ou perder desde que ingressa na escola
dado pelas lideranças adultas à vida es- até o dia em que se inclui no mundo dos
portiva de crianças/jovens adolescentes. esportes, em todas as suas formas de
As intervenções ultrapassam, por defini- convivência.
ção, os limites da simples participação em
práticas escolares esportivas e esportivas
competitivas – cujas vicissitudes são variá- mantendo inter-relações associadas com
veis motivacionais provenientes das per- cooperação intensificada que podem dar
formances de condutas pessoais que cada sentido à vida de crianças/adolescentes
familiar ou professor assume em função como alunos e como atletas.
do processo de formação e de desenvolvi- A sincronia dos relacionamentos in-
mento da personalidade esportiva. Eviden- corpora normas de condutas, regras e re-
temente, como não poderia deixar de ser, gulamentos referendados pelo esporte es-
acentuadas alterações educacionais e es- petáculo/competitivo, tudo fazendo parte
portivas se processam, atestando que exis- do mesmo projeto coletivo educacional
tem projetos sociais esportivos organiza- esportivo. É possível que as relações de
dos pelas lideranças que comandam as ins- apego entre alunos/professores e pais re-
tituições (escolas, clubes, escolinhas de es- presentem uma verdadeira chave para o
portes) voltados para o esporte de compe- entendimento aprofundado dos fenôme-
tição escolar infantil. nos sociais e psicológicos que acontecem/
Os educadores que trabalham com gravitam sobre o campo dos esportes in-
aprendizagem esportiva sabem o quanto o fantis. A noção de complexo competitivo
esporte escolar é importante e necessário coincide com as concepções que apontam
para a formação educacional e o desenvol- o esporte como um vetor de integração
vimento das relações socioafetivas. No que social e de socialização, com investimento
diz respeito aos relacionamentos interindi- parental e de referenciamento dos profes-
viduais, grupais e institucionais, ao que tudo sores de educação física. Decorre daí a
indica, eles são cada vez mais sofisticados, predisposição das crianças/jovens adoles-
racionalizados e quantificados. centes para o estabelecimento de vínculos
A microanálise dos relacionamentos interindividuais, grupais e institucionais.
traduz a forma como cada aluno/atleta Essas predisposições podem ser en-
aprende a participar, competir, vencer e/ tendidas como essenciais para promover,
ou perder desde que ingressa na escola até em dimensão pública, padrões de compor-
o dia em que se inclui no mundo dos es- tamento alinhados com diversos níveis de
portes, em todas as suas formas de convi- atitudes e mudanças de atitudes. É por isso
vência. que crianças/adolescentes ficam à mercê
Acredita-se que as características mais da influência de familiares e professores,
básicas dessas racionalizações têm sido as pelas suas ações de comando. É importan-
exigências competitivas impostas pelo po- te destacar, ainda, que o caminho traçado
der maior em relação ao menor. Grande pelas lideranças adultas para a participa-
parte das performances de condutas dos ção infantil parece reproduzir um dos va-
professores como educadores e técnicos lores fundamentais do esporte de compe-
está ligada aos investimentos generaliza- tição: a compreensão clara de atribuir o
dos das vinculações de lideranças adultas ônus do sucesso ou do fracasso ao próprio
dentro do campo dos esportes escolares, esporte à medida que as crianças partici-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 89
pam dos jogos – ou seja, que as crianças vamente. No caso específico das práticas es-
desempenham bem seus papéis de “atle- colares esportivas e das esportivas compe-
tas” conforme o dinamismo institucional titivas, acaba prevalecendo a posição de
do esporte moderno. Isso significa que a escolas privilegiadas que contam com pro-
natureza do sistema de controle que fessores qualificados em revelar bons alu-
permeia a relação entre as lideranças adul- nos atletas. E nesse contexto é que se con-
tas e as crianças e os adolescentes pode figuram a influência das lideranças adultas
facilitar e/ou restringir suas participações sobre a vida social esportiva dos filhos/alu-
desde muito cedo no esporte. nos e a influência destes sobre os professo-
A natureza dos acontecimentos vai se res e a família.
caracterizando conforme familiares e pro- As personalidades adultas são, pois,
fessores, como técnicos, interagem nos os agentes primários das diversas formas
contextos nos quais ocorre a maior parte persuasivas, cujos fenômenos podem ter
dos processos que levam os alunos/atle- uma dimensão social quando as frustra-
tas a assimilarem competências e atitudes ções de crianças/jovens adolescentes se
que possam favorecer a aprendizagem dos tornam visíveis à grande maioria dos indi-
papéis sociais e das normas de condutas víduos de uma coletividade escolar ou de
estabelecidas pelo sistema esportivo. uma comunidade maior. Ainda que as opi-
Svoboda e Patriksson (1996) revelam que niões sejam abstraídas do próprio contex-
crianças e jovens adolescentes que prati- to socioambiental escolar esportivo, elas
cam esportes em clubes gostam e aceitam permitem uma compreensão mais profun-
desafios e vivenciam situações competiti- da de comportamentos de familiares, pro-
vas mais fortes com os companheiros e fessores e crianças/jovens adolescentes
com as lideranças adultas que os coman- como alunos e atletas infantis. Por isso, po-
dam. Certos estudos demonstram, tam- demos admitir atualmente, também, ou-
bém, que eles são rodeados por ativida- tras tendências fundamentais e irredutíveis
des esportivas que possibilitam o desenca- que mostram as bases dos fenômenos so-
deamento de contradições e conflitos liga- ciopsicológicos que se processam no âm-
dos com as exigências competitivas. bito dos pais, professores e alunos, cujas
Existe uma convicção generalizada de frustrações desencadeiam estados psicoló-
que os professores de educação física esta- gicos que não são redutíveis à simples
riam preparados para orientar e treinar seus soma dos comportamentos que compõem
alunos de maneira adequada para estes se as equipes escolares esportivas.
tornarem bons atletas. Muitas escolas têm Os comportamentos envolvidos nes-
grande interesse em participar das compe- ses processos podem ser analisados como
tições infantis e passam a exigir dos profes- propriedades das lideranças adultas e dos
sores um conjunto de ações diante das quais alunos/atletas que se associam para garan-
se tornam técnicos e líderes de equipes es- tir as próprias permanências e desenvolvi-
colares esportivas. Essas exigências permi- mento no campo dos esportes escolares.
tem que professores e alunos promovam Isso significa que o que parece ser proprie-
suas escolas, visando a favorecer uma ima- dade da vida esportiva dos indivíduos em
gem de instituição que promove o esporte idade escolar pode ser, na realidade, pro-
escolar. O vínculo de dependência está sem- priedade das características dos comporta-
pre presente nas relações humanas, cujos mentos ideológicos de lideranças emprega-
estados socioafetivos são resultantes das ca- dos pelos professores/técnicos à frente dos
racterísticas do desenvolvimento dos pro- seus alunos/atletas.
cessos educacionais e esportivos, alinhados Os vínculos interativos traduzem in-
com o ensinar, aprender e jogar competiti- teresses e desejos entre as lideranças adul-
90 Dante De Rose Jr. e colaboradores

tas e as crianças, promovendo a explora- ciadas” em qualquer natureza de relação


ção das exigências competitivas para favo- com os esportes de competição – que inte-
recer o desenvolvimento de um senso de ressam aos pais e professores no papel de
competência nas crianças como “atletas em técnicos esportivos.
miniatura”. Tem-se, assim, um vínculo que A eficácia das ações persuasivas ou
só pode ser entendido em um contexto es- sugestivas depende de muitos fatores: uns
portivo e em relação às características so- subjetivos, relativos às crianças e aos ado-
ciais e políticas do esporte em sociedade. lescentes, outros objetivos, ligados às ideo-
Há, porém, opiniões que afirmam que logias de lideranças dos professores como
esses acontecimentos e os seus reflexos so- técnicos de equipes escolares em que exer-
bre o comportamento dos esportistas esta- cem ações persuasivas visando aos graus
belecem as fronteiras dos desempenhos mais elevados de desempenho. Dessa for-
que tanto podem facilitar quanto prejudi- ma, há professores/técnicos que persua-
car o intercâmbio de comportamentos dem ou sugestionam adotando gestos e
mantido entre as famílias, as escolas e os comportamentos narcisistas. Tudo na vida
profissionais esportivos. escolar esportiva competitiva não seria
Os aspectos evolutivos dos compor- mais que um processo de cobranças por
tamentos esportivos infantis indicam a pre- graus mais elevados ou mais intensos de
sença e a influência de lideranças adultas. relações produtivas. Todas as formas de
desempenho implicam relações entre as
ações de quem orienta e comanda e de
Os aspectos evolutivos dos compor- quem é orientado, cuja receptividade está
tamentos esportivos infantis indicam a ligada às circunstâncias em que são exerci-
presença e a influência de lideranças das as influências em prol da consecução
adultas. de objetivos concretos.
Essa noção é um indicativo de um pro-
vável viés das ações persuasivas ou suges-
É assim que podemos discernir o pla- tivas a respeito da participação adulta na
no dos modelos sociais das condutas cole- vida esportiva das crianças e dos jovens
tivas, cujas características podem levar adolescentes. Concordamos com aqueles
adultos e crianças/jovens adolescentes a que afirmam que crianças/adolescentes
entrarem em choque com as estratificações assimilam modelos esportivos competitivos
distintas por razões didáticas das questões que são emitidos pelas lideranças adultas.
de desempenho, que se interpenetram e A criança lúdica se manifesta, no sentido
se opõem em uma dialética de tensões/ mais amplo do termo, em um indivíduo que
emoções e sentimentos vitais mútuos. O aceita, conforme Coca (1993), concretizar
enfoque psicossocial do problema poderia seus projetos de forma expressiva – a fan-
ocultar, em última análise, gestos e com- tasia que preside as atividades lúdicas das
portamentos que as lideranças adultas crianças é tão verdadeira para elas como a
adotam e mantêm quanto à participação laboriosidade e a objetividade são para os
esportiva de crianças/jovens adolescentes. adultos. O competir, por outro lado, é um
Algumas performances de condutas adul- fator de homogeneidade e, por conseguin-
tas consistem em uma combinação de in- te, de necessidade e desejo de fazer parte
teresses que visam a transferir para os fi- do campo dos esportes, que representa um
lhos/alunos algo mais que eles podem modelo psicossocial de realidade competi-
competitivamente desenvolver, o que po- tivo que inclui os mais e exclui os menos
demos considerar como categorias de con- habilidosos; um modelo que não permite a
dutas e comportamentos individuais “vi- ascensão dos indivíduos enquanto não te-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 91
nham demonstrado, durante muito tempo, diferentes escolinhas de basquetebol, hande-
suas potencialidades atléticas. bol, futebol, natação, voleibol, entre ou-
É significativo o número de alunos tras. Essa talvez constitua a regra básica
que, como atletas, tornam-se socialmente das famílias para enfrentarem as dificul-
conhecidos pelas suas potencialidades, mo- dades em relação às possibilidades atléti-
bilizando e despertando interesse de pro- cas dos filhos.
curadores/empresários que militam no Verifica-se, então, que os problemas
universo dos esportes. Esses acontecimen- que mais parecem dificultar a atenção das
tos podem ser entendidos como condutas lideranças adultas não pertencem exclusi-
ou formas de manifestações que ocorrem vamente a um único esquema idealizado
entre os diversos níveis de trocas socioa- de relações que são colocadas em evidên-
fetivas propostos pelo esporte e divulga- cia pelas instituições familiares e educa-
dos pelos meios de comunicação de mas- cionais. Existe uma série de argumentos
sa. A vida social esportiva de muitos alu- que, com base na complexidade do espor-
nos/atletas passa então a ser compreendi- te moderno, defendem a ideia de promo-
da como fenômeno social, caracterizado ver a formação de atletas mirins dentro
por trocas entre a capacidade de produ- das escolas e dos centros educacionais es-
ção de resultados e os sistemas de ideias portivos. Ninguém duvida de que ter um
presentes no campo do esporte escolar, filho/aluno atleta conquistando vitórias,
aclamando crianças/jovens atletas como ganhando dinheiro e rodeado pelos meios
heróis e ídolos. Assim, são trazidas à tona de comunicação seja o desejo de qualquer
determinadas performances de condutas pai/mãe, professor ou técnico esportivo.
pessoais que entram em desacordo com os As lideranças adultas assumem pa-
padrões educacionais utilizados por mui- péis típicos de “cuidadores/tutores/empre-
tos educadores. sários”, os quais travam uma luta diária
A profissionalização precoce e o gos- contra as dificuldades do ensinar, do edu-
to pela emancipação financeira podem car e as financeiras, em que as crianças e
aumentar ainda mais os interesses fami- os jovens adolescentes são influenciados
liares em relação à possibilidade de os fi- significativamente pelos comportamentos
lhos tornarem-se atletas. Assim, além da dos adultos, reforçando a posição de de-
estimulação do meio social esportivo, os pendência com o tornar-se “atleta”, e a
pais são basicamente os personagens-cha- disputarem as poucas vagas existentes nas
ve em relação a crianças/jovens adolescen- equipes representativas dos grandes e pe-
tes sob seus cuidados. Deve-se considerar, quenos grupos sociais esportivos. Existem
também, que as famílias mais desprovidas também aquelas lideranças adultas que
economicamente tentam complementar relutam em aceitar os comportamentos
seu orçamento com as ajudas de custo que estabelecidos pelo esporte de competição,
o esporte de rendimento oferece às crian- atraindo a atenção para enfoques mais
ças e aos jovens “atletas”. É possível que educacionais do que competitivos. A ma-
muitas crianças/jovens adolescentes ascen- neira pela qual os professores/técnicos se
dam socialmente via esporte de competi- posicionam e se comportam deve ser cui-
ção. Esse tipo de resultado, para os indiví- dadosamente considerada no campo do
duos e os familiares, possui um correlato esporte escolar.
no sistema escolar esportivo. Se as dificul- As descobertas mais importantes a
dades estão relacionadas com o processo respeito dessas relações são precedidas de
ensino-aprendizagem, os desafios com me- uma pluralidade de acontecimentos mar-
nos dificuldades são aqueles que levam os cados pela ênfase na aquisição precoce de
pais a encaminharem seus filhos para as habilidades atléticas. Esses acontecimen-
92 Dante De Rose Jr. e colaboradores

tos “violam” princípios básicos do desen- Vayer e Roncin (1999) postularam


volvimento educacional esportivo e trazem que os jogos, para as crianças, são funda-
como consequência a desmotivação e o mentais para o desenvolvimento cognitivo,
abandono das práticas escolares esporti- afetivo e comportamental; em contrapar-
vas e esportivas competitivas. tida, as crianças não gostam da influência
Evidenciam-se, também, problemas das lideranças adultas sobre suas práticas
cada vez mais precoces, que muitos indi- lúdicas. Escreveram, ainda, que a partici-
víduos enfrentam por causa dos interes- pação dos adultos no comando do desen-
ses dos pais quanto à vida social esportiva volvimento dos jogos pode dissipar o sim-
dos filhos. Esses problemas mostram cla- bolismo lúdico e os significados dos jogos
ramente a instauração progressiva dos para as crianças e os adolescentes. A au-
“superpais” influenciando os comporta- toridade dos indivíduos mostra que as re-
mentos das crianças e dos adolescentes. lações sociais mantidas entre as institui-
Dessa forma, a relação pais-criança/alu- ções e o esporte são complexas e devem
no/atleta poderia estar baseada na fórmu- ser discutidas com cuidado. Tais relações
la do paternalismo: o pai ou a mãe preo- apontam para a constituição de concep-
cupado/a com o fato de os seus filhos te- ções idealizadas que têm, sem dúvida, uma
rem que estudar, competir e vencer. variabilidade de formas conceituais em
Entre os diversos problemas existen- cada cultura. Aqui se enquadram igual-
tes, diferenciam-se aqueles em relação às mente crenças, crendices e ideologias ape-
influências que implicam variações no per- gadas em demasia a mitos, heróis e ídolos
fil de desenvolvimento esportivo infantil. do mundo dos esportes.
Acredita-se que os valores associados
às crenças estão presentes na maioria das
ações sociais e educativas de muitos
Entre os diversos problemas existentes, governantes – e, a julgar “pelas mãos que
diferenciam-se aqueles em relação às
se agitam”, parece que o esporte moderno
influências que implicam variações no
perfil de desenvolvimento esportivo in- veste farda e faz parte dos interesses polí-
fantil. ticos em diversos países –, que, na reali-
dade, somente funcionam bem como um
modelo social que contribui, na maioria
das vezes, para aumentar a distância exis-
O desejo de defender a participação tente entre as práticas educativas e as es-
infantil no esporte parece estar fundamen- portivas competitivas. Cabe lembrar que
tado em uma elaboração trabalhosa, na o esporte moderno defende também os
qual o papel e o poder das lideranças adul- interesses de marcas e produtos industria-
tas desencadeiam um processo pleno de lizados. A ideia de que o esporte não deve
desejos e necessidades de alcançar proje- servir ninguém fora de si mesmo é algo
ção social em conjunto com os filhos. O que, para Lüschen e Weiss (1976), ultra-
esporte escolar de competição se apresen- passa o movimento neo-olímpico de Pierre
taria, então, como um modelo de realida- de Coubertin. A aquiescência à ordem pa-
de social que coloca em cena um processo rece envolver muito mais do que a sim-
de motivos, desejos e necessidades não so- ples participação individual em relação a
mente para os pais, como também para determinados tipos de esportes.
quase todas as instituições governamen- À medida que a participação huma-
tais, estaduais e municipais, incluindo os na for tanto mais poderosa quanto mais
canais de comunicação de massa e as di- oculta ou velada para as crianças e os ado-
plomacias. lescentes, mais se configurará o vínculo em
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 93
que a ação das lideranças adultas tem lu- nificaria modificar, em um certo sentido, as
gar. O fato de o esporte de competição es- atitudes daqueles que participam e orien-
tar interessado em promover os talentos tam e daqueles que aprendem.
esportivos pode ser atribuído às exigên- A realidade esportiva significa, para
cias do próprio sistema esportivo, e talvez os desportistas, o descobrimento de suas
dos profissionais das áreas da educação possibilidades. Tudo isso é associado à ética,
física e do esporte, em trabalhar profissio- de tal forma que se torna impossível, con-
nalmente com as práticas escolares espor- forme Machado (1993), praticar esporte
tivas para benefício de crianças/jovens sem a observância desse preceito moral –
adolescentes. Essa situação tem contra- preceito que pertence, portanto, aos fami-
partida na forma habitual com que os alu- liares, aos educadores e aos técnicos espor-
nos/atletas participam e se comportam tivos, que, em decorrência das diferentes
durante o transcorrer das aulas de educa- condições atléticas dos filhos e alunos atle-
ção física e das competições. Nesse mister, tas, empregam posturas e valores diferen-
participam e competem em prol do “es- ciados, embora pertencendo ao mesmo con-
porte-espetáculo”, organizado, controlado texto esportivo. Importa, pois, apontar o
e supervisionado pelas lideranças adultas. caráter contraditório que assume a imposi-
O exemplo mais marcante desse caso é o ção de determinados valores a partir das
que ocorre com as competições infantis – influências dos adultos sobre o comporta-
aquelas envolvendo crianças em jogos de mento das crianças e dos jovens adolescen-
categorias denominadas “fraldinha”, “chu- tes. Os dados são escassos, mas, ainda as-
petinha”, entre outras. sim, permitem dizer que o fair play já dei-
xou de existir faz algum tempo. Aqui está,
portanto, um tipo de acontecimento que
Os julgamentos e as apresenta características muito especiais em
relações de apoios esportivos relação à participação das lideranças adul-
tas na vida esportiva infantil.
Os julgamentos feitos em relação ao As variáveis ligadas com performan-
desempenho são aqueles que preenchem as ces de condutas pessoais mais agressivas
expectativas de satisfação das lideranças denunciam, na percepção de Gonzáles
adultas, que visualizam ascensão e status (1996), a existência de uma estreita rela-
social para seus filhos/alunos. As tentati- ção entre as personalidades tidas como vio-
vas de explicação para os casos de partici- lentas e a má formação dos indivíduos no
pação desse tipo devem ser atribuídas às seio familiar. Essas manifestações definem-
instituições de ensino fundamental e mé- -se de acordo com a forma com que cada
dio e às ações de comando dos professores indivíduo se posiciona, ante o meio espor-
como educadores e técnicos de equipes de tivo, entre participar, orientar e influenciar
várias modalidades esportivas. Por conse- em diferentes níveis sociais. O cenário em
guinte, seria preciso elaborar um conjunto que o papel das lideranças adultas tem lu-
de medidas políticas e administrativas para gar é tanto mais poderoso quanto maior for
que o esporte escolar/infantil voltasse a en- a importância dos indivíduos para as esco-
globar aspectos associados às sensibilida- las, clubes e equipes dos quais fazem parte.
des dos professores de educação física e do Existe sempre um propósito de valorizar a
esporte na relação com as crianças e os jo- participação infantil. É interessante lembrar
vens adolescentes, promovendo atividades a importância da projeção nas relações
vinculadas às brincadeiras, aos jogos e aos interpessoais – fato que mostra que a capa-
esportes com vistas ao desenvolvimento cidade de rendimento infantil é o compo-
educativo-esportivo desses agentes. Isso sig- nente-chave da relação de poder dos fami-
94 Dante De Rose Jr. e colaboradores

liares sobre os dirigentes, os professores e ticas esportivas competitivas. Vale dizer que
os técnicos esportivos. raras vezes alguns princípios explicitamente
Essas constatações de que existem for- formulados no contexto das aulas de edu-
tes influências das lideranças adultas, par- cação física são modificados em prol de uma
ticularmente, sobre o comportamento e o prática capaz de reconhecer as limitações
desempenho esportivo dos filhos/alunos dos alunos menos habilidosos: o “gordinho”
indicam que a supervalorização do talento é o último a ser escolhido e o primeiro a
esportivo pode prejudicar o processo natu- ser colocado na posição de goleiro.
ral de formação educacional e os processos Os professores raramente interferem
de socialização por meio das práticas educa- nas relações de escolha entre os alunos ou
tivas escolares e das práticas esportivas lançam pregações para condenar determi-
competitivas, contribuindo para o surgi- nadas ações manifestadas pelas crianças
mento de problemas quanto à estabilidade em relação aos companheiros de turma.
sociodinâmica no plano das relações intera- Talvez seja a noção de espaço potencial
tivas vivenciadas nas escolas/escolinhas de que marca a realidade institucional do es-
esportes e clubes sociais esportivos. Talvez porte moderno que leva à dicotomia exis-
o principal dilema dos professores de edu- tente entre ludens e faber, tendo em vista
cação física seja aquele associado com os que a realidade competitiva vai além de
papéis que assumem perante as práticas uma relação didático-pedagógica entre
esportivas escolares – muitos desses profis- professores e alunos. Isso equivale a dizer
sionais são unânimes em dizer que, diante que o esporte de competição infantil se
dos alunos, agem como verdadeiros técni- tornou sinônimo de esporte de rendimen-
cos. O mesmo acontece no plano dos pais to. Diríamos que existe um padrão de
quanto à participação dos filhos – exceção interação de habilidades, de valores e de
feita às crianças e aos jovens que seguem disposições dos indivíduos para ocuparem
as cartilhas estabelecidas pelas lideranças posições de destaque no meio esportivo.
adultas, que carregam consigo uma consi- O estabelecimento de um critério vá-
derável dose de narcisismo. lido de competência faz com que o esporte
É preciso esclarecer que, de acordo de competição infantil seja moldado, con-
com Felker (1998), as práticas escolares forme Simões e Böhme (1999), pela causa
esportivas fazem parte das atividades es- (prestígio, fama, bolsas de estudos) e pela
portivas desenvolvidas como elementos condição atlética (capacidade de produção)
constitutivos das aulas de educação física, dos indivíduos para produzir resultados
enquanto as práticas esportivas escolares consistentes. Ser lúdico e esportista impli-
são aquelas atividades desenvolvidas den- ca ser competidor, o que por sua vez impli-
tro de condições voltadas para o desenvol- ca produzir, obter resultados, desenvolver
vimento das capacidades atléticas dos dife- ligações individuais e aceitar a natureza das
rentes tipos de esportes individuais e cole- regras do jogo. A esse respeito, é interes-
tivos. Aqui se encontra a essência das con- sante notar que os meios de comunicação
cepções que procuram entender as condi- de massa estão modificando a cultura so-
ções em que as atividades lúdicas, os jogos cial esportiva em todos os continentes.
e o esporte de competição infantil são de- As informações obtidas possibilitam
senvolvidos. Tais aspectos reforçam a ideia acrescentar que o esporte moderno é cons-
de que o participar, o brincar e o jogar se tituído por instituições mobilizadas para dar
organizam em torno de normas estabele- condições às circunstâncias nas quais os
cidas pelas instituições, que têm por finali- indivíduos se encontram. Não é acidental
dade valorizar as relações interativas e de o crescimento das escolinhas de esportes.
produção no ensino-aprendizagem das prá- A premissa de Maquiavel de que os fins jus-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 95
tificam os meios faz parte desse cenário para Esta pode ser considerada uma ques-
que fique demonstrada a superioridade do tão que engloba o bojo de processos edu-
poder adulto em relação a crianças e jo- cacionais e socioculturais esportivos inte-
vens adolescentes em idade escolar. A tôni- grados. Daí os problemas que mais pare-
ca é que dificilmente se vê crianças partici- cem dificultar a participação infantil no
pando de “peladas” de rua e/ou brincando cenário do esporte serem aqueles alinha-
com “bolinhas de gude”. É desnecessário dos com o poder do esporte como um mo-
dizer que o esporte moderno vive uma or- delo esportivo de realidade social insti-
dem diferenciada de prioridades em uma tucionalizado, que persuade a vida espor-
perspectiva sociocultural. tiva das crianças desde que ingressam nas
Essa posição naturalmente leva ao escolas até se tornarem adultas. O apoio
problema de o esporte moderno não ser social esportivo constitui-se um centro de
escola de virtudes. Constantino (1993) afir- energias afetivas relacionais para constru-
ma que o esporte é constituído por valores ção das formas pelas quais os indivíduos
socioculturais contraditórios. Exemplo dis- são socializados e incluídos no mundo dos
so é que os efeitos das práticas escolares esportes; por conseguinte, isto abrange as
esportivas e dos treinamentos devem ser expectativas dos pais, das escolas/profes-
considerados para dar visibilidade a mui- sores, dos clubes e da sociedade em que
tas práticas profissionais. É importante des- convivem.
tacar que todos tentam provar para si que A percepção que os indivíduos têm de
são melhores que os outros. Por essa ra- seu mundo social esportivo, como se orien-
zão, os adultos acabam fantasiando a ideia tam e como podem persuadir/influenciar
de serem responsáveis pela formação de está relacionada com a construção de re-
grandes “atletas”. O fato de as lideranças des de apoio social e afetivo, já que todos
adultas terem a capacidade de se ajusta- querem ser reconhecidos. Svoboda e
rem, em diferentes contextos sociais espor- Patriksson (1996) postularam que, para
tivos, consegue impor alguns desafios para melhorar a consciência social e ética do
seus filhos/alunos; entre eles, os desafios mundo social esportivo, seria necessário
de estabelecer diretrizes no plano da con- ampliar o espaço de discussão das questões
secução de objetivos concretos. Não é raro que se conjugam com a formação acadêmi-
observar pais ensinando os filhos a darem ca dos profissionais que trabalham nos di-
“bicicletas” em uma quadra de cimento e/ ferentes segmentos sociais esportivos. Não
ou procurando os professores ou os técni- é por acaso que os vínculos de relaciona-
cos para impor a presença dos filhos nas mentos das lideranças adultas estão alinha-
equipes representativas das escolas, clubes, dos às suas capacidades de poder pessoal,
etc. Outros, ainda, veem nos amigos o apoio de influência e de perícia sobre a formação
que não encontram em suas tentativas para e o desenvolvimento da personalidade das
influenciar os profissionais das áreas da crianças e dos jovens adolescentes.
educação física e do esporte – usam a más-
cara da inteligência para manterem os fi-
lhos em evidência no cenário esportivo. A IMAGEM DAS INFLUÊNCIAS
Também existem aquelas crianças e ado- NA VIDA ESPORTIVA DE
lescentes que se julgam verdadeiros “cra- CRIANÇAS/ADOLESCENTES
ques” – e individualmente afligem fami-
liares, professores e técnicos, porque, para Uma comprovação prática do que foi
eles, a competência esportiva está associa- exposto até aqui é que o esporte escolar
da à imagem de muitos atletas veiculada traz em si revelações importantes a res-
pelos meios de comunicação. peito da participação das pessoas (crian-
96 Dante De Rose Jr. e colaboradores

ças, jovens adolescentes, pais, professores teresse e da satisfação na emergência das


de educação física) no campo dos espor- relações socioafetivas e das capacidades
tes individuais e coletivos. Aquilo que cha- de adaptação nas diferentes práticas es-
mamos de esporte escolar/educacional é, portivas.
na verdade, uma tentativa de mostrar as Obrigar um filho a participar de um
estratégias dinâmicas e constantes das li- determinado esporte pode acarretar inú-
deranças adultas com o meio socioam- meras dificuldades no processo de desen-
biental esportivo. Significativo é o fato de volvimento socioafetivo esportivo. Um jo-
que nem todos os adultos estão preocupa- vem esportista apaixonado por basquete-
dos com as fases de desenvolvimento for- bol, mas com baixa estatura, poderia ser
mativo e educativo esportivo das crianças orientado de forma mais educativa com o
e dos adolescentes. O conceito de relações propósito de criar condições para levá-lo
estabelecidas consiste em um modelo de a praticar outros tipos de modalidades es-
interconexões que mobilizam as habilida- portivas. Os pais e os amigos são os mais
des atléticas visando a desempenhos que empenhados em apontar as modalidades
podem afetar o crescimento psicossocial. que gostariam que seus filhos e compa-
A preocupação das lideranças adul- nheiros pudessem praticar.
tas para estabelecer relações próximas e Em uma perspectiva psicossocial, a
significativas propicia uma preocupação precocidade competitiva é um poderoso
pela otimização dos desempenhos espor- instrumento de poder que pode criar todo
tivos. Este seria um dos casos, por exem- um universo de conflitos para os desen-
plo, do desinteresse infantil pelas práticas volvimentos sociais, cognitivos e emocio-
esportivas escolares, no qual crianças/jo- nais das crianças pelas exigências alinha-
vens adolescentes passam a se comportar das com as barreiras dos desempenhos. O
de maneira mais impulsiva – com caracte- problema se volta para o significado final
rísticas de conflitos no ambiente familiar. daquilo que esses personagens fazem,
Lembremos dos mecanismos de defesa como também para os fenômenos interati-
denominados por Freud de introjeção e vos da infinita riqueza do comportamento
projeção, que podem levar os indivíduos a infantil. O que uma criança vê, ouve e
interiorizar determinadas imagens e/ou aprende pode afetar, em grande parte, sua
projetar características indesejáveis que capacidade de produção com objetivos
não conseguem perceber em si mesmos. maiores. É possível que certos recursos,
Não é à toa que o estado de tensão/emo- mediante os quais os adultos fazem pre-
ção se manifesta pela situação de pressão valecer seus propósitos, estejam presentes
das forças sociais e das energias físicas que no confronto das dificuldades encontradas
gravitam no meio socioambiental. pelos indivíduos em escolas, em clubes e
Essa vulnerabilidade potencializa, em equipes esportivas.
conforme Hutz, Koller e Bandeira (1996) Essa possibilidade existe conforme a
e Rutter (1987), todos citados por Brito e conduta pessoal das lideranças adultas se
Koller (1999), os efeitos negativos de si- alinha com modelos socioculturais espor-
tuações estressantes. É decisiva para as li- tivos que movem os processos de forma-
deranças adultas a forma pela qual ob- ção e de desenvolvimento das crianças em
servam e valorizam os motivos, as neces- escolas, em clubes e em associações espor-
sidades e os desejos infantis no mundo tivas. Além desta, situam-se aquelas em
esportivo, pois é a única maneira que po- que as crianças se manifestam contra o
deria levá-las a defender as ideias de que comportamento dos adultos. O simples
o desenvolvimento da personalidade es- fato de os adultos participarem da manei-
portiva é marcado pela revitalização do in- ra de ser das crianças coloca em discussão
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 97
determinadas regras de comportamento, perguntássemos às lideranças adultas so-
demonstrando que a verdadeira via de bre a socialização por meio das práticas
acesso infantil à participação esportiva esportivas escolares e das práticas escola-
reside na presença dos adultos. É assim que res esportivas, por certo teríamos inúme-
se expressam, em grande parte, as mani- ras respostas pelo fascínio que o esporte-
festações em circunstâncias que salvaguar- espetáculo exerce sobre todos. A realida-
dam os desejos e as necessidades dos adul- de esportiva vivida é também representa-
tos. Uma das mais importantes dimensões da, e, por meio dela, as lideranças adultas
psicossociais, sociodinâmicas e institucio- influem no prazer que as crianças e os ado-
nais é o poder persuasivo dos adultos quan- lescentes sentem na prática de um deter-
to à tolerância de liberdade de ação para minado esporte.
a participação infantil nas escolinhas e nas Scanlan e Lewthwaite (1986) desco-
equipes escolares. briram que o prazer que lutadores em ida-
A literatura mostra que muitos estu- de escolar sentiam estava positivamente
dos não levam em conta as relações que vinculado com a satisfação dos pais em re-
tradicionalmente as famílias exercem so- lação aos resultados obtidos, como tam-
bre os graus de envolvimento dos filhos bém com a participação positiva dos adul-
com os diferentes tipos de esportes indivi- tos no processo de interação social. Brustad
duais e coletivos. As relações sociológicas (1988) mostrou que existe uma relação
e psicológicas, conforme Brustad (1992), negativa entre a pressão exercida pelos
não têm levado em conta as influências pais e a participação lúdica dos jovens que
exercidas pelos adultos no processo de praticavam basquetebol. O que mais cha-
socialização e motivação e nas implicações ma a atenção nesses dados é a contrapo-
que o esporte exerce sobre o comporta- sição entre as necessidades de interferir
mento infantil. A socialização por meio das dos adultos e os desejos de participação
brincadeiras, dos jogos e do esporte de de crianças/adolescentes.
competição tem sido usada para justificar Esse sistema opera acionado por re-
a aprendizagem social; por meio das prá- lações humanas produtivas, que despertam
ticas esportivas escolares e esportivas com- sensações agradáveis e desagradáveis con-
petitivas, ela pode ser considerada um fe- siderando a imagem reproduzida pela cul-
nômeno complexo. Esse processo é muito tura do esporte-espetáculo.
nítido quando se analisa a diferença entre O nível mais profundo desse proces-
a socialização no esporte e por meio do so é que, em outros tempos, as formas de
esporte – que, segundo Patriksson (1996), participação infantil eram mais espontâ-
tem sido objeto de poucas investigações, neas quando comparadas com as exigên-
em grande parte pelas dificuldades relati- cias competitivas mantidas na modernida-
vas às concepções e aos procedimentos de esportiva escolar.
metodológicos. O vínculo de dependência gera tanto
O nível das pesquisas que dizem res- interesse para as lideranças adultas quan-
peito à socialização por meio do esporte é
superficial, lançando mão, conforme
Greendorfer e colaboradores (1996), de
O nível mais profundo desse processo é
conceitos e temas sem nenhuma relação que, em outros tempos, as formas de
com a socialização no cenário dos espor- participação infantil eram mais espon-
tes de competição. A maioria das pesqui- tâneas quando comparadas com as exi-
sas está relacionada com os efeitos positi- gências competitivas mantidas na mo-
vos ou negativos da participação dos indi- dernidade esportiva escolar.
víduos nos diferentes tipos de esportes. Se
98 Dante De Rose Jr. e colaboradores

to desafios para comunidade esportiva in- nos como “atletas”. Contudo, permite tra-
fantil. No entanto, é a dimensão psicos- zer à luz o poder das práticas esportivas
social que emerge mais fortemente na cria- escolares e suas implicações no posiciona-
ção de vínculos interativos e operativos que mento dos parentais, especialmente no que
possibilitem que adultos e crianças/ado- concerne à iniciação esportiva. Lucato
lescentes estabeleçam relações de apoio (2000) diz que existe uma comprovação
social esportivo e afetivo relacional nas prática sobre o processo de socialização e
fases de desenvolvimento das práticas es- cooperação das crianças por meio das prá-
portivas escolares. A presença ou a ausên- ticas esportivas escolares. A dinâmica en-
cia de vínculos diversos permite que as volvendo as condições físicas e mentais en-
crianças e jovens adolescentes se desen- trariam como fatores alinhados com o ní-
volvam social e emocionalmente. Vemos vel de conhecimento dos professores e a
aqui formulado um questionamento que convivência com os amigos no ambiente
mostra que a criança ou o adolescente e o escolar. A falta de infraestrutura esporti-
esporte de competição infantil estão em va, o curto tempo de treinamento e a não
interação bidirecional e constante com as participação em eventos esportivos com-
lideranças adultas, como instrumentos de petitivos seriam os fatores desvantajosos
poder com os desempenhos esportivos. perante outras instituições de ensino.
Com isso, queremos dizer que, além de Acredita-se que as dificuldades meto-
quererem brincar, participar e jogar de for- dológicas alinhadas com o binômio ensi-
ma espontânea, as crianças e os jovens nar e aprender têm ligação direta com a
estão diante de um cerceamento adulto integração social, pela qual assimila-se um
quanto às suas inclusões e exclusões nos patrimônio cultural, em grande parte, à
diversos tipos de esportes. base das relações de sucesso e insucessos.
Barbanti (1989) demonstrou que os Daí serem considerados como elementos
meninos são mais influenciados pelos ami- benéficos – os maléficos estariam relacio-
gos quando comparados com as meninas – nados à frustração infantil diante das der-
mais influenciadas pelos pais –, existindo, rotas, especialmente pela pressão exercida
ainda, uma pequena tendência destes em pelos professores para obtenção de resul-
exigir mais do comportamento das filhas tados positivos. Em seu estudo, Lucatto
do que dos filhos. Em muitos casos, a fa- (2000) revelou, também, que os pais de
mília tende a valorizar demasiadamente crianças com idade entre 7 e 9 anos acre-
as qualidades que os filhos não têm ou que ditavam que a iniciação esportiva fosse um
gostariam que eles tivessem. A vida espor- dos elementos fundamentais da formação
tiva infantil é então associada aos esque- educacional; os pais de crianças entre 10
mas estabelecidos dentro de padrões bem- e 12 anos consideraram que existia um
-determinados. Se os pais reconhecerem acentuado aumento no processo de socia-
suas limitações em relação ao seu conhe- lização e de cooperação entre os colegas.
cimento do esporte e se tornarem capazes As crianças entre 7 e 9 anos revelaram que
de reconhecer as limitações das capacida- o estímulo esportivo para o confronto di-
des atléticas dos filhos, prestarão um enor- reto com os adversários pode, em caso de
me serviço não apenas às crianças e aos derrota, causar frustrações – sendo que
adolescentes, mas a todo o esporte de com- tudo isso pode estar associado aos profis-
petição infantil. sionais da área esportiva que se preocu-
Competir, ganhar, vencer a qualquer pam demasiadamente com as vitórias.
custo: essas ações poderiam estar repro- No rastro desses acontecimentos, po-
duzindo tudo aquilo que as lideranças deríamos ainda identificar outros, todos li-
adultas mais querem para os filhos e alu- gados às associações que separam os dese-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 99
jos das lideranças adultas dos desejos in- Segundo Simões e Böhme (1999), os
fantis, o coletivo do individual, e assim por resultados indicam também que nenhuma
diante. No entanto, se as reflexões, nesse relação significativa foi encontrada entre
sentido, remetem à visibilidade da partici- o nível de incentivo familiar e o fato de as
pação adulta na vida esportiva infantil, em crianças serem do sexo masculino ou fe-
um segundo sentido elas remetem à possi- minino. Não há dúvida de que os pais e as
bilidade de se compreender e se discutir mães separadamente incentivam seus fi-
mais alguns resultados que mostram duas lhos no caminho da aprendizagem esporti-
realidades interligadas. Assim é que Simões va. Além disso, o fato de incentivarem seus
e Böhme (1999), com o intuito de verificar filhos faz com que se acentue o fato de
a participação dos pais e das mães separa- que as crianças em idade escolar não es-
damente na vida esportiva dos filhos, de- tão apenas situadas na relação com as
tectaram que nenhuma relação estatistica- diferentes práticas esportivas competitivas,
mente significativa foi observada entre o em um processo educativo que não daria
fato de os indivíduos serem do sexo mas- possibilidade de a criança fugir da identi-
culino ou feminino e sua assistência direta. ficação por esse ou aquele tipo de esporte.
O desejo e a necessidade dos adultos de As manifestações humanas, conforme
estarem presentes de forma contínua na Martens e colaboradores (1981) e Brown
vida esportiva dos filhos poderiam explicar e Grineski (1992), apontam que as influên-
o significado dessa assistência direta. Tan- cias adultas, a capacidade de rendimento
to o pai quanto a mãe parecem desempe- e a detecção de talentos são elementos que
nhar papéis igualmente importantes na vida asseguram os objetivos propostos nos di-
esportiva de jovens atletas. ferentes níveis de ensino das práticas es-
Essa análise pode dar uma ideia da colares esportivas e esportivas competiti-
riqueza de problemas existentes nas situa- vas. Essas indicações parecem necessárias
ções de incentivo dos pais para que seus para a compreensão dos resultados obti-
filhos se tornem bons atletas. Parte desses dos pelo estudo de Simões e Böhme (1999)
problemas é produto de uma discussão sobre os níveis de exigência estabelecidos
inacabada nas situações competitivas. Nin- pelos pais em relação às crianças e aos jo-
guém poderia negar que um desses pro- vens atletas. Os resultados apontaram que
blemas é a preparação esportiva infantil os níveis de exigência estabelecidos tanto
ligada a critérios precisos para se escolher pelos pais quanto pelas mães são maiores
crianças e jovens que tenham talento. para os filhos do que para as filhas. Uma
Greendorfer e colaboradores (1996) apon- interpretação possível para esses resulta-
tam que adultos deveriam compreender dos é a de que os pais tendem a acentuar
melhor o processo de socialização das crian- mais os valores das capacidades atléticas,
ças através das práticas escolares esporti- sobretudo se acreditam que o esporte de
vas. Quase todas as lideranças adultas se competição pode levar seus filhos a se tor-
deixam levar pelos valores educacionais e narem atletas famosos. Lima (1990) afir-
esportivos envolvidos com as influências ao mou que os indivíduos que competem são
longo dos caminhos a serem percorridos pe- submetidos a inúmeras exigências, inclu-
los jovens atletas. Tanto a assistência dire- sive sociais, tendo em vista que se expõem
ta quanto o nível de incentivo parental cons- ao julgamento dos demais. Entretanto, os
tituem processos de interação. O incenti- dados apontam que a maioria dos pais (pai
vo, portanto, é um procedimento essencial e mãe) não exige isso dos seus filhos.
para que as crianças adquiram consciência Essas diferenças de exigência mos-
participativa no mundo dos campos, das tram em que condições as crianças e os
quadras, das piscinas e das pistas. jovens adolescentes se adaptam às normas
100 Dante De Rose Jr. e colaboradores

de condutas no campo dos esportes infan- sidades nas vitórias. Vencer a qualquer
tis. Pode-se dizer que as exigências das li- custo é algo que reproduz exatamente tudo
deranças adultas em relação à participa- aquilo que as lideranças adultas querem
ção infantil nos diferentes tipos de espor- das crianças e dos jovens como atletas.
tes levam a uma só pergunta: “Seria a
criança um atleta em miniatura?”
Esse comportamento é justificado na CONSIDERAÇÕES FINAIS
medida em que as participações adultas
influenciam as crianças. Há poucas opor- Os vínculos estabelecidos entre as li-
tunidades para que as crianças e os jovens deranças adultas e a participação de crian-
atletas exerçam influências sobre o pro- ças/jovens adolescentes no campo dos es-
cesso de tomada de decisões estabelecido portes nos remetem a explicações que con-
pelas lideranças adultas. Essa situação tem templam um conjunto de fatores psicosso-
consequências educacionais e pode estar ciais, sociodinâmicos e institucionais. Es-
presente no processo de formação e de ses vínculos demonstram que as relações
desenvolvimento das crianças e dos jovens envolvendo componentes cognitivos, so-
no cenário esportivo. É indispensável, ain- cioafetivos e comportamentais podem fa-
da, citar que o nível de orientação educa- cilitar ou dificultar a inclusão ou a exclu-
cional e esportiva inclui uma questão psi- são dos indivíduos das práticas escolares
cossocial fundamental no comportamen- esportivas e esportivas competitivas, cujos
to esportivo: a que coloca a participação eventos são realizados em um meio so-
adulta como maléfica, especialmente cioambiental que é psicossocial, sociodi-
quando voltada para participar, competir nâmico e institucionalizado. Existe um
e vencer a qualquer custo. Os pais cuidam conjunto de valores, crenças e ideologias
da evolução do desempenho infantil nos pela integração da formação educacional
treinamentos e nas competições e veem na e do desenvolvimento da personalidade
evolução das habidades atléticas uma pos- por meio das práticas educacionais espor-
sibilidade para conseguirem prestígio so- tivas e competitivas, veiculado pela pró-
cial por meio dos filhos. E como se inte- pria sociedade do esporte escolar de com-
ressam em fazer com que seus filhos se tor- petição, atingindo as instituições de ensi-
nem bons atletas, acabam apoiando suas no fundamental e médio.
ambições pela motivação infantil. Acredi- O surpreendente é que praticamente
tam, conforme Hahn (1988), que podem “todas” as lideranças adultas se orientam
valorizar seus filhos por conhecê-los me- em consonância com uma ótica individua-
lhor do que os demais, organizando sua lista, voltada para a condução das crian-
vida social esportiva. As causas e os efei- ças e dos jovens adolescentes para o es-
tos dessas participações se mantêm de ge- porte de alto nível. O poder de persuasão/
ração em geração com os diferentes tipos influência por parte das lideranças adul-
de práticas escolares esportivas e práticas tas é tão acentuado que pode colocar em
esportivas competitivas. risco a própria valorização da formação e
Alguns estudiosos citados por Bar- do desenvolvimento educacional e espor-
banti (1992) realçam que o esporte edu- tivo dos indivíduos. Contemplam-se, assim,
cacional se sustenta na competitividade, desde os processos de iniciação do desen-
pressionando em demasia as crianças e os volvimento esportivo até os níveis de ha-
jovens atletas sob o ponto de vista físico e bilidades atléticas, os conteúdos programá-
psicológico, colocando as condutas das li- ticos e as compensações idealizadas pelas
deranças adultas como maléficas quando lideranças adultas. Do ponto de vista so-
tentam canalizar seus interesses e neces- cioafetivo interativo, a questão do compor-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 101
tamento competitivo exigido das crianças crianças/jovens adolescentes consigam
e dos jovens adolescentes traduz o mais desenvolver ações que promovam um cres-
alto grau de exigência entre o aprender, o cimento adequado e condizente com as
jogar e o competir de maneira educativa e suas capacidades produtivas.
comparativa de desempenhos. Nessa perspectiva, os problemas rela-
Os problemas interativos e conflituo- cionados com as práticas escolares esporti-
sos se mantêm atrelados às normas de con- vas e esportivas competitivas continuarão
duta estabelecidas pelas lideranças adul- a ser avaliados e julgados por pais e profes-
tas. O abandono precoce de muitas moda- sores como educadores/técnicos de equipes
lidades coloca em dúvida tanto a política escolares de várias modalidades esportivas.
educacional esportiva das escolas quanto Existe a sugestão de que seria importantíssi-
as ideologias educacionais das lideranças mo que as lideranças adultas respeitassem
adultas em valorizar demasiadamente os as brincadeiras, os jogos e os esportes de
desempenhos. Nesse contexto, muitos as- competição infantil nos processos de forma-
pectos das competições tornam-se emer- ção e desenvolvimento da personalidade es-
gentes, e muitas situações podem levar à portiva. Do ponto de vista psicossocial,
frustração devido à submissão das crian- sociodinâmico e institucional, o estabeleci-
ças às condutas dos professores, dos téc- mento de sistemas relacionados com o ensi-
nicos ou dos pais. O desenvolvimento es- nar, o aprender, o jogar e o competir permite
portivo competitivo seria, portanto, fruto que crianças e jovens adolescentes se desen-
do interjogo estabelecido entre a nature- volvam cognitivamente, emocionalmente e
za das exigências determinadas pelo sis- socialmente. Se as definições e as interpre-
tema esportivo educacional e as perfor- tações são complexas, as diferentes abor-
mances de condutas das lideranças adul- dagens mostram que as práticas escolares
tas em relação aos processos de integração esportivas e esportivas competitivas inte-
e socialização de crianças/jovens adoles- gram aspectos educacionais e esportivos
centes enquanto alunos e atletas. formativos no desenvolvimento escolar.
Muitos professores de educação físi- Verifica-se, desde logo, que, no plano des-
ca e técnicos esportivos têm as habilida- sas práticas escolares, a necessidade de
des para desenvolver vínculos socioafetivos oportunizar uma forte rede de apoio cog-
e estreitamento de vínculos com os alunos/ nitivo, afetivo e comportamental para que
atletas, visando a solucionar problemas crianças e jovens adolescentes/alunos/
pela procura e pela disponibilidade para atletas participem e desenvolvam adequa-
ajudá-los em situações esportivas competi- damente tais competências cognitivas.
tivas. O universo do esporte escolar se tor- Esses apoios representam os desafios
na um modelo de realidade social na vida das lideranças adultas para estabelecerem
esportiva de crianças/jovens adolescentes, programas educacionais esportivos alinha-
e muitos fatores psicossociais, sociodinâ- dos com padrões definidos de organização,
micos e institucionais podem estar presen- canais de comunicação e comportamentos
tes, tornando-se importante para que os indicativos de amizade, confiança e respei-
educadores e esportistas lancem seus olha- to humano às crianças e aos jovens adoles-
res a fim de implementar projetos de for- centes. Esses mecanismos podem ser vistos
mação educacional e desenvolvimento da como procedimentos eficazes para que alu-
personalidade esportiva. Por conseguinte, nos/atletas possam desenvolver seus senti-
lideranças adultas (professores/pais) po- mentos de satisfação com a vida escolar e
dem responsabilizar-se por suas condutas esportiva. Esse quadro observado na socie-
e atitudes adotando comportamentos pró- dade do esporte escolar esportivo nos leva
sociais esportivos e efetivos, para que as a concluir que o esporte escolar de compe-
102 Dante De Rose Jr. e colaboradores

tição e os padrões de comportamentos com- –––––––––– . Integrating socialization influences into the
petitivos infantis estão intrinsecamente rela- study of children’s motivation sport. Journal of Sport
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Esporte e atividade física na infância e na adolescência 103

ESPORTE, COMPETIÇÃO E
ESTRESSE: IMPLICAÇÕES NA
INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA
7
Dante De Rose Jr.

O esporte tem ocupado cada vez mais es- psicológica e social da grande maioria dos
paço na vida das pessoas. Especialmente perdedores.
para crianças e adolescentes, a influência De certa maneira, esse pensamento
dos eventos esportivos divulgados pelos não deixa de ter coerência, principalmen-
meios de comunicação e a identificação te quando a competição é encarada ape-
com os ídolos fazem com que eles convi- nas como o ponto final de um processo
vam com as mais variadas situações rela- que não permite ajustes e reestruturações
cionadas ao esporte e imaginem-se nessas em sua trajetória. Nesse caso, prevalecem
situações, levando-os a traçar objetivos o imediatismo e a tentativa de explorar
frequentemente inatingíveis em seu con- essas situações, a fim de que outros consi-
texto social, cultural e familiar. gam alguma vantagem.
A expectativa de tornar-se um gran- No entanto, a competição infanto-ju-
de atleta leva muitos jovens a abandonar venil não deve ser encarada de forma tão
suas atividades básicas, como, por exem- radical. Ela pode ser um importante meio
plo, estudar, para se dedicar a uma ativi- de aprendizagem, desde que realizada sob
dade que demanda grandes sacrifícios e condições que respeitem as características
entrega total. Como nem todos que ten- dos praticantes e que possa ser desenvol-
tam conseguem ser grandes atletas, esse vida de forma natural e progressiva no pro-
“sonho” pode levar à frustração. cesso de formação e preparação do ser
Como aspecto inerente ao esporte, a humano.
competição na infância e na adolescência Neste capítulo, não será feita uma
é um tema bastante discutido, pois gera análise aprofundada de cada uma dessas
diversas dúvidas sobre benefícios, prejuí- características relacionadas ao esporte. O
zos, adequação às faixas etárias, partici- enfoque principal será o do aspecto com-
pação dos adultos no processo competiti- petitivo e suas relações com o esporte in-
vo e fatores de estresse que permeiam essa fanto-juvenil.
atividade.
A simples menção do termo “compe-
tição” leva, imediatamente, a imaginar si- O ESPORTE E A COMPETIÇÃO
tuações prejudiciais que têm como objeti-
vo principal destacar poucos privilegiados, A competição esportiva é tão antiga
enfatizando a inferioridade física, técnica, quanto a própria humanidade. Mesmo não
104 Dante De Rose Jr. e colaboradores

existindo informações sobre seu início, há tica de atividades físicas e proliferassem


indícios de atividades competitivas desde as entidades esportivas. Como consequên-
a Grécia Antiga, quando se organizavam cia, surgiram novas modalidades e outras
festivais e jogos para homenagear os deu- foram aperfeiçoadas, como rúgbi, remo,
ses (Quadro 7.1). Há registros de que crian- futebol, hóquei e tênis (Rodriguez Lopéz,
ças e jovens competiam em atividades de 2000).
luta, pugilato e corridas, inclusive em com- Durante o século XIX, com a inter-
petições destinadas a adultos, como é o venção de um importante pedagogo,
caso de Milo de Creta, vencedor das lutas Thomas Arnold, o esporte passou a ser pra-
nos jogos olímpicos de 540 a.C. (De Rose ticado também nas escolas públicas e uni-
Jr., 1996). versidades inglesas em substituição aos
Segundo Korsakas e De Rose Jr. antigos jogos, que se caracterizavam pela
(2002), já na Idade Antiga, o esporte ti- desorganização e violência.
nha um importante papel na educação do O esporte com caráter educativo tor-
ser humano. Na cultura grega, as ativida- nou-se parte dos currículos das instituições
des físicas faziam parte do processo edu- de ensino, contribuindo para o desenvol-
cacional das crianças. vimento e o surgimento de outros even-
Apesar de registros de atividades es- tos. Um exemplo foi o ressurgimento dos
portivas e jogos ao longo dos séculos, o jogos olímpicos no final do século XIX, cujo
esporte, da forma como é conhecido atual- idealizador, o Barão de Coubertin, era
mente, é fruto das transformações ocorri- grande admirador da obra de Thomas
das na Europa devido à Revolução Indus- Arnold.
trial dos séculos XVIII e XIX, especialmen- Isso fez com que o esporte começas-
te na Inglaterra. A aristocracia inglesa al- se a sair das fronteiras inglesas para ga-
ternava suas atividades esportivas entre o nhar o mundo. O esporte passou a ser di-
campo e a cidade, fato que resultou no fundido primeiramente nos Estados Uni-
aparecimento e posterior regulamentação dos, devido à influência da colonização
de alguns esportes, como o críquete e o inglesa, e, posteriormente, em outros paí-
boxe. Essas atividades passaram a ser pra- ses. Com isso, novas modalidades esporti-
ticadas também pelas classes mais humil- vas foram criadas, como basquetebol, vo-
des e trabalhadoras. A existência de mais leibol e handebol.
tempo para lazer, proporcionada por essa Com o ressurgimento dos jogos olím-
revolução, fez com que aumentasse a prá- picos em 1896, o mundo passou a ter con-

QUADRO 7.1 Principais jogos realizados na Grécia Antiga, cidades onde eram realizados
e deuses homenageados

Jogos Cidade Deus homenageado

Píticos Delfos Apolo


Nemeus Nemeia Hércules
Ístmicos Corinto Poseidon
Panateneias Atenas Atena
Heranos Elis Hera (únicos jogos
exclusivos para as
mulheres)
Olímpicos Olímpia Zeus
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 105
tato com grandes atletas e com as diferen- lecidas e que tem a competição como ca-
tes modalidades esportivas, evidenciando- racterística importante, senão indissociá-
-se a competição entre os indivíduos e as vel (Barbanti, 2005).
nações participantes. Com o surgimento
de entidades esportivas especializadas,
muitos eventos tornaram-se parte do ca- Ao lado de questões físicas, técnicas, tá-
lendário esportivo de diversos países, como ticas, psicológicas e sociais que fazem
importantes torneios de tênis, atletismo e parte da essência do esporte, coexistem
a Copa do Mundo de Futebol. questões de ordem administrativa, eco-
Os jogos olímpicos tiveram grande nômica e política, entre outras.
influência para o esporte, pois voltaram a
mostrar a importância das atividades com-
petitivas. Estas fazem parte de um com- A prática esportiva tem um impacto
plexo processo, que envolve, direta ou in- particularmente significativo quando se re-
diretamente, milhares de pessoas, bem conhece que a competição é um fator
como cifras astronômicas, oriundas da in- motivante de comportamentos que levam
dústria da competição esportiva (transmis- a conquistas pessoais e sociais. A competi-
sões, empresas de materiais esportivos, pa- ção pode ser entendida como um motor
trocinadores, agências de marketing, etc.). do progresso e do desenvolvimento huma-
A partir da metade do século XX, o no e social, pois, apesar de estar direta-
esporte começou a ter uma maior cober- mente identificada com o esporte, faz parte
tura por parte dos meios de comunicação, de diferentes setores da vida – pessoal, fa-
mais especificamente rádios e jornais. Com miliar, escolar e profissional. Na competi-
o desenvolvimento de novas tecnologias ção, a força moral exigida pela lógica do
(principalmente a televisão), os eventos es- jogo é colocada sempre à prova (Bento,
portivos passaram a ter mais visibilidade, 2006).
e os grandes atletas tiveram a oportunida- Segundo Marques e Oliveira (2002),
de de tornar suas qualidades e seus feitos não há esporte sem competição; dessa for-
visíveis para um público cada vez maior. ma, aqueles que não gostam de competi-
Nas décadas de 1980 e 1990, devido ção não podem gostar do esporte. Na vi-
à globalização e à facilidade de comuni- são de alguns pedagogos, porém, a compe-
cação (principalmente devido à internet), tição é o aspecto mais perverso do esporte
o esporte passou a ser de total domínio do por promover valores exacerbados de con-
público. Juntamente com os grandes fei- corrência e individualismo em prejuízo de
tos de equipes e atletas, também eviden- valores de igualdade e solidariedade (Mar-
ciaram-se os problemas da atividade: ca- ques, 2004).
sos de corrupção, dopping e ingerências Competir sugere a busca de um de-
políticas, entre outros. terminado objetivo e o empenho que al-
Essa realidade trouxe novas aborda- guém faz para atingir sua meta, conside-
gens ao conceito de esporte. Uma delas rando-se que outras pessoas também ten-
afirma que, ao lado de questões físicas, téc- tarão buscar o mesmo objetivo. Competir
nicas, táticas, psicológicas e sociais que fa- significa, necessariamente, rivalizar, lutar
zem parte da essência do esporte, coexis- e tentar conseguir um feito. É por meio da
tem questões de ordem administrativa, competição que se conhecem os melhores
econômica e política, entre outras. e os piores, os vencedores e os derrota-
Uma definição genérica de esporte o dos. Alguns termos relacionados à com-
aponta como uma atividade predominan- petição são: disputa (física e psicológica),
temente física, praticada sob regras estabe- superação, frustração, seleção, derrotas, vi-
106 Dante De Rose Jr. e colaboradores

indiretamente, dependendo da modali-


Alguns termos relacionados à com- dade esportiva. Algumas vezes, o con-
petição são: disputa (física e psicológi-
fronto é pessoal, isto é, quando o indi-
ca), superação, frustração, seleção, der-
rotas, vitórias, comparação, avaliação, víduo tenta superar suas próprias mar-
divertimento, pressão e tensão. cas ou aquelas estabelecidas por outros
atletas.
 Demonstração – Oportunidade de de-
tórias, comparação, avaliação, divertimen- monstrar as capacidades e as habilida-
to, pressão e tensão (De Rose Jr., 2002a, des desenvolvidas e apreendidas nos
2004). treinamentos e ao longo da vida espor-
A competição pode ser considerada a tiva, por meio das experiências com-
“vitrine” dos atletas. É por meio dela que petitivas.
eles têm a oportunidade de expor suas ha-  Avaliação – Pode ser quantitativa (quan-
bilidades e capacidades; em contrapartida, do se leva em consideração o produto
ela também evidencia suas deficiências. As- do desempenho a partir de normas de
sim, há a possibilidade de se comparar e referência numérica com base em cri-
avaliar desempenhos, nem sempre por meio térios previamente definidos; p. ex.,
de critérios adequados e justos. cestas convertidas, gols marcados, de-
Devido a essa possibilidade, acredi- fesas realizadas, tempo de uma corri-
ta-se que um atleta deve estar preparado da, distância de um salto, etc.) ou qua-
para enfrentar os desafios apresentados e litativa (quando se avalia o processo ou
desempenhar a atividade no seu mais alto a qualidade do movimento realizado,
grau de excelência. A competição exige a levando-se em consideração as situa-
aquisição e o aperfeiçoamento de capaci- ções inerentes a uma competição; p.
dades físicas envolvidas na atividade (p. ex., técnicas empregadas em um salto,
ex., força, velocidade, resistência), o do- análise do movimento do arremesso no
mínio de habilidades motoras (técnica dos basquetebol, análise da estrutura táti-
movimentos específicos das modalidades ca de uma equipe de futebol, etc.).
esportivas praticadas) e o desenvolvimen-  Comparação – Acontece em função de
to cognitivo (conhecimento teórico e com- um padrão próprio ou a partir de mo-
preensão de variáveis presentes no proces- delos externos.
so, como a tática, os aspectos psicológi-
cos, as regras, entre outros). Tais fatores podem alterar o padrão
de comportamento de qualquer atleta, de-
pendendo de aspectos relacionados com
suas características pessoais (estágio de de-
A competição exige a aquisição e o aper-
feiçoamento de capacidades físicas en-
senvolvimento, estado físico, nível técni-
volvidas na atividade, o domínio de ha- co, experiências acumuladas, necessidade
bilidades motoras e o desenvolvimento de autoafirmação, expectativas e objeti-
cognitivo. vos pessoais) ou de influências de ordem
externa (expectativa de outras pessoas em
relação ao desempenho do atleta, nível da
Seja qual for o nível da competição competição, nível dos adversários, pressões
ou do praticante envolvido, quatro fato- variadas, etc.).
res são evidenciados: Apesar de a competição ser entendi-
da como o momento em que o atleta de-
 Confronto – Realizado entre dois ou monstra todas as suas capacidades e em
mais indivíduos ou equipes, direta ou que há confronto entre indivíduos ou equi-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 107
pes, ela é na verdade um processo com- são excludentes, podendo haver com-
plexo no qual podem ser identificados qua- binação dos diferentes fatores.
tro componentes (Martens; Velley; Burton,  Consequências – São o feedback para
1990): a orientação de novos comportamen-
tos e podem gerar satisfação, manuten-
 Situação competitiva objetiva – É ção na atividade, enfrentamento, fuga
identificada como os estímulos objeti- ou abandono.
vos do meio ambiente: treinamento,
material, equipamentos, instalações, si- Esses quatro componentes do proces-
tuações específicas do jogo ou da pro- so competitivo são diretamente influencia-
va, adversários e arbitragem. É nesse dos por características pessoais, traços de
momento que os atletas são avaliados e personalidade, nível de habilidade, moti-
comparados. vos e atitudes (Figura 7.1).
 Situação competitiva subjetiva – É a Para competir, o atleta deve estar bem
interpretação que cada indivíduo faz preparado e destacar-se entre os que prati-
das situações anteriores. Uma mesma cam a mesma modalidade esportiva, isto é,
situação pode ser interpretada de ma- pressupõe-se que ele deva superar os mais
neira diferente pelos atletas que parti- elevados níveis de exigência física, técnica,
cipam de um mesmo evento. tática e psicológica. A preparação é árdua,
 Respostas – Demonstram como cada com planejamento muito bem definido e
indivíduo expressa essa interpretação.
De maneira geral, as respostas ocorrem
no plano fisiológico (dores, suor exces-
Para competir, o atleta deve estar bem
sivo, cansaço), psicológico (estresse,
preparado e se destacar entre os que pra-
ansiedade, nível de motivação, agressi- ticam a mesma modalidade esportiva,
vidade), psicomotor (descoordenação isto é, pressupõe-se que ele deva supe-
de movimentos, falhas no desempe- rar os mais elevados níveis de exigência
nho) e social (isolamento, irritabilidade física, técnica, tática e psicológica.
com as pessoas). Essas respostas não

Situação competitiva
objetiva

Habilidades
Consequências Personalidades Situação competitiva
Capacidades subjetiva
Motivos

Respostas

Figura 7.1 Os quatro componentes do processo competitivo.


Fonte: Traduzida e adaptada de Martens, Velley e Burton (1990).
108 Dante De Rose Jr. e colaboradores

organizado, tendo em vista o aperfeiçoa-  Melhoria das condições econômicas


mento das competências necessárias para pessoais e familiares
se atingir os objetivos propostos.  Estilo de vida competitivo (isso se apli-
Tal demanda ocorre em qualquer ní- ca não só ao esporte, mas também à
vel de competição, porém, quando rela- vida cotidiana: profissional, familiar e
cionada ao esporte praticado por crian- educacional)
ças e adolescentes (aqui denominado
infanto-juvenil), pode trazer problemas. Existem muitas controvérsias sobre a
Estes devem ser contornados de forma participação de crianças e jovens em ativi-
adequada para que não se tornem inibido- dades esportivas competitivas. Alguns es-
res da participação infanto-juvenil, cau- tudiosos são contra essas atividades, afir-
sando estresse excessivo e prejudicando mando que só trazem prejuízos à forma-
o desempenho. ção do jovem. Outros enaltecem a compe-
tição como um fator preponderante na
formação da personalidade, na afirmação
A COMPETIÇÃO COMO FONTE de valores morais, espirituais e sociais e
GERADORA DE ESTRESSE NO na preparação para lidar com a vida.
ESPORTE INFANTO-JUVENIL Essas posições conflitantes e por ve-
zes radicais não invalidam o conceito de
O termo infanto-juvenil utilizado nes- que a prática esportiva deve fazer parte da
te capítulo está relacionado com crianças vida dos jovens, acompanhando-os ao lon-
e jovens do início da segunda infância (cer- go de seus estágios de desenvolvimento,
ca de 7 anos) até o final da adolescência tanto como pessoas quanto como atletas. A
(entre 17 e 18 anos). Esse período foi de- prática esportiva deveria ser parte de um
terminado também em função da realida- processo educativo e de formação do jovem,
de esportiva brasileira, que, normalmen- promovendo valores relativos ao “saber
te, apresenta uma maior incidência de ser”, “saber estar” e “saber fazer”. O “saber
competições nessa faixa etária. ser” está relacionado à autodisciplina e ao
No contexto esportivo, a competição autocontrole. O “saber estar” identifica-se
infanto-juvenil é cada vez mais difundida, com respeito mútuo, companheirismo e es-
sendo organizada e determinada por cri- pírito de equipe, tão importantes na práti-
térios não muito claros, estabelecidos por ca esportiva e na competição. O “saber fa-
adultos que, na maioria das vezes, igno- zer” relaciona-se à aquisição e ao desen-
ram as reais condições e necessidades dos volvimento das habilidades motoras e ao
participantes. seu uso em situações esportivas, nas quais
Há diversas razões pelas quais crian- a tomada de decisão é um dos aspectos mais
ças são precocemente envolvidas em even- importantes (Ferraz, 2002).
tos esportivos competitivos, entre as quais:

 Interesse dos adultos A prática esportiva deveria ser parte de


 Necessidade de seguir modelos de atle- um processo educativo e de formação
tas, constantemente divulgados pela do jovem, promovendo valores relativos
mídia ao “saber ser”, “saber estar” e “saber
 Expectativas quanto à possibilidade de fazer”.
atingir um alto nível de excelência no
esporte
 Possibilidade de melhora de status so- Todos esses fatores poderão afetar o
cial em um grupo comportamento dos jovens, dependendo do
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 109
seu nível de prontidão. Segundo o concei- desempenho dos atletas, levando-os, inclu-
to de “prontidão competitiva” desenvolvi- sive, ao abandono precoce das atividades.
do por Malina (1988), esta inclui compo- Já os problemas psicológicos estão re-
nentes físicos (estruturais, fisiológicos e fun- lacionados aos níveis de motivação, ao
cionais), psicológicos (emocionais e cogni- estresse gerado pela competição, à ansie-
tivos) e sociais. Considera-se que o jovem dade, aos níveis de expectativa e às pres-
está pronto para competir quando há um sões decorrentes da necessidade de ter um
equilíbrio entre esses componentes e as de- desempenho adequado e vencer.
mandas competitivas. Para Malina (1988), Na maioria das vezes, uma criança é
quando as características individuais estão levada a participar de competições muito
em equilíbrio ou acima da demanda exigida específicas antes mesmo de poder ter con-
pela competição, o jovem está apto para tato com atividades de cunho mais geral,
competir. Se acontecer o contrário, isto é, o que lhe daria oportunidade de vivenciar
se as demandas competitivas exigirem uma diferentes tipos de movimentos e modali-
resposta que não esteja ao alcance do pra- dades esportivas, acumulando experiên-
ticante, ele poderá experimentar situações cias fundamentais para a sedimentação de
de fracasso por não estar pronto para a ati- seu quadro de prontidão competitiva. Além
vidade. Esse conceito está resumido na Fi- disso, não é raro que jovens atletas tenham
gura 7.2. de enfrentar situações complexas antes de
Esse desequilíbrio entre as caracte- atingirem estágios básicos de desenvolvi-
rísticas individuais e as demandas compe- mento motor e cognitivo, sem que este-
titivas pode se tornar um dos fatores ne- jam aptos para tanto.
gativos da competição na infância e na A idade para iniciar a prática de ati-
adolescência. Quando os jovens atletas são vidades esportivas competitivas varia de
submetidos a desafios incompatíveis com esporte para esporte. Esse início acontece
seus recursos, normalmente surgem pro- normalmente por volta dos 11 anos, mas
blemas de ordem física e psicológica. há registros de crianças de até 3 anos com-
Os problemas físicos podem ser re- petindo em modalidades como a natação
presentados, em sua maioria, pelo apare- e a ginástica. Vários autores preconizam
cimento de lesões importantes, que, a que a idade ideal para a prática competiti-
médio ou longo prazo, poderão afetar o va fica em torno dos 12 anos, pois é nesse

Figura 7.2 Resumo do conceito de prontidão competitiva.


Fonte: Adaptada de Malina (1988).
110 Dante De Rose Jr. e colaboradores

momento que o jovem começa a ter uma Mesmo sendo o sucesso fundamen-
compreensão mais madura e um raciocí- tal nesse processo, é da natureza da com-
nio compreensivo suficiente para enten- petição criar mais perdedores do que ven-
der as nuanças desse processo. cedores. A minoria experimenta a vitória.
Marques e Oliveira (2002) afirmam Por isso, se essa experiência negativa for
que as competições devem ser coerentes constante, o jovem passará a questionar a
com os objetivos do processo de formação validade do processo, tornando a compe-
esportiva a longo prazo, sendo uma exten- tição desencorajadora e até mesmo amea-
são dos treinamentos e mais uma etapa da çadora, especialmente para aqueles que
educação dos jovens. No início, as compe- não possuem capacidades e habilidades
tições podem ser direcionadas para algu- suficientes para desempenhar de forma
ma modalidade esportiva, mas com conteú- satisfatória a atividade e obter o sucesso
dos diversificados, enfatizando o desenvol- desejado.
vimento multidisciplinar. À medida que os Com base no que foi visto com rela-
jovens vão passando para a adolescência, ção à competição, duas perguntas devem
adquirem melhores condições de suportar ser colocadas em discussão: O sucesso está
cargas maiores de treinamento e compe- necessariamente vinculado à vitória em
tência para lidar com situações específicas. uma competição? Uma derrota deve sig-
Com isso, a competição torna-se mais for- nificar, necessariamente, ter fracassado?
mal e voltada para uma determinada mo- Essas questões podem ser respondi-
dalidade esportiva. das sob várias perspectivas. Com relação
Segundo De Rose Jr. (2004), apesar ao esporte infanto-juvenil, deveria haver
de esses conceitos parecerem óbvios, a uma reflexão mais aprofundada sobre os
prática mostra, de forma constante, situa- objetivos da prática esportiva para que eles
ções nas quais as características e as ne- fossem estabelecidos de forma compatível
cessidades de crianças e adolescentes não com essas faixas etárias. Se a competição
são respeitadas, o que, analogamente, po- for encarada como parte do processo de
deria ser comparado a “correr antes de dar formação dos jovens competidores, é pos-
os primeiros passos”. sível afirmar que a resposta para ambas as
Além dos fatores já citados, deve-se questões seria não.
ressaltar a função social da competição, que Nesse caso, o sucesso deve estar atre-
é a forma pela qual crianças e jovens são lado às conquistas individuais (e que po-
comparados e avaliados. Essa avaliação e/ dem ser refletidas em relação às coletivas)
ou comparação também serve, na maioria e ao esforço despendido para a realização
das vezes, para hierarquizá-los em seus gru- de uma tarefa. O sucesso não deveria de-
pos sociais. Principalmente na pré-adoles- pender do resultado numérico da compe-
cência, é importante que os jovens tenham tição, mas sim da obtenção de um feito
competência para alcançar o sucesso e se- importante para o jovem esportista (p. ex.,
jam bem avaliados por seus pares. Se esse a realização eficiente de um determinado
nível de realização não for atingido, o indi- movimento ou o esforço para realizá-lo
víduo pode ficar de fora de seu grupo, de- denotando uma predisposição em acertar).
sencadeando desequilíbrios em seu compor- Esse tipo de atitude depende muito das
tamento. Muitos jovens acabam se desinte- pessoas envolvidas no processo, especifi-
ressando pela competição por não fazerem camente pais, técnicos e professores.
parte da equipe, participarem pouco dos Ao incentivar esse tipo de atitude
jogos ou não jogarem, bem como pelo medo (predisposição em acertar) e ao reconhe-
do fracasso e de serem ridicularizados por cer o esforço dos atletas, essas pessoas
seu desempenho. contribuirão para que o jovem esportista
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 111
adquira confiança e maturidade para en-  Nível de expectativa exagerado (pes-
frentar desafios cada vez maiores em sua soal e dos outros) em relação ao de-
carreira esportiva e em sua vida. sempenho
A criança e o adolescente se envol-  Treinamento e especialização precoces
vem no esporte por inúmeros motivos:  Excesso ou inadequação dos treinamen-
afiliação, desenvolvimento de habilidades, tos
diversão, sucesso, status, manutenção da  Falta de repouso
condição física, gasto de energia, indepen-  Competições mal estruturadas
dência, agressividade e influência de ou-  Nível e importância da competição
tras pessoas (pais, amigos, professores,  Situações específicas das provas ou dos
modelos, etc.). jogos
 Preocupações com o resultado e com
as avaliações
A criança e o adolescente se envolvem  Medo de competir de forma inadequa-
no esporte por inúmeros motivos: afilia- da e cometer erros
ção, desenvolvimento de habilidades,  Medo de decepcionar as pessoas
diversão, sucesso, status, manutenção da
 Ansiedade exagerada
condição física, gasto de energia, inde-
pendência, agressividade e influência de
Esses resultados foram obtidos a par-
outras pessoas.
tir de estudos desenvolvidos com atletas
brasileiros de diferentes faixas etárias (dos
7 aos 18 anos) e de diferentes modalidades
Todos esses fatores de participação, esportivas, tais como: atletismo, basquete-
quando associados e mal explorados, le- bol, futebol, futsal, ginástica, handebol, na-
vam os jovens e as crianças a vivenciar o tação, nado sincronizado, tênis e voleibol
esporte como situação de elevado estresse (Barros; De Rose Jr., 2006; De Rose Jr.,
(a quantidade deste depende das deman- 1996, 1997, 1998, 2003; De Rose Jr. et al.,
das do meio ambiente e das habilidades 2000, 2004; De Rose Jr.; Deschamps;
para lidar com elas). Portanto, se o espor- Korsakas, 2001; Ré; De Rose Jr.; Bohme,
te é colocado na vida de um jovem de for- 2004; Samulski; Chagas, 1992, 1996).
ma inadequada, poderá gerar consequên- O estresse gerado antes e durante as
cias como aumento do risco de contusões, competições infanto-juvenis poderia ser mi-
baixo nível de envolvimento, abandono, nimizado se fossem respeitados alguns con-
desempenho inadequado e queda dos ní- ceitos básicos de inserção de crianças e ado-
veis de motivação. lescentes no esporte. O Quadro 7.2 apre-
Os fatores de estresse associados à senta os aspectos favoráveis e desfavoráveis
competição no esporte infanto-juvenil po- dessa inserção (De Rose Jr., 2002b, 2004).
dem ter diferentes causas:

 Nível de complexidade da tarefa maior


do que os recursos que o atleta possui CONSIDERAÇÕES FINAIS
para enfrentá-la
 Pressões exercidas por adultos envol- Ao serem analisados as opiniões, os
vidos no processo competitivo (pais e estudos e os fatores apresentados, a pri-
técnicos) meira reação seria afirmar que a competi-
 Pressões autoimpostas ção é uma atividade desaconselhável e que
 Definição irreal de objetivos traz somente prejuízos para a formação de
 Comportamento dos adultos nas com- crianças e adolescentes. No entanto, não
petições se deve partir dessa premissa, mas sim con-
112 Dante De Rose Jr. e colaboradores

QUADRO 7.2 Aspectos favoráveis e desfavoráveis da inserção da criança e do adolescente


no esporte

Aspectos favoráveis Aspectos desfavoráveis

Início espontâneo Início induzido e/ou antecipado


Prática de várias experiências motoras Prática de gestos específicos
Poder escolher a modalidade Ser imposta uma modalidade
Ter a oportunidade de jogar Ter de jogar
Jogar de acordo com suas competências Ter de jogar bem
Poder divertir-se e desfrutar da atividade Assumir um compromisso e
responsabilidades
Vencer se possível Vencer sempre e a qualquer custo

siderar de forma lúcida e cautelosa esse enxergar no jovem sua “galinha dos ovos
tipo de atividade no processo de cresci- de ouro”.
mento e desenvolvimento infanto-juvenil. Deve-se levar em conta que, para che-
O que normalmente se observa é a gar ao topo no mundo do esporte, o cami-
grande pressão que pais e técnicos exer- nho é muito árduo. Manter-se nesse topo
cem sobre os jovens atletas, exigindo re- é ainda mais complicado, pois nem sem-
sultados muitas vezes impossíveis de se- pre “querer é poder”. O sucesso no espor-
rem alcançados em função das caracterís- te depende de uma combinação de fato-
ticas da faixa etária dos competidores. Essa res relacionados a aspectos biológicos, mo-
postura que busca somente a vitória pode tores, psicológicos, culturais e sociais, fa-
desencorajar a participação de crianças e zendo com que os futuros atletas sejam co-
adolescentes. Vencer é importante, mas de- locados em um “funil” (que tem entrada
veria ser um objetivo secundário do pro- muito ampla, mas saída muito estreita).
cesso competitivo. Muitos iniciam esse processo, mas pou-
Outro aspecto relacionado aos adul- quíssimos atingem o nível de excelência.
tos é o nível de expectativa depositado no Há várias formas de se ter um pro-
desempenho da criança e do adolescente. cesso competitivo adequado e saudável
Espera-se muito em relação ao rendimen- para o desenvolvimento do jovem espor-
to, sem que se considerem as condições tista, de modo a aproveitar suas experiên-
pessoais para a realização da tarefa. Isso cias competitivas na vida cotidiana. Alguns
se agrava quando o esporte é vislumbrado objetivos podem ser apontados como faci-
como uma possibilidade de ascensão so- litadores para uma participação adequa-
cial e um meio de ganhar dinheiro. Hoje da de crianças e adolescentes em ativida-
em dia, de forma especial no futebol, os des esportivas competitivas:
jovens são levados a acreditar que poderão
ser ídolos e obter somas astronômicas que  Sensibilizar os adultos sobre as neces-
resolveriam todos os seus problemas e os sidades, capacidades e expectativas dos
de seus familiares. Além dos pais e dos téc- jovens em relação à participação em
nicos, surge também um novo persona- competições esportivas
gem: o empresário, que procura obter  Entender que a criança não é um adulto
ganhos a partir dos sonhos de muitos jo- em miniatura e que, portanto, a compe-
vens. Nesse processo, não se pode eximir tição deve ser organizada para ela e não
a responsabilidade da família, que passa a para satisfazer os desejos de adultos
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 113
 Respeitar seus limites e adequar as ativi- REFERÊNCIAS
dades ao seu nível de desenvolvimento
 Proporcionar aos jovens experiências BARBANTI, V. J. Dicionário de educação física e es-
porte. Barueri: Manole, 2005.
positivas na competição
BARROS, J. C. T. S.; DE ROSE JR., D. Situações de
 Encorajá-los a desenvolver autocon- stress na natação infanto-juvenil: atitudes de técni-
fiança, bem como autoimagem e cos e pais, ambiente competitivo e momentos que
autoconceito positivos antecedem a competição. Rev. Bras. Cienc. Mov., v.
 Ajudá-los a desenvolver habilidades 14, n. 9, p. 79-86, 2006.
interpessoais BENTO, J. O. Do desporto. In: TANI, G.; BENTO, J.
O.; PETERSEN, R. D. S. (Org.). Pedagogia do desporto.
 Competir por diversão e apreciar a
Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2006. cap. 2.
competição
DE ROSE JR., D. A competição como fonte de stress
 Promover desafios e não ameaças no no esporte. Rev. Bras. Cienc. Mov., v. 10, n. 4, p. 19-
ambiente competitivo 26, 2002a.
 Proporcionar um ambiente agradável que –––––––––– . A importância dos técnicos na formação
permita obter senso de competência dos futuros atletas. In: SONOO, C. N.; SOUZA, C.;
 Valorizar o esforço e não somente seu OLIVEIRA, A. A. B. (Org.). Educação física e espor-
tes: os novos desafios da formação profissional.
produto Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2002b.
 Oferecer críticas construtivas e orien- p. 127-132.
tação para a melhora do desempenho –––––––––– . Lista de sintomas de stress no esporte in-
e não somente apontar os erros fanto-juvenil. Rev. Paul. Educ. Fis., v. 12, n. 2, p.
126-133, 1998.
A competição será muito benéfica se –––––––––– . Sintomas de stress no esporte infanto-ju-
alguns desses fatores puderem ser com- venil. Revista Treinamento Esportivo, v. 2, n. 3, p.
12-20, 1997.
preendidos e aplicados por aqueles que se
incumbem de sua organização. Não se tra- –––––––––– . Stress esportivo pré-competitivo. In: KISS,
M. A. P. D. M. (Ed.). Esporte e exercício: avaliação e
ta de superproteger a criança, mas de res- prescrição. São Paulo: Roca, 2003. cap. 13.
peitar o curso normal das ações em fun-
–––––––––– . Stress pré-competitivo no esporte infanto-
ção de características emergentes, que, se -juvenil: elaboração e validação de um instrumento.
bem trabalhadas, formarão um esportista 1996. Tese (Doutorado) – Instituto de Psicologia,
ciente de suas capacidades e um cidadão Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.
apto a competir em todos os setores de sua –––––––––– . Tolerância ao treinamento e à competição:
aspectos psicológicos. In: GAYA, A.; MARQUES, A.;
vida. O esporte deve ser um instrumento TANI, G. (Org.). Desporto para crianças e jovens:
para servir aos anseios e às necessidades razões e finalidades. Porto Alegre: UFRGS, 2004. cap.
da criança e do adolescente. 12.
Praticar esporte e competir como DE ROSE JR., D.; DESCHAMPS, S. R.; KORSAKAS,
consequência dessa prática é direito de P. O jogo como fonte de stress no basquetebol in-
todos, o que deve ser incentivado, mas le- fanto-juvenil. Rev. Port. Cienc. Desporto, v. 1, n. 2, p.
36-44, 2001.
vando-se em consideração que chegar ao
DE ROSE JR., D. et al. Sintomas de estrés precompe-
alto rendimento é prerrogativa de poucos. titivo em jóvenes deportistas brasileños. Rev. Psicol.
A função do profissional da área do espor- Deporte, v. 9, n. 1/2, p. 143-157, 2000.
te é proporcionar às crianças e aos adoles- DE ROSE JR., D. et al. Situações de jogo como fonte
centes o acesso a esse direito. Cuidar do de stress em modalidades esportivas coletivas. Rev.
futuro talento é muito importante, mas Bras. Educ. Fis. Esporte, v. 18, n. 4, p. 385-395, 2004.
cuidar da grande maioria, que não atingi- FERRAZ, O. L. O esporte, a criança e o adolescente:
consensos e divergências. In: DE ROSE JR., D. (Org.).
rá esse status, é obrigação.
Esporte e atividade física na infância e adolescência.
Como consequência, as crianças e os Porto Alegre: Artmed, 2002. cap. 2.
jovens serão cidadãos ativos, saudáveis e KORSAKAS, P.; DE ROSE JR., D. Os encontros e
felizes. E, quem sabe, até grandes atletas. desencontros entre esporte e educação: uma discus-
114 Dante De Rose Jr. e colaboradores

são filosófico-pedagógica. Rev. Mackenzie Educ. Fis. MARTENS, R.; VELLEY, R. S.; BURTON, D. Competiti-
Esporte, v. 1, n. 1, p. 83-93, 2002. ve anxiety in sport. Champaign: Human Kinetics, 1990.
MALINA, R. Competitive youth sports and biological RÉ, A. H. N.; DE ROSE JR., D.; BOHME, M. T. S.
maturation. In: BROWN, E. V.; BRANTA, C. F. (Ed.). Stress e nível competitivo: considerações sobre jo-
Competitive sports for children and youth: an overview vens praticantes de futsal. Revista Brasileira de Ci-
of research and issues. Champaign: Human Kinetics, ência e Movimento, v. 12, n. 4, p. 83-88, 2004.
1988. p. 227-245. RODRIGUEZ LOPÉZ, J. Historia del deporte. Barce-
MARQUES, A. Fazer da competição dos mais jovens lona: INDE, 2000.
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A.; MARQUES, A.; TANI, G. (Org.). Desporto para psíquico na competição em jogadores de futebol de
crianças e jovens: razões e finalidades. Porto Alegre: campo das categorias infantil e juvenil. Rev. Bras.
UFRGS, 2004. cap. 3. Cienc. Mov., v. 5, n. 4, p. 12-18, 1992.
MARQUES, A. T.; OLIVEIRA, J. O treino e a compe-
–––––––––– . Análise do estresse psíquico na competição
tição precoce dos mais jovens: rendimento versus em jogadores de futebol de campo das categorias
saúde. In: BARBANTI, V. J. et al. (Ed.). Esporte e juvenil e júnior. Revista da Associação dos Professores
atividade física: interação entre rendimento e saú- de Educação Física de Londrina, v. 2, n. 19, p. 3-11,
de. São Paulo: Manole, 2002. cap. 4. 1996.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 115

A MOTIVAÇÃO PARA AS PRÁTICAS


CORPORAIS E PARA O ESPORTE
8
Pedro Winterstein
Rubens Venditti Jr.

Qual a conclusão de Schopenhauer sobre escolhem práticas individuais e outros,


o conhecimento do corpo? Foi que nós e atividades coletivas? Por que existem
toda a natureza temos uma força primal e aqueles que gostam de atividades com-
incansável, insaciável que ele chamou de petitivas, repletas de tensão, pressão e
vontade. Escreveu: “Para todo lugar que ansiedade, enquanto outros preferem
olhamos, vemos um esforço que represen- aquelas sem caráter competitivo, evi-
ta o cerne de tudo. E em que consiste o tando assim fatores estressantes? Por
sofrimento? É a luta para vencer o obstá- que temos atletas “leões de jogo” e ou-
culo que fica entre a vontade e a meta. O tros que são “leões de treino”?
que é felicidade? É atingir a meta (Yalom,  Por que alguns indivíduos se engajam
2005, p. 223). completamente nas práticas corporais
A motivação parece ter importância com as quais se comprometem, enquan-
fundamental, principalmente quando fa- to outros não se encontram nesse mes-
lamos de práticas corporais em geral ou mo grau de envolvimento? Que cren-
particularmente no esporte. Ao nos deter- ças e mecanismos psíquicos agem na
mos em alguns fenômenos que permeiam tomada de decisões e na escolha por
esse contexto, surgem inúmeras pergun- determinada modalidade esportiva ou
tas que, a princípio, parecem difíceis de tipo de prática corporal a ser realizada
responder, ou são respondidas de acordo pelo indivíduo?
com o senso comum, muitas vezes, de for-  O que leva um atleta a treinar por lon-
ma equivocada. Destaquemos algumas: gos períodos de tempo e, apesar das
constantes derrotas, persistir em dire-
 Por que existem pessoas que gostam de ção a uma melhor performance atléti-
ir à academia exercitar-se durante ho- ca, querer participar de torneios impor-
ras a fio, sem manter qualquer relacio- tantes, abandonar parentes e amigos,
namento com outras pessoas? E outras, entregando-se a uma vida de restrições
para quem o exercício é secundário e o e privações? De maneira geral, podería-
que vale mesmo é fazer uma atividade mos perguntar por que as pessoas fa-
social? zem, deixam de fazer ou nunca fazem
 Por que algumas pessoas não conse- atividade física? E ainda: o que leva
guem se fixar em uma prática corporal alguém a fazer ou não essa atividade?
por tempo muito longo, preferindo va- Ou, por fim: qual(is) o(s) motivo(s)
riar o tipo de atividade? Por que alguns dessas ações ou escolhas?
116 Dante De Rose Jr. e colaboradores

A resposta a estas perguntas é o ob- cessário para entender as ações individuais


jeto de estudo da psicologia da motivação e coletivas. Por ser a chave do controle do
e, no nosso caso específico, da motivação comportamento humano, o conhecimen-
para o esporte e o exercício. Também nos to da motivação é de extrema relevância
ambientes empresariais e na educação, o (Angelini, 1973).
tema é abordado sob diferentes perspecti- Motivação intrínseca se refere ao en-
vas, e notamos o interesse dessas áreas gajamento em uma atividade simplesmen-
sobre o aprofundamento das questões mo- te pelo prazer inerente a essa atividade.
tivacionais para o trabalho, para os estu- No caso do esporte e do exercício, pelo
dos e aprendizagem e até para o autoco- prazer em aprender, explorar e compreen-
nhecimento. Pode parecer fácil perceber der novas tarefas, em cumprir uma meta
ou interpretar as características de um in- ou se autossuperar, ou ainda em vivenciar
divíduo que se encontra motivado: suas situações estimuladoras. A motivação ex-
reações, seu comportamento, emoções, trínseca, por outro lado, se refere ao enga-
interesse e persistência. jamento em uma atividade como meio e
Em contrapartida, conseguimos de- não como fim, ou seja, não pela atividade
tectar a ausência dessa motivação em pes- em si, mas pelo que ela pode representar
soas desinteressadas, além, é claro, de apre- ou levar a conseguir fora dela (Vallerand,
sentarem comportamentos, emoções e rea- 2007).
ções característicos, como pouco envolvi-
mento, baixa persistência e pequenos ní-
veis de esforço. Mas, embora essas carac-
terísticas sejam muitas vezes evidentes, Motivação intrínseca se refere ao enga-
nem sempre podem ser consideradas e in- jamento em uma atividade simplesmen-
te pelo prazer inerente a essa atividade.
terpretadas como fatores únicos na iden-
No caso do esporte e do exercício, pelo
tificação do processo motivacional. Isso prazer em aprender, explorar e compre-
pode ocorrer porque o que estamos fazen- ender novas tarefas, em cumprir uma
do ao interpretar e observar essas carac- meta ou se autossuperar, ou ainda em
terísticas consiste em formular hipóteses vivenciar situações estimuladoras. A
subjetivas acerca das reações, emoções e motivação extrínseca, por outro lado, se
ações de outro sujeito, vistas a partir de refere ao engajamento em uma ativida-
nossas perspectivas e experiências. de como meio e não como fim, ou seja,
não pela atividade em si, mas pelo que
Conhecer o processo multifatorial da
ela pode representar ou levar a conse-
motivação nas práticas corporais pode con- guir fora dela (Vallerand, 2007).
tribuir para compreendermos esses fenô-
menos. O objetivo deste capítulo é discu-
tir alguns aspectos teóricos e práticos do
processo de motivação, possibilitando, as- Essas tendências motivacionais não
sim, sua melhor compreensão. são excludentes, mas complementares.
Pode-se dizer, portanto, que há sempre o
predomínio de uma sobre a outra. Não há
MOTIVAÇÃO INTRÍNSECA um comportamento motivado exclusiva-
E EXTRÍNSECA mente intrínseca ou extrinsecamente, mas
sempre há uma ênfase para uma das duas
O princípio psicológico de Young de tendências. Espera-se que o esporte e as
que “nenhum comportamento existe sem práticas corporais sejam realizados por
causa motivadora que o determine” é ne- meio de motivação intrínseca, uma vez que
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 117
ela favorece a obtenção de consequências MOTIVO E MOTIVAÇÃO
positivas do ponto de vista afetivo, cogni- PARA A REALIZAÇÃO
tivo e comportamental.
Isso significa, na perspectiva pedagó- Motivos são construções hipotéticas,
gica, que se deve evitar a recompensa, que são aprendidas ao longo do desenvol-
material ou não, como meio de levar os vimento de cada ser humano e servem para
indivíduos às práticas corporais (esporti- explicar os comportamentos dos indi-
vas, físicas ou de lazer), por exemplo, por víduos. As explicações para as ações
meio do prêmio, das vantagens, ou ainda baseiam-se na suposição de que a ação é
do elogio. Costuma-se dizer também que determinada pelas expectativas e pelas
a motivação extrínseca corrompe a intrín- avaliações de seus resultados e suas
seca. Isso significa que indivíduos que pra- consequências (Winterstein, 1992).
ticam atividades motivados intrinsecamen- Segundo Murray (1978), os motivos
te (buscando a satisfação apenas pela ação podem ser classificados em dois grupos:
ou pela necessidade intrínseca de realizar inatos (ou primários) e adquiridos (ou se-
a tarefa) e que passam a ser bombardea- cundários). Esse mesmo autor relata ainda
dos com estímulos extrínsecos (recompen- que os motivos sociais (adquiridos) envol-
sas externas, feedbacks, elogios) podem vem o indivíduo em relação a outras pessoas
modificar suas fontes de prazer, passando e, segundo essa interação, recebem nomes
a dar maior ênfase ao resultado ou à re- como agressão, defesa, poder, afiliação, rea-
compensa. Ou seja, deixam de encontrar lização, dentre outros (Quadro 8.1).
o prazer pela tarefa, sendo necessário um Um dos mais pesquisados é o “motivo
elemento externo para suscitar a satisfa- de realização” – responsável pela motivação
ção ou o prazer. No processo de motiva- em situações de rendimento e de competi-
ção para o esporte e práticas corporais, é ção. Esse motivo é considerado de extrema
fundamental compreender a interação e relevância nas práticas corporais e esporti-
as fontes de motivação intrínseca e extrín- vas em geral e nas aulas de Educação Físi-
seca que suscitam as atividades em ques- ca, dadas as características presentes no
tão. Os ambientes esportivos e de lazer são jogo, no esporte e nas práticas corporais.
excelentes para estímulos tanto extrínsecos Os motivos sociais podem ser concei-
quanto intrínsecos. tuados como o conjunto de nossas neces-

QUADRO 8.1 Motivos sociais

Agressão Poder (domínio, Ordem Conhecimento


Amparo influência) Passividade Construção
Atividade lúdica Entendimento Reação (organização)
(Jogo) Evitação de danos Realização Exposição
Autonomia Evitação de Rejeição (ensinamento)
Deferência inferiorização Sensualismo Reconhecimento
(reverência, Exibição Sexo Retenção
complacência, Afiliação (filiação) Aquisição (economia)
assistência) Nutrimento Evitação de
Defesa (assistência) repreensão

Fonte: Murray (1978).


118 Dante De Rose Jr. e colaboradores

sidades. Esses motivos poderiam justificar pois depende das características de cada
ou explicar nossos comportamentos, pla- pessoa (personalidade e subjetividade).
nos de ação e nosso envolvimento em ta- 2. A expectativa ou a probabilidade (de
refas e situações, dentro do complexo pro- êxito ou de fracasso): diz respeito à
cesso motivacional aqui discutido. Pode- probabilidade de êxito que o indivíduo
mos perceber que a maioria desses moti- estabelece. Ela desenvolve-se a partir
vos pode ser observada e é presente no de experiências passadas em situações
contexto pedagógico da Educação Física, semelhantes que o sujeito enfrentou.
do esporte competitivo e das práticas cor- Por exemplo, desempenhos prévios
porais. Dentre eles, destacamos a apropria- bem-sucedidos tendem a aumentar a
ção do motivo de realização para compre- expectativa de êxito e a diminuir a ex-
endermos o processo de motivação e ade- pectativa de fracasso na mesma tarefa.
rência ao esporte e às práticas corporais, É a partir desse desempenho que o in-
focos deste capítulo. divíduo desenvolve uma ideia da difi-
A teoria do motivo de realização refe- culdade da tarefa.
re-se a um importante domínio do compor- 3. O valor de incentivo (do êxito, ou o
tamento, isto é, à atividade orientada para valor negativo de incentivo do fracas-
a realização (Atkinson; Feather, 1974). De so): esse fator também depende da ex-
acordo com os autores, a atividade orien- periência passada do indivíduo em si-
tada para a realização é aquela vivenciada tuações específicas semelhantes à que
por um indivíduo com a expectativa de que ele enfrenta no momento.
seu desempenho seja avaliado com algum
padrão de excelência. Então, a atividade De acordo com Roberts (1993), para
orientada para a realização é sempre influen- a compreensão da motivação e dos com-
ciada por uma resultante de um conflito portamentos de realização, devem ser con-
entre duas tendências opostas, a tendência siderados o significado e a função do com-
para alcançar o êxito e a tendência para portamento, bem como a identificação das
evitar o fracasso. metas de ação. Essas metas dirigem o com-
O motivo de realização (traduzido de portamento de realização quando a apren-
need of achievement) foi definido por dizagem e o domínio são determinados
Heckhausen (1980) sinteticamente como como importantes para o indivíduo. Além
“a busca da melhoria ou manutenção da disso, as percepções das habilidades e das
própria capacidade nas atividades em que capacidades são de autorreferência, per-
é possível medir o próprio desempenho, sistentes e estabelecem metas apropriadas
sendo que a execução dessas atividades a suas capacidades.
pode levar a um êxito ou a um fracasso”. O pano de fundo desses pensamen-
Dessa forma, o motivo voltado para a com- tos autorreferentes, das autopercepções e
petição com algum padrão de excelência do julgamento ou tomada de decisões a
apresenta duas tendências básicas nos in- respeito dos planos de ação seria efetiva-
divíduos: a expectativa de êxito/orienta- mente a autoeficácia em ação, sendo o
ção à tarefa ou o medo do fracasso/orien- mecanismo central de autocrenças, re-
tação para o ego. Em ambas as tendências, gulação, autopercepções e decisões por
devem ser consideradas: planos de ação efetivos e eficazes na reali-
zação das tarefas.
1. A força da tendência ou o motivo: esse Indivíduos com forte motivação para
fator é relativamente geral e estável, a realização trabalham mais, aprendem
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 119
mais depressa e são mais competitivos do da mais essa necessidade (Angelini,
que aqueles com baixo nível de motiva- 1973).
ção. No plano da ação, são aqueles que A motivação para a realização per-
assumem responsabilidades pessoais pelos mite que a pessoa estabeleça metas e tare-
seus atos, que assumem riscos apenas fas de maneira persistente até atingi-las
moderados e que tentam atuar de manei- (com excelência), com seu próprio toque
ra criativa e inovadora, podendo-se dizer pessoal. O sujeito tenta superar-se cons-
que têm senso de autoeficácia elevado e tantemente. Assim, o indivíduo motivado
autopercepções reguladas e condizentes para a realização quer ser competente,
com seus domínios, habilidades e compe- capaz e sentir que domina a atividade que
tências. realiza (Müller, 1998).
Em contrapartida, indivíduos com Nesse ponto, os mecanismos psíqui-
baixa motivação para a realização esco- cos de satisfação (das necessidades), pu-
lhem tarefas com dificuldade extrema e nição e recompensa (pessoal e social, re-
apresentam alta taxa de ansiedade quan- lacionados às normas de referência para a
do colocados em situações nas quais são avaliação, que veremos mais adiante), ava-
avaliados; além disso, apresentam baixos liações subjetivas e interpretações a res-
níveis de autoeficácia e autopercepção, peito dos resultados e da motivação so-
muitas vezes incoerentes com suas com- frem, direta ou indiretamente, influência
petências e reais habilidades, justamente da autoeficácia, daí sua importante rela-
em virtude de suas crenças (ou, no caso, ção com a motivação e o engajamento para
descrenças), de pouco envolvimento e in- a realização nas práticas corporais.
teresse e experiências aversivas no domí- Segundo Roberts (1992), é um erro
nio a ser considerado: ambiente das ativi- relacionar motivação no esporte ou nas
dades esportivas e práticas corporais. práticas corporais diretamente com a
Estudos realizados em motivação performance (resultado final e rendimen-
para a realização também sugerem que tos), sendo mais coerente dizer que é com
indivíduos com altos níveis dessa motiva- a ajuda da motivação que podemos enten-
ção são independentes, mais persistentes der e analisar as diferenças individuais em
em tarefas de dificuldade moderada, rea- situações variadas, em que é exigida uma
listas ao estabelecer expectativas para ati- boa performance. A motivação do indiví-
vidades, fixam padrões de excelência cada duo pode melhorar ou piorar seu desem-
vez mais altos por não se satisfazerem so- penho no esporte, mas não pode justificá-
mente com um único e determinado êxi- -lo. A performance seria apenas o objetivo
to. Têm compreensão clara de seus objeti- final de todo o processo motivacional, sem
vos e estão conscientes da relação entre contar que muitas vezes o atleta pode es-
as metas de realização presentes e os ob- tar motivado, mas não apresentar os re-
jetivos futuros (De La Puente, 1982). sultados ou o desempenho esperados, em
Muitas vezes, esse motivo revela-se virtude de diversos fatores intrínsecos e
no desejo de realizar algo único, que im- extrínsecos.
plica êxito pessoal ou indica realização O motivo de realização, para Murray
a longo prazo, com antecipação do resul- (1978), refere-se ao esforço do indivíduo
tado promissor. Alcançar êxito será uma em concluir uma tarefa, atingir excelên-
forma de satisfazer a necessidade criada cia, superar obstáculos, atuar melhor que
por esse motivo, enquanto fracassar na re- os outros e orgulhar-se de suas habilida-
alização será uma forma de acentuar ain- des. É a motivação que orienta as pessoas
120 Dante De Rose Jr. e colaboradores

tisfazer seus anseios e buscar a realização


Segundo Roberts (1992), é um erro re- da tarefa, mesmo diante das incertezas,
lacionar motivação no esporte ou nas
expectativas e imprevisibilidades da tare-
práticas corporais diretamente com a
performance (resultado final e rendimen- fa (Winterstein, 2002).
tos), sendo mais coerente dizer que é Enfatizamos que, nas práticas cor-
com a ajuda da motivação que podemos porais, no esporte e no exercício, em vir-
entender e analisar as diferenças indivi- tude do caráter prático e dinâmico dos con-
duais em situações variadas, em que é teúdos a serem trabalhados, os pratican-
exigida uma boa performance. A moti- tes se encontram fadados à questão do re-
vação do indivíduo pode melhorar ou pi-
sultado, do desempenho, da execução dos
orar seu desempenho no esporte, mas
não pode justificá-lo. A performance se-
gestos motores. Logicamente, a conse-
ria apenas o objetivo final de todo o pro- quência final dos planos de ação no âmbi-
cesso motivacional, sem contar que mui- to da Educação Física incide na ambi-
tas vezes o atleta pode estar motivado, valência do “êxito” (experiências bem-su-
mas não apresentar os resultados ou o cedidas, tarefas executadas e objetivos
desempenho esperados, em virtude de atingidos) e do “fracasso” (insucesso, bai-
diversos fatores intrínsecos e extrínsecos. xo desempenho, frustração, derrota e ob-
jetivos não atingidos).
Winterstein (2002) aponta para as
semelhanças entre as duas teorias: os in-
divíduos com orientação à tarefa, ou clas-
a realizarem suas aspirações, persistirem sicamente com expectativa de êxito, são
quando erram e sentirem orgulho ao atin- caracterizados pela maior necessidade de
girem seus objetivos. realização, por acreditarem no seu esfor-
A definição de metas também auxi- ço e por serem otimistas; já os indivíduos
lia a compreensão de diferenças indivi- orientados para o medo do fracasso, ou
duais, dentro da realidade social do meio orientação para o ego, apresentam-se mo-
esportivo. Ou seja, há uma ligação entre a tivados por fatores externos (busca de re-
definição de metas para o esporte e os va- conhecimento social, status e aceitação)
lores e as características de personalidade e mostram-se preocupados com a com-
de um atleta (Nicholls, 1984). paração de sua capacidade com a dos
Dentre as diversas teorias da motiva- outros.
ção para a realização, são apresentadas Essa meta dirige o comportamento de
duas com aplicação no campo das práti- realização em circunstâncias em que a
cas corporais e do esporte. Ambas indicam comparação social está presente. Além dis-
que os indivíduos podem ter característi- so, esses indivíduos tendem a demonstrar
cas que os classificam em dois grupos. A capacidade superior (mesmo não a tendo),
primeira, “Expectativa de Êxito/Medo do não são muito persistentes e atribuem o
Fracasso”, diz respeito às orientações do êxito às suas habilidades, ao seu esforço e
sujeito em direção à busca de êxito ou a à sorte. O fracasso, em contrapartida, é
evitar fracassos nas tarefas. Já a teoria atribuído a fatores externos, como o ma-
“Orientação para o Ego/Orientação para terial utilizado, o azar, a situação, etc. Para
a Tarefa” descreve que os indivíduos bus- esses indivíduos, que se caracterizam pelo
cam evitar frustrações pessoais, que nesse uso da máxima habilidade, o mínimo de
caso seriam os conflitos com o ego, ou sa- esforço é importante, e a percepção das
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 121
habilidades é normativamente referen-
ciada1. A partir da abordagem social cognitiva, a
autoeficácia é definida classicamente
Para uma melhor compreensão do
como “a crença na própria capacidade
complexo processo de motivação, descre- de organizar e executar cursos de ações
vemos a seguir alguns componentes que requeridos para produzir determinadas
têm sido apontados como relevantes para realizações” (Bandura, 1997, p. 3).
seu entendimento.

COMPONENTES DO MOTIVO DE Bandura (1977), e desde então tem se


REALIZAÇÃO: AUTOEFICÁCIA, NÍVEL constituído uma importante área de estu-
DE ASPIRAÇÃO, ATRIBUIÇÃO CAUSAL dos em diferentes dimensões da atividade
E NORMA DE REFERÊNCIA humana, por exemplo, na saúde, nos es-
portes, nas organizações e na educação.
Autoeficácia “Uma expectativa de eficácia é a convic-
ção que um indivíduo possui de executar
A partir da abordagem social cogni- com sucesso um determinado comporta-
tiva, a autoeficácia é definida classica- mento solicitado (ou determinada tarefa)
mente como “a crença na própria capaci- e obter os resultados desejados” (Bandura,
dade de organizar e executar cursos de 1977, p. 123).
ações requeridos para produzir determi- O construto psicológico da autoefi-
nadas realizações” (Bandura, 1997, p. 3). cácia é caracterizado como um mecanis-
Os estudos em autoeficácia, apesar mo cognitivo para mediar motivação e
de ainda recentes, vêm ganhando espaço comportamento, voltados a uma determi-
no ambiente educacional, sempre correla- nada meta (Bandura, 1986, 1997), além
cionados à motivação e à persistência nas de contribuir para o que o autor conside-
tarefas (Neri, 1986). Inicialmente, o con- rou human agency ou “agência humana”
ceito de autoeficácia foi postulado por (Bandura, 1989, 2001).

Essas crenças de competência


pessoal proporcionam a base para
a motivação humana, o bem-es-
1
Por exemplo, quando um ambiente é caracte- tar e as realizações pessoais (no-
rizado pela competição interpessoal e pela ava- ta: todos possíveis e constantes nas
liação social, indivíduos com medo do fracas- atividades corporais e nos esportes).
so tendem a obter melhores resultados. Porém, Isso porque, a menos que acre-
em situações caracterizadas pela aprendiza- ditem que suas ações possam pro-
gem, com base no erro alheio, no domínio pes- duzir os resultados que desejam,
soal da habilidade e pelo simples fato de parti- as pessoas terão pouco incentivo
cipar, indivíduos orientados para o êxito, mui- para agir ou perseverar frente a
tas vezes, destacam-se dos demais. Assim, dificuldades. [...] Crenças de
Nicholls (apud Duda, 1993) sustentou que os autoeficácia influenciam pratica-
indivíduos desenvolvem uma meta sobre ou- mente todos os aspectos das vi-
tra em um ambiente específico, de acordo com das das pessoas – independente-
as diferenças motivacionais, baseando-se em mente de pensarem de forma pro-
suas visões de mundo sobre o que consideram dutiva, autodebilitante, pessimis-
importante dentro desse contexto. ta ou otimista –, o quanto elas se
122 Dante De Rose Jr. e colaboradores

motivam e perseveram frente a envolvimento efetivos para as práticas cor-


adversidades, sua vulnerabilida- porais e esportivas.
de frente ao estresse e à depres- De acordo com a Teoria Social Cogni-
são e as escolhas que fazem em tiva (TSC) de Bandura (1986), cada indi-
suas vidas. A autoeficácia tam-
bém é um determinante crítico de víduo tem um autossistema que o permite
como os indivíduos regulam o seu exercer uma avaliação sobre o controle que
pensamento e o seu comporta- exerce sobre seus pensamentos, sentimen-
mento (Pajares; Olaz, 2008, p. tos, motivação e ações. Esse sistema pro-
101-102). videncia referências mecânicas e um con-
junto de subfunções para perceber, regu-
Se considerarmos os motivos como lar e avaliar o comportamento.
construtos hipotéticos (Winterstein, Os resultados são provenientes da
1992), que buscam explicar ações e com- interação entre esse sistema e as influên-
portamentos em direção a determinada cias do ambiente, dentro da reciprocidade
meta e objetivo (entendendo-os em um triádica ilustrada na Figura 8.1, que inte-
processo que procura dar explicações para ragem reciprocamente e se regulam sen-
as ações, determinados pelas expectativas do um determinante do outro fator (deter-
e pelas avaliações de seus resultados e suas minismo recíproco).
consequências), pode-se perceber a impor- Os indivíduos executam uma ação,
tância da autoeficácia. Esta funcionaria interpretam os resultados de suas ações e
como um dos mecanismos dentro da autor- usam essas informações para criar e de-
regulação comportamental da agência senvolver crenças sobre suas capacidades,
humana (Bandura, 2001), que permite para empenhar comportamentos subse-
controlar e auxiliar nesse processo motiva- quentes com domínios similares e condi-
cional, na manutenção e na adesão ao es- zentes com as crenças criadas (Pajares,
porte e ao exercício, e na persistência e no 2004). São as expectativas de autoeficá-
cia – ou seja, o quanto esse sujeito se con-
sidera capaz de executar os comportamen-
tos exigidos na ação efetiva (prática) para
atingir os resultados pretendidos, sem de-
Se considerarmos os motivos como cons- sistir no processo (Bzuneck, 2000) – as res-
trutos hipotéticos (Winterstein, 1992), ponsáveis para a elaboração de autoper-
que buscam explicar ações e comporta- cepções individuais e mecanismos de au-
mentos em direção à determinada meta tocrenças.
e objetivo (entendendo-os em um pro-
cesso que procura dar explicações para [...] parcialmente embasadas em
as ações, determinados pelas expectati- autopercepções de eficácia que as
vas e pelas avaliações de seus resulta- pessoas escolhem o que fazer,
dos e suas consequências), pode-se per- com quanto de esforço investir e
ceber a importância da autoeficácia. por quanto tempo persistir dian-
Esta funcionaria como um dos mecanis- te de resultados desfavoráveis
mos dentro da autorregulação compor- (desapontáveis) e se as tarefas
tamental da agência humana (Bandura, estão sendo atingidas de manei-
2001), que permite controlar e auxiliar ra ansiosa ou pessoalmente asse-
nesse processo motivacional, na manu- guradas (Bandura, 1986, p. 21).
tenção e na adesão ao esporte e ao exer-
cício, e na persistência e no envolvimento
Bandura (1993) percebeu que a auto-
efetivos para as práticas corporais e es-
portivas.
eficácia envolve muito mais do que sim-
plesmente as convicções de esforço apli-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 123

Figura 8.1 Reciprocidade triádica e determinismo recíproco. Interação entre os fatores pessoais,
comportamentais e ambientais, além da interdependência entre os mesmos. Esse construto é
uma das premissas teóricas para a compreensão da TSC de Bandura (1986).
Fonte: Adaptada de Bandura (1986, p. 24-25) e encontrada em Venditti Jr. (2005, p. 10).

cadas a determinados desempenhos. En- mos especificar essa utilização para o con-
globa também julgamentos do conheci- junto de tarefas e atividades que compõem
mento da pessoa (individual), habilidades, a realização no contexto da Educação Fí-
estratégias e administração de tensão, que sica (EF), e, assim, compreender os meca-
também entram na formação de convic- nismos que participam no controle inter-
ções de eficácia e, no nosso caso, da eficá- no dessas crenças e percepções para o do-
cia do praticante de atividades corporais mínio das práticas corporais, dos esportes
(nosso aluno/a, atleta ou cliente). e do exercício.
As experiências diretas são a fonte
principal de influência da autoeficácia,
Fontes de autoeficácia constituindo-se pela interpretação dos re-
sultados de uma performance esportiva
Segundo Bandura (1977, 1997, 2001), realizada. Por meio destas, os indivíduos
o senso de autoeficácia é constituído por avaliam o efeito de suas ações, o que aju-
quatro fontes, sendo elas: experiências di- da a criar suas crenças de eficácia. Resul-
retas e pessoais; experiências vicariantes; tados interpretados como sucesso aumen-
persuasão verbal ou social; e estados fisi- tam a autoeficácia; os interpretados como
ológicos e emocionais (Figura 8.2). A auto- carência ou insucessos (fracassos) a dimi-
eficácia pode ser considerada em várias nuem. Dessa forma, a autoeficácia apre-
tarefas e ações humanas, nas diversas senta relação diretamente proporcional
áreas do conhecimento. Neste capítulo, va- com a motivação para a realização, ou seja,
124 Dante De Rose Jr. e colaboradores

quanto maior a autoeficácia, maior a mo- dicadores para o desempenho, mais rela-
tivação, em virtude dos êxitos anteriores cionados às expectativas quanto ao resul-
nas tarefas de mesmo domínio. tado e ao desempenho. Por exemplo, sin-
As experiências indiretas ou vicarian- tomas físicos aversivos, como dor de ca-
tes são a segunda fonte de autoeficácia; beça, cólicas, fadiga, são apontados como
constituem-se pelos efeitos decorrentes das indicadores de ineficiência. Nesse caso, o
interpretações feitas sobre as ações de ou- indivíduo tende a confiar menos em sua
tras pessoas, de terceiros; seriam praticamen- capacidade para obter sucesso em deter-
te a aprendizagem por modelos ou pela ob- minada atividade. Apresentam maior se-
servação (aprendizagem social). gurança em suas capacidades os indivíduos
Observando modelos, como outros que se sentem em adequado estado de
atletas, esportistas ou pessoas relevantes alerta, prontidão e ativação.
que façam determinadas ações ou repitam É importante destacar que essas fon-
determinados comportamentos, pode tes de autoeficácia não traduzem direta-
ocorrer aprendizagem observacional e in- mente os julgamentos de competência. Os
cremento na autoeficácia dos aprendizes. indivíduos interpretam os resultados dos
As experiências vicariantes são especial- eventos, e são as informações retiradas
mente úteis em duas situações: quando há dessas interpretações que formam o jul-
insegurança quanto às próprias capacida- gamento, não seus resultados diretos. Es-
des (ao comparar-se ao modelo, o obser- tudos apontam evidências de que um alto
vador aprende sobre si mesmo); e quando senso de autoeficácia apoia a motivação,
o observador tem um baixo senso de auto- afirmando que indivíduos otimistas em
eficácia e precisa aprender a lidar com ele, relação ao futuro acreditam que podem ser
o modelo pode indicar tanto estratégias eficientes na realização de suas ações, es-
comportamentais que levem ao sucesso tabelecendo assim objetivos mais elevados,
quanto mostrar formas de lidar com as tendo menos medo de fracassar e persis-
autopercepções de incapacidade e supe- tindo mais tempo quando encontram difi-
rar essas dificuldades, respondendo às de- culdades ou situações aversivas às suas
mandas situacionais no ambiente esporti- metas (Bandura, 1997).
vo e competitivo. Para Bandura e Pintrich (apud
Já a persuasão verbal ou social ocor- Woolfolk, 2000), pessoas com elevado sen-
re por meio da exposição (verbal ou so- so de autoeficácia atribuem seus fracas-
cial) dos julgamentos que outras pessoas sos à falta de esforço, e pessoas com baixo
têm sobre as habilidades do indivíduo. senso costumam atribuí-los à falta de ca-
Quando utilizada isoladamente, causa um pacidade. Neste último, a motivação fica
senso de autoeficácia não duradouro, mas comprometida quando os fracassos forem
pode momentaneamente criar condições ligados à baixa capacidade e à carência de
motivacionais para comportamentos bem- características necessárias à situação em
-sucedidos; porém, é possível gerar um fal- análise. A Figura 8.2 pode ilustrar as fon-
so senso de autoeficácia sobre competên- tes de construção da eficácia pessoal no
cias inexistentes. A persuasão verbal ou ambiente do esporte, do exercício e das
social é comumente aplicada para a ade- práticas corporais.
De acordo com Iaochite (2006, p. 139),
são ou o incentivo às práticas corporais.
Finalmente, as informações obtidas [...] é fundamental que os respon-
por fonte dos estados fisiológicos e emocio- sáveis por planejar, implementar
nais são utilizadas pelas pessoas como in- e avaliar os programas de avalia-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 125

Composição da
Persuasão autoeficácia no
verbal e social esporte e no exercício Sensações
Estados Emoções
Feedbacks fisiológicos e Saúde –
Ex emocionais funções orgânicas
p
vic eriên
(in arian cias
dir te
eta s
s)

Experiências
Observação de diretas e
modelos e terceiros pessoais
(aprendizagem social)

Êxitos e fracassos

Figura 8.2 Modelo esquemático sobre as fontes de (in)formação da autoeficácia, de acordo


com Bandura (1997, 2001): experiências diretas ou de sucesso pessoal; experiências vicariantes
ou indiretas; persuasão verbal e social; e estados fisiológicos e emocionais.

ção de atividade física e de exer- A autoeficácia como


cícios reconheçam essa informa-
ção como um direcionamento im-
componente mediador
portante para estabelecer os ob- no processo motivacional
jetivos, o nível de desafios das para a realização
tarefas a serem cumpridas e a
prescrição em termos de intensi- Iaochite (2006, p. 128) ressalta que
dade, frequência e duração. Ca- “é necessário compreender que o compor-
minhar nessa direção, tendo o tamento de praticar exercícios é dinâmi-
referencial da Teoria da Autoefi- co, complexo e multideterminado por di-
cácia, por exemplo, permite que
os profissionais da área da saúde
versos fatores de ordem pessoal, comporta-
possam prever os prováveis resul- mental e ambiental” (reciprocidade triá-
tados, estabelecer expectativas e dica). Para o autor, a decisão de mudar
objetivos que possam servir como um comportamento voltado à prática cor-
guias e autoincentivos às pessoas poral (do sedentarismo à fase ativa) re-
que estão (re)ingressando na ati- quer uma avaliação, um julgamento, con-
vidade física. siderando as crenças acerca da competên-
cia para mudanças, desafios ou dificulda-
Nas diversas possibilidades de atua- des no contexto, além de suas expectati-
ção em Educação Física (EF), a autoefi- vas e metas a serem atingidas. As crenças,
cácia pode ser apropriada para buscar as vinculadas aos fatores pessoais, têm sido
explicações e interpretações comporta- apontadas em diversos estudos como as
mentais, atitudinais e motivacionais dos in- principais mediadoras dos processos de
divíduos. mudança, dos aspectos motivacionais, do
126 Dante De Rose Jr. e colaboradores

engajamento e da persistência (Iaochite, corresponder ou não à sua capacidade. Os


2006). O construto da autoeficácia seria, indivíduos propõem-se alcançar determi-
então, o principal mecanismo atrelado à nados objetivos, que podem ser modifica-
motivação para a atividade física, em vir- dos após o êxito ou o fracasso na realiza-
tude de ser o principal componente de for- ção da atividade. A elevação ou a manu-
mação dessas crenças pessoais; ademais, tenção persistente de um objetivo após
é o mecanismo autorreflexivo mais impor- sucessivos fracassos é considerada uma
tante dentro dessa perspectiva da TSC. inadequação do nível de aspiração. Aqui,
Sendo a autoeficácia uma forma de as fontes de experiência direta (domínio
autopercepção (percepção da competên- pessoal) e indireta (vicariantes/aprendi-
cia e das habilidades), não há como negar zagem por observação) da autoeficácia
que o processo de avaliação, interpreta- para a prática corporal exercem papel di-
ção e autojulgamento das capacidades, ha- reto e efetivo, pois, por meio delas, po-
bilidades, competências e eventuais de- der-se-iam estabelecer esses níveis de ren-
sempenhos ou resultados, para determi- dimento futuros, em virtude do acúmulo
nado domínio ou tarefa no contexto es- de experiências e situações vivenciadas an-
portivo e do exercício, efetuado no e pelo teriormente.
indivíduo, ocorreria por meio do mecanis- Dessa forma, as pessoas com expec-
mo da autoeficácia e do conjunto das ca- tativa de êxito optam por metas compatí-
pacidades autorreflexivas, presentes no veis com suas capacidades, geralmente
human functioning (Bandura, 1986) – fun- com um nível médio de dificuldade, em
cionamento humano – e no agenciamento que o resultado depende do próprio esfor-
de suas ações e motivações (Bandura, ço. Se o indivíduo for bem-sucedido, de-
2007; Bandura; Azzi; Polydoro, 2008). verá aumentar seu nível de aspiração, ou
seja, escolher uma tarefa mais difícil. Caso
contrário, se falhar, deverá diminuir seu
NÍVEL DE ASPIRAÇÃO (NA) nível de aspiração, escolhendo uma tarefa
mais fácil (Winterstein, 1991).
Já os indivíduos que têm medo do
O nível de aspiração (NA) é defini-
fracasso, em geral, escolhem objetivos
do como o patamar de rendimento que
abaixo dos rendimentos alcançados an-
uma pessoa pretende alcançar em uma de-
teriormente, já que serão realizados com
terminada tarefa, conhecendo seu desem-
facilidade, evitando assim possíveis fra-
penho na mesma tarefa anteriormente
cassos; ou inadequadamente acima deles,
(Winterstein, 1993). As pessoas escolhem
gerando um fracasso inevitável, mais evi-
uma meta e suas expectativas podem
dente e menos penoso, uma vez que im-
pede que sejam criadas expectativas fu-
turas em relação a eventuais êxitos obti-
dos nas escolhas de tarefas com dificul-
dade menor. Ao optar por uma meta
O nível de aspiração (NA) é definido
aquém de rendimentos anteriores, o in-
como o patamar de rendimento que uma
pessoa pretende alcançar em uma de- divíduo certamente a atingirá, evitando,
terminada tarefa, conhecendo seu de- assim, o sentimento de fracasso. Porém,
sempenho na mesma tarefa anterior- ao empreender pouco esforço na ação,
mente (Winterstein, 1993). deixa de vivenciar com plenitude o êxito
(Winterstein, 1992).
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 127

ATRIBUIÇÃO CAUSAL (AC) (enfatizada na TSC de Bandura). Dentre


esses mecanismos e funções autorreflexi-
Após uma ação realizada com êxito vas, a autoeficácia atuaria tanto na esco-
ou fracasso, o indivíduo busca causas que lha do nível de aspiração quanto fazendo
expliquem esses resultados. Essa aproxi- inferências a respeito de quais as fontes
mação considera o indivíduo como um causais, ou a quais fatores seria atribuído
organismo ativo, capaz de processar infor- aquele sucesso ou fracasso (fatores inter-
mações com a inclusão de um alto proces- nos ou externos; estáveis ou variáveis).
so mental como determinantes da ação fí- A partir desse modelo de atribuição,
sica humana. Essa explicação é denomi- Weiner e colaboradores (1971) identifica-
nada atribuição causal (AC) ou simples- ram quatro principais “elementos da atri-
mente atribuição. buição” usados no contexto da realização.
Esses fatores causais não são capazes de
explicar todas as situações de rendimen-
to. Mesmo assim, contribuíram com uma
Após uma ação realizada com êxito ou série de indícios para o estudo do motivo
fracasso, o indivíduo busca causas que de realização (Winterstein, 1992). Esses
expliquem esses resultados. Essa apro- elementos são: capacidade pessoal, esfor-
ximação considera o indivíduo como um ço pessoal, dificuldade da tarefa e acaso
organismo ativo, capaz de processar in- (sorte ou casualidade). Para melhor com-
formações com a inclusão de um alto
processo mental como determinantes da
preensão, o Quadro 8.2 destaca os fatores
ação física humana. Essa explicação é discutidos nesse modelo de atribuição.
denominada atribuição causal (AC) ou Investigações mostram que indiví-
simplesmente atribuição. duos que têm expectativa de êxito, ou que
apresentam a tendência de se orientarem
à execução da tarefa, geralmente atribuem
a causa de seus resultados à própria capa-
As teorias da atribuição mostram que cidade e esforço, enquanto os que apre-
a causalidade percebida dos acontecimen- sentam medo do fracasso atribuem-na à
tos ativa e dirige o comportamento. As sig- dificuldade da tarefa ou ao acaso (Winters-
nificações que o indivíduo atribui aos ob- tein, 1991, 1992). No contexto esportivo,
jetos do mundo são responsáveis, em gran- Roberts (1992) também evidenciou que
de parte, por sua resposta e por sua per- crianças com alto motivo para a realiza-
cepção da situação. Por exemplo, uma re- ção atribuem o êxito à capacidade e o fra-
lação social pode ser aprendida por alguns casso ao baixo esforço. Em contrapartida,
indivíduos como forma de obtenção de crianças com medo do fracasso, ou orien-
prestígio e, por outros, como dependên- tadas a atenderem ao ego, atribuem o êxi-
cia pessoal. Nesses casos, é a significação to à sorte e à facilidade da tarefa e o fra-
dada pelo sujeito à situação que determi- casso à falta de capacidade; ou seja, suas
nará seu comportamento motivado, e essa autocrenças são extremamente insuficien-
significação, que é produto de uma elabo- tes, e a atribuição causal basicamente se
ração cognitiva, irá ativar e dirigir o com- concentra em fatores externos, não asso-
portamento (De La Puente, 1982). ciados ao indivíduo, ao esforço ou às ha-
Aqui, mais acentuadamente, poder- bilidades pessoais.
-se-ia identificar a influência dos mecanis- Porém, essa abordagem “clássica” do
mos regulatórios e da agência humana motivo de realização não deve ser consi-
128 Dante De Rose Jr. e colaboradores

ou do praticante, pois após, ou até mesmo


QUADRO 8.2 Conjunto de fatores antes das ações, o julgamento e as autoper-
cepções irão avaliar os resultados das ações
Fatores Internos externos ou suas possibilidades.
Para Nuttin (apud De La Puente,
Variáveis Esforço Casualidade
(sorte)
1982), a análise das condutas humanas
Estáveis Capacidade Dificuldade deve sempre levar em conta a importân-
da tarefa cia atribuída pelo indivíduo às experiên-
cias, cujos resultados confirmam as con-
Fonte: Adaptado de Weiner e cols. (1971).
cepções que ele faz de si mesmo e que es-
tão de acordo com o seu plano geral de
realização, existente em todo indivíduo.
Ele sofre a influência do número e da im-
derada a melhor explicação à atribuição portância relativa de seus êxitos e fracas-
no esporte. De acordo com Maehr e Ni- sos, que se tornarão elementos decisivos
cholls (apud Biddle, 1993), é também ne- na formação e no equilíbrio da percepção
cessário descobrir o significado da reali- de seu potencial.
zação para diferentes pessoas, e não con-
siderar que a realização é universalmente
definida da mesma maneira. Um resulta- NORMA DE REFERÊNCIA
do é interpretado como êxito quando refle- (NR) PARA AVALIAR OS
te atributos desejáveis para o indivíduo,
RESULTADOS E A REALIZAÇÃO
seja pelo grande esforço, seja pela alta
capacidade demonstrada. Em contrapar-
Como último fator importante na
tida, se o resultado reflete qualidades in-
determinação do motivo de realização,
desejáveis para o indivíduo, seja pela pre-
surge a norma de referência (NR), que diz
guiça, seja pela baixa demonstração de
respeito aos diferentes parâmetros neces-
capacidade, é considerado como um fra-
sários para a avaliação dos resultados de
casso. Assim, o que é êxito para um pode
rendimento. Essas normas podem ser fa-
ser fracasso para outro. Dessa forma, os
tores diferenciais ao se trabalhar nos con-
autores defendem que o êxito e o fracasso
textos da Educação Física e dos esportes,
não são estados absolutos, mas sim uma
pois oferecem um rico contexto para que
avaliação subjetiva das qualidades pes-
adotemos uma ou outra norma de avalia-
soais desejáveis: “a análise do comporta-
mento de realização é a análise de como
as pessoas percebem a presença ou a falta
das qualidades desejáveis e os efeitos que
interferem no comportamento” (Biddle, A norma de referência (NR), que diz res-
peito aos diferentes parâmetros neces-
1993, p. 446).
sários para a avaliação dos resultados
O primeiro passo para a compreen- de rendimento. Essas normas podem ser
são do comportamento de realização é fatores diferenciais ao se trabalhar nos
entender que êxito e fracasso são estados contextos da Educação Física e dos es-
psicológicos que se baseiam na interpre- portes, pois oferecem um rico contexto
tação de eficácia do indivíduo empenha- para que adotemos uma ou outra nor-
do para a realização (Roberts, 1993). Aqui, ma de avaliação; ou até mesmo que as
portanto, surge novamente o mecanismo intercalemos, ou sejam feitas utilizações
alternadas das mesmas, nas diferentes
da autoeficácia como mediador e regula-
situações.
dor do senso de eficácia pessoal do atleta
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 129
ção; ou até mesmo que as intercalemos, judicar o desenvolvimento da ação do in-
ou sejam feitas utilizações alternadas das divíduo. Porém, esse fator não influencia-
mesmas, nas diferentes situações. rá no bom ou no mau desenvolvimento da
As normas de referência são indivi- ação diretamente, mas auxiliará na iden-
duais e sociais. Ela pode ser individual tificação da atribuição dada às situações
quando se compara o rendimento de um de êxito e de fracasso, trabalhando ou ade-
indivíduo com um outro realizado ante- quando tanto as comparações individuais
riormente por ele; ou social quando a com- quanto as normas sociais e coletivas, de
paração do rendimento acontece dentro de acordo com as necessidades e objetivos em
um determinado grupo de referência. Os cada situação. A Figura 8.3 pode sinteti-
resultados, portanto, referem-se a uma zar os componentes discutidos até agora:
norma única exigida para todo um grupo nível de aspiração (NA), atribuição causal
(Heckhausen, 1980). (AC) e norma de referência (NR), dentro
Ainda de acordo com o mesmo autor, do processo motivacional. Nesse esquema,
é possível haver uma melhoria na motiva- percebemos que a autoeficácia estaria
ção ao utilizar-se a norma de referência imersa nesse contexto, permitindo que o
individual, pois dessa forma o indivíduo indivíduo responda aos seus questiona-
vivencia adequadamente os êxitos e os fra- mentos (perguntas feitas na parte inferior
cassos, determinando de forma realista seu da figura) e cognitivamente estabeleça
nível de aspiração próprio e independente- planos de ação e avaliações pessoais de
mente do que é padronizado coletivamente suas habilidades, potencialidades e com-
em seu grupo de convívio e de práticas cor- petências.
porais. Por isso, é necessário considerar a A teorização da autoeficácia passa a
importância dessas normas no âmbito edu- ser fundamental para a compreensão dos
cacional, porque a norma de referência fatores influenciadores de determinadas
utilizada para a avaliação dos alunos pode ações ou atividades. Dentre eles, estão a
influenciar positiva ou negativamente a escolha de tarefas e a seleção; o esforço
sua motivação (Winterstein, 1992). empregado nas tarefas; e o grau de per-
A norma de referência pode ser um sistência diante de falhas ou estímulos
fator de grande importância na obtenção aversivos. Sendo assim, observando os
de um objetivo, podendo favorecer ou pre- comportamentos do nosso público e os

Figura 8.3 Componentes do motivo de realização no esporte, nas práticas corporais e/ou nos
exercícios. O motivo de realização teoricamente considera o nível de aspiração, a atribuição
causal e as normas de referência.
130 Dante De Rose Jr. e colaboradores

fatores que incidem nas suas percepções e


avaliações, pode-se promover o desenvol- A percepção da competência e o prazer
intrínseco procedentes do êxito são vis-
vimento de crenças de eficácia que possi-
tos como aumento do esforço para a re-
bilitem engajamento nos programas de ati- alização. Já a percepção da incompetên-
vidades físicas, ou práticas corporais, pro- cia e o desprazer podem conduzir à an-
postas de maneira mais adequada. siedade e a uma diminuição do esforço
Nossas sistematizações ou planos de na realização – a autoeficácia e a moti-
ação tornar-se-iam mais efetivos para o vação para a realização atuariam nesse
ensino da Educação Física, com maior par- momento positivamente e em relação
ticipação e envolvimento dos alunos e alu- recíproca, ou seja, uma influenciando a
outra.
nas nas atividades, incidindo, portanto, no
processo motivacional dos mesmos para a
realização das práticas corporais. Assim
sendo, podemos considerar a autoeficá-
cia como mais um dos componentes no habilidade, autoeficácia ou confiança por
processo de motivação para a realização. vários teóricos, o construto da percepção
da competência tem um papel fundamen-
tal para o estudo da motivação (Roberts,
PERCEPÇÃO DA COMPETÊNCIA 1993). Para esse autor, a teoria da auto-
eficácia refere-se à convicção necessária
A percepção da competência tem sido para obtenção do êxito na execução de
estudada em vários contextos, incluindo o uma determinada tarefa, não se relacio-
esporte e as práticas corporais. Iaochite nando à habilidade em si, mas à determi-
(2006) relata o aumento de pesquisas e o nação do indivíduo sobre o que pode ser
grande interesse a respeito da adesão ao feito com a própria habilidade. Por isso,
exercício físico e suas relações com os pro- por meio da autoeficácia, podemos com-
cessos comportamentais de motivações e preender os diferentes graus de envolvi-
com o construto da autoeficácia. Em seu mento e engajamento em programas de
trabalho, Harter (apud Roberts, 1993) bus- atividade física, os níveis de esforço e a
cou explicar por que os indivíduos sentem- motivação para a realização das práticas
-se induzidos a engajar-se nos contextos de corporais, e os motivos ou as necessida-
realização. Para o autor, a percepção da des (pessoais ou sociais) envolvidos para
competência é um motivo multidimensio- as situações vivenciadas no contexto es-
nal que conduz o indivíduo aos domínios portivo.
cognitivo, social e físico. De acordo com Nicholls (apud Duda,
A percepção da competência e o pra- 1993), recentes teorias cognitivistas apon-
zer intrínseco procedentes do êxito são tam uma importante relação entre as pers-
vistos como aumento do esforço para a pectivas das metas, a percepção da habili-
realização. Já a percepção da incompetên- dade e o comportamento. Estudos que exa-
cia e o desprazer podem conduzir à ansie- minaram a correlação comportamental das
dade e a uma diminuição do esforço na orientações expectativa de êxito e medo
realização – a autoeficácia e a motivação do fracasso no domínio esportivo eviden-
para a realização atuariam nesse momen- ciaram a ênfase, pelos indivíduos orienta-
to positivamente e em relação recíproca, dos para a tarefa, na demonstração do es-
ou seja, uma influenciando a outra. forço e, pelos indivíduos orientados para
A autoestima pode influenciar a es- o ego, na falta de persistência. Ou seja,
colha do comportamento motivacional. indivíduos com expectativa de êxito geral-
Muitas vezes definido como percepção da mente apresentam maiores níveis de au-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 131
toeficácia; já os indivíduos com medo do autor acredita ainda que os adultos devam
fracasso não apresentam esses níveis eleva- estruturar o clima psicológico de tal modo
dos, sentindo-se sempre despreparados ou que a aprendizagem e o desenvolvimento
incapazes de executar seus planos de ação. sejam mais salientes do que o desempe-
De acordo com Duda (1993), em in- nho e o resultado.
divíduos orientados para a tarefa, as per- Nota-se que os indivíduos atribuem
cepções da capacidade e o tipo de evento o êxito a fatores internos mais do que o
que ocasiona sentimento de êxito são de fracasso. Uma explicação para esse resul-
referência própria. Existe uma melhora da tado seria o fato de estarem mais motiva-
habilidade, do domínio da tarefa, muito dos para proteger e aumentar sua auto-
trabalho e um compromisso com a própria estima fazendo tais atribuições (Green-
atividade. A percepção que o indivíduo tem berg, apud Biddle, 1993). Dessa forma, os
da própria capacidade é bastante adequa- indivíduos fazem diferentes atribuições
da à realidade. Esse indivíduo apresenta para êxito e fracasso porque possuem di-
comportamentos que conduzem a uma ferentes níveis de autoestima, percepção
habilidade adquirida a longo prazo e com própria e pensamentos autorreferentes
muito investimento, assim como trabalho (Bandura, 1986, 1993, 1997, 2001). Ban-
sério e ético, dentro de uma ótima perfor- dura (1977, 1997) aponta que a autoefi-
mance e muita persistência. cácia produz quatro efeitos principais: es-
Já indivíduos orientados para o ego, colha das ações; esforço e resistência à
quando questionados sobre seu nível de adversidade; melhoria de rendimentos efe-
competência, apresentam um baixo padrão tivos; e padrões de pensamento e reações
comportamental orientado para a realiza- emocionais. Todos esses efeitos têm rela-
ção, e sua percepção da capacidade é frá- ção intensa com o processo de motivação,
gil. Tais indivíduos tendem a ser mais inse- principalmente nas práticas corporais, no
guros, reduzem seus esforços, param de esporte e no exercício.
tentar, alegam falta de interesse quando
comparados com indivíduos orientados pa-
ra a tarefa, escolhem desafios extremos CONSIDERAÇÕES FINAIS
para uma atividade (muito fácil ou muito
difícil) e, como consequência, têm um de- Dada a complexidade gerada pela
sempenho prejudicado, vindo a abandonar multiplicidade de fatores que afetam o
as atividades (Jagacinski; Nicholls, 1990). comportamento de aderir à prática de ati-
Brody (apud Atkinson; Feather, vidade física, somando-se ao poder da
1974) preocupou-se com os efeitos da an- crença de autoeficácia no que diz respei-
siedade e da necessidade de realização to à influência sobre os diferentes proces-
sobre a probabilidade subjetiva do êxito e sos cognitivos, afetivos, seletivos e motiva-
do fracasso. Os resultados mostraram que cionais, conhecendo e compreendendo a
o nível da percepção do êxito tende a ser constituição dessas crenças, parece possí-
mais alto entre sujeitos com alta necessi- vel pensar na conjectura desses elemen-
dade de realização do que entre sujeitos tos no tocante à planificação de estratégi-
com baixa necessidade de realização. as que possam contribuir para a aquisição
Em ambientes onde há predominân- de padrões de comportamento mais sau-
cia da comparação social e da competição, dáveis em relação à prática de atividade
o indivíduo pode focalizar-se apenas em física (Iaochite, 2006).
sua percepção da capacidade, trazendo As duas tendências do motivo para a
consequências negativas para o compor- realização, apresentadas até aqui, nos
tamento de realização (Roberts, 1993). O mostram, nas características individuais
132 Dante De Rose Jr. e colaboradores

das tendências, além da proximidade en- manência na atividade. Já a utilização da


tre as tendências expectativa de êxito e norma social deve ser aplicada quando o
orientação para a tarefa, assim como medo profissional deseja que surjam compara-
do fracasso e orientação para o ego, que ções ou ainda que os modelos e padrões
podem contribuir para uma melhor com- valorizados nessas normas sejam seguidos,
preensão de alunos e atletas, apoiando-os alcançados, e que sirvam como reforçado-
no processo motivacional e auxiliando na res de comportamentos, atitudes e ações.
construção de sua autoeficácia. No Qua- Pessoas com medo do fracasso/orien-
dro 8.3, resumimos e condensamos nos- tadas para o ego buscam evitar situações
sas discussões a respeito da motivação de em que possam vir a ter sentimentos de
realização e autoeficácia nos esportes e frustração pelo erro ou pela derrota. Assim,
nas práticas corporais. é importante que as atividades possibili-
Levando-se em consideração as pon- tem êxitos e fracassos, mas que haja uma
derações teóricas apresentadas, podemos valorização maior dos êxitos e seja dada
sugerir algumas estratégias de atuação uma importância menor aos fracassos.
para os professores e para os técnicos que
buscam a criação de um clima motivacio-
nal adequado para o desenvolvimento de
suas atividades.
Para se desenvolver um nível de as- Pessoas com medo do fracasso/orienta-
piração e uma percepção subjetiva de ca- das para o ego buscam evitar situações
em que possam vir a ter sentimentos de
pacidade adequados, é importante que as
frustração pelo erro ou pela derrota.
pessoas possam estabelecer suas próprias Assim, é importante que as atividades
metas de rendimento nas atividades. Além possibilitem êxitos e fracassos, mas que
de possibilitar a busca de metas compatí- haja uma valorização maior dos êxitos e
veis com sua capacidade, isso também di- seja dada uma importância menor aos
minui a atribuição externa no caso de não fracassos.
conseguir alcançá-las.
Para isso, no entanto, é necessária a
adoção de uma norma individual de refe-
rência, o que significa evitar situações que Nesse sentido, devem-se observar
evidenciem a comparação entre as pessoas também as atribuições manifestadas. Um
e valorizar os progressos individuais. Po- incentivo a atribuições adequadas pode au-
rém, a variação de utilização entre as nor- mentar a responsabilidade pelos erros e
mas individuais e sociais pode trazer re- evitar a imobilidade em direção à corre-
sultados negativos, devendo ser adminis- ção de erros e à predisposição para o es-
tradas e consideradas pelo profissional de forço. A exposição ao risco calculado fa-
EF, com o intuito de valorizar e considerar vorece o convívio com a insegurança. No
os aspectos individuais, mesmo estando os esporte, especificamente, é importante
participantes imersos em um ambiente co- aproximar o treinamento de situações reais
letivo e social. Para situações de discrepân- de competição, principalmente sob pres-
cia entre os níveis de habilidade do apren- são de tempo e de inferioridade de per-
diz em relação à maioria do grupo ou equi- formance. Outro aspecto levantado repe-
pe esportiva, as normas e as comparações tidas vezes neste capítulo está na impor-
individuais poderiam colaborar para as tância de conhecermos e aplicarmos os
autopercepções desses alunos e para a me- conceitos da TSC e da teoria da autoefi-
lhoria dos níveis de autoeficácia e persis- cácia para entendermos os mecanismos de
tência nos aspectos de motivação e per- crenças e motivações dos praticantes de
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 133

QUADRO 8.3 Motivação de realização e autoeficácia

Expectativa de êxito/Orientação para a tarefa

Os indivíduos:
Trabalham mais. Acreditam no seu esforço. São otimistas.
Buscam a satisfação pessoal (motivação intrínseca). Apresentam elevadas crenças de autoeficácia.
Optam por metas compatíveis e apropriadas com suas capacidades. Tentam superar-se constante-
mente.
Têm percepção de sua habilidade e capacidade. São mais criativos e inovadores.
São mais competitivos, independentes e mais persistentes (engajados). Não demonstram alta
capacidade (não se exibem).
Assumem responsabilidades pelos seus atos e escolhem riscos moderados. Buscam a satisfação e o
prazer em uma tarefa. Têm sentimento de êxito e maior autocontrole. Demonstram segurança no
comportamento.
Atribuem a causa dos resultados à própria capacidade e esforço.
Preocupam-se com a aprendizagem e com o domínio da tarefa. Aprendem mais depressa.
Favorecem a capacidade para cooperar e o esforço para o domínio pessoal.
Julgam seu êxito pela qualidade de seu trabalho.
Fontes de autoeficácia mais efetivas a serem exploradas: experiências diretas e domínio pessoal;
estados fisiológicos e afetivos.

Medo do fracasso/Orientação para o ego

Os indivíduos:
Escolhem tarefas com dificuldades extremas ou muito fáceis para não se frustrarem. São pessimistas.
São orientados a normas sociais e necessitam ser motivados extrinsecamente.
Optam por metas abaixo dos rendimentos alcançados anteriormente.
Atribuem seus resultados à dificuldade da tarefa ou ao acaso (fatores externos). Nunca assumem
falta de esforço ou incapacidades (falta de competência).
São menos persistentes, mais ansiosos e inseguros no comportamento.
Preocupam-se com a comparação de sua capacidade e motivam-se pelo reconhecimento social.
Têm baixa percepção da competência e níveis reduzidos de autoeficácia.
Apresentam falta de autodeterminação. Abandonam a atividade em caso de derrota ou fracasso.
Fontes de autoeficácia a serem trabalhadas: experiências vicariantes e persuasão verbal ou social
(são influenciáveis socialmente).

Fonte: Adaptado de Winterstein (2002).

atividade física. Dessa forma, fica muito dades e as competências dos alunos e dos
clara a relação entre autoeficácia e moti- atletas, suprindo e adaptando as carências,
vação no ambiente esportivo. as dificuldades e as limitações, sem que as
Entretanto, como seria possível que mesmas sejam foco ou fonte de perturba-
o profissional de EF pudesse contribuir ou ções ou ansiedade. Poderíamos pensar em
alterar esses níveis de autoeficácia dos in- como proporcionar alimentações daquelas
divíduos com os quais se relaciona? quatro fontes de autoeficácia e de que for-
No contexto esportivo e do exercício, ma poderíamos reestruturar nossas práti-
devem-se criar condições e estímulos am- cas e metodologias de modo que essas fon-
bientais com os quais sejam estimuladas e tes fossem sempre nutridas e repletas de
valorizadas as potencialidades, as habili- estímulos.
134 Dante De Rose Jr. e colaboradores

Acreditamos que esse seria o papel HECKHAUSEN, H. Motivation und handeln. Berlin:
fundamental do profissional de EF, pois Spriger, 1980.
incrementando as fontes de eficácia pes- IAOCHITE, R. T. Aderência ao exercício e crenças
de autoeficácia. In: AZZI, R. G.; POLYDORO, S. A. J.
soal, os interesses e os incentivos pode- Autoeficácia em diferentes contextos. Campinas: Alí-
riam perdurar por tempos mais longos, nea, 2006. p. 127-148.
sendo o professor o principal foco de con- JAGACINSKI, C. M.; NICHOLLS, J. G. Reducing efort
trole dessas motivações extrínsecas, per- to protect perceived ability: “they’d do it but
mitindo um ambiente seguro, agradável, wouldn’t”. J. Educ. Psychol., n. 82, p. 15-21, 1990.
criativo, desafiador e motivador. MÜLLER, U. Percepção do clima motivacional nas
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APRENDIZAGEM MOTORA
IMPLÍCITA EM CRIANÇAS
E ADOLESCENTES
9
Renato de Moraes

Minha filha sempre gostou de brincar na transpor um obstáculo, mas, apesar disso,
cama elástica desde que começou a andar. elas aprendem a realizar esses ajustes no
Toda ida ao shopping center resultava em padrão de locomoção. As crianças apren-
alguns minutos pulando nesse aparelho. dem a falar sem serem instruídas sobre
No início, ela tinha dificuldades para se como proceder para realizar essa tarefa,
equilibrar na cama e caía com frequência. da mesma forma que aprendem a andar,
Após mais de dois anos brincando even- por volta de um ano de idade, sem que
tualmente na cama elástica, ela conseguiu um instrutor lhes diga como executar tal
equilibrar-se muito bem sobre ela e incor- movimento.
porou o uso dos membros superiores para Em todas essas situações, é razoável
auxiliar na manutenção do equilíbrio cor- supor que a criança aprendeu sem saber
poral durante os saltos. É interessante ob- que estava aprendendo, ou seja, ela apren-
servar, entretanto, que tanto eu quanto deu de forma implícita. O objetivo deste
minha esposa nunca fornecemos nenhu- capítulo é apresentar e discutir a aprendi-
ma dica sobre como realizar os saltos de zagem motora implícita em geral e, espe-
uma forma mais eficiente. Apesar disso, cificamente, em crianças e adolescentes.
ela demonstrou uma melhora acentuada Além disso, é de interesse também apre-
no desempenho de seus saltos. Em outras sentar sugestões de como usar o conheci-
palavras, ela aprendeu a saltar na cama mento sobre aprendizagem motora implí-
elástica sem nenhuma instrução efetiva. cita no processo de ensino-aprendizagem
Como isso é possível? Qual mecanismo de de habilidades motoras. Este capítulo está
aprendizagem está envolvido nesse caso? organizado em três seções: a primeira
Esse exemplo não é único. Na verda- aborda a aprendizagem motora implícita
de, isso é muito mais comum do que pode em termos gerais (paradigmas de pesqui-
parecer. Como explicar, por exemplo, o fato sa e evidências empíricas); a segunda se-
de uma criança de pouca idade conseguir ção é dedicada aos estudos que investiga-
adaptar o padrão de locomoção a partir ram a aprendizagem motora implícita em
das demandas do ambiente, como desviar crianças e adolescentes; e a seção final
de obstáculos no caminho ou transpor apresenta algumas implicações práticas,
outros obstáculos de menor magnitude? relacionando o conhecimento sobre a
As crianças não são explicitamente ensina- aprendizagem implícita e o processo de
das a elevar mais o membro inferior para ensino de habilidades motoras.
138 Dante De Rose Jr. e colaboradores

APRENDIZAGEM MOTORA IMPLÍCITA de habilidades e hábitos está vinculada à


memória de procedimentos.
A aprendizagem implica a aquisição O processo de aquisição de habilida-
de novas informações ou novos conheci- des motoras tem sido descrito, tradicional-
mentos que ficam retidos na memória. A mente, dentro do modelo de estágios. Fitts
aprendizagem motora, por sua vez, resul- e Posner (1967) descreveram três estágios
ta na aquisição de novas habilidades para a aquisição de habilidades motoras
motoras e em sua retenção na memória que focam no estado interno do indivíduo:
de procedimentos (Hallett, 2006). Para cognitivo, associativo e autônomo. O es-
tanto, é necessário um período mínimo de tágio cognitivo é caracterizado por uma
prática da habilidade motora para que alta demanda cognitiva para entender
ocorram melhoras observáveis no desem- como realizar a habilidade e gerar um
penho. movimento que seja, ao menos, uma re-
É por meio da repetição do desem- presentação grosseira do comportamento
penho de uma habilidade motora que ocor- desejável. Durante o estágio associativo,
re a retenção dessa habilidade, de forma ocorre um refinamento na realização da
que há uma conversão dos traços iniciais habilidade motora e uma diminuição gra-
de memória instáveis (i.e., memória de dual da demanda cognitiva para realizá-
curto prazo) em uma forma estável, ro- -la. Nesse estágio, o aprendiz começa a
busta e resistente à degradação ao longo entender como os vários componentes da
do tempo (i.e., memória de longo prazo) habilidade estão inter-relacionados. No
(Stickgold; Walker, 2005). Esse processo estágio autônomo, a execução da habili-
recebe o nome de consolidação. Em uma dade torna-se mais automática, e a aten-
perspectiva mais contemporânea, a con- ção pode ser dirigida para outros eventos
solidação é vista como um processo dinâ- no ambiente. Dessa forma, a demanda
mico e não como um fenômeno de tudo- cognitiva para desempenhar a habilidade
-ou-nada. Por meio do processo de recon- motora diminui drasticamente. Esse está-
solidação, a memória armazenada pode gio envolve um refinamento mais acentua-
tornar-se mais eficiente com o tempo, em do no desempenho da habilidade.
resposta às necessidades de mudança do Com base nesse modelo de três está-
organismo (Stickgold; Walker, 2005). Isso gios, Anderson (1982) propôs um modelo
ajuda a entender a melhora no desempe- de memória equivalente para explicar o
nho de habilidades motoras mesmo após fenômeno associado a cada estágio. Du-
meses ou anos de prática. rante o estágio cognitivo, o aprendiz rece-
A memória de longo prazo pode ser be instrução e informação sobre a habili-
dividida em dois tipos de acordo com dade, que é codificada como um conjunto
Morris e colaboradores (2005): explícita de fatos, caracterizando o conhecimento
ou declarativa e implícita ou não declara- declarativo sobre a habilidade. Com a
tiva. A memória explícita é aquela que está prática, o conhecimento declarativo é gra-
disponível para a evocação consciente e dualmente convertido na forma de proce-
pode ser articulada. É pela memória ex- dimentos. Essa transição ocorre durante o
plícita que nos lembramos de fatos e even- processo de compilação do conhecimento
tos. Em contrapartida, a memória implíci- no estágio associativo. No estágio autô-
ta não é consciente e envolve o conheci- nomo, há um refinamento do conhecimen-
mento sobre como fazer. A memória im- to armazenado, permitindo um aumento
plícita subdivide-se em associativa, não gradual na velocidade de realização da
associativa e de procedimentos (Shumway- habilidade. Esse terceiro estágio envolve o
-Cook; Woollacott, 2007). A aprendizagem conhecimento de procedimentos. Como
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 139
apontado por Willingham, Nissen e Bullemer sobre a repetição do padrão do segmento
(1989), esse modelo implica a precedên- intermediário. A partir do sexto dia de prá-
cia do conhecimento declarativo em rela- tica, o erro relacionado com a persegui-
ção ao conhecimento de procedimento. ção do segmento repetido tornou-se me-
Entretanto, existem situações em que essa nor do que o erro relacionado com os seg-
precedência não ocorre e isso será discuti- mentos não repetidos (i.e., inicial e final).
do na sequência. Essa diferença acentuou-se ao longo dos
A prática de uma tarefa motora que demais dias de prática, de tal forma que
envolve a repetição de um padrão sem co- os participantes se beneficiaram da previsi-
nhecimento explícito ou declarativo sobre bilidade do segmento repetido para melho-
essa repetição leva a uma melhora do de- rar o desempenho em relação aos segmen-
sempenho (Pew, 1974; Nissen; Bullemer, tos aleatórios. Ao final do décimo primeiro
1987). Ou seja, mesmo na ausência de dia de prática, os participantes foram en-
consciência sobre um padrão que se repe- trevistados e a maioria relatou desconhe-
te, é possível melhorar o desempenho nes- cer a presença de um segmento repetido.
sa tarefa, o que contraria o modelo pro- Nissen e Bullemer (1987) desenvol-
posto por Anderson (1982). A melhora no veram uma tarefa que tem sido amplamen-
desempenho durante a realização de ha- te usada nos estudos sobre aprendizagem
bilidades motoras é um indicativo da ocor- motora implícita. Essa tarefa, conhecida
rência de aprendizagem. Dessa forma, a como Tarefa de Tempo de Reação Serial
aprendizagem de alguma informação com- (TTRS), envolve o aparecimento de uma
plexa sem a capacidade de saber cons- luz em uma de quatro posições possíveis
cientemente o que foi aprendido é conhe- alinhadas em um monitor de vídeo. Os
cida como aprendizagem implícita. participantes posicionam cada um dos de-
dos indicador e médio das mãos direita e
esquerda sobre quatro botões alinhados,
localizados logo abaixo da posição de cada
A aprendizagem de alguma informação uma das luzes. A tarefa dos participantes
complexa sem a capacidade de saber é pressionar o botão correspondente à luz
conscientemente o que foi aprendido é acesa o mais rapidamente possível. O
conhecida como aprendizagem implícita.
pressionamento do botão correto dispara
o próximo estímulo em uma sequência de
acendimento das luzes. Essa sequência
pode ser repetida ou aleatória. A variável
Um dos primeiros estudos a relatar medida nessa tarefa é o tempo de reação
evidências da aprendizagem motora im- (TR) para cada estímulo apresentado.
plícita foi conduzido por Pew (1974). Nes- Com base na TTRS, Nissen e Bulle-
se estudo, os participantes realizaram uma mer (1987) encontraram uma diminuição
tarefa de perseguição por meio de movi- do TR para o grupo que praticou a sequên-
mentos de flexão e extensão do cotovelo. cia repetida em comparação ao grupo que
O padrão que os participantes persegui- praticou a sequência aleatória de estímu-
ram foi dividido em três segmentos de 20 los. Vale ressaltar que o grupo que prati-
segundos. O padrão do segmento interme- cou a sequência repetida não foi informa-
diário era sempre o mesmo em todas as do sobre essa característica da tarefa. Após
tentativas, enquanto o padrão dos segmen- 800 tentativas de prática, o grupo da se-
tos inicial e final variava entre as tentati- quência repetida obteve uma melhora no
vas. Os participantes praticaram a tarefa TR de 164 ms, enquanto o grupo aleató-
durante 16 dias e não foram informados rio melhorou muito pouco seu TR (32 ms).
140 Dante De Rose Jr. e colaboradores

Nesse mesmo estudo, pacientes com vam um número maior de segmentos cor-
a síndrome de Korsakoff que sofrem de porais. Shea e colaboradores (2001) tes-
amnésia anterógrada foram testados na taram essa hipótese com o uso de uma pla-
TTRS. A amnésia anterógrada impede a taforma de equilíbrio, em que os partici-
transferência do conhecimento da memó- pantes ficavam em pé e deviam mover a
ria de curto prazo para a memória de lon- plataforma para cima e para baixo em tor-
go prazo. Esses pacientes melhoraram seus no do eixo de rotação anteroposterior.
desempenhos na sequência de estímulos Nessa tarefa, os participantes foram ins-
repetidos da mesma forma que os indiví- truídos a perseguir um padrão exibido na
duos do grupo controle. Além disso, os pa- tela de um computador movimentando a
cientes amnésicos foram incapazes de de- plataforma de equilíbrio. Da mesma for-
tectar a presença de uma sequência repe- ma que no estudo de Pew (1974), o pa-
tida. Portanto, apesar de serem incapazes drão do segmento intermediário (25 s) era
de aprender fatos e eventos novos (i.e., sempre repetido, enquanto o padrão dos
memória declarativa), os pacientes amné- segmentos inicial e final (25 s cada) era
sicos são capazes de aprender novas habi- aleatório. Depois de cinco dias de prática,
lidades perceptivo-motoras (i.e., memória o teste de retenção apontou um melhor
de procedimentos). desempenho para o segmento repetido.
Willingham, Nissen e Bullemer (1989) Após o teste de retenção, os participantes
ampliaram essa descoberta ao comparar foram entrevistados para identificar se eles
indivíduos que obtiveram conhecimento haviam notado alguma repetição durante
explícito sobre a sequência de estímulos e a realização do experimento. A maioria dos
indivíduos que não obtiveram esse conhe- participantes relatou a inexistência de um
cimento. Nos dois casos, houve melhora segmento repetido.
no desempenho durante a fase de aquisi- Posteriormente, os participantes fo-
ção, sendo que o grupo que obteve conhe- ram informados de que havia um segmen-
cimento explícito durante a realização da to que era sempre o mesmo e foram solici-
tarefa exibiu uma melhora mais acentua- tados a assistir cinco segmentos (um de-
da (205 ms) em comparação ao grupo que les sendo o repetido) e identificar o seg-
não adquiriu conhecimento explícito du- mento repetido. Somente 26% dos parti-
rante a prática da tarefa (94 ms). Esses cipantes escolheram o segmento correto.
resultados sugerem que a aprendizagem Portanto, mesmo com dicas de recupera-
declarativa e a de procedimentos podem ção, os participantes foram incapazes de
ser dissociadas em adultos jovens. O fato selecionar o padrão repetido acima da pro-
de o grupo sem conhecimento explícito babilidade do acaso. Como observado nos
melhorar seu desempenho ao longo da estudos acima citados, o segmento repeti-
prática sugere que a aprendizagem não do foi aprendido implicitamente. Em con-
segue sempre a sequência proposta por traste com os estudos anteriormente des-
Anderson (1982). Em suma, pode-se critos, a tarefa usada no estudo de Shea e
aprender a realizar uma habilidade motora colaboradores (2001) é muito mais com-
sem estar consciente desse processo. plexa em termos de coordenação de mo-
É importante destacar, entretanto, vimentos. Isso sugere que o mesmo prin-
que as tarefas descritas acima são relati- cípio da aprendizagem implícita encontra-
vamente simples, pois envolvem alguns do em tarefas motoras menos complexas
poucos segmentos corporais. Assim, tor- pode ser generalizado para a aprendiza-
na-se relevante questionar se a aprendi- gem de habilidades motoras complexas.
zagem motora implícita pode ser observa- Masters (1992) foi um pouco mais
da em tarefas mais complexas que envol- além e encontrou uma relação interessan-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 141
ticando sob as mesmas condições iniciais.
O mesmo princípio da aprendizagem im- Na situação estressante, os participantes
plícita encontrado em tarefas motoras
foram informados que o pagamento que
menos complexas pode ser generaliza-
do para a aprendizagem de habilidades receberiam pela participação no experi-
motoras complexas. mento poderia aumentar ou diminuir de-
pendendo da avaliação do desempenho
deles por um especialista em golfe que os
assistiria durante a sessão de prática. A
efetividade da situação estressante foi ava-
te entre aprendizagem motora implícita e liada através da monitoração da frequên-
desempenho motor em situações estres- cia cardíaca (FC) e da aplicação de um
santes. A tarefa escolhida foi a tacada de questionário sobre o nível de ansiedade-
golfe em direção a um buraco localizado a estado. Tanto a FC quanto a ansiedade-
1,5 m de distância do local da tacada. Essa estado aumentaram da situação pré para
tarefa motora foi praticada durante cinco pós-estresse nos três grupos estressados,
dias. Cinco grupos compuseram esse estu- mas não foram diferentes para os dois gru-
do: aprendizagem implícita (AI), aprendi- pos não estressados. Os resultados dos
zagem implícita controle (AIC), aprendi- grupos AI, AIC e SEC foram similares, ou
zagem explícita (AE), estresse controle seja, eles exibiram uma tendência contí-
(EC) e sem estresse controle (SEC). Os in- nua de melhora no desempenho (medido
tegrantes dos grupos AI e AIC não recebe- pelo número médio de acertos da tacada
ram nenhuma instrução sobre como reali- no buraco), mesmo sob a condição
zar a tacada e tiveram que realizar uma estressante (i.e., AI). Os grupos EC e AE
tarefa secundária (dizer uma letra toda vez apresentaram um declínio no desempenho
que o metrônomo clicava) durante a fase relacionado com a situação estressante.
de aquisição. A tarefa secundária foi usa- Isso sugere que a aprendizagem implícita
da para suprimir a aquisição de conheci- é mais robusta do que a aprendizagem
mento explícito sobre a tarefa ao longo das explícita em situações estressantes. Resul-
sessões de prática. Os participantes dos tados semelhantes foram obtidos por Liao
grupos EC e SEC também não receberam e Masters (2001) durante a aprendizagem
nenhuma instrução sobre como executar da rebatida de forehand com topspin no
a tarefa, mas não realizaram a tarefa se- tênis de mesa. Dessa forma, os desempe-
cundária. O grupo AE recebeu instruções nhos pífios observados em atletas profis-
específicas sobre como desempenhar a ta- sionais sob situações estressantes podem
cada de golfe. Ao final da quinta sessão de ser explicados, pelo menos em parte, pelo
prática, os participantes foram solicitados fato de a aprendizagem das habilidades
a descrever por escrito os fatores que se motoras ter ocorrido de forma explícita.
tornaram conscientes e que foram impor-
tantes para acertar a tacada. O número de
regras explícitas relatado pelos participan-
tes foi significativamente maior para o gru-
po AE (~ 6 regras), seguido pelos grupos
EC e SEC (~ 3 regras) e por fim pelos gru- Os desempenhos pífios observados em
pos AI e AIC (< 1 regra). No quinto dia de atletas profissionais sob situações estres-
prática, os participantes dos grupos AI, AE santes podem ser explicados, pelo me-
nos em parte, pelo fato de a aprendiza-
e EC praticaram a tacada sob uma situa- gem das habilidades motoras ter ocorri-
ção estressante, enquanto os participan- do de forma explícita.
tes dos grupos AIC e SEC continuaram pra-
142 Dante De Rose Jr. e colaboradores

Sob estresse, os indivíduos focariam capazes de aprender novos fatos e even-


mais atenção no desempenho da habilida- tos aprendem habilidades perceptivo-
de, o que geraria um controle consciente motoras implicitamente (Corkin, 2002).
de cada aspecto do movimento. Como Na mesma direção, estudos envolvendo
apontado por Beilock e Carr (2001), o con- pacientes com acidente vascular encefálico
trole consciente do movimento produz (AVE) demonstraram que, dependendo da
uma piora acentuada no desempenho localização da lesão cerebral, os pacientes
motor, sendo considerado uma forma podem ou não se beneficiar do fornecimen-
ineficiente de controle. Isso é fácil de ob- to de informação explícita sobre a tarefa
servar na situação tradicional de aprendi- (Boyd; Winstein, 2001, 2003). Isso suge-
zagem de habilidades motoras, quando o re que diferentes regiões cerebrais estão
aprendiz é instruído sobre como desem- envolvidas com as aprendizagens motoras
penhar a habilidade. Nesse caso, é a apren- implícita e explícita (Thomas et al., 2004).
dizagem motora explícita que está em cur- Em resumo, a aprendizagem motora
so e, como apontado por Fitts e Posner implícita envolve a aquisição de uma ha-
(1967), durante o estágio inicial ou cog- bilidade motora sem um aumento corres-
nitivo, o aprendiz tem que “entender” co- pondente no conhecimento verbal sobre
mo realizar a tarefa. Uma característica tal habilidade. Nesse processo, as pessoas
desse estágio é o controle consciente do aprendem sem intenção e sem a capacida-
movimento, já que o aprendiz deve pen- de de articular com clareza o que elas
sar sobre como executar cada aspecto que aprenderam. A aprendizagem motora im-
compõe o movimento. Durante esse está- plícita refere-se à melhora que ocorre no
gio inicial, o aprendiz comete muitos er- desempenho motor do aprendiz como re-
ros e o desempenho é muito irregular e sultado da prática, sem consciência desse
ineficiente em relação à meta da tarefa. processo e sem conhecimento explícito
Em contrapartida, a aprendizagem motora sobre o que foi aprendido. As característi-
implícita é à “prova de estresse”, já que as cas do processo de aprendizagem motora
pessoas não estão conscientes do que es- implícita podem ser descritas como segue:
tão aprendendo. Assim, elas não têm a ca-
pacidade de controlar conscientemente os  As regras aprendidas não podem ser
movimentos aprendidos. Dessa forma, a verbalizadas, já que não estão acessí-
aprendizagem motora implícita é exata- veis à consciência;
mente o oposto do que Fitts e Posner  As pessoas aprendem sem intenção e
(1967) e Anderson (1982) argumentam sem perceber que estão aprendendo;
que ocorreria durante a aquisição de ha-  A aprendizagem implícita é muito es-
bilidades motoras, ou seja, que o estágio tável e robusta.
cognitivo é essencial.
O fato de as pessoas saudáveis apren-
derem tanto implícita quanto explicita-
mente sugere a existência de uma dissocia-
ção relacionada com a aprendizagem de
habilidades motoras. Essa dissociação não A aprendizagem motora implícita refe-
é somente de natureza comportamental, re-se à melhora que ocorre no desem-
penho motor do aprendiz como resulta-
mas reflete preferencialmente diferentes
do da prática, sem consciência desse
estruturas neurais que lidam com a apren- processo e sem conhecimento explícito
dizagem de habilidades motoras. Por sobre o que foi aprendido.
exemplo, pacientes amnésicos que são in-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 143

APRENDIZAGEM MOTORA IMPLÍCITA repetida. Esses resultados combinados su-


EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES gerem que as crianças de 6 e 10 anos de
idade podem aprender implicitamente da
Grillner e Wallén (2004) têm argu- mesma forma que adultos jovens. Um ou-
mentado que, quando nascemos, possuí- tro resultado importante desse estudo diz
mos alguns padrões básicos de coordena- respeito à retenção de longo prazo da ta-
ção previamente estruturados, e, durante refa aprendida implicitamente. Metade dos
o processo de desenvolvimento, aprende- participantes dos três grupos etários foi
mos a adaptar tais padrões básicos para submetida a uma segunda sessão de prá-
as diferentes demandas do ambiente. Ape- tica uma semana depois da primeira ses-
sar de os autores não especificarem o pro- são. A comparação entre os valores do TR
cesso pelo qual aprendemos a adaptar tais do último bloco da primeira sessão com
padrões de movimento durante o desen- os valores do primeiro bloco da segunda
volvimento motor, pode-se assumir que sessão apontou uma redução do TR da
essa aprendizagem ocorre implicitamen- sequência repetida da primeira para a se-
te, já que estudos recentes têm mostrado gunda sessão de prática. Esse resultado
que crianças e adolescentes são capazes indica a persistência da tarefa aprendida
de aprender dessa forma. Para Karmiloff- implicitamente.
-Smith (1995), o processo de desenvolvi- Thomas e Nelson (2001) analisaram
mento é caracterizado por uma fase ini- crianças de 4, 7 e 10 anos de idade na
cial, que é tipicamente fundamentada em TTRS. Os participantes praticaram cinco
procedimentos ou é de natureza implíci- blocos de tentativas, sendo o primeiro e o
ta, e, após esse período inicial, ocorreria, quarto blocos com estímulos apresentados
gradualmente, a emergência do conheci- de forma aleatória, e os outros três blocos
mento explícito ou declarativo. com a sequência repetida. Thomas e cola-
Os estudos sobre aprendizagem mo- boradores (2004) também estudaram cri-
tora implícita têm focado prioritariamente anças de 7 e 11 anos de idade e adultos
adultos jovens. Mais recentemente, porém, jovens na TTRS, intercalando sequências
alguns autores começaram a estudar os repetidas e sequências aleatórias. Os re-
efeitos relacionados à idade sobre a apren- sultados desses dois estudos mostraram
dizagem motora implícita. Um estudo pio- que o desempenho nos blocos com a se-
neiro nessa temática foi conduzido por quência repetida foi melhor do que o de-
Meulemans, van der Linden e Perruchet sempenho nos blocos com sequência alea-
(1998). Crianças de 6 e 10 anos de idade tória para todos os grupos etários estuda-
e um grupo de adultos jovens realizaram dos. A magnitude da aprendizagem implí-
a TTRS, com sequências aleatórias entre cita, entretanto, foi menor para as crian-
as tentativas com a sequência repetida. ças em comparação aos adultos (Thomas
Como observado em outros estudos, o TR et al., 2004). É interessante observar, ain-
foi menor para as tentativas com sequên- da, que as crianças demoraram mais tempo
cia repetida do que com a aleatória. De para exibir diferenças de desempenho en-
forma mais relevante, a diferença de de- tre as sequências repetidas e as aleatórias
sempenho entre as tentativas sequenciais em comparação aos adultos. Esse resulta-
e as aleatórias foi idêntica para os três gru- do sugere que as crianças precisam de um
pos etários ao final de cinco blocos de prá- tempo maior de exposição para aprender
tica. O teste de reconhecimento mostrou a mapear a sequência de estímulos.
que nenhum dos grupos etários adquiriu Vinter e Perruchet (2000) também es-
conhecimento explícito sobre a sequência tudaram a aprendizagem motora implíci-
144 Dante De Rose Jr. e colaboradores

ta em crianças de 4 e 10 anos de idade, hora do término da fase de aquisição em


mas usaram uma tarefa motora diferente crianças de 4 a 10 anos de idade. Eles ob-
que envolvia desenhar figuras geométri- servaram que, mesmo após uma hora, o
cas fechadas como círculos, quadrados, comportamento incongruente persistiu, su-
retângulos e triângulos. Eles manipularam gerindo que a aprendizagem implícita ge-
o “princípio do início da rotação” (PIR), rou uma alteração robusta no comporta-
que é uma covariação natural e não cons- mento.
ciente usada para desenhar figuras geo- Mais recentemente, Vinter e Perru-
métricas. De acordo com o PIR, a direção chet (2002) investigaram se a aprendiza-
inicial do movimento de desenhar figuras gem motora implícita ocorreria pela ob-
geométricas varia a partir da posição de servação, usando a variação do PIR. Em
início do desenho. No exemplo envolven- vez de praticarem a tarefa de desenhar, os
do o desenho de um círculo, se a posição participantes assistiram, em um monitor,
inicial está no ponto 12h00min (topo), o às figuras sendo desenhadas durante a fase
indivíduo desenha o círculo na direção de treinamento, respeitando o PIR em 80%
anti-horária, e vice-versa quando o início das tentativas (grupo congruente) ou res-
é na posição 06h00min. peitando em somente 20% das tentativas
Durante o período de prática, os par- (grupo incongruente). Na fase de teste, os
ticipantes desenharam a figura solicitada participantes foram solicitados a desenhar
a partir de um ponto inicial preestabe- as figuras a partir de uma posição inicial
lecido, enquanto uma seta indicava a di- previamente estabelecida. Os resultados da
reção do movimento. Um terço dos parti- fase de teste mostraram que, independen-
cipantes foi treinado para desenhar as fi- temente da faixa etária, os participantes
guras geométricas respeitando o PIR (seta do grupo incongruente exibiram a menor
indicando a direção do movimento de taxa de respeito ao PIR. Além disso, os
acordo com o PIR) em 80% das tentativas participantes não se tornaram conscientes
de práticas (grupo congruente); um terço da manipulação envolvida na tarefa. Os
foi treinado para desenhar as figuras não resultados desse estudo permitem concluir
respeitando o PIR em 80% das tentativas que a prática física do movimento não é
(grupo incongruente); o terço final de par- estritamente necessária para a aprendiza-
ticipantes não recebia nenhuma instrução gem motora implícita. O fato de crianças
sobre a direção em que deveriam desenhar aprenderem implicitamente por meio da
a figura, somente a posição de início era observação abre uma perspectiva interes-
fornecida. Para todas as faixas etárias, os sante de pesquisa, pois permite explorar o
participantes do grupo incongruente exi- impacto da observação sistemática do de-
biram a menor porcentagem de respeito sempenho motor de outras pessoas sobre
ao PIR na fase de teste imediato (após a seu próprio desempenho motor.
fase de aquisição). Ao serem questionados Os estudos revisados nesta seção per-
sobre a posição de início e as dicas de di- mitem concluir que a aprendizagem mo-
reção, os participantes não se lembraram tora implícita está presente e é eficiente
de nenhuma informação relevante sobre em crianças e adolescentes. Entretanto,
a manipulação da tarefa. Em outras pala-
vras, o grupo incongruente, independen-
temente da idade, modificou o PIR sem
estar consciente desse processo. A aprendizagem motora implícita está
Em um terceiro experimento, Vinter presente e é eficiente em crianças e ado-
e Perruchet (2000) analisaram a persis- lescentes.
tência da incongruência ao PIR após uma
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 145
não é possível concluir se ela é indepen-
dente da idade. Estudos adicionais são A aprendizagem por observação sem o
fornecimento de instrução verbal concor-
necessários para identificar com clareza a
rente parece ser eficiente do ponto de
razão de ausência ou presença de diferen- vista da aprendizagem motora implícita.
ça entre crianças de diferentes idades e
adultos na taxa de aquisição de habilida-
des motoras implicitamente. O estudo da
aprendizagem motora implícita dentro de
uma perspectiva desenvolvimental pode sa forma, não há a necessidade de descre-
ser um modelo interessante para melhor ver detalhadamente a habilidade motora
entender como os comportamentos moto- a ser ensinada. A aprendizagem implícita
res evoluem durante o curso de desenvol- por observação pode ajudar a explicar
vimento do indivíduo (Vinter; Perruchet, como algumas crianças apresentam um
2000). desempenho motor habilidoso sem parti-
ciparem efetivamente de um programa de
instrução. Em seu filme “Boleiros” de 1998,
IMPLICAÇÕES PRÁTICAS Ugo Giorgetti descreve uma situação bas-
RELACIONADAS COM tante típica do futebol brasileiro, em que
A APRENDIZAGEM um garoto da periferia, extremamente
MOTORA IMPLÍCITA habilidoso para sua idade, se sobressai em
um grupo de garotos da mesma idade que
Apesar de os estudos apontarem para frequentam semanalmente uma escolinha
a existência da aprendizagem motora im- de futebol de um ex-jogador de futebol.
plícita, existe uma pergunta que ainda Esse garoto não recebeu nenhum tipo de
permanece sem resposta: os profissionais instrução formal para aprender a jogar
que atuam em programas de ensino-apren- futebol. Como então ele apresenta um de-
dizagem de habilidades motoras podem sempenho tão superior em comparação
usar esse conhecimento de alguma forma? aos demais garotos que frequentam a
Se, como visto, a aprendizagem implícita escolinha periodicamente? Algumas pes-
é mais robusta e leva à manutenção do soas podem argumentar que esse garoto
desempenho em situações estressantes, possui algum tipo de talento inato ou um
qual deve ser o papel do professor duran- “dom” especial. Pode ser, mas com base
te o ensino de habilidades motoras? O pro- no que foi discutido sobre aprendizagem
fessor não deve fornecer a demonstração implícita e observação, é possível que esse
de como executar a habilidade e não deve garoto tenha aprendido implicitamente a
fornecer dicas para melhorar o desempe- desempenhar as habilidades do futebol por
nho do aprendiz? O conhecimento que te- meio da observação sistemática.
mos até o momento sobre aprendizagem Uma outra estratégia que parece au-
implícita não permite responder a todas xiliar no processo de ensino-aprendizagem
essas perguntas com segurança. Entretan- de habilidades motoras implicitamente é
to, algumas sugestões podem ser feitas e a aprendizagem por analogia, ou uso de
incorporadas na prática profissional. uma metáfora durante o fornecimento de
Como visto anteriormente, a apren- instrução para o aprendiz. Dessa forma, o
dizagem por observação sem o forneci- instrutor fornece informação relevante
mento de instrução verbal concorrente sobre a tarefa a ser aprendida, mas sem
parece ser eficiente do ponto de vista da explicitar as regras envolvidas com o de-
aprendizagem motora implícita (Masters sempenho da tarefa. Liao e Masters (2001)
et al., 2008; Vinter; Perruchet, 2002). Des- investigaram se a aprendizagem por ana-
146 Dante De Rose Jr. e colaboradores

logia invocava mecanismos de comporta- o desempenho da tarefa principal. Portan-


mento motor análogo aos processos im- to, a aprendizagem por analogia resulta
plícitos durante a aprendizagem da reba- em características de desempenho que es-
tida de forehand com topspin no tênis de tão associadas à aprendizagem motora
mesa, em adultos jovens. Todos os partici- implícita e pode ser uma estratégia eficien-
pantes receberam informação sobre o sig- te de ensino.
nificado do termo topspin e o tipo de mo-
vimento associado à bola. No primeiro
experimento desse estudo, três grupos fo-
ram testados: aprendizagem explícita, A aprendizagem por analogia resulta em
aprendizagem implícita e aprendizagem características de desempenho que es-
por analogia. O grupo de aprendizagem tão associadas à aprendizagem motora
explícita recebeu instruções sobre 12 téc- implícita e pode ser uma estratégia efi-
nicas básicas para realizar o movimento ciente de ensino.
solicitado. Os participantes do grupo im-
plícito não receberam nenhuma instrução
sobre como realizar a tarefa e ainda reali-
zaram uma tarefa secundária durante a Magill (1998) sugere que as condi-
prática da rebatida. O grupo de aprendi- ções reguladoras do ambiente deveriam
zagem por analogia foi instruído a reali- ser aprendidas implicitamente e apresen-
zar um movimento com a mão como se ta cinco recomendações para desenvolver
estivesse desenhando um triângulo retân- estratégias de instrução e condições de
gulo, sendo que a hipotenusa desse triân- prática para atingir esse propósito. As con-
gulo corresponderia ao período de conta- dições reguladoras envolvem os aspectos
to da raquete com a bola. Os resultados do ambiente que são usados para planejar
apontaram para uma melhora do desem- a ação motora, como a velocidade e a tra-
penho similar para os três grupos testados jetória da bola a ser rebatida. As três reco-
ao longo da fase de aquisição. Além disso, mendações iniciais enfatizam a necessi-
os participantes do grupo explícito adqui- dade de focar a atenção visual do apren-
riram mais regras explícitas sobre como diz para a região do ambiente onde as con-
realizar a tarefa do que os participantes dições reguladoras estão presentes, mas
dos outros dois grupos, que não diferiram sem especificar qual aspecto daquela re-
entre si. Os participantes também foram gião focar a atenção. Esse processo de des-
submetidos a um teste de transferência. coberta deve ocorrer implicitamente. As
No teste de transferência, todos os partici- outras duas recomendações referem-se à
pantes realizaram uma tarefa secundária. estruturação do ambiente de prática. O
A realização da tarefa secundária piorou desafio para o professor é criar ambientes
o desempenho somente para o grupo de de prática que estimulem a aquisição im-
aprendizagem explícita, em comparação plícita das condições reguladoras do am-
aos outros dois grupos que não diferiram biente.
entre si. Esses resultados sugerem que a A primeira recomendação enfatiza
aprendizagem por analogia é tão eficien- que o professor não deve questionar os
te quanto a aprendizagem explícita, com aprendizes sobre o que eles veem, mas sim
a vantagem de gerar menos conhecimen- sobre para onde eles olham durante a pre-
to explícito sobre a tarefa e ser mais paração e a execução do movimento. No
automatizada, permitindo a realização de caso da aprendizagem da rebatida no tê-
uma tarefa secundária sem comprometer nis de campo, o professor deve evitar ques-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 147
tões como “Como a bola foi sacada pelo motora. O ambiente de prática deve incluir
sacador?”. Em vez disso, o professor pode variações nos contextos em que os aspec-
perguntar ao aprendiz: “Onde você olhou tos reguladores ocorrem. Essa maior va-
para identificar o tipo de saque feito?”. riação permite identificar em contextos di-
Essa segunda questão dirige a atenção vi- ferentes a ocorrência das condições regu-
sual do aprendiz à área apropriada para ladoras.
extrair a informação sobre as condições re-
guladoras e evita a aquisição explícita das
condições reguladoras. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A segunda recomendação sugere o
uso de dicas verbais curtas, com frases Os estudos sobre aprendizagem mo-
concisas, o que pode facilitar o direciona- tora implícita sugerem que não existe ne-
mento da atenção visual aos aspectos re- cessidade de fornecer o conhecimento ex-
levantes do ambiente durante a realização plícito sobre os aspectos envolvidos com
de uma habilidade motora. No caso do te- a realização de uma habilidade motora. O
nista, uma dica verbal apropriada poderia professor não precisa descrever toda a
ser “raquete”. Essa dica ajuda a instruir ou habilidade em detalhes para o aprendiz,
relembrar o aprendiz para onde dirigir a mas, em vez disso, deve fornecer informa-
atenção visual. ções gerais, estruturar o ambiente de prá-
A terceira recomendação refere-se ao tica e fornecer feedback, de forma a per-
uso de feedback extrínseco após a realiza- mitir a aprendizagem implícita de algumas
ção do movimento. A recomendação é que características da habilidade. A aprendi-
a ênfase do feedback extrínseco deve ser zagem implícita parece ser mais robusta
em especificar onde o aprendiz deve focar em situações estressantes e garante um
o olhar, em vez de especificar qual aspec- maior automatismo, permitindo a realiza-
to do ambiente focar a atenção visual. ção de tarefas concorrentes com melhor
A quarta recomendação aponta para qualidade de desempenho, como na situa-
a necessidade de uma quantidade substan- ção em que o jogador deve conduzir a bola
cial de prática para garantir a aquisição e observar o posicionamento dos jogado-
das condições reguladoras da tarefa. Vale res adversários e de sua equipe para deci-
destacar aqui o estudo de Pew (1974), que dir o que fazer (i.e., passar a bola, driblar
apontou a necessidade de pelo menos seis ou chutar a gol). É importante salientar
dias de prática para identificar diferenças que novos estudos devem ser conduzidos
de desempenho entre os segmentos repe- com o intuito de validar a efetividade das
tidos e aleatórios; ou o trabalho de Thomas sugestões apresentadas neste capítulo so-
e colaboradores (2004), que apontou a ne- bre o processo de ensino-aprendizagem de
cessidade de mais prática por parte das habilidades motoras para crianças e ado-
crianças para identificar diferenças de de-
sempenho em blocos sequenciais e alea-
tórios na TTRS, em relação a adultos jo-
vens. É importante salientar, entretanto, O professor não precisa descrever toda
que a quantidade de prática requerida a habilidade em detalhes para o apren-
diz, mas, em vez disso, deve fornecer in-
poderá variar em função da complexida-
formações gerais, estruturar o ambiente
de da habilidade. de prática e fornecer feedback, de forma
A quinta e última recomendação aler- a permitir a aprendizagem implícita de
ta para as características das repetições algumas características da habilidade.
durante a aquisição de uma habilidade
148 Dante De Rose Jr. e colaboradores

lescentes. Os estudos descritos neste capí- MASTERS, R. S. W. Knowledge, knerves and know-
tulo focaram em habilidades aprendidas -how: the role of explicit versus implicit knowledge
in the breakdown of a complex motor skill under
em laboratório, no qual as condições alta- pressure. Br. J. Psychol., v. 83, p. 343-358, 1992.
mente controladas permitem uma maior MASTERS, R. S. W. et al. Implicit motor learning in
segurança em relação às conclusões obti- surgery: implications for multi-tasking. Surgery, v.
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Esporte e atividade física na infância e na adolescência 149

COORDENAÇÃO MOTORA:
DA TEORIA À PRÁTICA
10
Cynthia Y. Hiraga
Ana Maria Pellegrini

Coordenar é um termo que traz em si a COORDENAÇÃO MOTORA: DA


ideia de harmonizar, orquestrar, encaixar, UBIQUIDADE À EXCLUSIVIDADE
unir, relacionar, combinar, construir e
muitas outras que retratam o potencial do As ações humanas são motoras por
ser humano para interagir com os outros natureza, pois é por meio de seu corpo que
e com o ambiente. Sob a perspectiva do o ser humano se locomove, se comunica,
senso comum, cada um de nós, seres hu- interage com os indivíduos e com o am-
manos, somos capazes de avaliar o grau biente próximo a ele. Elemento central de
de coordenação motora em nossas ações. todo comportamento motor, a coordena-
Todavia, no que consiste essa coordena- ção permite ao ser humano dividir espa-
ção? O que podemos ou devemos fazer ços, partilhar o tempo e produzir bens e
para garantir sucesso em nossas ações valores, desenvolvendo um número imen-
motoras? so de atividades no ambiente familiar, na
Este capítulo explora inicialmente escola, no trabalho, permitindo assim ex-
aspectos gerais do movimento coordena- plorar a natureza à sua volta.
do. Descreve as formas da coordenação
motora e traz algumas considerações teó-
ricas propostas por Bernstein (1967) a res-
peito da coordenação dentro de uma vi- Elemento central de todo comportamen-
são mais contemporânea no estudo do to motor, a coordenação permite ao ser
comportamento motor. Em seguida, é dada humano dividir espaços, partilhar o tem-
ênfase ao papel das restrições sobre a coor- po e produzir bens e valores, desenvol-
vendo um número imenso de atividades
denação motora. Toda e qualquer ação no ambiente familiar, na escola, no tra-
motora que envolve a coordenação é rea- balho, permitindo assim explorar a na-
lizada em um contexto que certamente in- tureza à sua volta.
fluenciará o resultado dessa ação, bem co-
mo o processo da ação produzida pelo in-
divíduo. Em sua última parte, o capítulo
apresenta algumas formas úteis de avalia- No nível comportamental observável,
ção da coordenação motora que podem ser nossas ações se baseiam na coordenação
aplicadas tanto na educação motora quan- intramembros e entre membros (para uma
to na iniciação esportiva. revisão, ver Swinnen et al., 1994). A pri-
150 Dante De Rose Jr. e colaboradores

meira é descrita em termos da relação en- lar pode ser observada no contexto espor-
tre segmentos de um mesmo membro, tivo: um atleta de alto rendimento no vo-
como, por exemplo, a combinação de mo- leibol executa no seu treinamento diário
vimentos dos dedos da mão e da articula- algumas dezenas de serviços (i.e., saque).
ção do cotovelo e do ombro para abrir uma Qualquer uma de suas execuções certa-
gaveta. A segunda é descrita em termos mente não será exatamente igual a qual-
da relação entre dois ou mais membros, quer outra.
como, por exemplo, aplaudir uma apre- Contudo, uma observação casual dos
sentação de uma peça de teatro. Em ge- serviços executados pelo atleta de volei-
ral, como vimos, nossas ações se baseiam bol, ou mesmo da ação de levar a xícara
na combinação desses dois tipos de coor- com café até a boca, permite-nos dizer que
denação (p. ex., descascar uma laranja ou tais movimentos são muito parecidos. Se,
combinar movimentos entre membros in- por um lado, a ação motora é única, por
feriores e superiores para controlar a con- outro, a mesma ação pode ser consisten-
dução de um automóvel). te. A consistência da ação se apoia na inva-
Ainda temos a coordenação social riância topológica. Como os músculos nun-
(Schmidt; Carello; Turvey, 1990). Esse tipo ca trabalham sozinhos, mas são limitados
de coordenação motora envolve segmen- a operar coletivamente para alcançar uma
tos ou membros corporais de dois ou mais determinada meta, isso assegura consis-
indivíduos. Considere dois indivíduos an- tência na ação. Embora o ser humano não
dando lado a lado: inicialmente, seus pas- seja capaz de reproduzir as variáveis do
sos são desencontrados, mas após algum controle motor com exatidão e, portanto,
tempo eles tendem a sincronizar, isto é, a replicar uma ação realizada anteriormen-
coordenar as passadas tanto em termos te, as características espaciais e temporais
espaciais quanto temporais. Esse tipo de dos movimentos dos segmentos corporais
coordenação tende a emergir de movimen- permanecem relativamente estáveis de
tos contínuos ou repetitivos. Em várias si- uma tentativa para a seguinte. No conjun-
tuações esportivas, a coordenação entre to, as características (i.e., unicidade e con-
atletas garante o sucesso na competição. sistência) das ações motoras humanas es-
Tome como exemplo uma coreografia exe- tão associadas diretamente com o fato de
cutada por um dueto ou uma equipe de sermos ou nos tornarmos coordenados.
nado sincronizado ou, ainda, o desempe- A distinção entre coordenação e con-
nho dos atletas em uma competição de trole é muito importante para identificar
remo por equipe. os mecanismos responsáveis pelo compor-
Independentemente do tipo da coor- tamento motor. A coordenação pode ser
denação motora, toda e qualquer ação vista como uma função que agrupa vários
motora é única (Bernstein, 1967), ou seja, elementos do organismo para fazer com
não se repete no tempo e no espaço, de que o propósito seja atingido (Kelso,
modo que essa característica invalida qual- 1982). Já o controle pode ser descrito em
quer proposição de que sejamos capazes termos da magnitude absoluta do movi-
de reproduzir nos mínimos detalhes uma mento observado em um ou vários mem-
ação anteriormente realizada. Em nosso bros (i.e., o nível de força, velocidade, ace-
cotidiano, realizamos ações que são roti- leração, deslocamento observado). Uma
neiras, tal como levar uma xícara com café ação coordenada com destreza envolve
até a boca. Realizamos essa ação pratica- ambos, coordenação e controle, sendo que
mente todos os dias. Entretanto, nunca a um conjunto ótimo de valores é alcança-
trajetória do movimento será exatamente do nas variáveis a serem controladas. A
igual à do dia anterior. Situação bem simi- coordenação e o controle podem ser ma-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 151
nipulados independentemente, de modo de redundantes na escolha de uma solu-
que a meta de uma ação pode ser alcan- ção eficiente. Mais recentemente, Latash
çada alterando um ou ambos os compo- (2000) questiona tal eliminação, pois para
nentes (Kugler; Kelso; Turvey, 1980). Além esse autor não é possível eliminar essas
disso, é possível observar e medir esses possibilidades. Isso significa dizer que não
dois componentes independentemente é possível ignorar elementos predispostos
(Kelso, 1982). e inerentes ao sistema, exceto se os elemen-
tos forem retirados deste. Então, a questão
que segue é para que servem as inúmeras
COORDENAÇÃO MOTORA: possibilidades de organização permitidas ao
DA REDUNDÂNCIA À ABUNDÂNCIA sistema? O próprio autor propõe o princí-
pio da abundância no controle dos graus
Escrever sobre coordenação e não de liberdade do sistema. A ideia da abun-
mencionar algumas ideias propostas por dância é a de que todos os elementos do
Bernstein (1967) é o mesmo que não dis- sistema participam de alguma forma da
cutir sobre coordenação. Para esse cien- atividade, isto é, da solução escolhida pelo
tista, a coordenação pode ser vista como sistema (Gelfand; Latash, 2002).
um processo que desafia o sistema em con-
trolar os muitos graus de liberdade resul-
tantes da ação dos inúmeros elementos
A ideia da abundância é a de que todos
individuais, tais como ossos, articulações
os elementos do sistema participam de
e músculos. Ou seja, como o indivíduo lida alguma forma da atividade, isto é, da
com as inúmeras possibilidades que o sis- solução escolhida pelo sistema (Gelfand;
tema musculoesquelético oferece para en- Latash, 2002).
contrar uma solução única a fim de exe-
cutar a ação e atingir a meta da tarefa.
Um construto teórico bastante útil para
entender a forma como o sistema reúne A flexibilidade é uma característica
temporariamente os vários elementos (i.e., que permite uma liberdade maior, para que
músculos e articulações) para expressar o indivíduo possa atuar de formas distin-
um movimento coordenado é o da sinergia tas mesmo quando a meta da tarefa é a
ou estrutura coordenativa. Mais precisa- mesma. Em outras palavras, o sistema
mente, Turvey, Shaw e Mace (1978) defi- motor humano pode recrutar diferentes
nem estrutura coordenativa como um gru- segmentos, músculos e articulações para
po de músculos que se estende sobre as alcançar uma mesma meta (Rose; Chris-
articulações e que é restrito a atuar como tina, 2006). Essa característica, por exem-
uma unidade. plo, nos permite produzir uma escrita le-
Muitos estudos (p. ex., Kelso, 1995) gível mesmo quando controlamos um lá-
têm enfatizado que o número excessivo de pis com uma parte do corpo não conven-
possibilidades de movimento inerentes ao cional, como a mão não dominante ou os
sistema é o problema central a ser resolvi- dedos dos pés. A flexibilidade do sistema
do por ele. Ainda, esse número excessivo pode também ser observada quando algum
pode ser visto como uma redundância do segmento corporal do indivíduo está imo-
sistema, pois não seria necessário disponi- bilizado por uma fratura ou apresenta pou-
bilizar tantas possibilidades, uma vez que ca funcionalidade em decorrência de uma
somente uma solução será utilizada. Sob lesão encefálica. A forma alternativa que
esse prisma, a coordenação é vista como o sistema encontra para se locomover ou
uma forma de eliminar graus de liberda- manipular objetos se deve à capacidade
152 Dante De Rose Jr. e colaboradores

em recrutar e combinar elementos que


deem conta de executar a ação motora. A Dentro das abordagens teóricas mais
contemporâneas, a coordenação motora
flexibilidade do sistema está também as-
é vista como um sistema auto-organiza-
sociada à capacidade de adaptação do sis- do que atua a partir da interação de
tema em relação a alguma demanda, seja subsistemas, pois um subsistema isola-
ela do próprio sistema ou externa a ele. do apresentaria pouco ou quase nenhum
Esse tipo de situação é muito comum em potencial para responder pela ação como
contextos esportivos, nos quais os indiví- um todo.
duos necessitam adaptar suas respostas
motoras a qualquer alteração ou desloca-
mentos inesperados executados pelo opo-
nente. não depende exclusivamente de um con-
Muitos dos elementos abundantes do trolador em uma posição hierárquica supe-
sistema garantem a estabilidade do padrão rior (Kelso, 1995; Thelen; Smith, 1994).
motor, isto é, ficam à disposição para Além disso, a coordenação não é um even-
minimizar a variabilidade nos movimen- to que ocorre isolado de um contexto, sen-
tos. O caso clássico descrito por Bernstein do preciso levar em consideração as variá-
(1967; ver também Latash, 2000) do mo- veis essenciais que permeiam o movimen-
vimento de martelar do ferreiro é um to, tal como a influência das restrições in-
exemplo bem ilustrativo da ideia de pro- trínsecas e extrínsecas ao indivíduo.
porcionar estabilidade à trajetória do mo-
vimento. De acordo com a análise cinemá-
tica do movimento, a variabilidade da tra- COORDENAÇÃO MOTORA:
jetória da ponta do martelo em uma série DO PAPEL DAS RESTRIÇÕES
de tentativas foi menor do que a variabili-
dade da trajetória das articulações dos seg- Sobre o papel das restrições no mo-
mentos dos membros superiores. Sob o vimento, Newell (1986) acrescentou às
princípio da abundância dos graus de li- restrições do ambiente e do organismo na
berdade, as articulações não atuam in- produção de movimentos coordenados, já
dependentemente, mas estão constante- citadas anteriormente, as restrições da ta-
mente corrigindo erros ou compensando refa. Particularmente, esse trabalho publi-
a atuação de outras articulações para po- cado por Newell teve um grande impacto
der garantir estabilidade na trajetória to- no estudo da coordenação e do controle
tal e precisão, nesse caso das marteladas das ações motoras. De acordo com o mes-
pelo ferreiro. Certamente, a flexibilidade mo autor (ver também Davids; Button;
e a estabilidade no movimento têm origem Bennet, 2008), as restrições do sistema
na abundância de possibilidades dos ele- podem ser consideradas como condições
mentos individuais que o sistema motor limitantes, sendo que, no caso particular
humano permite (Bernstein, 1967). da ação, elas dão forma específica às con-
Dentro das abordagens teóricas mais figurações do movimento corporal. Isso
contemporâneas, a coordenação motora é significa dizer que a ação motora toma
vista como um sistema auto-organizado forma a partir das restrições existentes.
que atua a partir da interação de subsis- Tais restrições podem se alterar ao longo
temas, pois um subsistema isolado apre- do tempo e em diferentes escalas tem-
sentaria pouco ou quase nenhum potencial porais.
para responder pela ação como um todo. As restrições do ambiente são exter-
Se por um lado um sistema auto-organi- nas ao executante. De maneira geral, as
zado não é resultado do acaso, por outro investigações sobre o comportamento mo-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 153
tor são realizadas em laboratório ou nos ainda que diferentes restrições possam ter
ambientes em que esses comportamentos diferentes escalas temporais de influência.
ocorrem frequentemente, de modo que são Um aspecto de valor prático acerca das
consideradas normais ou neutras. Em nos- restrições diz respeito às possibilidades que
so contexto, por exemplo, os jogos de fu- o profissional da atividade física pode criar
tebol realizados em La Paz, na Bolívia, são manipulando as restrições, especialmente
explorados pela mídia, pois as condições as ambientais e as da tarefa, a fim de maxi-
ambientais afetam a performance, princi- mizar o desenvolvimento pleno das fun-
palmente em atividades de longa duração ções motoras da criança e do adolescente.
e intensidade relativamente alta.
Duas categorias de restrição da tare-
fa são descritas (Davids; Button; Bennet, Um aspecto de valor prático acerca das
2008): em um grupo estão aquelas iden- restrições diz respeito às possibilidades
tificadas como restritas às metas da tare- que o profissional da atividade física
fa; no outro grupo encontram-se aquelas pode criar manipulando as restrições, es-
para as quais existem regras que especifi- pecialmente as ambientais e as da tare-
cam a forma como a ação é executada. A fa, a fim de maximizar o desenvolvimento
pleno das funções motoras da criança e
maior parte das atividades da vida diária
do adolescente.
têm a meta restrita. Em contrapartida, para
as atividades esportivas e musicais, exis-
tem regras que limitam a ação do execu-
tante. Essas restrições encontram-se no
COORDENAÇÃO MOTORA:
conjunto de regras que cada atividade
DAS FORMAS DE AVALIAÇÃO
apresenta e que pode ser definido pelos
próprios participantes ou pelo gestor das
Tendo em vista que a coordenação é
atividades.
uma característica das ações motoras e que
De grande impacto no desenvolvi-
essas ações são executadas nos mais va-
mento da coordenação motora do indiví-
riados contextos, existe um grande núme-
duo, especialmente crianças e adolescen-
ro de testes ou procedimentos para ava-
tes, são as restrições do organismo que se
liar a coordenação. A avaliação da coor-
referem ao sistema biológico (i.e., morfoló-
denação motora permite ao profissional da
gicas, fisiológicas, entre outras). As restri-
atividade física obter informação de como
ções do organismo mais utilizadas em es-
a criança ou o adolescente combina as pos-
tudos sobre coordenação motora dizem
sibilidades dos inúmeros graus de liberda-
respeito às características físicas, como
de do sistema motor na execução das ta-
idade, altura, peso, índice de massa cor-
refas. Em geral, os testes existentes no
poral, em combinação com as proprieda-
mercado focalizam o processo ou o pro-
des dos segmentos ou o membro corpo-
duto da ação motora (Gabbard, 2008;
ral, como, por exemplo, força, potência,
Payne; Isaacs, 2007). No primeiro caso, a
entre outras capacidades (Davids; Button;
Bennet, 2008). É importante que o profis-
sional da atividade física leve em conside-
ração as restrições do organismo ao ela- A avaliação da coordenação motora per-
borar programas para diferentes faixas mite ao profissional da atividade física
obter informação de como a criança ou
etárias. o adolescente combina as possibilidades
De modo geral, todas as restrições dos inúmeros graus de liberdade do sis-
contribuem para a canalização das dinâ- tema motor na execução das tarefas.
micas do sistema em uma única direção,
154 Dante De Rose Jr. e colaboradores

preocupação central é avaliar a forma ou 2005; Haywood; Getchell, 2004; Payne;


a qualidade na execução da tarefa proposta Isaacs, 2007). Dessa forma, a criança que
no teste. Em específico, avaliam-se aspec- não desenvolver esses padrões de movi-
tos biomecânicos da ação motora, tal como mento básicos na forma madura, isto é,
a amplitude articular dos segmentos. Já não apresentar a execução da ação motora
no segundo caso, a ação motora é avalia- dentro dos parâmetros de controle e coor-
da pelo resultado da execução da tarefa denação eficientes, possivelmente não será
proposta no teste. Nesse caso, utilizam-se capaz de participar com sucesso das ativi-
medidas de tempo de execução da tarefa dades envolvendo gestos esportivos. É su-
ou número de acertos ou erros. gerido que por volta dos seis anos de ida-
Qualquer que seja o instrumento es- de a criança já tenha condições de apre-
colhido pelo profissional da atividade físi- sentar um conjunto de movimentos bási-
ca, os resultados da avaliação constituem cos executados isoladamente na forma
uma referência importante para a elabo- madura (Gallahue; Ozmun, 2005). O
ração de programas de atividade física, acompanhamento da evolução no amadu-
especialmente para crianças e adolescen- recimento dos muitos movimentos básicos
tes. Dadas as alterações biológicas a que é essencial para maximizar o potencial que
as crianças e os adolescentes estão sujei- as crianças têm de alcançar tais movimen-
tos, conhecer o nível de desenvolvimento tos na forma madura.
da coordenação motora desses indivíduos Um dos poucos testes existentes para
é uma importante referência para ajustar avaliar a qualidade de tais movimentos bá-
as atividades motoras do programa a eles. sicos de crianças entre 3 e 10 anos de ida-
Quanto à escolha do instrumento de é o Test of Gross Motor Development
para avaliar a coordenação, o profissional (TGMD-2) (Ulrich, 2000), que abrange 12
da atividade física deve levar em conside- padrões motores fundamentais básicos.
ração as necessidades motoras das crian- Dentre os movimentos locomotores, estão
ças e dos adolescentes, bem como os obje- a corrida, o galope, o saltito, o pulo, o sal-
tivos do programa da atividade física. Nes- to horizontal e o deslizamento lateral. Den-
se sentido, os instrumentos para avaliar a tre os movimentos para controlar objetos
coordenação de padrões motores funda- estão a rebatida, o drible, a recepção, o
mentais são muito úteis para orientar pro- chute, o arremesso (por cima) e o rola-
gramas de atividades físicas, especialmente mento (por baixo). Em específico, esse tes-
programas envolvendo a infância. Os pa- te permite verificar se uma criança tem al-
drões motores fundamentais constituem as gum atraso no desenvolvimento de algum
ações básicas necessárias para as práticas padrão fundamental e compará-la com ou-
esportivas, tais como correr, chutar, arre- tra criança da mesma idade.
messar, girar, driblar, rolar, entre outras Um outro exemplo de teste que está
(mais detalhes em Gallahue; Ozmun, se tornando muito popular nesses últimos
anos é o Movement Assessment Battery for
Children 2 (MABC-2) (Henderson;
Sugden; Barnett, 2007), projetado para
examinar dificuldades motoras em crian-
Quanto à escolha do instrumento para
avaliar a coordenação, o profissional da
ças e adolescentes entre 3 e 16 anos. Dife-
atividade física deve levar em conside- rentemente do TGMD-2, que avalia habi-
ração as necessidades motoras das crian- lidades motoras amplas, esse teste inclui
ças e adolescentes, bem como os obje- tarefas motoras divididas em três catego-
tivos do programa da atividade física. rias: destreza manual, pontaria e recebi-
mento e, por último, equilíbrio dinâmico
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 155
e estático. As tarefas incluídas nas três ca- atividade física, pois lidam com os aspec-
tegorias são, por exemplo, encaixar peque- tos mais básicos da coordenação motora.
nos pinos, passar pequenos cubos em uma Todavia, consideramos importante fazer
linha, desenhar um traçado entre duas li- referência à avaliação da coordenação
nhas estabelecidas, lançar um saquinho de motora proposta por Warwits (apud
feijão em um alvo, arremessar e apanhar Weineck, 1989), que envolve um nível de
a bola contra a parede, arremessar a bola complexidade maior e padrões motores
em um alvo, caminhar sobre uma linha, menos elementares, identificada como Per-
equilibrar-se em uma prancha com base curso de Coordenação Vienense (PCV).
estreita, saltitar quadrados com os dois ou Esse teste foi projetado para ser aplicado
um dos pés. Esse teste é muito popular em crianças e adolescentes com idades
entre os terapeutas ocupacionais e fisiote- entre 11 e 18 anos. A ideia central desse
rapeutas para detectar crianças e adoles- percurso é quantificar a coordenação mo-
centes com extrema dificuldade motora ou tora por meio da velocidade com que o
indivíduos com transtorno do desenvolvi- indivíduo executa todas as tarefas, isto é,
mento da coordenação (TDC). o percurso (Figura 10.1).
Os dois exemplos de testes citados Nove tarefas em sequência especifi-
são bastante úteis para o profissional da cada compõem o percurso do teste, sendo

Saída Chegada
1,80 m 9. Passagem
pelos obstáculos
1,40 m
1. Cambalhota para trás
altura
2m

0,50 m 8. Saltitar em
2. Cambalhota para a frente 6m torno do quadrado

2m
9 10

o
3. Rotação de 360
7 8
5 6
1m
3 4 7. Saltos cruzados
1 2

3m 0,40 m
4. Equilíbrio
1m
2m

5. Corrida em “oito”
(0,75 m de altura) 1m
2m 6. Deslocamento com
bola em zigue-zague

Bola 2 kg

Percurso do indivíduo
2m 2m

Figura 10.1 Percurso de Coordenação Vienense.


Fonte: Adaptada de Weineck (1989).
156 Dante De Rose Jr. e colaboradores

elas: cambalhota para trás, cambalhota dificuldades, e, sem um instrumento de


para a frente, rotação de 360º em torno avaliação, não serão identificadas e não
do eixo corporal vertical, deslocamento terão provavelmente oportunidade para
sobre um banco sueco invertido, corrida aperfeiçoar, recuperar ou reeducar a coor-
em oito em torno de dois mastros, deslo- denação motora de forma adequada. A
camento conduzindo uma bola com os pés tendência é que essas crianças com algu-
ou com as mãos (em ziguezague) em tor- ma ou extrema dificuldade motora se afas-
no de cinco cones dispostos em fila, com- tem cada vez mais da prática de ativida-
binação de saltos cruzados em marcas des físicas por se julgarem incapazes de
estabelecidas no chão, saltitos no entorno realizar as tarefas motoras propostas nes-
das partes de um quadrado desenhado no sas práticas. Por outro lado, temos um bom
chão e, por último, passagem em um apa- número de pré-adolescentes e adolescen-
relho similar ao de uma barra assimétrica, tes que não se sentem motivados para
por baixo da mais baixa (1,40 m) e por engajar-se às práticas esportivas. Muitas
cima da mais alta (1,80 m). vezes, essa falta de motivação é conse-
Esse teste envolve muitos componen- quência da falta de requisitos motores su-
tes implícitos na prática de modalidades ficientes para praticá-las.
esportivas. Ainda que não exista evidên- De alguma forma, exercitar ações
cia de que esse teste capture aptidões mo- motoras que envolvam níveis de dificul-
toras para determinado esporte de rendi- dade cada vez mais elevados, bem como
mento, ele pode ser utilizado como uma ações motoras com estruturas espaciais e
referência para examinar o desempenho temporais cada vez mais complexas, é re-
de pré-adolescentes e adolescentes com quisito básico para o aperfeiçoamento des-
potencial para o esporte competitivo. En- ses indivíduos em franco desenvolvimen-
tretanto, um aspecto importante é que, to biológico e motor. Dessa forma, o em-
além de impor um certo desafio aos pré- prego de um instrumento de avaliação é
-adolescentes e adolescentes, esse percur- essencial para que o profissional da ativi-
so consiste em tarefas bastante estimulan- dade física possa ajustar o nível dos desa-
tes e motivadoras. Nesse contexto, o pro- fios motores às crianças e adolescentes,
fissional da atividade física pode e deve pois eles não são e não devem ser consi-
estimular os(as) garotos(as) a buscarem derados adultos em miniatura.
o aperfeiçoamento de seus desempenhos
nas ações motoras. Embora o tempo seja
a única medida do teste, o professor ou CONSIDERAÇÕES FINAIS
instrutor pode alternativamente observar
em quais tarefas do percurso os(as) garo- Sendo a coordenação uma forma de
tos(as) apresentam dificuldades e, a par- lidar ou condensar as muitas possibilida-
tir daí, elaborar uma proposta para me- des que o sistema motor permite, então a
lhorar o aproveitamento da coordenação estratégia para promover êxito nas tare-
nas ações esportivas (um programa que fas motoras é criar ou possibilitar oportu-
tenha por finalidade a melhoria de coor- nidades para crianças e adolescentes pra-
denação motora nas ações esportivas). ticarem as inúmeras possibilidades de seu
É altamente recomendável que o pro- sistema motor, ou seja, explorar a ampla
fissional da atividade física adote algum liberdade que o sistema motor dispõe,
instrumento de avaliação do desempenho tendo em vista as restrições do organis-
motor. Por um lado, temos as crianças com mo, a fim de unir e reunir os diversos sub-
alguma ou extrema dificuldade motora no componentes do sistema para responder
meio das muitas que não apresentam tais às restrições do ambiente e da tarefa (p.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 157
ex., desafio motor proposto pelo profes- KUGLER, P. N.; KELSO, J. A. S.; TURVEY, M. T. On
sor ou instrutor). Esse exercício de unir e the concept of coordinative structures as dissipative
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ASPECTOS FISIOLÓGICOS
DO CRESCIMENTO E DO
DESENVOLVIMENTO: INFLUÊNCIA
11
DO EXERCÍCIO FÍSICO
Cláudia Lúcia de Moraes Forjaz
Antonio Prista
Crivaldo Gomes Cardoso Jr.

Ao longo da vida, as funções orgânicas vão MATURAÇÃO


se modificando, o que afeta o desempe-
nho motor e esportivo. Alterações expres- Conceito
sivas são principalmente observadas na pu-
berdade, fazendo com que as respostas fi- Maturação refere-se às sucessivas al-
siológicas aos exercícios sejam diferentes terações estruturais e funcionais que ocor-
antes e após essa fase da vida. Contudo, a rem nos diferentes tecidos e orgãos do
prática regular de exercícios físicos, ou corpo até se atingir um estágio ou forma
seja, o treinamento físico ou esportivo, final, adulta ou madura. Trata-se de uma
também pode influenciar os processos de definição conceitual, visto que, de fato, a
crescimento e desenvolvimento, favore- maturação não é diretamente mensurável.
cendo-os ou prejudicando-os. Essa influ- Contudo, no domínio do esporte e da ati-
ência pode ter resultados distintos em di- vidade física em crianças e adolescentes,
ferentes fases da vida. a observação e a avaliação da maturação
Dessa forma, para se elaborar progra- é muito importante, pois os estágios
mas de exercícios/treinamentos físicos que maturacionais podem diferir da idade cro-
propiciem um desenvolvimento ótimo das nológica, o que tem implicações importan-
funções orgânicas nas diversas faixas etá- tes para a intervenção na atividade física.
rias, é necessário conhecer os efeitos do Essa avaliação é particularmente decisiva
processo maturacional e dos exercícios nas fases pré e durante a puberdade, pois
sobre essas funções. Este capítulo discuti- crianças de mesma idade podem estar em
rá esses efeitos, enfatizando os aspectos estágios maturacionais muito distintos.
ligados à maturação, à composição corpo- Controlado pelos genes e regulado
ral e às vias metabólicas, relacionando-os pelos hormônios, cada indivíduo possui
às modificações observadas no desempe- um relógio biológico, que controla o pro-
nho motor. cesso de evolução de cada órgão e sistema
160 Dante De Rose Jr. e colaboradores

a classificação é feita em cinco estágios a


Crianças de mesma idade podem estar em partir de fotografias padronizadas, sendo
estágios maturacionais muito distintos.
que as escalas de Tanner, da Inglaterra, e
de van Wieringen, da Holanda, são as mais
conhecidas. Existem ainda outros métodos
menos sensíveis, que são utilizados quan-
em direção ao seu estado adulto. Esse re- do os anteriores não são possíveis, como
lógio controla o processo maturacional as pilosidades axilar e facial e a alteração
com diferentes timing (momentos na vida) da voz, sendo estes dois últimos aplicáveis
e “tempo” (duração de eventos) de um in- aos meninos.
divíduo para outro, determinando uma A avaliação somática exige uma abor-
grande variabilidade no tamanho do cor- dagem longitudinal, o que a torna muito
po, nas funções fisiológicas e, até mesmo, pouco prática. O pico de velocidade de
no comportamento social entre os indiví- crescimento em altura (PVA) e a porcen-
duos, o que torna a avaliação da maturação tagem da estatura adulta são os dois indi-
ainda mais importante. cadores utilizados.
É importante destacar que, com ex-
ceção da maturação dentária, os diferen-
Métodos de tes indicadores maturacionais apresentam
avaliação da maturação boa correlação entre si, o que indica que,
embora a maturação não se processe exa-
Os métodos mais utilizados para ava- tamente no mesmo tempo e timing entre
liar a maturação são a avaliação da ma- os diferentes sistemas, os estágios e sua
turação esquelética, sexual e somática. A progressão são bastante similares.
avaliação da maturação dentária constitui
outro método, mas é menos utilizada.
Dentre esses métodos, a avaliação da Associação da maturação
maturação esquelética é, provavelmente, com o desempenho motor
a mais robusta e a única que consegue
abranger todo o período de crescimento. Os fatores que afetam o desempenho
O esqueleto é um excelente indicador do motor são múltiplos e complexos. A ma-
estado de maturação, devido ao conheci- turação é apenas um deles, de modo que
mento preciso de processos e etapas do o estudo de seu efeito deve levar em con-
crescimento e desenvolvimento ósseos. ta a influência de todos os outros fatores.
Essa avaliação pode ser realizada por raio Entretanto, os estudos nessa área demons-
X, normalmente utilizando os ossos do tram que a maturação, embora não expli-
carpo e da mão. Existem vários métodos que, nem de perto, toda a variabilidade
para essa análise, sendo os mais comuns de resultados, exerce um efeito conside-
os de Greulich-Pyle, Tanner-Whitehouse rável na evolução do rendimento motor.
(TW2 e TW3) e Fels. Isso quer dizer que, em crianças e jovens,
A avaliação da maturação sexual ba- as decisões metodológicas para a organi-
seia-se no desenvolvimento das caracterís- zação da prática motora devem conside-
ticas sexuais secundárias. Nas meninas, rar, além da idade cronológica e do gêne-
avalia-se o desenvolvimento da mama, da ro, o estágio maturacional em que o indi-
pilosidade púbica e/ou a idade da menar- víduo se encontra.
ca. Nos meninos, avalia-se o desenvolvi- Em geral, crianças entre 10 e 15 anos
mento da genitália ou da pilosidade pú- de idade cronológica (IC) podem apresen-
bica. Com exceção da idade da menarca, tar variação de aproximadamente dois
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 161
anos na idade biológica (IB). Assim, uma sunto e concluiu que os atletas masculi-
das técnicas para avaliar o efeito do está- nos de várias modalidades costumam apre-
gio maturacional no desempenho motor sentar maturação precoce ou normal, en-
consiste na comparação dos resultados em quanto as atletas apresentam, normalmen-
testes de aptidão física entre crianças e te, a maturação na média ou atrasada em
jovens, de acordo com a diferença da IB e relação à população geral. No entanto,
da IC. Nesses estudos, são normalmente quando existe precocidade ou atraso na
criadas três classificações: maturacional- maturação, as diferenças geralmente po-
mente atrasados (se IB < 1 ano que a IC), dem ser explicadas pelas características
na média (se IB ± 1 ano da IC) e avança- genéticas dos atletas, visto que seus fami-
dos (se IB > 1 ano que a IC). As investiga- liares também apresentam maturação pre-
ções que utilizam essa estratégia apresen- coce ou atrasada, respectivamente. Dessa
tam resultados não lineares e complexos. forma, o mais provável é que os indivíduos
Porém, removendo-se o efeito do tamanho que têm características genéticas que pre-
corporal, que é considerável, os estudos dispõem a maturação precoce ou tardia
têm observado que a variabilidade no de- tenham mais sucesso em determinados es-
sempenho é parcialmente explicada pelo portes (pré-seleção). Entretanto, nessa dis-
estágio de maturação. O desempenho na cussão, as ginastas e as bailarinas mere-
puberdade apresenta, à semelhança do que cem um lugar de destaque, pois ambas
acontece no crescimento, um estirão. Con- possuem, consistentemente, maturação
tudo, o tempo desse estirão varia entre as tardia, o que tem sido atribuído às altas
diferentes capacidades motoras e não coin- cargas de treinamento impostas a essas
cide exatamente com o estirão de cresci- atletas em idades muito precoces. Assim,
mento em estatura. a influência da pré-seleção, da subnutrição
e da sobrecarga emocional, comumente
envolvidas nessas atividades, não pode ser
negligenciada.
A variabilidade no desempenho é par- Dessa forma, o treinamento físico
cialmente explicada pelo estágio de ma- adequado não apresenta qualquer influên-
turação. cia no processo maturacional do indivíduo.
Entretanto, condições extremas de treina-
mento, acompanhadas de outros fatores
negativos, muitas vezes presentes no es-
porte de alto rendimento, como subnu-
Influência do trição e sobrecarga emocional, podem atra-
exercício na maturação sar a maturação.

Se, por um lado, o estágio matura-


cional influencia o desempenho motor, por
outro, a prática de exercícios/atividades O treinamento físico adequado não apre-
físicas pode afetar o processo maturacio- senta qualquer influência no processo
nal. De fato, tem sido sugerido que a ativi- maturacional do indivíduo. Entretanto,
dade física pode atrasar ou adiantar a condições extremas de treinamento,
acompanhadas de outros fatores nega-
maturação. No entanto, os dados nesse tivos, muitas vezes presentes no esporte
sentido resultam de estudos que compa- de alto rendimento, como subnutrição e
raram atletas e não atletas. Robert Malina sobrecarga emocional, podem atrasar a
(pesquisador da Michigan State Universi- maturação.
ty) fez uma análise detalhada sobre o as-
162 Dante De Rose Jr. e colaboradores

COMPOSIÇÃO CORPORAL baixas têm mais chances de sucesso em


modalidades como a ginástica. Por esse
Tecido ósseo motivo, acredita-se que a estatura define
o esporte, e não o contrário.
O crescimento em estatura de um Cabe enfatizar, no entanto, que a ati-
indivíduo reflete o crescimento longitudi- vidade física excessiva pode prejudicar o
nal de seus ossos. Esse crescimento ocorre crescimento em estatura. Estudos em
a partir da formação de cartilagem nos animais têm evidenciado déficit de cresci-
discos epifisários e de sua calcificação sub- mento associado ao exercício excessivo.
sequente. Ele é rápido, porém entra em Em humanos, estudos de casos também
desaceleração durante os primeiros dois comprovam esse prejuízo. Assim, retor-
anos de vida pós-natal; continua lento e nando ao caso das ginastas, embora na
praticamente constante durante a infân- maior parte das vezes a estatura inferior
cia; e demonstra uma clara aceleração dessas atletas possa ser explicada pela pré-
durante a puberdade, caracterizando o -seleção esportiva, é preciso lembrar que
estirão de crescimento pubertário. Em se- alguns aspectos comumente vistos em seu
guida, esse crescimento cessa com o fecha- ambiente de treinamento (altas cargas em
mento (calcificação total) das cartilagens idades precoces, busca de uma estética
ósseas. magra com estado de subnutrição relati-
Os efeitos da atividade física sobre a va, estresse competitivo precoce e uso de
estatura precisam ser avaliados com cui- ergogênicos) podem, realmente, prejudi-
dado. Em geral, sabe-se que um grau ade- car o crescimento em estatura. De fato, a
quado de atividade física é essencial para associação desses fatores em qualquer si-
o crescimento normal do osso. Assim, a tuação esportiva prejudica o crescimento
ausência de atividade física (sedentarismo da criança e, portanto, deve ser evitada.
extremo) pode prejudicar a estatura final. Outro fator importante em relação ao
Por outro lado, a prática regular e adequa- esqueleto é o crescimento transversal do
da parece fazer com que o crescimento siga osso. A força de um osso para suportar
o padrão estabelecido geneticamente. cargas sem fraturas é determinada pelo
Já em relação à prática mais sistemá- conteúdo e pela distribuição de minerais
tica, como nos esportes, pode-se pensar no osso, ou seja, pela densidade mineral
que ela seja capaz de promover um cresci- óssea (DMO). Essa densidade aumenta
mento aumentado, pois a maior parte dos principalmente durante a infância e puber-
atletas, principalmente de basquete, vôlei dade, atingindo cerca de 70% do máximo
e natação, apresentam estatura maior que observado no adulto. Assim, o bom desen-
a média populacional. Porém, é preciso volvimento nessa fase é fundamental para
lembrar que atletas de outras modalida- reduzir o impacto da perda óssea na ve-
des, como futebol e corrida, apresentam lhice, diminuindo a chance de aparecimen-
estatura igual à da população não atleta, to da osteoporose.
e as ginastas comumente apresentam es- Apesar de grande parte da DMO ser
tatura inferior à da população. Assim, a determinada geneticamente, a sobrecarga
diferença de estatura entre atletas e não mecânica imposta pela atividade física tem
atletas não se deve ao efeito específico do um papel importante no aumento dessa
treinamento físico, mas sim à pré-seleção densidade em crianças e adolescentes. Há
esportiva, ou seja, pessoas altas têm bom muitas evidências de que crianças ativas
desempenho em modalidades como bas- apresentam DMO maior que as inativas,
quete, vôlei e natação, enquanto pessoas porém o impacto da atividade parece ser
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 163
distinto em diferentes sítios ósseos, em puberdade, porém, o depósito de gordura
diferentes idades e em diferentes subpopu- volta a aumentar, sobretudo na região do
lações, sendo os maiores efeitos obtidos quadril, por estímulo do estrogênio.
com atividades de impacto e que impõem Nos meninos, durante o estirão, a
aos ossos sobrecargas mecânicas em sen- velocidade de depósito de gordura, além
tidos não usuais. Além disso, o maior efeito de diminuir, fica negativa, de modo que o
é visto em crianças com grande aporte organismo do menino retira a gordura que
nutricional de cálcio. estava acumulada no tecido adiposo. As-
É importante salientar, no entanto, sim, nos homens, a quantidade absoluta e
que a atividade física pode também ter a porcentagem de gordura diminuem ex-
efeito deletério sobre a secção transversal pressivamente na puberdade e voltam a
do osso. Atividades muito vigorosas podem aumentar no final dessa fase. Dessa for-
reduzir a DMO, e a sobrecarga mecânica ma, durante toda a puberdade, os homens
unilateral pode levar a deformações ós- e mulheres ganham massa gorda em ter-
seas. mos absolutos, mas esse ganho se reflete
Assim, a atividade física regular e no aumento da porcentagem de gordura
adequada promove o crescimento saudá- corporal nas mulheres e na redução dessa
vel do esqueleto, fazendo com que ele siga porcentagem nos homens.
seu curso genético de aumento longitudi- O treinamento físico é capaz de au-
nal e transversal. Em contrapartida, a au- xiliar a perda de peso e diminuir a por-
sência ou o excesso de atividades físicas centagem de gordura corporal tanto an-
pode prejudicar o crescimento em estatu- tes quanto durante a puberdade, reduzin-
ra e promover deformações ósseas. do inclusive o ganho no final da puberda-
de feminina. Assim, atletas apresentam
menor porcentagem de gordura que não-
atletas em qualquer idade.
A atividade física regular e adequada Resumindo, ao longo da puberdade,
promove o crescimento saudável do es-
queleto, fazendo com que ele siga seu
os meninos diminuem sua porcentagem de
curso genético de aumento longitudinal gordura, e as meninas aumentam. O trei-
e transversal. Já a ausência ou o exces- namento físico auxilia na perda de gordura
so de atividades físicas pode prejudicar em qualquer fase da vida e evita o ganho
o crescimento em estatura e promover excessivo no final da puberdade feminina.
deformações ósseas.

Ao longo da puberdade, os meninos di-


minuem sua porcentagem de gordura, e
Tecido gorduroso as meninas aumentam. O treinamento fí-
sico auxilia na perda de gordura em qual-
Em geral, as meninas apresentam quer fase da vida e evita o ganho exces-
sivo no final da puberdade feminina.
porcentagem de gordura corporal maior
que os meninos desde a infância. Nelas, a
velocidade de depósito de gordura no te-
cido adiposo diminui durante o período do Tecido muscular
estirão pubertário. Assim, nessa fase, ape-
sar do conteúdo total de gordura continuar A massa muscular aumenta lenta-
aumentando lentamente, a porcentagem mente durante a infância e apresenta um
de gordura corporal diminui. No final da aumento mais significativo na puberdade.
164 Dante De Rose Jr. e colaboradores

Esse aumento segue o mesmo curso do Quanto à força e à resistência, os da-


estirão de crescimento em estatura nos dos iniciais sugeriram que o treinamento
meninos e inicia-se no PVA nas meninas. resistido não era efetivo antes da puber-
O aumento da massa muscular durante a dade. No entanto, uma metanálise recente
puberdade é maior nos meninos do que concluiu que esse treinamento resulta em
nas meninas, o que se relaciona ao maior aumentos significativos da força muscular
nível de hormônios andrógenos nos ho- em pré-púberes e indivíduos no início da
mens. puberdade, os quais são perdidos com o
A secção transversal do músculo destreino. Porém, o aumento da força na
(quanto maior, maior a força) e alguns pré-puberdade ocorre, principalmente, por
mecanismos neurais (padrão de recruta- uma adaptação dos mecanismos neurais,
mento das unidades motoras, frequência mas sem aumento da massa muscular pela
de disparo das unidades, integração de falta de testosterona. Já durante e após a
ativação e coordenação entre músculos puberdade, esse aumento ocorre por me-
agonistas e antagonistas) determinam a lhora nos mecanismos neurais e também
força muscular. Assim, essa força também por hipertrofia muscular.
aumenta durante a puberdade. Nos meni- Quanto à efetividade do treinamen-
nos, há um aumento linear até o início da to resistido em outros parâmetros, embo-
puberdade e um aumento rápido durante ra haja algumas evidências de efeito posi-
essa fase. Nas meninas, a força continua tivo, não é possível nenhuma posição de-
aumentando de forma linear mesmo du- finitiva. Alguns estudos verificaram au-
rante a puberdade. Cabe ressaltar que o mento da velocidade e da potência, mas
aumento de força nas meninas se deve, obtiveram diminuição da flexibilidade.
principalmente, ao aumento da secção Além disso, o efeito positivo sobre o de-
transversal do músculo, enquanto, nos me- sempenho de habilidades esportivas ain-
ninos, observam-se maior aumento da da não foi demonstrado. De forma seme-
secção transversal do músculo e aumento lhante, os efeitos sobre parâmetros de saú-
da coordenação neural. É importante ob- de foram pouco estudados, com exceção
servar que o pico de aumento de força, da ausência de efeito negativo sobre o cres-
tanto nos meninos quanto nas meninas, cimento e a maturação.
varia de uma musculatura para outra e Quanto ao risco de lesões, um levan-
ocorre, na maioria das vezes, após o PVA. tamento americano em prontos-socorros
O treinamento mais efetivo para au- observou 79 lesões/ano relacionadas a
mentar a força e a resistência musculares equipamentos de musculação em crianças
é o treinamento com pesos ou resistido. de 6 a 11 anos. Nos estudos científicos, os
No entanto, o emprego desse treinamento índices de lesões foram baixos (0,053 a
em crianças e adolescentes foi por muito 0,176 por 100 participantes/hora) e seme-
tempo contraindicado por dois motivos: lhantes ou mesmo menores que os obti-
acreditava-se que ele não era efetivo e que dos em outros esportes. No entanto, a
podia levar a riscos. Quanto à efetividade, maioria dos estudos foi conduzida por pe-
é necessário verificar se esse tipo de treina- ríodos curtos (8 a 12 semanas). Assim, a
mento promove na população pediátrica: real taxa de lesões não é conhecida.
Atualmente, acredita-se que o treina-
a) aumento de força e resistência muscu- mento resistido seja seguro e efetivo para
lares; aumentar a força e a resistência muscula-
b) melhora do desempenho motor e es- res em crianças e adolescentes, porém seu
portivo; e uso precisa ser ponderado em relação à
c) benefícios à saúde. necessidade em cada caso. Para a sua efi-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 165
cácia e segurança, a Academia Americana técnica correta. Entretanto, apesar de efi-
de Pediatria recomenda: caz e seguro, o treinamento resistido nem
sempre é necessário ou apropriado para
a) que seja feita uma avaliação médica determinada criança ou adolescente.
prévia;
b) que crianças com doenças cardíacas
não façam; VIAS METABÓLICAS
c) que o treinamento seja sempre super-
visionado com alta relação professor/ Demanda metabólica do exercício
alunos;
A realização de atividades físicas au-
d) que o treinamento tenha baixa carga e
menta a demanda energética do organis-
volume e incrementos progressivos;
mo. Durante o exercício vigoroso, por
e) que o treinamento seja interrompido a
exemplo, a produção de energia pode ser
qualquer sinal de dor ou lesão; e
mais de cem vezes maior do que aquela
f) que o treinamento seja complementado
verificada em repouso. Diversas vias me-
com outras condutas de saúde.
tabólicas contribuem para esse aumento,
porém a contribuição relativa de cada uma
Dessa forma, durante a puberdade, a
difere em relação às características do
massa muscular e a força aumentam em
exercício (tipo, intensidade e duração) e
meninos e meninas. O treinamento resisti-
à aptidão do praticante. Além disso, dife-
do aumenta a força antes e no início da
rem também pelo grau de maturidade do
puberdade pelo aumento da coordenação
executante, sendo, portanto, diferentes em
neural e durante e após a puberdade pelo
crianças e adolescentes quando compara-
aumento da hipertrofia. A efetividade des-
dos aos adultos.
se treinamento sobre outros parâmetros de
aptidão física e desempenho ainda precisa
ser mais estudada. Os riscos em crianças e Vias energéticas
adolescentes parecem ser baixos, desde que
a prática seja supervisionada e feita com Durante atividades vigorosas de cur-
tíssima duração (< 10 s), a via utilizada
para a produção de energia é a anaeróbia
alática. Em atividades vigorosas mais pro-
Durante a puberdade, a massa muscu-
longadas (10 s a 2 min), a via anaeróbia
lar e a força aumentam em meninos e
meninas. O treinamento resistido au-
lática (glicólise) passa a ser predominan-
menta a força antes e no início da pu- te; e quando o exercício é realizado em
berdade pelo aumento da coordenação intensidade leve a moderada e por um pro-
neural, e durante e após a puberdade longado período de tempo (> 3 min), a
pelo aumento da hipertrofia. A efetivi- via predominante é a aeróbia.
dade desse treinamento sobre outros Para se discutir o desempenho de
parâmetros de aptidão física e desem- crianças e adolescentes em diferentes ti-
penho ainda precisa ser mais estudada.
pos de atividades físicas que utilizam, pre-
Os riscos em crianças e adolescentes
parecem ser baixos, desde que a prática
dominantemente, cada uma dessas vias, é
seja supervisionada e feita com técnica importante avaliar o que ocorre com eles
correta. Entretanto, apesar de eficaz e ao longo do processo de crescimento e de
seguro, o treinamento resistido nem sem- desenvolvimento. Entretanto, devido às
pre é necessário ou apropriado para de- dificuldades metodológicas, poucos dados
terminada criança ou adolescente. existem sobre esse assunto em crianças,
sobretudo abaixo dos 8 anos.
166 Dante De Rose Jr. e colaboradores

Via anaeróbia alática os estoques de glicose, gorduras ou mes-


(sistema ATP-CP) mo proteínas. Assim, o armazenamento
desses macronutrientes influencia a capa-
Nas atividades vigorosas e curtas, cidade de transferência de energia.
como no caso de uma corrida de 50 m ou O conteúdo de glicogênio muscular
uma brincadeira de pega-pega, há neces- (forma de armazenamento da glicose no
sidade de um fornecimento rápido e ime- músculo) está reduzido no pré-púbere em
diato de energia. Assim, essa energia é pro- comparação ao pós-púbere. Além disso, a
duzida quase exclusivamente pelos fos- atividade das enzimas que atuam na de-
fatos de alta energia encontrados nas mo- gradação da glicose e na depuração do lac-
léculas de ATP (trifosfato de adenosina) tato está diminuída antes da puberdade.
e CP (creatina fosfato). Conjuntamente, essa imaturidade do meta-
Se imaginarmos um adulto de 70 kg bolismo anaeróbio faz com que as crianças
com uma massa muscular de 30 kg, seu tenham menor capacidade de gerar ener-
conteúdo de fosfatos de alta energia esta- gia pela via anaeróbia lática e de utilizar o
rá entre 570 e 690 mmol. Comparando-se lactato para a ressíntese de energia.
esse adulto com uma criança, pode-se ima- Assim, crianças pré-púberes têm me-
ginar que a capacidade de transferência nor capacidade de realizar atividades vi-
de energia por essa via seja maior no adul- gorosas com durações intermediárias e
to. De fato, em termos absolutos, o adulto longas e, quando as fazem, precisam de
tem uma maior quantidade de ATP e CP. um tempo maior de descanso para se re-
Porém, em termos relativos, ou seja, cor- cuperar. Desse modo, esse tipo de estímu-
rigindo-se o conteúdo total de fosfatos de lo deve ser introduzido apenas após o fi-
alta energia pelo peso muscular (mmol/ nal da segunda infância, e sua utilização
kg de músculo), é possível verificar que deve ser feita respeitando-se as limitações
ambos têm a mesma capacidade. Isso sig- do pré-púbere.
nifica que a capacidade de realizar ativi-
dades vigorosas e curtas é bem desenvol-
vida na criança, sendo esse tipo de ativi-
dade adequado nessa fase da vida. De fato,
Crianças pré-púberes têm menor capa-
esse é o tipo de atividade que predomina
cidade de realizar atividades vigorosas
nas brincadeiras infantis. com durações intermediárias e longas e,
quando as fazem, precisam de um tem-
po maior de descanso para se recuperar.

A capacidade de realizar atividades vi-


gorosas e curtas é bem desenvolvida na
criança, sendo esse tipo de atividade
adequado nessa fase da vida. Via aeróbia

A capacidade máxima do organismo


de captar, transportar e utilizar o oxigênio
Via anaeróbia lática para a produção de energia pode ser avalia-
da pelo consumo máximo de oxigênio
Quando o esforço físico se prolonga (VO2máx), que determina a capacidade
por um tempo maior, há necessidade de motora conhecida como potência aeróbia.
se gerar energia adicional para ressinte- A medição do VO2máx é comumente rea-
tizar o ATP. Para tanto, é necessário usar lizada por um teste ergoespirométrico (Fi-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 167
gura 11.1), no qual a pessoa realiza um vo não difere entre meninos pré-púberes
exercício de intensidade progressiva até a e homens adultos.
exaustão física, enquanto a quantidade de Por outro lado, nas meninas, o
oxigênio inspirada e expirada é medida. VO2máx absoluto se mantém ou aumenta
O VO2máx é atingido quando o con- um pouco na puberdade, sendo esse au-
sumo de O2 não aumentar mais, apesar do mento inferior ao observado nos meninos.
aumento da intensidade. Cabe ressaltar Com relação ao VO 2máx expresso em
que, em crianças, dificilmente ocorre um mL.kg-1.min-1 das meninas, ele parece di-
platô real de VO2, mas tem sido visto que minuir ou se manter na puberdade. O pico
as crianças que atingem o platô apresen- de aumento do VO2máx na puberdade da
tam valores semelhantes àquelas que não menina também ocorre próximo ao PVA,
o atingem, de modo que o VO2pico (valor mas sua coincidência com esse pico é me-
mais alto obtido no teste) pode ser consi- nos evidente que nos meninos. Assim, após
derado um bom parâmetro da potência a puberdade, os meninos apresentam
aeróbia em pré-púberes e púberes. VO2máx absoluto e relativo maiores que
O comportamento do VO2máx ao lon- as meninas.
go das idades tem sido bastante estudado. Como o VO2máx absoluto reflete,
Antes da puberdade, o VO2máx aumenta basicamente, a capacidade de gerar tra-
linear e lentamente em meninas e me- balho pela via aeróbia, é possível dizer que
ninos, sendo seu valor semelhante entre essa capacidade aumenta na puberdade
os sexos ou um pouco maior nos meninos. em ambos os sexos, mas principalmente
Embora existam algumas controvérsias, o nos meninos. Por outro lado, o VO2máx
VO2máx dos meninos aumenta na pu- relativo reflete mais diretamente a via
berdade quando avaliado em termos ab- metabólica propriamente dita, ou seja,
solutos (L/min) e se mantém constante quanto de energia cada quilograma de
quando avaliado em termos relativos músculo é capaz de produzir pela via
(mL.kg-1.min-1). Esse aumento parece co- oxidativa. Assim, a queda ou a manuten-
incidir com o PVA. Dessa forma, apesar de ção do VO2máx na puberdade reflete a re-
os meninos pré-púberes possuírem um dução dessa via metabólica. Dessa forma,
VO2máx absoluto menor, o VO2máx relati- pode-se dizer que as crianças têm potên-
cia aeróbia igual ou maior que os adultos,
de modo que atividades moderadas e pro-
longadas podem ser estimuladas em todas
as fases da vida e devem ser, predominan-
temente, trabalhadas na puberdade, para
tentar aumentar ou impedir a redução do
VO2máx relativo.

As crianças têm potência aeróbia igual


ou maior que os adultos, de modo que
atividades moderadas e prolongadas po-
dem ser estimuladas em todas as fases
da vida e devem ser, predominantemen-
te, trabalhadas na puberdade, para ten-
tar aumentar ou impedir a redução do
VO2máx relativo.
Figura 11.1 Teste ergoespirométrico.
168 Dante De Rose Jr. e colaboradores

O efeito do treinamento físico sobre


a potência aeróbia nas diferentes fases da Como a criança tem menor estoque de
glicogênio e redução na atividade das
vida ainda é controverso. Estudos popula-
enzimas da beta-oxidação, sua resistên-
cionais não têm verificado relação entre o cia aeróbia é menor que a do adulto, mas
nível da atividade física e o VO2máx de aumenta na puberdade. O treinamento
crianças e adolescentes. Porém, atletas pré- aeróbio é capaz de efetivamente aumen-
-púberes apresentam VO2máx maior que os tar essa capacidade mesmo em pré-
não atletas. Novamente, o efeito da pré- -púberes.
-seleção não pode ser ignorado. De fato,
uma metanálise sobre o assunto concluiu
que, antes da puberdade, os efeitos do trei-
namento físico aeróbio aumentando o
VO2máx são pequenos (5%) e ocorrem,
principalmente, com treinos mais intensi- CONSIDERAÇÕES FINAIS
vos. Porém, durante e após a puberdade,
o treinamento aeróbio tem se mostrado Pelo que foi exposto, torna-se evidente
bastante efetivo, produzindo, em curtos que grandes transformações físicas e fun-
períodos de tempo, aumentos na ordem cionais ocorrem na puberdade e influen-
de 12%, dependendo da condição física ciam de forma importante o desempenho
inicial do indivíduo. A partir desses resul- motor e esportivo. A prática regular de
tados, tem sido sugerido que, antes da exercícios físicos promove efeitos fisioló-
puberdade, a condição aeróbia já é bas- gicos distintos antes e após a puberdade,
tante elevada, de modo que apenas um que podem ser benéficos ou prejudiciais
treinamento mais intensivo é capaz de tra- ao processo de crescimento e de desenvol-
zer efeitos expressivos. Durante a puber- vimento, dependendo, principalmente, da
dade, a resposta ao treinamento aumen- sobrecarga imposta ao organismo em de-
ta, devido à tendência de queda dessa ca- senvolvimento.
pacidade. Entretanto, em pré-púberes se- Assim, em geral, o exercício adequa-
dentários (com baixo grau de atividade do e bem-planejado é benéfico e necessá-
física espontânea), mesmo o treinamento rio para uma maturação saudável. Infeliz-
moderado já produz efeitos expressivos. mente, no mundo atual, a atividade física
Ainda em relação à via aeróbia de diária de crianças e adolescentes tem sido
produção de energia, outra capacidade cada vez menor, o que pode levar a prejuí-
importante é a resistência aeróbia, que se zos no crescimento e desenvolvimento,
caracteriza pela capacidade de manter um sendo necessário incentivar os jovens a se
exercício de intensidade leve a moderada tornarem mais ativos.
por um longo período de tempo. Essa re- Contudo, muitas vezes nos esportes
sistência depende do estoque de glicogênio de alto rendimento, as sobrecargas não são
muscular e da capacidade de mobilização bem-gerenciadas, e as cargas excessivas
e utilização de gordura. Como a criança podem provocar prejuízos irreversíveis
tem menor estoque de glicogênio e redu- no crescimento e no desenvolvimento de
ção na atividade das enzimas da beta-oxi- crianças e adolescentes, visto que nessas
dação, sua resistência aeróbia é menor que fases da vida o organismo se encontra mais
a do adulto, mas aumenta na puberdade. suscetível às lesões. Assim, é extremamen-
O treinamento aeróbio é capaz de efetiva- te importante que o profissional de ativi-
mente aumentar essa capacidade mesmo dade física compreenda a relação sobre-
em pré-púberes. carga-maturação para adequar seu progra-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 169
ma de treinamento ao nível maturacional MALINA, R. M.; BOUCHARD, C.; BAR-OR, O. Growth,
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O TALENTO ESPORTIVO E O
PROCESSO DE TREINAMENTO
A LONGO PRAZO
12
Maria Tereza Silveira Böhme
Alessandro H. Nicolai Ré

A detecção, a formação, a seleção e a pro- tual detecção e seleção precoces. Um tra-


moção de talentos esportivos são áreas balho de TLP bem planejado e bem reali-
importantes de atuação para os profissio- zado poderá contribuir significativamen-
nais do esporte, pois por meio delas é pos- te para que os jovens atletas tenham con-
sível que as novas gerações de atletas se- dições, de acordo com suas condições pes-
jam detectadas, formadas e treinadas a soais, o meio social em que vivem e a mo-
longo prazo. Todavia, devido à caracterís- dalidade esportiva pela qual optarem, de
tica multifatorial e dinâmica do desempe- apresentar resultados adequados e com-
nho esportivo, a detecção e a seleção, es- patíveis com seu estágio de desenvolvi-
pecialmente durante a infância, apresen- mento. Esse trabalho poderá ser realizado
tam sérias limitações (Abbott; Collins, por meio da integração dos diferentes lo-
2002, 2004; Abbott et al., 2005; Araújo, cais de prática esportiva, como a escola,
2004; Calvo, 2003; Martindale; Collins; os clubes, as associações esportivas, os cen-
Daubney, 2005; Pearson; Naughton; tros esportivos e os centros de treinamen-
Torode, 2006; Tranckle; Cushion, 2006). to, assim como pela ação conjunta dos di-
Em outras palavras, é bastante remota a ferentes níveis de organização política,
possibilidade de predizer o desempenho desde as comunidades locais, os municí-
de um adulto com base na análise do seu pios, os estados e a federação.
desempenho quando criança. Dentro desse contexto, consideran-
Assim, a preocupação com o proces- do os pressupostos teóricos e conceituais
so de formação e promoção esportiva me- de talento esportivo, desempenho espor-
diante um treinamento a longo prazo tivo e treinamento a longo prazo, o pre-
(TLP) é uma estratégia mais efetiva para sente capítulo tem por objetivo apresen-
a formação de atletas do que uma even- tar as relações entre detecção, formação,
seleção e promoção de talentos esportivos
e o treinamento a longo prazo.
O processo de formação e promoção es-
portiva, mediante um treinamento a lon-
go prazo (TLP) é uma estratégia mais TALENTO ESPORTIVO
efetiva para a formação de atletas do
que uma eventual detecção e seleção O termo “talento”, genericamente,
precoces. refere-se ao indivíduo que possui uma ap-
tidão acima da média em determinado
172 Dante De Rose Jr. e colaboradores

campo de ação ou aspecto de atividade denominou de componentes estático e di-


humana considerada – seja nas artes, nas nâmico. O componente estático compreen-
ciências, no esporte –, que é possível de de quatro aspectos: a disponibilidade e a
ser detectada, treinada e consequentemen- disposição, ou seja, o poder e a vontade
te melhor desenvolvida. Ele depende e está do praticante de realizar e submeter-se a
relacionado com aspectos genéticos e do um treinamento com vistas a desenvolver
meio ambiente, ou seja, da constituição o seu potencial esportivo; as possibilida-
herdada, das aptidões motora, cognitiva e des reais do meio ambiente onde está in-
afetiva favoráveis, assim como de condi- serido, incluídas as condições de TLP; e a
ções sociais, culturais e geográficas propí- apresentação de resultados adequados de
cias para o seu desenvolvimento. acordo com a etapa do TLP. O componen-
Na área do esporte de rendimento, te dinâmico relaciona-se com os processos
utiliza-se o termo talento esportivo para de- ativos e com as mudanças biopsicossociais
signar aquelas pessoas que têm um poten- pelos quais o talento passa, em decorrên-
cial, uma aptidão especial ou uma grande cia do seu desenvolvimento. Esse desen-
aptidão para o desempenho esportivo. Em volvimento deve ser conduzido por meio
termos teóricos, são encontradas diferen- de treinamento e de competição realiza-
tes conceituações referentes a talento es- dos adequadamente, de acordo com prin-
portivo na literatura da área. Para Carl cípios e métodos pedagógicos adequados.
(1988 apud Böhme, 1994), Segundo as conceituações apresen-
tadas, fica claro que a definição de talento
é a denominação dada a uma pes- esportivo está vinculada ao seu processo
soa, na qual se aceita, com base de desenvolvimento, no qual se destacam
em seu comportamento/atitudes as condições ambientais propícias, como
ou com fundamento em suas con-
a quantidade e a qualidade do treinamen-
dições de comportamento herda-
das e adquiridas, que possui uma to. Portanto, um programa de TLP ade-
aptidão especial ou uma grande quado tem relação direta com o talento
aptidão para o desempenho es- esportivo.
portivo.

Singer (1981 apud Martin et al.,


1999) apresenta uma definição analítica A definição de talento esportivo está vin-
do termo: culada ao seu processo de desenvolvi-
mento, no qual se destacam as condi-
talento esportivo é uma pessoa ções ambientais propícias, como a quan-
cuja estrutura de características tidade e a qualidade do treinamento.
anatomofisiológicas, de capacida-
des e de outras qualidades da
personalidade permite, com gran-
de probabilidade, esperar-se que,
com determinado treinamento e
DESEMPENHO ESPORTIVO
condições do meio, possa alcan-
çar o nível de desempenho de Tendo em vista que o talento espor-
atletas nacionais e internacionais. tivo tem um potencial para realizar um
desempenho esportivo acima da média, é
Joch (2005) considerou dois compo- necessário entendermos o que é desempe-
nentes na conceituação de talento, o que nho esportivo.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 173
O desempenho é considerado como A capacidade de desempenho espor-
componente integral do esporte, tanto co- tivo é a forma de apresentação do desem-
mo processo quanto como resultado de penho esportivo que pode ser analisada
ações esportivas. Além disso, desempenho por meio da observação e da mensuração
esportivo é também considerado, sob o de seus elementos e componentes. Pode
ponto de vista normativo, como a execu- ser verificada também por meio da reali-
ção ótima de uma tarefa de movimento. zação ótima e da resolução de tarefas/ati-
Diferentes modelos de desempenho espor- vidades esportivas que possam ser obser-
tivo são encontrados na literatura de teo- vadas, medidas e avaliadas/julgadas, co-
ria do treinamento (Carl, 1988; Friedrich mo, por exemplo, o desempenho esporti-
et al., 1988; Martin et al., 1991, 1999); vo em uma apresentação de ginástica ar-
alguns desses foram descritos por Böhme tística, o resultado de um velocista, de um
(1994, 1999, 2000). levantador de pesos ou de um atleta de
Martin e colaboradores (1999) apre-
sentaram uma forma de operacionalização
do conceito de desempenho esportivo para
o treinamento infanto-juvenil na qual sua A forma e o grau de expressão da capa-
cidade de desempenho esportivo depen-
complexidade pode ser considerada por
dem de como se desenvolvem os pres-
meio de três aspectos básicos: capacidade supostos individuais de desempenho –
de desempenho esportivo, pressupostos in- psíquico-cognitivos, neuromusculares,
dividuais de desempenho e solicitações de orgânico-energéticos e constitucionais.
desempenho (Figura 12.1).

Figura 12.1 Modelo das relações dos componentes de desempenho esportivo no treinamento a
longo prazo.
Fonte: Adaptada de Martin e cols. (1999).
174 Dante De Rose Jr. e colaboradores

voleibol. A forma e o grau de expressão cargas adequadas ao aparelho locomotor.


da capacidade de desempenho esportivo As solicitações de desempenho baseiam-
dependem de como se desenvolvem os -se nos pressupostos de treinamento, como
pressupostos individuais de desempenho. volume, graus de dificuldade de aprendi-
Os pressupostos individuais de de- zagem e cargas crescentes.
sempenho referem-se aos aspectos e ao
potencial de adaptação genéticos e fe-
notípicos disponíveis no organismo do in-
divíduo que possibilitam a realização de As solicitações de desempenho baseiam-
um determinado desempenho esportivo. -se nos pressupostos de treinamento,
De acordo com Martin e Nicolau (1998 como volume, graus de dificuldade de
apud Martin et al., 1999), os pressupos- aprendizagem e cargas crescentes.
tos relevantes para o desempenho espor-
tivo são: psíquico-cognitivos, neuromus-
culares, orgânico-energéticos e constitu-
cionais. Algumas características de pres- Vale destacar que a capacidade de
supostos de desempenho individuais po- desempenho e os pressupostos individuais
dem ser medidas diretamente por meio de desempenho desenvolvem-se somente
de parâmetros fisiológicos, como o con- na dependência de solicitações objetivas
sumo energético e os aspectos bioquími- de desempenho, as quais são obtidas ao
cos (orgânico-energéticos); a coordena- longo de um processo que inclui o TLP e a
ção inter e intramuscular, por meio de mé- competição. Logo, é fundamental que es-
todos indiretos (neuromusculares); e ou- sas solicitações sejam planejadas de acor-
tros, por meio de medidas antropométri- do com a etapa de treinamento em que o
cas (constitucionais). jovem se encontra.

DETECÇÃO, FORMAÇÃO,
Os pressupostos relevantes para o de- SELEÇÃO E PROMOÇÃO
sempenho esportivo são: psíquico- DE TALENTOS ESPORTIVOS
-cognitivos, neuromusculares, orgânico-
-energéticos e constitucionais. Detecção, busca ou procura de talen-
tos esportivos são sinônimos utilizados na
especificação de todas as medidas e dos
meios utilizados, com o objetivo de detec-
As solicitações de desempenho são tar um número suficientemente grande de
alcançadas mediante treinamento e com- pessoas – em regra crianças e adolescen-
petições para crianças e jovens, idealmente tes –, as quais estão dispostas e prontas
por meio do alcance de objetivos bem- para a admissão em um programa de for-
-definidos no decorrer das diferentes eta- mação esportiva geral básica, o que é con-
pas do processo de TLP. Elas podem ser siderado como primeira etapa do TLP. Ten-
realizadas por meio da aplicação e do de- do em vista o caráter multifatorial e dinâ-
senvolvimento de diferentes habilidades e mico do desempenho esportivo, a possível
capacidades motoras, da solicitação dos exclusão de alguns indivíduos é conside-
pressupostos psíquicos, neuromusculares, rada um dos principais problemas da
orgânico-energéticos e da utilização de detecção de talentos esportivos, muitas
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 175
vezes limitando a geração de futuros atle-
tas (Abbott; Collins, 2002). A promoção é dependente de condições
adequadas de treinamento, com treina-
A formação de talentos esportivos
dores devidamente capacitados para tra-
visa a desenvolver todo o potencial espor- balhar no processo de TLP.
tivo dos jovens por meio do TLP. Para isso,
são necessários paciência e esforço por par-
te do praticante, métodos pedagógicos de
treinamento adequados e também apre-
sentação de sucessos competitivos no de- O TREINAMENTO A LONGO PRAZO
correr do processo, de forma gradativa e,
principalmente, sem “queimar” etapas do O treinamento a longo prazo, reali-
processo de treinamento. Isso significa zado de forma planejada e sistemática,
que, nas crianças, o resultado competitivo pode ser uma estratégia efetiva para o
não é um indicador confiável da qualida- aumento do número de envolvidos com o
de do treinamento. esporte como opção de lazer e prática de
Como seleção de talentos esportivos, atividades físicas, e desempenha papel pre-
entendem-se os meios utilizados para a de- ponderante na formação e na promoção
terminação dos indivíduos com condições dos talentos esportivos, auxiliando a for-
de serem admitidos/aceitos em níveis mais mação de futuras gerações de atletas.
altos de TLP, o qual objetiva um desempe- A prática esportiva mundial demons-
nho esportivo de alto nível. Quanto mais tra que o desempenho esportivo para o alto
cedo for realizado o processo de seleção, nível de rendimento só pode ser obtido
maior a probabilidade de erro. quando os seus fundamentos são desenvol-
vidos durante os períodos da infância e da
juventude, o que pressupõe o planejamen-
to sistemático de um TLP (Weineck, 1999).
Quanto mais cedo for realizado o pro-
cesso de seleção, maior a probabilidade
de erro.
O desempenho esportivo para o alto ní-
vel de rendimento só pode ser obtido
quando os seus fundamentos são desen-
volvidos durante os períodos da infância
e da juventude.
A promoção de talentos esportivos
envolve a utilização dos procedimentos de
treinamento e outras medidas para se ob-
ter o desempenho esportivo ideal a longo
prazo. A promoção é dependente de con- Dessa maneira, o treinamento para o
dições adequadas de treinamento, com esporte de alto nível fundamenta-se em um
treinadores devidamente capacitados para processo de treinamento a longo prazo (em
trabalhar no processo de TLP, além de di- média de 6 a 10 anos de duração, confor-
versos fatores psicossocioculturais, como me a modalidade esportiva), o qual, nor-
a motivação, as condições de acesso aos malmente, de acordo com a literatura
locais de treino, o apoio familiar, a valori- (Barbanti, 1997; Bompa, 2002; Carl, 1988;
zação cultural do esporte, a massificação, Joch, 2005; Martin et al., 1991, 1999;
entre outros. Weineck, 1999), é dividido em três níveis:
176 Dante De Rose Jr. e colaboradores

formação básica geral, treinamento espe- cidades motoras coordenativas (dependen-


cífico (subdividido em treinamento bási- tes da capacidade de organização e contro-
co, treinamento de síntese e treinamento le do movimento) e também com o conhe-
de transição) e treinamento de alto nível. cimento cognitivo (decisão da ação motora
adequada em determinado contexto).
Formação básica geral
Envolve principalmente o desenvol-
vimento das capacidades coordenativas. A A execução de habilidades motoras re-
formação básica geral deve ocorrer até laciona-se com as capacidades motoras
aproximadamente os 10 anos de idade, condicionais (dependentes da capacida-
utilizando-se a maior variabilidade possí- de metabólica de geração de energia),
vel de movimentos e materiais e possibili- com as capacidades motoras coordena-
tando o desenvolvimento de um amplo tivas (dependentes da capacidade de
leque de habilidades motoras. Portanto, é organização e controle do movimento)
e também com o conhecimento cognitivo
fundamental o conhecimento dos fatores
(decisão da ação motora adequada em
que influenciam a aquisição e desempe- determinado contexto).
nho de habilidades motoras.

A formação básica geral deve ocorrer até Força, velocidade, resistência (e, para
aproximadamente os 10 anos de idade, alguns autores, flexibilidade) são as ca-
utilizando-se a maior variabilidade pos-
sível de movimentos e materiais.
pacidades motoras condicionais (Ré; Bar-
banti, 2006). Qualquer HM depende des-
sas variáveis para ser executada; por exem-
plo, saltar, correr, chutar, recepcionar, sa-
A execução correta de uma habilida- car, rebater, andar, equilibrar-se, etc. É
de motora (HM) depende da adequada necessário deixar claro que as capacida-
coordenação de movimentos corporais des motoras condicionais são altamente
para atingir determinado objetivo. Eviden- dependentes do sistema muscular e, por-
temente, para que esse movimento acon- tanto, apresentam maior treinabilidade a
teça, é necessária liberação de energia do partir do momento em que este atinge o
organismo, ou seja, a execução de HM padrão maduro, ao final da puberdade.
depende do metabolismo energético (aeró- As capacidades coordenativas são
bio, anaeróbio lático e/ou alático). Além determinadas essencialmente por compo-
da coordenação e do metabolismo energé- nentes nos quais predominam os proces-
tico, também é necessário destacar a in- sos de condução nervosa, organizando e
fluência da decisão correta sobre o movi- controlando o movimento. Em outras pa-
mento a ser executado, o que implica de- lavras, são dependentes de comandos emi-
cidir qual ação motora é mais adequada tidos pelo SNC. Em termos maturacionais,
em determinado contexto. o SNC apresenta uma rápida taxa de de-
Resumidamente, pode-se afirmar que senvolvimento, apresentando-se maduro
a execução de habilidades motoras relacio- por volta dos 10 anos de idade. Em virtu-
na-se com as capacidades motoras condi- de dessa rápida velocidade de desenvolvi-
cionais (dependentes da capacidade meta- mento, é adequado que a criança seja ex-
bólica de geração de energia), com as capa- posta a movimentos que exijam um eleva-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 177
criança de um ano de idade, mas não apre-
Em termos maturacionais, o SNC apre- senta tal predominância em um adolescen-
senta uma rápida taxa de desenvolvimen-
te de 15 anos – apesar de a tarefa ser a
to, apresentando-se maduro por volta
dos 10 anos de idade. mesma, a estrutura do indivíduo faz com
que a predominância seja diferente; en-
tender o contexto tático de um jogo talvez
não seja um grande desafio cognitivo para
do grau de organização e controle (coor- um atleta profissional, mas a mesma situa-
denação). ção pode exigir uma grande participação
Somando-se a esses fatores, as habi- cognitiva em um jovem de 10 anos.
lidades motoras devem ser executadas em Durante a fase básica geral, a crian-
resposta a determinada solicitação, ou seja, ça passa por um período adequado de ex-
existe a necessidade de decidir qual movi- posição a tarefas com predominância
mento deve ser realizado e o momento coordenativa, uma vez que apresenta uma
correto de realizá-lo (“o que fazer” e rápida taxa de desenvolvimento do SNC.
“quando fazer”, respectivamente). Utili- Do mesmo modo, a solução de problemas
zando o voleibol como exemplo, observa- motores (desafio cognitivo) induz a crian-
se que o ataque pode ser executado com ça a “pensar” antes de executar determina-
uma cortada ou uma “largada”, com o do movimento, evitando sua “mecaniza-
movimento mais ou menos acelerado, em ção” e estimulando a integração cognição-
determinada região da quadra adversária, ação. Portanto, é muito importante que,
ou ainda “explorando” o bloqueio, etc. desde o nascimento até os 10 anos de ida-
Portanto, fica evidente que a execução de, ocorra uma ampla exposição a habili-
motora (técnica) correta não necessaria- dades motoras que priorizem os aspectos
mente terá sucesso se o processo de toma- coordenativo e cognitivo. Idealmente, essa
da de decisão não for adequado. Assim, o exposição deve ser proporcionada não ape-
sucesso na execução de determinada HM nas pelo treinamento formal, mas também
depende da ótima integração das capaci- por outros setores da sociedade, como a
dades motoras condicionais, coordenativas família. A escola, por meio da educação
e do conhecimento cognitivo. física, ocupa um espaço privilegiado e pode
desempenhar um papel fundamental den-
tro desse contexto formativo.
O sucesso na execução de determinada
HM depende da ótima integração das
capacidades motoras condicionais, coor- A solução de problemas motores (desa-
denativas e do conhecimento cognitivo. fio cognitivo) induz a criança a “pensar”
antes de executar determinado movimen-
to, evitando sua “mecanização” e esti-
mulando a integração cognição-ação.
A integração desses fatores deve ser
considerada durante o processo de TLP,
pois não existe nenhuma HM que depen-
da apenas de um fator isolado. Todavia, Treinamento específico
as habilidades motoras podem apresentar
uma predominância de determinado fator. Essa etapa engloba a faixa etária
Por exemplo, caminhar tem importante aproximada de 11 a 16 anos de idade. Tem
predominância coordenativa em uma por objetivos gerais a melhoria planejada
178 Dante De Rose Jr. e colaboradores

a longo prazo do desempenho esportivo  desenvolver as capacidades básicas da


específico da modalidade escolhida até um modalidade específica e aprender as
nível que possibilite: o início do treinamen- técnicas básicas de movimento dessa
to de alto nível, a estabilização de uma modalidade;
motivação para o desempenho voltada  despertar uma motivação para o de-
para uma determinada modalidade espor- sempenho no esporte, no treinamento
tiva e uma participação bem-sucedida nas e na competição.
categorias competitivas de idade e de de-
sempenho semelhantes. Por volta dos 11 anos de idade, ini-
Entre os 11 e 16 anos de idade (perío- cia-se o treinamento específico de habili-
do pubertário), ocorrem importantes al- dades motoras. Porém, vale ressaltar que
terações morfológicas e funcionais, que esse treinamento específico não é sinôni-
interferem diretamente na capacidade de mo de “especialização precoce unilateral”,
desempenho esportivo. Somando-se a isso, ou seja, de forma geral, ainda não é mo-
a velocidade e o momento em que essas mento de submeter a criança a processos
alterações ocorrem não são os mesmos em unilaterais e sistemáticos de treinamento
todos os indivíduos, por isso é fundamen- em um número reduzido de habilidades.
tal que os responsáveis pelo treinamento Em outras palavras, a modalidade espor-
estejam familiarizados com os princípios tiva não deveria ser um fim, e sim um meio
básicos de crescimento e desenvolvimen- para a introdução de diversas habilidades
to humano e suas relações com o desem- motoras. É necessário oferecer oportu-
penho esportivo (ver Capítulo 11) (Böhme, nidades para a combinação de diferentes
1999; Ré et al., 2005). habilidades em virtude da resolução de
problemas motores variados (p. ex., cor-
rer-arremessar; correr-saltar-arremessar;
É fundamental que os responsáveis pelo correr-girar-receber-saltar-arremessar,
treinamento estejam familiarizados com equilibrar-se com diferentes apoios e ma-
os princípios básicos de crescimento e teriais, etc.), presentes em diversas moda-
desenvolvimento humano e suas relações lidades esportivas.
com o desempenho esportivo.

Treinamento específico não é sinônimo


de “especialização precoce unilateral”.
De modo geral, a fase de treinamento
específico pode ser subdividida em três eta-
pas que facilitam o planejamento e a exe-
cução do treinamento, descritas a seguir. Nesse sentido, durante a etapa de
treinamento básico, deve existir uma gama
variada de opções de práticas relaciona-
Primeira: Treinamento básico ou de das aos elementos das modalidades espor-
iniciantes (11 a 12 anos de idade) tivas, aproveitando seus gestos, variações,
espaços e materiais para combinar e refi-
Objetivos: nar habilidades na execução de movimen-
tos gradualmente mais complexos, em am-
 melhorar o estado de desempenho es- bientes variados e com diferentes possibi-
portivo de modo geral e variado (em lidades de resolução de problemas (estí-
diferentes modalidades); mulos cognitivos).
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 179

Segunda: Treinamento de cos a determinada modalidade, enfati-


síntese ou de adiantados zando ainda o treinamento das capacida-
(13 a 14 anos de idade) des motoras condicionais.

Objetivos:
Treinamento de alto nível
 melhorar o desempenho esportivo es-
Essa fase (a partir dos 17 anos) tem
pecífico da modalidade;
por objetivos gerais o alcance do alto de-
 dominar as técnicas mais importantes
sempenho individual; o aumento otimi-
do esporte;
zado do volume e da intensidade de trei-
 conhecer os métodos de treinamento
namento; a perfeição, a estabilização e a
específicos do esporte;
disponibilidade máxima da técnica espor-
 iniciar a participação em competições
tiva; a melhoria e a manutenção da mais
visando à vitória, porém o resultado
alta capacidade de desempenho pelo maior
ainda não deve ser utilizado como úni-
período de tempo possível. O treinamen-
co meio de avaliação do processo de
to deve ter total relação com a especifi-
treinamento.
cidade da modalidade.
Durante essa etapa, o treinamento As formas de planejamento de TLP,
das capacidades condicionais deve ocupar com as possibilidades de objetivos, de con-
um lugar de destaque; porém elas devem teúdos e de métodos de treinamento de
ser treinadas de modo indireto, com tare- cada componente da capacidade de de-
fas que exijam elevada participação de sempenho esportivo almejado, são descri-
aspectos coordenativos e cognitivos. O trei- tos na literatura (Bompa, 2002; Carl, 1988;
namento deve ter elevada relação com a Joch, 2005; Martin et al., 1999; Weineck,
especificidade da modalidade. 1999).

Terceira: Treinamento de transição RELAÇÕES ENTRE DETECÇÃO,


(15 a 16 anos de idade) FORMAÇÃO, SELEÇÃO E
PROMOÇÃO DE TALENTOS
Objetivos: ESPORTIVOS COM O TLP

 desenvolver as capacidades condicio- O processo de detecção, formação,


nais, considerando-se a especificidade seleção e promoção de talentos esporti-
da modalidade esportiva; vos está altamente interligado com o TLP.
 dominar o repertório das técnicas es- Hofmann e Schneider (1985 apud Wei-
pecíficas da modalidade esportiva; neck, 1999) apresentaram, em um mo-
 tolerar as cargas de treinamento exi- delo esquemático na forma de pirâmide,
gidas nos diferentes ciclos de treina- o processo de seleção e de formação es-
mento; portiva (Figura 12.2). Nele estão repre-
 obter participações bem-sucedidas em sentados os papéis dos diferentes segmen-
campeonatos nacionais e internacionais tos da organização da sociedade, como a
da sua faixa etária e categoria. escola, o clube e os grupos comunitários,
assim como os três níveis do TLP, desde a
Nessa fase, é necessário o máximo iniciação até o alto nível, e os respectivos
aperfeiçoamento de movimentos específi- períodos médios de duração de cada um.
180 Dante De Rose Jr. e colaboradores

Pontos difíceis de seleção Anos de


quanto ao desempenho formação
esportiva
Grupos • Desempenho
de esporte competitivo Área de 10 a 12
• Capacidade
para todos alto desempenho anos
especial de
desempenho

Clubes • Histórico da
capacidade de
desempenho Treinamento 5a6
esportivo (testes, infanto-juvenil anos
desempenho
competitivo)

Escola • Capacidade de
desempenho Área de iniciação 3 anos
esportivo geral
• Interesses

Área das crianças e adolescentes não treinados

Figura 12.2 Processo de seleção e de formação esportiva.


Fonte: Adaptada de Hofmann; Schneider (1981 apud Weineck, 1999).

Carl (1988) representou graficamen- nível, ou treinamento específico, de atle-


te, sob a forma de um funil, as fases prin- tas alemães de nível internacional, assim
cipais da detecção e da seleção de talen- como a idade dos primeiros melhores re-
tos esportivos, desde a iniciação até o es- sultados, com base em um levantamento
porte de alto nível, fundamentadas no TLP feito pelo Instituto Alemão de Ciência do
(Figura 12.3). Esporte. Já Bompa (2002) apresentou um
Entre as diversas modalidades espor- guia das idades recomendadas de início,
tivas, há uma variação quanto ao início e de especialização e de alto rendimento de
à duração do TLP e de seus respectivos 38 modalidades esportivas.
níveis, assim como dos processos de de- O planejamento do TLP para cada
tecção, de seleção e de promoção de ta- modalidade esportiva deve ocorrer do fi-
lentos esportivos. Na Tabela 12.1, são apre- nal para o começo, ou seja, com base na
sentados os valores médios e os desvios- idade de início do alcance dos melhores
-padrão das idades de início do segundo resultados, faz-se uma retrospectiva de
qual deve ser a idade de início do treina-
mento para a formação específica na mo-
dalidade considerada. Desse modo, as fai-
xas etárias apontadas no presente capítu-
Entre as diversas modalidades esporti- lo não podem ser entendidas de modo in-
vas, há uma variação quanto ao início e flexível, pois podem variar em virtude da
à duração do TLP e de seus respectivos
modalidade e das próprias características
níveis, assim como dos processos de
detecção, de seleção e de promoção de do indivíduo.
talentos esportivos. Os níveis e as respectivas etapas do
TLP estão intimamente relacionados e não
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 181

Figura 12.3 Principais fases de detecção e de seleção de talentos esportivos.


Fonte: Adaptada de Carl (1988).

TABELA 12.1 Idades médias de início do treinamento e início dos melhores resultados de atletas
alemães (adaptada de Martin et al., 1991)
Masculino Feminino

Início Melhores resultados Início Melhores resultados


Esporte
Desvio- Desvio- Desvio- Desvio-
Média -padrão Média -padrão Média -padrão Média -padrão

Boxe 12,7 3,3 20,3 2,0


Esgrima 10,7 2,1 19,2 1,3
Judô 7,1 2,3 19,8 2,1 8,1 1,0 17,9 1,3
Levantamento 13,1 2,5 18,8 1,0
de peso
Atletismo 13,3 2,7 19,1 1,6 12,6 2,3 17,9 1,4
Ciclismo 10,6 3,2 18,4 2,0 11,2 3,2 18,1 1,4
Remo 14,2 0,9 19,4 1,4 15,6 2,4 20,0 2,1
Canoagem 13,1 2,5 19,6 2,3 12,3 2,4 19,0 2,5
Natação 9,8 2,3 16,9 0,8 9,4 1,9 15,6 0,9
Tênis de 7,6 1,8 13,6 1,7 8,6 1,2 14,6 1,2
mesa
Voleibol 11,6 1,6 17,1 0,7 12,0 2,3 17,1 0,9
Ginástica 8,9 1,8 16,9 2,0 7,9 2,0 13,3 1,3
olímpica
Saltos 9,7 1,9 17,4 2,4 9,3 2,7 16,6 1,7
ornamentais
Polo aquático 10,7 1 17,4 0,2 0,9
182 Dante De Rose Jr. e colaboradores

ção, o autor relata nove fases de rendimen-


Os níveis e as respectivas etapas do TLP to esportivo, sendo que a fase universal
estão intimamente relacionados e não
equivale ao primeiro nível; as fases de orien-
ocorrem independentemente um do outro.
tação, direção, especialização e aproxima-
ção, ao segundo nível; e a fase de alto ní-
vel, ao terceiro nível. Um aspecto impor-
tante da proposição de Greco é que ela
ocorrem independentemente um do outro; prevê a formação esportiva orientada não
o que pode acontecer é que o(a) jovem só para o esporte de alto nível, mas tam-
atleta não tenha vivenciado de maneira bém o encaminhamento da grande maio-
apropriada uma ou mais etapas na sequên- ria dos participantes do processo de TLP
cia temporal adequada, e que a(s) sua(s) para o esporte participativo, de lazer, pois,
deficiência(s) de formação esportiva no processo de “afunilamento” da pirâmi-
tenha(m) que ser de algum modo “com- de do esporte de alto nível, somente os
pensada(s)” posteriormente. Em termos indivíduos realmente talentosos no espor-
ideais, o(a) jovem atleta deveria passar por te alcançarão o sucesso. No modelo pro-
um processo completo de formação espor- posto, o autor ainda sugere a reintegra-
tiva, no(s) período(s) adequado(s) para ção do atleta de alto nível no esporte
esse fim. participativo, após o término de sua vida
esportiva no esporte de alto rendimento.
Alguns autores russos (Filin, 1996;
CONSIDERAÇÕES FINAIS Matveev, 1997) apresentam como proposta
quatro etapas para o TLP. Filin (1996) as
O processo de detecção, de formação, denomina de:
de seleção e de promoção de talentos es-
portivos está altamente relacionado com a) etapa preliminar de preparação;
o TLP, desde que ocorram de modo inte- b) etapa inicial de especialização esportiva;
grado e com base em um planejamento c) etapa de aprofundamento do esporte; e
bem-executado. Considerando-se as limi- d) etapa de aperfeiçoamento esportivo.
tações no processo de detecção e seleção,
a preocupação com a aplicação adequada O autor faz também indicações quan-
de um TLP parece ser mais confiável e efi- to às idades propícias para cada etapa, res-
caz para a geração de futuros atletas. peitando-se o sexo e a especificidade de
algumas modalidades esportivas. Matveev
(1997) faz uma descrição semelhante des-
O processo de detecção, de formação, sas fases, apresentando as seguintes etapas:
de seleção e de promoção de talentos
esportivos está altamente relacionado a) preparação esportiva prévia;
com o TLP.
b) especialização inicial;
c) aperfeiçoamento profundo; e
d) longevidade esportiva.

Existem ainda outros modelos de TLP Comparando-se as diferentes fases,


descritos na literatura. Greco (1997), por níveis ou etapas de TLP descritos na lite-
exemplo, sugeriu um “sistema de forma- ratura da área de ciência/teoria do treina-
ção e de treinamento esportivo” diante do mento, observa-se que, de modo geral, são
qual o TLP é apresentado como uma es- semelhantes, porém com terminologias di-
trutura “temporal”. Dentro dessa concep- ferenciadas, podendo ser organizados em
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 183
três principais níveis: de iniciação, infanto- –––––––––– . O treinamento a longo prazo e o processo
-juvenil e de alto nível – correspondentes de detecção, de seleção e de promoção de talentos
esportivos. Rev. Bras. Cien. Esporte, v.21, p. 4-10, 2000.
ao primeiro, ao segundo e ao terceiro ní-
veis anteriormente descritos, respectiva- –––––––––– . Talento esportivo I: aspectos teóricos. Rev.
Paul. Educ. Fis., v.8, p.90-100, 1994.
mente (formação básica geral, treinamen-
BOMPA, T. O. Treinamento total para jovens campeões.
to específico – com três etapas – e treina- São Paulo: Manole, 2002.
mento de alto nível). Além disso, verifica-
CALVO, A. L. Detección o desarrollo del talento? Fac-
se que as definições operacionais de ta- tores que motivan una nueva orientación del proceso
lento esportivo e de capacidade de desem- de detección de talentos. Apunts – Educacion Física
penho esportivo são similares, pois ambos y Deportes, v. 71, p. 23-28, 2003.
são considerados como resultados das re- CARL, K. Talentsuche, Talentauswahl und Talentför-
lações entre os aspectos internos (genotí- derung. Schorndorf: Hofmann-Verlag, 1988.
picos) e as condições oferecidas pelo meio FILIN, W. P. Desporto juvenil: teoria e metodologia.
ambiente. Londrina: CID, 1996.
Concluindo, o profissional que traba- FRIEDRICH, E. et al. Einführung in die Ausbildung
von Trainern an der Trainerakademie. Schorndorf:
lhar com o treinamento de crianças e ado-
Hofmann-Verlag, 1988.
lescentes deve ter um bom conhecimento
GRECO, P. J. I. D. U. Fase central do sistema de for-
sobre o processo de crescimento e desen- mação e treinamento desportivo. In: GRECO, P. J. et
volvimento biopsicossocial do ser huma- al. (Ed.). Temas atuais em educação física e esportes.
no e também sobre princípios pedagógi- Belo Horizonte: Health, 1997.
cos e métodos de treinamento. Tais conhe- JOCH, W. O talento esportivo: identificação, promo-
cimentos possibilitam o planejamento de ção e perspectivas do talento. Rio de Janeiro:
um TLP com objetivos, conteúdos e méto- Lobmaier, 2005.
dos adequados aos seus diferentes níveis MARTIN, D. et al. Handbuch Kinder-und Jugendtrai-
ning. Schorndorf: Verlag Hofman, 1999.
e etapas.
MARTIN, D. et al. Handbuch Trainingslehre. Schorn-
dorf: Verlag Karl Hofmann, 1991.
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porte da Universidade de São Paulo, 1999. 1999.
POSTURA NA INFÂNCIA E NA
ADOLESCÊNCIA: CARACTERÍSTICAS
BIOMECÂNICAS E DO
13
COMPORTAMENTO MOTOR
Aline Bigongiari
Renata Garrido Cosme
Luis Mochizuki

O ser humano passa de uma postura hori- meta motora. As funções do controle
zontal para uma vertical nos primeiros 12 postural são equilíbrio, suporte do peso e
meses de vida. Essa alteração exemplifica estabilização (Rothwell, 1994). A princi-
o desenvolvimento motor, que é um pro- pal forma de equilíbrio é o controle da
cesso temporal no qual o comportamento postura ereta. Esse controle usa informa-
motor de uma pessoa se modifica, e que ções sobre a posição do centro de massa
ocorre pela interação das exigências da do corpo (COM) (Horstmann; Dietz,
tarefa, do organismo individual e das con- 1990), com base nas informações senso-
dições ambientais (Gallahue; Ozmun, riais para relatar e reconhecer a posição e
2003). o movimento de cada parte do corpo
Uma ação motora envolve um con- (Mochizuki, 2002). O monitoramento in-
junto de posturas e movimentos para rea- dica quando é necessário alterar a postu-
lizar uma tarefa e atingir uma meta. Logo, ra. O controle do equilíbrio se dá por meio
a ação motora depende do controle de mo- do equilíbrio estático e dinâmico. No equi-
vimentos e da postura. A sinergia é a ação líbrio estático, o corpo permanece parado
integrada de elementos motores (grupos sobre a base de apoio, enquanto no equilí-
musculares, músculos, articulações e seg- brio dinâmico partes do corpo se movimen-
mentos corporais) para a execução de uma tam. O objetivo básico do equilíbrio é man-
ter a posição horizontal do COM dentro
da base de apoio.
A estabilidade postural permite que
Uma ação motora envolve um conjunto segmentos do corpo permaneçam estáveis
de posturas e movimentos para realizar enquanto ocorre o movimento focal. A es-
uma tarefa e atingir uma meta. Logo, a tabilidade postural é provida pelos ajus-
ação motora depende do controle de
tes posturais realizados antes do início do
movimentos e da postura. A sinergia é a
ação integrada de elementos motores movimento focal (ajuste postural anteci-
(grupos musculares, músculos, articula- patório, APA) e por aqueles realizados de-
ções e segmentos corporais) para a exe- pois do início desse movimento (ajuste
cução de uma meta motora. postural compensatório, APC). Logo, o
controle postural envolve a capacidade de
186 Dante De Rose Jr. e colaboradores

se recuperar da instabilidade, de anteci-


pá-la e de evitá-la (Shumway-Cook; Woolla- A manutenção da postura ereta combi-
nada com diferentes movimentos é a
cott, 2003).
base das atividades da vida diária e de-
O suporte do peso é uma função do pende da estabilidade do eixo (cabeça e
controle postural que permite a sustenta- tronco) e dos segmentos, do posiciona-
ção do peso enquanto nos movimentamos. mento adequado dos pés e do centro de
Para o funcionamento do controle pos- massa na base de suporte. Na infância
tural, é necessária a integração entre os e na adolescência, diferentes fatores
sistemas musculoesquelético, neuromotor comportamentais, de desenvolvimento e
e sensorial (somatossensorial, vestibular e patológicos podem afetar a manutenção
da postura.
visual).
Para o entendimento do movimento,
é necessário conhecer as restrições mecâ-
nicas que o ambiente e o corpo humano
apresentam. O tema central deste capítu- criança nos primeiros meses favorece a
lo se baseia na abordagem biomecânica da estabilização da cabeça em relação ao res-
postura (Mochizuki, 2002). Discutiremos to do corpo. Essa estabilização permite a
como o conhecimento da biomecânica e fixação do olhar para um alvo e desenvol-
do controle motor pode explicar os fenô- ve as ações motoras que envolvem a ob-
menos que afetam a postura na infância e servação e a tentativa de agarrar um obje-
na adolescência. to. A estabilidade da cabeça, do pescoço e
do tronco permite à criança uma maior
interação com o meio e com outras pes-
COMO A POSTURA soas, e o consequente desenvolvimento
ERETA SE DESENVOLVE? motor, socioafetivo e comportamental.
A seguir, é necessário dominar a re-
O desenvolvimento motor sofre in- lação entre membro inferior e tronco. Isso
fluências endógenas (maturação) e exó- favorece a aquisição da postura ereta e as
genas (ambiente) e promove o desenvol- primeiras formas de locomoção (rastejar,
vimento das habilidades motoras inatas e rolar, engatinhar e andar). Até os 6 anos
das dependentes da prática. A postura ere- de idade, a criança coordena as partes do
ta é uma das posturas mais comuns, e sua corpo de maneira conjunta e não conse-
combinação com diferentes movimentos gue mexer seus segmentos de maneira in-
gera muitas atividades da vida diária. A dependente, de forma que o movimento
sua manutenção depende da estabilidade acontece “em bloco” (Assaiante et al.,
do tronco, do pescoço e da cabeça; da es- 2005). Na adolescência, o controle pos-
tabilidade de membros inferiores e tron- tural ocorre de maneira segmentada, e o
co; do posicionamento adequado dos pés corpo interage com o meio de maneira
e do posicionamento adequado do COM articulada, mostrando o amadurecimento
em relação à base de apoio. Na infância e do SNC.
na adolescência, diferentes fatores com- Após a aquisição das diversas formas
portamentais, de desenvolvimento e con- de locomoção terrestre, a criança fica apta
dições patológicas podem afetar e preju- a torná-las mais complexas e mais combi-
dicar a manutenção da postura. nadas com outras formas de movimento.
A postura bípede é importante nos As restrições que podem ocorrer nesse re-
primeiros meses de vida de uma criança pertório motor podem ser causadas por
(Assaiante, 1998). O desenvolvimento da fatores intrínsecos ou extrínsecos. Os fa-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 187
tores intrínsecos são doenças, lesões ou drão adulto perto dos 15 ou 16 anos de
traumas que afetam músculos, ossos, arti- idade; o somatossensorial, entre os 9 e 12
culações e sistema nervoso e que modifi- anos de idade; enquanto o vestibular ain-
cam o funcionamento do controle motor da está se desenvolvendo (Steindl et al.,
ou postural, além dos déficits provocados 2006).
por atrasos no desenvolvimento ou apren- O aperfeiçoamento desses sistemas
dizagem motora. Os fatores extrínsecos são ocorre de maneira diferente entre os se-
provocados pelo ambiente ou pela tarefa xos. Até os 11 ou 12 anos, as meninas de-
motora executada. senvolvem os sistemas sensoriais mais ra-
pidamente do que os meninos (Steindl et
al., 2006). Entre os 9 e 11 anos, as meni-
O papel das informações nas apresentam um maior equilíbrio, in-
sensoriais no desenvolvimento dicado por uma menor oscilação do COM
do controle postural em relação aos meninos (Lee; Lin, 2007).

A predominância do sistema visual


para a manutenção do equilíbrio ocorre As oscilações na postura ereta
em crianças, mas não em adolescentes, que
utilizam muito mais os sistemas somatos- A oscilação postural diminui rapida-
sensorial e vestibular para perceber as al- mente dos 3 aos 5 anos, e, após os 6 anos,
terações desestabilizadoras (Assaiante; ela diminui lentamente. Por volta dos 11
Amblard, 1996). A visão é uma informa- anos, a criança desenvolve um padrão mais
ção dominante para compensar perturba- maduro de controle da oscilação postural
ções temporárias em crianças que estão (Blanchard et al., 2007). Riach e Hayes
aprendendo a ficar em pé e que estão nos (1987) mostram a oscilação decrescente
estágios iniciais da marcha até os 2 anos do COM em crianças com idades de 2 a 14
de idade (Sparto et al., 2006). Crianças anos. Essa oscilação também é corre-
de 1 ano de idade, dentro da sala móvel, lacionada com o peso corporal e a esta-
mostram respostas motoras para a ilusó- tura. A oscilação do COM diminui com a
ria perda do equilíbrio que as faz cair idade, porque crianças jovens não tiram
(Shumway-Cook; Woollacott, 2003). proveito da fixação visual em um objeto
A propriocepção se desenvolve por estacionário como as crianças mais velhas
volta dos 3 ou 4 anos de idade (Steindl et para reduzir a oscilação do COM. A osci-
al., 2006). A partir dos 4 ou 5 anos, as lação postural em crianças entre 9 e 11
crianças adquirem um comportamento anos, diferentemente dos idosos, não é
postural mais avançado; porém, ainda com afetada por ambientes com pouca luz
consideráveis oscilações posturais. Entre (Blanchard et al., 2007), mostrando que o
os 7 e 12 anos de idade, a criança usa to- sistema visual na infância também se adap-
das as informações sensoriais disponíveis ta ao escuro.
para a estabilização como um adulto, com
a mesma latência e padrão distal-proximal
de ativação muscular. Porém, não usa a COMO A LOCOMOÇÃO
propriocepção para estabilizar a postura SE DESENVOLVE?
como um adulto quando há o conflito de
informações dos sistemas visual e soma- A locomoção humana é definida
tossensorial (Sparto et al., 2006; Bair et como o deslocamento do corpo no meio
al., 2007). O sistema visual adquire o pa- aquático, terrestre ou aéreo. Os primeiros
188 Dante De Rose Jr. e colaboradores

tipos de locomoção que as crianças exi- nuem (Tachdjian, 1995; Rose; Gamble,
bem são rastejar com o tronco no chão, 1998). O equilíbrio é desenvolvido para
engatinhar com padrão simétrico e não compensar a transferência de peso de um
alternado dos membros inferiores, balan- apoio para outro e para reagir a situações
çar para a frente e para trás na posição de inesperadas do ambiente.
engatinhar alto e engatinhar em um pa- Quando a postura ereta se torna mais
drão transversal (alternando os movimen- estável, mais a base de apoio pode ser re-
tos dos membros). A criança pode come- duzida, sem prejuízo no equilíbrio, permi-
çar a andar sem nunca ter passado pelo tindo maior mobilidade e capacidade do
estágio do rastejar e engatinhar, sem com- controle postural em situações que amea-
prometer seu desenvolvimento motor e çam a estabilidade, e experimenta-se o APA
cognitivo. no apoio e na oscilação da perna para o
Uma criança com 1 ano de idade ini- próximo passo. Assim, o desenvolvimento
cia a marcha com base alargada, quadris e do padrão da locomoção avançada é
joelhos hiperfletidos, braços mantidos em gradativo (Woollacott; Assaiante, 2002;
extensão e abdução e movimentos abrup- Haywood; Getchell, 2004) e contém mar-
tos. O padrão dessa marcha é chamado cos motores (Tabela 13.1).
toddler. Com o amadurecimento do siste- Com 2 anos de idade, uma criança
ma nervoso central (SNC) e dos múscu- mantém o equilíbrio ao caminhar rápido
los, a largura da base diminui. Surge o com forte ativação de todos os músculos
balanço recíproco dos membros superio- dos membros inferiores (sendo maior para
res, o aumento do comprimento do passo os músculos extensores) e com grande
e da velocidade da marcha e a inconsis- grau de coativação muscular (Berger et
tência nos parâmetros temporais muscu- al., 1995). A organização da estabilização
lares e a variabilidade da marcha dimi- corporal nessa idade é proximal-distal;

TABELA 13.1 Marcos motores típicos no desenvolvimento da marcha em crianças normais


Marco motor Idade

Rotação pélvica e inclinação da coxa de apoio para avançar o outro membro inferior 13 meses
Flexão de joelho no apoio médio 16 meses
Contato do pé com a base de apoio na largura do tronco 17 meses
Sincronização do balanço dos braços e apoio do pé no padrão calcanhar-ponta do pé 18 meses
Aumento gradativo do tempo em que um pé sustenta o peso enquanto o outro 1-2 anos
pé balança
Aumento da velocidade da passada 1-3 anos
Melhoria no ritmo e coordenação do andar Até os 5 anos
Amadurecimento do padrão rítmico de ativação dos músculos do membro inferior A partir dos
Habilidade de reagir efetivamente a perturbações durante a locomoção 4-5 anos
Aprimoramento da estabilização da cabeça A partir dos
6-7 anos
Aumento do comprimento da passada devido à maior amplitude de movimento Até a adolescência
do quadril, joelho e tornozelo, e ao aumento do comprimento das pernas

Fonte: Adaptada de Assaiante e Amblard (1996); Assaiante; Woollacott e Amblard (2000); Haywood e Getchell (2004);
Woollacot e Assaiante (2002).
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 189
porém, quando o equilíbrio é ameaçado, Amblard, 1996). A posição da cabeça é
ela passa a ter uma estratégia de organi- uma referência para a estabilização do cor-
zação em bloco (Assaiante et al., 2005). po na locomoção, e seu controle se dá a
A partir dos 4 ou 5 anos de idade, o partir de informações da visão. A visão tem
aperfeiçoamento dos marcos motores (Ta- grande importância na locomoção duran-
bela 13.1) e o desenvolvimento da força te a infância (Grasso et al., 1998). Até os
muscular e de controle postural promovem 7 anos, a criança se organiza no espaço de
o desenvolvimento da locomoção, levan- maneira egocêntrica e, após essa idade, ela
do a criança a deixar de se mover no pa- já começa a ser capaz de organizar o cor-
drão “em bloco” para o padrão articulado, po e os movimentos a partir do ambiente
no qual os segmentos têm um controle in- externo, ou seja, com melhor organização
dependente (Assaiante, 1998). Finalmen- espacial, até que, com cerca de 10 anos, já
te, aos 7 anos, ela é capaz de estabilizar a apresenta comportamentos antecipatórios
cabeça, os ombros e a pelve em situações (Vallis; McFadyen, 2005).
de instabilidade e de controlar suas arti- As principais diferenças do andar de
culações independentemente (Assaiante et uma criança em fase inicial de desenvolvi-
al., 2005). mento e um adulto estão na Tabela 13.2.
Crianças no início do andar indepen- Os fatores para a desestabilização das crian-
dente não mostram domínio das rotações ças de 1 a 4 anos são o aumento da oscila-
articulares e de suas consequências para o ção horizontal do tronco e da perna de ba-
movimento nos diferentes planos de mo- lanço, o padrão de coativação dos múscu-
vimento (Holt et al., 2006). Assim, o pa- los agonistas e antagonistas do joelho e do
drão de aceleração angular do COM apre- tornozelo e o aumento da força de reação
senta grande variabilidade de intensidade ao solo no primeiro passo. As crianças não
e tempo. separam as partes do corpo para fazer o
A oscilação do tronco e da cabeça ajuste da trajetória (Vallis; McFadyen,
afeta o equilíbrio na infância (Assaiante; 2005), são mais dependentes da visão para

TABELA 13.2 As diferenças entre o andar de uma criança e de um adulto


Criança Adulto

Mudar de direção Cabeça, tronco e COM movimen- Antecipação visual por meio da
durante o andar tam-se em bloco rotação da cabeça em relação à
mudança de trajetória do COM

Ausência da antecipação visual

Coordenação do corpo em bloco Coordenação segmentar do corpo

Andar no escuro Redução 40% maior que o adulto Redução da velocidade do andar
na velocidade do andar no claro para o escuro

Responder a perturbações durante APA típico de adultos a partir dos APA


o andar 4-5 anos

Preparação para o início do andar APA APA

Fonte: Adaptada de Vallis e McFadyen (2005); Grasso e cols. (1998); Assaiante (1998).
190 Dante De Rose Jr. e colaboradores

a estabilização (Assaiante; Amblard, 1996) incapacidades ou deformidades que mo-


e só usam o APA para reduzir o efeito de difiquem o funcionamento dos sistemas
perturbação no andar a partir dos 4 ou 5 corporais. A seguir, apresentamos algumas
anos de idade (Woollacott; Assaiante, 2002). disfunções musculoesqueléticas e neuro-
A locomoção é inata ou aprendida? lógicas e suas consequências para a postu-
O recém-nascido apresenta um comporta- ra e locomoção.
mento motor conhecido como reflexo da Os problemas posturais e de locomo-
marcha ou a marcha do recém-nascido. Ao ção decorrentes de doenças, lesões, dis-
manter-se o neonato na posição ereta, com funções e deformidades do sistema mus-
os pés encostados no chão, estimulam-se culoesquelético são diversos. As alterações
movimentos de flexão e extensão alterna- musculoesqueléticas também incorporam
dos dos membros inferiores, semelhantes modificações sensoriais, uma vez que os-
à marcha adulta, com flexão simultânea sos, articulações e músculos são estrutu-
de quadril, joelho e tornozelo, concomi- ras ricas em receptores sensoriais sobre o
tantes à extensão de quadril, joelho e fle- ambiente e o próprio corpo.
xão plantar de tornozelo contralateral (Ro- A deformidade mais comum no pé é
se; Gamble, 1998). O significado dessa mar- o pé plano. A depressão do arco longitudi-
cha precoce não é bem esclarecido, pois nal do pé, ou pé plano valgo flexível, é
desaparece próximo aos dois meses de comum até os 6 anos de idade, e decorre
vida, e o padrão de marcha somente rea- da frouxidão ligamentar. Em casos graves
parece perto dos nove meses de idade. A (aqueles que não se resolvem até os dez
adição de carga no tornozelo de recém- anos de idade), o pé plano pode causar
nascidos que apresentavam ainda o refle- deformidade nos joelhos e necessitar de
xo da marcha diminuiu ou até eliminou o intervenção cirúrgica (Tachdjian, 1995)
reflexo, e, em contrapartida, quando be- para correção. O tratamento nos casos le-
bês com mais de dois meses foram coloca- ves visa ao fortalecimento da musculatura
dos em tanques de água, o padrão de mar- intrínseca do pé, a partir de estímulos sen-
cha precoce reaparecia. Isso sugere que a soriais e motores.
força muscular não acompanha a massa As anomalias congênitas correspon-
crescente dos membros inferiores, e que dem a qualquer alteração da estrutura e
os movimentos cessam por uma fraqueza do metabolismo presente ao nascimento
muscular relativa durante o desenvolvi- cuja causa é genética ou é resultado da
mento motor do recém-nascido (Rose;
Gamble, 1998).
A deformidade mais comum no pé é o
pé plano. A depressão do arco longitu-
COMO OS PROBLEMAS NO
dinal do pé, ou pé plano valgo flexível, é
DESENVOLVIMENTO AFETAM comum até os 6 anos de idade, e decor-
A POSTURA E A LOCOMOÇÃO? re da frouxidão ligamentar. Em casos gra-
ves (aqueles que não se resolvem até os
A integração entre postura e movi- dez anos de idade), o pé plano pode cau-
mento é essencial para o desenvolvimen- sar deformidade nos joelhos e necessi-
tar de intervenção cirúrgica (Tachdjian,
to da locomoção. Essa integração aconte-
1995) para correção. O tratamento nos
ce no SNC e é restrita pelo ambiente, pelo casos leves visa ao fortalecimento da
estágio de desenvolvimento, pela tarefa, musculatura intrínseca do pé, a partir de
pela atuação dos sistemas corporais e pela estímulos sensoriais e motores.
presença de doenças, lesões, síndromes,
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 191
influência ambiental durante o desenvol- Provavelmente a criança nasce com
vimento do feto ou no período de embrio- essa deformidade por causa da postu-
gênese. Um exemplo é o pé torto equino ra intrauterina. A correção espontânea
varo, cuja incidência no Brasil é 2:1.000 pode ocorrer e depende da flexibilida-
crianças nascidas vivas. A causa mais aceita de do pé. Alongamentos passivos e/ou
é a parada do desenvolvimento do pé du- talas gessadas seriadas são orientados
rante a fase embrionária. A deformidade para esse desvio.
provoca a inversão do calcanhar e a inver-  Torção interna da tíbia – rotação medial
são e adução do médiopé, antepé e torno- excessiva da unidade tibiofibular. Cor-
zelo (Tachdjian, 1995). A intervenção para reção espontânea com o crescimento.
essa deformidade é geralmente cirurgia e A evolução natural da tíbia é rodar la-
aparelhos gessados. Essas crianças apre- teralmente com a progressão da idade.
sentam enfraquecimento muscular e mu- Aparece mais comumente em crianças
dança na mobilidade das articulações do com até três anos de idade.
joelho e tornozelo (Soares, 2007), provo-  Torção interna do fêmur – anteversão
cando uma alteração no controle protetor exagerada do colo do fêmur em rela-
do aparelho locomotor, e por isso necessi- ção ao joelho, é a causa mais comum
tam de maiores compensações e estão mais de se pisar pra dentro depois da idade
suscetíveis a lesões ao longo da vida. de 3 anos. Hábitos da forma de se sen-
Os desvios posturais no joelho acom- tar geralmente estão associados a essa
panham o desenvolvimento físico da crian- torção.
ça. A postura intrauterina pode favorecer
o aparecimento do arqueamento fisioló- Os problemas nos ligamentos e nas
gico medial leve do membro inferior logo articulações também afetam o sistema
após o nascimento. Na infância, os arquea- musculoesquelético. O termo displasia en-
mentos medial (varo) e lateral (valgo) le- fatiza a natureza dinâmica das alterações
ves são retificados espontaneamente com dos componentes osteocondrais em desen-
o desenvolvimento da postura ereta e da volvimento do quadril da criança e a res-
locomoção (Tachdjian, 1995). Se o geno va- posta a fatores biomecânicos anormais. A
ro não se resolver até os 2 anos e meio, e o mais comum é a displasia congênita do
geno valgo por volta dos 7 anos, é necessá- quadril, que engloba anormalidades desde
rio acompanhamento e intervenção tera- a instabilidade do quadril com frouxidão
pêutica, pois poderão produzir alterações capsular até a luxação completa do fêmur.
nos pés e no quadril (Tachdjian, 1995). Sua origem pode estar na hiperfrouxidão
O desenvolvimento torcional e angu- ligamentar; em defeitos na cápsula, no
lar inadequado dos membros inferiores po- fêmur proximal e no acetábulo, que podem
de promover alterações na marcha. As de- levar à instabilidade do quadril; na má-
formidades torcionais no pé, na tíbia e/ou -posição intrauterina; além de influências
no fêmur representam variações do desen- genéticas e fatores ambientais pós-natais.
volvimento normal dos membros inferiores, A luxação congênita não é uma má-
e muitos casos são corrigidos com o cresci- formação embriogênica, mas a deformida-
mento (Tachdjian, 1995). A seguir, são apre- de progressiva de uma estrutura previa-
sentadas algumas dessas deformidades. mente bem-formada. A luxação congênita
pode ocorrer nos períodos pré-natal, pe-
 Metatarso aduzido postural ou Metatar- rinatal e pós-natal, e pode ser dividida em
sus adductus – adução do antepé, com quadril luxado, luxável e quadril sublu-
retropé neutro ou ligeiramente valgo. xado. O seu diagnóstico envolve a identi-
192 Dante De Rose Jr. e colaboradores

ficação de encurtamento aparente do cionais. Metade das crianças com PC apre-


membro inferior luxado, adução passiva senta espasticidade devido à lesão no tra-
do quadril envolvido (limitada na posição to corticoespinal. Alguns autores acredi-
de flexão a 90 graus), sinal de Galleazzi tam que a disfunção nos mecanismos de
positivo e extrema mobilidade. Se a dis- controle postural é o principal distúrbio
plasia do quadril permanecer não diagnos- encontrado nessas crianças (Brogren;
ticada até que a criança inicie a marcha, Hadders-Algra; Forssberg, 1998; Rose;
haverá claudicação típica, caracterizada Gamble, 1998; Woollacott et al., 1998;
por inclinação contralateral da pelve e Shumway-Cook; Woollacott, 2003).
desvio lateral da coluna no sentido do lado Crianças com PC mais grave, com
afetado, na fase de apoio de cada passo, tetraparesia espástica e com lesão cerebe-
no quadril luxado. Na luxação bilateral, a lar e dos núcleos da base muitas vezes não
marcha é descrita como a de pato ou ma- realizam tarefas simples, como deglutir ou
rinheiro (Tachdjian, 1995). Com a recu- segurar um talher, por não manterem a
peração das relações articulares normais retificação cervical e do tronco. A incapa-
entre a cabeça femoral e o acetábulo, as cidade e a dependência são muito maio-
alterações anatômicas são reversíveis com res, e se fazem necessárias grandes adap-
o crescimento. tações mecânicas no mobiliário.
Desvios da coluna vertebral também Woollacott e colaboradores (1998)
podem prejudicar a postura da criança em relatam que os problemas de controle pos-
desenvolvimento. Escolioses idiopáticas e tural que ocorrem na PC se devem a cinco
a doença de Shermaan são exemplos des- fatores:
ses desvios que, de acordo com sua gravi-
dade, exigem tratamentos conservadores  recrutamento defeituoso das unidades
e até cirúrgicos. motoras;
O sistema nervoso é importante no  recrutamento anormal dependente da
gerenciamento de estratégias sensório- velocidade durante o estiramento mus-
motoras em todas as tarefas realizadas no cular (espasticidade);
dia a dia do ser humano. As anomalias das  ativação não seletiva da musculatura
estruturas do SN podem provocar diferen- antagonista;
tes tipos de prejuízos para a postura e a  interferência de programas motores
locomoção. O prejuízo sensório-motor cau- imaturos ou não pertinentes; e
sado pela paralisia cerebral (PC) é ampla-  mudanças nas propriedades mecânicas
mente pesquisado devido a sua incidência dos músculos.
e prevalência mundial. Ela é caracteriza-
da pela encefalopatia crônica não progres- Os ajustes posturais dependem da di-
siva (ECNP), pelas alterações de tônus reção da perturbação e se modulam por
muscular, postura e movimento, entre ou- meio da latência de ativação muscular e
tros fatores. Devido à etiologia multifato- pela amplitude da resposta muscular (van
rial, à condição e à localização variada, as Der Fits; Hadders-Algra, 1998). Crianças
limitações provocadas por ela são muitas. com PC leve e moderada (Shumway-Cook;
As crianças com PC conseguem andar, po- e Woollacott, 2003; Brogren; Hadders-
rém mostram déficits qualitativos no con- -Algra; Forssberg, 1998; Woollacott et al.,
trole de múltiplos segmentos. Os distúr- 1998) não apresentaram diferenças em re-
bios motores encontrados na PC incluem lação à escolha da direção específica de ati-
falta de coordenação, espasticidade, disto- vação muscular das crianças com o desen-
nia, hipercinesia, encurtamentos e fraque- volvimento normal; apenas na PC grave
zas musculares, paresias e limitações fun- houve alterações (Brogren; Hadders-Algra;
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 193
Forssberg, 1998). Porém, elas têm proble- Para entender as diferentes manifes-
mas para se adaptarem e modularem as ca- tações clínicas dos problemas neurológi-
racterísticas temporais, durante mudanças cos, é preciso entender cada estrutura do
no contexto da tarefa, na postura bípede SNC envolvida no planejamento e na exe-
com perturbações externas (Shumway- cução das ações motoras. O cerebelo se-
-Cook; Woollacott, 2003; Brogren; Hadders- gue a organização médio-lateral: a zona
-Algra; Forssberg, 1998; Woollacott et al., medial é responsável pelo controle da pos-
1998) ou estática (Rose; Gamble, 1998). tura e da locomoção; a zona intermediá-
Hadders-Algra e colaboradores (1999) ria controla movimentos finos de alcance
e van Der Heide e colaboradores (2004) e preensão; e a zona lateral participa no
relataram a não utilização do APA na PC, planejamento motor, na produção de lin-
na postura sentada para agarrar um obje- guagem e nos processos cognitivos e me-
to. Brogren, Hadders-Algra e Forssberg mória (Konczak et al., 2005). As lesões
(1998), Hay e Redon (1999)e Bigongiari cerebelares degenerativas provocam alte-
(2006) relatam o aumento do APA em vir- rações no controle postural e na marcha
tude da idade em crianças saudáveis. (Bakker et al., 2006).
Brogren, Hadders-Algra e Forssberg As crianças e os adolescentes com
(1998) e Hadders-Algra e colaboradores cerebelopatia apresentaram maior ampli-
(1999) não mostraram mudanças no APA tude nas oscilações corporais e maior ris-
com a idade, enquanto Bigongiari (2006) co de queda em comparação a um grupo
mostrou que o APA reduz e o APC aumen- controle saudável (Konczak et al., 2005).
ta com a idade em crianças com PC. As principais diferenças ocorreram quan-
Outra condição clínica na infância é do as condições visuais e vestibulares fo-
a síndrome de Down (SD). Sua incidência ram manipuladas nos pacientes com lesão
varia de 1:1.000 a 1:700 nascidos vivos. dos núcleos fastigiais e interpostos. Os re-
Ela está associada ao comprometimento sultados mostraram que os sinais não es-
cognitivo e ao atraso no desenvolvimento tão relacionados à idade de intervenção,
motor. A hipotonia muscular e a frouxi- mas ao local de lesão no cerebelo (Konczak
dão ligamentar podem originar a displasia et al., 2005).
acetabular e a instabilidade do segmento A ataxia espinocerebelar modifica o
vertebral atlantoaxial (primeira e segun- controle postural. A análise de COM na
da vértebras cervicais), comprometendo e postura ereta parada, perturbada na base
retardando ainda mais as aquisições mo- de suporte, mostrou que pessoas com
toras nas crianças com SD. ataxia espinocerebelar (Bakker et al.,
Crianças com SD usam preferencial- 2006) tiveram grandes instabilidades após
mente a coativação durante o APA (Aruin; perturbações posteriores e laterais. As res-
Almeida, 1997) para aumentar a rigidez postas musculares desses pacientes apre-
articular. Os autores sugerem que o SNC sentaram-se atrasadas na ativação que cor-
dos indivíduos com SD prefere não arris- rige o desequilíbrio. Uma causa da insta-
car e assim manter o controle postural es- bilidade postural em pacientes com ataxia
tável. Looper e colaboradores (2006) mos- espinocerebelar é o bloqueio do joelho,
traram que crianças com SD e normais têm que pode refletir a compensação ou o con-
menor variabilidade na amplitude de pas- trole vestibulocerebelar reduzido sobre os
so em comparação aos adultos e que crian- músculos posturais. Os indivíduos saudá-
ças com SD diminuíram a variabilidade dos veis que simularam o bloqueio do joelho
seus padrões de marcha com o treino, o (Oude Nijhuis et al., 2008) compensaram
que sugere o importante papel da prática uma perturbação postural com respostas
na tarefa. que não foram vistas nos pacientes com
194 Dante De Rose Jr. e colaboradores

ataxia. Esses estudos corroboram a ideia


de que o cerebelo é um órgão importante A estrutura óssea se torna mais rígida
com a idade, e a correção de desvios
para comparar e corrigir erros, por meio
posturais é mais difícil. A aplicação de
das aferências dos receptores periféricos e uma sobrecarga durante a infância e a
de suas aferências para o córtex motor. adolescência, como no caso de pesos
Outras estruturas importantes na exe- sustentados, pode causar alterações na
cução do movimento e do controle da pos- postura e provocar consequências nega-
tura são os núcleos basais (O’Sullivan; tivas para a coluna vertebral, como uma
Schmitz, 2004). Os sinais encontrados em dor lombar ou desvio postural.
pessoas com lesão dos núcleos basais de-
pendem do local de lesão. Localizados na
base do córtex cerebral, eles regulam o
início dos movimentos intencionais, o pla- equilíbrio, há um ajuste compensatório da
nejamento e a ação de respostas motoras postura, inclinando o tronco para a frente
complexas e ajustes posturais (O’Sullivan; e flexionando mais o quadril, o que pode
Schmitz, 2004). Entre crianças com PC, é acarretar futuras algias lombares.
possível encontrar lesões nos núcleos ba- O aumento da sobrecarga pelo uso
sais. Essas crianças podem apresentar gra- da mochila nas costas em adolescentes
ve incapacidade, com dificuldade para (Chow et al., 2005) causa redução da
manter as posturas sentada e bípede. Elas lordose, aumento da cifose torácica e com-
também mostram movimentos involun- pensação cervical com extensão da cabe-
tários, como atetose, coreia e distonias, e ça e do pescoço. A velocidade, o compri-
necessitam de adaptações para permane- mento do passo e a cadência da marcha
cerem na postura ereta e se locomoverem. diminuem, e o tempo de duplo apoio au-
menta quanto maior for a sobrecarga
transportada (10 a 15% do peso corporal)
QUAIS SÃO OS PRINCIPAIS (Chow et al., 2005). A função pulmonar é
PROBLEMAS POSTURAIS QUE comprometida, o volume expiratório e a
AFETAM A LOCOMOÇÃO? capacidade vital são reduzidos (Li; Hong;
Robinson, 2003). A inclinação do tronco
A estrutura óssea se torna mais rígi- para a frente, gerada pela flexão do tron-
da com a idade, e a correção de desvios co e pela extensão da cabeça em relação
posturais é mais difícil. A aplicação de uma ao tronco, aumenta quanto maior for a so-
sobrecarga durante a infância e a adoles- brecarga (Hong; Cheung, 2003) e causa
cência, como no caso de pesos sustenta- um aumento da oscilação anteroposterior
dos, pode causar alterações na postura e do centro de pressão (COP), o que preju-
provocar consequências negativas para a dica o equilíbrio e aumenta o risco de que-
coluna vertebral, como dor lombar ou des- das (Chow et al., 2006).
vio postural. Crianças nos estágios iniciais da mar-
Uma boa postura é estabelecida por cha (1 a 2 anos de idade), quando andam
critérios biomecânicos e fisiológicos para com uma carga além de seu próprio corpo,
o menor custo energético e máxima sus- tendem a cair ainda mais (Garciaguirre;
tentação. Mota e colaboradores (2002) Adolph; Shrout, 2007), pois não têm pleno
mostraram que crianças de 8 a 9 anos de controle das distribuições das forças para a
idade que usam mochila de duas alças com manutenção do seu equilíbrio.
12% da massa corporal têm o COM deslo- Os adolescentes tendem a usar mo-
cado posteriormente, e, para manter o chilas de duas alças, mas carregam-nas
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 195
usando apenas uma alça, o que pode cau- ASSAIANTE, C.; WOOLLACOTT, M.; AMBLARD, B.
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Esporte e atividade física na infância e na adolescência 197

LESÕES E ALTERAÇÕES
OSTEOMUSCULARES NA CRIANÇA
E NO ADOLESCENTE ATLETA
14
Victor Matsudo

Neste capítulo, procuramos apresentar


problemas que comprometem crianças e Os benefícios da atividade física e es-
portiva superam de longe seus eventuais
adolescentes esportistas, principalmente os
riscos.
que atingem o sistema musculoesquelético.
Esses problemas foram divididos em três
grandes grupos: microtraumas, macrotrau-
mas e alterações posturais. Cada um deles
MICROTRAUMAS
representa situações em que medidas pre-
ventivas poderiam colaborar para que os
Microtrauma por definição é um trau-
momentos de envolvimento com a prática
ma que por si só não causa dor, edema ou
esportiva representassem efetivamente
impotência funcional, mas que, pela repeti-
unidades de saúde a essa faixa etária, que
ção excessiva, irá produzir lesão no teci-
infelizmente está se tornando cada vez
do, surgindo, assim, as lesões por overuse.
mais sedentária.
Pelo seu caráter silencioso e pela gravida-
É preciso salientar, no entanto, que,
de que pode representar quando se mani-
ao descrevermos os problemas, não deve-
festa clinicamente, é considerado o “cân-
mos transformá-los em mais uma justifica-
cer” da prática esportiva. Devido à sua alta
tiva para afastar crianças e adolescentes
prevalência, pois é a mais frequente causa
da atividade física esportiva. Qualquer
de queixas em ambulatórios de traumato-
eventual risco aqui mencionado é menor
ortopedia, pode ser considerado o mais
que as consequências de uma infância e
grave problema da criança e, principal-
uma adolescência perdidas em frente a
mente, do adolescente que se envolve em
aparelhos de televisão, vídeo, computado-
práticas esportivas.
res ou devido a outros comportamentos se-
Os microtraumas são perigosos por
dentários, que levam a sociedade a alcan-
não causarem dor nem inchaço.
çar níveis terríveis de doenças crônico-
-degenerativas, como diabete, hipertensão,
obesidade, hipercolesterolemia, osteopo-
rose, entre outras. Os benefícios da ativi- Os microtraumas são perigosos por não
dade física e esportiva superam de longe causarem dor nem inchaço.
seus eventuais riscos.
198 Dante De Rose Jr. e colaboradores

tário. Como praxe de um período antigo


As lesões por overuse são consequências da Medicina, recebiam o nome dos auto-
da má avaliação dos microtraumas.
res que as descreviam, como Legg-Calvé-
Perthes, na osteocondrite do quadril; do-
ença de Scheuermann, na coluna verte-
bral; de Sever, no calcanhar; ou Osgood-
As lesões por overuse são consequên- -Schlatter, no comprometimento da tubero-
cias da má avaliação dos microtraumas. sidade anterior da tíbia, que é a mais fre-
A seguir, serão discutidos os diferen- quente de todas as epifisites. Nos casos
tes tipos de microtraumas, que, de acordo mais suaves, a simples redução do treina-
com o tecido comprometido, podem ser mento e o uso de gelo podem ser a melhor
divididos em: indicação, mas, nos mais intensos, a sus-
pensão do treinamento, o uso de antiinfla-
 articulares: osteocondrites, condro- matórios e até mesmo a imobilização po-
malacia; derão ser necessários.
 ósseos: periostites, fratura por estresse;
 musculares: miosites, roturas parciais,
roturas totais; Condromalacia
 tendinosos: tenopatias, roturas par-
ciais, roturas totais. A sobrecarga sucessiva na superfície
cartilaginosa, principalmente na articula-
ção patelofemoral, por compressão ou
Microtraumas articulares impactos seguidos, moderados e/ou inten-
sos, pode levar ao desgaste progressivo
Osteocondrites desse tecido na fase peripubertária, que
recebe o nome de condro (cartilagem)
Osteocondrites são alterações que malacia (desgaste, amolecimento), em
comprometem as epífises ósseas, em par- particular quando alcança o tecido subcon-
ticular a região de crescimento rápido. Co- dral. Ela é muito comum entre aqueles que
mo consequência de microtraumas fre- praticam esportes em que os saltos são fre-
quentes, essa região passa a sofrer proces- quentes (p. ex., basquetebol, voleibol, gi-
so inflamatório-degenerativo que pode nástica e balé), ou esportes com sobrecar-
evoluir para necrose do tecido adjacente, ga postural, como em alguns exercícios de
o qual pode apresentar regeneração total força muscular (p. ex., a chamada mesa
ou parcial. Em outras palavras, passado o romana), e ainda quando iniciada preco-
período inicial com quadro doloroso, prin- cemente e sem os cuidados de execução e
cipalmente devido à sobrecarga decorren- cargas adequadas. É também prevalente
te da combinação de excesso de estímulo entre os praticantes de danças e esportes
extensor e falta de alongamento, a crian- radicais. Como a regeneração cartilaginosa
ça/adolescente pode evoluir para um qua- é tarefa de difícil obtenção, se não impos-
dro de recuperação total, especialmente sível, é fundamental o afastamento de prá-
nas articulações sob menor carga física, ticas esportivas que envolvam a região da
como o cotovelo, ou de sequela séria na- patela, e, em alguns casos, a imobilização
quelas sob maior carga, como acontece no parcial ou total será necessária. Em geral,
quadril. Essas moléstias também são im- o ortopedista indicará a melhor proposta
propriamente chamadas de doenças do depois de uma análise das imagens de ra-
crescimento, por acontecerem em torno da diografia simples ou da ressonância mag-
fase do estirão de crescimento peripuber- nética nuclear, que confirmará a hipótese
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 199
diagnóstica. O trabalho fisioterapêutico es- Fraturas por estresse
tará indicado não só na redução de sinto-
mas dolorosos, mas também no retorno à Como dito anteriormente, o agrava-
prática esportiva. Em alguns casos, o uso mento da resposta óssea ao microtrauma
de instrumentos de alinhamento patelofe- de repetição poderá levar ao aparecimen-
moral, como as tiras subpatelares, pode- to da fratura por estresse, que representa
rão ser úteis; nos casos mais graves, nos uma desorganização bem mais intensa das
quais por exemplo ocorre presença de cor- trabéculas ósseas, o que corresponderia
po livre intra-articular, procedimentos ci- aos graus IV e V de Jones. Compromete
rúrgicos são indicados. mais a tíbia e os metatarsais, sendo mais
frequente entre as moças. No passado, pra-
ticamente não se encontravam casos entre
Microtraumas ósseos jovens, mas infelizmente, nos dias atuais,
é cada vez mais comum, embora sua
Periostites prevalência, comparada à de outros pro-
blemas aqui mencionados, continue sen-
Embora raras entre crianças ou ado- do pequena. Todos os cuidados recomen-
lescentes, as periostites podem represen- dados nos casos de periostite podem ser
tar um sinal importante no caminho para também aqui aplicados, sendo que, nessa
a fratura por estresse, e assim merecem afecção, maiores serão os períodos de afas-
toda atenção. Mais frequentemente, com- tamento e de reabilitação. O diagnóstico
prometem as pernas, quando poderão apa- deverá ser confirmado por um ortopedista,
recer queixas dolorosas, principalmente na que lançará mão de exames de imagem,
transição do terço médio para o inferior, como a radiografia simples, a cintilografia,
sendo popularmente chamadas de “ca- a tomografia e/ou a ressonância magnéti-
nelites”. Correspondem às manifestações ca nuclear. A observação de longos perío-
clínicas de uma inflamação do periósteo, dos de retirada de carga sobre o foco da
membrana que envolve os ossos. Alguns fratura, com atenção ao combate ao risco
acreditam que já indicariam um dano ao de perda do condicionamento concomi-
tecido ósseo e que corresponderiam aos tante, e um apropriado protocolo de re-
estágios II e III de reação óssea, segundo a torno à pratica esportiva são fundamen-
classificação de Jones. Seu aparecimento tais para o sucesso no tratamento.
deve ser interpretado como consequência
a excesso de treinamento, que precisa ser
imediatamente diminuído ou, nos casos Microtraumas musculares
mais sérios, suspenso, pois a manutenção
do programa de exercícios poderá acarre- Miosites
tar uma evolução do quadro para uma fra-
tura por estresse, cada vez mais comum O microtrauma de repetição poderá
entre adolescentes que se submetem a trei- levar ao aparecimento de uma inflamação
namentos intensos ou atividades radicais. nas miofibrilas, o que recebe o nome de
O uso de gelo local contribui para a dimi- miosite. Não é uma afecção tão frequente
nuição do quadro clínico, mas não deve e, como em geral tem evolução positiva
retardar ações mais diretas em relação às (boa), não costuma merecer tanta atenção.
causas, que, além do tipo de treinamento, O quadro clínico se compõe de dor suave a
envolvem tipo de piso ou solo, calçado, moderada em grupos musculares que fo-
mau alinhamento ou assimetrias muscu- ram mais exigidos na realização dos exer-
lares ou ósseas. cícios. Muitas vezes, sucede o quadro de
200 Dante De Rose Jr. e colaboradores

cãibras, espasmos musculares que aconte-  lesões articulares: entorses, subluxa-


cem em decorrência de recrutamento ina- ções, luxações;
dequado de grupos musculares, nos quais  lesões ósseas: fraturas;
a falta de hidratação adequada é uma das  lesões nervosas.
razões propostas, mas cuja origem conti-
nua controversa. O repouso, o gelo e a
hidroterapia são em geral procedimentos Contusões
suficientes para esse quadro.
Dentro desse rótulo, poderíamos
agrupar os problemas mais corriqueiros na
Microtraumas tendinosos prática esportiva de crianças e adolescen-
tes. O trauma involuntário ou voluntário
Lesões tendinosas/tenopatias levaria a dano de maior ou menor dimen-
são de tecidos, em geral tegumentar ou
Os tendões são locais comuns de di- muscular, e, mais raramente, ósseo ou ner-
versos problemas ortopédicos, mesmo nes- voso. Como a quantidade de energia en-
se grupo etário, particularmente na forma volvida é insuficiente para provocar uma
de inflamação, as famosas “tendinites”, lesão mais grave, mas suficiente para pro-
nome popular das tenopatias. As regiões vocar sinais inflamatórios que as distin-
mais comumente afetadas são os tendões guem dos microtraumatismos, as contu-
patelares, do calcâneo (Aquiles) e do man- sões, em sua grande maioria, têm um
guito rotador dos ombros. Enquanto os quadro inicial de dor súbita, com evolu-
dois primeiros são mais comprometidos no ção extremamente positiva em um espaço
futebol e em esportes que envolvem sal- de tempo relativamente curto. Por isso, as
tos ou saltitamentos, como o basquetebol contusões são frequentes em crianças,
e o voleibol, o último é afetado mais na mas dificilmente têm consequências mais
natação, no voleibol e nos esportes de ar- sérias.
remesso. Já as roturas parciais ou totais
são bem menos frequentes em crianças;
Roturas musculares
quando acontecem, comprometem exata-
mente esses mesmos tendões. Enquanto as
São quadros mais raros entre crian-
tenopatias respondem bem à diminuição
ças e adolescentes atletas. Quando a solu-
ou à suspensão do treinamento, acompa-
ção de continuidade compromete apenas
nhada de medidas fisioterápicas, como a
parte do segmento transverso do múscu-
crioterapia e a eletroterapia, os casos de
lo, é denominada de rotura muscular par-
rotura são em geral de indicação cirúrgi-
cial, que no meio esportivo tem recebido
ca, embora nessa idade cada vez mais se
o nome de “estiramento”. Quando com-
observem casos de evolução positiva mes-
promete totalmente o segmento transver-
mo em condutas não cirúrgicas.
so, é chamada de “rotura muscular total”,
que no meio esportivo é conhecida por
MACROTRAUMAS “distensão” muscular. O quadro clínico in-
clui dor muscular súbita, em geral a esfor-
Os macrotraumas são divididos em: ços intensos, acompanhada de impotência
funcional, hematoma e depressão no lo-
 contusões; cal da lesão, que pode aumentar com o
 roturas musculares; tempo de evolução. Tão raras quanto gra-
 ferimentos; ves nessa faixa etária, devem ser encami-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 201
nhadas para serviços de emergência orto- quando ocorre rotura total do ligamen-
pédica. to. É a mais frequente lesão articular,
Não confundir contratura com rotura sendo que o afastamento da prática
muscular parcial. esportiva para tratamento é propor-
cional à gravidade da lesão.
b) Subluxações: ocorrem quando há rotura
parcial ou total dos ligamentos, com
Não confundir contratura com rotura perda parcial da congruência articular.
muscular parcial. São raras e comprometem mais as arti-
culações interfalângicas dos pés e das
mãos, assim como a acromioclavicular,
principalmente no judô.
c) Luxações: correspondem à perda total
Ferimentos da congruência articular em conse-
quência de rotura total dos ligamentos,
Quando houver solução de continui- sendo condição de alta urgência, pois
dade da pele, teremos o ferimento, que a redução anatômica precisa ser obti-
pode ser “cortocontuso” no caso mais li- da rapidamente para evitar as seque-
near, “cortolacerante” no caso de maior las articulares ou, mais raramente, vas-
desorganização da lesão, e “cortoperfu- culares ou neurológicas. Os locais mais
rante” no caso de ferimento profundo. No acometidos são as articulações inter-
caso em que a lesão acontece mais por atri- falângicas das mãos, escapuloumerais,
to, teremos o ferimento “abrasivo” ou acromioclaviculares e, mais raramen-
“abrasão”, que ocorre mais diretamente em te, as patelofemorais; já as mais graves
virtude da ação das altas temperaturas pro- são as do cotovelo.
vocadas pelo atrito súbito sobre a pele,
como no caso dos “peixinhos” do voleibol. Não confundir entorse com luxação.

Lesões articulares
Não confundir entorse com luxação.
A dor na criança deve ser sempre va-
lorizada, especialmente nas articulações.

Lesões ósseas
A dor na criança deve ser sempre valori-
zada, especialmente nas articulações.
a) Fraturas incompletas: são as mais típi-
cas entre as fraturas que acontecem em
crianças, algumas chamadas de “fratu-
ras em galho-verde”, pois radiologica-
mente parecem não comprometer a
a) Entorse: definida como um estresse so- área cortical de forma completa, lem-
bre os ligamentos de uma articulação, brando um galho verde quebrado. Po-
sem levar à perda da congruência arti- dem mostrar o resultado de uma gran-
cular. Pode ser classificada como: leve, de força de compressão, quando se de-
quando não ocorre solução de conti- nominam “fratura por impacção”. Nor-
nuidade; moderada, quando ocorre malmente, atingem o antebraço, com-
rotura parcial do ligamento; grave, prometendo o rádio e/ou a ulna.
202 Dante De Rose Jr. e colaboradores

b) Fraturas completas: nessa faixa etária, e) Fratura exposta: quando o foco da fra-
acometem mais os membros superio- tura tiver contato perfurante com a
res, mesmo em um país do futebol, o pele, mesmo que transitoriamente, te-
que de certa maneira denota que, pa- mos um dos casos mais delicados de
radoxalmente, apesar dos longos pe- manejo: a fratura exposta. É uma “ur-
ríodos de treinamento, não se inclui um gência urgentíssima”, na qual a ênfase
cuidado com o exercício no sentido de nos primeiros socorros deve ser na re-
“saber cair”. Os ossos dos antebraços, dução das chances de infecção, e não
dos cotovelos, dos dedos e dos braços em qualquer tentativa de redução da
são os mais atingidos, vindo a seguir o fratura. Assim, cubra imediatamente a
tornozelo e, menos frequentemente, as lesão e não tente “colocar o osso no
pernas e as coxas. Como comprometem lugar” ou “limpar uma sujeirinha”; en-
mais os membros superiores, é funda- caminhe a criança ou o adolescente
mental que se observem sinais de vas- imediatamente para um serviço de
cularização e inervação adequados, emergência ortopédica, pois a osteo-
pois nessa idade e nessa região podem mielite poderá ser uma das complica-
acontecer compressões vasculares ou ções mais sérias.
nervosas em consequência da fratura.
A mais temível de todas é a síndrome No caso de fratura, não se deve ten-
de Volkmann, que pode acontecer como tar colocar o osso no lugar. As consequên-
sequela de fratura de cotovelo. Sendo cias podem ser maiores do que a lesão ori-
uma urgência, requerem que o profis- ginal.
sional tenha conhecimento dos princí-
pios de imobilização provisória e pres-
teza nas ações necessárias de transporte
ao pronto-socorro, assim como na no- No caso de fratura, não se deve tentar
tificação de familiares desses menores. colocar o osso no lugar. As consequên-
São lesões que vão requerer um trata- cias podem ser maiores do que a lesão
mento mais prolongado, em que a rea- original.
bilitação merece um cuidado todo es-
pecial para que a criança retorne à prá-
tica esportiva recuperada física e emo-
cionalmente.
c) Fratura epifisária: nessa faixa etária, é Lesões nervosas
bom lembrar que em algumas ocasiões
a fratura pode comprometer a linha de Felizmente, não são lesões frequen-
crescimento, podendo levar a deformi- tes nesse grupo etário, e as que merecem
dades nos casos de evolução mais ne- atenção podem ser divididas em:
gativa, exigindo, assim, um maior cui-
dado desde o diagnóstico até o retorno a) Periféricas: podem corresponder a ape-
à prática esportiva. nas uma compressão nervosa (neuro-
d) Fratura-escorregamento epifisário: um praxia) até uma secção parcial (axo-
caso especial é o que pode acontecer notmese) ou total (axotomia) da fibra
na epífise proximal do fêmur, princi- nervosa.
palmente entre adolescentes acima do b) Centrais: têm na concussão cerebral seu
peso, que recebe o nome de epifisiólise, caso mais grave, em que o trauma na
situação que deve ser acompanhada por caixa craniana pode levar a uma perda
um ortopedista. da consciência momentânea ou prolon-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 203
gada e, nos casos mais sérios, até a entre os profissionais da saúde, é rara nos
morte, fato muito raro, mas que res- primeiros anos da infância e aumenta sua
salta a importância do uso de capace- prevalência a partir da pré-puberdade, al-
tes nos esportes com maior risco, como cançando picos na adolescência. O dano à
o ciclismo, o esqueitismo, o automobi- estética nessa época é muito maior do que
lismo e mesmo a aparentemente ino- as queixas dolorosas, que, quando presen-
cente patinação. tes, geralmente representam um caso com
maior gravidade. Embora presente nos
dois sexos, no feminino costuma ser atri-
ALTERAÇÕES POSTURAIS buída a uma má adaptação ao novo es-
quema corporal, em virtude do rápido de-
As alterações posturais podem ser senvolvimento mamário, que resultaria em
classificadas em: uma posição de defesa; à postura na leitu-
ra em carteiras escolares não apropriadas;
a) coluna vertebral: hipercifose dorsal, à postura dos pais, ou mesmo a atitudes
hiperlordose lombar, escoliose toraco- de ídolos desses teenagers. No caso dos
lombar, espondilólise/espondilolistese; meninos, o crescimento rápido e de maior
b) quadril: anteversão, retroversão; dimensão em altura poderia gerar uma
c) joelhos: geno valgo, geno varo, joelho maior dificuldade de adaptação ao novo
recurvado; esquema corporal, como também, no ima-
d) pés: plano, cavo, hálux valgo; ginário, uma negação dessa nova e difícil
e) assimetrias. fase da vida, buscando uma postura de me-
nor estatura, mais próxima à fase infantil.
Evidentemente, existe um componen-
Coluna vertebral te genético que pode ser mais ou menos
intenso, mas, dos desvios posturais aqui
A coluna vertebral é sede das quei- mencionados, o “dorso curvo” é talvez o
xas dolorosas mais frequentes em ambu- mais reversível, desde que diagnosticado
latórios médicos. No entanto, grande par- precocemente e submetido a uma adequa-
te desses problemas começa na infância da terapia. O tratamento deve envolver o
ou na adolescência, quando o professor de fortalecimento dos músculos paravertebrais
educação física tem contato muito mais dorsais e o alongamento dos peitorais e
constante com os alunos, devendo assim isquiotibiais, que pode ser obtido por exer-
estar atento a um diagnóstico precoce; até cícios tradicionais na piscina, mediante o
porque muitas das alterações têm caráter estilo de nado de costas ou a hidroterapia.
progressivo, ou seja, pioram com o cresci- Nos casos em que socialmente seja possí-
mento da criança. Assim, uma pequena vel, podem-se usar técnicas de RPG (reedu-
alteração aos sete anos pode ser bem gra- cação postural global), GDS (global dynamic
ve aos 10 ou 11 anos de idade. stretching), iso-stretching ou Pilates, entre
outras. Nas situações mais graves, podem
ser necessários coletes, imobilizações gessa-
Hipercifose dorsal das e até mesmo cirurgia corretiva.

A acentuação da cifose fisiológica


dorsal dá um aspecto à criança ou ao ado- Hiperlordose lombar
lescente que os pais e professores referem
como “corcunda”. A hipercifose dorsal, ou A acentuação da lordose lombar fisi-
dorso curvo, como também é conhecida ológica, por conferir à portadora uma exa-
204 Dante De Rose Jr. e colaboradores

cerbação da região glútea, pode ser inter- caso, bem mais grave. Na maioria das ve-
pretada, principalmente em nosso meio, zes, o quadro se torna mais visível a partir
como uma grande “qualidade” da gracio- da fase escolar e, principalmente, na peri-
sa menina que, no entanto, poderá ter sé- puberdade, quando o crescimento rápido
rias consequências. Em algumas modali- pode imprimir o temível caráter progres-
dades, como na ginástica olímpica ou ar- sivo da enfermidade. Em pouco tempo, às
tística, chega a ser pré-requisito para faci- vezes meses, uma escoliose leve pode tor-
litar maior pontuação. Existe evidentemen- nar-se moderada e, em seguida, passar a
te um forte fator genético por trás dessa intensa, necessitando, portanto, de espe-
deformidade, mas o atual estado de valo- cial atenção dos profissionais da área. Es-
res em nossa cultura tem valorizado ina- ses profissionais provavelmente são os
dequadamente os glúteos mais pronun- mais indicados para fazer o primeiro diag-
ciados, principalmente em meninas, muitas nóstico ou pelo menos levantar a suspei-
vezes obtidos por acentuação da lordose ta, uma vez que nesse período as crianças
lombar. Essa posição não trará, em um nem sempre estão despidas em frente aos
primeiro momento, maiores problemas, pais e nem sempre estes prestam atenção
mas pode representar a porta de entrada a essas alterações. O bom exame inicial
de um maior risco de espondilólise ou poderá evitar o dissabor de, pelo caráter
espondilolistese ainda nessa faixa etária e, evolutivo da enfermidade, atribuir-se ao
a longo prazo, de hérnia de disco, ar- programa de exercícios a causa da defor-
tritismo e finalmente artrose da região. Por midade. A simples observação da coluna,
isso merece ser tratada o mais precocemen- anterior e posteriormente, pode fornecer
te, indicando-se o alongamento de para- os elementos para o diagnóstico, sendo que
vertebrais lombares e iliopsoas, assim co- o uso de um quadro quadriculado (estadiô-
mo dos isquiotibiais. Hidroterapia, RPG, metro) pode facilitar essa tarefa, além do
GDS, Pilates e iso-stretching poderão enri- chamado triângulo do talhe, formado pela
quecer a abordagem, mas dependem das borda interna dos braços e antebraços e
condições especiais da família e da região pela borda lateral do tronco. Completa-se
de moradia. a avaliação com a realização do chamado
teste de um minuto, com o jovem atleta
em flexão do tronco de aproximadamente
Escoliose toracolombar 70 a 90o, ficando o avaliador postado an-
terior ou posteriormente, tentando deter-
O desvio laterolateral da coluna ver- minar assimetrias principalmente de mús-
tebral é chamado de escoliose, denomina- culos paravertebrais, da caixa torácica, as-
ção dada por lembrar a forma da letra S. sim como angulações da coluna. Tanto nos
Quando esse desvio é acompanhado de um casos diagnosticados como nos suspeitos,
desvio rotacional, temos o quadro deno- deve-se encaminhar a criança ou o ado-
minado escoliose verdadeira. A primeira lescente para o ortopedista, que é o pro-
pode ser consequência de um simples en- fissional que poderá não só monitorar o
curtamento de um dos membros inferio- tratamento, mas também indicar a possi-
res, problema bem mais frequente do que bilidade de prática esportiva concomitan-
se imaginava, e que é abordado em outra te. Nos casos leves e estáveis, a participa-
parte deste capítulo. A segunda tem ção será permitida e, em algumas modali-
etiologia idiopática, com forte tendência dades, como a natação, até estimulada.
hereditária, comprometendo pouco mais Nos casos moderados, a supervisão médi-
meninas que meninos. Pode surgir desde ca será fundamental, enquanto nos casos
os primeiros anos de vida, sendo, nesse graves ou instáveis, de evolução progres-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 205
siva, o mais prudente é a observação, man- ser leve (grau I), moderada (II), grave (III)
tendo-se o jovem atleta afastado do espor- ou gravíssima (IV). Embora possa ocorrer
te mais intenso por alguns meses. Ressal- em toda a coluna, compromete mais fre-
te-se que isso não significa que ele não po- quentemente a transição entre as vértebras
derá tomar parte em atividades modera- L5-S1 e L4-L5. A manifestação clínica de
das, com menor sobrecarga na região da dor não é tão comum, podendo se iniciar
coluna, estando ainda mais indicado nes- principalmente no final da puberdade e
ses casos o trabalho em meio líquido, par- início da adolescência. O diagnóstico não
ticularmente a hidroterapia. Via de regra, é tão difícil, obtido em geral por radio-
a ginástica corretiva, em que as técnicas de grafia simples, mas a etiologia envolve
RPG, GDS, Pilates e iso-stretching têm tido grande controvérsia, tendo de um lado
bons resultados, deve ser indicada a partir aqueles que apontam sua origem congê-
do momento em que a criança pode cola- nita e de outro os que sustentam ser uma
borar mais com o terapeuta, o que, na prá- fratura de estresse, decorrente de micro-
tica clínica, se observa a partir dos 10 anos traumas de repetição. Essa última hipóte-
de idade. Caminhar, dançar ou pedalar de se se sustenta também pelas modalidades
forma recreativa podem ser opções precio- esportivas em que o problema é mais pre-
sas não para a correção da deformidade, valente: ginástica olímpica, balé, hipismo
mas para a manutenção da aptidão física e esportes coletivos que envolvem mais
e da saúde como um todo. Em outras pala- saltos, como o voleibol. Por isso, se reco-
vras, o portador de escoliose grave não pode menda a suspensão total desses esportes
ser considerado, como no passado, um con- até que os controles radiológicos demons-
denado à inatividade física. Nos casos mais trem estabilidade por pelo menos seis
graves, coletes podem ser tentados. Além meses a dois anos. Trabalho de alongamen-
disso, podem ser necessárias cirurgias, que, to de paravertebrais lombares, hidrotera-
pela complexidade, riscos e custos, refor- pia, GDS, iso-stretching, Pilates e RPG es-
çam ainda mais a necessidade de medidas tão indicados mesmo em idade infantil,
preventivas. A escoliose tem que ser monito- sendo que, nos casos mais graves, coletes
rada, pois a leve de hoje pode ser a grave e mesmo cirurgia poderão ser necessários,
de amanhã. mostrando assim a importância da ação
preventiva do profissional de ciências do
esporte.
A escoliose tem que ser monitorada, pois a
leve de hoje pode ser a grave de amanhã.
Quadril

Espondilólise/Espondilolistese Muitas das alterações do quadril são


percebidas logo no berçário, como a dis-
É sem dúvida o menos frequente dos plasia ou a luxação congênita. Outras irão
problemas de coluna mencionados neste manifestar-se somente mais tarde, muitas
capítulo. No entanto, merece uma aten- vezes com repercussões para os pés, cha-
ção especial pelo caráter progressivo e pelo mando, assim, a atenção dos familiares ou
risco de graves complicações, principal- professores.
mente neurológicas. Corresponde a uma
falha na consolidação (“soldadura”) do
Anteversão do quadril
arco posterior das vértebras (espondiló-
lise), que pode vir ou não acompanhada Também conhecida como “pés em pe-
de deslizamento (espondilolistese), e pode riquito”, corresponde a um aumento da ro-
206 Dante De Rose Jr. e colaboradores

tação interna do quadril associado a uma para aqueles que tiverem condições eco-
diminuição da rotação externa, o que con- nômicas apropriadas.
fere aos pés uma posição peculiar em que
a parte anterior volta-se internamente,
principalmente ao caminhar e, de forma Joelhos
mais acentuada, ao correr. Por essa situa-
ção de maior expressão durante atividade Sem dúvida, essa articulação é a que
física, é o profissional de ciências do es- mais recebe atenção em estudos ortopédi-
porte que muitas vezes detecta essa ano- cos ou traumatológicos, pela complexida-
malia e/ou deveria estar atento a ela, prin- de de sua estrutura e alta prevalência de
cipalmente entre crianças, nas quais o fe- micro e macrolesões que a comprometem.
nômeno é mais frequente. É fundamental
a recomendação de não dormir em
decúbito ventral e a utilização de palmilhas Geno valgo
para acomodação biomecânica mais anatô-
mica e correção parcial ou total, que pode “Joelho em X”, como a população se
ser obtida se as medidas forem tomadas refere ao joelho (genu) valgo, é o afasta-
precocemente. Exercícios de rotação ex- mento das pernas em relação ao eixo prin-
terna, como os típicos do balé (para meni- cipal do corpo, problema mais prevalente
nas) e do artista Chaplin (para meninos), entre meninas, que pode ser nos casos le-
têm sua função, sendo que a RPG tem co- ves e na criança considerado fisiológico,
laborado efetivamente, podendo ser uma mas que nos casos mais intensos e na ado-
alternativa importante, porém ainda de lescência tem implicação direta na aptidão
alto custo. antropométrica e neuromotora, particular-
mente na adiposidade e na velocidade de
corrida de 50 m, como revelado em estu-
Retroversão de quadril dos recentes no Laboratório de Aptidão Fí-
sica de São Caetano do Sul (CELAFISCS).
O aumento da rotação externa do O diagnóstico pode ser determinado pelo
quadril, associado com uma diminuição da aumento do ângulo Q, mas, na prática, o
rotação interna, confere aos pés uma po- mais fácil é observar a medida da distân-
sição em que a parte anterior fica voltada cia intermaleolar (distância em cm entre
para fora, correspondendo ao que a popu- os dois maléolos mediais dos tornozelos,
lação costuma chamar de “dez para as com a criança em posição ortostática). O
duas”, porque os pés ficariam na posição uso de palmilhas tem um efeito na corre-
correspondente à dos ponteiros do reló- ção de muitos casos e, mais relevante ain-
gio nesse horário. Como no caso da an- da, na compensação do desalinhamento da
teversão, também se acentua clinicamen- articulação do joelho, responsável pela di-
te, embora de forma um pouco menos in- minuição do espaço interarticular, que
tensa, com a marcha e principalmente a poderá levar à sintomatologia dolorosa
corrida. Nesse caso, não é recomendado o (sinovite), acompanhada ou não de lesão
decúbito dorsal ao dormir, sendo que pal-
milhas para a acomodação biomecânica,
correção parcial ou mesmo total devem ser
indicadas o mais precocemente possível.
Exercícios de rotação interna, como os rea- O joelho valgo prejudica a velocidade dos
lizados na natação no estilo crawl, devem adolescentes.
ser recomendados, assim como a RPG,
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 207
meniscal, ligamentar ou cartilaginosa te, fato que merecerá mais estudos. Um
(condromalacia). É mais comum em pra- pouco de varo poderá ajudar na agilidade.
ticantes de basquetebol e entre nadado-
ras. O joelho valgo prejudica a velocidade
dos adolescentes.
Joelho recurvado

Geno varo Muito menos frequente que os dois


problemas anteriores, o joelho recurvado
Também conhecido como “joelho de se caracteriza pela hiperextensão dos joe-
cowboy”, é a aproximação das pernas em lhos, que pode ser melhor dimensionado
relação ao eixo principal do corpo, pro- com o esportista examinado em posição
blema mais prevalente entre meninos. É, lateral. É mais comum em ginastas, baila-
em geral, menos frequente que o geno rinas e nadadoras. Na criança, pode estar
valgo, mas com repercussões maiores so- relacionado a um aumento de flexibilida-
bre a saúde do joelho. Em outras palavras, de geral, muito comum nessa faixa etária.
nossa espécie parece que se adaptou me- No entanto, precisa ser diferenciado de
lhor ao valgo do joelho que ao varo; ou moléstias do tecido elástico, como o Ehlers-
seja, menores valores de varo precipitam Danlos, em que ocorre um aumento pato-
consequências mais danosas à articulação lógico da flexibilidade, inclusive do joelho.
do joelho que maiores índices de valgismo. Em geral, um reforço na musculatura pos-
A sintomatologia dolorosa pode estar re- terior da coxa e um alongamento do
fletindo a compressão das estruturas do quadríceps são as medidas práticas que o
compartimento medial dos joelhos. O profissional de ciências do esporte pode
diagnóstico também pode ser definido pela indicar.
redução do ângulo Q ou pelo índice KVV,
dado pela subtração da distância inter-
condilar da distância intermaleolar. No Pés
entanto, na prática, o mais simples é ob-
servar a medida da distância entre os côn- Parece que por permanecerem os pés,
dilos femorais (distância intercondilar), no mundo moderno, mais dentro de cal-
em que qualquer resultado diferente de çados, subestimamos a importância da
zero representa geno varo presente. Re- parte do corpo que nos mantém em con-
centemente, apuramos em nosso labora- tato direto com esse planeta.
tório (CELAFISCS) uma relação positiva
entre a presença de varo discreto e o de-
sempenho em testes de agilidade e veloci- Planos
dade, o que reforçaria a crença de treina-
dores, em especial de futebol, de que ga- Popularmente conhecida como “pé
rotos com essa alteração poderiam repre- chato”, a queda do arco interno dos pés
sentar melhor potencial para esse espor- representou o primeiro dos problemas de
alinhamento merecedor da atenção de mé-
dicos e de esportistas, talvez pelo descon-
forto maior ou menor que os portadores
referiam, principalmente quando subme-
Um pouco de varo poderá ajudar na agi- tidos a esforços físicos mais intensos e, em
lidade. especial, mais prolongados. Embora nos
casos mais graves possa merecer indica-
208 Dante De Rose Jr. e colaboradores

ção cirúrgica, na maioria das vezes, o uso por atividade esportiva excessiva, ou ain-
de palmilhas ortopédicas parece acomo- da pelo uso de calçados que comprimem
dar (na adolescência) ou até corrigir (prin- o antepé. A utilização de carretel ou de
cipalmente na infância) adequadamente tutores noturnos, associado a exercícios de
essa alteração ortopédica, a qual já foi usa- abdução passiva e ativa do hálux, com o
da como justificativa de exclusão do ser- uso de calçados confortáveis e que não
viço militar. A combinação entre o uso de comprimam o antepé, propiciará o melhor
palmilhas e exercícios parece ser a melhor resultado no tratamento dessa deformida-
conduta na maioria dos casos leves e mo- de, reservando-se a cirurgia para quadros
derados. álgicos mais intensos ou de estética total-
mente comprometida.

Cavos
Assimetrias (encurtamentos
Também conhecida por “pé alto”, a de membro inferior)
exacerbação do arco do pé, além de ser
considerada por alguns como motivo de Um dos problemas mais frequentes
beleza, poderia dar certas vantagens de e, infelizmente, pouco valorizado é a
performance esportiva, particularmente assimetria de membros inferiores; ou seja,
nos eventos que exigissem velocidade em por motivos genéticos ou ambientais, o
terra (como em corridas de curta distân- fêmur e/ou o conjunto tíbia-fíbula apre-
cia) ou ainda nos movimentos do salto sentam diferenças no seu comprimento.
(como na ginástica olímpica e no basque- Essa diferença pode passar despercebida
tebol). No entanto, a queda progressiva do por toda a infância e mesmo pela adoles-
arco anterior que acompanha essa afecção cência. No entanto, como nessa última fase
implicará dor, principalmente, na projeção o crescimento dos segmentos apendicu-
da cabeça dos metatarsianos, clinicamen- lares é mais rápido, o problema pode exa-
te conhecida como “metatarsalgia”, que na cerbar-se, resultando assim em um qua-
maioria das vezes é acompanhada de dro clínico mais claro. Essas assimetrias po-
calosidades nas plantas dos pés e mesmo dem criar forças de cisalhamento que com-
no dorso dos artelhos. O uso de palmilhas, prometem as estruturas próximas e mes-
combinado com procedimentos fisiotera- mo as mais distantes do corpo. Muitas des-
pêuticos nas fases agudas do problema, é sas alterações, com exceção do aspecto es-
o procedimento com maior sucesso; a ci- tético, passam despercebidas durante mui-
rurgia raramente é indicada, mesmo nos to tempo, pois sua repercussão nociva para
casos mais graves. os tecidos pode levar anos ou mesmo dé-
cadas. Por isso é fundamental o diagnósti-
co precoce que permita o monitoramento,
Hálux valgo a compensação com órteses (palmilhas) ou
mesmo a cirurgia, nos casos mais graves.
Conhecido pela população como “joa- Esse último procedimento é bem mais raro
nete”, corresponde a uma valgização (des- na prática esportiva, principalmente de
vio látero-externo) do hálux em relação alto rendimento, com exceção daqueles
ao primeiro metatarsiano, que confere ao atletas envolvidos em programas para gru-
pé um aspecto de pouca estética e, na pos especiais.
maioria dos casos, incomoda até mais que Assim, são os casos de assimetrias
a dor que pode instalar-se progressivamen- leves e moderadas que merecem a maior
te com o passar dos anos e/ou a provocada atenção dos profissionais de ciências do
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 209
esporte. De forma prática, diferenças me- forma contínua ou acumulada, como pre-
nores que 0,5 cm poderiam ser despreza- coniza o Programa Agita São Paulo, o
das, ou pelo menos consideradas dentro American College of Sports Medicine, o
das diferenças naturais entre os dois hemi- CDC e a American Heart Association. Para
corpos. Diferenças de 0,5 a 2 cm poderiam crianças e adolescentes, a duração deve-
ser facilmente compensadas com o uso de ria ser de pelo menos 60 minutos de ativi-
palmilhas e/ou saltos. As de 2 a 4 cm pre- dade física moderada, sendo recomendá-
cisariam de um acompanhamento mais ri- vel também que se envolvam em ativida-
goroso, sendo a cirurgia em geral indicada des vigorosas, durante 20 minutos, duas
para diferenças superiores a 4 cm. ou três vezes por semana.
O diagnóstico é realizado a partir do
exame clínico-ortopédico, com a determi-
nação do comprimento real e aparente dos LEITURAS COMPLEMENTARES
membros inferiores e, posteriormente, con-
firmado com o auxílio de uma escanome- CARVALHO, C. S.; MATSUDO, V. K. R.; MATSUDO,
tria de membros inferiores. S. M. M. Intercorrências de saúde em atletas de alto
nível de ginástica aeróbica de competição. Rev. Bras.
Muitas vezes, pais e filhos ficam na Ortop., v. 30, p. 735-740, 1995.
dúvida se é necessário o uso de palmilhas CELAFISCS. Isto é agita São Paulo. São Paulo, 2002.
também durante a prática esportiva. Evi- GARCIA, N. et al. Relação entre a aptidão física e
dentemente que a resposta é sim, princi- geno valgo em crianças e adolescentes (Ilhabela-
palmente naqueles esportes realizados em -SP). In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS
posição ortostática. DO ESPORTE, 23., 2000. Anais... [São Paulo :
CELAFISCS, 2000]. p. 142.
HASKELL, W. L. et al. Physical activity and public
health updated recommendation for adults from the
CONSIDERAÇÕES FINAIS American College of Sports Medicine and the Ame-
rican Heart Association. Circulation, v. 116, p. 1081-
Como mencionado no início deste ca- 1093, 2007.
pítulo, esperamos que os conhecimentos MATSUDO, V. K. R. Características epidemiológicas
aqui apresentados sejam um instrumento e ortopédicas do trauma esportivo. Rev. Bras. Med.
Esporte, v. 3, p. 41-43, 1975.
útil não para o afastamento, mas para a
inclusão de crianças e adolescentes na prá- –––––––––– . Espondilolise e esporte. Rev. Bras. Cien.
Mov., v. 4, p. 63-64, 1990.
tica regular de atividade física.
–––––––––– . Lesões osteomusculares e a prática da ae-
As evidências epidemiológicas que róbica. Rev. Bras. Cien. Mov., v. 4, p. 62-70, 1990.
consideram a relação custo (risco)/bene- MEJIA, C. G. et al. Incidência de alterações posturais
fício permitem concluir que qualquer pes- em escolares de ambos os sexos de 10-14 anos. In:
soa deveria acumular pelo menos 30 mi- BIENAL DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 1989, São
nutos de atividade física diária de intensi- Paulo. Anais... São Caetano do Sul: Celafiscs, 1989.
p. 33.
dade moderada na maioria dos dias da
OLIVEIRA, A. C. et al. Relação entre geno varo e
semana (cinco dias), se possível todos, de aptidão física em crianças e adolescentes. Rev. Bras.
Cien. Mov., v. 14, p. 149, 2006. Suplemento Especial.
OROZCO, G. P. O. et al. Incidência das alterações
posturais por nível socioeconômico em escolares do
Para crianças e adolescentes, a duração sexo feminino de 10-14 anos. In: BIENAL DE CIÊN-
deveria ser de pelo menos 60 minutos CIAS DO ESPORTE, 1990, São Paulo. Anais... São
de atividade física moderada, sendo re- Paulo. 1990. p. 32.
comendável também que se envolvam STRONG, W. B. et al. Evidence based physical
em atividades vigorosas, durante 20 mi- activity for school-age youth. J. Pediatr., v. 146, p.
nutos, duas ou três vezes por semana. 732-737, 2005.
ATIVIDADE FÍSICA E PESO
CORPORAL NA INFÂNCIA
E NA ADOLESCÊNCIA
15
Fabiana de Sant’Anna Evangelista

A prática regular de atividade física tem ram que 155 milhões de crianças no mun-
sido amplamente indicada para a promo- do, em idade escolar, estejam com sobrepe-
ção da saúde, a prevenção e o tratamento so ou obesidade.
de diversas patologias nas diferentes fai- Por se tratar de um período impor-
xas etárias. Nos últimos anos, os estudos tante para o desenvolvimento de caracte-
envolvendo o uso da atividade física como rísticas biológicas que refletirão nos pa-
ferramenta para o controle do peso cor- drões de composição corporal e estado de
poral na infância e na adolescência ganha- saúde de um indivíduo adulto, identificar
ram grande destaque, especialmente em os fatores etiológicos e as intervenções
virtude do aumento da prevalência de obe- mais adequadas para a prevenção e o tra-
sidade nessa população. Segundo dados do tamento da obesidade é fundamental para
Ministério da Saúde de 2004, estima-se diminuir a prevalência e os fatores de ris-
que 15 milhões de crianças e adolescen- co associados ao excesso de peso corporal
tes no Brasil, isto é, 25% da população na infância e na adolescência, tais como
infanto-juvenil, estejam com o peso cor- hipertensão arterial, diabete melito e dis-
poral acima do ideal, e 1,5 milhão seja con- túrbios do metabolismo de lipídeos.
siderado obeso. A atividade física regular na infância
A crescente prevalência de obesida- e na adolescência resulta em benefícios
de na infância e na adolescência é obser- para a saúde que vão além do controle de
vada em todo o mundo. Desde o início da
década de 1990, a Organização Mundial
de Saúde demonstrou grande preocupa- Por se tratar de um período importante
ção ao estimar 18 milhões de crianças me- para o desenvolvimento de característi-
nores de cinco anos classificadas com so- cas biológicas que refletirão nos padrões
brepeso (Childhood obesity: an emerging de composição corporal e estado de saú-
public-health problem, 2001). Ainda, con- de de um indivíduo adulto, identificar os
forme observado em 2005 pela Organiza- fatores etiológicos e as intervenções
ção Mundial de Saúde, nos últimos 10 anos mais adequadas para a prevenção e o
tratamento da obesidade é fundamental
houve aumento entre 10 e 40% da obesida-
para diminuir a prevalência e os fatores
de infantil na maioria dos países europeus. de risco associados ao excesso de peso
Dados epidemiológicos da International corporal na infância e na adolescência.
Obesity Task Force (IOTF) de 2005 estima-
212 Dante De Rose Jr. e colaboradores

peso corporal. Uma relação inversa entre vocadas pelo excesso ou pela falta de in-
atividade física e gordura corporal, lipídeos gestão e/ou de gasto energético podem in-
totais e pressão arterial é observada em fluenciar diretamente o peso corporal.
crianças e adolescentes fisicamente ativos Pode-se observar um aumento do peso
(Strong et al., 2005; Flynn et al., 2006). corporal quando o balanço energético é
Além disso, a promoção de um estilo de positivo, ou seja, a ingestão calórica é su-
vida ativo tem forte influência no padrão perior ao gasto energético. Em contrapar-
de crescimento e desenvolvimento e na tida, a perda de peso corporal está associa-
melhora da aptidão física e do desempe- da ao balanço energético negativo (inges-
nho. Acrescida aos benefícios para a saú- tão calórica inferior ao gasto energético).
de, a atividade física oferece oportunida- Com o aumento da idade, a quanti-
de de lazer e socialização, além de agre- dade de ingestão calórica diária absoluta
gar valores como autoestima, confiança aumenta; porém, quando corrigida pelo
e motivação para a participação futura em peso corporal, diminui com a idade. Na
programas de atividade física. adolescência, as demandas energéticas
estão mais relacionadas à maturidade bio-
lógica do que à idade cronológica. Nor-
malmente, os picos de consumo calórico
são coincidentes com os picos de veloci-
Uma relação inversa entre atividade fí-
sica e gordura corporal, lipídeos totais e dade de crescimento (Malina; Bouchard,
pressão arterial é observada em crian- 2002).
ças e adolescentes fisicamente ativos.

Na adolescência, as demandas energé-


ticas estão mais relacionadas à maturi-
No presente capítulo, serão discuti- dade biológica do que à idade cronoló-
das as características do balanço energé- gica. Normalmente, os picos de consu-
tico durante o crescimento e o desenvolvi- mo calórico são coincidentes com os
mento da criança e do adolescente, os fa- picos de velocidade de crescimento
tores determinantes para o desenvolvimen- (Malina; Bouchard, 2002).
to da obesidade nessa faixa etária, a re-
percussão da alteração de peso corporal,
a associação de fatores de risco ao longo
da vida e, finalmente, a aplicabilidade da Os principais fatores determinantes
atividade física para a prevenção e o tra- do gasto energético são a taxa metabólica
tamento da obesidade na infância e na basal, o efeito térmico dos alimentos e o
adolescência. gasto energético resultante da atividade
física. Entretanto, na infância e na adoles-
cência, as demandas energéticas para o
BALANÇO ENERGÉTICO NA crescimento contribuem para elevar signi-
INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA ficativamente o gasto metabólico ener-
gético. De fato, entre o nascimento e os
O balanço energético, determinado quatro primeiros meses de vida, 33% do
pela diferença entre a ingestão calórica e consumo de energia é destinado para o
o gasto metabólico energético, é funda- crescimento; entre os 4 e 12 meses, 7%;
mental para a homeostase de peso corpo- entre os 12 e 24 meses, 1,5%; e entre 24 e
ral. Alterações no balanço energético pro- 36 meses de idade, apenas 1%. Dessa for-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 213
ma, a taxa metabólica basal aumenta pro- A prática regular de atividade física
porcionalmente ao aumento do peso cor- contribui diretamente para o aumento do
poral; porém, quando expressa por quilo- gasto energético, interferindo no balanço
grama de peso corporal, diminui durante energético e, consequentemente, no con-
o crescimento, sendo maior no início da trole do peso corporal e da adiposidade.
infância e menor na adolescência. Embo- De fato, a atividade física pode contribuir
ra a massa muscular seja semelhante en- em até 15% do gasto energético diário, tor-
tre meninos e meninas, uma ligeira dife- nando-se uma importante ferramenta para
rença no peso corporal associada ao gêne- a prevenção e o tratamento da obesidade.
ro pode ser consequente da maior ativida- Em contrapartida, a adoção de um estilo
de física realizada por meninos nessa fai- de vida sedentário, caracterizado por lon-
xa etária (Malina; Bouchard, 2002). gos períodos de lazer com televisão, com-
putador e video games, está associada à re-
dução do gasto energético diário e ao au-
mento do peso corporal (Epstein et al.,
A taxa metabólica basal aumenta pro-
2008).
porcionalmente ao aumento do peso
corporal; porém, quando expressa por
quilograma de peso corporal, diminui du- FATORES DETERMINANTES DO
rante o crescimento, sendo maior no iní- DESENVOLVIMENTO DA OBESIDADE
cio da infância e menor na adolescência.
A obesidade, definida como o acú-
mulo excessivo de tecido adiposo, é um
distúrbio complexo resultante do desequi-
líbrio do balanço energético, com elevado
Conforme ilustrado na Figura 15.1, índice de incidência nas populações. En-
na infância e na adolescência, a resposta tre as principais causas, são incluídos o de-
do balanço energético é consequência tan- sequilíbrio nutricional e o gasto metabóli-
to do aumento da ingestão calórica quanto co energético reduzido (causas exógenas),
do aumento de gasto energético. No entan- e as alterações neuroendócrinas de origem
to, outros fatores ainda exercem influência genética e/ou ambiental e hereditarieda-
direta sobre o gasto energético, como a de (causas endógenas) (Soares; Petroski,
atividade física e o sedentarismo. 2003). Condição socioeconômica, fatores

Figura 15.1 Fatores determinantes do balanço energético na infância e na adolescência.


214 Dante De Rose Jr. e colaboradores

psicológicos e etnia também devem ser sumo de frutas, vegetais, peixe, leite e ce-
considerados, segundo Fisberg (2004). reais integrais. A forma de preparo dos
Mudanças no padrão alimentar nos alimentos e o aumento do tamanho das
primeiros meses de vida podem provocar porções também são determinantes para
alterações de peso corporal que refletirão o desenvolvimento da obesidade.
ao longo de toda a vida do indivíduo. Se- A contribuição do estilo de vida para
gundo Fisberg (2004), o abandono preco- a epidemia de obesidade na infância e na
ce do aleitamento materno e a substitui- adolescência tem sido marcante nos últi-
ção por alimentos com alta densidade mos anos. A diminuição do gasto metabó-
calórica, em quantidades superiores que lico energético, consequência do sedenta-
as necessárias para o crescimento e desen- rismo e da diminuição na quantidade de
volvimento, são determinantes para o iní- atividade física habitual, completa o ce-
cio da obesidade no primeiro ano de vida. nário para o aumento da obesidade nes-
sas faixas etárias. Uma pesquisa realizada
no Brasil mostrou prevalência de seden-
tarismo em 58% dos adolescentes entre 10
Mudanças no padrão alimentar nos pri-
e 12 anos de idade (Hallal et al., 2006).
meiros meses de vida podem provocar De acordo com Taylor e colaboradores
alterações de peso corporal que refleti- (1999), crianças obesas tendem a ser me-
rão ao longo de toda a vida do indivíduo. nos ativas, e, com o passar do tempo, a
necessidade energética para o crescimen-
to diminui, favorecendo a redução do gas-
to energético diário e, consequentemen-
te, o acúmulo de gordura corporal.
Durante a infância, o comportamen-
to alimentar sofre maior influência a par-
tir da idade escolar, quando maior sociali-
zação e independência promovem aceita- A contribuição do estilo de vida para a
ção, seleção e acesso a diferentes tipos de epidemia de obesidade na infância e na
alimentos. Nessa etapa, é comum a rejei- adolescência tem sido marcante nos úl-
ção de alimentos ricos em fibra (hortali- timos anos. A diminuição do gasto me-
ças e frutas) e o apetite por guloseimas, tabólico energético, consequência do
que acabam interferindo na refeição prin- sedentarismo e da diminuição na quan-
tidade de atividade física habitual, com-
cipal e sendo consumidas em excesso, le- pleta o cenário para o aumento da obe-
vando ao aumento de peso corporal sidade nessas faixas etárias.
(Fisberg; Pádua; Souza, 2007).
De acordo com Souza e colaborado-
res (2007), na adolescência, os requeri-
mentos calóricos estão aumentados, com O menor gasto energético diário tam-
consequente aumento do apetite e ganho bém é consequente do excesso de ativida-
de peso. Nessa etapa, as características de des de lazer sedentárias, tais como horas
comportamentos atípicos e a influência da despendidas em frente à televisão, ao video
mídia e do grupo favorecem o consumo game e ao computador. Klein-Platat e co-
alimentar não balanceado, com dietas hi- laboradores (2005) mostraram associação
percalóricas, excesso de alimentos do tipo entre o índice de massa corporal (IMC) e
fast food e lanches com alto valor calórico, circunferência abdominal e o tempo de ati-
ricos em açúcar, carboidratos refinados e vidades de lazer classificadas como seden-
gorduras saturadas, em detrimento do con- tárias por promover baixo gasto energé-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 215
tico. O efeito negativo para a saúde ainda Embora os fatores exógenos tenham
é maior quando a redução do gasto ener- sido consistentemente estudados na lite-
gético vem acompanhada de hábitos ali- ratura, nos últimos anos tem-se observa-
mentares inadequados, normalmente di- do o crescente número de investigações so-
vulgados pela televisão e associados às bre a contribuição genética para o desen-
atividades de lazer sedentárias. Um resu- volvimento da obesidade. Kliegman e
mo das principais causas exógenas para o Gross (1985) mostraram a importância do
desenvolvimento excessivo de peso corpo- histórico familiar para a determinação da
ral na infância e adolescência pode ser suscetibilidade ao desenvolvimento de
observado na Figura 15.2. obesidade dos filhos. Quando os pais são
obesos, o filho possui 80% de chances de
desenvolver obesidade. Quando apenas
um dos pais apresenta obesidade, as chan-
O efeito negativo para a saúde ainda é ces caem para 40%, mas, se nenhum dos
maior quando a redução do gasto
energético vem acompanhada de hábi-
dois for obeso, as chances de o filho ser
tos alimentares inadequados, normal- obeso se reduzem para 7%.
mente divulgados pela televisão e asso- Perusse e Bouchard (2000), estudan-
ciados às atividades de lazer sedentárias. do gêmeos monozigóticos, demonstraram
que a tendência ao aumento de gordura

Figura 15.2 Fatores exógenos relacionados ao desenvolvimento excessivo de peso corporal na


infância e adolescência.
216 Dante De Rose Jr. e colaboradores

na região abdominal visceral pode ser ge- REPERCUSSÃO DA OBESIDADE AO


neticamente determinada. Esses dados LONGO DO CICLO VITAL
ganharam maior importância com o avan-
ço de técnicas de biologia molecular e a O desenvolvimento do tecido adiposo
descoberta do genoma humano. Diversos depende do aumento do número e do ta-
genes e regiões cromossômicas associados manho das células adiposas, denominado
ao fenótipo de peso corporal foram iden- hiperplasia e hipertrofia, respectivamen-
tificados e compõem o mapa genético da te. Apesar de os estágios de adipogênese
obesidade humana (Rankinen et al., em humanos não serem plenamente defi-
2006). nidos, momentos críticos para hiperplasia
Embora, isoladamente, a genética de adipócitos, como o último trimestre de
seja incapaz de explicar o aumento da gestação, primeiro ano de vida e puberda-
prevalência mundial de obesidade, o per- de, podem ser determinantes para o esta-
fil genético do indivíduo pode torná-lo belecimento da obesidade nessas faixas
mais suscetível ao desenvolvimento de etárias. Posteriormente, a permanência da
obesidade quando exposto aos fatores obesidade durante a vida adulta acaba sen-
ambientais, como padrão alimentar e esti- do resultante principalmente da hipertro-
lo de vida, o que explicaria por que alguns fia das células adiposas existentes (Garcia;
indivíduos desenvolvem obesidade e ou- Chaves; Azevedo, 2002).
tros não. Segundo Price (2002), os fato- Apesar de a obesidade em adultos ter
res genéticos podem influenciar entre 24 sido associada exclusivamente à hipertro-
e 40% da variância no IMC, por determi- fia de adipócitos por um longo período na
narem diferenças na taxa metabólica basal literatura, dados mais recentes mostram
em resposta à dieta hipercalórica. Nesse que o aumento do número de células
sentido, hábitos alimentares e estilo de adiposas pode acontecer também na fase
vida sedentário poderiam atuar sobre o adulta. Essa resposta seria possível devido
perfil de expressão de genes candidatos ao esgotamento da incorporação de li-
para o desenvolvimento de obesidade, con- pídeos nas células adiposas existentes, as-
tribuindo para o aumento dessa epidemia. sociado ao estímulo para a diferenciação
Assim, a obesidade na infância e na ado- de células precursoras de adipócitos para
lescência seria, então, produto da inte- adipócitos maduros (Garcia; Chaves; Aze-
gração de fatores determinados pela ex- vedo, 2002).
pressão de múltiplos genes e o meio am- Por serem períodos críticos para o au-
biente favorável. mento permanente do peso corporal e o
estabelecimento da obesidade, um desequi-
líbrio do balanço energético na infância e
na adolescência, provocado pela ingestão
calórica excessiva e pela inatividade físi-
Embora, isoladamente, a genética seja ca, pode aumentar o risco de sobrepeso
incapaz de explicar o aumento da pre- ou obesidade na vida adulta.
valência mundial de obesidade, o perfil Nos últimos anos, o entendimento
genético do indivíduo pode torná-lo mais funcional do tecido adiposo como um ór-
suscetível ao desenvolvimento de obesi-
dade quando exposto aos fatores am-
gão endócrino, e não apenas como reser-
bientais, como padrão alimentar e estilo vatório de lipídeos, revelou que, por meio
de vida. da atividade secretora e de interações com
reguladores neuroendócrinos, o adipócito
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 217
exerce um papel ativo em processos fisio- Outras adipocinas secretadas pelo
lógicos e patológicos referentes ao meta- tecido adiposo ainda podem exercer con-
bolismo energético, e a ingestão alimen- trole sobre a pressão arterial (angioten-
tar, consequentemente, no controle de sinogênio) e os processos inflamatórios
peso corporal (Kershaw; Flier, 2004). Sob (TNF-α e interleucina 6), confirmando a
esse ponto de vista, a associação do tecido direta associação entre tecido adiposo e
adiposo com processos patológicos presen- outras patologias cardiovasculares e me-
tes na síndrome metabólica, como a obe- tabólicas (Fonseca-Alaniz et al., 2006).
sidade, o diabete, a hipertensão arterial, e O excesso de tecido adiposo está as-
nas cardiomiopatias está cada vez mais sociado ao aumento precoce de riscos de
evidente. doenças cardiovasculares, respiratórias e
ortopédicas. Styne (2001) mostrou a exis-
tência de pelo menos um fator de risco
para as doenças cardiovasculares (hiper-
A associação do tecido adiposo com pro- tensão, dislipidemia ou hiperinsulinemia)
cessos patológicos presentes na síndro- em 60% de crianças e adolescentes com
me metabólica, como a obesidade, o
diabete, a hipertensão arterial, e nas
excesso de peso corporal, e 20% destes
cardiomiopatias está cada vez mais evi- apresentam dois ou mais fatores de risco.
dente.

Styne (2001) mostrou a existência de


pelo menos um fator de risco para as
Entre as inúmeras adipocinas (pro- doenças cardiovasculares (hipertensão,
teínas secretadas pelo tecido adiposo), des- dislipidemia ou hiperinsulinemia) em
tacam-se a leptina e a adiponectina, espe- 60% das crianças e adolescentes com
cialmente por refletirem o estado nu- excesso de peso corporal, e 20% destes
apresentam dois ou mais fatores de risco.
tricional do organismo e regularem o ba-
lanço energético (Kershaw; Flier, 2004).
A leptina promove diminuição da ingestão
alimentar e aumento do gasto energético. Há uma associação positiva entre pe-
No obeso, os níveis de leptina estão au- so corporal e dislipidemia em crianças e
mentados; porém, observa-se redução da adolescentes. Carvalho e colaboradores
sensibilidade dos receptores e resistência (2007) encontraram redução do colesterol
à ação da leptina, contribuindo para o au- HDL e aumento do colesterol LDL e dos
mento da adiposidade. Já a adiponectina triglicerídeos em adolescentes com sobre-
está associada à melhora da sensibilidade peso. Esses dados ficam mais preocupantes
à insulina, além de atuar na proteção ao lembrar que os níveis de triglicerídeos
cardiovascular por meio da inibição da si- estão associados à doença cardiovascular
nalização inflamatória no endotélio. Uma aterosclerótica e a outros distúrbios meta-
correlação negativa entre o grau de obesi- bólicos. Considerando que as estrias gor-
dade e os níveis circulantes de adiponec- durosas precursoras das placas ateroscle-
tina foi demonstrada, apontando-se au- róticas começam a ser formadas ainda na
mento na sua concentração, com a redu- infância e aumentam significativamente a
ção de peso corporal e baixos níveis de re- partir dos 15 anos, a presença de obesida-
sistência à insulina e hiperinsulinemia de e outros fatores de risco pode contri-
(Fonseca-Alaniz et al., 2006). buir para potencializar esse processo.
218 Dante De Rose Jr. e colaboradores

Uma relação direta entre obesidade


e resistência à insulina e ao diabete do tipo A obesidade na infância e na adolescên-
cia está relacionada com o aparecimen-
II também está bem estabelecida na lite-
to precoce de fatores de risco para o de-
ratura. Indivíduos obesos apresentam ele- senvolvimento e o agravamento de di-
vada secreção de TNF-α pelo tecido adipo- versas disfunções cardiovasculares e me-
so. Além de participar do processo aterogê- tabólicas, e também com a maior preva-
nico, o TNF-α interfere na sinalização de lência de obesidade e fatores de risco
insulina via fosforilação do receptor de associados na fase adulta.
insulina (IRS-1), diminuindo a captação
de glicose mediada pela insulina e, conse-
quentemente, aumentando a resistência à
insulina. efeitos biológicos, Fisberg (2004) cita ain-
O impacto da obesidade na qualida- da que os problemas psicossociais, como
de de vida da criança e do adolescente ain- discriminação pelo grupo e afastamento
da se faz pelo maior risco de comprometi- das atividades sociais, devem ser ampla-
mento físico em decorrência de alterações mente considerados.
musculoesqueléticas, intolerância ao calor,
cansaço e falta de ar. De acordo com o Pro-
jeto Diretrizes para o Diagnóstico e Trata- PAPEL DA ATIVIDADE
mento da Obesidade na Criança e no Ado- FÍSICA NA PREVENÇÃO E NO
lescente da Sociedade Brasileira de Endo- TRATAMENTO DA OBESIDADE
crinologia e Metabolismo (2005), podem
ser observadas morbidades ortopédicas, Considerando o papel da obesidade
morbidades gastrintestinais (p. ex.,estea- para o desenvolvimento de fatores de ris-
tose hepática, refluxo gastresofágico, cole- co para a saúde, e o fato de que, quando
litíase), morbidades do sistema reprodutor iniciada nas primeiras fases da vida, ela
do tipo ovário policístico e pseudogineco- tende a permanecer ou se agravar com o
mastia. aumento da idade, desenvolver estratégias
e ações para a prevenção primária e o tra-
tamento precoce da obesidade é funda-
mental para a redução da prevalência e
O impacto da obesidade na qualidade dos fatores de risco associados na infân-
de vida da criança e do adolescente ain- cia e na adolescência.
da se faz pelo maior risco de compro- Estratégias para a prevenção devem
metimento físico em decorrência das al-
terações musculoesqueléticas, intolerân-
englobar a promoção de um estilo de vida
cia ao calor, cansaço e falta de ar. saudável, especialmente no ambiente fa-
miliar e escolar. De acordo com a American
Academy of Pediatrics (2000), essas ações
envolvem a identificação de pacientes de
Em síntese, a obesidade na infância risco, o encorajamento das famílias para
e na adolescência está relacionada com o
aparecimento precoce de fatores de risco
para o desenvolvimento e o agravamento Estratégias para a prevenção devem en-
de diversas disfunções cardiovasculares e globar a promoção de um estilo de vida
metabólicas, e também com a maior saudável, especialmente no ambiente fa-
prevalência de obesidade e fatores de ris- miliar e escolar.
co associados na fase adulta. Somados aos
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 219
hábitos alimentares saudáveis, a promo- hábitos sedentários e o aumento da ativi-
ção de atividade física regular, a redução dade física regular, são primordiais para o
de atividades de lazer consideradas seden- controle e/ou a perda de peso corporal. A
tárias e o auxílio a educadores e pessoas substituição das atividades de lazer seden-
para a discussão sobre hábitos saudáveis tárias amplamente realizadas por crianças
com crianças e adolescentes. e adolescentes (televisão, video game e
Para o tratamento da obesidade, as computador) por atividades físicas pode
recomendações sugeridas pelo Projeto Di- contribuir para o aumento do gasto ener-
retrizes para o Diagnóstico e Tratamento gético diário, evitando o balanço energé-
da Obesidade na Criança e no Adolescen- tico positivo e, consequentemente, o acú-
te, da Sociedade Brasileira de Endocri- mulo de gordura corporal. De fato, con-
nologia e Metabolismo (2005), estão vol- forme ilustrado na Figura 15.3, a redução
tadas para o controle clínico do excesso do tempo em frente à televisão e ao com-
de peso corporal por meio do monitora- putador durante dois anos foi suficiente
mento do ganho ponderal e das comor- para diminuir o IMC de crianças entre 4 e
bidades associadas. O tratamento conven- 7 anos, com IMC igual ou acima do percen-
cional, que engloba redução da ingestão til 75 para idade e sexo, quando compara-
calórica, aumento do gasto energético, mo- das ao grupo de crianças sem restrição de
dificação dos hábitos diários e participa- tempo (Epstein et al., 2008).
ção familiar nesse processo, deve ser ini-
ciado logo após o diagnóstico da obesida-
de e mantido por um longo período.
Medidas para aumento do gasto energé-
tico diário, como a redução dos hábitos
sedentários e aumento da atividade físi-
O tratamento convencional, que englo- ca regular, são primordiais para o con-
ba redução da ingestão calórica, aumen- trole e/ou perda de peso corporal. A subs-
to do gasto energético, modificação dos tituição das atividades de lazer sedentá-
hábitos diários e participação familiar rias amplamente realizadas por crianças
nesse processo, deve ser iniciado logo e adolescentes (televisão, video game e
após o diagnóstico da obesidade e man- computador) por atividades físicas pode
tido por um longo período. contribuir para o aumento do gasto ener-
gético diário, evitando o balanço energé-
tico positivo e, consequentemente, o
acúmulo de gordura corporal.
A adequação da dieta deve suprir as
necessidades nutricionais para a idade.
Ajustar a proporção de macronutrientes As crianças e os adolescentes devem
conforme as recomendações das diretrizes ser estimulados a praticar, de forma pra-
para alimentação saudável é fundamental zerosa, atividade física não estruturada,
para atender as demandas energéticas e jogos, exercícios físicos programados ou
evitar prejuízos para o crescimento e de- atividades esportivas, por no mínimo 30
senvolvimento da criança e do adolescen- minutos diariamente, de acordo com o
te, em virtude da insuficiência de nutrien- Colégio Americano de Medicina Esporti-
tes ocasionada por dietas muito restriti- va. As necessidades individuais devem ser
vas. respeitadas, como gênero, idade, grau de
Medidas para o aumento do gasto maturação sexual, presença de limitações
energético diário, como a redução dos físicas ou mentais, nível econômico, fato-
220 Dante De Rose Jr. e colaboradores

Figura 15.3 Redução do Índice de Massa Corpórea (IMC) em crianças submetidas à restrição do

tempo de televisão (o) comparadas a um grupo de crianças com tempo irrestrito de televisão ( ).
Fonte: Adaptada de Epstein e cols. (2008).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As crianças e os adolescentes devem ser
estimulados a praticar, de forma praze-
rosa, atividade física não estruturada, Tendo em vista a crescente prevalên-
jogos, exercícios físicos programados ou cia de obesidade e fatores de risco associa-
atividades esportivas, por no mínimo 30 dos na infância e na adolescência, moni-
minutos diariamente. torar o peso corporal desde os primeiros
dias de vida pode gerar benefícios para
todo o ciclo vital. A prática de atividade
física por crianças e adolescentes contri-
bui não apenas para o controle de peso
corporal, mas também para uma série de
res familiares e do ambiente da criança e fatores determinantes da saúde individual
do adolescente. Alguns cuidados devem e coletiva. A promoção de um estilo de vida
estar voltados para a garantia de acesso ativo tem forte influência positiva no pa-
aos locais próprios para a prática de ativi- drão de crescimento e desenvolvimento;
dades físicas e avaliação física completa favorece a manutenção de articulações,
para a identificação de restrições para a músculos e ossos saudáveis; previne ou re-
prática, como risco cardiovascular e neces- tarda o aparecimento de fatores de risco
sidades especiais. cardiovasculares, como hipertensão arte-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 221
rial, diabete e dislipidemia; promove adap- TIRAPEGUI, J. Fisiologia da nutrição humana: as-
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Esporte e atividade física na infância e na adolescência 223

ATIVIDADES FÍSICAS E
ESPORTIVAS PARA CRIANÇAS E
ADOLESCENTES COM DEFICIÊNCIA
16
Márcia Greguol Gorgatti

Anderson, 12 anos, adora jogar prática de atividades físicas e esportivas é


futebol. Com apenas um ano de de fundamental importância para a pro-
idade, já ganhou a primeira bola moção da saúde de crianças e adolescen-
do pai, que sempre levava o ga- tes, por que aqueles que têm algum tipo
roto a quadras públicas para pra-
ticar o esporte. Nas aulas de edu- de deficiência são em geral impedidos de
cação física, na escola, sempre tal prática ou desestimulados a realizá-la?
que possível, Anderson aprovei- Justamente eles que não têm no dia a dia
ta para jogar com os colegas de quaisquer oportunidades de brincar livre-
classe. Ao chegar em casa, é só mente com seus amigos e de experimen-
almoçar para já colocar a bola tar uma ampla gama de movimentos? A
embaixo do braço, passar pela resposta para tal questão é complexa e
vizinhança chamando os outros passa por uma triste realidade de falta de
amigos e marcar encontro no
campinho próximo à sua casa, preparo dos profissionais de educação fí-
onde “bate uma bola” por pelo sica e esporte para lidar com jovens com
menos outras três horas. Já seu deficiência, de escassez de espaços acessí-
irmão Henrique, apenas um ano veis e de carência de informações por par-
mais novo, nasceu com uma lesão te dos pais e dos próprios jovens sobre suas
da medula e nunca pôde andar. reais potencialidades.
Para sua locomoção, utiliza cadei- Independentemente das razões, o fato
ra de rodas. Nunca jogou bola. é que, historicamente, crianças e adolescen-
Embora estude na mesma escola
do irmão, na maior parte das ve- tes com deficiência têm limitadas oportuni-
zes, apenas “assiste” às aulas de dades de participação em programas de ati-
educação física, pois o professor vidades físicas e esportivas, o que certamen-
tem medo que ele se machuque. te traz consequências danosas para seu de-
Mesmo gostando de esportes, senvolvimento físico, cognitivo e afetivo-so-
Henrique nunca brincou com os cial. Além disso, a tendência é que se tor-
meninos da rua, pois nem ele nem nem adultos com maior predisposição ao
os outros meninos sabiam que po- sedentarismo e, consequentemente, ao de-
deriam brincar juntos.
senvolvimento de condições crônico-
Histórias como esta infelizmente são -degenerativas, tais como obesidade, dia-
mais comuns do que se pode imaginar e bete, hipertensão, cardiopatia e distúrbios
trazem à tona uma alarmante dúvida: ósseos e articulares (Blinde; McCallister,
embora seja de conhecimento geral que a 1998; Gorgatti, 2003; Winnick; Short, 2001).
224 Dante De Rose Jr. e colaboradores

Embora a legislação brasileira garan- tações de ordem sensorial, motora, inte-


ta, há mais de 10 anos, o acesso de jovens lectual ou múltipla. Tais limitações podem
com deficiência ao ensino regular, perce- levar o indivíduo com deficiência a situa-
be-se que muitos ainda são dispensados ções de desvantagem, embora estas este-
das aulas de educação física, ou então par- jam altamente relacionadas ao contexto
ticipam, porém sem atuação efetiva. Atri- social em que se vive (Gorgatti, 2005). A
buir a culpa desse fato apenas ao profes- deficiência pode ser classificada como con-
sor é uma visão simplista e que não tra- gênita, caso tenha origem na fase pré-na-
duz a realidade. Na verdade, mais do que tal ou no momento do nascimento, ou ad-
superar barreiras arquitetônicas, é preci- quirida, caso seja originada após o nasci-
so que, por meio da informação, sejam mento.
superadas visões ultrapassadas de currí-
culo e de modelos de aula, para que assim
seja possível incutir também nas crianças
e nos adolescentes com deficiência o há- A deficiência pode ser classificada como
bito e o prazer de se exercitar, seja com o congênita, caso tenha origem na fase
objetivo de promoção da saúde, rendimen- pré-natal ou no momento do nascimen-
to ou lazer. to, ou adquirida, caso seja originada
após o nascimento.

Embora a legislação brasileira garanta,


há mais de 10 anos, o acesso de jovens Ao longo da história da humanida-
com deficiência ao ensino regular, per- de, diferentes foram as formas de trata-
cebe-se que muitos ainda são dispensa- mento da sociedade com as pessoas com
dos das aulas de educação física, ou deficiência. Em um primeiro momento,
então participam, porém sem atuação pôde ser observado o extermínio de crian-
efetiva. ças que nasciam com deficiências, sendo
que em algumas culturas atuais tal práti-
ca ainda é admitida. Em um segundo mo-
mento, embora fosse permitida a sobrevi-
Com o intuito de oferecer informa- vência dessas crianças, elas não comparti-
ções sobre o tema, o objetivo deste capí- lhavam do convívio social com as demais.
tulo é abordar o conceito de “deficiência”, Nessa situação, foram criadas as primei-
bem como destacar, dentro de cada cate- ras instituições voltadas ao atendimento e
goria, as possibilidades e potencialidades apoio às crianças com deficiência. Tais ins-
diferenciadas das crianças e dos adoles- tituições tinham caráter segregatório, ou
centes com essa condição. seja, direcionavam suas ações para crian-
ças com determinado tipo de deficiência.
Embora representassem um grande avan-
CRIANÇAS E ADOLESCENTES ço, falhavam ao não estimular o convívio
COM DEFICIÊNCIA – DO social com outras pessoas sem deficiência.
EXTERMÍNIO À INCLUSÃO A partir da década de 1980, teve iní-
cio uma forte discussão de âmbito mun-
O termo deficiência pode ser concei- dial sobre a necessidade e a viabilidade de
tuado como uma condição que impõe ao se inserirem crianças e adolescentes com
indivíduo certas restrições, devido a limi- deficiência nas escolas regulares. Esse pro-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 225

ATIVIDADES FÍSICAS E ESPORTIVAS


A partir da década de 1980, teve início
uma forte discussão de âmbito mundial PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
sobre a necessidade e a viabilidade de COM DEFICIÊNCIA – PROMOÇÃO DA
se inserirem crianças e adolescentes com SAÚDE E INCLUSÃO SOCIAL
deficiência nas escolas regulares.
Vislumbrar possibilidades de progra-
mas de atividades físicas e esportivas para
jovens com deficiência, para muitos pro-
fissionais, é uma realidade distante. Em
cesso começou a se tornar realidade no uma situação de inclusão com outros jo-
Brasil em meados da década de 1990, com vens sem deficiência, então, é ainda mais
a promulgação da LDB 9394/96 (Brasil, remoto. É preciso que o professor, para
1996), que garantia o direito de inclusão promover programas com qualidade e se-
de alunos com deficiência no sistema re- gurança, conheça algumas características
gular de ensino. Entretanto, o que na teo- fundamentais sobre cada deficiência e,
ria parecia perfeito, na prática mostrou-se sobretudo, consiga perceber as potenciali-
de difícil implementação. De um lado, es- dades diferenciadas presentes nos jovens,
tavam pais e alunos cheios de dúvidas; do independentemente das deficiências que
outro, professores e dirigentes escolares possam apresentar.
temerosos, despreparados e questionando
a validade do processo de inclusão.
Na área de educação física, a partir Potencialidades diferenciadas de
da década de 1980, muitos cursos de gra- jovens com deficiência auditiva
duação incluíram, em sua grade, uma dis-
ciplina específica tratando das adaptações A deficiência auditiva é conceituada
de programas para pessoas com deficiên- como a perda total ou parcial da capaci-
cia. No entanto, mesmo esse reforço não dade de conduzir e perceber sinais sono-
se mostrou suficiente para preparar pro- ros. Pode manifestar-se antes da aquisição
fissionais aptos a lidar com a diversidade da fala, quando então é chamada de pré-
de condições impostas por uma escola que -lingual, ou após a aquisição da fala, sendo
atue em um sistema inclusivo. A falta de nesse caso denominada pós-lingual. As
formação e informação certamente tem perdas pré-linguais, embora possam difi-
sido a grande responsável pelas dificulda- cultar em muito a aquisição da linguagem
des encontradas pelos professores. Por se- e da formação de conceitos, podem ter suas
rem escassas as oportunidades de progra- consequências amenizadas por meio de
mas de atividades físicas e esportivas ex- programas de estimulação precoce, sendo
ternos voltados às suas necessidades e po- necessária, para tanto, sua detecção o
tencialidades, crianças e adolescentes com quanto antes (Winnick, 2005).
deficiência, ao não encontrarem situações Quanto às causas, a surdez pode ser
propícias dentro da escola, acabam por se provocada por lesões decorrentes de pro-
tornarem sedentários. Essa situação, alia- blemas pré, peri ou pós-natais que afetem
da à superproteção por parte da família, as regiões do ouvido externo ou médio,
claramente torna-se a grande responsável, sendo nesse caso chamada de surdez
muito mais do que a deficiência em si, pe- condutiva, ou que afetem a região do ou-
los atrasos no desenvolvimento global ob- vido interno, sendo neste último caso cha-
servados nessa população. mada de surdez neurossensorial. A surdez
226 Dante De Rose Jr. e colaboradores

neurossensorial, como é gerada por uma leira de Sinais), o que certamente


lesão no ouvido interno, pode ter como potencializará sua comunicação. Por
consequência eventuais distúrbios no equi- fim, o professor deve lembrar-se de usar
líbrio estático e dinâmico, por possíveis expressões faciais e gestos que possam
danos ao aparelho vestibular. Já a surdez auxiliar na compreensão do significa-
condutiva afeta basicamente a condução do, uma vez que seus alunos não po-
e amplificação do som, podendo ter seus derão perceber a entonação da voz;
efeitos abrandados pelo uso de aparelhos  Os programas deverão enfatizar prefe-
auditivos. rencialmente atividades em grupos,
Algumas possíveis defasagens podem buscando promover a integração social.
acompanhar a deficiência auditiva, tais
como atrasos no desenvolvimento motor Jovens com deficiência auditiva po-
e tendência à ansiedade e ao isolamento dem e devem ser estimulados para a prá-
social. Certamente, entretanto, essas de- tica esportiva. Além de poderem partici-
fasagens devem-se muito mais à superpro- par das atividades esportivas convencio-
teção e à falta de informações por parte nais, existem eventos competitivos espe-
dos pais e aos problemas de comunicação cíficos para atletas surdos, administrados
do que à deficiência em si. Algumas estra- no Brasil pela Confederação Brasileira de
tégias no trabalho com crianças e adoles- Desportos para Surdos (CBDS) e, interna-
centes com deficiência auditiva podem ser cionalmente, pela Confederação Interna-
muito úteis na elaboração de programas cional de Esportes para Surdos (CISS).
de atividades físicas e/ou esportivas:

 O professor deve inicialmente ter co-


nhecimento sobre as causas da deficiên- Jovens com deficiência auditiva podem
e devem ser estimulados para a prática
cia de seu aluno e em que época ela
esportiva.
surgiu, a fim de que possa antecipar
eventuais problemas no controle do
equilíbrio ou na aquisição de conceitos
verbais;
 O aprendizado será fortemente facili- Potencialidades diferenciadas de
tado pelo uso de dicas visuais e cines- jovens com deficiência visual
tésicas durante as instruções;
 Quando o professor for se dirigir aos A deficiência visual pode ser concei-
alunos com deficiência auditiva, deve tuada como uma limitação na visão que,
sempre fazê-lo de frente para o aluno, mesmo com recursos corretivos, afeta ne-
de forma a facilitar uma eventual lei- gativamente o desempenho de uma crian-
tura labial. É importante também que ça durante a sua educação. Do ponto de
o professor conheça pelo menos noções vista educacional, essa condição pode ser
básicas de LIBRAS (Linguagem Brasi- classificada como:

 Cegueira: representa a perda total ou o


resíduo mínimo da visão. O indivíduo
Algumas possíveis defasagens podem
cego, embora em alguns casos até te-
acompanhar a deficiência auditiva, tais
como atrasos no desenvolvimento mo-
nha uma percepção de luz que possa
tor e tendência à ansiedade e ao isola- ajudá-lo, não consegue utilizá-la em
mento social. seus movimentos, na sua orientação e
na aprendizagem por meios visuais. Esse
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 227
superior a 20/600 pés, ou aqueles com
O indivíduo cego, embora em alguns ca- menos de 5º de campo visual;
sos até tenha uma percepção de luz que
 B3: aqueles com acuidade visual de 20/
possa ajudá-lo, não consegue utilizá-la
em seus movimentos, na sua orientação 599 até 20/200 pés e/ou aqueles com
e na aprendizagem por meios visuais. 5 a 20º de campo visual.

Crianças e adolescentes com deficiên-


cia visual, na maior parte das vezes, são
desencorajados da prática de atividades
indivíduo necessita do código braille físicas e esportivas, o que em geral ocorre
como meio de leitura e escrita, além de por falta de informação por parte dos pais
outros recursos didáticos e equipamen- e professores. Essa atitude protetora faz
tos especiais para sua educação. com que a maioria apresente atrasos visí-
 Baixa visão ou visão subnormal: repre- veis no seu desenvolvimento motor e so-
senta a existência de resíduo visual que cial, o que dificulta em grande medida sua
permite ao aluno ler textos impressos plena inserção na sociedade.
à tinta, desde que com recursos didáti-
cos e equipamentos especiais. A pes-
soa com baixa visão tem dificuldade em
desempenhar tarefas visuais, mesmo
Crianças e adolescentes com deficiên-
com a prescrição de lentes corretivas,
cia visual, na maior parte das vezes, são
mas pode aprimorar sua capacidade de desencorajados da prática de atividades
realizar tais tarefas com a utilização de físicas e esportivas, o que em geral ocor-
estratégias visuais compensatórias e re por falta de informação por parte dos
modificações ambientais. pais e professores.

A pessoa com baixa visão tem dificulda- O atraso no desenvolvimento motor


de em desempenhar tarefas visuais, mes-
de crianças cegas pode estar relacionado
mo com a prescrição de lentes correti-
vas, mas pode aprimorar sua capacida-
à “passividade motora” (ficarem mais sen-
de de realizar tais tarefas com a utiliza- tadas, movimentarem-se menos), aos com-
ção de estratégias visuais compensató- portamentos estereotipados ou “maneiris-
rias e modificações ambientais. mos” (gestos rígidos e repetitivos) e às
experiências limitadas com o ambiente que
as cerca (Warner, 2001). Especialmente
para aquelas que nasceram cegas, é preci-
Existe também a classificação utili- so que se ofereçam orientações sobre con-
zada na prática esportiva para classificar trole e postura corporal e como caminhar,
os atletas de acordo com sua acuidade e já que elas jamais puderam observar os
seu campo visual: padrões de movimento de outras pessoas.
Também o nível de aptidão física de jo-
 B1: totalmente cegos; aqueles que po- vens com deficiência visual é em geral in-
dem ter percepção de luz, mas não são ferior ao de outros que enxergam; entre-
capazes de reconhecer as formas das tanto, essa diferença deve ser atribuída à
mãos a qualquer distância; falta de vivências motoras e não à falta de
 B2: aqueles que percebem as formas visão. Esse fato ressalta ainda mais a res-
das mãos, mas com acuidade visual não ponsabilidade do profissional de educação
228 Dante De Rose Jr. e colaboradores

ça com deficiência visual deve ser esti-


Também o nível de aptidão física de jo- mulada a realizar todas as atividades
vens com deficiência visual é em geral
da forma mais independente possível;
inferior ao de outros que enxergam; en-
tretanto, essa diferença deve ser atribuí-  Para facilitar a comunicação e a com-
da à falta de vivências motoras e não à preensão por parte do aluno ou do atle-
falta de visão. ta, o professor deve priorizar estímu-
los auditivos, táteis e cinestésicos. Para
aqueles que têm resíduo visual, os ma-
teriais e as demarcações no espaço de
física em fornecer experiências de movi- aula devem ser de cores fortes e chama-
mentos e em estimular e motivar essas tivas, a fim de aguçar a percepção. As
crianças a se movimentarem. informações auditivas devem ser cla-
Quando devidamente estimulados, ras e objetivas. Já quanto ao tato e à
jovens com deficiência visual podem tor- cinestesia, é crucial que o jovem seja
nar-se muito independentes na sua loco- estimulado a conhecer seu próprio cor-
moção e na realização das atividades de po e suas possibilidades de movimenta-
vida diária, especialmente por meio da ção. A maioria deles têm uma péssima
estimulação dos demais sentidos. Algumas consciência corporal, e isso prejudica
estratégias que podem potencializar a a aquisição de habilidades motoras.
aprendizagem de jovens com deficiência
visual, em programas de atividades físicas Para crianças e adolescentes com de-
ou esportivas, são elencadas a seguir: ficiência visual que desejam se tornar atle-
tas, existem atualmente várias opções de
 É altamente recomendável que o pro- modalidades esportivas adaptadas ou es-
fessor de educação física, ao iniciar um pecialmente criadas para suas potencia-
programa de exercícios ou esporte para lidades (Gorgatti; Costa, 2005). As mais
jovens com deficiência visual, permita difundidas no Brasil são a natação, o atle-
que estes conheçam o ambiente onde tismo, o judô, o ciclismo com bicicleta do
serão ministradas aulas ou treinos. tipo Tandem (guia sentado no banco da
Quando o indivíduo que não enxerga frente e atleta no banco de trás), a escala-
tem a oportunidade de explorar o am- da, o futebol (bola com guizo) e o golbol
biente, certamente torna-se mais con- (modalidade jogada em uma quadra com
fiante e autônomo na sua orientação; as dimensões da quadra de vôlei, três joga-
 Ainda tratando do ambiente de aula/ dores contra três, em que o atleta lança
treino, deve-se ter especial atenção na uma bola com guizo de forma rasteira para
remoção de quaisquer obstáculos que o campo adversário na tentativa de fazer
possam colocar o jovem com deficiên- o gol; os três jogadores adversários tentam
cia visual em uma situação de risco. impedi-lo projetando seus corpos no chão).
Também é de grande ajuda a instala- No âmbito nacional, o esporte é organiza-
ção de equipamentos para sinalização, do pela Confederação Brasileira de Des-
tais como marcas em relevo no piso, porto para Cegos (CBDC), que se vincula
barras e placas em braille. Essas infor- internacionalmente à Federação Interna-
mações são de grande utilidade para cional de Esportes para Cegos (IBSA).
evitar acidentes; Muitas instituições especializadas no
 É fundamental que o professor encoraje trabalho com pessoas com deficiência vi-
constantemente a participação de to- sual têm, nos últimos anos, implementado
das as crianças nas aulas de educação programas de iniciação esportiva para
física e evite a superproteção. A crian- crianças e adolescentes. Além de favore-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 229
cer o desenvolvimento motor e social, es- De modo geral, o indivíduo com de-
ses programas têm revelado grandes ta- ficiência intelectual apresenta maior difi-
lentos no esporte e mostrado à sociedade culdade com raciocínios lógicos e abstra-
que, quando oferecidas as oportunidades, tos, o que faz com que sua aprendizagem
a ausência da visão não é empecilho para seja mais facilitada com a utilização de
a obtenção de altos desempenhos. conceitos concretos. Embora existam ní-
veis diferentes de déficits cognitivos, a
maioria dos indivíduos acometidos tem
Potencialidades diferenciadas de restrições leves e podem, com algum re-
jovens com deficiência intelectual forço específico, dominar disciplinas aca-
dêmicas básicas e frequentar programas
Define-se deficiência intelectual educacionais comuns.
como uma condição de grande déficit
cognitivo, manifestada durante o período
de desenvolvimento, e que interfere de
maneira significativa no comportamento
Embora existam níveis diferentes de
adaptativo do indivíduo, ou seja, lhe im- déficits cognitivos, a maioria dos indiví-
pede de levar uma vida plena e autôno- duos acometidos tem restrições leves e
ma. Durante muitos anos, utilizou-se como podem, com algum reforço específico,
critério o teste de QI para avaliação da dominar disciplinas acadêmicas básicas
inteligência, porém atualmente é levado e frequentar programas educacionais
em conta no diagnóstico o que o indiví- comuns.
duo consegue executar de maneira inde-
pendente e para quais tarefas do dia a dia
ele precisa de apoio e/ou supervisão
(Gimenez; Manoel, 2005). Uma criança com deficiência intelec-
Um fato sobre o tema que deve ser tual pode ser categorizada, de acordo com
esclarecido é que as crianças com deficiên- sua capacidade de aprender, em uma das
cia intelectual crescem e se tornam ado- três classes:
lescentes e adultos com deficiência inte-
lectual; eles não permanecem como “eter-  Educável: esse termo refere-se à crian-
nas crianças”. Esse entendimento é impor- ça com restrição leve e boa capacidade
tante por parte do professor e da família, de ajuste social e de aprendizagem, em-
para que o sujeito não seja infantilizado, bora em um ritmo diferenciado. Nor-
o que dificultará ainda mais sua inserção malmente, obtém bons resultados fre-
social. Outro ponto a ser elucidado é que quentando uma escola comum e não
jovens com deficiência intelectual podem, apresenta restrições motoras significa-
por meio de programas ou reforços espe- tivas;
cíficos, aprender diversas atividades.  Treinável: a criança nessa categoria tem
um déficit moderado e capacidade de
aprendizagem mais restrita, obtendo
maior sucesso em programas sistema-
Um fato sobre o tema que deve ser es- tizados. Pode, especialmente por meio
clarecido é que as crianças com defi-
ciência intelectual crescem e se tornam
de trabalhos condicionados, desenvol-
adolescentes e adultos com deficiência ver diversas habilidades. Quanto ao
intelectual; eles não permanecem como aspecto motor, a criança nesse nível
“eternas crianças”. apresenta restrições mais evidentes, so-
bretudo quanto às capacidades coorde-
230 Dante De Rose Jr. e colaboradores

nativas, tais como ritmo, coordenação fim de que o tônus muscular possa ser
motora, equilíbrio, agilidade, tempo de aumentado e que as articulações pos-
reação, entre outras; sam ficar mais protegidas;
 Dependente: essa categoria define uma  Instabilidade atlanto-axial: 10%, em
criança com perda extremamente acen- média, dos indivíduos com síndrome de
tuada na capacidade de aprender e que Down têm grande instabilidade entre
precisa de apoio e supervisão constan- atlas e áxis (primeiras vértebras cervi-
te em praticamente todas as tarefas do cais), devendo, dessa forma, evitar ati-
comportamento adaptativo. Uma crian- vidades de impacto ou grande mobili-
ça nesse nível apresenta dificuldades na dade nessa região;
aquisição de habilidades motoras, mes-  Obesidade: muitos jovens com síndro-
mo com programas sistematizados. me de Down demonstram maior pre-
disposição à obesidade, o que é expli-
Dentre as causas da deficiência cogni- cado em parte pela hipotonia muscu-
tiva, pode ser destacada a síndrome de lar e, em alguns casos, pela presença
Down, provocada por uma alteração na de hipotireoidismo;
contagem no 21o par de cromossomos das  Distúrbios cardíacos: mais de um terço
células (trissomia do 21). Essa síndrome, dos indivíduos com síndrome de Down
multifacetada, denota ao indivíduo carac- apresenta quadros de malformações
terísticas típicas, tanto do ponto de vista cardíacas congênitas, muitas das quais
fisionômico quanto estrutural, comporta- podem ser corrigidas com procedimen-
mental e orgânico. tos cirúrgicos nos primeiros anos de
vida. Por essa razão, é altamente indi-
cado que o profissional de educação
física que irá trabalhar com jovens nes-
Dentre as causas da deficiência cogniti- sas condições peça um encaminhamen-
va, pode ser destacada a síndrome de to de um médico cardiologista, com a
Down, provocada por uma alteração na liberação para que possam praticar
contagem no 21o par de cromossomos exercícios físicos;
das células (trissomia do 21).  Deficiência imunológica: crianças com
síndrome de Down podem apresentar
deficiências imunológicas e, em decor-
rência disso, maior predisposição ao de-
Existem algumas características co- senvolvimento de infecções respirató-
muns da síndrome de Down que devem rias e dermatites, que devem ser moti-
ser de conhecimento do professor de edu- vo de preocupação por parte do pro-
cação física, a fim de que sua prescrição fessor, especialmente quando as ativi-
de exercícios possa ser segura e eficiente dades físicas são desenvolvidas em
para todas as crianças. São algumas delas: ambientes de piscina;
 Alterações no equilíbrio e na visão: a
 Hipotonia muscular e hipermobilidade imaturidade vestibular e alguns distúr-
articular generalizadas: a criança apre- bios visuais, tais como miopia e astig-
senta baixo tônus muscular e suas arti- matismo, podem estar presentes com
culações em geral são exageradamente maior frequência nesse grupo, geran-
móveis. Esse quadro pode gerar insta- do déficits sensoriais. Muitos desses
bilidades e lesões. Portanto, o fortale- déficits, no entanto, podem ser minimi-
cimento muscular deve ser uma opção zados por meio de programas de ativi-
nos programas de exercícios físicos, a dades físicas e de estimulação precoce.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 231
Quer seja em instituições especiali- parem de programas mais repetitivos. Em
zadas, quer seja em academias ou escolas algumas situações, o professor poderá op-
comuns, o fato é que cada vez mais jovens tar por dividir uma determinada ativida-
com deficiência intelectual têm buscado de em outras menores, o que facilitará a
praticar algum tipo de atividade física ou assimilação por parte do aluno.
esportiva, com a motivação para o lazer, a Por fim, cabe ao professor saber li-
saúde e/ou o desempenho. Ao conduzir as dar com a possível instabilidade emocio-
atividades para jovens com deficiência in- nal. Alguns comportamentos agressivos
telectual, algumas estratégias podem ser por parte do aluno podem exigir algumas
utilizadas pelo professor de educação físi- ações diferenciadas por parte do profes-
ca a fim de que seu trabalho seja potencia- sor. Em casos mais extremos de agressivi-
lizado. dade ou outros distúrbios no comporta-
Um cuidado inicial seria o professor mento, é de fundamental importância o
apresentar poucas informações por vez auxílio de um monitor para a realização
durante as atividades e sempre da manei- das atividades. Por vezes, o afastamento
ra mais clara possível. O professor, ao en- temporário do aluno das atividades é ne-
sinar uma tarefa motora, deve buscar con- cessário para garantir sua própria seguran-
cisão em suas informações. A instrução ça e a dos demais. Evidentemente, cabe
deve ser apresentada de maneira clara, e também ao professor refletir se a forma
o ideal é que seja colocada apenas uma como a atividade está sendo estruturada
informação por vez. Outra estratégia que é mais adequada para seus alunos. O uso
pode ser muito útil é utilizar diferentes de punições e recompensas também pode
vias de comunicação e enfatizar exemplos ser de grande ajuda, mas é preciso que al-
concretos. Pela dificuldade mencionada guns cuidados sejam tomados. A simples
anteriormente de esses indivíduos realiza- punição ou recompensa pode ser danosa
rem abstrações, é importante o professor se o aluno não compreender claramente
tornar sua instrução a mais concreta pos- que esta está associada ao seu comporta-
sível para seu aluno. O professor deve ex- mento e não a ele próprio.
plorar diferentes meios para passar a in- É importante lembrar que as estraté-
formação. Além da instrução verbal, o mo- gias podem variar de acordo com o nível
vimento a ser executado deve ser demons- de comprometimento intelectual, a idade
trado para o aluno (o que ajuda a torná-lo dos participantes e o tipo de atividade a
concreto), e, em algumas situações, o pro- ser desenvolvida. Em todas as situações,
fessor pode favorecer o aluno com instru- no entanto, o desenvolvimento do progra-
ções também cinestésicas, fazendo com ma é muito facilitado quando se pode con-
que o aluno sinta inicialmente o movimen- tar com o apoio de equipes multidiscipli-
to a ser executado. nares, com médicos, psicólogos e fonoau-
O professor deve ter certeza de que diólogos.
os alunos compreenderam a atividade. Es-
pecialmente nos casos mais graves, é pre-
ciso trabalhar de forma sistematizada,
enfocando repetições de uma mesma ta-
refa e criando padrões consistentes duran- É importante lembrar que as estratégias
te as aulas (rotina). Os alunos com déficits podem variar de acordo com o nível de
cognitivos mais graves, diferentes daque- comprometimento intelectual, a idade
les educáveis, terão mais chances de su- dos participantes e o tipo de atividade a
cesso no processo de aprendizagem caso ser desenvolvida.
lhes seja dada a oportunidade de partici-
232 Dante De Rose Jr. e colaboradores

Para aqueles que optarem pela práti-


ca esportiva com foco em competições, A paralisia cerebral é uma condição re-
sultante de uma lesão no cérebro, que
uma ótima opção são os eventos da Special
afeta principalmente o controle da pos-
Olympics International. A entidade, fun- tura e da motricidade.
dada em 1968, nos Estados Unidos, disse-
mina a prática esportiva para atletas com
deficiência intelectual por todo o mundo.
No Brasil, o movimento foi reestruturado
em 2002, com o nome Special Olympics denação motora e os problemas de ajuste
Brasil, e desde então organiza eventos do tônus muscular. A maioria dos jovens
regionais, nacionais e internacionais para com essa condição apresenta quadro de
indivíduos com deficiência intelectual a espasticidade, com tônus muscular extre-
partir dos oito anos de idade (Special mamente elevado. O acometimento pode
Olympics Brasil, 2008). se dar em um ou mais membros, podendo
atingir ainda um lado do corpo ou, nos
casos mais graves, os quatro membros.
Potencialidades diferenciadas de Já a mielomeningocele é também
jovens com deficiência motora uma lesão de origem neurológica que dei-
xa sequelas motoras, porém o distúrbio
O termo deficiência motora designa ocorre na medula espinal. Por um proble-
uma condição de origem ortopédica ou neu- ma durante a gestação, um ou mais arcos
rológica que leva a alguma restrição de mo- vertebrais não se fecham completamente,
vimento e/ou locomoção. Diversas são as o que pode tornar o canal medular des-
causas de deficiências motoras na infância e protegido e lesionado. Essa condição pode
na adolescência; porém, certamente desta- levar à paralisia abaixo do nível em que
cam-se as de origem congênita, provocadas ocorre a lesão (geralmente torácico ou
por problemas durante a gestação ou no lombar), além de outras condições associa-
momento do parto (Rodrigues, 2006). das, como por exemplo maior predisposi-
Entre os acometimentos congênitos ção ao desenvolvimento de hidrocefalia.
que podem levar a restrições motoras, des- A criança com mielomeningocele geral-
tacam-se a paralisia cerebral (encefalo- mente dependerá de cadeira de rodas para
patia não progressiva da infância), as de- sua locomoção e poderá apresentar seque-
formidades congênitas (como o pé torto las associadas à lesão medular, tais como
congênito, os encurtamentos ósseos, a au- perda de sensibilidade, de controle de be-
sência congênita de membros, entre ou- xiga e esfincter e dificuldades no controle
tras) e a espinha bífida (especialmente a da temperatura corporal. Essas possíveis
mielomeningocele). Todas essas condições, sequelas exigem atenção redobrada por
de diferentes maneiras, podem afetar o parte do professor de educação física, a
desenvolvimento motor das crianças e le-
var à necessidade de adaptações nos pro-
gramas de atividades físicas e esportivas.
A paralisia cerebral é uma condição A criança com mielomeningocele geral-
resultante de uma lesão no cérebro, que mente dependerá de cadeira de rodas
para sua locomoção e poderá apresentar
afeta principalmente o controle da postu-
sequelas associadas à lesão medular, tais
ra e da motricidade. Algumas característi- como perda de sensibilidade, de contro-
cas marcantes da paralisia cerebral são a le de bexiga e esfincter e dificuldades
hiper-reflexia (reflexos persistentes de no controle da temperatura corporal.
grande magnitude), os distúrbios de coor-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 233
fim de que este não exponha as crianças a grandes grupos musculares para os me-
situações de risco durante a prática de ati- nores;
vidades físicas ou esportivas.  No que se refere aos jovens com mielo-
Dependendo da condição motora meningocele, o professor deve estar
apresentada, o uso de próteses ou órteses atento à possibilidade de o aluno fazer
é indicado para que se facilite a locomo- uso de válvula no caso de hidrocefalia,
ção e/ou a movimentação do corpo. Além a qual não pode sofrer impactos. Além
disso, a prática de atividades físicas na disso, é fundamental um bom posicio-
escola, em clubes ou centros especializados namento da criança na cadeira de ro-
é de fundamental importância para ga- das durante as aulas, a fim de se evitar
rantir o desenvolvimento motor o mais futuras deformidades posturais. A ca-
próximo possível do normal. Com mate- deira de rodas utilizada na prática de
riais adequados e algumas estratégias atividades físicas deve ser preferencial-
simples, o professor de educação física é mente a de modelo esportivo, com ro-
capaz de introduzir a criança com defi- das cambadas e rolamentos específicos,
ciência motora no universo do movimen- o que facilitará os deslocamentos do
to com grande êxito, o que trará um im- aluno durante os exercícios;
pacto muito positivo tanto do ponto de  Quanto aos alunos com malformações
vista da aptidão física e motora quanto dos congênitas, especificamente aqueles
aspectos afetivos e sociais (Block; Zeman, que fazem uso de próteses, é preciso
1996). que se esteja atento ao fato de que o
Alguns pontos merecem especial tamanho e o peso das próteses devem
atenção quando jovens com deficiência acompanhar os estágios de crescimen-
motora buscam a prática de atividades to da criança. Uma prótese mal ajus-
físicas: tada pode trazer prejuízos significati-
vos à estabilidade, à postura e à movi-
 O professor deve estar atento aos pro- mentação da criança. Especialmente
blemas de tônus muscular, especial- durante o estirão de crescimento, as
mente o hipertônus manifestado por dimensões da prótese em uso devem
muitos alunos com paralisia cerebral. ser revistas periodicamente pelo mé-
Embora a condição seja crônica, exercí- dico, e cabe ao professor alertar os pais
cios de alongamento muscular e pro- quando observadas quaisquer irregu-
priocepção podem trazer alívio a alguns laridades.
desconfortos e ganhos na amplitude de
movimento. Atividades aquáticas em A prática de atividades esportivas por
piscinas aquecidas também são de jovens com deficiência motora tem cresci-
grande valia, pois proporcionam rela- do muito nos últimos anos, especialmente
xamento natural do tônus muscular; por iniciativas de instituições que atuam
 Ainda se tratando de paralisia cerebral, com esporte adaptado. Infelizmente, mui-
é importante que o professor de edu- tos jovens ainda não têm conhecimento de
cação física esteja atento ao fato de que
as maiores perdas não são da força
muscular, mas sim do controle motor.
A prática de atividades esportivas por
O trabalho no programa de atividades jovens com deficiência motora tem cres-
físicas deve ser voltado para o aprimo- cido muito nos últimos anos, especial-
ramento da coordenação motora, par- mente por iniciativas de instituições que
tindo-se sempre dos movimentos mais atuam com esporte adaptado.
grosseiros para os mais simples e dos
234 Dante De Rose Jr. e colaboradores

que podem praticar uma ampla gama de indivíduos. Verifica-se, dessa forma, que a
modalidades esportivas, muitas das quais inserção de crianças e adolescentes com
com pequenas adaptações quando compa- deficiência em programas de atividades
radas às modalidades convencionais. As físicas e esportivas demanda obrigatoria-
modalidades esportivas mais procuradas mente a quebra de estigmas enraizados em
por essa população são a natação, o bas- nossa cultura, para que possamos enxer-
quete em cadeira de rodas, o vôlei parao- gar pessoas, e não apenas muletas ou ca-
límpico (sentado) e a bocha. No Brasil, di- deiras de rodas, e, principalmente, para
versas entidades regem a prática do espor- que possamos vislumbrar possibilidades no
te adaptado para atletas com deficiência lugar de incapacidades.
motora, mas ainda praticamente não exis-
tem competições com estratificação por
faixa etária. Dessa forma, crianças e ado- REFERÊNCIAS
lescentes com deficiência motora, quando
querem participar de competições, preci- BLINDE, E. M.; MCCALLISTER, S. G. Listening to
sam fazê-lo na mesma categoria que atle- the voices of students with physical disabilities.
tas adultos. Alguns projetos encabeçados JOPERD, v. 66, p. 64-68, 1998.
pelo Comitê Paraolímpico Brasileiro (CPB) BLOCK, M. E.; ZEMAN, R. Including students with
tentam modificar essa realidade. Entre disabilities in regular physical education: effects on
nondisabled children. Adapt. Phys. Activ. Q., v. 13,
estes, destaca-se o “Paraolímpicos do Fu-
p. 38-49, 1996.
turo”, um projeto que incentiva a prática
BRASIL. Lei de diretrizes e bases da educação. Brasília:
de modalidades esportivas por crianças e Imprensa Oficial, 1996.
adolescentes com deficiência, tanto nas GIMENEZ, R.; MANOEL, E. J. Desenvolvimento
escolas como em centros especializados. motor de pessoas com deficiências. In.: TANI, G.
Comportamento motor: aprendizagem e desenvolvi-
mento. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2005.
p. 243-265.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
GORGATTI, M. G. Educação física escolar e inclusão:
uma análise a partir do desenvolvimento motor e so-
Percebe-se que, de modo geral, as cial de adolescentes com deficiência visual e das ati-
maiores restrições impostas ao pleno de- tudes dos professores. 2005. Tese (Doutorado) – Pro-
senvolvimento de crianças e adolescentes grama de Pós-graduação em Educação Física e Es-
com deficiência não são advindas da defi- porte, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
ciência em si, mas sim da falta de oportu- GORGATTI, M. G.; COSTA, R. F. Atividade física adap-
tada: qualidade de vida para pessoas com necessi-
nidades e estímulos apropriados. Para es- dades especiais. São Paulo: Manole, 2005.
ses jovens, que no seu dia a dia têm pou- GORGATTI, T. Ferramenta para a felicidade e bem-
cas oportunidades de brincarem e de pra- -estar. Educação & Família, v.1, p.40-41, 2003.
ticarem atividades físicas, as aulas de edu- RODRIGUES, D. Atividade motora adaptada: a ale-
cação física escolar e a criação de progra- gria do corpo. São Paulo: Summus, 2006.
mas de atividades físicas e esportivas in- SPECIAL OLYMPICS BRASIL (SOB). Homepage. Dis-
clusivos ou específicos tornam-se cruciais. ponível em: http://www.specialolympicsbrasil.-
Como visto anteriormente, a simples org.br. Acesso em: 25 mar. 2008.
criação de instrumentos legais não é ca- WARNER, R. Physical education for children with
visual impairments. Br. J. Teach. Phys. Educ., v. 14,
paz de garantir o acesso irrestrito de jo- p. 17-20, 2001.
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WINNICK, J. P. Adapted physical education and sports.
des físicas e esportivas. Para tanto, é pre- Champaign: Human Kinetics, 2005.
ciso ter professores capacitados e compro- WINNICK, J. P.; SHORT, F. X. Testes de aptidão física
metidos com o desenvolvimento de pro- para jovens com necessidades especiais: manual Brock-
gramas que atendam à diversidade dos port de testes. São Paulo: Manole; 2001.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 235

ASPECTOS SOBRE A
RELEVÂNCIA DO CAMPO DO
LAZER NA ADOLESCÊNCIA
17
Ricardo Ricci Uvinha

A relação entre adolescência e lazer pode Este capítulo destacará a importân-


sugerir que tal público seria privilegiado cia de vivenciar experiências atreladas ao
no acesso a atividades de tempo livre, já campo do lazer como elemento de forma-
que parece não existir melhor momento ção da identidade do adolescente no meio
para a diversão e a transgressão de uma sociocultural no qual está inserido. Para
ampla gama de obrigações impostas pela tal, serão elencadas teorias que ressaltam
sociedade moderna. Contudo, entende-se o universo de valores e o modo de vida do
que tais reflexões devem ser vistas acade- adolescente, associando tal discussão à ne-
micamente com o devido cuidado, a fim cessidade de compreender sua cultura cor-
de que não se assuma um discurso reducio- poral e demais elementos, fundados em
nista quanto ao adolescente e seu papel uma multiplicidade de opções em ativida-
na sociedade, ao atrelá-lo unicamente a de física e outras formas de lazer.
uma concepção funcionalista de lazer pau-
tada em um conteúdo romântico, hedonísti-
co e irremediavelmente suscetível às amar- IMPLICAÇÕES SOCIOCULTURAIS
ras moralistas do complexo meio social em NA ADOLESCÊNCIA
que está inserido.
Elementos como isolamento social, A adolescência é uma fase da vida que
horizontes limitados, dificuldades em esta- tem sua ocorrência diretamente atrelada ao
belecer um estilo próprio e um sentimento ambiente sociocultural ao qual está vincu-
negativo com relação à vida são comumente lada. O fenômeno biológico da puberdade,
reportados por adolescentes e tornam-se considerado como ponto de partida da ado-
um grande desafio para os educadores e lescência, é, de certo modo, tido como um
para os responsáveis por políticas públicas acontecimento universal, já que é caracte-
para tal grupo. Mostra-se necessário iden- rístico em toda a espécie humana. No en-
tificar de forma mais atenta a qual adoles- tanto, como tal fase ocorre, em quais cir-
cência nos referimos, reconhecendo a sig- cunstâncias e como é passível de interpre-
nificativa dificuldade em pensá-la de for- tação em um dado grupo é que varia in-
ma unívoca enquanto fase de vida com iní- tensamente de uma sociedade para outra.
cio, meio e fim estabelecidos, já que esta se Estudos empíricos, em sociedades
concebe nos mais distintos ambientes, dada ditas primitivas, sobre o ciclo da vida a
a complexidade da atual sociedade. partir da Antropologia constataram uma
236 Dante De Rose Jr. e colaboradores

A adolescência é uma fase da vida que A transição da fase adolescente para a


tem sua ocorrência diretamente atrela- adulta em determinadas sociedades
da ao ambiente sociocultural ao qual pode ter como duração apenas poucos
está vinculada. O fenômeno biológico da dias, configurada por um único ritual de
puberdade, considerado como ponto de passagem, como estar apto à caça, à
partida da adolescência, é, de certo guerra, ou ainda, realizar alguma prova
modo, tido como um acontecimento uni- de força.
versal, já que é característico em toda a
espécie humana. No entanto, como tal
fase ocorre, em quais circunstâncias e
como é passível de interpretação em um
dado grupo é que varia intensamente de
Ciências Sociais como um todo dedicaram-
uma sociedade para outra.
se a estudar a adolescência e a juventude,
destacando que o tema é consideravelmen-
te antigo e que conquistou, no século XX,
uma cadeira cativa no meio universitário,
rica multiplicidade de ocorrência do pe- intitulada “Sociologia da Juventude”.
ríodo chamado “adolescência”. Trabalhos Se nas sociedades simples a adoles-
como o de Margareth Mead e de Ruth cência manifesta-se com intenso significa-
Benedict, realizado com jovens da ilha de do e tem sua passagem para a fase adulta
Samoa, descreveram detalhadamente a simbolizada por um rito, nas sociedades
vida deles neste ambiente social, defenden- complexas tal fase da vida pode durar
do que o curso do desenvolvimento deve muitos anos sem se precisar exatamente
ser gradual e contínuo durante todas as um final. Desse modo, é possível encon-
etapas da vida, principalmente na adoles- trar nas sociedades complexas atuais di-
cência, em que pode ocorrer uma certa versas interpretações sobre o período da
descontinuidade no processo, variável de adolescência, que pode ser vivenciada dos
cultura para cultura. Assume-se que, nas 15 aos 25 anos, a partir do enfoque da
sociedades primitivas, simples ou de pe- Organização das Nações Unidas para a
quena escala, a passagem do adolescente Educação, Ciência e Cultura (UNESCO);
para a vida adulta era realizada por meio dos 13 aos 18 anos, nos estudos de Erikson
de ritos, muitas vezes caracterizados por sobre os estágios do desenvolvimento hu-
intenso sofrimento físico ou psíquico. A mano; ou ainda dos 12 aos 20 anos, pelo
submissão a tais ritos significava, para o enfoque da medicina, com o início marca-
então adolescente, uma busca de dignida- do pela puberdade (Orsini, 1977).
de, consideração e aceitação pelos adul- Em seus estudos sobre as idades do
tos, desenvolvendo sentimentos de segu- homem na Roma antiga, Fraschetti (1996)
rança, autoestima e confiança (Muuss, demonstra que os romanos se baseavam
1976). na puer, que durava até os 7 anos; na
Desse modo, a transição da fase ado- pueritia, dos 7 aos 14 anos; na adulescen-
lescente para a adulta em determinadas tia, dos 14 aos 28 anos; e na iuventus, dos
sociedades pode ter como duração apenas 28 aos 50 anos.
poucos dias, configurada por um único ri- Já Pastoureau (1996) identifica em-
tual de passagem, como estar apto à caça, blemas da juventude a partir de seus atri-
à guerra, ou ainda, realizar alguma prova butos e representações na imagem medie-
de força. val em iconografia do período, em qua-
Cardoso e Sampaio (1995) defendem dros, afrescos, esculturas e gravuras, enfa-
que não somente a Antropologia mas as tizando as representações recorrentes de
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 237
“valete” e “cavaleiro”, destacando que a dem colaborar com a imprecisão do final
passagem de uma para outra marcaria a da adolescência na nossa sociedade. Isso
transição da infância para o mundo adulto. porque o discurso de ter um emprego, dei-
Ao analisar a juventude europeia da xar o conforto da casa dos pais e tornar-se
década de 1970, Bourdieu (1983) aponta definitivamente um adulto mostra-se em
que a idade é um dado biológico social- desuso diante da inserção cada vez mais
mente manipulado e manipulável, dado o precoce dos adolescentes no mercado de
fato de que a relação entre idades biológi- trabalho. Tal fato ocorre por uma expec-
ca e social apresenta-se de forma muito tativa depositada pelos pais na prepara-
complexa. Já De Grazia (1966) destaca que ção para um futuro profissional, ou ainda
a relação com o tempo é decisiva para a pela necessidade cada vez mais frequente
interpretação da adolescência, sendo que, da inserção no trabalho ainda quando
em sociedades em que a influência do tem- criança, em famílias brasileiras que apre-
po cíclico é predominante ao tempo linear, sentam baixa colocação socioeconômica
com menor dependência do relógio, é pos- (Spindel, 1989).
sível se observar uma maior consciência
da idade apegada ao ritmo das estações.
As sociedades complexas vão apre-
sentar, assim, uma multiplicidade de ocor- As relações estabelecidas com as esfe-
ras sociais do trabalho e da família po-
rência com tal fase da vida, muitas vezes
dem colaborar com a imprecisão do fi-
apresentando uma imprecisão sobre seu nal da adolescência na nossa socieda-
final e sua entrada definitiva para a fase de. Isso porque o discurso de ter um
adulta. Featherstone (1994, p. 51) sugere emprego, deixar o conforto da casa dos
um “embaçamento de fronteiras” entre a pais e tornar-se definitivamente um adul-
infância e a maturidade, já que em algu- to mostra-se em desuso diante da inser-
mas sociedades pode-se tentar adotar os ção cada vez mais precoce dos adoles-
valores e hábitos do velho e ser jovem, em centes no mercado de trabalho.
outras os velhos podem tentar assumir os
valores dos jovens, ou ainda pode-se ter a
ocorrência de uma sociedade forjando uma
imagem jovem para todas as fases da vida Pais (1993) faz uma análise sobre o
por meio de tendências de marketing e processo de adolescência em Portugal, des-
costumes. tacando que, além do trabalho e da famí-
As imprecisões quanto à adolescên- lia, elementos na vida do jovem, como o
cia que caracterizam tal fase nas socieda- cumprimento do serviço militar para os
des complexas também se manifestam na rapazes e o matrimônio, em geral eram,
realidade brasileira. No código penal do há algumas décadas, indicadores marcan-
país, é adulto aquele que tiver idade igual tes da passagem para a vida adulta, pois
ou superior a 18 anos, sendo este passível significavam para aqueles em tal fase da
de julgamento e punição quando realizar vida símbolos de emancipação. Entretan-
algum ato infrator. É necessário ter a mes- to, o autor questiona se de fato tais ele-
ma idade para obter carteira de motorista mentos indicariam uma inserção do jovem
conforme a legislação de trânsito vigente. como um adulto na sociedade, consideran-
No entanto, para o direito de voto em elei- do que a experiência de sê-lo é, em si, he-
ções, curiosamente, antecipa-se a idade terogênea e bastante difícil de situar em
adulta para os 16 anos. um claro limite de fase da vida.
As relações estabelecidas com as es- Analisando o desenvolvimento da
feras sociais do trabalho e da família po- adolescência enquanto categoria teórica
238 Dante De Rose Jr. e colaboradores

nos Estados Unidos e sua relação em es- Tal concepção sugere uma forma ro-
pecial com o trabalho, Edginton, Kowalski mântica e hedonística de entendimento da
e Randall (2005) discorrem sobre as difi- adolescência, em geral, e do tempo livre/
culdades em lidar com tal público na rea- lazer, em particular, que deve ser vista com
lidade norte-americana. Identificam ele- o devido cuidado, caso se pretenda reali-
mentos que estabelecem grandes desafios zar uma análise crítica dessa relação. Pais
para os educadores, em que se destacam (1993) destaca que, pelas práticas cultu-
sentimentos negativos de isolamento so- rais juvenis ocorrerem em grande parte no
cial, horizontes limitados e dificuldades em domínio do lazer, elas sugerem a noção
estabelecer um estilo que lhe é próprio. de que tal fase da vida é vivida sob a égide
Será desenvolvida, a seguir, uma re- da diversão e do prazer.
flexão sobre o papel do lazer na adoles- Também em um viés que tende a ser
cência, entendendo o impacto da vivência funcionalista, a vivência do lazer no tem-
desse elemento no tempo livre dos jovens. po liberado das obrigações pelo adolescen-
te pode sugerir uma experiência conturba-
dora e transgressora da ordem social vi-
A ADOLESCÊNCIA E SUA RELAÇÃO gente, fato que é visto com preocupação
COM O LAZER E O LÚDICO por setores que procuram prezar pela se-
gurança e conformidade no status quo.
Entende-se como fundamental a Nesse sentido, uma faceta moralista pode
compreensão das múltiplas experiências ser empregada sobre as atividades de lazer
de lazer vivenciadas pelo adolescente no dos adolescentes, sugerindo ser um tem-
seu tempo livre, atribuindo a esses momen- po de vivência excessiva do ócio, da vaga-
tos acentuada relevância em termos de va- bundagem, de não privilegiar dimensões
lores e expressão de signos sociais, reve- prioritárias como os trabalhos e estudos,
lando uma cultura juvenil multifacetada e entre outros (Requixa, 1980).
em constante transformação. Autores diversos verificaram como o
As questões que envolvem o tempo moralismo e o preconceito com relação ao
livre e suas características em termos de lazer juvenil historicamente estiveram pre-
vivência na sociedade moderna vão suge- sentes em suas sociedades. De Grazia
rir que um grupo em especial seria privi- (1966), por exemplo, ressaltou uma juven-
legiado no acesso ao lazer: o adolescente. tude americana na década de 1960 que
Isso porque, de acordo com o senso co- não podia formar suas próprias normas,
mum, parece não haver melhor fase da pois a sociedade a considerava como “me-
vida para se divertir e transgredir distin- nor”, sugerindo no termo empregado um
tas obrigações, como a trabalhista, a estu- certo estado de inferioridade. Isso acabou
dantil e a familiar. por acarretar uma vigilância social tam-
bém no tempo livre, desempenhada por
pais, professores e tutores na busca de uma
educação considerada adequada para o
Entende-se como fundamental a com- adolescente na época. Cursos de lazer, ar-
preensão das múltiplas experiências de tesanato e treinamento de hobbies foram
lazer vivenciadas pelo adolescente no seu desenvolvidos nessa lógica de controle e
tempo livre, atribuindo a esses momen-
tos acentuada relevância em termos de
bons modos do tempo livre do adolescente.
valores e expressão de signos sociais, re- Em oposição ao reducionismo român-
velando uma cultura juvenil multifacetada tico e moralista que alguns setores podem
e em constante transformação. conferir ao lazer vivenciado na adolescên-
cia, vemos estudos que reforçam tal esfe-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 239
lizado na reflexão sobre o papel da escola
Em oposição ao reducionismo românti- em atenuar esse comportamento, em es-
co e moralista que alguns setores podem
pecial em momentos como o recreio, em
conferir ao lazer vivenciado na adoles-
cência, vemos estudos que reforçam tal que podem ser utilizados já desde a infân-
esfera social como decisiva na formação cia com materiais lúdicos, desenvolvendo
do jovem, em seus hábitos de saúde e sentimentos de autoconfiança, autoesti-
até mesmo na minimização da violência. ma e entreajuda (Ferreira; Pereira, 2001).
Pesquisas realizadas no Reino Unido
com adolescentes na educação formal re-
velaram o importante papel desempenha-
do pela escola na educação para o lazer,
ra social como decisiva na formação do identificando evidente correlação entre as
jovem, em seus hábitos de saúde e até atividades desempenhadas no tempo livre
mesmo na minimização da violência. e a educação gerada na escola. Em um
McLean, Hurd e Rogers (2005) apon- desses estudos, ressalta-se que alunos que
tam que, nos Estados Unidos, cresce for- permaneceram e vivenciaram atividades
temente a parcela da população adoles- em tempo integral na escola participavam
cente, tendo como projeção para 2045 um mais ativamente de atividades diversas de
contingente acima dos 51 milhões de pes- lazer em seu tempo livre (leituras, ativi-
soas entre 10 e 19 anos. Afirmam os au- dades em ambientes outdoor, esportivas,
tores que as pesquisas realizadas no país voluntariado) comparativamente àqueles
convergem para o fato de que os hábitos que não tiveram tais experiências na edu-
relacionados à recreação e ao lazer no cação formal (Bull; Hoose; Weed, 2003).
tempo livre desses jovens têm relação di- O elemento lúdico, também presen-
reta com seu desenvolvimento emocional te na educação formal e em outras distin-
e social. tas experiências ligadas à obrigação estu-
Em um estudo de um grupo compos- dantil, pode contribuir sobremaneira para
to por 426 estudantes com idades entre a formação do adolescente, sem necessa-
17 e 23 anos do primeiro ano do Ensino riamente adequá-lo aos valores sociais vi-
Superior em Portugal, Santos e Pais-Ribei- gentes, atuando como uma poderosa fer-
ro (2006) objetivavam verificar a noção ramenta de contraposição à ordem estabe-
de lazer como um modo de coping (redu- lecida e potencialmente propulsora de
tor de estresse) para os jovens abordados transformações em busca de uma socie-
na amostragem. Os resultados apontaram dade mais justa e igualitária.
para o fato de que a participação em ativi-
dades de lazer tem uma relação positiva
com estratégias de coping mais ativas e
com o estado de saúde, tanto referente ao O elemento lúdico, também presente na
componente físico quanto ao mental. educação formal e em outras distintas
Ainda na literatura acadêmica de experiências ligadas à obrigação estudan-
Portugal, tem recebido especial atenção no til, pode contribuir sobremaneira para a
estudo do tempo livre do adolescente o formação do adolescente, sem necessa-
conceito de bullying, adaptado para a lín- riamente adequá-lo aos valores sociais vi-
gentes, atuando como uma poderosa fer-
gua portuguesa para denotar qualquer tipo ramenta de contraposição à ordem esta-
de comportamento agressivo ou de viti- belecida e potencialmente propulsora de
mação, em que o agressor utiliza um certo transformações em busca de uma socie-
poder ou autoridade sobre a vítima com dade mais justa e igualitária.
intencionalidade. O termo vem sendo uti-
240 Dante De Rose Jr. e colaboradores

O lazer poderia assim desempenhar ram uma pesquisa com uma amostra cons-
uma importante função no contato do ado- tituída por 594 alunos com idades entre
lescente com o grupo, denotando uma for- 12 e 20 anos. Os autores verificaram que
ma de se expressar socialmente seja no as atividades de lazer mais vivenciadas
momento da vivência do lúdico, em expe- (presentes em mais de 9 a cada 10 adoles-
riências concebidas no espaço da educa- centes) foram não ativas, como “ouvir
ção formal, seja em atividades recheadas música” e “ver televisão ou vídeo” (Tabela
de valores e significados no tempo libera- 17.1). Atividades ligadas diretamente à
do das obrigações. Verificaremos a seguir prática de atividades físicas ou esportes
a atividade física e sua relação com o lazer vão surgir somente na 14a opção. Os au-
do adolescente. tores identificaram ainda um grande com-
ponente de tempo livre não estruturado
entre os adolescentes, o que sugere a ne-
LAZER E ATIVIDADE FÍSICA cessidade de programas para tal público
NA ADOLESCÊNCIA que atentem para essas características.
Na Austrália, Veal e Lynch (2001) res-
Em pesquisa com adolescentes brasi- saltam igualmente a relevância das ativida-
leiros de distintas classes socioeconômicas, des de entretenimento eletrônico no tem-
Zagury (1996) identifica que a prática de po livre de adolescentes entre 13 e 17 anos
atividades físicas aparece apenas em quar- de idade, em especial (e nessa ordem): “ver
to lugar nas atividades preferidas ligadas televisão” e “ouvir música”. Como comple-
ao tempo livre dos jovens, com 52%. As mento, apontam que entre 1995 e 1997 o
opções de “ouvir música” (72,9%), “ver TV” acesso pelos jovens a equipamentos de
(61%) e “bater papo com os amigos” tecnologia tradicional de mídia, como rá-
(58,2%) lideram a referida pesquisa em dio, CD/cassette players e aparelhos de te-
termos de respostas. É interessante notar levisão, continuou relativamente constan-
que o esporte recebe menção especial no te entre essa parcela da população. Con-
quesito da prática de atividades físicas, não tudo, o acesso a algumas novas tecnologias
ficando claro, porém, no estudo, se é o caso de mídia, como video games, sistemas de
de um formato competitivo ou recreacional. jogos interativos em computadores pessoais
Ainda na realidade nacional, Cavi- e sistema Pay-per-view na televisão, cres-
chiolli (2006) também identifica o item ceu significativamente no tempo livre dos
“ouvir música” e assistir “TV/vídeo/DVD” adolescentes australianos, principalmen-
como atividades lúdico-recreativas de des- te daqueles do gênero masculino.
taque no tempo livre de jovens, em pes- Ainda conforme os autores, os gran-
quisa realizada no estado do Paraná. Os des conglomerados vinculados ao marke-
esportes recebem menção na pesquisa, ting e aos meios de comunicação de massa
com ênfase em práticas como voleibol e estão atentos a tais resultados, intensifi-
futebol. Os autores postulam o grande cando as propagandas endereçadas aos
desafio para os gestores públicos a partir adolescentes seja por TV, rádio ou, mais
desses resultados, já que devem pensar em recentemente, pela internet. Segundo eles,
formas de implementar as oportunidades um sofisticado mercado de produtos tem
de lazer para os jovens também levando sido associado ao tempo livre do jovem,
em conta as atividades realizadas substan- com destaque para os refrigerantes, cigar-
cialmente no espaço doméstico. ros, álcool, moda, tênis esportivos, progra-
Tais dados coadunam resultados de mas televisivos, entre outros.
trabalhos realizados em outros países. Em Evidentemente, fenômeno semelhan-
Portugal, Esculcas e Mota (2005) realiza- te acontece no mundo todo, inclusive em
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 241
TABELA 17.1 Tendências das práticas de lazer para os intervalos de idade e médias das práticas para a
população
Intervalos de Idade

12-14 15-17 18-20


(n = 198) (n = 198) (n = 198) (N = 594)

Ouvir música 94,4% 95% 93,4% S = 0,445 94,3%


Trabalhos para a escola 95,5% 92% 89,3% S = 2,270** 92,2%
Ver televisão ou vídeo 90,9% 90,5% 90,4% S = 0,188 90,6%
Conversar com os amigos(as) 90,4% 90,5% 89,3% S = 0,352 90,1%
Estar só 88,9% 83% 83,8% S = 1,442 85,3%
Ler 90,9% 82% 77,7% S = 3,542**** 83,5%
Trabalhos domésticos 83,3% 78,5% 83,8% S = – 0,105 81,8%
Jogar: cartas, vídeos, computador 85,9% 76% 67,5% S = 4,290**** 76,4%
Visitar pessoas conhecidas 79,8% 62,5% 58,9% S = 4,418**** 66,9%
Fazer compras ou ver montras* 68,2% 61% 62,9% S = 1,086 64,1%
Assistir a acontecimentos esportivos 69,7% 58,5% 59,9% S = 6,587** 62,9%
Ir ao cinema, concertos, teatro 60,1% 57% 54% S = 1,161 57%
Tocar música ou cantar 56,1% 55% 49,2% S = 1,357 53,3%
Esporte não orientado 49,5% 42,5% 34,5% S = 3,011*** 42,2%
Esporte orientado ou de competição 35,9% 47% 40,1% S = – 0,861 41%
Namorar 29,3% 33,5% 48,7% S = – 3,989**** 37,3%
Ir à discoteca 20,7% 29% 42,6% S = – 4,727**** 30,5%
Jogos ou movimentos de juventude 18,2% 29% 26,4% S = – 1,901 24,5%
Trabalhar 18,7% 22% 24,9% S = – 1,498 21,8%
“Arte e expressão” 17,2% 17% 19,8% S = – 0,681 17,7%
Trabalho de solidariedade social 16,2% 17,5% 16,8% S = – 0,157 16,9%

Fonte: Esculcas e Mota (2005). Utilizada com permissão dos autores.


*
Vitrinas, ** p < 0,05, *** p < 0,01, **** p < 0,001

países orientais como a China. Segundo Mesmo sugerindo um desapego de


Wang (2005), com a importância mercado- lazeres mais “ativos” no tempo livre dos
lógica do lazer reconhecida pelo Estado adolescentes ao redor do mundo, excessi-
chinês, cresce naquele país o acesso espe- vamente associado à indústria do entrete-
cialmente dos jovens a produtos e servi- nimento midiático, é inegável que formas
ços associados ao entretenimento, como variadas de atividade física associadas a
internet e jogos de computador, até então valores de grupo assumem importância
impensáveis em um país sob um regime igualmente significativa no tempo livre dos
político e econômico diferenciado e decla- mesmos. Atividades como o hip hop, a dan-
radamente não capitalista. ça, o parkour e os esportes radicais ganham
Seguindo a tendência mundial, no considerável adesão e tendem a crescer,
Brasil temos a “imagem jovem” como ele- manifestando-se como uma expressão for-
mento relevante na sociedade, presente em jada no compartilhamento de signos con-
mensagens impregnadas nas mais varia- cebidos em distintos grupos de jovens da
das propagandas de produtos para aten- sociedade atual.
der demandas de mercado, não somente Tendo como exemplo os esportes ra-
atreladas ao público adolescente, mas à dicais, verificou-se em estudo anterior a
sociedade em geral (Uvinha, 1996). relevância da compreensão do skate en-
242 Dante De Rose Jr. e colaboradores

presente no período associado à adoles-


Mesmo sugerindo um desapego de cência.
lazeres mais “ativos” no tempo livre dos
Também a relação com o próprio cor-
adolescentes ao redor do mundo, exces-
sivamente associado à indústria do en- po deve receber especial menção na apro-
tretenimento midiático, é inegável que ximação entre adolescente, lazer e ativi-
formas variadas de atividade física as- dade física. O jovem encontra-se em um
sociadas a valores de grupo assumem período de intensas alterações orgânicas
importância igualmente significativa no em um curto espaço de tempo, e a ativida-
tempo livre dos mesmos. Atividades de física pode contribuir de forma signifi-
como o hip hop, a dança, o parkour e os cativa para levá-lo a compreender as rela-
esportes radicais ganham considerável
ções desse novo corpo com o seu meio.
adesão e tendem a crescer, manifestan-
do-se como uma expressão forjada no Com isso, não se pretende reduzir o corpo
compartilhamento de signos concebidos a uma “metáfora metodológica” recorta-
em distintos grupos de jovens da socie- da da complexidade do cotidiano dos jo-
dade atual. vens, como bem nos alerta Toledo (2007),
mas sim entendê-lo em sua associação com
a atividade física para além das meras mu-
danças fisiológicas, em uma expressiva
quanto prática no tempo livre, tendo como representação perante seu grupo e a socie-
amostragem jovens praticantes da moda- dade mais ampla.
lidade no ABC paulista. Os resultados su-
geriram a necessidade de compreensão do
adolescente tendo em tal atividade física Também a relação com o próprio corpo
a expressão de uma identidade juvenil ma- deve receber especial menção na apro-
nifestada por valores grupais, seja na ximação entre adolescente, lazer e ati-
vestimenta, na linguagem ou ainda na vidade física. O jovem encontra-se em
música (Uvinha, 1997). um período de intensas alterações orgâ-
Em 2002, o número de adeptos ao nicas em um curto espaço de tempo, e a
atividade física pode contribuir de for-
skate no Brasil superou a ordem de 2,7
ma significativa para levá-lo a compre-
milhões de pessoas, sendo que 6% dos ender as relações desse novo corpo com
domicílios brasileiros apresentaram ao o seu meio.
menos um praticante, posicionando a mo-
dalidade em 2006 como o segundo espor-
te mais praticado na cidade de São Paulo
(São Paulo [cidade], 2007). CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seja no skate, nas modalidades ante-
riormente citadas, ou nos esportes ditos Como visto, as distintas concepções
“convencionais”, como o futebol e o volei- sobre adolescência, presentes nas mais
bol, a relação do adolescente com o grupo variadas sociedades, devem ser levadas em
e consigo mesmo é um forte elemento que consideração para o entendimento sobre
deve ser somado aos comprovados bene- o jovem na sintonia com o seu meio. A
fícios da prática da atividade física. O per- passagem para a fase adulta pode deman-
tencimento a um grupo pode denotar um dar desde um rito de passagem até um
modo bem peculiar de comportamento em verdadeiro embaçamento de fronteiras,
relação aos outros e à natureza, e enten- não se precisando muito bem o final des-
de-se aqui que tal fato esteja especialmente se período da vida.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 243
Para compreender o jovem na socie- REFERÊNCIAS
dade complexa atual, defende-se como
fundamental refletir sobre o papel do lazer BOURDIEU, P. A juventude é apenas uma palavra.
na adolescência, entendendo o impacto da In: –––––––––– . Questões de sociologia. Rio de Janeiro:
Marco Zero, 1983.
vivência dessa esfera social no tempo li-
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tais vivências, pode-se ter acesso a mani-
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dos, que outros campos, como o dos estu- CAVICHIOLLI, F. R. Juventude, esporte e lazer: pers-
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não serem mencionadas como prioritárias L. de. (Org.). Esporte e lazer: subsídios para o desen-
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países, é possível configurar a atividade
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244 Dante De Rose Jr. e colaboradores

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Esporte e atividade física na infância e na adolescência 245

AS ATIVIDADES
FÍSICAS COMO FORMA DE
MEDIAÇÃO DAS RELAÇÕES
18
INTERGERACIONAIS NA ESCOLA
Patrícia Junqueira Grandino

São inúmeros os problemas apontados na Neste capítulo, procuraremos ilumi-


atualidade no campo da educação. Os re- nar alguns aspectos de pouco destaque no
sultados pífios dos alunos em diversos ins- debate atual: tomando as queixas de in-
trumentos de avaliação do desempenho disciplina como sintoma de um mal-estar
escolar suscitam debates calorosos sobre relativo às demandas de reconhecimento
as causas do insucesso da aprendizagem, das crianças, procuraremos refletir sobre
acentuando desmensuradamente o para- o sentido das expressões corporais desse
doxo da educação: ao mesmo tempo em mal-estar a partir das contribuições da psi-
que a sociedade deposita expectativas de canálise, destacando as aulas de educação
superação dos mais variados problemas física como potenciais para o enfrenta-
atuais na formação das novas gerações, as mento e a superação de parte das dificul-
escolas, os professores e os alunos viven- dades vividas nas escolas.
ciam, no cotidiano escolar, toda sorte de
precariedade e problemas que impedem a
efetivação de qualquer projeto pedagógico. O SINTOMA ESCOLAR
DA INDISCIPLINA

Tema frequente no cotidiano escolar,


Ao mesmo tempo em que a sociedade a indisciplina ganha espaço nas queixas
deposita expectativas de superação dos dos professores, exaustos por não conse-
mais variados problemas atuais na for- guirem “controlar” seus alunos. Manifes-
mação das novas gerações, as escolas, tam-se perplexos diante do comportamen-
os professores e os alunos vivenciam no to de crianças e adolescentes, sem com-
cotidiano escolar toda sorte de preca-
preenderem o que consideram ser um ex-
riedade e problemas que impedem a
efetivação de qualquer projeto peda- cesso de atitudes agressivas entre eles.
gógico. Mesmo em brincadeiras, são constantes os
xingamentos, empurrões e gritos.
246 Dante De Rose Jr. e colaboradores

Acompanhando reuniões pedagógi- incômodo e persistente presente nas esco-


cas de professores em escolas públicas1, é las de hoje?
possível perceber um clima de estranha- Sabemos que a universalização do
mento e distância nos relatos dos educa- acesso à educação em nosso país aconte-
dores em relação a seus alunos. A angús- ceu de modo a efetivar quantitativamente
tia que emerge da relação tumultuada en- as vagas para a população, sem a corres-
tre eles revela um mal-estar presente na pondente preocupação de garantir a qua-
educação, e, talvez, ainda muito pouco lidade e redefinições programáticas do
discutido, das transformações nas relações conteúdo e de metodologias de ensino do
de cuidado entre gerações. sistema educacional. Desse fato, percebe-
A indisciplina na escola, nesse senti- mos ainda nos dias de hoje, a despeito das
do, aparece como sintoma desse mal-es- mudanças na legislação2 e do amplo de-
tar e a estranheza defensiva dos professo- bate que permeia o campo educacional,
res diante das crianças e de adolescentes que, mesmo considerando superados al-
que deveriam cuidar surge como a contra- guns modelos de postura pedagógicos,
face de adultos sem recursos para assumi- mesmo tendo em conta a necessidade de
rem seu papel de preceptores da nova ge- reconhecer a singularidade dos alunos, seu
ração. contexto sociocultural e familiar e, princi-
palmente, reconhecendo a importância de
trazer o aluno para o centro do processo
de ensino-aprendizagem, a escola perma-
A indisciplina na escola, nesse sentido, nece presa a práticas educativas anacrôni-
aparece como sintoma desse mal-estar, cas e obsoletas.
e a estranheza defensiva dos professo- Assim, talvez a indisciplina possa re-
res diante das crianças e de adolescen- velar uma demanda não dita dos alunos,
tes que deveriam cuidar surge como a que, pela impossibilidade de nomear seu
contraface de adultos sem recursos para mal-estar, expressam-no por meios de lin-
assumirem seu papel de preceptores da
guagem corporal, nos gestos e atitudes
nova geração.
relacionais com colegas e professores,
como procuraremos demonstrar neste ca-
pítulo.
O termo indisciplina permite perce-
Tomar a indisciplina como ponto de ber a diversidade de representações asso-
reflexão permite também olhar a experiên- ciadas que dependerão do contexto cultu-
cia infanto-juvenil da atualidade sob ou- ral, dos pressupostos e das expectativas dos
tras perspectivas, na tentativa de com- professores que nomeiam, sob a mesma
preender lógicas e significados presentes alcunha, situações distintas e significados
nas formas de expressão dos jovens, bus- ambivalentes. De modo geral, essas repre-
cando decifrar o não dito presente nas ati-
tudes. Em outras palavras, o que será que
podemos aprender com esse fenômeno
2
Referimo-nos, particularmente, ao Estatuto
da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), que
abordaremos com mais detalhes a seguir, mas
também à LDB (Brasil, 1996), que introduziu
1 parâmetros mais atuais no sistema educacio-
Essas participações em reuniões pedagógicas
aconteceram em diferentes momentos e por ra- nal brasileiro, com vistas a aproximar a escola
zões variadas, seja como pesquisadora, como e seus projetos pedagógicos da realidade dos
professora convidada ou supervisora de estágio. alunos.
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 247
sentações podem estar associadas desde pela observação dos princípios reconheci-
aspectos relacionados à agitação motora dos socialmente, bem como pelas sanções
dos alunos, ao modo como se expressam normatizadoras que visam à garantia des-
(bem como aos termos empregados, via de ses procedimentos, como demonstrou Fou-
regra de baixo calão), até demonstrações cault (1987).
de agressividade entre os próprios colegas, Se a escola legitima o espaço da sala
ou dirigidas aos adultos, professores e de- de aula como aquele onde a ordem e a
mais profissionais presentes na escola. obediência são os parâmetros válidos e
A diversidade de significados do ter- reconhecidos, qualquer transgressão da
mo, por si só, revela uma das faces desse norma passa a ser considerada como agres-
mal-estar, na medida em que permite vis- são aos princípios da educação e, portan-
lumbrar as dissincronias entre aquilo que to, comprometedora do sucesso da emprei-
o professor espera, frustrado, de seus alu- tada educativa. A indisciplina passa a ser,
nos e o modo como estes conseguem ma- assim, uma ameaça que deve ser combati-
nifestar seus descontentamentos. Muitas da; do mesmo modo, os alunos indiscipli-
vezes, os professores queixam-se de nados podem ser considerados como “de-
indisciplina diante de situações em que não sinteressados nos estudos”.
conseguem a obediência de seus alunos, Entretanto, do ponto de vista do alu-
seja pela contenção da fala ou da ativida- no, é possível identificar outra interpreta-
de motora. Professores queixam-se de que ção para os mesmos gestos e posturas
seus alunos se levantam e caminham pela indisciplinadas. A transgressão que a
sala enquanto a aula está sendo ministra- indisciplina comporta não deixa de ser um
da, ou conversam com colegas, provocam- revide ou uma recusa a algo presente no
se mutuamente e recusam a se manterem cotidiano escolar, em relação ao qual o
em silêncio dentro da sala de aula. mal-estar vivido pelo aluno se expressa na
As escolas de hoje, à semelhança das mobilidade do corpo, no uso de linguagem
de décadas atrás, via de regra operam com imprópria ou em expressões afetivas trans-
a noção de que o estudo “não é brincadei- gressivas, pela impossibilidade de articu-
ra”. Portanto, contrapondo-se à dinâmica lar racionalmente e nomear.
lúdica, de maior flexibilidade, liberdade A indisciplina pode ser compreendi-
de expressão e autonomia – como se o da como um alerta ou uma demanda re-
aprendizado implicasse desprazer –, na flexiva daquilo que não tem lugar na sala
sala de aula exige-se que os alunos sen- de aula, ou seja, do reconhecimento e da
tem-se enfileirados, atentos ao quadro ne- singularidade do aluno em toda sua com-
gro e à professora que discursa à frente da plexidade. Não sendo possível falar, por-
sala. que em sala de aula não há espaço para
As aulas expositivas, mesmo conside- outra voz que a do professor, não sendo
rando o empenho dos docentes em incre- possível registrar sua existência, o corpo
mentar o conteúdo com vídeos, músicas e
outras estratégias pedagógicas mais dinâ-
micas, ainda enfatizam o modelo tradicio-
nal da transmissão de conteúdos. A insis-
A indisciplina pode ser compreendida
tência nesse modelo de ordem corresponde
como um alerta ou uma demanda refle-
às formas de controle social que passaram, xiva daquilo que não tem lugar na sala
ao longo da história, do controle do corpo, de aula, ou seja, do reconhecimento e
de caráter público e exemplar, àquelas cor- da singularidade do aluno em toda sua
respondentes à dimensão do poder disci- complexidade.
plinar, que se caracteriza pela vigilância e
248 Dante De Rose Jr. e colaboradores

parece agitar-se buscando contorno e cada etapa de vida, modos específicos de


pertencimento. Pela via da ruptura o alu- pensar e sentir, e que os contextos cultu-
no consegue ser visto. Mesmo criticado e ral e social, bem como as experiências vi-
por vezes punido, ele encontra ali o reco- vidas, são determinantes para seu pleno
nhecimento que falta no silêncio da obe- desenvolvimento.
diência. Em diversas áreas do conhecimento,
Não por acaso, as aulas de Educação estudos passaram a revelar a complexida-
Física são comumente festejadas e valori- de do processo de desenvolvimento huma-
zadas pelos alunos. No espaço menos no. Gradualmente, essas informações e
estruturado das atividades físicas, no qual novos conceitos passaram a influir nos mo-
o corpo encontra razão de expressão, os dos como os adultos se relacionam com os
alunos parecem encontrar o sentido que mais jovens, acentuando a noção dos cui-
escapa no interior das quatro paredes da dados necessários a se oferecer e a respon-
sala de aula. Aprender ganha propósito, sabilidade dos mais velhos na educação
as normas servem para regular o jogo, e o dos mais novos.
exercício físico promove prazer. O contato Paralelamente, a cena social contem-
com colegas e com o professor encontra a porânea passou a destacar a juventude
legitimidade do grupo e do compartilha- como modelo privilegiado de bem viver.
mento. O que antes era valorizado na maturidade,
É importante destacar, porém, que o como a experiência e a sabedoria que se
descompasso entre a expectativa dos pro- alcança com os anos, passou a ser preteri-
fessores em sala de aula e o comportamen- do pela vitalidade da juventude, pela força
to dos alunos ilustra as dissincronias de da energia e pela disposição atribuídas aos
um momento histórico de transição. A jovens. A infância e a juventude ganharam
noção de infância e juventude sofreu mu- centralidade social e adquiriram o estatu-
danças importantes nas três últimas déca- to de modelo paradigmático de vida. Hoje,
das, e a nova geração chega à escola in- adultos e idosos aspiram à eternização da
formada por essas mudanças, enquanto os juventude, com esforços que se refletem
adultos responsáveis por elas mantêm-se nos modos de se vestir, nos cuidados com
em outro registro. o corpo e com a estética, e nos imperati-
Antes, portanto, de buscar proposi- vos da mídia, que apelam para que todos
ções dentro do espaço das aulas de educa- “mantenham a mente e o corpo jovens”.
ção física, vale destacar alguns aspectos Há ainda outro aspecto que permite
que mudaram a noção da infância e da compreender a intensidade e a rapidez das
adolescência atuais, a fim de auxiliarem mudanças observadas nas últimas décadas.
nossa análise. As novas tecnologias têm propiciado a di-
fusão e o acesso a informações que antes
seriam impensáveis. A televisão difunde
DE QUAIS CRIANÇAS E aspectos culturais de massa em quantida-
ADOLESCENTES FALAMOS HOJE? des enormes e alcança milhões de teles-
pectadores. A rapidez com que as notícias
As últimas décadas transformaram a chegam aos lares dilui fronteiras e acelera
noção de infância e juventude, na medida os tempos de elaboração. A possibilidade
que novos conhecimentos sobre a especifi- de acompanhar os acontecimentos de ou-
cidade do desenvolvimento humano pas- tras partes do mundo em tempo real pro-
saram a se difundir popularmente, indi- voca mudanças nos modos de pensar, agir
cando que crianças e adolescentes têm, em e atribuir sentido à existência humana. As
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 249
culturas não estão mais demarcadas por mudanças mais amplas de reconhecimen-
fronteiras geográficas, e os valores são to das singularidades dessa etapa do ciclo
impregnados por incertezas. Assim, as vital, e que correspondesse à condição de
crianças e os adolescentes de hoje têm mui- pessoas em desenvolvimento.
to mais acesso à informação, e não há as- Foi a partir da convergência dessas
sunto que não chegue até seus ouvidos e diferentes dimensões – de reconhecimen-
não suscite sua curiosidade, a despeito do to da especificidade dessa faixa etária, da
que os pais ou professores considerem compreensão de suas potencialidades, da
pertinentes a eles. compreensão daquilo que é necessário
para garantir o desenvolvimento pleno e
digno a todas as crianças e adolescentes
A CONQUISTA DE DIREITOS de nosso país, bem como assegurar-lhes
direitos civis, que foram estendidos a to-
Além de todos os aspectos antes men- dos os cidadãos brasileiros – que, em 1990,
cionados, no conjunto de transformações o Brasil promulgou o Estatuto da Criança
que se verificou no último século está o e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990).
alargamento da noção de direitos huma-
nos, amplamente conquistados por meio
de mobilizações sociais em todo o mundo
e formalizados na Declaração Universal Foi a partir da convergência dessas dife-
dos Direitos Humanos, em 1948, pela Or- rentes dimensões – de reconhecimento da
ganização das Nações Unidas (ONU). Ao especificidade dessa faixa etária, da com-
ser ratificada pelos países membros, cada preensão de suas potencialidades, da
nação assumiu compromissos de efetivar, compreensão daquilo que é necessário
no interior de suas sociedades, o cumpri- para garantir o desenvolvimento pleno e
mento desse acordo, por meio de políticas digno a todas as crianças e adolescentes
de nosso país, bem como assegurar-lhes
públicas sociais.
direitos civis, que foram estendidos a to-
No Brasil, o período extenso de dita- dos os cidadãos brasileiros – que, em
dura militar brecou o avanço da implemen- 1990, o Brasil promulgou o Estatuto da
tação dos direitos humanos, mas os movi- Criança e do Adolescente (ECA).
mentos de resistência, sociais e populares,
tiveram um papel determinante nas déca-
das de 1970 e 1980 pela retomada da de-
mocracia, alcançada em meados da década Rompendo com o modelo anterior, o
de 1980. É nesse período de redefinição po- Estatuto está sustentado na Doutrina da
lítica e de ampla participação da popula- Proteção Integral, dirigindo sua atenção a
ção que também se organizaram os grupos toda a população brasileira infanto-juve-
de defesa dos direitos da criança e do ado- nil. Sem discriminar nenhuma parcela,
lescente. Por meio deles, foi possível a am- reconhece a criança e o adolescente em
pliação do debate, incluindo discussões so- sua condição especial de pessoas em de-
bre o processo e as condições necessárias senvolvimento e lhes assegura direitos in-
ao pleno desenvolvimento de crianças e dividuais e específicos. Dividindo-se em
adolescentes. medidas protetivas e socioeducativas, con-
Era preciso que, coerentemente ao templa todas as dimensões necessárias ao
novo momento que se iniciava na socieda- pleno desenvolvimento humano, indicadas
de brasileira, também a legislação referen- nos direitos fundamentais de garantia “à
te à infância e à juventude atendesse às vida, à saúde, à alimentação, à educação,
250 Dante De Rose Jr. e colaboradores

ao esporte, ao lazer, à profissionalização, crianças e adolescentes, soma-se ao peso


à cultura, à dignidade, ao respeito, à li- do investimento mencionado o fato de que
berdade, à convivência familiar e comuni- os adultos de hoje tiveram pouca ou ne-
tária” (ECA, artigo 4). nhuma experiência de diálogo com seus
Ao nos referirmos às crianças e aos pais e professores. Educados em um tem-
adolescentes de hoje, então, reconhecemos po em que os adultos ditavam as regras
uma mudança no lugar social e nos mo- que seriam obedecidas, podemos supor
dos como as novas gerações se constituem que cresceram em ambiente mais autori-
como sujeitos. Falamos de novas gerações tário, sem repertórios que lhes sirvam de
que surgem mergulhadas em uma nova suporte para construir esse novo lugar.
concepção de direitos e que se desenvol- É desse modo que, muitas vezes, po-
vem em meio a um turbilhão de informa- demos ouvir e compreender as queixas de
ções e tecnologias que lhes facilitam o aces- professores quando se referem, saudosos,
so a outros contextos, mesmo se conside- aos “velhos tempos”, em que os professo-
rarmos crianças e adolescentes oriundos res eram mais respeitados e os alunos por-
de parcelas menos favorecidas economi- tavam-se de maneira mais adequada em
camente de nosso país. São, portanto, sala de aula. Esse apelo nostálgico remete
crianças e adolescentes familiarizados com a uma lembrança em que os papéis e as
o questionamento, que não se aquietam atribuições pareciam mais claros e as re-
diante de respostas rasas, e que deman- lações menos conflituosas. O que se esque-
dam e reivindicam seu lugar e o reconhe- ce, entretanto, são as lembranças de um
cimento de sua singularidade. tempo de desrespeito e violência contra
A obediência, em um contexto demo- crianças, as quais eram desconsideradas
crático, transforma-se em adesão às regras em sua especificidade.
pela compreensão e pela legitimidade com Na tentativa de entabular o diálogo
que elas possam ser postuladas. Em ou- e adequar-se, desse modo, aos preceitos
tras palavras, para as crianças e os adoles- democráticos de relação com as novas ge-
centes de hoje, não basta dizer que deve rações, professores, pais, mães e outros
ser de tal modo porque é assim que se es- adultos mencionam reiteradamente seus
pera. É necessário demonstrar à criança esforços de “conversar” e “dialogar” com
ou ao adolescente o sentido e a importân- seus filhos e alunos. Entretanto, quando
cia da regra, tendo em vista os objetivos procuramos compreender as característi-
que se queira alcançar. cas dessas conversas e diálogos, percebe-
Tais modificações exigem dos adul- mos que, em verdade, o que acontece são
tos responsáveis pelas crianças e pelos ado- tentativas de convencimento, por meio de
lescentes um investimento de peso, seja no monólogos nos quais os adultos apresen-
esforço necessário a aclarar todo o tempo tam os motivos pelos quais os mais novos
aquilo que se espera, indicando as razões devem (ou não devem) fazer tais coisas e,
e as perspectivas (nem sempre claras para via de regra, ameaças veladas de conse-
esses adultos), bem como uma disponibi- quências que virão caso descumpram o que
lidade para ser interpelado constantemen- está sendo ditado.
te e de se abrir ao diálogo, ouvindo e ar- Mesmo imbuídos de genuína inten-
gumentando para buscar um consenso. ção dialógica, a unilateralidade desses
Vale destacar que, mesmo considerando o (pseudo)diálogos é denunciada pelas
interesse e a dedicação dos adultos em crianças e pelos adolescentes, que se per-
incorporar esse novo papel, mais horizon- cebem negados nessas situações. Podemos
tal e simétrico (Rios, 2002) em relação a exemplificar essa situação mencionando
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 251
resultados de pesquisa recentemente con- nhecendo que o sintoma se estrutura como
cluída em uma escola pública do municí- linguagem e que, ao falar, o paciente diz
pio de São Paulo. Entrevistados sobre as mais do que ele próprio pensa saber a seu
relações que alunos do Ensino Fundamen- respeito. Mesmo sendo verdadeira essa ên-
tal II mantêm com pais e professores, al- fase na fala, cabe destacar que a psicanáli-
guns deles revelaram: se tem origem no questionamento do sin-
toma formado no corpo (Birman, 2003).
“Ah, é. Minha mãe conversa comi- Freud inaugura a psicanálise a partir
go, sim. Ela fala, fala, e eu tenho de seu interesse pela histeria, que é uma
que escutar e concordar com ela.” patologia caracterizada fundamentalmen-
te pela formação dos sintomas no corpo.
Esses descompassos evidenciam o Embora desde o início o corpo não tenha
mal-estar na dimensão relacional da edu- sido objeto de análise específica da psica-
cação (Grandino, 2004). Verificamos que a nálise, Freud contribui para reformular
distância entre as expectativas dos adultos radicalmente o sentido original do corpo
e a experiência infanto-juvenil acirra os orgânico ao postular sua teoria da sexua-
conflitos entre as gerações, muitas vezes lidade e, a partir dela, constatar a presen-
resultando em um abismo geracional ça das pulsões, que, para ele, estão no li-
(Peralva, 1996). Nesse embate, todos per- mite entre o psíquico e o somático.
dem. É flagrante o mal-estar que atravessa Ao reconhecer o corpo erógeno como
os docentes e que emerge nas queixas su- morada da libido, as pulsões tornam-se
cessivas e no sentimento de impotência que conceitos fundamentais da teoria psicana-
demonstram. Também se revela no corpo, lítica. Essa energia original desloca-se por
nas somatizações que retiram o professor diferentes pontos do corpo, investindo-os
do exercício e agravam as condições da e retirando-os do sentido estrito da satis-
educação, notadamente a pública, no país. fação orgânica. O corpo humano, para a
É preciso refletir, no entanto, sobre psicanálise, mantém relação indissociável
os efeitos que se desdobram nos alunos e entre a subjetividade e a corporeidade. Ele
buscar possibilidades de reconhecer sinais é atravessado pelo inconsciente e está ins-
que permitam encontrar, no cotidiano es- crito na linguagem, na possibilidade de
colar, modos de superação dessa impossi- simbolizar a partir das representações
bilidade de contato, de comunicação e, constituídas pela experiência.
portanto, de cuidado. Para tanto, além de Freud (1996) afirma que as pulsões
outras contribuições possíveis ao campo da deslocam-se para diferentes zonas do cor-
educação que a psicanálise tem procura- po em busca de uma satisfação que não é
do oferecer, apesar das dificuldades e da apenas orgânica, mas impregnada de de-
distância entre seus registros epistemo- sejo. Para ele, a energia sexual não guar-
lógicos (Millot, 1982; Kupfer, 2001), po- da apenas o caráter genital que a biologia
demos buscar nos excessos de agitação e confere, mas o desdobramento que se dá
nas expressões do corpo dos alunos o ques- a partir da fantasia e, portanto, da repre-
tionamento desse sintoma, assim como fez sentação da sensação de prazer que a sa-
Freud ao inaugurar a psicanálise. tisfação produz.
Assim, se ao nascer a criança é pura
O ATO ANTES DO VERBO excitação, mergulhada em um caos desor-
ganizado de energia libidinal, ao longo do
A psicanálise ficou conhecida por seu desenvolvimento as pulsões sexuais se des-
método clínico que privilegia a fala, reco- locarão para diferentes regiões do corpo,
252 Dante De Rose Jr. e colaboradores

que a cada etapa estarão mais fortemente


associadas a determinadas funções vitais Nem sempre o mal-estar e o sofrimento
das crianças e dos adolescentes podem
e que desempenharão papel importante no
ser expressos pela fala, mas a emergên-
desenvolvimento psicológico. As pulsões, cia desses conteúdos encontra nas ma-
que são sempre parciais e erráticas, ficam nifestações do corpo seu canal de ex-
concentradas em uma determinada região, pressão e apelo de continência.
que corresponde àquela cujas funções pro-
duzem mais excitação corporal. Cada uma
dessas etapas, na teoria da sexualidade
psicanalítica, corresponderia a uma fase aprender e no estabelecimento de relações
do desenvolvimento humano. com outras pessoas que lhe serão signifi-
Essa noção foi ampliada por Lacan, cativas, além de outras modalidades so-
quando ele destacou que a incidência em cialmente reconhecidas. É assim também
determinadas regiões do corpo está rela- que a civilização humana se torna possí-
cionada às trocas com o Outro (Jorge, vel, ou seja, pela condição de “negociação”
2000). Em outras palavras, sendo a pulsão das pulsões, em que, diante do princípio
a fronteira entre o somático e o psíquico, a de realidade, consegue-se postergar a re-
erogeneização do corpo está indissociavel- alização do desejo, transmutando-o em ou-
mente ligada aos modos como os outros e, tros objetos. É condição essencial da civi-
especificamente, a mãe demandam a crian- lização o recalque, ou seja, situações que
ça e a reconhecem por meio de seu corpo. cerceiam a dinâmica pulsional, permitin-
Com isso, queremos destacar que as do, entretanto, que ela se desloque, via su-
manifestações do corpo são expressões do blimação, para outros objetos.
sujeito, de algo que ele tem a dizer, mes- A sociedade atual, entretanto, a pre-
mo sem poder nomear. Considerando a texto de alcançar a pacificidade (Crochik,
criança e o adolescente como sujeitos em 2000), tem gerado restrições opressivas,
formação, conforme compreende a dou- na medida em que impõe padrões de con-
trina da proteção integral que fundamen- duta rígidos, impedindo, desse modo, que
ta o Estatuto da Criança e do Adolescente, os sujeitos consigam escapar da imediatez
reconhecemos que esses sujeitos ainda não da realidade concreta.
desenvolveram alguns recursos internos A contemporaneidade está marcada
que lhes garantiriam a possibilidade de pela hegemonia do discurso de homoge-
colocar em palavras aquilo que emerge da neização dos sujeitos e por processos de
subjetividade. Nem sempre o mal-estar e dessubjetivação (Crochik, 2000; Enriquez,
o sofrimento das crianças e dos adolescen- 2001). Para Crochik (2000), os castigos
tes podem ser expressos pela fala, mas a corporais foram substituídos por “tortura
emergência desses conteúdos encontra nas psicológica”, que se revela por trás dos im-
manifestações do corpo seu canal de ex- perativos para boa saúde, qualidade de
pressão e apelo de continência. vida, bem-estar. Os padrões de cuidado são
É o processo de deslocamento das declinados como modelos de conduta que
pulsões que possibilita ao sujeito, ao lon- devem ser seguidos rigorosamente. Nesse
go de seu desenvolvimento, mediar a de- sentido, tudo aquilo que escapa a esses mo-
manda interna de satisfação imediata em delos tende a ser considerado como grave
troca de outras formas possíveis de pra- desvio, como ameaça, e são rechaçados.
zer, que a criança passará a encontrar em A escola, com sua cultura discipli-
outros registros, como no brincar, no nadora, não percebe que “com o aumento
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 253
de regras, incrementa-se o sofrimento hu- A IMPOSSIBILIDADE DE
mano” (Crochik, 2000, p. 35). Aquilo que INTERLOCUÇÃO EM UM
as crianças sentem, mas não conseguem MUNDO FRAGMENTADO
expressar em palavras por sua condição
peculiar de desenvolvimento – e em razão A contemporaneidade está marcada
da rigidez das normas, das expectativas pela fragmentação de valores e pela incer-
depositadas nelas e por não encontrarem teza diante de uma crise ética que não
ressonância e acolhimento nos adultos –, deixa claro o que se deve ou não se deve
aumenta-lhes a angústia e, consequente- fazer (Khel, 2002). Essa incerteza está
mente, o potencial destrutivo da dor que capilarizada em todo o tecido social, irra-
suportam. diando-se nas instituições e grupos, trans-
Fazendo distinção entre a dor e o so- formando os vínculos e os modos de
frimento, Birman (2003) afirma que o mal- regulação das relações sociais, incluindo
-estar de agora se manifesta no corpo e na aqui a escola e a família (Roudinesco,
ação. Para ele, a passagem ao ato é uma 2003). É bom lembrar que também os
descarga somática com nulo potencial de adultos estão envolvidos em condições
simbolização, resultado do empobrecimen- precárias de produção de sentido coleti-
to dos registros de simbolização dos dis- vo, e a responsabilidade de cuidar dos mais
cursos, pois esses já não conseguem regu- novos muitas vezes amplia a angústia dian-
lar os impulsos. A dor está no registro da te da situação de não saber como lidar com
sensação e fica aprisionada em si mesma as questões que surgem no cotidiano e não
por não poder ser simbolizada. Para que compreender seus significados.
pudesse ser transformada em sofrimento, Referimo-nos aos adultos como ca-
seria necessária a sua elaboração, no sen- tegoria geral, pois essa dificuldade in-
tido de que fosse possível superá-la pelo tergeracional também pode ser percebida
discurso. nas falas das mães, dos pais e demais fa-
O sofrimento contempla a dimensão miliares das crianças. O sentimento de im-
do outro, a quem se endereça uma deman- potência dos adultos diante das solicita-
da de reconhecimento. As crianças sentem ções de crianças e adolescentes revela uma
dor, mas não conseguem representá-la e, fragilidade dos responsáveis pelas novas
portanto, não conseguem transformar a dor gerações. A impossibilidade de reconheci-
desse mal-estar em sofrimento. Por isso, mento e acolhimento desse mal-estar agra-
colocam em atos aquilo que não conseguem va o caráter destrutivo anunciado no ato e
organizar no discurso. O vazio que encon- cria um círculo vicioso no qual o sujeito
tram na falta de interlocução com os adul- caminha para a desestruturação.
tos responsáveis por elas aumenta suas an- Retomando o sintoma da “indiscipli-
gústias e transborda nas relações com os na escolar” que trabalhamos anteriormen-
pares e com os professores na escola. te, as manifestações de agitação motora,
A dor, quando restrita a si mesma, de agressividade, que tanto angustiam os
impede o sujeito de produzir sentido para professores, podem significar um apelo
seu mal-estar, pois sabemos que a produ- não articulado em discurso de crianças que
ção de sentido (Spink; Medrado, 2004), buscam reconhecimento e contorno para
que regula e fundamenta a experiência suas questões não formuladas. Os adultos,
humana, só se tece na relação com o ou- por sua vez, inundados de incertezas e sem
tro, pela interlocução entre os sujeitos ins- repertórios que lhes permitam dar voz
critos na cultura. àquilo que dizem as crianças e adolescen-
254 Dante De Rose Jr. e colaboradores

tes, corroboram a gravidade dos conflitos Se nessas aulas os alunos encontram


intergeracionais. espaço para a expressão de seus corpos,
seria importante saber “ouvir” o que estão
dizendo, para que essa tradução servisse
AS ATIVIDADES FÍSICAS COMO de mediação para outros domínios. Con-
ESTRATÉGIAS DE MEDIAÇÃO E cordamos, portanto, com a afirmação de
INTERLOCUÇÃO COM OS ALUNOS Crochik (2000, p. 28):

Já vimos que o cotidiano e a cultura Se o pensamento e a teoria são


escolares não favorecem espaços de me- fiadores da liberdade em um
diação para que os alunos consigam, por mundo não livre em contraposi-
meio das atividades pedagógicas, encon- ção a uma práxis imediata, irre-
fletida [...] o prazer e o potencial
trar canais de elaboração de seus conteú- de expressividade do corpo, que
dos de modo a favorecer que o verbo subs- podem denunciar o sofrimento
titua o ato. A escola, que reproduz em seu existente, não devem ser nega-
interior as lógicas pulverizadas da contem- dos, mas refletidos.
poraneidade, percebe aquilo que destoa da
norma como ameaça à integridade do pro- Quais atividades podem ser pertinen-
jeto que visa a empreender. À medida que tes, de modo que a expressão corporal, pos-
a escola não pode reconhecer isso que é sível nas aulas de educação física, pudesse
dito pelo ato, as crianças e adolescentes aclarar as demandas dos alunos? As ativi-
gritam com os corpos, demandando cui- dades previstas poderiam ser organizadas
dados e apoio. de maneira a possibilitar que a expressão
Por outro lado, o lugar privilegiado corporal desse lugar, gradualmente, à fala.
que as aulas de educação física ocupam Por meio dos jogos, por exemplo, as regras
no cotidiano escolar pode apresentar al- e a organização das equipes podem servir
ternativas para enfrentar a problemática de espaço de interlocução entre situações
das relações intergeracionais. Por garan- que acontecem fora da quadra esportiva.
tir um espaço onde os corpos ganham mais Pode não haver novidade nessa su-
liberdade de expressão, a interpretação gestão, uma vez que os esportes e as ativi-
corriqueira é de que ali os problemas não dades físicas já alcançaram legitimidade
aparecem, pois não há necessidade da or- como estratégia socioeducacional, sobre-
ganização rígida das aulas. Curioso, en- tudo em projetos voltados para adolescen-
tretanto, é o modo como a escola se re- tes em situação de vulnerabilidade. Mas o
laciona com a essa constatação. As aulas que estamos chamando a atenção aqui,
de educação física tornam-se alheias e nesse contexto, é que o potencial das ati-
estranhas ao restante do trabalho peda- vidades físicas vai além do registro de
gógico, e até os professores responsáveis conscientização sobre o papel das normas
por elas se mantêm distantes das questões e de adaptação ao coletivo.
que afligem os colegas, quase constrangi- Considerar a expressão do corpo
dos por oferecerem um oásis de prazer aos como dito não nomeado não significa
alunos. Pois parece ser justamente o reco- discipliná-lo de modo a outra vez adap-
nhecimento desse lugar diferenciado que tar-se aos comandos; tampouco deve ser-
abre possibilidades para que o que surge vir para extenuar os corpos infantis, ven-
ali seja valorizado pela escola e, podendo cendo-os pelo cansaço para garantir sos-
ser incorporado ao conjunto, favoreça a sego aos adultos. Trata-se de, inicialmen-
articulação entre os outros conteúdos cur- te, acolher a demanda infantil e construir
riculares. um espaço em que a agitação e a excita-
Esporte e atividade física na infância e na adolescência 255
ção motora possam dar lugar a um grau do para organizar (interna e externamen-
de experiência elaborativa, que sirva de te) os apelos e auxiliar os alunos a se apro-
mediação entre aquilo que a criança ain- priarem e se responsabilizarem por seus
da não consegue dizer (senão colocando desejos e reivindicações. Desse modo, as
em ato) e o restante da escola. aulas de educação física podem tornar-se
Para que seja possível funcionar como o momento de superação da dicotomia en-
espaço de mediação do mal-estar, é neces- tre o corpo (que se expressa desordenada-
sário que as atividades físicas sejam pla- mente) e a mente (que se alheia em deva-
nejadas para garantir voz aos alunos. Nes- neios no corpo aprisionado, na sala de
sa direção, os professores de educação fí- aula). O trabalho com a expressão dos cor-
sica podem reconhecer nos interesses dos pos pode favorecer a instituição do diálogo
alunos os motes para ajudá-los, por meio entre os alunos e destes com os adultos.
da organização e da disciplina, a encon- O professor de educação física, res-
trarem na resposta do corpo a via de pro- ponsável pela condução das atividades,
dução de sentido para a vida. Devem per- também passa a ter seu estatuto alterado,
mitir que os alunos assumam a centra- deixando o lugar adjacente que normal-
lidade do processo educativo e, por meio mente ocupa no grupo docente para tor-
da organização de equipes e jogos, consi- nar-se o interlocutor privilegiado entre as
gam encontrar os canais para traduzir em falas dos alunos e demais professores. Por
palavras aquilo que estão sentindo. Trata- essa via, torna-se possível, ainda, pensar
-se, portanto, de instituir a dialogicidade em projetos pedagógicos interdisciplinares
nas atividades físicas e de valorizar a dis- que incluam os esportes e as atividades fí-
ciplina como instrumento por meio do qual sicas nessa dimensão mediadora, para que
a expressão corporal dê lugar à linguagem. o corpo e a fala estejam reunidos a favor
Assim, o controle do corpo e dos desejos da melhoria das condições de ensino-
não servirá para suprimi-los ou contê-los, aprendizagem e da legitimação de crian-
mas para melhor satisfazê-los. ças e adolescentes como sujeitos de direi-
tos, conforme preconiza o ECA.

Para que seja possível funcionar como


espaço de mediação do mal-estar, é ne- REFERÊNCIAS
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planejadas para garantir voz aos alunos. BIRMAN, J. Dor e sofrimento num mundo sem medi-
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ses dos alunos os motes para ajudá-los, vel em: http://www.estadosgerais.org/mundial_rj/
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a encontrarem na resposta do corpo a via so em: 02 jun. 2007.
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Trata-se, portanto, de instituir a dialogi- Imprensa Oficial, 1996.
cidade nas atividades físicas e de valori- BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Esta-
zar a disciplina como instrumento por tuto da criança e do adolescente. Diário Oficial da
meio do qual a expressão corporal dê União, Brasília, 16 jul. 1990.
lugar à linguagem. CROCHIK, J. L. A corporificação da psique. Revista
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