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QUESTÕES PRELIMINARES

Vamos prosseguir com as preliminares do Curso de Filosofia. Tem


aqui algumas perguntas do Alessandro que (nós) vamos tentar responder.

Uma pergunta bem básica, eu acho, que é mais ou menos o seguinte:


nesses anos todos que você tem dado orientações e ensinado o pessoal, normalmente tem uma
pergunta que volta que (aparece) é o seguinte, bom, quando alguém quer começar a estudar
filosofia ele normalmente pergunta que livros eu devo ler? Pedindo uma lista de livros ou
alguma coisa assim. E normalmente a sua resposta é: “bom, olha, não se trata de ler (...) não se
trata de que livros você deve ler, mas se trata de outra coisa”. Eu gostaria que você explicasse,
então, que (se) esse curso que você está planejando, ele, justamente, serve para explicar que
“outra coisa” de que se trata (...)? Gostaria que você explicasse isso: como que você articula o
material (cultural?) que as pessoas devem ler com essa “outra coisa” de que se trata no estudo
de filosofia?

B o m . E n t r e o s t e m a s d e q u e t r a t a r a m o s p r im e ir o s f i l ó s o f o s ,
especialmente Sócrates, e aquilo que o sujeito (o aluno) pode obter numa universidade,
e x i s t e u m a s e q ü ê n c i a d e t r a n s f o r m a ç õ e s t ã o g r a n d e s q u e é m a is o u m e n o s a d i s t â n c i a q u e
e x i s t e e n t r e u m a n i m a l vi v o e u m a s a l s i c h a . A c o m p a r a ç ã o n ã o é e x a g e r a d a .

Você precisa ver que todas as questões em que Sócrates tratou,


e r a m q u e s t õ e s q u e s e a p r e s e n t a v a m a e le n a v i d a m e s m o d a p o l i s , e s p e c i a l m e n t e a s
q u e s t õ e s d e f i l o s o f i a p o l í t i c a e d a f i l o s o f i a m o r a l . A p r i m e ir a f i l o s o f i a q u e s e c o n s t i t u i é
a filosofia moral. As outras questões aparecem em função das discussões que foram
a p a r e c e n d o , q u e f o r a m b r o t a n d o , d a s d i s c u s s õ e s m o r a i s e p o l í t ic a s c o l o c a d a s p o r
Sócrates.

Agora, ao longo de 2.400 (dois mil e quatrocentos) anos vai-se


constituindo todo um corpo de disciplinas e uma série de instituições destinadas a
p r e s e r v a r o s e u e s t u d o . P o r é m , i s t o v a i m u d a n d o o p r ó p r io c o n t e ú d o d o q u e s e e s t u d a .
A t é q u e c h e g a u m p o n t o q u e v o c ê , q u a n d o va i e n t r a r p a r a a f a c u l d a d e , v o c ê t e m u m
p r o g r a m a j á a c u m p r ir .

E s s e p r o b l e m a , r e a lm e n t e , t e m p o u c o a v e r c o m F i l o s o f i a . E le t e m a
ver mais com a manutenção de certas rotinas didáticas destinadas a preparar pessoas
para que continuem a mesma atividade. Quer dizer: é uma atividade que se auto-
r e p r o d u z in d e f i n i d a m e n t e ; o s u j e i t o q u e va i e s t u d a r f i l o s o f i a g e r a l m e n t e v a i s e r
professor de filosofia.

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É m u i t o d if í c i l v o c ê c o m p r e e n d e r a F i l o s o f ia c o m o “ d is c i p l i n a
acadêmica”. Ela realmente não é isso. Não é; não só nas suas origens, mas na própria
m a n e ir a d e e n f o c a r o s p r o b l e m a s . T u d o a q u i l o q u e , e m F i l o s o f i a , n ã o é c o l o c a d o c o m
r e s p o n s a b i l i d a d e t o t a l, e n v o l v e n d o o p r ó p r i o f il ó s o f o a o p o n t o d e e x p ô - l o à m o r t e , c o m o
a c o n t e c e u n o c a s o d e S ó c r a t e s , n ã o é r e a lm e n t e F i l o s o f i a .

S e vo c ê p e r g u n t a r : q u a l é a m a t é r i a ? Q u a l é o a s s u n t o d a F il o s o f i a ?
A Filosofia não tem nenhum assunto determinado; ela pode tratar de todos e quaisquer
assuntos. O que vai diferenciá-la é um (certo) enfoque. Este enfoque pode ser resumido
com uma palavra: é a Responsabilidade. Quer dizer: é por um senso de responsabilidade
que você busca um fundamento, que você busca uma solidez maior nas respostas, que
você busca uma coerência, uma integridade, naquilo que você (...) na sua imagem do
mundo.

U m a im a g e m d o m u n d o , t o d o m u n d o t e m . O s e r h u m a n o , d e s d e o
m o m e n t o e m q u e e l e n a s c e , e l e s a b e q u e e l e e s t á n u m m u n d o . I s s o j á é u m a c o is a
e x t r a o r d i n á r i a , n ã o é ? E l e s a b e q u e a q u e l e e s p a ç o im e d i a t o n o q u a l e l e v i v e n ã o é o t o d o .
Ele sempre sabe que mais para diante tem outra coisa, e outra coisa... Então, todo mudo
s a b e d is s o . S e m n u n c a t e r e s t u d a d o .

Mais tarde quando você vai estudar Geografia, então, você vai ter
u m a id é i a d a f o r m a f í s ic a d o m u n d o . M a s , é p r e c is o v e r q u e e s t e r e t r a t o q u e vo c ê o b t é m
n a g e o g r a f i a é s ó u m d o s m u i t o s d e s e n h o s p o s s í v e i s d o u n i v e r s o , p o r a s s im d i z e r . O
d e s e n h o g e o g r á f ic o é , c o m o o p r ó p r i o n o m e d i z , g e o g r a p h i c u , é a p e n a s u m d e s e n h o
v i s í v e l : n ã o v a i t e m o s t r a r a e s t r u t u r a , o f u n c i o n a m e n t o d o m u n d o r e a l. E l e v a i m o s t r a r ,
a p e n a s , a f ig u r a f í s i c a q u e a c o i s a t e m , q u a n d o v i s t a s o b c e r t o s a s p e c t o s . M a s , d e c e r t o
modo, uma “geografia” instintiva todo mundo tem.

A F i l o s o f i a c o m e ç a m e d i t a n d o s o b r e e s t a im a g e m d o m u n d o q u e
você tem, com a finalidade de (torná-la) transformá-la numa visão responsável, numa
c o is a s é r i a .

Esta exigência, em primeiro lugar, é de ordem moral. Por quê?


Porque você, (vivendo) tendo uma imagem do mundo, é com base nela que você toma
d e c i s õ e s . É d a l i q u e v o c ê e x t r a i a s r e g r a s im p l í c i t a s o u e x p lí c i t a s q u e v o c ê v a i s e g u i r n a
sua conduta de cidadão, de pai de família, de governante etc.

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É justamente no instante em que algumas pessoas adquirem um
poder suficiente para influenciar decisivamente a vida alheia, (é) que a Filosofia se torna
n e c e s s á r i a . V o c ê v a i v e r q u e n u m a t r ib o d e í n d i o n ã o t e m F i l o s o f i a . E n a s c u l t u r a s m u i t o
pequenas, não tem Filosofia nenhuma. E durante muitos milênios não houve nenhuma
atividade comparável à Filosofia.

Justamente por quê? Nenhum indivíduo se diferenciou tanto da sua


p r ó p r i a c u l t u r a e d o s e u p r ó p r io m e io , a o p o n t o d e p o d e r c o l o c a r q u e s t õ e s s o b r e o s
valores e símbolos e princípios b á s ic o s daquela comunidade. Os princípios da
c o m u n i d a d e a p a r e c i a m p a r a o i n d i v í d u o c o m o s e f o s s e m a p r ó p r i a n a t u r e z a d a s c o is a s .
T a n t o q u e vo c ê n ã o c o n s e g u e , d u r a n t e t o d a e s s a f a s e – q u e o E r ic V o e g e l i n c h a m a ( d e a s )
civilizações cosmológicas – você não consegue distinguir direito entre sociedade e
natureza.

T o d a a c o n c e p ç ã o a s t r o ló g i c a , o u a s t r o b i o ló g i c a , ( e l a ) i m p l i c a e s s a
s u p e r p o s i ç ã o d o n a t u r a l - s o c i a l – n ã o q u e e s s a s u p e r p o s iç ã o n ã o e x is t a ; e l a e x is t e . M a s ,
u m a c o is a é e s s a s c a m a d a s d a r e a l i d a d e f i c a r e m s u p e r p o s t a s , o u t r a c o i s a é e l a s s e r e m a
mesma coisa. Quando é que o ser humano percebe que não são a mesma coisa? Bom; uma
d a s c o n d i ç õ e s p a r a i s s o é e l e p o d e r c o m p a r a r v á r i a s c u l t u r a s e v á r i a s s it u a ç õ e s
d i f e r e n t e s e v e r q u e e x i s t e u m a d i f e r e n ç a , u m a i n c o n g r u ê n c i a , e n t r e o s v á r i o s d is c u r s o s
q u e e s t ã o a li s u b e n t e n d i d o s .

P r i m e ir o , e le t e m q u e t r a n s f o r m a r a q u i l o – a s r e g r a s , p r i n c í p i o s e
s í m b o l o s – t ê m q u e s e r t r a n s f o r m a d o s n u m d is c u r s o , ( q u e r d i z e r q u e ) t ê m q u e s e e x p o r
v e r b a l m e n t e . N a h o r a e m q u e s e e x p õ e v e r b a l m e n t e é q u e vo c ê p e r c e b e a i n c o n g r u ê n c i a .
Enquanto elas estão – esses princípios, as regras costumeiras – estão embutidas no
p r ó p r i o m u n d o d a p e r c e p ç ã o , a o p o n t o d e n ã o p r e c i s a r e m s e e x p r e s s a r v e r b a lm e n t e , e l a s
n ã o p o d e m s e r e x a m i n a d a s , n ã o p o d e m s e r s u b m e t i d a s a e x a m e c r i t ic o . É à h o r a e m q u e
a s c r e n ç a s s e t r a n s f o r m a m e m d i s c u r s o q u e s u r g e m i n c o n g r u ê n c i a s e n t r e o s d is c u r s o s .

Estas incongruências podem surgir, ou da própria natureza dos


p r i n c í p i o s e m q u e s t ã o , o u d e a l g u m e r r o c o m e t i d o n a s u a t r a n s p o s i ç ã o e m d is c u r s o . E m
t o d o c a s o , is s o s u p õ e ( a l g u m a ) a p o s s i b i l i d a d e d e u m c o n f r o n t o . E é e s s e c o n f r o n t o ,
j u s t a m e n t e , o q u e S ó c r a t e s c o m e ç a a f a z e r . Q u a n d o e l e p e r g u n t a , p o r e x e m p lo , o q u e é a
j u s t iç a ? E o s u j e i t o r e s p o n d e : “ a j u s t i ç a é p e r s e g u i r o s i n i m i g o s e f a v o r e c e r o s a m i g o s ” .
Você vê que, em muitos casos, a justiça é isso mesmo. Por exemplo, quando a polícia
persegue um bandido, e conta, para isso, com a ajuda da população, faz perguntas e tal,
o que acontece? Existe um senso de solidariedade comunitário entre a polícia e os

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cidadãos. E o ladrão, o assassino, o bandido, é visto como um inimigo dessa
comunidade. Então, você não pode dizer que esta definição está completamente errada.

E l a s ó f ic a e r r a d a n a h o r a e m q u e v o c ê p e r c e b e q u e o s la d r õ e s e
assassinos também têm amigos, e que eles se juntam contra nós. E que daí você tem,
então, duas “justiças” opostas. Se existem duas justiças opostas, então essas duas
j u s t iç a s o p o s t a s j á n ã o p o d e m s e r s u p e r p o s t a s à o r d e m c ó s m i c a c o m o s e f o s s e m a m e s m a
c o is a . Q u e r d i z e r : a e x i s t ê n c i a d e u m a o r d e m c ó s m i c a é u m d a d o d e e x p e r i ê n c i a ; q u e r
dizer, a própria regularidade, a estabilidade da vida natural te dá uma idéia de que há
u m a o r d e m . S e a n a t u r e z a f o s s e t o t a l m e n t e im p r e v i s í v e l n ó s n ã o s o b r e v i v e r í a m o s n e l a
dois minutos.

Há uma série de dados de senso comum, nos quais você se apóia


para a sua vida diária, e que sempre funcionam, por exemplo, geralmente você acorda no
mesmo lugar onde você estava na véspera. Quando você acorda o cenário não estará
r a d i c a lm e n t e m o d i f ic a d o , tem uma (certa) estabilidade. Você conta com essa
estabilidade.

Você conta também com uma (certa) expectativa da duração das


c o is a s . P o r e x e m p l o , v o c ê a c h a q u e v o c ê v a i f i c a r c r i a n ç a d u r a n t e x t e m p o , e q u e d e p o i s
v o c ê v a i v i r a r u m a p e s s o a g r a n d e . . . V o c ê n ã o e s p e r a q u e v á f ic a r c r i a n ç a d u r a n t e
duzentos, trezentos, quatrocentos anos. Você sabe que os outros passaram por isso e que
v o c ê v a i p a s s a r , m a i s o u m e n o s , p e la m e s m a c o i s a . V o c ê s a b e , p o r e x e m p l o , q u e v o c ê v a i
morrer.

(De) todos esses dados de senso comum, é muito difícil você


s e p a r a r n e l e s o q u e v e m d a p e r c e p ç ã o d ir e t a d a N a t u r e z a e o q u e v e m d o s h á b i t o s
r e p a s s a d o s , d e g e r a ç ã o e m g e r a ç ã o , p e l a p r ó p r i a s o c i e d a d e . A s d u a s c o is a s s e s u p e r p õ e m
de tal modo que a visão da ordem natural passa, também, a ser vista como a ordem do
meio humano.

Porém, na hora em que você vê que existem duas justiças opostas


(...) Não há duas naturezas opostas, não há dois universos opostos. Você percebe que
existe um hiato, uma decalagem, uma separação, entre o mundo da Natureza e o mundo
h u m a n o . A í c o m e ç a m a s u r g ir p e r g u n t a s , s o b r e t u d o d e o r d e m ( a s p r i m e ir a s p e r g u n t a s
são de ordem) moral – o que é o certo, afinal de contas? O que é o certo? O que é o justo?

Na hora que você faz essas perguntas – o que é o certo? O que é o


j u s t o ? – é i m p o s s í v e l vo c ê c o l o c a r e s s a p e r g u n t a s ó n a e s f e r a d a v i d a p e s s o a l . Q u a n d o

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e l a s e c o l o c a , e l a j á t e m u m a d i m e n s ã o p o l í t i c a im e d ia t a m e n t e . P o r q u e v o c ê e s t a
(submetendo, perguntando) subentendendo que a idéia do justo que você está
procurando é uma idéia do justo que sirva para todos os homens, para todos os membros
d a s u a c o m u n i d a d e , e n ã o s ó p a r a vo c ê i n d i v i d u a l m e n t e . E n t ã o é p o r i s s o q u e a p r im e ir a
f i l o s o f i a q u e s u r g e é a f i l o s o f i a p o l í t i c a e a f i l o s o f i a m o r a l. N u m p r im e ir o m o m e n t o ,
a i n d a c o n f u n d i d a s . E e s s a s p e r g u n t a s s ã o c o lo c a d a s p o r c a u s a d e i n c o n g r u ê n c i a s e
d i f i c u ld a d e s q u e v o c ê p e r c e b e n a p r ó p r i a v i d a s o c i a l.

A única maneira de você preservar essa atividade chamada


F i l o s o f i a n o s e u s e n t i d o o r i g i n á r i o , s e r i a vo c ê s e m p r e p a r t ir d is t o . E n ã o d e u m
programa preconcebido. Mesmo que este programa vá repassar aos alunos todo o
m a t e r i a l t é c n i c o d e s e n vo l v i d o a o l o n g o d e s s e s 2 . 4 0 0 ( d o is m i l e q u a t r o c e n t o s ) a n o s , e s s e
material técnico tem uma origem, ele tem uma inspiração, ele tem uma razão de ser. E o
q u e é p r o p r i a m e n t e f i l o s ó f i c o n e l e n ã o é a n a t u r e z a d o s m e io s t é c n i c o s ; e s i m a r a z ã o
que os gerou.

P o r e x e m p l o , v o c ê v a i l á d a r u m c u r s o d e ló g i c a . D i g o : m u i t o b e m ;
m a s , p o r q u e a p a r e c e u a l ó g i c a ? P o r q u e t e m q u e e x i s t ir u m a l ó g i c a ? O s u j e i t o p o d e t e r
e s t u d a d o l ó g i c a a v i d a i n t e ir a e n u n c a t e r p e n s a d o n i s s o .

Daí (que) esse tipo de ensino, que parte de um corpo de exigências


curriculares já prontas – em vez de levantar os problemas a partir da vida real e da
própria circunstância de ensino – pode provocar, pode ter como resultado, uma
a l i e n a ç ã o t ã o g r a n d e , m a s t ã o g r a n d e , q u e v o c ê v a i v e r d e p o is a l g u n s d o s t r a b a l h o s
acadêmicos, melhores e mais bem elaborados, tão roídos por dentro por uma alienação
completa em relação à realidade e às próprias condições do seu exercício.

Por exemplo, eu vejo que existe uma imensa variedade de estudos


sobre as lógicas paradoxais. Olhe, eu não conheço nenhuma lógica paradoxal que não se
baseie na lógica de identidade. Porque senão você não poderia sequer reconhecer a
identidade da lógica paradoxal.

(Porque) o sujeito escreve aqui um livro (...) “Lógica Paradoxal”


(...) está aqui o livro. Eu digo: bom, como é que eu vou saber que este livro é o mesmo
l i v r o ? S e e u f o r e n c a r á - lo p e l a l ó g ic a p a r a d o x a l , e l e p o d e s e r , n u m a h o r a u m l i v r o ; n u m a
o u t r a , o u t r o . E e l e p o d e d i z e r o q u e e l e e s t á d i z e n d o , o u e l e p o d e d iz e r o c o n t r á r i o . S e
eu for ler baseado nisso, eu não consigo ler.

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A c o n t e c e o s e g u i n t e , ( q u e ) a í v o c ê e s t á o p e r a n d o e m d o is n í v e is :
t e m o n í v e l e x i s t e n c i a l , q u e é o n í v e l n o q u a l v o c ê e s t á le n d o o l i v r o o u a s s is t i n d o a
aula; e tem o nível da construção mental, que é o nível no qual estão colocadas as regras
e deduções da lógica paradoxal.

Esse abismo, essa d if e r e n ç a , pode se tornar um hábito tão


c o n s o l id a d o , q u e o s u j e i t o s ó c o n s e g u e r a c i o c i n a r q u a n d o e l e s e d e s l i g a d a c o n d i ç ã o
existencial. Ou seja, quando ele rompe com a própria raiz da atividade filosófica. É por
i s s o q u e u m a b o a p a r t e d o e n s i n o a c a d ê m ic o d a F i l o s o f i a – m e s m o o m e l h o r – a c a b a
sendo uma antifilosofia. Você nunca vai poder entender o que Sócrates fez. Porque você
v a i o l h a r – n o d i s c u r s o s o c r á t i c o , n o s d i á lo g o s d e S ó c r a t e s – a p e n a s a e s t r u t u r a d o
a r g u m e n t o . N ã o a c ir c u n s t â n c i a e f e t i v a d e o n d e a q u i l o s u r g e .

Por outro lado, a gente tem um outro obstáculo: você não pode
esquecer que aquelas pessoas que participam dos diálogos socráticos eram pessoas da
c l a s s e m a i s c u l t a q u e t i n h a a l i e m A t e n a s . E e s s a s p e s s o a s t i n h a m r e c e b id o t o d a a
formação de um homem público ateniense. Essa formação implicava, por exemplo, a
conquista de algumas virtudes militares, o sujeito tinha um treinamento militar; o
s u j e i t o t i n h a u m a f a m i li a r i d a d e c o m o s r i t o s d a r e l i g i ã o g r e g a ; t i n h a u m a f a m i l i a r i d a d e
com as leis da cidade; tinha uma familiaridade com todo o imaginário coletivo – através
das artes, da arquitetura, da escultura, do teatro etc. Então, eles tinham um meio
i m a g i n á r i o c o m u m . E S ó c r a t e s s e m p r e r a c i o c i n a a p a r t ir d i s s o .

O r a ; e s s e m e i o im a g i n á r i o c o m u m – h o j e – e l e , o u n ã o e x i s t e , o u –
quando existe – ele é de muito baixa qualidade, não permitindo uma elaboração
filosófica direta. O que molda o imaginário das pessoas, hoje? É a chamada
“ c o m u n ic a ç ã o d e m a s s a s ” . E , v o c ê n ã o p o d e e s q u e c e r q u e , n o m e i o d a s c o m u n i c a ç õ e s d e
massa, os objetivos com que os vários produtos são feitos, são os objetivos mais
desencontrados e freqüentemente objetivos não declarados.

Por exemplo, você está lá assistindo um filme, e você não sabe que
aquilo lá é um merchandising, que é feito para você comprar tal coisa, ou tal outra coisa.
Ou (que) pode lançar uma moda. Isso quer dizer que o fenômeno da manipulação – ou do
c o n s u m i d o r , o u d o e l e it o r e t c . – é u m a c o is a t ã o d i s s e m i n a d a h o j e e m d i a , q u e v o c ê
praticamente não pode consumir nenhum produto da cultura de massas, sem você
i n v e s t i g a r o n d e é q u e e l e s e s t ã o q u e r e n d o c h e g a r c o m is s o . S e n ã o v o c ê e s t á p e r m i t i n d o
que o seu mundo imaginário seja construído ao sabor de mil e um objetivos que você
desconhece totalmente.

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Então, (em) primeiro você não tem mais aquela unidade, aquela
c o e r ê n c i a s im b ó l i c a , d e u m a c u l t u r a ú n i c a , d e s e n v o l v i d a l o c a lm e n t e , c o m o e r a o c a s o a l i
de Atenas. Você tem uma cultura chamada “global”. E essa cultura global, ela é, não só
toda fragmentada, mas é toda desencontrada. Tanto que você vê que, por exemplo,
princípios – regras morais – absolutamente incongruentes e impossíveis de cumprir ao
mesmo tempo, são impostas a você, de modo simultâneo.

Por exemplo, se você pega a mídia americana – a mídia brasileira é


p r a t i c a m e n t e a m e s m a c o is a , m a s u m p o u c o m e n o s – e l a , p o r u m l a d o , e n s i n a v o c ê q u e
tem que haver a liberdade sexual, tem que haver casamento gay, que todo mundo tem
que comer todo mundo, que as pessoas devem fazer sexo desde os quatro anos de idade
e t c . , m a s , d e r e p e n t e , p e g a m u m s u j e i t o c o m e t e n d o a d u l t é r io e d e s t r o e m a v i d a d e le , c o m
base num moralismo atroz!

C o m o é p o s s í v e l v o c ê c u m p r ir e s s a s d u a s c o i s a s ? V o c ê v ê q u a n d o
pegaram aquele governador de Nova Iorque. Claro que o sujeito era um safado, claro
q u e e l e m e r e c e u . M a s , ( . . . ) d e s t r u ir u m a c a r r e i r a s ó p o r q u e o s u j e i t o e s t á c o m u m a p u t a
n u m h o t e l ? Q u a n d o is s o a í é o m í n i m o d e a t i v i d a d e s e x u a l q u e a c u l t u r a m e s m o e x i g e d o
sujeito?

V e j a : e s s e s p r o b l e m a s vo c ê n ã o t i n h a n a G r é c i a . E n t ã o , S ó c r a t e s n ã o
t e v e q u e l i d a r c o m e s s e s p r o b l e m a s . Q u e r d i z e r , e l e p o d i a p a r t ir d e u m m e i o im a g i n á r i o
( m a i s o u m e n o s ) c o e r e n t e e a t é c e r t o p o n t o s a u d á v e l, e e s p e c u l a r ( d i a n t e ) d e n t r o d i s s o .
O q u e e l e i a i n v e s t i g a r , a l i, e r a m c o n t r a d i ç õ e s e i n c o n g r u ê n c i a s – p o r a s s i m d i z e r –
“normais” da vida humana. Ele não ia partir de uma base tão problemática, tão
abissalmente confusa como você tem hoje.

E n t ã o , e u n ã o c r e i o q u e s e j a p o s s í v e l v o c ê e n s in a r F i l o s o f i a a p a r t i r
desta base. Por quê? Porque os problemas são muito toscos e muito primários e muito
g r o s s o s – g r o s s e ir o s d e m a i s – p a r a q u e p o s s a m s e r t r a t a d o s f i l o s o f i c a m e n t e . A l é m d i s s o ,
você tem toda a manipulação política, publicitária etc., que vai fazer do seu imaginário
uma lata de lixo.

( P i o r q u e , ) e m p r i m e ir o l u g a r , v o c ê t e r i a q u e o r g a n i z a r u m p o u c o o
imaginário das pessoas, fornecendo a elas símbolos que permitissem a elas integrar essas
v á r i a s c o i s a s e c o m p r e e n d e r i m a g i n a t i v a m e n t e q u a l é a s u a s i t u a ç ã o r e a l. ( P o r q u e )
aquilo que você não consegue imaginar, você não consegue compreender de jeito
nenhum (você não pode conceituar).

7
Aristóteles já ensinava isso, quer dizer, você não cria conceitos a
p a r t ir d e m e r o s d a d o s s e n s í v e is ; v o c ê c r i a a p a r t i r d e f i g u r a s , d e im a g e n s c o n s e r v a d a s n a
m e m ó r i a . M e m ó r i a e I m a g i n a ç ã o , p a r a A r is t ó t e l e s , s ã o a m e s m a c o i s a .

Então, primeiro existe uma (certa) compreensão imaginária: uma


c o is a q u e v o c ê n ã o s a b e r i a e x p o r c o n c e p t u a l m e n t e , à s v e z e s ( v o c ê ) n ã o s a b e n e m e x p o r
verbalmente, mas que, através de esquemas visuais, tácteis, auditivos, você mais ou
menos sabe se orientar ali.

É , p o r e x e m p l o , c o m o v o c ê l o c a l iz a r u m c a m i n h o : v o c ê v a i d a q u i
a t é C o l o n i a l H e i g t h s . V o c ê n ã o é c a p a z d e , v e r b a l m e n t e , ( v o c ê ) r e p e t ir t o d a s a s c o i s a s
que você viu no caminho e que te servem de referência: você as conserva na memória
visual; e isto é mais do que suficiente.

E n t ã o is s o a í é u m ( c e r t o ) d o m í n i o i m a g i n á r i o d a s i t u a ç ã o , p o r q u e
v o c ê é c a p a z d e r e c o r d a r , i m a g i n a r m a is o u m e n o s a p a i s a g e m e c o n c e b e r , i m a g i n a r a l i ,
o s t r a j e t o s q u e v o c ê v a i s e g u ir . S e m e s t a b a s e i m a g i n á r i a n ã o d á p a r a f a z e r n a d a .

C o m o é a m a n e i r a d e v o c ê o r g a n i z a r is s o d a í ? É v o c ê f o r n e c e r
s í m b o l o s – m a is d i f e r e n c i a d o s e m a is a b r a n g e n t e s – q u e p e r m i t a m a o i n d i v i d u o
enquadrar a experiência dele dentro de uma referência humana muito maior; mais
u n i v e r s a l , p o r a s s im d i z e r .

É d o im a g i n á r io q u e s a i – d i r e t a m e n t e – a s u a v i s ã o d o p o s s í v e l e
do impossível. Você sabe (perfeitamente) que tem muitas coisas estranhas que são
possíveis. E têm outras que você não considera impossíveis, mas (...)

A ( s u a ) m e d i d a d o p o s s í v e l e d o im p o s s í v e l, e l a d e p e n d e ( v a m o s
d i z e r ) d a r e g u l a r id a d e d a n a t u r e z a e d o s h á b i t o s s o c i a i s c o n s o l i d a d o s . A q u i l o q u e
e s c a p a d is s o a í , p a r a vo c ê n ã o e x i s t e . É m u i t o d i f í c i l v o c ê c o n c e b e r is s o .

E u v o u l h e d a r u m e x e m p lo . S e v o c ê p e g a q u a l q u e r c i d a d ã o
contemporâneo e diz: olhe, invente aqui a vida da sua família até quatro gerações para
a t r á s , ( ve j a q u e m é c a p a z ) . ( E l e ) n ã o é c a p a z d e c o n c e b e r c o m o v e r o s s í m i l a v i d a d e s e u
próprio pai. Por quê? Porque ele está tão sobrecarregado dessas imagens, desses
e s t í m u l o s q u e v ê m d o m e io a t u a l, q u e a p r ó p r i a n o ç ã o d e t e m p o , p a r a a t r á s d e l e , s o m e .

8
A noção da duração das coisas. Se você perguntar para as pessoas
quando foi a Idade Média, a maior parte não sabe. Mas não é porque não estudou a
H i s t ó r i a . É p o r q u e n ã o é c a p a z d e im a g i n a r .

Para elas, por exemplo, o que aconteceu para os pais dela, foi
muito antigamente. Se você pega qualquer garoto de 14 (quatorze) anos, o “antigamente”
dele é o tempo do pai dele. Entre o tempo do pai dele e a época do homem de
Neanderthal, parece que se passaram apenas dois dias: foi tudo igual. Com esse esquema
imaginário, tão tosco e miserável, o que a gente pode fazer? Como é que a gente vai
ensinar filosofia para essas pessoas?

A filosofia é a meditação, a análise crítica, que começa num meio


(mais ou menos) culturalmente homogêneo, onde você tem um imaginário, também mais
homogêneo e não totalmente inadequado à vida real.

Então, se você pega, por exemplo, o cidadão comum de nossos dias,


ele não sabe qual é a ordem social na qual ele vive. Para você saber a ordem social, você
precisa saber quem manda. Quem manda e através de que canais manda.

C o m o v o c ê n ã o s a b e is s o , v o c ê s u b s t i t u i a i d é i a d o P o d e r , p e l a
idéia do governo. (Então, você tem aí) uma seqüência de cargos eletivos que
representam, simbolizam, o Poder. Então, o sujeito vai sempre achar que quem tem o
“poder” é quem está no governo.

Eu digo: mas escuta, peraí (...) para colocar o sujeito no governo,


precisa de um Poder; e não foi o governo que colocou o sujeito no governo. Não é uma
c o is a ó b v i a ? O p o d e r d e c o n s t i t u i r o g o v e r n o é i n f i n i t a m e n t e m a i o r q u e o p o d e r d o
g o v e r n o ; i s s o é a c o i s a m a is ó b v i a d o m u n d o .

Então, quem tem o poder? Quem manda? As pessoas vagamente


imaginam: ah, tem grupos econômicos, etc. Eu digo: está bom, mas (...) como é que você
c o n v e r t e o d i n h e ir o d o s u j e i t o e m p o d e r p o l í t i c o ? V o c ê v e j a : u m b a n q u e i r o ( . . . ) n ã o p o d e
mandar prender ninguém. Ele tem um montão de dinheiro, mas ele não pode mandar
prender ninguém. Para isso, ele precisa ter os instrumentos de governo na mão. Como é
que ele os obtém?

Eu me lembro, por exemplo, que nos anos 60, tinha um estudo


chamado “A Elite do Poder” de um sociólogo chamado C. Wright Mills, um sujeito
e s q u e r d i s t a p r a c a r a l h o ( . . . ) e s s e e s t u d o é c h e io d e f u r o ( . . . )

9
Mas – nos anos 60 – ele teve para mim a vantagem (de) que ele me
mostrou que existe uma estrutura do poder, que não se identifica com a estrutura do
governo; aonde você tem, não somente grupos econômicos, você tem instituições
r e l i g i o s a s , v o c ê t e m g r u p o s d e a m i z a d e , g r u p o s d e j u v e n t u d e , g r u p o s d e r e f e r ê n c ia , v o c ê
tem as amantes dos políticos, que desempenham um papel no governo... Você tem uma
r e d e i m e n s a d e i n s t â n c ia s q u e d e t e r m i n a m o c u r s o d a s c o i s a s , o n d e o g o v e r n o é u m a
casquinha, você tá entendendo?

Então, aquilo é a estrutura da S o c ie d a d e . Ora, entre os


interlocutores de Sócrates, todos sabiam a estrutura do Poder em Atenas. Eles sabiam
quais eram as famílias importantes, quem mandava, (...) quem tinha possibilidade de
ocupar tal ou qual cargo. Eles sabiam tudo isso. A sociedade deles, para eles, era
t r a n s p a r e n t e . E p o r is s o m e s m o , S ó c r a t e s p o d i a a r g u m e n t a r c o m e l e s d e m a n e ir a q u e e l e s
compreendessem.

Notem, o importante não é que as pessoas tenham a informação. O


importante é que tenham a imaginação correta. (Porque) tudo o que se passa na sua
s o c i e d a d e v o c ê j a m a i s v a i s a b e r . É p r e c i s o q u e v o c ê t e n h a e s q u e m a s im a g i n á r io s q u e
permitam abarcar facilmente o que está acontecendo de fato.

É possível dizer que a sociedade, na época de Sócrates, a disparidade


entre as pessoas mais simples e as pessoas mais cultas, ela tinha (...)?

Era menor.

Era menor do que hoje, então era mais fácil entender também quem (...)?

Claro. A estrutura social de Atenas era transparente para todo


mundo. Desde o camponês até o governante. Claro que podia ter um ou outro detalhe
que as pessoas ignorassem. Mas eram detalhes. A estrutura do conjunto era
p e r f e i t a m e n t e v i s í v e l; h o j e n ã o é . A e s t r u t u r a s o c i a l , h o j e , é i n v i s í v e l .

Tem aquele famoso teste, que o Meira Penna fez com os alunos dele
na universidade de Brasília. Ele perguntou: a que classe social vocês pertencem?
Ninguém sabia. E, no entanto, são até capazes de falar de “luta de classes”.

Se a Filosofia é uma meditação que você faz a partir dos dados


g e r a i s d a s u a c u l t u r a , e n t ã o ( a p r im e ir a c o i s a q u e v o c ê t e m q u e ) a p r i m e ir a c o n d i ç ã o é

10
que você consiga enxergar essa cultura como um todo, para daí (...) não em todos os seus
detalhes, evidentemente, mas pelo menos como um (...) que tenha uma forma para você,
u m a f o r m a i d e n t i f ic á v e l p a r a v o c ê e q u e e s t a f o r m a , m a is o u m e n o s , c o i n c id a c o m a
r e a l i d a d e . S e m is s o n ã o é p o s s í v e l c o m e ç a r a i n v e s t i g a ç ã o f i l o s ó f ic a .

A g o r a , s e vo c ê c o m e ç a a d a r t é c n i c a s f i l o s ó f ic a s , e a H i s t ó r i a d a
Filosofia (...) no meio dessa confusão, todo esse material vai ser apenas mais um
c o m p o n e n t e d a c o n f u s ã o . P o r is s o ( é q u e e u ) a c h o q u e e u f u i m u i t o a f o r t u n a d o , m a s
m u i t o a f o r t u n a d o , d e c o m e ç a r o s m e u s e s t u d o s p e l o l a d o l i t e r á r i o . A p r i m e ir a c o i s a q u e
m e i n t e r e s s o u f o i a L i t e r a t u r a , e s p e c i a l m e n t e a l i t e r a t u r a b r a s i l e ir a .

E, quando chegou a um ponto em que eu tinha lido a literatura


brasileira praticamente inteira, em todos os seus elementos principais, eu vi que, a
p a r t ir d a l i , e u c o n s e g u i a i m a g i n a r a s o c ie d a d e . C o m e x c e ç ã o d e a l g u n s t ó p i c o s q u e n ã o
t i n h a m s id o t o c a d o s n e s s a l i t e r a t u r a , m a s q u e a g e n t e p o d i a i m a g i n a r c o m o o b j e t o d e
romances possíveis: temas que não tinham sido explorados pela literatura, mas cuja falta
aparecia (...) quando confrontado com a bibliografia existente, você reparava a falta
d a q u e l e s e le m e n t o s , e n t ã o v o c ê p o d i a o b t e r , d e c e r t o m o d o , u m a vi s ã o d a s o c i e d a d e
b r a s i l e i r a a p a r t ir d a s u a L i t e r a t u r a .

Eu posso dizer que eu tinha isso – aos (há uns?) vinte e um, vinte e
d o i s a n o s – e u t i n h a i s s o j á i n t e ir o n a m i n h a c a b e ç a . I s s o q u e r d i z e r q u e e u e r a c a p a z d e
pensar filosoficamente sobre aquilo sem nunca ter estudado Filosofia. E foi mais ou
m e n o s p o r e s s a é p o c a q u e e u c o m e c e i a m e i n t e r e s s a r p e l o la d o f i l o s ó f ic o .

Olavo (...) por um lado (...) você se refere que um dos inícios da
filosofia, da meditação filosófica, é você ter feito pelo menos um mapa da sua própria
ignorância, não é?

Sim.

(...) mas para você fazer o mapa da própria ignorância, você tem que ter
meios verbais de você dizer o que você sabe, o que você não sabe...

À s v e z e s v o c ê n ã o t e m e s s e s m e i o s v e r b a is .

Quer dizer, está muito próximo do processo de dar nome às coisas...

Sem sombra de dúvida. Ensinar a pessoa a falar.

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Então, nesse sentido, essa primeira abordagem do curso é quase isso:
olhe, eu vou ensinar...

Ensinar você a falar. E isso (vamos dizer) a função das Letras é


exatamente essa: ensinar as pessoas a falar. Por exemplo, você entra numa sala e diz:
o l h e , v o c ê v a i d a r o n o m e d e t o d o s o s o b j e t o s q u e t e m n e s s a s a l a . N o ve n t a p o r c e n t o d a s
p e s s o a s n ã o s ã o c a p a z e s . A g o r a , a f u n ç ã o d a L it e r a t u r a é e x a t a m e n t e e s s a : p e r m i t ir q u e o
sujeito conheça o mundo do possível. Conheça e possa expressá-lo.

Aí me veio uma coisa de Leibniz – Leibniz disse uma maravilhosa –


e l e d is s e : “ o s u j e i t o q u e t i v e s s e v i s t o m a i s f i g u r i n h a s , m e s m o d e c o is a s i n e x i s t e n t e s ,
saberia mais do que os outros”. Por quê? Porque o imaginário dele está (...) e dentro do
i m a g i n á r i o , p o d e c a b e r o r e a l . ( P o r ) i s s o e le s e m p r e s a b e , m a is o u m e n o s , o n d e c o l o c a r
a s c o is a s .

Também você tem aí o problema da memória. O que é a memória?


M e m ó r i a é v o c ê a s s o c i a r d a d o s d a R e a l i d a d e c o m d a d o s i m a g i n á r io s . E n t ã o , o im a g i n á r i o
é um mapa, dentro do qual você coloca os dados reais. Então, o primeiro passo para o
e s t u d o d a f i l o s o f i a é r e c o n s t i t u ir a s a n i d a d e d o im a g i n á r i o . A s a n i d a d e e , p o r t a n t o , a
expressividade do imaginário: ensinar as pessoas a falar.

O s c u r s o s d e L e t r a s f a z e m is s o t a m b é m ? N ã o . P o r q u ê ? P o r q u e e l e s
vão tomar as obras de Literatura, não como experiências imaginárias que você vai fazer,
mas vai tomá-las como objeto de estudo e de análise. Aí dançou. Aí saiu outra coisa.
Q u e r d i z e r , é s e m p r e e s s a c o i s a d e q u e r e r p u l a r d ir e t o d e u m i m a g i n á r i o t o s c o p a r a u m
conhecimento científico. Isso é impossível.

É p o r is s o q u e v o c ê v ê , p o r e x e m p l o , u m c a r a c o m o o d o u t o r
R ic h a r d D a w k i n s – q u e é ( u m s u j e it o q u e ) u m d o s c a r a s q u e m a i s e n t e n d e m d e B i o l o g i a
no mundo – ele acredita em deuses astronautas. Não é porque ele não estudou Biologia;
é p o r q u e a f o r m a ç ã o d o i m a g i n á r io d e l e e s t á t o s c a , e s t á e r r a d a . U m a p e s s o a c o m u m
imaginário bem formado entende que um deus astronauta é apenas uma criatura
biológica como qualquer outra. E que você atribuir a origem da vida a um deus
astronauta é você dizer que “a origem da vida é a origem da vida”. Não disse mais nada
além disso. Quer dizer: isso não é uma resposta.

O que você chama de um imaginário bem formado seria a capacidade da


pessoa identificar os planos de realidade das coisas, de saber...

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É . A s d i m e n s õ e s d i s s o . A s d im e n s õ e s v i v a s d o p o s s í v e l e d o
impossível. É o senso do possível e do impossível.

Não é aleatório, é uma coisa...

Porque daí é que (você) vai sair a segunda etapa, que é o senso da
v e r o s s im i l h a n ç a . H o j e e m d i a s a s p e s s o a s ( . . . ) p o r e x e m p l o , q u a n d o v o c ê e s t u d a
Literatura – estuda a arte do Romance – um dos elementos fundamentais ali é a
v e r o s s im i l h a n ç a . Q u e r d i z e r , a s e s t ó r i a s t ê m q u e s e r c o n t a d a s d e m a n e i r a q u e o l e i t o r
acredite.

E você percebe, você estudando, por exemplo, como é que você (...)
c o m o é q u e t a l o u q u a l a u t o r p r o d u z i u u m a i m p r e s s ã o d e v e r o s s im il h a n ç a e m v o c ê –
você recordando isto – na hora (em) que você leu (...) “não, na hora eu li, eu senti, eu
a c r e d i t e i c o m o s e e s t i ve s s e v i v e n d o ” . C o m o é q u e e l e f e z i s s o ? N ã o a t é c n i c a l i t e r á r i a
que ele usou. Mas o impacto que teve na sua imaginação. É um problema, não de
c o n h e c e r e s t u d o s d e L it e r a t u r a , m a s d e e s t u d o e m s i m e s m o : p o r q u e e u a c r e d i t e i n i s s o
na hora em que eu estava lendo?

Você veja que a verossimilhança literária, ela tem algo a ver com a
v e r o s s im i l h a n ç a n o s e n t i d o r e a l d a c o i s a . Q u a i s s ã o o s p a d r õ e s d e v e r o s s im i l h a n ç a q u e
s ã o ( . . . ) q u e v o c ê a c e i t a ? V e r o s s im i l h a n ç a s i g n i f i c a o s e g u in t e : é a p r im e ir a i m p r e s s ã o
e m q u e vo c ê a c r e d i t a , o u n ã o . V o c ê v e j a q u e a q u a s e t o t a l i d a d e d a s c o i s a s q u e
aconteceram no Século XX foram inverossímeis; as coisas importantes do Século XX...?

P o r e x e m p l o , s e v o c ê d i s s e s s e , n o a n o d e 1 9 4 4 , vo c ê d is s e s s e : “ o l h e ,
d a q u i a u m t e m p o , v a i t e r u m a b o m b a q u e ( e x p l o d e ) s o m e c o m u m a c i d a d e i n t e ir a ” .
Ninguém ia acreditar. E a bomba já estava praticamente feita. Você está entendendo?

S e , q u a n d o t e r m i n o u a p r im e ir a g u e r r a , q u e m o r r e u v i n t e m i l h õ e s
d e p e s s o a s , v o c ê d is s e s s e : “ o l h e ; d a q u i v i n t e a n o s , v a i t e r o u t r a , q u e é o d o b r o d e s s a ” .
Ninguém ia acreditar. Então...

Se vocês chegassem para os judeus na Alemanha, em 32, e


dissessem assim: “olhe, vão matar vocês todos”; nenhum acreditava. Como, de fato, não
acreditou.

13
Então, o Século XX foi feito de uma sucessão de acontecimentos
inverossímeis. Mas era inverossímil para todo mundo? Não. Era inverossímil para a
maioria das pessoas. Mas, para quem sabia o que estava acontecendo, por exemplo, o
cara que estava trabalhando num laboratório, fazendo a bomba atômica; não é possível
que ele não acreditasse em bomba atômica. O Himmler – que estava lá planejando a
matança dos judeus – não é possível que ele não acreditasse em matança de judeus. Quer
dizer: o personagem envolvido, acredita. Quem não acredita é quem está de fora, que é a
quase totalidade das pessoas. Então...

A sucessão de acontecimentos inverossímeis mostra que a


população mundial está totalmente despreparada para tudo aquilo que aconteceu.
S e m p r e e s t e v e . S e m p r e a c o n t e c e o in v e r o s s í m i l . D e p o i s q u e a q u i l o s e t o r n a c o n h e c i d o ,
depois que tem o fato consumado, então aquilo entra no chamado “mundo do real” e já
não parece inverossímil porque já aconteceu.

Por exemplo, quando você vai sondar para onde vai a sociedade, o
q u e v a i a c o n t e c e r e t a l. . . V o c ê p r e c i s a t e r u m s e n s o d o v e r o s s í m i l e d e i n v e r o s s í m i l
extremamente apurado. Você não pode seguir a verossimilhança da maioria. Porque a
maioria sempre vai errar.

P o r o u t r o l a d o , q u a n d o v o c ê r o m p e c o m o s e n s o d e v e r o s s im i l h a n ç a
da maioria, você pode entrar numa imaginação delirante. Justamente porque, vamos
dizer, você não tem o imaginário bem formado. Está compreendendo?

E n t ã o q u e r d i z e r : u m d o s p r im e i r o s p a s s o s p a r a p r e p a r a r a p e s s o a
para o estudo da Filosofia é restaurar esse senso do imaginário. Então você (...) a
r e s t a u r a ç ã o d e s s e s e n s o d o i m a g i n á r i o é t a m b é m a ( . . . ) n ã o é s ó is s o , m a s é v o c ê s a b e r
quais são as possibilidades humanas.

V o c ê n ã o t e m a m e d id a e x a t a d o s e r h u m a n o s e v o c ê n ã o c o n h e c e r –
s e p a r a v o c ê n ã o f o r v e r o s s í m i l – n a d a a lé m d a m e d i o c r i d a d e d o s e u m e i o e d a
mediocridade das pessoas que você conhece.

A maior parte das pessoas é incapaz de imaginar maldade além de


um certo ponto e, também, bondade além de um certo ponto. Se você pegar (...) a
psicologia de um Stalin ou de um Hitler, é impenetrável para as pessoas. Mas a
psicologia de um santo, também é.

A escala das misérias e...

14
Então, você estava me perguntando, uma obra importantíssima
para ler: toda a obra de Georges Bernanos.

Georges Bernanos é um dos poucos escritores do Século XX que


pega toda a gama: vai desde o mal até a santidade. Tudo. Você, através da literatura,
v o c ê c o m e ç a a c o n c e b e r c o m o é p o s s í v e l . P o r e x e m p l o , n o l i v r o “ D i á r io d e u m P á r o c o d e
Aldeia” (...) é a história de um santo. Um santo que não sabia que era santo,
e v i d e n t e m e n t e . E n t ã o vo c ê v ê c o m o i s s o é u m a p o s s i b i l i d a d e h u m a n a .

E n t ã o , à m e d i d a q u e v o c ê a u m e n t a a d im e n s ã o d o s e u i m a g i n á r i o ,
v o c ê a u m e n t a a s u a p r ó p r i a d im e n s ã o . A o p o n t o d e q u e , s e v o c ê a d q u i r i u e s s a s c o i s a s ,
você se torna pessoalmente incompreensível para uma pessoa que não tenha o mesmo
p a d r ã o d e ve r o s s i m i l h a n ç a . ( E s s e s ) n ã o p o d e m e n t e n d e r o q u e v o c ê e s t á f a z e n d o .

No meu caso, por exemplo, só basta isso, para você entender


porque tantas pessoas têm uma obsessão com a minha vida, essas duas mil pessoas que
f i c a m u s a n d o e s s e s s i t e s d a i n t e r n e t , c i s c a n d o , q u e r e n d o im a g i n a r , i n v e s t i g a r c a d a
c o is i n h a . . . C o m s e m p r e t u d o e r r a d o e v i d e n t e m e n t e . M a s o q u e é ? E u m e t o r n e i u m a
obsessão para eles.

P o r q u e i s s o a c o n t e c e ? P o r q u e o im a g i n á r i o d o s c a r a s n ã o c o n s e g u e
i r ( . . . ) t e m u m p e r s o n a g e m c h a m a d o O l a vo d e C a r v a l h o , q u e n ã o c a b e d e n t r o d o
imaginário deles. Eles têm que (...) estão fazendo o possível para imaginar...

P a r a m e i m a g i n a r , v o c ê p r e c is a r i a c o n h e c e r m u i t o s p e r s o n a g e n s d e
f i c ç ã o . E m u i t a s b i o g r a f i a s d e f i l ó s o f o s . D a í v o c ê p e g a ( e v o c ê ) v ê o q u e é O la v o d e
Carvalho. Mas você não tem isso; então você não faz. Não houve o trabalho de formação
do imaginário. O que acontece é que, confrontado com um acontecimento que você não
entende, você começa (...) você cria monstros. E você vive numa atmosfera francamente
psicótica.

Essa coisa da escala da imaginação (...) ela me lembra aquela


classificação do Frye (...) dos poderes dos personagens. Num certo sentido, o imaginário, não só
está desorganizado e caótico, mas ele também tem uma vertical...

Sim, também tem (...) as camadas da personalidade, no fim das


contas. Está entendendo?

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S e v o c ê f o r v e r a s d o z e c a m a d a s d a p e r s o n a li d a d e ; o e s t u d o d a
f i l o s o f i a s ó é p o s s í v e l a p a r t i r d a s é t im a c a m a d a . S é t i m a c a m a d a é a o n d e v o c ê é u m
cidadão. Você sabe quais são os seus deveres para com a sociedade. Você não foge deles.
E v o c ê é c a p a z d e j u l g a r o o u t r o p e lo m e s m o c r i t é r i o c o m q u e v o c ê j u l g a a s i m e s m o .

Isso eu sei que no Brasil é impossível. É quase impossível. Porque


p a r a v o c ê j u l g a r u m o u t r o c o m o v o c ê j u l g a a v o c ê m e s m o , p r e c is a s e im a g i n a r d e n t r o
d e l e . V o c ê p r e c i s a v e s t i r a c a m i s e t a d o s u j e i t o e s a b e r c o m o e l e e s t á v e n d o a s c o is a s .

Para isso você precisa se desidentificar de você mesmo, por certos


minutos, e estender ao outro o máximo de simpatia que você possa, como se você fosse
ele mesmo. Isso aí já é impossível para a quase totalidade das pessoas. Isso quer dizer
q u e , t u d o a q u i l o q u e e l a s n ã o g o s t a m , q u e e l a s a c h a m f e io , e l a s a c h a m q u e é im p o s s í v e l
elas fazerem.

C l a r o , t e m c o i s a s q u e v o c ê p e r c e b e s e r e m im p o s s í ve i s – c e r t o s
c r i m e s h e d io n d o s , p o r e x e m p l o – v o c ê n ã o c o n s e g u e e s t ic a r a s u a i m a g i n a ç ã o a o p o n t o
d e v o c ê s e i m a g i n a r c o m e t e n d o a q u e l e s c r im e s , p o r q u e v o c ê n ã o c o n s e g u e p a r t i c i p a r
d a q u e l e e s t a d o d e e s p í r i t o . M a s t e m u m a g a m a im e n s a d e c o n d u t a s h u m a n a s , m u i t o
d i f e r e n t e s d a s s u a s e a t é o p o s t a s à s s u a s , q u e s ã o p e r f e i t a m e n t e im a g i n á v e i s . M a s , n o
meio brasileiro (...)

Continuando: por experiência, eu vejo que, no Brasil, a faixa de


v e r o s s im i l h a n ç a d a s p e s s o a s é m u i t o p e q u e n a . E , c o m o a f a i x a d e v e r o s s im i l h a n ç a é
p e q u e n a , e la s s ó c o n s e g u e m s a ir d e s s a f a i x a q u a n d o v ã o p r o d e l í r i o . P a r a a f a n t a s i a
mórbida mesmo; aí conseguem.

Se você não tem a medida das possibilidades humanas, tanto no


s e n t i d o h o r i z o n t a l, c o m o v e r t i c a l ( . . . ) n ã o t e m c o m o v o c ê n e m c o m e ç a r a d i s c u t i r
p r o b l e m a s f i l o s ó f i c o s . V o c ê v a i c o n s t r u ir e s q u e m a s r a c i o c in a n t e s e m c im a d o N a d a .

Essa coisa das cinco classes dos heróis da ficção de que falam o
A r i s t ó t e l e s e o F r y e . . . Q u e r d i z e r : p r i m e ir o , o p e r s o n a g e m é u m d e u s ; n o s e g u n d o , é
c o m o u m ( s e r ) im o r t a l , s e m i d e u s ; n o t e r c e i r o , e l e é u m h e r ó i; n o q u a r t o , e l e é u m a
pessoa comum; e, no quinto, ele é um incapaz.

Eu vejo, no Brasil, o número de incapazes que eu conheço é muito


grande. (De) pessoas que são socialmente indefesas. Que (sempre) estão dependendo de

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uma proteção; é muito grande. Claro, às vezes pode acontecer de uma pessoa estar numa
situação dessas por uma coincidência. Mas, em geral, é por incapacidade mesmo.

C o m o é q u e n ó s p o d e m o s n i v e l á - l o s à s d is c u s s õ e s d e u m c i d a d ã o
ateniense? Aquelas pessoas todas já tinham estado na guerra, eram pessoas que tinham
p o s i ç ã o n a p o l í t i c a , t i n h a m r e s p o n s a b i l i d a d e s ( . . . ) e n t ã o a í é a q u e le n e g ó c i o d o s p o u d a i o s :
tem que ser um homem maduro.

E n t ã o , n ó s t e m o s q u e : p r im e ir o , f a v o r e c e r o a m a d u r e c im e n t o d a s
pessoas, a t r a vé s do trabalho do imaginário. Segundo, dar-lhes os instrumentos
e x p r e s s i v o s p a r a q u e e l a s p o s s a m e x p r e s s a r a s u a e x p e r i ê n c i a r e a l, e n ã o a p e n a s o s
esquemas verbais já consolidados.

Porque, quando você não sabe dizer o que você está vendo, está
sentido, está experimentando, você diz outra coisa. Que, na sua cabeça, se parece com
aquilo. Mas, que na realidade, não é aquilo. Por isso que eu digo: nós, no primeiro ano,
nós temos que dar uma (...) não é uma formação literária, não se trata de estudar Letras,
q u e é o u t r a p e r v e r s ã o t a m b é m . M a s , d e e n s i n a r o s u j e it o ( . . . ) a a b r i r o i m a g i n á r io a
p a r t ir d a s i t u a ç ã o r e a l d e l e .

Olhe, tem duas coisas que eu me lembro, que quando eu era muito
jovem, eu li, assim, de passagem e deixaram um impacto definitivo para mim.

O p r im e ir o e r a u m l i v r o d e H i s t ó r i a d o s E s t a d o s U n i d o s – u m l i v r o
usado no ginásio (aqui), no secundário – em que o professor montava a situação da
H i s t ó r i a a m e r i c a n a e d a í f a z i a o a l u n o s e c o l o c a r n a p o s iç ã o d o s p e r s o n a g e n s e d iz i a : o
que você faria nessa situação? E eu vi que, uma pergunta como aquela, jamais se
c o l o c a r ia n u m a e s c o l a b r a s i l e i r a . Q u e r d i z e r : o s p e r s o n a g e n s d a H is t ó r i a m e s m o , q u e
eram mostrados como personagens reais (...) mas como estereótipos apenas. E que você
n u n c a i a e n t e n d e r a q u i lo . É i m p o s s í v e l e n t e n d e r .

E a segunda foi quando eu li um livro do Ortega y Gasset. O livro


c h a m a v a , e x a t a m e n t e , “ O Q u e é F i l o s o f i a ? ” – ¿ Q u e é s F i l o s o f i a ? – e e l e , a d m ir a v e l m e n t e ,
começava o livro investigando a situação real do momento. Diz: isso aqui é uma aula e
v o c ê s s ã o e s t u d a n t e s . O q u e v o c ê s v i e r a m f a z e r a q u i? E d a í c o m e ç a v a a i n v e s t i g a r a
s i t u a ç ã o e x is t e n c i a l d e s e r u m e s t u d a n t e , d e s e r u m e s t u d a n t e n a q u e le l u g a r .

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Olhe; essas duas coisas são apelos à percepção da realidade. E se
existe uma coisa que as escolas normalmente não fazem é chamar a pessoa à percepção
da realidade.

Aqui ainda faz um pouquinho, muito menos do que antigamente.


Porque a escola piorou muito aqui. Mas, no Brasil, nunca vi jamais.

( I s s o q u e r d i z e r q u e ) d á u m a im p r e s s ã o a s s i m : s ó é m a t é r ia
c u r r i c u l a r o q u e n ã o t e m n a d a a ve r c o m a e x i s t ê n c i a r e a l . É p r o i b i d o . A e x i s t ê n c i a r e a l
não pode entrar na escola brasileira, é proibido. Porque dá a impressão de que você está
m a t a n d o a u la .

I s s o q u e r d iz e r q u e o m u n d o c u r r i c u l a r é u m m u n d o à p a r t e . E v o c ê
t e m q u e s e s u b m e t e r à q u e l a s r e g r a s . E u d i g o : m a s i s s o a í é d e s t r u ir a in t e l i g ê n c ia , i s s o é
matar as pessoas. Eu não vou fazer a mesma coisa no meu curso.

Por isso mesmo, durante um bom tempo, eu calculo pelo menos um


ano, a ocupação vai ser ler o maior número de obras de ficção possível e procurar se
i d e n t i f ic a r c o m a s p e r s o n a g e n s . P a r a v o c ê p o d e r t e r u m a v i s ã o m a is a m p l a d a s
possibilidades humanas. Sem isso não dá pra fazer.

D e p o is , n ó s p o d e m o s p a s s a r p a r a u m a s e g u n d a e t a p a – q u e é u m
e x a m e d o m e i o s o c i a l, c u l t u r a l , r e a l , o n d e a s p e s s o a s e s t ã o . E , a p a r t i r d a l i , a s q u e s t õ e s
b á s ic a s d a f i l o s o f i a s u r g i r ã o p o r s i m e s m a s . D e u p r a e n t e n d e r ? T e m m a is a l g u m a o u t r a
pergunta?

Acho que nós podemos parar por aqui, porque a turma...

É, acho que a gente está...

O r e s t o , a g e n t e f a z n o u t r o d i a , s e p r e c is a r . E u q u e r i a f a z e r u m a s
c i n c o o u s e is g r a v a ç õ e s i n t r o d u t ó r i a s , q u e t o d o m u n d o t e m q u e o u v i r a n t e s d e c o m e ç a r o
c u r s o , e s t á e n t e n d e n d o ? E n t ã o . . . O u t r o d i a n ó s t e r e m o s m a is u m a . . .

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