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Conferências - Estudo Sobre Santa Catarina de Sena Os Paradoxos Da Santidade - GustavoCorcao PDF
Conferências - Estudo Sobre Santa Catarina de Sena Os Paradoxos Da Santidade - GustavoCorcao PDF
SENA
Gustavo Corção
PRIMEIRA PARTE
OS PARADOXOS DA SANTIDADE
I — O AMOR E O ÓDIO
Todos nós sabemos que o bem deve ser procurado e o mal evitado; e que
este fundamental discernimento, estandarte dos santos, é o mesmo que
carregamos em nossas pobres pelejas cheios de tropeços e vacilações.
Todos nós procuramos, sinceramente, fugir ao pecado mortal; mas muitas
vezes — ai de nós! — permitimos que o seu gosto e a sua saudade se
insinuem em nossos corações.
O que nos ensinam os santos, com palavras e obras, é que não basta traçar
na areia uma tênue linha que separe o bem do mal; e que é preciso,
resolutamente, entre os céus e os infernos, erguer muralhas de ódio, e
cavar abismos de amor. E o que nos ensina com particular insistência essa
moça de vinte e poucos anos, Catarina, filha do tintureiro Benincasa, de
Sena, é que devemos andar como os paladinos do Santo Sepulcro, entre
duas cruzes, no peito e nas costas: a cruz do santo ódio e a cruz do santo
amor.
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deixarmos levar pela ilusão de uma semelhança entre a santidade e
bondade natural que também, de certo modo, nos afasta de atos
reprováveis. A diferença é maior do que a semelhança. É enorme. Mesmo
sem tentar a exploração mais profunda da misteriosa conversação entre
uma alma e seu Criador, já poderemos apreciar, pelas manifestações
exteriores e visíveis, pelas fisionomias, pelos gestos, a imensa distância que
existe entre um quadro de virtudes naturais e a estrutura da alma dos
perfeitos.
É nesse sentido que se costuma dizer, com acerto, que temos os defeitos de
nossas qualidades. Diz-se, por exemplo, que o brasileiro é geralmente
bondoso e paciente, e pouco vingativo, porque é displicente na justiça.
Perdoa com facilidade, inclusive os homicidas, e principalmente os
delapidadores do patrimônio comum. A mole e simpática resultante desse
quadro de virtudes encolhidas não suporta a dilatação sem que um trágico
desequilíbrio se evidencie. Crescendo o edifício, logo aparece o aleijão, e
não é preciso esperar muito tempo pelas catastróficas conseqüências.
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Na santidade, ao contrário, o que logo se vê, com fulgurante evidência, é a
dilatação da alma e o alargamento dos extremos. A mansidão se vê
acompanhada da coragem; a temperança de um santo como Bento Labre,
que passa a vida inteira dizendo: pouco... pouco... , completa-se com um
infinito desejo de posse; a misericórdia se abraça com um ardente
sentimento de justiça [2]. As virtudes, que no homem ainda sujeito às leis
dos sentidos, ou mal libertado desse jugo, eram meras disposições
facilmente abaláveis (faciles mobiles), e sem conexão orgânica, tornam-se,
pela infusão da Caridade e pelo acréscimo dos dons, virtudes reais, forças
verdadeiras, dificilmente abaláveis (difficiles mobiles) organicamente e
harmoniosamente conexas. E, em lugar do tíbio e claudicante indivíduo que
apenas consegue fazer algumas coisas boas, à custa de compromissos,
demissões e pusilanimidades, vê-se então esta alma vivificada pela graça
abrir as grandes asas das virtudes que nos pareciam opostas e paradoxais,
erguer-se sem medo no largo vôo dos albatrozes. [3]
Sua própria mãe, a boa e turbulenta Monna Lapa, que tantos obstáculos
pusera às suas penitências, completou o paradoxo tornando-se sua filha e
vindo finalmente alistar-se entre os doidos que andavam em torno dessa
irresistível moça, quase menina. Seu confessor, Fr. Raimundo Cápua, dirigia-
a e era dirigido por ela, recebendo às vezes, da filha obediente e da mãe
exigente, cartas que abriam com este preâmbulo: Caríssimo e dolcissimo
padre, e negligente e ingrato figliuolo in Cristo dolce Gesú. [5]
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Tomando um exemplo entre muitos, eis o que disse ela por carta a Fr.
Raimundo Cápua quando teve notícia de seu esmorecimento em certa
empresa a que ela o enviara, e de seu recuo diante dos ferozes adeptos de
Clemente VII, o falso papa. Depois de algumas exprobrações,
alternativamente maternais e filiais, como só ela sabia fazer, terminava
assim a carta: [6]
“Ó meu pobre pai, como tua alma e a minha estariam felizes se,
com teu próprio sangue, tivesses cimentado uma pedra a mais
nos muros da Igreja! Choremos, pensando que por nossa falta de
coragem deixamos de merecer tamanho bem. E agora, deixemos
os nossos dentes de leite; e exercitemos os de adultos: os fortes
dentes do ódio e do amor. Revistamo-nos com a couraça da
Caridade e empunhemos o escudo da santa Fé. Como homens
feitos, corramos ao combate, e agüentemos os golpes, firmes
com uma cruz ao peito, e uma cruz às costas... E para que Deus
nos conceda esta graça, a ti, a mim, aos outros, comecemos
desde já a oferecer-lhe nossas lágrimas, e nosso desejo muito
doce, mas muito amargo por causa de nossas falhas que nos
privaram de tão grande bem. Eia pois, filho, afoga-te no sangue
do Cristo crucificado; banha-te no sangue; sacia-te no sangue;
inebria-te no sangue; protege-te, alegra-te e chora por ti mesmo,
no sangue; cresce e fortifica-te, no sangue; deixa a tua tibieza e
tua cegueira no sangue do Cordeiro imolado: e iluminado enfim,
corre, corre, meu viril cavalheiro, no encalço da honra de Deus,
do bem da Igreja, e da salvação das almas — no sangue.”
E termina esta carta com sua fórmula habitual: Altro non ti dico. Permane
nella santa e dolce dilezione di Dio. Gesú dolce, Gesú amore.
Um outro belo exemplo de seu ódio físico ao pecado pode ser encontrado na
expressão que usa, no Diálogo, e em algumas cartas, para caracterizar as
almas tíbias que se detém em meio do caminho, na Ponte da Salvação, e
acabam voltando ao antigo pecado. Fiel à genuína tradição, que vem dos
Padres, e do Evangelho, Catarina sabe muito bem que, na vida espiritual,
deter-se é regredir. Quem não avança, recua, porque — diz ela repetindo
Santo Agostinho — a alma não pode viver sem amor. E como o amor é
ímpeto e busca, e portanto o contrário de rotina e repetição uniforme,
quando esmorece o amor pelo sangue que nos valeu a redenção, prevalece
logo o amor próprio, fonte e princípio de todos os pecados. E quem não
avançar, deixando para trás, resolutamente, os despojos do homem velho,
então recua; e recua, diz a santa, como o cão que, depois de ter vomitado e
seguido seu caminho, volta para comer seu próprio vômito.
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Para Catarina, como para Luiz de França, a volta ao pecado, a recaída no
amor desregrado de si mesmo, a ofensa ao sangue do Cordeiro, tinham
repugnância maior que um vômito de cão; para ela, como para o santo rei,
era preferível acordar coberta de lepra do que ofender a Deus. Esse horror
instintivo que nós temos pela carne esfarinhada, intumescida e purulenta,
esse medo que se esconde em nossos subterrâneos e vem povoar nossos
piores pesadelos, dá uma idéia ainda imperfeita do horror da santa pelo
pecado. Por um dom especial, ela sentia-lhe o mau cheiro: o amor próprio, o
orgulho, a concupiscência, eram para ela tão sufocantes como as maiores
podridões físicas. Sentia-os com intenso sofrimento, chegando ao desmaio.
É claro que uma pessoa assim, que arvorava com tamanho denodo o duplo
estandarte do ódio e do amor, não podia colher onde passasse, senão amor
ou ódio. Diante dela era impossível a neutralidade. Era impossível tentar
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essa conciliação do preto com o branco que tanto se invoca nos tempos de
indiscernimento e pusilanimidade. Aquela moça de vinte e poucos anos,
vestida de mantellata, acompanhada de uma heterogênea dúzia de filhos,
um dos quais era seu pai no espírito, e outra sua própria mãe no sangue,
onde passasse deixava um sulco e provocava uma opção. Quem não
estivesse com ela estava contra ela.
Tão volumosa tornou-se com o tempo a onda dos convertidos que foi
preciso obter uma bula de Gregório XI designando três confessores
dominicanos para atender aos penitentes da escola de Catarina. E às vezes
esses confessores não davam vazão, permanecendo noite e dia no
confessionário.
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desregramentos daquela falsa virgem que se fazia de paciente e santa para
melhor disfarçar sua devassidão.
Dias depois, porém, ela iria ainda acrescentar uma prova concreta, física,
horrorosa, de seu ódio ao pecado e de seu amor à bendita paixão do Cristo
Jesus; e foi a própria Andréa, já arrependida, já convertida, quem transmitiu
o fato aos diversos cronistas que, com pequenas variantes, no-lo deixaram
narrado.
Mas os tempos em que viveu Catarina eram mais duros, mais violentos, e a
mesma santa paciência se manifestará de um modo diferente. Um dia,
quando mais acresceram as recriminações e mais nauseabundas as
enormes chagas purulentas, Catarina sentiu que o tentador lhe inculcava
pensamentos de desânimo e irritação; e então, não tendo tempo a perder
com recursos mais delicados, possuída de um santo ódio por si mesma, por
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seu egoísmo, por suas vacilações, colheu num vaso o sangue e o fétido pus
da cancerosa, e consumou, diante da pobre enferma, por amor à bendita
paixão do Senhor, o que o Pe. Gardeil chamará um magnifique repas [9].
II — DIFICULDADES
Para Fawtier, esse Suplementum, bem como o opúsculo Miracula, não têm
nenhum valor histórico. Cafferini é tratado com extremo rigor pela crítica
que chega a lhe atribuir a invenção dos estigmas, a que esse dominicano
teria sido levado pela rivalidade, que naquele tempo era áspera e crua,
entre a sua ordem e a dos franciscanos. Chegou-se também a provar, a
custa de um pedaço de pergaminho achado em Sena e datado de 1352, que
Catarina Benincasa já era terceira dominicana numa época em que,
segundo a cronologia de Fr. Raimundo Cápua, ela teria cinco anos. O
cientista conclui então, um pouco apressadamente, que o confessor
remoçara a santa de dez anos, pelo menos, afim de fazê-la morrer com a
idade de Cristo.
De todo esse debate que durante algum tempo assustou alguns timoratos
devotos da virgem senense, que não viam com bons olhos aquela avidez
dos homens de ciência pela veracidade dos fatos, resultou num
incontestável lucro que se traduziu numa maior nitidez da fisionomia
humana da santa. Para começar, a atuação política de Catarina, sem se
tornar insignificante como pretende Fawtier, perde o caráter de iluminada
infalibilidade que lhe empresta a hagiografia convencional. E descobrem-se
importantes mutilações nas suas cartas.
O fato é que, para 381 cartas atribuídas à santa, existem somente oito
originais de autenticidade incontestável. Ninguém ainda pretendeu provar,
seriamente, que as outras cartas não são de Catarina, ou que Catarina não
existiu; mas é incontestável que as cartas sofreram mutilações. O original
de uma carta dirigida a Néri de Landocio (outro discípulo da santa, que será
um de seus secretários na elaboração do Diálogo) prova que foi cortado,
depois da expressão habitual “altro non ti dico”, com que a santa
geralmente encerrava suas exortações, um texto duas vezes mais extenso
do que a carta até então conhecida. No trecho cortado Catarina falava de
vinte e quatro carlinos enviados por alguns benfeitores de Nápoles (aos
quais Néri deveria agradecer por ela), de um projeto de viagem, de notícias
recebidas dos amigos, e do aluguel de uma casa em Roma.
Pedro tem o primeiro sinal da vitória do Cristo nesses panos que vê quando
se debruça na borda do sepulcro; os peregrinos de Emaús crêem quando o
Senhor abençoa o pão; São Tomé reconhece o Cristo pelas chagas, vendo-
as e pondo-lhes em cima o dedo. E foi bom. Esse traço de incredulidade do
apóstolo, que se tornou proverbial, foi bom para nós, por dois excelentes
motivos. Primeiro porque nos ensinou a reconhecer a presença de Deus em
nossa alma pelo toque das chagas, esse bendito sinal; segundo, porque nos
legou uma bem-aventurança especialmente nossa, muito nossa, e de que a
própria Virgem Santíssima está excluída: bem-aventurados os que crerem
sem ter visto...
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Mas é em São Paulo que encontramos um sinal de humanidade mais
parecido com aquelas moedas e alugueis suprimidos das cartas de Santa
Catarina. Na segunda epístola a Timóteo, depois de lavrar seu testamento, o
apóstolo pede que tragam o saco que ficou em Troas, em casa de Carpus, e
lembra também que não esqueçam os rolos de manuscritos, e os
pergaminhos. Não houve, felizmente, um prior zeloso que riscasse na
epístola esse bendito saco, esses rolos benditos, que nos fazem bater mais
depressa o coração, e sem os quais estaria incompleta a palavra de Deus. É
por esses pequenos sinais, aqueles panos, aquele pão, aqueles rolos, que
ficamos sabendo, de fato, experimentalmente, cordialmente, no sangue,
que essa comprida história cheia dos mais prodigiosos personagens, é,
afinal de contas, a nossa própria história.
III — FISIONOMIA
Contam que ela era faladeira, como qualquer boa italiana. Se era capaz de
passar dias no mais completo silêncio, era também capaz de passar a noite
inteira, entre os seus discípulos, sentada no chão, falando, falando, falando.
E zangava-se quando um deles cabeceava de sono. Nas horas mais
impróprias ditava à rainha de Nápoles e ao rei de França cartas tão utópicas
e tão ineficazes como as cartas que o dr. Sobral Pinto dita para os nossos
ministros de estado.
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Apesar dos rigorosos jejuns, era certamente uma bonita moça, alta, pronta
nos gestos, rápida no andar; e era por força alegre, mesmo porque,
segundo São Francisco de Salles, “um saint triste est um triste saint”.
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Sua alma era um navio. Se o leme estava atrás na popa da obediência, e o
timão entregue a quem de direito, então, sem hesitações e sem medo, o
esporão de proa podia avançar impetuosamente. E o seu grito de guerra, Io
voglio!, com sua formidável sonoridade não era outra coisa senão o estuário
caudaloso do rio nascido em fonte humilde entre sussurros de virgem, de
noiva junto de sua ermida, à sombra dos olivais.
Permitam que lhes conte, como puder, uma pequena e belíssima história
em que essa virgem diz: “eu quero”, em circunstâncias deveras
extraordinárias. Mas como essa história passou-se junto a um cadafalso,
deixem-me abrir aqui um parêntese.
Diante de todos esses exemplos, eu imagino que Nosso Senhor deseja nos
mostrar, como aliás já o fez na parábola do publicano, que os ladrões, as
prostitutas e os assassinos, estão muitas vezes mais próximos de Sua
misericórdia do que o honesto cidadão que é saudado nas praças com
respeito.
Que estrado é este em que o martelo bate e o serrote canta, fora dos muros
da cidade? Que poste é este, de forma tão esquisita, que estão firmando no
chão?
Era uma noite como não houve noite igual; uma noite metida à força, cunha
de treva e de dor, na claridade do dia. A terra tremera e um crepe espesso
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caíra sobre o mundo. O Homem das Dores, náufrago das trevas, está
suspenso no ar. Suspenso pelas chagas. Os discípulos fugiram; Pedro
negara três vezes; e entre as sombras que se movem em baixo, esquivas e
medrosas, mal se percebe o vulto ereto e imóvel da mãe dolorosa. O
Homem das Dores está suspenso, puxado para cima, arrancado do chão,
isolado, perdido no meio das trevas.
De repente ouve uma voz. Não vem do chão, pois os discípulos fugiram, a
mãe dolorosa guarda o silêncio e os soldados de Roma murmuram palavras
surdas que mal se distinguem. A voz que se ouve, isto é, que Ele ouve, vem
do lado. Vem da mesma altura, da mesma treva, da mesma dor. E logo, do
outro lado, outra voz. Entre a terra e o céu, começava o espantoso colóquio
das cruzes.
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Em verdade eu te digo, hoje estarás comigo no paraíso.
V — IO VOGLIO
O episódio que lhes vou contar, da vida de Santa Catarina, está ligado ao
drama das cruzes que falavam, e está associado também ao paradoxo que
faz tantas vezes dizer Io voglio, quem tinha para sempre renunciado à sua
própria vontade.
Narra ela mesma este episódio numa carta dirigida a Fr. Raimundo Cápua,
[14] que começa assim:
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mundo os dons que recebera no segredo de seu retiro, e que poderíamos
chamar apostólica ou ativa.
Mas, a bem dizer, não há duas partes realmente distintas na vida da santa,
nem é muito exato dizer, que ela foi ora contemplativa e ora ativa. Foi
sempre ambas as coisas. Se nos atos, nos fatos e nos episódios há margem
para se estabelecer tal distinção, no âmago mesmo do processo de
santificação subsistem sempre os dois extremos do indispensável paradoxo.
Não há santo sem vida de oração e sem vida de apostolado. O que pode
acontecer é que um desses elementos seja menos manifesto, ou esteja
escondido no mistério, parecendo que predomina, aqui a atividade como no
caso de São Vicente de Paula, ali a contemplação como no caso de Santa
Teresinha. A imitação de Cristo, essência da santidade, manifesta-se às
vezes em atos aparentemente diversos e até contraditórios. São João da
Cruz e Santa Tereza D’Ávila encontraram-se um dia diante de um pêssego.
Era uma bela fruta, madura, perfumada, apetitosa. São João da Cruz
absteve-se, por amor de Deus; Santa Tereza comeu-a, por amor de Deus. A
mesma fruta no mesmo momento, pode ser objeto de mortificação para um,
e um benedicite para outro.
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E depois destas palavras desapareceram todos, ficando Catarina sozinha em
sua cela, enquanto lá fora, na cidade, o povo se divertia ruidosamente no
carnaval.
Esta transição, ilustrada de tal modo, serve para nos mostrar que o mistério
da santidade tem profundas semelhanças com o mistério da virgindade
maternal da Igreja. A partir daquele dia, sendo sempre virgem, começava a
história de sua maternidade; e não deixa de ser estranho que ninguém,
homens, mulheres, moços e velhos, achasse impróprio o tratamento de mãe
que todos davam, espontaneamente, àquela moça de vinte anos que
começava um dos mais extraordinários apostolados que jamais existiu.
Não caberia aqui uma relação, mesmo resumida, de seus feitos. Já vimos
meia dúzia de episódios, escolhidos entre centenas, e talvez mal escolhidos.
É quase certo que algum leitor nos escreverá perguntando porque não
contamos o caso da leprosa, as curas milagrosas, a conversão de outros
dois condenados, a morte mística, os espantosos jejuns, ou porque não nos
alongamos um pouco mais no relato da poderosa influência que essa moça
exerceu sobre dois papas, Gregório XI e Urbano VI.
Nosso objetivo, mais modesto, foi o de assinalar, nos seus traços principais,
o claro escuro dessa impressionante figura, ilustrando a idéia do paradoxo
da santidade. Aproximando-nos do fim de sua curta vida, vemos crescer, em
contraste com os primeiros anos de recolhimento e silêncio, o zelo
apostólico, cada vez mais intenso e extenso, por cada um de seus filhos e
sobretudo pela Santa Igreja, a doce Esposa do Cristo.
Nos dias do grande cisma vamos encontrá-la a fazer seu testamento. Além
das cartas dispersas, a iletrada Catarina vai deixar-nos um livro, o seu Livro,
ditando em êxtases cerca de setecentas páginas em cinco ou seis dias.
Certa manhã, depois da missa, ela avisou aos secretários que estivessem
prontos para escrever. A data provável é o dia 9 de outubro de 1378, [16] o
ambiente histórico é o mais perturbado possível. Mal terminada a querela
entre a Santa Sé e a cidade de Florença, estoura o cisma com a eleição de
Clemente VII a 20 de setembro, alegando os impostores que a eleição de
Urbano fora viciada pela coação e pelo terror. Sufocado pelos
acontecimentos, Urbano manda chamar Catarina. Desculpa-se ela,
mandando dizer que não pode ir a Roma pois já não é pouca a maledicência
que se espalha em Sena por causa de suas constantes viagens. Insiste o
papa, chamando-a agora em nome da santa obediência. Catarina tem trinta
anos como se tivesse vivido trezentos. Está exausta.
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Consumida pelo jejum quase total e pelo fogo devorante de seu amor. A boa
Mona Lapa, sua mãe e sua filha, lamenta-se em altos gritos; os discípulos se
entreolham e adivinham que está próximo o desenlace daquela incrível
história.
É nessas circunstâncias que Catarina dita o seu Livro, que será mais tarde
chamado “Diálogo”. Naquele sábado de manhã, depois da missa votiva a
Nossa Senhora, ela põe-se a ditar em êxtases. São três os secretários que
se revezam: Barduccio Caniggiani, Stefano Maconi e Neri Pagliaresi. A cena
passa-se numa pequena ermida, próxima de Sena, no tempo das colheitas.
Muita gente viera dos arredores, enchendo o pequeno recinto,
acotovelando-se na porta, e é fácil adivinhar que, apesar do grande respeito
pela vidente, os secretários não conseguiam obter silêncio desses
irrequietos italianos. Dura horas cada sessão. Catarina, no centro da cela,
mais sentada do que ajoelhada, com o corpo arqueado, o pescoço
distendido para trás, as mãos crispadas, o rosto em brasa, as fontes
alagadas de suor, ditava em voz rápida, monótona, às vezes alteada até se
tornar um grito lancinante.
Nós também, terminamos aqui. Sem fôlego para a acompanhar mais longe,
até o dia em que ela pede a Deus que a esmague com o peso da Igreja, e
até o dia em que entrou na vida eterna, aos 33 anos, deixando à Igreja o
encargo de repetir no dia de sua festa, hoje, aquele intróito: “Dilexisti
justitiam et odisti iniquitatem”, nós também, no termo deste pequeno
estudo, e aproveitando a oportunidade desta reunião, tivemos a idéia de
imitar o bom e esperto Stefano Maconi, agarrando-nos ao pé do discípulo
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como ele mesmo agarrou-se ao santo pé de sua dolce mamma. E diremos,
nós também: rezai, rezai por vosso inutilíssimo irmão pecador.
Notas:
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[11] Johannes Joergensen. Santa Catarina de Sena. Trad. Maria Cecília de
M. Duprat. Vozes de Petrópolis.
[13] Pe. Germano Estanislau — Santa Gema Galgani. Trad. Pe. J. Oliveira
Dias S.J., Porto, 1949.
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