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A SOCIOLOGIA DUAL

DE ROBERTO DA MATTA:
Descobrindo nossos
mistérios ou sistematizando
nossos auto-enganos?

Jessé Souza

Apesar das observações críticas que serão O dilema brasileiro para Roberto Da
desenvolvidas no decorrer deste artigo, quero, Matta
antes de tudo, ressaltar a relevância da obra de
Roberto Da Matta para a ciência social brasileira. No caso de Da Matta, o fio condutor mesmo
Obra que se destaca pelo potencial inovador e pela de sua reflexão já apontava para o desejo de
centralidade da reflexão filosófica, seja na indaga- surpreender a realidade brasileira por detrás de
ção acerca dos pressupostos da teorização científi- suas auto-imagens consagradas. Assim, em Carna-
ca, seja no questionamento radical do que constitui vais, malandros e heróis (Da Matta, 1981), seu livro
a singularidade de uma formação social. mais importante, essa tentativa é empreendida a
Ao tentar descobrir “o que faz o brasil, Bra- partir do estudo do cotidiano brasileiro, no estudo
sil”, Da Matta propõe o questionamento de temas dos seus rituais e modelos de ação portanto, que é
tais como o que é indivíduo?, o que é democracia?, onde podemos reencontrar nossos malandros e
o que são relações sociais?, como se compara nossos heróis.
sociedades? e, acima de tudo, como se percebe Desde o início, o esforço comparativo já tem o
aquelas diferenças históricas e culturais que confe- seu “outro” privilegiado: os Estados Unidos. Interes-
rem uma especificidade toda própria a cada socie- sa a Da Matta demonstrar, numa oposição que irá
dade singular? Essas questões são essenciais posto assumir inúmeras variações, por que nunca dize-
que remetem a uma reflexão de pressupostos, mos “iguais mas separados” como lá, mas, ao con-
permitindo a discussão daquelas indagações pri- trário, dizemos sempre “diferentes mas juntos” (Da
mordiais que, numa concepção de ciência “prag- Matta, 1981, p. 16). A comparação, nesse sentido,
mática” e empiricista, já estão respondidas a priori. privilegia sempre o contraste, a contradição, e não o
E sabemos que é precisamente a expansão do familiar, o semelhante, o co-extensivo.
espaço da reflexividade que caracteriza a atitude O método é o estrutural, enfatizando as possi-
científica e é a discussão dessas questões primor- bilidades de combinação alternativas e as ênfases
diais que permitem o pensamento crítico e inova- distintas de elementos dominantes e subordinados
dor. de cada sistema social analisado. Assim, as catego-

RBCS Vol. 16 no 45 fevereiro/2001


o
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rias mais gerais do raciocínio do autor, as de institucionalista — e uma “sociologia da pessoa” —


indivíduo e pessoa, articulam-se de forma peculiar a vertente culturalista. Ao unir e relacionar as duas
em cada sociedade. O indivíduo, no Brasil, não perspectivas dentro de um mesmo quadro de
seria uma categoria universal e englobadora como referência teórico, Da Matta acredita ter percebido
nos Estados Unidos, nem apenas o renunciante, a “gramática profunda” do universo social brasilei-
como na Índia. O indivíduo entre nós seria o joão- ro. Veremos mais adiante que o acesso a essa
ninguém das massas, que não participa de nenhum gramática exigiria a superação do próprio dualis-
poderoso sistema de relações pessoais. mo. Permaneçamos, no entanto, ainda um instan-
O indivíduo, entre nós, se definiria pela te, dentro do próprio horizonte aberto pelo dualis-
oposição com o seu contrário: a pessoa. Esta, por mo damattiano. Em que consiste esse dualismo e
sua vez, se definiria como um ser basicamente como Da Matta o constrói?
relacional, uma noção apenas compreensível, por- Vimos que seus termos mais abrangentes são
tanto, por referência a um sistema social onde as as noções de indivíduo e pessoa. Esse é o dado
relações de compadrio, de família, de amizade e de fundamental e primário, na medida em que todos
troca de interesses e favores constituem um ele- os outros são decorrência desse antagonismo fun-
mento fundamental. No indivíduo teríamos, ao damental. Assim, outras dualidades importantes
contrário, uma contigüidade estrutural com o mun- para Da Matta, como aquela entre a casa e a rua,
do das leis impessoais que submetem e subordi- por exemplo, que deu o título a um dos seus livros,
nam. Desse modo, teríamos no Brasil, ao contrário são decorrentes da oposição entre indivíduo e
tanto dos Estados Unidos quanto da Índia, um pessoa na medida em que indicam “espaços”
sistema “dual” e não um sistema unitário. A ques- privilegiados onde cada uma dessas modalidades
tão essencial para Da Matta, portanto, já está posta: de relações sociais se realizariam.
trata-se, no caso brasileiro, de perceber a “ domi- À oposição entre a casa e a rua corresponderi-
nância relativa de ideologias e idiomas através dos am, por sua vez, “papéis sociais, ideologias e
quais certas sociedades representam a si próprias” valores, ações e objetos específicos, alguns inventa-
(Da Matta, 1981, p. 23). Nesse sentido, nossa dos especialmente para aquela região no mundo
especificidade seria nossa dualidade constitutiva. social” (Da Matta, 1981, pp. 74-75). Nesse sentido,
Na verdade, Da Matta (1991, pp. 24-29) procu- os nossos rituais são analisados e compreendidos a
ra relacionar o que ele considera como sendo duas partir dessa oposição casa/rua e se distinguem entre
leituras da realidade brasileira que seriam vistas si na forma e modo específico de lidar com esse
comumente como antagônicas: uma “instituciona- antagonismo. Assim, a procissão religiosa teria sua
lista”, a qual destacaria os macroprocessos políticos peculiaridade no fato de permitir, durante um breve
e econômicos, segundo a lógica da economia políti- instante, a supressão da dicotomia casa/rua. O
ca clássica e implicando, por isso mesmo, alguma santo, para o qual a procissão é realizada, “eleva-se”
forma de diagnóstico pessimista do Brasil; e outra acima da dicotomia, suspendendo suas lealdades e
vertente, a qual se poderia chamar de “culturalista”, sentimentos respectivos, criando, por alguns instan-
cuja ênfase seria concedida ao elemento cotidiano tes, uma lealdade específica, sintetizadora, em rela-
dos usos e costumes, da nossa tradição familística ção a um novo campo de ação: o do sagrado.
ou “da casa”, na linguagem de Da Matta. Sua Na parada militar, por oposição, o mundo
própria perspectiva seria, portanto, superadora e das casas não é irmanando na devoção ao santo
sintetizadora dessas perspectivas parciais, unindo- comum, mas é de certa forma “invadido” pelo
as e relacionando-as como duas faces de uma Estado, que “recruta” e hierarquiza seus membros
mesma moeda, transformando essas visões unilate- sob a forma de participantes humildes (os solda-
rais num “dualismo” articulado. dos), diferenciados (as autoridades) ou meros es-
Um olhar atento descobre que a cada uma pectadores (o povo indiferenciado e tornado mas-
dessas perspectivas correspondem, respectiva- sa). A singularidade do Carnaval, por sua vez,
mente, uma “sociologia do indivíduo” — a vertente residiria no fato de a rua tornar-se casa por alguns
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dias. Uma casa que celebra em praça pública o mo do “dilema brasileiro”. 1 No entanto, uma aná-
mundo da “cintura para baixo”, o qual em dias lise atenta de sua obra permite coletar uma série de
normais é escondido dentro de casa, uma casa que indícios interessantes para nossos propósitos. As
torna seguro ( sic) o ambiente desumano de com- palavras “esqueleto” e “núcleo” que Da Matta usa
petição hostil que caracterizaria a rua. Ao mesmo constantemente para se referir ao componente
tempo, a rua transformada em casa subverte tanto hierárquico da formação brasileira são sintomáti-
o código (hierárquico) da rua quanto o da própria cas. Afinal “esqueleto” ou “núcleo” referem-se a
casa. Daí o Carnaval ser uma perfeita inversão da alguma coisa escondida, a qual não seria imediata-
realidade brasileira: é uma festa sem dono num mente visível como a pele ou a superfície que os
país que tudo hierarquiza (Da Matta, 1981, p. 116). recobre, mas que nem por isso deixa de ser mais
No entanto, é apenas no ensaio “Você sabe importante e mais substancial que o componente
com quem está falando?” que encontramos uma envolvente.
condensação de todos os aspectos desenvolvidos E é precisamente a mesma lógica que uma
na interpretação “damattiana” da realidade brasilei- análise sistemática do ritual do “você sabe...” nos
ra. O ritual autoritário do “você sabe...”, ao contrá- mostra. Senão, vejamos. O ritual envolve sempre
rio dos anteriores, é um ritual cotidiano, do cotidi- uma oposição entre um dado individualizante ao
ano hostil da rua, bem entendido, e no qual mesmo tempo mais visível e mais superficial, posto
qualquer brasileiro, mesmo aquele que não brinca que o elemento universalizante e igualitário seria o
Carnaval, não assiste a paradas militares ou acom- único discurso oficial e legítimo, e um componente
panha procissões religiosas, se reconhece facil- pessoal e hierárquico mais profundo e menos
mente. visível (posto que não precisaria ser falado), mas
Para Da Matta, o “você sabe...” põe a nu, que é o componente mais decisivo e eficaz do
revela à luz do dia um traço que o brasileiro não drama social em questão na medida em que resolve
gosta e prefere esconder. Afinal, o que viria à tona o conflito e restaura a paz hierárquica ameaçada.
aqui não seria mais a nossa celebrada e carnavali- É este último elemento, portanto, que Da
zada cordialidade, mas, ao contrário, o verdadeiro Matta chama de “esqueleto” ou “núcleo” hierárqui-
e profundo “esqueleto hierarquizante de nossa co, o elemento que atualizaria a gramática social
sociedade” (Da Matta, 1981, p. 142). Esse ponto é mais profunda de uma sociedade como a brasilei-
absolutamente fundamental tanto para o argumen- ra. É a sua desagradável aparição no cotidiano que
to do autor quanto para a crítica que iremos fazer restaura a paz hierárquica perturbada por quem
mais adiante. É que, ao contrário da análise dos levou a sério o princípio igualitário e teve de ser
outros rituais extracotidianos, os quais permitem lembrado “do seu lugar”. O ritual é “desagradável”
um tratamento que enseja uma assepsia classifica- precisamente porque verbaliza o que não deveria
tória (entre casa, rua e outro mundo ou Estado, ser dito para ser eficaz, quebrando assim o pacto
povo e Igreja) que parece algo arbitrária no seu silencioso e cordial de uma sociedade em que cada
esforço de fazer corresponder práticas a espaços um efetivamente deve conhecer o “seu lugar”.
sociais delimitados, o “você sabe...” condensa e
unifica todos esses aspectos e lança a questão [...] no drama do “você sabe com quem está
central da articulação e hierarquização específica falando?” somos punidos pela tentativa de fazer
de todos esses elementos. Afinal, como se combi- cumprir a lei ou pela nossa idéia de que vivemos
nam indivíduo e pessoa ou casa e rua? Qual é o num universo realmente igualitário. Pois a identi-
elemento dominante e qual o subordinado? dade que surge do conflito é que vai permitir
Da Matta não responde a essa questão de hierarquizar.[...] A moral da história aqui é a
forma clara. Ele muitas vezes prefere enfatizar o seguinte: confie sempre em pessoas e em relações
componente aberto dessa competição entre princí- (como nos contos de fadas), nunca em regras
pios de organização social, o que de resto, na sua gerais ou em leis universais. Sendo assim, teme-
visão, permitiria caracterizá-la como o âmago mes- mos (e com justa razão) esbarrar a todo momento
o
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com o filho do rei, senão com o próprio rei. (Da a lei geral ao caso específico, mas a força relativa de
Matta, 1981, p. 167) nossas relações pessoais. Em outras palavras, ou
melhor, nas palavras do próprio autor: “‘o você
Assim, e esse ponto é absolutamente funda- sabe...’ permite estabelecer a pessoa onde antes só
mental tanto para a compreensão do argumento do havia o indivíduo” (Da Matta, 1981, p. 170).
autor quanto para a crítica que será feita adiante, é o Esse tipo de solução é extremamente proble-
elemento pessoal que é visto como dominante em mático sob o ponto de vista da fundamentação
relação ao elemento abstrato, legal, que se refere ao teórica do dualismo proposto por Da Matta. Afinal,
mundo dos indivíduos indiferenciados. Mas como levada às suas últimas conseqüências, essa solução
eles se articulam? Até onde a validade parcial do implica afirmar que os brasileiros se comportam de
elemento impessoal tem alguma eficácia? Como se um modo inverso aos estímulos das instituições so-
dá a combinação específica entre os dois princípios? ciais fundamentais, como Estado e mercado. Esse
nó conceitual não é de fácil solução já que Da Matta
É como se tivéssemos duas bases através das quais vincula habilmente a auto-imagem folclórica do
pensássemos o nosso sistema. No caso das leis brasileiro com análises concretas de rituais facilmen-
gerais e da repressão, seguimos sempre o código te observáveis na realidade cotidiana. A evidência e
burocrático ou a vertente impessoal e universali- eficácia desse tipo de discurso é enorme. Nesse
zante, igualitária, do sistema. Mas no caso das sentido, peço a paciência do leitor para que possa-
situações concretas, daquelas que a “vida” nos mos nos concentrar nos meandros de uma análise
apresenta, seguimos sempre o código das relações dos pressupostos desse tipo de discurso teórico.
e da moralidade pessoal, tomando a vertente do
“jeitinho”, da “malandragem” e da solidariedade
como eixo de ação. Na primeira escolha, nossa
Gramática profunda ou dualismo
unidade é o indivíduo; na segunda, a pessoa. A
superficial?
pessoa merece solidariedade e um tratamento O dualismo engendrado pelas noções de
diferencial. O indivíduo, ao contrário, é o sujeito indivíduo e pessoa como a base do que Da Matta
da lei, foco abstrato para quem as regras e a chama de “dilema brasileiro” 2 foi desenvolvido ao
repressão foram feitos. (Da Matta, 1981, p. 169) longo das décadas de 80 e 90 seja em trabalhos de
divulgação (Da Matta, 1999a), seja em livros como
De acordo com essa ótica, a lei geral e abstrata A casa e a rua, onde a dimensão espacial da dua-
teria uma validade de primeira instância. Afinal, ela lidade ganha proeminência e é analisada em maior
pressupõe uma igualdade de “partida” que bem detalhe. Eu gostaria agora de continuar a discussão
pode ser confirmada como verdadeira no ponto de em dois passos: primeiro, desenvolvendo uma
“chegada”, ou seja, nos casos concretos do dia-a-dia apreciação crítica da perspectiva do autor e, em
e do cotidiano de todos nós. No entanto, em caso seguida, procurando reconstruir uma resposta al-
de conflito, o caso concreto obedeceria a outros im- ternativa às questões deixadas em aberto pelo
perativos que não àquele da lei geral. Precisamente esquema damattiano.
aqui entraria o componente das relações pessoais, Inicialmente vou me deter nas próprias idéias
do “capital” que se acumula em termos de contato e de sociedade e teoria social, as quais, segundo
influência. Seria como se as relações pessoais entre Da Matta, são subjacentes à sua análise. No livro
nós desempenhassem o papel do Judiciário nos A casa e a rua encontramos a seguinte definição:
países individualistas e igualitários. Como cabe ao
Poder Judiciário dirimir conflitos a partir dos casos A idéia de sociedade que norteia esse livro, por-
concretos, teríamos, no nosso caso específico, uma tanto, não é aquela da sociedade como um con-
resolução “informal”, sem burocracia e rápida: atra- junto de indivíduos, com tudo o mais sendo mero
vés da “carteirada”, do jeitinho, da ameaça velada e epifenômeno ou decorrência secundária de seus
do “você sabe...”. No caso concreto, não aplicamos interesses, ações e motivações. Ao contrário, so-
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ciedade aqui é uma entidade entendida de modo esses dois mundos? Se Da Matta pretende explicar
globalizado. Uma realidade que forma um siste- as normas e regras sociais últimas que esclarecem
ma. Um sistema que tem suas próprias leis e nossa singularidade, então a forma de articulação
normas. Normas que, se obviamente precisam dos entre esses dois princípios tem de ser explicada. A
indivíduos para poderem se concretizar, ditam a dualidade enquanto tal é uma simples aporia. Sem
esses indivíduos como devem ser atualizadas e estar determinada nas suas regras, ela pode ser
materializadas. (Da Matta, 1991, p. 15) usada ad hoc para o esclarecimento de um sem-
número de questões, ressaltando-se a importância
O texto acima nos interessa de perto porque ora de um, ora de outro princípio. Mas a questão
nele Da Matta assume uma posição clara contra parece-me ser: o que faz com que precisamente
uma ciência social subjetivista que pretende redu- nesses casos tal ou qual princípio seja mais ou
zir a complexidade social à referência às intenções menos eficiente? Essa questão nunca é respondida
individuais dos agentes. É uma crítica correta e por Da Matta. O último horizonte explicativo é
bem-feita. Segundo sua concepção de sociedade, sempre uma dualidade indeterminada que varia ao
temos de buscar no próprio sistema social as leis e sabor das situações concretas examinadas.
normas que explicam o comportamento dos indi- A idéia de uma gramática social profunda só
víduos que o compõem. Deve-se procurar desco- tem sentido se for possível determinar a hierarquia
brir, portanto, a “gramática social profunda” da valorativa que preside a institucionalização de estí-
sociedade em questão, a qual é sempre, em grande mulos seletivos para a conduta dos indivíduos que a
parte, insconsciente ou inarticulada na consciência compõem. Essa seletividade, por sua vez, exige a
dos indivíduos que a compõem, para que possa- consideração da variável do poder relativo de
mos interpretar o comportamento destes e a lógica grupos e classes envolvidos na luta social por
da própria dinâmica social. hegemonia ideológica e material. Desse modo, para
Vimos que, segundo Da Matta, essa gramáti- clássicos da Sociologia que lidaram com a questão
ca social profunda, no caso brasileiro, apresenta da institucionalização diferencial de valores e con-
uma peculiaridade: ela é dual (ao contrário da dos cepções de mundo como Max Weber e Norbert
Estados Unidos, por exemplo, que seria unitária) e Elias, a questão de se determinar a hierarquia de
composta por dois princípios antagônicos, o indi- valores que logra comandar uma sociedade especí-
viduo das relações impessoais e a pessoa das fica exige a articulação da relação entre valores e
relações de compadrio e de amizade. Vejamos com estratificação social. Afinal, é a imbricação entre
cuidado os pressupostos desses dois tipos de domínio ideológico e acesso diferencial a bens
relações sociais. Sabemos que em sociedades mo- ideais ou materiais escassos que cumpre esclarecer.
dernas os dois poderes impessoais mais importan- Nesse sentido, para os dois autores citados
tes são o Estado e o mercado capitalistas. Essas são acima, a vinculação entre concepções de mundo
também as instituições que Da Matta tem em mente (no sentido de conjuntos articulados de normas e
quando se refere ao mundo competitivo, hostil, valores) e estratos sociais que servem de suportes a
das regras gerais e impessoais associadas à compe- essas concepções de mundo é fundamental. Aqui
tição capitalista e ao aparelho repressivo do Esta- não se trata da causalidade materialista marxista, a
do. Em oposição a este mundo teríamos o mundo qual reintroduz por outros meios a noção de
da casa, onde as relações se regem pela afetividade subjetividade individual transformada agora em
e todos são supercidadãos. Esse seria o lugar onde sujeito coletivo, 3 com conseqüências deletérias
os brasileiros se sentiriam bem e onde poderiam para a análise social. A noção de suporte social de
desenvolver sua decantada cordialidade. valores e normas refere-se, ao contrário, a proces-
Existe, no entanto, um problema básico nesse sos inintencionais sem sujeito através dos quais
quadro à primeira vista bem arrumado que precisa- grupos e classes identificam-se com valores e são
ria ser explicado: qual é o conjunto de regras ou ao mesmo tempo perpassados e dirigidos por eles
normas que explica e constitui a articulação entre na dinâmica social. 4
o
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Nós não encontramos classes e grupos soci- existência desses espaços tão antagônicos. Todas
ais na obra de Roberto Da Matta. O tema da as vezes que enfrenta essa questão, Da Matta faz
estratificação social e a relação desta com valores referência à obra de Max Weber e às discussões
desempenha um papel, na melhor das hipóteses, desse autor acerca do tema das éticas sociais
marginal no seu esquema explicativo. Na reflexão dúplices ou múltiplas típicas de sociedades tradi-
de Da Matta encontramos apenas indivíduos e cionais ou semitradicionais (Da Matta, 1991, pp. 50,
“espaços” sociais. Minha hipótese neste texto é que 52, 69 e 98; ou ainda 1981, p. 178). Isso é sem
isso impede que ele tenha acesso à gramática dúvida correto. Faz parte da interpretação weberi-
social da sociedade brasileira como definida por ana do desenvolvimento ocidental demonstrar
ele próprio acima. É que, desvinculada de uma como havia a necessidade de se explicar o apare-
teoria da estratificação social que explique como e cimento de uma ética unitária dentro do contexto
por que esses valores e não outros lograram da própria concepção de mundo tradicional e
institucionalizar-se, toda a temática da relação com religiosamente motivada. A rápida expansão, no
valores torna-se externa e indeterminada. Valores alvorecer da modernidade, da ética ascética protes-
passam a ser concebidos como alguma coisa que tante, com sua concentração em objetivos intra-
existe independente de sua institucionalização, mundanos e singularizados e não mais dúplices ou
agindo de forma misteriosa sobre indivíduos e contraditórios, ajuda, sem dúvida, a explicar o
espaços sociais. Vejamos alguns exemplos. enorme impulso que essa idéia representou para o
progresso material da cultura ocidental.
Quando, então, digo que “casa” e “rua” são cate- No entanto, como a bela metáfora do manto
gorias sociológicas para os brasileiros, estou afir- do santo que se transforma em gaiola de ferro,
mando que, entre nós, estas palavras não desig- apresentada ao final de A ética protestante e o
nam simplesmente espaços geográficos ou coisas espírito do capitalismo, nos lembra, nós, habitantes
físicas mensuráveis, mas acima de tudo entidades do mundo impessoal moderno, podemos abdicar
morais, esferas de ação social, províncias éticas desse incentivo subjetivo. Os homens religiosos do
dotadas de positividade, domínios culturais insti- alvorecer da modernidade tinham a possibilidade
tucionalizados e, por causa disso, capazes de de escolher se seguiriam uma ética múltipla tradici-
despertar emoções, reações, leis, orações, músi- onal ou se optariam pela ética única da nova
cas, e imagens esteticamente emolduradas e inspi- religião. O fato de nós, modernos, não termos mais
radas. (Da Matta, 1991, p. 17) essa opção significa, para Weber, que as instituições
impessoais do capitalismo moderno, principalmen-
Para o autor, portanto, casa e rua não são te o mercado competitivo e o Estado burocrático,
apenas “espaços” antagônicos e relacionados, mas criam estímulos para a conduta individual que não
também “esferas de ação social” específicas. Em estão mais à disposição da volição dos agentes. Nós
cada uma dessas esferas existem valores e idéias somos, em grande parte, até em nossas emoções
específicas que guiam ou influenciam o comporta- mais íntimas, produto das necessidades da reprodu-
mento dos agentes em determinada direção em ção institucional do Estado e do mercado. É para
cada caso. Sabemos também que, para Da Matta, esse fato fundamental que Weber quer apontar com
esses valores, no mundo do indivíduo, apontam o uso de suas metáforas mais conhecidas como
para uma concepção de mundo impessoal que “gaiola de ferro” ou “destino”.
enfatiza a igualdade e a competição entre iguais, ao Aqui não se trata apenas de uma visão weberi-
passo que no mundo da pessoa teríamos o reino ana. Todos os grandes clássicos da Sociologia estão
dos sentimentos, do particular, portanto, e de uma de acordo nesse ponto. Para um pensador como
hierarquia baseada na afeição (que é sempre gra- Georg Simmel, por exemplo, o domínio do merca-
dativa e particularizante). do como instituição fundamental do mundo moder-
O que passa então a ser imediatamente pro- no, ou, nas suas palavras, o advento da economia
blemático é explicar a própria possibilidade de monetária, significa uma redefinição da consciência
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subjetiva individual de enormes proporções. As casa de cada um de nós e nos dizem, em grande
noções básicas de tempo e espaço se modificam, e medida, como devemos agir, o que devemos
com elas se modificam também toda a economia desejar e como devemos sentir. Ao contrário do
emocional, a vida afetiva individual e recôndita de que supõe a dualidade damattiana, os poderes
cada um de nós, como a forma da atração sexual impessoais (que criam o “indivíduo”) do mercado
entre os dois sexos, a necessidade de distanciamen- e do Estado não são instituições que exercem seus
to interno e externo que os contatos impessoais da efeitos em áreas circunscritas e depois se ausentam
vida nas metrópoles exigem, a entronização do nos contatos face a face da vida cotidiana. Eles
princípio da calculabilidade como alfa e ômega da jamais se ausentam e na verdade penetram até nos
personalidade individual, a indiferença e o senti- mais recônditos esconderijos da consciência de
mento blasé como emoções típicas da indiferencia- cada um de nós. A dualidade damattiana pressu-
ção qualitativa operada pelo dinheiro transformado põe a perda da eficácia específica das instituições
em meio universal de troca etc. 5 que criam o mundo moderno. O vínculo funda-
Não só a economia, mas também o Estado é mental entre eficácia institucional e predisposição
um poderoso elemento transformador da vida valorativa individual não é levado em conta no
individual. Talvez ninguém melhor do que Norbert raciocínio do autor. Os valores são percebidos
Elias tenha tido tanta consciência desse fato. Para como tendo existência independente da vida insti-
Elias, o Estado moderno, com o seu monopólio da tucional.
violência física na sociedade, é apenas a ponta Desligando a dinâmica valorativa social tanto
mais visível de um desenvolvimento milenar nas de uma relação com a estratificação social quanto
formas de exercício da dominação política, cujo da referência à eficácia institucional, pode então
pressuposto é uma completa modificação da psi- Da Matta referir-se a indivíduos que se contrapõem
que individual. Ao invés do controle externo, a em “espaços” sociais distintos, os quais carecem de
partir da ameaça do mais forte, o Estado moderno qualquer determinação estrutural. Vejamos as con-
pressupõe controle interno e competição pelos seqüências disso para o seu conceito de cidadania:
bens escassos por meios mais ou menos pacíficos.
Elias (1989, especialmente vol. II) demonstra, Se no universo da casa sou um supercidadão, pois
com farto material empírico, como o processo de ali só tenho direitos e nenhum dever, no mundo
centralização do Estado moderno, com seu aparato da rua sou um subcidadão, já que as regras uni-
jurídico baseado em leis gerais e no monopólio da versais da cidadania sempre me definem por mi-
violência, é concomitante à transformação do apa- nhas determinações negativas: pelos meus deve-
relho psíquico individual no sentido da formação res e obrigações, pela lógica do “não pode” e “não
de uma economia emocional específica, com um id deve”. (Da Matta, 1991, p. 100)
tornado inconsciente, onde as emoções e desejos
agora impossíveis de serem vividos se concentram Aqui observamos que as duas lógicas antagô-
e são reprimidos, e um superego encarregado nicas conduzem a um curto-circuito sociológico ao
agora, como uma instância interna ao próprio equalizar esferas de ação a “espaços” específicos. 6
mecanismo psíquico individual, pela repressão, Desse modo, supercidadania e subcidadania tor-
sublimação e reorientação de manifestações perce- nam-se uma variável dependente do “espaço”
bidas como anti-sociais. Para Elias, toda a estrutura social onde me encontro. Seria razoável supor que
da psique individual como vista por Freud seria o uma operária negra e pobre da periferia de São
resultado (e pressuposto) histórico das modifica- Paulo que, depois de trabalhar o dia inteiro e ter
ções introduzidas pelo Estado moderno e por seu efetivamente fartas experiências de subcidadania
aparato de regulação social. na “rua”, apanha do marido em “casa” sente-se
Desse modo, os poderes impessoais que uma supercidadã? 7
criam o “indivíduo” não limitam sua extraordinária Todos sabemos que não apenas as mulheres
eficácia ao mundo da rua. Eles entram dentro da negras e pobres, mas todos os grupos sociais
o
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oprimidos enfrentam situações de subcidadania relação entre os dois princípios. É porque Da Matta
independentemente do lugar ou do “espaço so- interrompe sua busca da gramática profunda brasi-
cial” onde se encontram. A não referência à estra- leira na afirmação da própria dualidade que a
tificação social de acordo com classes e grupos relação entre os dois termos e, por conseqüência,
específicos cria uma ilusão de “espaços” com a própria noção de “relação” é sempre indetermi-
positividade própria. Da Matta (1991, p. 100) é nada. Um outro exemplo pode talvez ajudar a
inclusive obrigado a apelar para explicações subje- esclarecer esse ponto:
tivistas que ele próprio havia condenado como má
sociologia: Mas se a categoria profissional — os trabalhadores
como cidadãos e não mais como empregados —
Se minha visão do Brasil a partir da casa é que “a tem uma ligação forte com o Estado, ou governo,
nossa sociedade é uma grande família”, com um então eles podem ser diferenciados e tratados com
lugar para todos, na esfera da rua minha visão de privilégios. É a relação que explica a perversão e
Brasil é muito diferente. Aqui eu estou em “plena a variação da cidadania, deixando perceber o que
luta” e a vida é um combate entre estranhos. Estou ocorre no caso das diversas categorias ocupacio-
também sujeito às leis impessoais do mecado e da nais no Brasil, onde elas formam uma nítida
cidadania que freqüentemente dizem que eu “não hierarquia em termos de sua proximidade do
sou ninguém”. Fico, então, à mercê de quem quer poder, ou melhor, daquilo que representa o centro
que esteja manipulando a ordem social naquele do poder. (Da Matta, 1991, p. 85)
momento.

O fato de a dominação em última instância O que significa, nesse contexto, uma “forte
ser feita em favor de um “alguém” que esteja ligação” com o Estado? Poder-se-ia perceber essa
“manipulando a ordem social” é sintomático da relação a partir do esforço de um Estado moderni-
dificuldade apontada acima. Afinal, era o próprio zador de premiar e constituir vínculos de lealdade
Da Matta quem pretendia superar o subjetivismo com setores das classes trabalhadoras que contri-
sociológico que atribui a explicação última da buíam no esforço nacional de modernização. Mas
lógica social à intencionalidade individual. É sem aí já estaríamos falando de valores, dos quais o
dúvida mais fácil explicar o funcionamento de re- Estado nacional seria, ainda que parcialmente,
gras sociais a partir da intencionalidade dos agen- suporte. E esses valores é que definiriam quais
tes. Afinal, é assim que nós nos percebemos no setores seriam ou não privilegiados e por quê.
senso comum, e é da força do senso comum, como Estaríamos falando de valores inscritos e instituci-
nos ensina Charles Taylor (1997, especialmente onalizados na realidade social cotidiana, portanto,
cap. I), que o ponto de partida subjetivista ou que ajudam a determinar o conceito de poder
“naturalista” retira sua força peculiar e evidência. O nessa situação, esclarecendo seu uso e sua lógica.
caminho de quem pretende descobrir a gramática Esse, no entanto, não é o caminho de Da Matta.
social profunda de uma formação social, no entan- Quando o autor se refere a uma hierarquia
to, é mais espinhoso. São as normas e regras sociais definida a partir da “proximidade com o poder”,
implícitas que hierarquizam uma sociedade. Indi- não temos a menor idéia de quais valores, regras ou
víduos ou classes dominantes são, no máximo, normas explicam essa hierarquia. Poder torna-se
suportes desses valores e normas, mas de modo aqui um conceito amorfo e indeterminado, já que
algum, sujeitos intencionais desse processo. não compreendemos o que a proximidade ou a
Da Matta é forçado a buscar uma solução distância em relação a ele significam. As palavras
intencionalista para a questão do poder precisa- aqui, mais uma vez, nutrem sua eficácia do discurso
mente, vale a pena repetir, porque apenas as regras comum, na medida em que é imediatamente com-
sociais anteriores e por trás da dualidade indiví- preensível para qualquer pessoa que “quem se rela-
duo/pessoa e casa/rua é que poderiam explicar a ciona” ou “está próximo” do poder tem privilégios.
A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA 55

De resto, a sociologia “relacional” de Da Taylor chama de “autenticidade”, que alcançamos


Matta parece retirar sua evidência menos da cons- um quadro mais completo do indivíduo moderno
cientização dos pressupostos valorativos subjacen- ocidental. Na busca por autenticidade temos a
tes à nossa cultura e que não haviam sido percebi- procura por características específicas e particula-
dos até então, como ele próprio supõe, do que, res a cada um de nós, referindo-se à nossa diferen-
precisamente, do fato contrário: do fato de permitir ça específica e a relações e objetos que são particu-
a sistematização da imagem do senso comum, da lares e não generalizáveis, na medida em que são
“ideologia” do brasileiro médio acerca de si pró- hierarquizados em sua importância por nossos
prio. Acredito que a própria oposição entre indiví- afetos e sentimentos.
duo e pessoa e entre casa e rua só mantém sua Na idéia de autenticidade, é a noção de
evidência quando não nos perguntamos acerca profundidade do self que muda. A revolução nos
dos seus pressupostos. costumes da década de 60 é vista por Taylor como
Afinal, a separação entre as esferas do “indi- um momento especialmente importante para a
víduo” e da “pessoa” e entre os “espaços” da casa eficácia social dessa noção, na medida em que seus
e da rua é típica de toda sociedade moderna e princípios saem da vanguarda artística e logram
complexa e não atributo de uma sociedade tradici- influenciar decisivamente o senso comum de toda
onal ou semitradicional como Da Matta percebe o uma geração com efeitos permanentes. O que há de
Brasil. A confusão entre as esferas públicas e revolucionário na noção de autenticidade é a idéia
privadas (casa e rua, na linguagem damattiana) é de uma individuação mais completa e original.
que é uma característica típica de sociedades tradi- Nesse sentido, as profundezas do self deixam
cionais e patrimoniais pouco diferenciadas. A no- de ser sinônimo de erro e engano, num caminho
ção de indivíduo como usada por Da Matta, para que havia sido originalmente traçado por Montaig-
especificar a cultura ocidental moderna e desen- ne e Rousseau. Essa mudança é expressa na passa-
volvida, na verdade não existe desse modo em gem das paixões aos sentimentos. Estes são reno-
nenhuma sociedade concreta, muito menos nos meados e reabilitados, tornando-se normativos —
EUA, como acredita o autor. Creio que por trás da o que as paixões não eram. Agora, descobrimos o
evidência dessas noções se esconde uma noção que é certo, nós indivíduos modernos do limiar do
indiferenciada do indivíduo ocidental moderno. 8 século XXI, ao menos em parte, experenciando
Senão, vejamos. nossos sentimentos.
Uma genealogia do indivíduo moderno como Para Taylor, esse renascimento e nobilitação
a elaborada por Charles Taylor (1997) no seu As do sentimento é um traço marcante da cultura
fontes do self mostra que essa noção é bem mais moderna. A vida social moderna contém, portanto,
rica, contraditória e matizada. O elemento universa- as duas vertentes da configuração moral ocidental,
lizante ao qual Da Matta faz referência seria sem baseada numa noção dúplice de indivíduo: a noção
dúvida um de seus componentes fundantes, mas de dignidade generalizável, cujo lugar privilegiado
não o único. Esse componente normalizante e é a economia e o mundo do trabalho, e a noção de
generalizante seria o que Taylor chama de “ self autenticidade, que tem no casamento baseado em
pontual”, para enfatizar o elemento disciplinável sentimentos e na constituição de um espaço de
que será a matéria-prima das burocracias da econo- intimidade e cumplicidade compartilhada talvez
mia e da política modernas. No entanto, essa noção sua objetificação mais importante. A casa e a rua,
está longe de contar toda a história do individualis- portanto, dimensões que Da Matta supõe tão brasi-
mo ocidental. leiras, são construções sociais que se tornam possí-
Se o “ self pontual” permite as construções veis apenas no mundo moderno e diferenciado de
generalizantes da política (cidadania) e da econo- sociedades complexas e dinâmicas.
mia (o sujeito contratual), conferindo sentido à Não é apenas Charles Taylor que desenvolve
noção de “dignidade” moderna, é apenas com uma essa dualidade do indivíduo ocidental, embora ele
outra fonte do individualismo moderno, o que certamente seja dos que mais contribuíram para a
o
56 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 N 45

percepção de um conceito diferenciado e comple- experiências mais pessoais. Tanto a situação social
xo do indivíduo ocidental. Com outras denomina- das classes médias, quanto o vocabulário da vida
ções, essa dualidade é amplamente aceita na Socio- cotidiana já predispõem para a orientação no
logia moderna. 9 O ponto essencial aqui é que o sentido das fontes privadas e pessoais de sentido.
elemento expressivo e afetivo da personalidade Nós também percebemos uma forte identificação
individual é levado em conta como componente com relação aos Estados Unidos como comunida-
constitutivo da noção de indivíduo moderno. A de nacional. No entanto, apesar de a nação ser
alternativa damattiana entre indivíduo e pessoa vista como boa, tanto “governo” quanto “política”
refere-se, na realidade, a dimensões distintas do possuem freqüentemente conotações negativas.
mesmo conceito de indivíduo, o qual só encontra Os americanos, ao que parece, são genuinamente
condições de desenvolvimento em sociedades mo- ambivalentes com relação à vida pública, e essa
dernas e complexas. 10 ambivalência implica dificuldades de perceber os
Sem dúvida as noções de autenticidade e problemas que confrontam a todos. (Bellah et al.,
individualização expressiva não cobrem todo o 1986, p. 250; tradução minha)
horizonte da noção de pessoa em Da Matta. Além
do aspecto do mundo emocional e do particularis- Volto ao fio condutor dessa argumentação. É
mo que ela implica, Da Matta chama a atenção para a imagem (no caso, desvalorizada) do brasileiro
um dado que seria peculiarmente brasileiro na acerca de si mesmo que é dramatizada na teoria
noção de pessoa: a troca de favores, o jeitinho, a damattiana. Afinal, por que supor uma tendência
“carteirada” — em uma palavra, a tendência à inata dos brasileiros à corrupção e ao estabeleci-
corrupção e à refração da lei geral. O mundo da mento de relações de favores? Seria essa “predispo-
política seria a esfera privilegiada dessa inclinação sição” maior aqui do que em qualquer outro país?
nacional, a qual não passaria despercebida aos Recentemente, foi descoberto na Alemanha Fede-
“indivíduos”, aos homens comuns sem meios de ral um esquema de corrupção e favorecimento
troca nesse comércio generalizado de favores. político com 25 anos de estabilidade e incrível
eficiência, que faria qualquer Fernando Collor
O resultado não passa, porém, despercebido à brasileiro morder os lábios de inveja. 11 Admita-
massa brasileira que vê na atividade política um mos, por hipótese, que, desgraçadamente, o grau
jogo fundamentalmente sujo, onde existe de tudo, de corrupção no Brasil seja maior do que em
menos ética. Daí a expressão “fulano é muito outros países. Não seria a causa desse fato uma
político” para exprimir alguém que sabe cuidar de ausência de mecanismos mais eficazes de controle,
seus interesses pessoais. (Da Matta, 1991, p. 94) antes que uma misteriosa eficácia atávica de pa-
drões culturais personalistas tradicionais da vida
colonial brasileira?
Seria, efetivamente, uma idiossincrasia brasi- Não seria, ao contrário, um dado estrutural
leira a visão da política como um jogo desonesto da política em todos os países modernos a existên-
entre pessoas que trocam favores e proteção? Não cia de um déficit de legitimidade, em oposição à
creio. Em famosa pesquisa empírica realizada por economia, por exemplo? Essa é a opinião de Bellah
Bellah e sua equipe nos EUA, também a política na mesma pesquisa realizada nos EUA. Ao analisar
enquanto tal, especialmente a grande política do a desconfiança dos americanos em relação à polí-
Estado e da negociação partidária, é vista como tica, afirma o autor:
“suja” pela grande maioria dos americanos.
A política sofre pela comparação com o mercado.
Nas nossas entrevistas, ficou claro que para a A legitimidade deste último baseia-se, em grande
maioria das pessoas com quem falamos, os marcos medida, na crença de que ele premia indivíduos
da verdade e da virtude são percebidos como imparcialmente com base numa competição justa.
encontráveis nas relações de intimidade e nas Por contraste, a política da negociação local,
A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA 57

estadual e federal, apesar de compartilhar as mes- o que não significa, obviamente, que não deva ser
mas atitudes utilitárias do mercado, freqüente- combatida e controlada. O nosso ponto aqui é
mente expõe a competição entre grupos desiguais mostrar que ela não tem nada a ver com o persona-
quanto aos recursos de poder, influência, e probi- lismo e o tradicionalismo que Da Matta identifica na
dade moral, os quais influem decisivamente no sociedade brasileira. O que parece ser peculiarmen-
resultado final. (Bellah et al., 1986, p. 200; tradu- te brasileiro é a manipulação populista da corrup-
ção minha) ção como tema central do debate político, num país
tão carente de discussões públicas de fundo sobre
Não reconhecemos nas citações acima, nos escolhas coletivas fundamentais.
insuspeitos EUA, precisamente a contraprova pre- A razão última dessa “brasilianização” de
ferida de Da Matta em relação ao caso brasileiro, a características tão marcantes do mundo contempo-
mesma oposição entre mundo público hostil e râneo tem a ver, acredito, com a forma idealista
mundo privado prenhe de sentido, e, mais impor- pela qual Da Matta percebe a relação entre valores
tante, a mesma percepção do mundo da grande e sua institucionalização, assim como com a con-
política, visto com desconfiança e distância? Onde cepção indiferenciada de modernidade ocidental
estaria, nesse sentido, a especificidade brasileira? subjacente à sua teoria. A tentativa mais recente de
Também esse aspecto não parece ser atributo Da Matta (1994, especialmente pp. 125-151) de re-
de países tradicionais e com ética dual. A explica- levar a posição do elemento intermediário e de
ção de Bellah ao fato é bem distinta. A “grande “pensar o Brasil com base no número três” e não
política” é percebida como amoral pela grande mais em uma “razão dualista” não resolve a ques-
maioria das pessoas porque em sociedades mo- tão essencial, mas apenas a desloca. A questão
dernas e complexas a barganha política é realiza- essencial seria a explicação da lógica social subja-
da de forma intransparente para a grande maioria cente que permitiria tornar os fenômenos observá-
(Bellah et al., 1986, pp. 207-208). Essa é uma veis “determinados”, ou seja, compreensíveis a
conseqüência inevitável da institucionalização de partir de regras e normas sociais globais. É isso que
esferas sociais segundo padrões racional-instru- Da Matta diz pretender e essa pretensão em si já é
mentais no mundo moderno. Ao contrário do mer- elogiável. Mas ele substitui, sempre que lhe con-
cado, no entanto, a política precisa legitimar-se a vém, a busca por essas regras últimas por evidên-
partir da noção de uma atividade dirigida ao bem cias empíricas. Isso fica claro na “institucionaliza-
comum. O impulso utilitário que a aproxima do ção do intermediário e do número três”.
mercado — afinal, todo político tem sua família pa- Afinal, de interesse para o conhecimento
ra sustentar e sua carreira para cuidar — precisa ser seria perceber de que maneira individualismo e
temperado e pelo menos parcialmente encoberto holismo se combinam, se institucionalizam e se
pelo atendimento de necessidades que devem ser estratificam de modo a produzir um terceiro ele-
percebidas como de interesse de todos. A tensão mento híbrido. Mas, se como vimos acima, Da
entre esses dois componentes torna a corrupção Matta não determina a forma como individualismo
um dado estrutural da esfera política moderna. e holismo se articulam, menos ainda pode ele
Todo político tem de lidar com a contradição de determinar a forma como o elemento terciário
perseguir seus fins egoísticos como qualquer outra derivado desses ganha vida. O que temos na
pessoa em qualquer outra atividade, e conciliar análise damattiana desse ponto é, portanto, como
essa posição com a expectativa de que ele seja um não poderia deixar de ser, a não mediada descrição
pouco “um monge extramundano”. Essa contradi- concreta de nossa paixão pelo hibridismo, indo até
ção me parece estar no cerne da ambigüidade en- a caracterização algo caricatural da nossa feijoada
tre figura privada e imagem pública que é tão de- como híbrida de sólido e líquido! O curto-circuito
terminante para o resultado de eleições. concretista chega às raias de um misticismo do três!
Nesse sentido, a corrupção é um fenômeno Nele cabem mulatas, feijoadas e o que mais nossa
estrutural à política e sua presença é sempre latente, imaginação possa criar.
o
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Uma tentativa de interpretação lado, pode ajudar a vislumbrarmos uma outra


alternativa do dilema brasileiro concepção do processo de modernização brasilei-
ro. Essa visão alternativa tem, a meu ver, a vanta-
Mas, poder-se-ia perguntar, como esclarecer gem de permitir perceber a sociedade brasileira no
então as inúmeras situações flagrantes de desigual- seu dinamismo e complexidade inegáveis, ou seja,
dade que abundam no nosso país, como nos permite perceber a efetiva modernização do país,
mostra a análise do ritual do “você sabe com quem ao mesmo tempo que nossa miséria e nosso atraso
está falando”? Como explicar a desigualdade e a relativo como resultado da seletividade desse mes-
injustiça social abismal no Brasil sem buscar uma mo processo de modernização.
duvidosa continuidade atávica de relações pesso- Gostaria de desenvolver a tese acima, ainda
ais todo-poderosas do passado? Como levar em que de forma tentativa e incompleta, a partir de
conta as efetivas e profundas transformações sofri- uma reinterpretação do trabalho de um outro
das pelo país no nosso já secular processo de clássico do pensamento social brasileiro: Gilberto
modernização e, ao mesmo tempo, explicar a Freyre. A relação entre Roberto Da Matta e Gilberto
permanência de desigualdades tão iníquas? Afinal, Freyre é interessante e intrigante. Por um lado, os
era essa questão fundamental que Da Matta havia dois são comumente percebidos como pensadores
procurado responder a partir da permanência se- de uma vertente peculiar de pensamento social
cular do personalismo e de relações sociais associ- brasileiro, aquela que concentra sua atenção em
adas a este. Como construir uma explicação alter- aspectos normalmente não considerados pela tra-
nativa a esse problema tão importante? dição científica dominante, como rituais, costumes
O desafio passa a ser, portanto, explicar o e hábitos cotidianos. O próprio Da Matta levanta
atraso social e político brasileiro sem apelar para um outro ponto em comum: os dois fariam uma
explicações que enfatizem a permanência do per- sociologia de quem “gosta do Brasil”, ou seja, que
sonalismo como o núcleo da formação social brasi- seria crítica da tendência pessimista de só ver
leira. Em outro trabalho (Souza, 2000), com maior defeitos no país (Da Matta, 1999b). De um ponto
detalhe e vagar, procurei demonstrar a íntima rela- de vista mais analítico, noções fundamentais para
ção de noções como herança ibérica, personalismo Da Matta, como a oposição casa/rua, seriam influ-
e patrimonialismo, formando a interpretação domi- ências freyrianas (Da Matta, 1991, p. 60).
nante dos brasileiros sobre si mesmos, seja na esfera No entanto, uma leitura atenta permite perce-
da reflexão metódica, seja na esfera político-institu- ber que os dois autores partem de pressupostos
cional. Essa concepção, que tem representantes do distintos e chegam a conclusões que não poderiam
calibre de um Sérgio Buarque ou Raymundo Faoro, ser mais díspares. Senão, vejamos. Já na visão da
além do próprio Da Matta, logrou transformar-se, singularidade histórica brasileira, um ponto básico
de há muito, tanto em senso comum na realidade para a empresa teórica de ambos, a perspectiva
cotidiana, quanto em projeto político explícito, desses autores não poderia ser mais antagônica.
influenciando decisivamente nossa realidade insti- Enquanto Da Matta segue, no fundamental, a visão
tucional e as práticas sociais associadas a ela. De faoriana (Da Matta, 1991, p. 83) da transmissão da
acordo com essa concepção, que poderíamos cha- herança patrimonial portuguesa ao Brasil, de um
mar de nossa “sociologia da inautenticidade”, o Estado patrimonial centralizado e todo-poderoso
Brasil é o “outro” ou um desvio da modernidade, que inibiria o localismo e o associativismo, Freyre
tendo sido modernizado para “inglês ver”, uma parte do princípio oposto. Para Gilberto Freyre, o
modernização epidérmica e de fachada. Brasil colonial seria um caso extremo de descentra-
Nos limites deste artigo procurarei me con- lismo político, criando as condições para um patri-
centrar apenas em demonstrar de que modo uma arcalismo que se cristaliza em mandonismo local
adequada consideração da relação entre valores e ilimitado, pela ausência seja de instituições inter-
sua institucionalização, por um lado, vinculando-a mediárias acima da família, seja de efetiva ação e
com a questão da estratificação social, por outro controle do Estado.
A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA 59

A essa oposição inicial correspondem diag- aqui temos uma descontinuidade fundamental em
nósticos conflitantes acerca do que caracterizaria a relação a Portugal. A escravidão, fenômeno margi-
modernidade do Brasil. Enquanto Da Matta parece nal em Portugal, é uma instituição total no Brasil
acreditar na continuidade de um esquema rígido colonial. Em Freyre, a visão sobre a especificidade
de poder que constitui a base empírica do seu da escravidão brasileira alterna-se entre uma ênfa-
quadro de uma sociedade hierárquica que, mesmo se no sadomasoquismo e uma concentração no
no contexto de uma sociedade complexa e diferen- tema da mestiçagem. Essa ambigüidade é constitu-
ciada como a do Brasil da segunda metade do tiva da forma como Freyre percebe a singularidade
século XX, seria misteriosamente comandada por da escravidão brasileira. Esta seria uma forma
relações pessoais de família e compadrio, Freyre muito peculiar de escravidão, uma “escravidão
desenvolve um raciocínio diametralmente oposto. muçulmana” (Freyre, 1969, pp. 179-180). Malgrado
Minha hipótese é que encontramos em Gil- todas as características comuns a todas as formas
berto Freyre as bases para uma interpretação da de escravidão na América, essa forma de escravi-
formação social brasileira em que o dado da nossa dão teria particularidades importantes.
singularidade é posto em primeiro plano. De acor- Para Freyre, a escravidão muçulmana é aque-
do com essa interpretação, o Brasil seria uma la que repete a estratégia muçulmana nas suas
sociedade sui generis e não uma mera continuação guerras de conquista e escravização, que permitia
de Portugal. Esse ponto é fundamental, já que ao escravo nascido de muçulmano ser equiparado a
Freyre também enfatizou, especialmente nos seus este em status caso assumisse a religião e os
escritos luso-tropicalistas, essa continuidade. Sem “valores” do pai (Freyre, 1969, p. 181). Essa astucio-
querer negar que ele tenha estimulado decisiva- sa estratégia propicia uma expansão e durabilidade
mente também essa tradição — por exemplo, ao da conquista inigualáveis na medida em que asso-
forjar o conceito de “plasticidade” do português, cia o acesso a bens materiais e ideais muito concre-
conceito esse que seria mais tarde adotado por tos à identificação do dominado com os valores do
Sérgio Buarque e que implica uma visão idealista opressor. A conquista pode assim abdicar da vigi-
da relação entre valores e sua institucionalização lância e do emprego sistemático da violência para a
—, creio ser possível, porém, perceber uma visão garantia do domínio e passar a contar crescente-
alternativa na sua obra. Essa visão alternativa tal- mente com um elemento volitivo internalizado e
vez tenha sido pouco consciente para o próprio desejado pelo próprio oprimido. O Brasil Colônia
Freyre. De qualquer modo, penso que é a partir estava cheio de exemplos desse tipo de política.
dela que mais podemos aprender com este autor e Isso permitia que fossem usados aqui capitães-de-
é dela que poderemos retirar o cerne da atualidade mato e feitores negros ou mulatos, fato impensável
da multifacetada obra freyriana. nos EUA, por exemplo, onde toda a atividade de
Essa visão alternativa baseia-se em duas idéi- vigilância e controle dos escravos era realizada
as principais. A primeira, que forma o núcleo do exclusivamente por brancos (Degler, 1971, p. 84).
argumento de Casa-grande e senzala (Freyre, 1957 Permitia também a povoação de enormes massas
[1933]), é a idéia da sociedade colonial brasileira territoriais sem que a dominância do elemento
como uma sociedade sadomasoquista. A segunda, conquistador fosse posta seriamente em perigo.
núcleo do argumento desenvolvido em Sobrados e Essa astuciosa estratégia de domínio, se no
mucambos (Freyre, 1990 [1936]), é a idéia da pólo negativo implica subordinação e sistemática
constituição da modernidade brasileira sob a forma reprodução social da baixa auto-estima nos grupos
peculiar de uma “europeização” que transforma o dominados, no pólo positivo abre uma possibilida-
país de alto a baixo a partir da primeira metade do de efetiva e real de diferenciação social e mobilida-
século XIX. de social. É a partir desse pólo positivo que Freyre
A tese da sociedade sadomasoquista não é constrói sua tese da mestiçagem como peculiarida-
isenta de ambigüidades. Ela se refere ao estatuto de social brasileira. Essa construção, por secundari-
peculiar da instituição da escravidão no Brasil. Já zar o elemento de opressão e subordinação siste-
o
60 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 N 45

mática, é ideológica e conservadora no mau sentido essas duas sociedades. Uma tal organização societá-
desse termo. Ela efetivamente levou Freyre, prova- ria, especialmente quando o domínio da classe
velmente influenciado pela tradição germânica do dominante é exercido pela via direta da violência
“Volksgeist” (espírito do povo), 12 estimulado talvez armada (como era o caso nos dois tipos de socieda-
pelo seu mestre Boas, a pleitear uma espécie de de), não propicia a constituição de freios sociais ou
“contribuição singularmente brasileira à civiliza- individuais aos desejos primários de sexo, agressivi-
ção”. Apenas a partir dessa idéia é que podemos dade, concupiscência ou avidez. As emoções são
compreender a contraposição que perpassa a sua vividas em sua reações extremas, são expressas
obra entre a democracia racial — ou “social”, como diretamente, e a convivência de emoções contrárias
ele preferia — brasileira e a democracia “apenas em curto intervalo de tempo é um fato natural.
política” dos norte-americanos. Esse relativismo A explicação sociológica para a origem desse
politicamente perigoso o levaria, especialmente nas “pecado original” da formação social brasileira,
suas obras luso-tropicalistas, a toda espécie de para Gilberto Freyre, exige a consideração da
delírio culturalista acerca de supostas especificida- necessidade objetiva de um pequeno país como
des culturais do moreno e mestiço, e toda sorte de Portugal de solucionar o problema de como colo-
elogio do autoritarismo político para a proteção nizar terras gigantescas pela delegação da tarefa a
dessa pretensa originalidade luso-tropical. É tam- particulares, antes estimulando do que coibindo o
bém o tema da mestiçagem que faz Freyre enfatizar privatismo e a ânsia de posse. Como resultado, não
a continuidade entre Portugal e Brasil. Este seria, existia justiça superior à dos senhores de açúcar e
afinal, um “gen cultural” herdado dos portugueses. gente, como em Portugal era o caso da justiça da
Não é esse Gilberto Freyre que pretendo Igreja, que decidia em última instância querelas
reaproveitar aqui. Bem mais interessante, no en- seculares; não existia também poder policial inde-
tanto, é sua idéia da construção de uma sociedade pendente que lhes pudesse exigir cumprimentos
singular no Brasil colonial — uma clara desconti- de contrato, como no caso das dívidas impagáveis
nuidade em relação a Portugal, portanto — dada a de que fala Freyre; não existia ainda poder moral
proeminência da escravidão e de uma forma muito independente, posto que a capela era uma mera
peculiar desta. O tema do sadomasoquismo em extensão da casa-grande.
Freyre ainda não foi, até onde sei, para além de É nesse contexto de total dependência dos
citações tópicas dos casos mais escabrosos que escravos em relação ao senhor, sem a proteção que
abundam especialmente em Casa-grande e senza- o costume e a tradição garantiam ao servo da gleba
la, tratado sistematicamente. europeu e que lhe possibilitava a constituição de
Na construção do seu argumento, Gilberto auto-estima e reconhecimento social independen-
Freyre retira todas as conseqüências do fato de que tes da vontade do senhor, que podemos compre-
a família é a unidade básica, dada a distância do ender a especificidade do tipo de sociedade que
Estado português e de suas instituições da forma- aqui se constituiu. A proteção era discrição do
ção social brasileira, o que o permite interpretar o senhor e estava relacionada a outra característica
drama social da época sob a égide de um conceito árabe da sociedade colonial brasiliera: a família
psicoanalítico e da psicologia social. Na construção poligâmica. Os filhos dos senhores e escravos,
desse conceito, Freyre concentra-se em condicio- desde que assumissem os valores do “pai”, ou seja,
namentos estritamente macrossociológicos, seme- se eles se identificassem com ele, tinham a possibi-
lhantes àqueles que guiariam a reflexão de Norbert lidade de ocupar os postos intermediários em
Elias (apenas seis anos mais tarde) acerca do caso sociedade tão marcadamente bipolar. Devia haver
europeu na passagem da Baixa à Alta Idade Média. inclusive grande concorrência seja entre os filhos
Antes de tudo, o caráter autárquico do domí- ilegítimos seja entre as candidatas a concubinas
nio senhorial condicionado pela ausência de insti- pelos favores e pela proteção do senhor e de sua
tuições acima do senhor territorial imediato era o família. Existiam prêmios materiais e ideiais muito
fundamento dessa especificidade compartilhada por concretos em jogo de modo a recompensar quem
A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA 61

melhor interpretasse e internalizasse como se fosse uma sociedade movida a tração humana e primiti-
sua a vontade e os desejos do dominador. E é vamente antiigualitária e antiindividualista.
precisamente essa assimilação da vontade externa É tendo esse contexto em mente que pode-
como se fosse própria, assimilação essa socialmente mos compreender o que significou a reeuropeiza-
condicionada e que mata no nascedouro a própria ção para os brasileiros. A interpretação dominante
auto-representação do dominado como um ser in- desse processo enfatiza o caráter superficial, epi-
dependente e autônomo, que o conceito de sado- dérmico, imitativo dessa transformação. É isso que
masoquismo quer significar. permite a manutenção do paradigma do persona-
A importância desse tema para uma compre- lismo como interpretação dominante dos brasilei-
ensão da sigularidade social e cultural brasileira ros sobre si mesmos até hoje. De Sérgio Buarque
não deve ser subestimada. No tipo de sociedade até Raymundo Faoro ou Roberto Da Matta, o
descrito em Casa-grande e senzala o sadomaso- personalismo é percebido como formando o nú-
quismo tem os seus efeitos restritos à família cleo duro da sociedade brasileira e como a única
poligâmica e sua complexa trama de favores e forma de exercitarmos a crítica social de nossas
proteção, de afetos e invejas, de ódio e amor. No mazelas. Somos atrasados porque somos persona-
entanto, na sociedade brasileira analisada em So- listas nessa versão largamente dominante na Soci-
brados e mucambos, um Brasil que se moderniza ologia entre nós. Até Gilberto Freyre, especialmen-
sob impacto de uma Europa agora não mais “mou- te em Sobrados e mucambos, pode ser, e na maior
risca” como o Portugal que nos colonizou, mas já parte das vezes foi efetivamente, interpretado nes-
individualista e burguesa conforme os exemplos se mesmo sentido. O brasileiro teria se europeiza-
da Inglaterra, França e Alemanha, o sadomasoquis- do para “inglês ver”, passado a beber cerveja e
mo pode ser visto como condicionando de forma comer pão como um inglês, passado a se vestir
muito interessante o Brasil moderno. como um francês, mas não só as suas idéias
Em Sobrados e mucambos encontramos, ain- estariam fora de lugar, como todo o seu ser seria
da que em estado bruto e não desenvolvido explici- inautêntico, uma grande farsa imitativa.
tamente, uma visão absolutamente singular do Uma leitura alternativa de Sobrados e mu-
processo de modernização brasileiro, a partir da cambos pode nos dar uma outra visão desse
consideração da relação entre valores e sua institu- processo. É que para Freyr e o personalismo, antes
cionalização, acrescida da preocupação com a todo dominante, é ferido de morte com a reeuropei-
questão do acesso diferencial por grupos e classes zação. E ele é ferido de morte porque o que nos
aos frutos da mesma. Justamente os pontos que chega de navio a partir de 1808 não são apenas
havíamos percebido como ausentes na sociologia idéias e mercadorias exóticas. Na verdade, e esse é
damattiana. o ponto fundamental aqui, nos chegam as duas
É que o processo que Freyre irá descrever instituições mais importantes da sociedade moder-
neste livro sob a palavra-chave de “reeuropeiza- na: Estado racional e mercado capitalista. Afinal,
ção” procura perceber modificações tanto estrutu- não é apenas a família real que nos visita, mas todo
rais quanto culturais no processo singular de mo- um aparato de vinte mil funcionários e o equiva-
dernização brasileiro. A Europa que nos chega de lente a dois terços do meio circulante português.
navio a partir de 1808, com a vinda da familia real Esse Estado, que merece o nome de racional no
e a abertura dos portos, contrapõe-se à espécie de sentido moderno do termo, irá pela primeira vez
“China tropical” que era o Brasil colonial. Uma no nosso país se concentrar no atendimento de
sociedade patriarcal sadomasoquista, onde mulhe- demandas da população local, sob a forma dos
res, crianças e escravos eram extensão da vontade inúmeros melhoramentos que são introduzidos
do senhor. Uma sociedade que mal conhecia a nessa época, assim como na criação da infra-
tração animal, onde os brancos não se davam ao estrutura para o funcionamento de comércio e
trabalho de andar na rua pelas próprias pernas, indústria, como a criação de instituições de crédito
sendo carregados em palanquins pelos negros. Era e fomento à produção.
o
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Também a abertura dos portos não significa ente do Estado e do mercado constitui, paralela-
apenas simples expansão da troca de mercadorias. mente ao escravismo ainda todo dominante no
A troca de mercadorias, o comércio, irá reproduzir meio rural, uma sociedade de tipo novo nas cida-
aqui o mesmo processo que operou alhures: fun- des brasileiras mais importantes do século XIX.
cionará como principal elemento dissolvente de Nossa modernização não começa com o Estado
relações tradicionais. Mais ainda, o comércio será interventor dos anos 30 que cai dos céus criando
acompanhado da introdução de manufaturas e até demiurgicamente o Brasil urbano e capitalista: esse
da maquinofatura. Mercadorias e máquinas não novo Brasil moderno é gestado paulatinamente
são produtos materiais quaisquer. Eles são sintoma durante todo o decorrer do século anterior.
de relações sociais de outro tipo. Eles pressupõem Esse ponto é importante posto que vai de
uma disciplina própria para seus operários e encontro à interpretação, dominante entre nós, de
aprendizes, eles pressupõem uma nova visão da que esse processo fundamental seria um mal-
condução da vida cotidiana e até uma nova econo- entendido, uma revolução para “inglês ver”, epi-
mia emocional adequada às suas necessidades. dérmica e inautêntica. Essa é uma visão idealista da
Não se precisa de uma revolução protestante ascé- relação entre valores e sua institucionalização.
tica para se construir uma sociedade moderna: Freyre capta, como Max Weber na sua sociologia
Estado e mercado fazem esse trabalho e produzem da religião, os dois momentos dessa complexa
o tipo de indivíduo que precisam a partir de relação recíproca. Sem idéias e valores novos não
estímulos empíricos bastante concretos. há mudança social possível. Sem estruturas que
Estado e mercado não são o mundo da rua institucionalizem esses novos valores e idéias na
que pára na porta das nossas casas. Eles entram na vida cotidiana, por outro lado, não há como eles se
nossa casa; mais ainda, eles entram na nossa alma reproduzirem no mundo concreto. É essa relação
e dizem o que devemos querer e como devemos que Freyre percebe melhor que qualquer outro
sentir. É enganoso separar casa e rua (sendo a rua intérprete que conheço desse período.
percebida como o mundo impessoal do Estado e Mas reeuropeização não é apenas diferencia-
do mercado, como vimos), como é enganoso ção social das esferas política e econômica. Reeuro-
supor a permanência atávica de relações persona- peização não se confunde, portanto, com simples
listas numa sociedade estruturada por Estado e modernização. Ela é também índice de um padrão
mercado. Já discutimos acima a importância do específico de assimilação cultural. A forma pela
poder constitutivo de relações sociais de novo tipo qual assimilamos a modernidade tem semelhança
a partir da eficácia do Estado e do mercado. com a forma pela qual, na análise de Elias, as classes
Gilberto Freyre nos mostra com maestria como o inferiores adotam o padrão cultural e o gosto das
personalismo, ou patriarcalismo como ele preferia, classes superiores. Elas o fazem sob o preço de uma
desde o início do processo de reeuropeização, é “Verkitschung der Seele” (Elias, 1989, vol. I, p. 426),
ferido de morte já na própria casa do patriarca. Seu algo como, numa tradução livre, uma “ausência de
controle sobre sua própria mulher decresce e ele é originalidade da alma”. O “ kitch”, ou seja, a assimi-
superado e vencido pelo filho formado em escolas lação irrefletida, é produzida pelo prestígio de valor
européias que passam a atender melhor as novas absoluto de tudo que tinha ou tem ainda hoje a ver
necessidades do aparelho estatal e do incipiente com Europa. Se o valor é absoluto, isso significa que
mercado que se cria. 13 não existe distância crítica possível em relação a ele.
Que esse processo de modernização seja Aqui não se trata da inautenticidade da nossa mo-
paulatino, que tenha começado a partir de uma dernidade, lembrada por vários críticos, mas preci-
base incipiente e que tenha sido repleto de reveses samente do fenômeno contrário. Afinal, não é a su-
e frustrações, não nos deve cegar com relação à perficialidade da assimilação que está em jogo, mas,
compreensão do processo como um todo. Pode-se ao contrário, sua absorção tão completa que não
reconstruir a análise empírica e descritiva freyriana existe espaços de desenvolvimento de um projeto
de modo a percebermos que a implantação incipi- culturalmente original a partir dela.
A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA 63

Foi a absorção da modernidade de fora para na nossa sociedade, por incorporar o elemento de
dentro como um valor absoluto que impediu e valorização pelo saber e pelo mérito pessoal. Nada
impede tanto a existência de distância crítica em mais burguês e individualista, pela oposição a toda
relação a esse projeto, como também a naturalida- determinação adscritiva de valores e posições her-
de que encontramos nos europeus ocidentais. Os dadas familisticamente, que forma a base da estra-
europeus, e os norte-americanos é claro — afinal, tificação social de sociedades tradicionais.
não estamos falando de geografia mas de raciona- Interessante é que o padrão de ascensão
lismos culturais —, podem se dar ao luxo de social, ou de cidadania, como diríamos hoje em
desenvolver um padrão próprio e peculiar de dia, continua, no século XIX, o mesmo da época
serem modernos. A ansiedade de ser moderno, a colonial: o princípio do escravismo muçulmano.
grande vontade galvanizadora nacional desde o Ele se dá individualmente e para aqueles que se
começo da reeuropeização até hoje, nos impede identificam com os valores do dominador, no caso,
que sejamos modernos ao nosso modo e até, no agora, já os valores impessoais do individualismo
limite, que nos reconheçamos como tais. Toda europeu. É apenas o mulato talentoso, estudioso e
uma gama de questões importantes se descortina a apto que ascende. Apenas aquele que se “europeí-
partir desse fato. za”. Mais interessante ainda é notar que no século
Freyre também percebe, outra óbvia corres- XX, quando os valores da modernidade já têm co-
pondência com Max Weber, que toda inovação mo suporte o Estado interventor, os setores e gru-
valorativa e institucional exige a identificação das pos que ascendem à cidadania, à cidadania regula-
classes e grupos que lhe servem de suporte. O da, no caso (ver Santos, 1998, pp. 103-109), são
esclarecimento dessa relação permite visualizar, também aqueles que se identificam com o projeto
ainda, em benefício de quem se deu a transforma- modernizador estatal. A sociedade se impessoaliza
ção. É nesse ponto que podemos unir as duas mas a regra da inclusão e da exclusão se mantém.
pontas do raciocínio que estamos desenvolvendo Esse ponto é importante posto que descobre
neste texto. É que a classe intermediária entre uma especificidade fundamental de nossa socieda-
senhores e escravos criada pelo tipo singular de de. Aqui a ascensão social não se deu, como na
escravidão muçulmana que se desenvolveu entre Europa, coletivamente. Na esteira de Weber, Char-
nós encontra no contexto da reeuropeização, pela les Taylor (1997, especialmente pp. 273-300) per-
primeira vez, um lugar próprio e não apenas os cebe que a auto-estima protestante, baseada na
interstícios de um sistema tão marcadamente bipo- noção de trabalho sagrado, inverte a ordem do
lar como o escravista. mundo tradicional em todas as suas dimensões,
O mulato, pensado aqui mais como tipo especialmente na esfera política. A noção de traba-
social do que como cor de pele, filho da íntima lho intramundano como o caminho especifica-
comunicação tipicamente muçulmana entre desi- mente protestante de salvação é revolucionária em
guais, é o elemento que irá de certa forma equiva- dois sentidos fundamentais. Primeiro, ela reverte o
ler ao nosso elemento mais tipicamente burguês ideário, que vingava desde a Antiguidade, da
naquela sociedade em transformação. É ele que preponderância da contemplação sobre a ação, ou
será o aprendiz do estrangeiro nas manufaturas ou do trabalho contemplativo sobre o trabalho manu-
o ajudante do comerciante, estimulado pela ausên- al e prático, acarretando aquilo que Taylor chama
cia relativa daquele preconceito congênito ao ele- de “afirmação da vida cotidiana”. Ocorre uma
mento superior de toda sociedade escravocrata espécie de inversão valorativa de 180 graus: as
contra o trabalho manual. 14 É ele também que atividades práticas e manuais são valorizadas à
ascenderá, pelo estudo e mérito pessoal, compe- custa do desprestígio de qualquer esforço contem-
tindo com o elemento aristocrático branco, a fun- plativo “inútil”. O simples marceneiro vale mais do
ções nobres do aparelho de Estado, na vida literá- que o filósofo na sua torre de marfim. 15 Essa idéia
ria, na esfera da ciência etc. Ele é o primeiro é intrinsecamente democrática, já que implica a
suporte do componente burguês e individualista deslegitimização da hierarquia social, estamental e
o
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tradicional, associada à desqualificação do traba- de que os homens são iguais porque trabalham e
lho manual e pragmático. seu trabalho possui um valor tendencialmente
Em segundo lugar, ela é revolucionária no intercambiável. O interesse da noção de cidadania
sentido de que a dignidade individual, ou, em regulada reside, a meu ver, em outro lugar. Antes
termos políticos, o direito à cidadania passa a ser de tudo no fato de sua seletividade estar ligada ao
vinculado ao trabalho. A ascensão da burguesia se esforço de modernização tendo o Estado como
dá quando a crítica à aristocracia como classe suporte, ou seja, no fato de que algumas funções
ociosa, que não “trabalha”, ganha legitimidade em ou profissões são tidas como mais importantes do
amplas camadas da sociedade. Também a ascen- que outras para o esforço societário de moderniza-
são do proletariado se deve ao prestígio do valor- ção, invertendo a tendência equalizante que pre-
trabalho. Nesse sentido, uma concepção como a dominou nos países centrais do Ocidente, pondo a
do valor-trabalho marxista só se torna compreensí- nu, dessa forma, uma sobrevivência histórica de
vel num contexto em que a revolução protestante longa duração. 17 Nesse último aspecto, ela mostra
tenha fincado raízes sólidas e influenciado, inclusi- uma surpreendente continuidade histórica, evi-
ve, países católicos, como é o caso paradigmático dentemente sob outras formas, agora impessoais,
da França. A enorme eficácia social das teorias da regra de inclusão e exclusão vigente desde o
políticas seculares do valor social do trabalho, que Brasil Colônia. Esta implica, desde a “escravidão
permitem a ascensão política do proletariado no muçulmana”, a cooptação sistemática dos mem-
decorrer do século XIX, apóia-se, vicariamente, na bros mais capazes das classes populares, explican-
revalorização protestante do trabalho útil. do a convivência de miséria intermitente com real
Também foi o trabalho que permitiu a unifor- possibilidade de ascensão social para os setores
mização de uma economia emocional para todos desprivilegiados que sempre caracterizou nosso
os estratos na sociedade moderna. A burguesia, país. Ajuda também a que se perceba a miséria, ao
como primeira camada dirigente da história que menos parcialmente, como fracasso individual.
trabalha (Elias, 1989, vol. II, pp. 434-455), possibi- Desse modo, fato que ajuda a relativizar e
litou a produção de um tipo uniforme de ser matizar o argumento que venho desenvolvendo ao
humano, a partir do compartilhamento da relação longo deste artigo acerca da necessidade de consi-
típica entre emoções e razão exigida pela produ- derarmos a eficácia institucional do Estado e do
ção capitalista, como calculabilidade, previsibilida- mercado, essas duas instituições estruturais não
de, maior importância da satisfação adiada de foram suficientes para possibilitar, por si mesmas,
necessidades etc. Nos mais variados sentidos, por- a homogeneização das condições e oportunidades
tanto, o trabalho revalorizado é o pressuposto do sociais. É que o mesmo conjunto de circunstâncias
mundo moderno como o conhecemos, sendo, que constituíram o Brasil moderno é apenas a
inclusive, um pressuposto da idéia de cidadania contraface de um processo maior que cria a nossa
moderna baseada na noção da igualdade do valor miséria e desigualdade. A paulatina decadência da
de cada um, na medida em que todos trabalham e economia e da sociedade escravocratas, o setor
contribuem igualmente para o desenvolvimento da menos dinâmico da dualidade transicional que se
coletividade. constitui na época da reeuropeização, vai expulsar
Nesse sentido, divergindo em parte do que para a margem do sistema toda uma legião de
pensa Wanderley Guilherme dos Santos, o arguto inadaptados ao novo sistema vencedor. São eles
propositor desse conceito, não creio que o proble- que vão constituir nossos párias urbanos e rurais
mático na noção de cidadania regulada seja o fato desde então.
de a cidadania não se originar “da expansão dos O fato de a Europa moderna não ter tido sua
valores inerentes ao conceito de membro da comu- gênese em sociedades escravocratas, como lembra
nidade”, na medida em que esses “valores ineren- Elias ao ressaltar sua ruptura em relação a essa
tes ao conceito de membro da comunidade” até herança do mundo antigo, facilitou esse processo
bem pouco tempo 16 eram corolário do princípio de equilíbrio entre as diversas classes e a univer-
A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA 65

salização da categoria de cidadão. O cidadão é político no poder, o programa é racionalizar o


precisamente o resultado do longo processo de Estado de modo a estimular a competição e eficiên-
substituição da regulação externa pela regulação cia do mercado. Na oposição, o mote é a crítica
interna da conduta. Ele não só tem os mesmos populista à corrupção, esse dado estrutural da
direitos, mas também a mesma economia emocio- política moderna, que no patrimonialismo transfor-
nal. O reconhecimento da interdependência entre mado em senso comum adquire contornos de
as diversas classes que trabalham, acordo só pos- especificidade brasileira. Os aparentes contendo-
sível quando a primeira classe dirigente da história res lutam num mesmo campo comum de idéias.
que trabalha, a burguesia, assume o poder, propi- Essa concepção pressupõe que a política é
ciou uma equalização efetiva internamente a cada uma atividade intra-estatal e esquece uma terceira
espaço nacional. Foi criado um tipo humano uni- instituição, além de Estado e mercado, que veio
forme, seja na sua organização afetiva, seja na sua modificar fundamentalmente a vida pública e pri-
organização racional e valorativa, uniformidade vada modernas: a esfera pública. Habermas, e
essa percebida por Elias como o pressuposto estru- nisso reside sua importância seminal para a Socio-
tural do cidadão moderno. É justamente essa cons- logia contemporânea, foi o teórico da lógica espe-
ciência da interdependência social que é obstacu- cífica a essa instituição. Uma discussão pública da
lizada em sociedades tão influenciadas pelo escra- função dessa esfera social fundamental jamais foi
vismo como a nossa (ver Elias, 1989, vol. II, p. 70). realizada entre nós, embora seja indispensável e
No caso brasileiro, o processo de moderniza- talvez o passo mais importante para o resgate
ção que torna a sociedade escravocrata caduca a material e simbólico dos nossos miseráveis. São
partir da primeira metade do século XIX abandona questões que ficam no limbo na interpretação
à própria sorte toda uma classe, a dos escravos, que personalista e patrimonialista de nossa reflexão
jamais irá recuperar qualquer função produtiva na teórica e das práticas sociais e institucionais que se
nova ordem. É aí que se cria uma classe de párias formam a partir dela.
urbanos e rurais que valem, não só para uma elite
má mas, objetivamente, para toda a sociedade,
NOTAS
inclusive para as próprias vítimas, menos do que
outros. Nesse contexto não existe, objetivamente,
cidadania, mas apenas sub e supercidadãos. Mas 1 Veremos mais adiante que essa atitude é a raiz daquilo
não é, como afirma Da Matta, o não acesso a que iremos criticar como “concretismo fora de lugar”.

relações personalistas privilegiadas que acarreta a 2 O dualismo às vezes é interpretado como um esquema
tripartite também, onde além da casa e da rua teríamos
subcidadania. São valores objetivamente inscritos o “outro mundo”. Cf. Da Matta (1991, p. 68).
na nossa lógica institucional e no âmago do nosso 3 Refiro-me aqui às aporias que marcaram boa parte do
senso comum, sendo resultado da forma singular assim chamado “marxismo ocidental”, antes de tudo
pela qual fomos efetivamente, e não epidermica- presentes na obra de Georg Lukács. Ver especialmente
Lukács (1988).
mente como pensa Da Matta, modernizados. 18
A tematização do nosso atraso, miséria e 4 A noção que explica essa relação em Weber é a de
“paradoxo das conseqüências”. Para uma excelente
desigualdade não precisa do paradigma persona- discussão desse aspecto da obra weberiana ver Cohn
lista para ser criticado. Essa idéia, primeiro gestada (1979). Em Elias, o conceito central nesse tema é o de
por pensadores em universidades e depois trans- “mecanismo” (por exemplo, o mecanismo de descentra-
lização, base do feudalismo europeu), para indicar uma
formada em projeto político e prática social e necessidade sistêmica independente da intencionalida-
institucional, reveste o brasileiro de hoje como de dos grupos e classes que sofriam sua influência. Ver
uma segunda pele, com conseqüências e efeitos Elias (1989, especialmente o vol. 2).
deletérios. O projeto político do personalismo, 5 Para uma introdução ao pensamento simmeliano e para
especialmente na sua versão patrimonialista, é o o estudo de sua abordagem dos efeitos da economia
monetária sobre a personalidade individual, ver o con-
programa político hegemônico tanto dos ocupan- junto de textos da coletânea que organizei com Berthold
tes do poder quanto da oposição. Para o projeto Oelze (1998).
o
66 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 N 45

6 Essa mesma crítica de um “concretismo fora de lugar” foi 13 Essa dominação dos mais jovens foi tão característica
feita ao Habermas da década de 60 pela sua proposição nesse período que mereceu do sempre arguto Joaquim
de uma oposição não mediada entre ação estratégica e Nabuco o nome de “neocracia”. Ver Freyre (1990, p. 88).
ação interativa como correspondendo a “espaços” soci- 14 Aqui cabe observar que o preconceito contra o trabalho
ais distintos. Durante toda a década de 70 procurou manual, como todo preconceito, espraia-se tendencial-
Habermas uma articulação entre os níveis da ação social mente por todos os estratos sociais. Não obstante, os
e da ordem social de modo a esclarecer essa relação. O preconceitos possuem também força maior ou menor
resultado dessas investigações redundaram no seu Teo- dependendo do estrato social de que estamos falando,
ria da ação comunicativa, de 1981. Não obstante, o mormente para aqueles estratos que só “possuíam as
dualismo habermasiano ainda é, talvez, o ponto mais mãos” como instrumento de trabalho.
criticado de toda sua teoria sociológica. Ainda sobre a
“fallacy of misplaced concreteness” ver Parsons (1968, 15 Não é por acaso, portanto, que essa atitude pragmática
pp. 29, 589 e 753). em relação ao mundo foi desenvolvida nos EUA mais
que em qualquer outra sociedade do Ocidente.
7 Esse exemplo me foi sugerido por Marcelo Neves em
conversa acerca desse tema. 16 A perda de eficácia estrutural da teoria do valor-traba-
lho, como resultado do prodigioso progresso tecnológi-
8 A noção de “pessoa” é mais complexa e será discutida co do capitalismo depois da Segunda Guerra Mundial,
separadamente a seguir. na medida em que o trabalho científico altamente
9 A oposição correspondente mais comum é aquela entre qualificado aplicado à produção deixa de guardar qual-
individualismo possessivo e expressivo. quer relação de intercambialidade com o trabalho não
10 De resto, longe de ser uma característica folcloricamente qualificado, inspirou a mudança habermasiana do para-
brasileira, não seria a oposição entre casa e espaço digma do valor-trabalho para a “virada lingüística”
público hostil uma construção apenas possível no mun- (linguistische Wende). Ver, sobre este tema, especial-
do impessoalizado moderno? Não seria uma necessida- mente Habermas (1969, pp. 48-104). A pressuposição de
de especificamente contemporânea de países urbaniza- igualdade dos homens e mulheres não se dá mais
dos e industrializados a produção fantasiada ou real de porque todos trabalham, mas, agora, porque todos
uma oposição entre vida pública e vida íntima, repre- participam com iguais direitos do mesmo horizonte
sentando essa última uma espécie de “refúgio num lingüístico, prenhe de pressupostos e conseqüências
mundo sem coração” (título de um famoso livro de morais.
Christopher Lasch sobre o tema). Não seria a matéria- 17 A cidadania regulada seria, nessa linha de raciocínio,
prima dessa extraordinária e multifacetada fábrica de antes que um “achado de engenharia institucional” da
ilusões chamada “Hollywood” precisamente a habilida- Revolução de 30, como defende Santos (1998, p. 104),
de em manipular essa necessidade de todos nós, ho- uma espécie de elo tardio e impessoal de uma prática
mens e mulheres modernas, de “proximidade”, “afeto”, secular no nosso país.
“cumplicidade”, que a união romântica entre os sexos 18 Um argumento importante nesse contexto e que não
promete numa “casa” para dois? Casa na qual os futuros pode ser desenvolvido nos limites deste artigo é a tese,
filhos, amigos e parentes poderiam desfrutar de uma que defendo em detalhe no livro já citado, de que todo
sociabilidade oposta à da sociedade hostil fora de nós. processo histórico concreto de modernização foi seleti-
Por que chamar o sentimento de aconchego e de bem- vo, inclusive o caso da excepcionalidade americana.
estar que a vida da casa e da família promete, inclusive Isso significa que nenhuma sociedade concreta, nem
o desejo de que essa lógica seja a dominante na nossa mesmo a americana, logrou desenvolver todas as virtu-
vida, de brasileiro? Ele me parece, ao contrário, uma alidades do que chamamos “cultura ocidental”. Nesse
característica invariante das sociedades modernas. sentido, nosso processo de modernização é específico
11 Refiro-me ao escândalo envolvendo o ex-primeiro- apenas no seu grau de seletividade. Nossa sociologia do
ministro alemão Helmut Kohl amplamente divulgado personalismo, ao adotar um conceito indiferenciado de
pela imprensa. racionalismo ocidental, derivado diretamente do caso
12 A noção de “espírito do povo” é tributária da extraordi- concreto americano tomado como modelo absoluto,
nária influência do romantismo alemão na filosofia e nas tende a perceber o caso brasileiro, precisamente por
ciências sociais daquele país. O romantismo, em reação conta desse curto-circuito sociológico, como o “outro”,
ao iluminismo e ao universalismo de origem francesa e ou um “desvio” da modernidade. Ver Souza (2000, pp.
inglesa, enfatizou a singularidade e incomparabilidade 129-270).
tanto da personalidade individual quanto de culturas
singulares. Uma cultura é percebida como produzindo
um tipo específico de ser humano com características
tendencialmente incomparáveis. Para um estudo da
gênese histórica dessa concepção de mundo, assim
como para suas conseqüências para a singularidade
cultural e política alemã, ver Souza (2000, pp. 143-158).
A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA 67

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