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A CIÊNCIA DO COSTUME1

Ruth Benedict

O que distingue a Antropologia entre as Ciências Sociais é que ela abrange,


num estudo sério, outras sociedades que não a nossa. Para os seus objetivos
qualquer regulamentação social de casamento e reprodução é tão significativa
quanto a nossa, embora seja relativa aos Dyaks do mar e não tenha possível
relação histórica com a da nossa civilização. Para o antropólogo, os nossos
costumes e os de uma tribo da Nova Guiné são dois possíveis esquemas sociais
para se tratar um problema comum, e enquanto ele permanecer antropólogo é
obrigado a evitar dar mais peso a um do que a outro. Ele está interessado no
comportamento humano, não por ter sido ele moldado por uma tradição, a nossa,
mas por ter sido moldado por qualquer tradição, seja qual for. Ele está interessado
na extensa escala do costume que se encontra com várias culturas, e o seu objetivo
é compreender o modo pelo qual essas culturas mudam e se diferenciam, as
diferentes formas através das quais elas se exprimem e a maneira pela qual os
costumes de quaisquer povos funcionam nas vidas dos indivíduos que os compõem.
Ora, o costume não tem sido comumente considerado como assunto muito
momentoso. Achamos que as fermentações Íntimas do nosso próprio cérebro são a
única coisa digna de investigação, e temos o hábito de pensar que o costume é o
comportamento na sua maior banalidade. Na realidade, dá-se justamente o
contrário. O costume tradicional, considerado em todo o mundo, é um conjunto de
comportamento pormenorizado mais espantoso do que o que qualquer pessoa pode
jamais desenvolver em ações individuais por mais aberrantes que sejam. Entretanto,
esse é um aspecto um tanto trivial da questão. O fato de primordial importância é o
papel predominante que o costume representa na experiência e na crença e as
variedades muito grandes que ele pode manifestar.
Homem algum olha para o mundo como o faziam os homens primitivos. Ele o
vê arranjado por um conjunto definido de costumes e instituições e modos de
pensar. Mesmo em suas investigações filosóficas não pode ele penetrar atrás

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Capítulo I, "The Science of Custom", pp, 1-20, do livro Patterns 0f Culture (Bostou: Houghton Mifflin Company,
1934), de Ruth Beuedict. Traduzido por Olga Dória e publicado aqui com a permissão, gentilmente concedida, do
autor e de Houghton Mifflin Company.
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desses estereótipos; seus próprios conceitos do verdadeiro e do falso ainda serão
referentes aos seus costumes tradicionais particulares. John Dewey disse com toda
seriedade que a parte representada pelo costume no moldar o comportamento do
indivíduo em comparação com o que possa fazer o indivíduo para afetar o costume
tradicional, é como a proporção que existe entre o vocabulário total de sua língua
materna e as palavras da sua própria linguagem infantil que são adotadas no
vernáculo de sua família. Quando se estudam seriamente as ordens sociais que têm
tido a oportunidade de se desenvolverem autonomamente, essa imagem não se
torna mais do que uma observação exata e real. A história de vida de um indivíduo é
primeiro e antes de tudo uma acomodação aos padrões tradicionalmente
transmitidos em sua comunidade. Desde o momento do seu nascimento, os
costumes em que ele nasce dão forma à sua experiência e ao seu comportamento.
Quando chega a falar, ele é a pequena criatura de sua cultura, e quando cresce e
pode tomar parte nas atividades dessa mesma cultura, os hábitos desta são os seus
hábitos, suas crenças são as suas crenças, suas impossibilidades são as suas
impossibilidades. Toda criança que nasce em seu grupo compartilhará com ele
esses costumes e nenhuma criança que nasça no lado oposto do globo poderá
jamais alcançar a milésima parte desses costumes. Não há problema social que
mais se nos imponha compreender do que esse do papel do costume. Até que
tenhamos compreendido bem suas leis e variedades, os principais fatos
complicados da vida humana têm que permanecer ininteligíveis.
O estudo do costume pode ser proveitoso somente depois que tenham sido
aceitas certas proposições preliminares e que algumas dessas proposições tenham
sido violentamente combatidas. Em primeiro lugar qualquer estudo científico requer
que não se dê mais peso a um ou outro dos itens da série escolhida para
consideração. Em todos os campos menos passíveis de controvérsia, como o
estudo dos cactus ou das térmitas ou a natureza das nebulosas, o método
necessário de estudo é agrupar o material que interessa e tomar nota de todas as
possíveis formas e condições que variem. Desse modo temos aprendido tudo
quanto sabemos das leis da Astronomia, ou sobre os hábitos dos insetos sociais,
digamos. É somente no estudo do próprio homem que as principais Ciências Sociais
se limitaram ao estudo de uma variação local, o da civilização ocidental.
A Antropologia foi, por definição, impossível enquanto essas distinções entre
nós e o homem primitivo, entre nós e o bárbaro, entre nós e o pagão, oscilaram nos
espíritos das pessoas. Foi necessário primeiro chegar àquele grau de sofisticação
em que não mais colocávamos a nossa própria crença contra a superstição do
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nosso vizinho. Foi necessário reconhecer que aquelas instituições que se baseiam
nas mesmas premissas, digamos as sobrenaturais, precisam ser consideradas em
conjunto, a nossa própria entre as demais.
Na primeira metade do século dezenove esse postulado elementar da
Antropologia não podia ocorrer à mais esclarecida pessoa da civilização ocidental. O
homem, em toda a sua história, tem defendido a sua qualidade sui-generis, como
uma questão de honra. Ao tempo de Copérnico, essa reivindicação de supremacia
era tão ampla, que abrangia mesmo a terra em que vivemos, e o século quatorze
recusou-se com ardor a colocar este planeta subordinado a um lugar no sistema
solar. Ao tempo de Darwin, tendo cedido o sistema solar ao inimigo, o homem lutou
com todas as armas ao seu alcance pela qualidade sui-generis da alma, atribulo
desconhecido dado por Deus ao homem de tal maneira que negava a sua
ascendência no reino animal. Nem a falta de continuidade no argumento, nem as
dúvidas sobre a natureza desta "alma", nem mesmo o fato de não ter o século XIX
tido a mínima preocupação de defender sua paridade com qualquer grupo de
alienígenas - nenhum desses fatos importava contra o alto excitamento que
esbravejava em virtude da indignidade da evolução proposta contra a concepção da
qualidade sui-generis do homem.
Podemos bem contar ambas essas batalhas como ganhas - se ainda não,
pelo menos em breve; mas a luta apenas se concentrou numa outra frente. Estamos
bem dispostos a admitir agora que a circunvolução da terra em torno do sol ou a
ascendência animal do homem, pouco ou nada têm que ver com a qualidade sui-
generis de nossas realizações humanas. Se habitamos por acaso um planeta entre
uma miríade de sistemas solares, tanto maior é a nossa glória, e se todas as mal
classificadas raças humanas são ligadas pela evolução ao animal, as diferenças que
se podem provar entre nós mesmos e elas são tanto mais extremas e a qualidade
sui-generis de nossas instituições tanto mais extraordinária. Mas nossas realizações,
nossas instituições são únicas; são de uma ordem diferente daquelas das raças
inferiores e devem ser protegidas a todo custo. De sorte que hoje, quer se trate de
imperialismo, ou de preconceito racial, ou de uma comparação entre o cristianismo e
o paganismo, estamos ainda preocupados com a qualidade sui-generis, não das
instituições humanas do mundo em geral, com a qual, aliás, ninguém jamais se
incomodou, mas com as nossas próprias instituições e realizações, com a nossa
própria civilização.
A civilização ocidental, por causa de circunstâncias históricas fortuitas, tem se
espalhado mais amplamente do que qualquer outro grupo local por enquanto
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conhecido. Ela tem se padronizado na maior parte do globo e temos sido levados,
portanto, a aceitar uma crença na uniformidade do comportamento humano, crença
essa que em outras circunstâncias não teria surgido. Mesmo os povos muito
primitivos são algumas vezes muito mais conscientes do que nós do papel dos
traços culturais, e com boa razão. Eles tiveram uma experiência íntima de culturas
diferentes. Viram sua religião, seu sistema econômico, suas leis matrimoniais,
sucumbir diante da religião, do sistema econômico e das leis matrimoniais do
homem branco. Sacrificaram uma e aceitaram a outra, muitas vezes de modo bem
incompreensível, mas eles bem sabem que existem modalidades variantes da vida
humana. Algumas vezes atribuirão eles características dominantes do homem
branco à sua competição comercial, ou à sua instituição de guerra, de modo muito
semelhante ao do antropólogo.
O homem branco teve uma experiência diferente. Talvez nunca tivesse visto
um estranho, a não ser o estranho que já foi europeizado. Se tem viajado, muito
provavelmente tem percorrido o mundo sem jamais deter-se fora de um hotel
cosmopolita. Pouco conhece de quaisquer modos de viver a não ser o seu. A
uniformidade de costume, de perspectiva, que vê espalhada em torno de si parece-
lhe bastante convincente e oculta-lhe o fato de que se trata afinal de contas de um
acidente histórico. Ele aceita sem maior dificuldade a equivalência da natureza
humana e os seus próprios padrões culturais.
Entretanto, a grande difusão da civilização branca não é circunstância
histórica isolada. O grupo polinesiano em época relativamente recente, espalhou-se
de Ontong, Java ate a Ilha de Páscoa, do Havaí até a Nova Zelândia e as tribos de
língua Bantu espalharam-se do Saara até a África do Sul. Mas em caso algum
consideramos esses povos como sendo mais do que uma enorme variação local da
espécie humana. A civilização ocidental teve todas as suas invenções em matéria de
transporte e todas as suas muito distanciadas disposições comerciais para apoiar a
sua grande difusão e é fácil compreender historicamente como isto se deu.
As conseqüências psicológicas dessa difusão da cultura do branco tem sido
fora de toda proporção para o materialista. Essa difusão cultural mundial tem nos
protegido como o homem jamais fora protegido antes, da necessidade de levar a
sério a civilização de outros povos; ela tem dado à nossa cultura uma universalidade
maciça a qual de há muito tínhamos cessado de atribuir à história e a qual
consideramos mais como necessária e inevitável. Interpretamos nossa dependência,
em nossa civilização, da competição econômica, como prova de que esse é o
principal motivo com o qual a natureza humana pode contar. Ou consideramos o
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comportamento das criancinhas tal como é moldado em nossa civilização e é
consignado em clínicas infantis, como psicologia infantil ou o modo pelo qual o
jovem animal humano é obrigado a comportar-se. Tanto faz que se trate de uma
questão de nossa ética ou de nossa organização de família. É a inevitabilidade de
cada motivo familiar que defendemos, tentando sempre identificar os nossos
próprios modos locais de comportar-nos com o Comportamento, ou os nossos
próprios hábitos socializados com a Natureza Humana.
Ora, o homem moderno fez dessa tese um dos resultados vivos de seu
pensamento e de seu comportamento prático, mas as fontes dessa tese remontam
àquilo que parece ser, pela sua distribuição universal entre os povos primitivos, uma
das primeiras distinções humanas, a diferença em espécie entre o "meu próprio"
grupo fechado e o estranho. Todas as tribos primitivas concordam em reconhecer
essa categoria dos estranhos, aqueles que não só se acham fora dos dispositivos do
código de moral que prevalece dentro dos limites do próprio povo de alguém, mas
aos quais é sumariamente negado um lugar em qualquer parte da espécie humana.
Um grande número de nomes de tribos comumente usados - Zuñi, Déné, Kiowa, e
outros, são nomes pelos quais os povos primitivos se conhecem a si, e são somente
os termos nativos para designar “os seres humanos", isto é, eles mesmos. Fora do
grupo fechado não existem seres humanos. E isto é a despeito do fato de que, de
um ponto de vista objetivo, cada tribo é circundada por povos que compartilham
suas artes e invenções materiais, assim como práticas elaboradas que nasceram em
virtude de um mútuo dar e tomar de comportamento de um povo para o outro.
O homem primitivo nunca procurava examinar o mundo e via a "humanidade"
como um grupo e sentia a sua causa comum à sua espécie. Desde o começo ele foi
um provinciano que erguia alto as barreiras. Quer se tratasse de escolher uma
esposa ou de caçar uma cabeça, a primeira e importante distinção era entre o seu
próprio grupo humano e aqueles que se achavam fora do seu território. O seu
próprio grupo e todas as suas maneiras de comportar-se eram sui-generis.
Assim o homem moderno − que se diferencia em Povo Escolhido e
estrangeiros perigosos, grupos dentro de sua própria civilização genética e
culturalmente relacionados entre si como quaisquer tribos das matas australianas o
são entre si − tem a justificativa de uma vasta continuidade histórica atrás de sua
atitude. Os Pigmeus têm feito as mesmas reivindicações. Não é provável que nos
desembaracemos facilmente de um traço humano tão fundamental, mas podemos
pelo menos aprender a reconhecer a sua história e suas multiformes manifestações.

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Uma dessas manifestações de que muitas vezes se fala como sendo primária
e motivada antes por emoções religiosas do que por esse provençalismo mais
generalizado, é a atitude que se manteve universalmente nas civilizações ocidentais
enquanto a religião permaneceu um produto vivo entre elas. A distinção entre
qualquer grupo fechado e povos de fora, torna-se, em termos de religião, a que
existe entre os verdadeiros crentes e os pagãos. Entre essas duas categorias, du-
rante milênios, não houve pontos de contato comum. As idéias ou instituições que
eram mantidas por uma, não eram válidas na outra. Todas as instituições se viam,
antes, em termos opostos, segundo pertenciam a uma ou outra das religiões muitas
vezes superficialmente diferenciadas: de um lado era uma questão de Verdade
Divina e de verdadeiro crente, de revelação e de Deus; de outro lado era uma
questão de erro mortal, de fábulas, de danados e de diabos. Não se podia tratar de
equiparar as atitudes dos grupos opostos e portanto não se podia tratar de
compreender, por dados objetivamente estudados, a natureza desse importante
traço humano, a religião.
Sentimos uma justificada superioridade quando lemos uma descrição como
essa de atitude religiosa padrão. Pelo menos nos descartamos desse absurdo, e
aceitamos o estudo da religião comparativa. Mas considerando o escopo que uma
atitude semelhante tem tido em nossa civilização na forma de preconceitos raciais,
por exemplo, somos justificados em ter um pouco de ceticismo quanto a ser a nossa
sofisticação em matéria de religião devida ao fato de termos ultrapassado a
infantilidade ingênua, ou simplesmente ao fato de que a religião já não é a área da
vida onde são travadas as importantes batalhas modernas. Nos produtos realmente
vivos de nossa civilização parece que estamos longe de ter ganho o desprendimento
que alcançamos em tão grande escala no campo da religião.
Há outra circunstância que fez do estudo sério do costume uma disciplina de
interesse tardio e muitas vezes sem entusiasmo e que é uma dificuldade mais árdua
de transpor do que aquelas que acabamos de mencionar. O costume não desafiou a
atenção dos teóricos sociais porque ele era a verdadeira essência do seu próprio
modo de pensar: ele era a lente sem a qual eles nada podiam ver. Precisamente na
proporção em que era fundamental, tinha ele a sua existência fora do campo da
atenção consciente. Não há nada de místico acerca dessa cegueira. Quando um
estudioso reúne um vasto número de dados para um estudo de créditos
internacionais, ou sobre o processo de ensino, ou sobre o narcisismo como um fator
de psiconeuroses, é nesse corpo de dados e através dele que atua o economista ou
o psicólogo ou o psiquiatra. Ele não considera o fato de existirem outras moda-
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lidades sociais em que todos os fatores sejam, talvez, arranjados diferentemente.
Isto é, ele não considera o condicionamento cultural. Vê o traço que está estudando
como se tivesse manifestações conhecidas e inevitáveis, e projeta essas
manifestações como absolutas porque elas constituem todo o material com o qual
ele tem de pensar. Identifica as atitudes locais de 1930 com a Natureza Humana, a
sua descrição com a Economia ou a Psicologia.
Praticamente, isso muitas vezes não tem importância. Nossos filhos precisam
ser educados na nossa tradição pedagógica, e o estudo do processo de ensino em
nossas escolas é de capital importância. Há a mesma espécie de justificativa para o
dar-de-ombros com que muitas vezes saudamos uma discussão sobre outros
sistemas econômicos. Afinal de contas, precisamos viver dentro do arcabouço do
meu e do teu que a nossa própria cultura institucionaliza.
Isto é verdade, e o fato de que as variedades de cultura podem ser melhor
discutidas segundo a sua existência no espaço, dá colorido à nossa indiferença. Mas
é somente a limitação de material histórico que evita que sejam tirados exemplos da
sucessão de culturas no tempo. Não poderíamos, se quiséssemos, escapar a essa
sucessão. E quando olhamos para trás mesmo uma geração, concebemos até que
ponto a modificação teve lugar, algumas vezes no nosso mais íntimo
comportamento. Por enquanto essas modificações têm sido cegas, e nós só
podemos registrar retrospectivamente o resultado de circunstâncias. Exceto a nossa
má vontade cm encarar a mudança cultural em questões íntimas até que ela nos
seja imposta, não seria impossível tomar uma atitude mais inteligente e diretiva. A
resistência é em grande parte um resultado da nossa má compreensão das
convenções culturais e especialmente uma exaltação daquelas que acontece perten-
cerem à nossa nação e à década que atravessamos. Um diminuto conhecimento de
outras convenções e um conhecimento de quão várias elas podem ser, muito fariam
para promover uma ordem social racional.
O estudo de diferentes culturas tem outra influência importante sobre o
pensamento e o comportamento de nossos dias. A existência moderna tem forçado
o contato íntimo de muitas civilizações, e no momento a reação esmagadora dessa
situação é o nacionalismo e o esnobismo racial. Nunca houve tempo em que a
civilização tivesse maior premência de indivíduos genuinamente cônscios da cultura
para poderem ver com objetividade o comportamento socialmente condicionado de
outros povos, sem temor e recriminação.
O desprezo pelo estrangeiro não é a única solução possível do atual contato
de raças e nacionalidades nos Estados Unidos. Não é nem mesmo uma solução
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cientificamente fundada. A tradicional intolerância anglo-saxônica é um traço de
cultura, local e temporal, como qualquer outro. Nem mesmo um povo como o
espanhol, cujo sangue e cultura é quase o mesmo, tem tido essa intolerância, pois o
preconceito racial nos países povoados pelos espanhóis é uma coisa inteiramente
diferente do que se dá nos países dominados pela Inglaterra e pelos Estados
Unidos. Neste ultimo país é óbvio que não se trata de uma intolerância dirigida
contra a mistura de sangue de raças biologicamente bem separadas, pois há
ocasiões em que o excitamento se eleva tanto contra o católico irlandês em Boston,
ou contra o italiano nas cidades industriais de New England, quanto contra o oriental
na Califórnia. É a velha distinção do "nosso grupo" e do "grupo alheio", e se
levarmos avante a tradição primitiva neste assunto, teremos muito menos desculpa
do que as tribos selvagens. Temos viajado, orgulhamo-nos da nossa sofisticação.
Mas temos deixado de compreender a relatividade dos hábitos culturais e
permanecemos privados de muito proveito e prazer em nossas relações humanas
com povos de padrões diferentes e dos quais desconfiamos em nossos tratos com
eles.
O reconhecimento da base cultural do preconceito racial é necessidade
premente na atual civilização ocidental. Chegamos ao ponto de alimentar
preconceito de raça contra os irlandeses, nossos irmãos de sangue, e de falar da
inimizade da Noruega e da Suécia, como se esses países representassem povos de
sangue diferente. A chamada "linha de raça", durante uma guerra em que a França e
a Alemanha lutam em lados opostos, é mantida para dividir o povo de Baden do da
Alsácia, embora fisicamente ambos pertençam à sub-raça alpina. Numa era de
movimentos livres de povos e de casamentos mistos na ascendência dos melhores
elementos da comunidade, pregamos sem pejo o evangelho da raça pura.
À isto a Antropologia dá duas respostas. A primeira diz respeito à natureza da
cultura e a segunda diz respeito à natureza da herança. A resposta quanto à
natureza da cultura faz-nos retroceder às sociedades pré-humanas. Existem
sociedades em que a natureza perpetua o modo de comportamento mais superficial
por meio de mecanismos biológicos, mas essas não são as sociedades dos homens,
mas sim as dos insetos sociais. A formiga-rainha, removida 'para um ninho solitário,
reproduzirá cada traço de comportamento sexual, cada detalhe do ninho. Os insetos
sociais representam a Natureza numa disposição em que ela não deixa nada ao
acaso. O padrão de toda a estrutura social é atribuído ao comportamento instintivo
da formiga: Não há probabilidades maiores de que as classes sociais de uma
sociedade de formigas ou que os seus padrões de agricultura sejam perdidos pelo
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isolamento de uma formiga do seu grupo, do que de deixar uma formiga de
reproduzir a forma de suas antenas ou a estrutura de seu abdômen.
Aconteça o que acontecer, a solução do homem repousa no pólo oposto.
Nenhum item de sua organização social tribal, de sua língua, de sua religião local é
trazido em sua célula reprodutora. Na Europa, em outros séculos, quando se
encontravam, de vez em quando, crianças que haviam sido abandonadas e viviam
em florestas, separadas de outros seres humanos, eram elas tão parecidas que
Linnaeus as classificou como uma espécie distinta, Homo ferus, e supunha que
fossem uma espécie de gnomos, com que o homem raramente deparava. Ele não
podia conceber que esses entes ferinos e estúpidos tivessem nascido humanos,
pois essas criaturas não se interessavam pelo que as rodeava, balançando-se
ritmicamente para trás e para frente como algum animal selvagem num jardim
zoológico, com órgãos vocais e auditivos que mal podiam ser exercitados para
prestar serviço, que suportavam uma temperatura frígida em farrapos e que tiravam
batatas da água fervendo como a maior facilidade. Não há dúvida, naturalmente,
que eram crianças abandonadas na infância e o que a todas faltava era associação
com os de sua espécie, o que é a única coisa através da qual as faculdades do
homem são aguçadas e moldadas.
Não encontramos crianças selvagens na nossa civilização mais humana. Mas
este ponto torna-se claro em qualquer caso de adoção de uma criança de outra raça
e cultura. Uma criança oriental adotada por uma família ocidental aprende inglês,
tem para com seus pais adotivos as atitudes comuns às crianças com as quais ela
brinca e cresce nas mesmas profissões que elas escolhem. Aprende todo o conjunto
de traços culturais da saciedade adotada e o conjunto do grupo de seus verdadeiros
pais não representa para ela papel algum. O mesmo processo se dá em grande
escala quando povos inteiros em duas gerações põem de lado sua cultura
tradicional e adotam os costumes de um grupo alienígena. A cultura do negro norte-
americano nas cidades do norte dos Estados Unidos chegou a aproximar-se
detalhadamente da cultura dos brancos nas mesmas cidades. Alguns anos atrás,
quando foi feita um survey cultural em Harlem, um dos traços peculiares aos negros
era o seu modo de jogar nas três últimas cifras unitárias do movimento da bolsa do
dia seguinte. Pela menos custava menos da que a respectiva predileção dos
brancos em jogar na própria bolsa e não era menos incerta e excitante. Era uma
variação do padrão do branco, embira não se afastasse muito dele. E a maior parte
dos traços de Harlem mantém-se ainda mais próxima das formas comuns aos
grupos brancos.
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Em todo o mundo, desde o começo da história humana, pode-se demonstrar
que os povos têm podido adotar a cultura de povos de outro sangue. Não há nada
na estrutura biológica do homem que torne mesmo isso difícil. Ao homem não é
atribuída detalhadamente pela sua constituição biológica qualquer determinada
variedade de comportamento. A grande diversidade de soluções sociais que o
homem tem engendrado em diferentes culturas com relação ao casamento, por
exemplo, ou ao comércio, são todas igualmente possíveis na base de seu
equipamento original. A cultura não é um complexo transmitido biologicamente.
O que se perde na garantia de segurança da Natureza se recupera com a
vantagem de uma plasticidade maior. No animal humano não cresce, como no urso,
um casaco polar para que ele se adapte, depois de muitas gerações, ao Ártico. O
homem aprende a fazer para si um casaco e a levantar uma casa de neve. De tudo
que podemos aprender da história da inteligência, tanto nas sociedades pré-
humanas, quanto nas humanas, essa plasticidade tem sido o solo em que começou
o progresso humano e em que ele se tem mantido. Nas eras dos mamutes, surgiram
espécies após espécies sem plasticidade, que se sobrepujaram e se extinguiram,
desfeitas pelo desenvolvimento dos próprios traços que haviam biologicamente
produzido a fim de atuar no seu meio. Os animais de rapina e finalmente os
macacos superiores foram lentamente dependendo de outras adaptações que não
biológicas e sobre a conseqüente plasticidade aumentada foram, pouco a pouco,
assentados os alicerces para o desenvolvimento da inteligência. Talvez, como é
muitas vezes sugerido, venha o homem a destruir-se por esse mesmo
desenvolvimento da inteligência. Mas ninguém sugeriu qualquer meio pelo qual
possamos voltar aos mecanismos biológicos do inseto social, e não temos qualquer
outra alternativa. A herança cultural humana, aconteça o que acontecer, não é
biologicamente transmissível.
O corolário na política moderna é que não há base para o argumento do que
podemos confiar as nossas realizações espirituais e culturais a quaisquer plasmas
germinativos hereditários selecionados. Em nossa civilização ocidental, a liderança
tem passado sucessivamente, em diferentes períodos, aos povos de língua semítica,
aos hamíticos, ao subgrupo mediterrâneo da raça branca e, ultimamente, aos
nórdicos. Não há dúvida acerca da continuidade cultural da civilização, sejam quais
forem os seus portadores no momento. Precisamos aceitar todas as implicações da
nossa herança humana, das quais uma das mais importantes é a pequena amplitude
do comportamento biologicamente transmitido, e o enorme papel do processo
cultural da transmissão da tradição.
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A segunda resposta que a Antropologia dá ao argumento do purista racial diz
respeito à natureza da hereditariedade. O purista racial é a vítima de uma série de
mitos. Por que, que é "herança racial"? Sabemos de um modo geral o que é a
hereditariedade de pai para filho. Dentro de uma linha de família a importância da
hereditariedade é tremenda. Mas a hereditariedade é um assunto de linhas de
família. Fora disso é mitologia. Em comunidades pequenas e estáticas como uma
isolada aldeia esquimó, a hereditariedade "racial" e a hereditariedade de filho e pai
são praticamente equivalentes, e a hereditariedade racial, portanto, tem significação.
Mas como um conceito aplicado a grupos distribuídos numa área ampla, digamos,
aos nórdicos, não tem base na realidade. Em primeiro lugar, em todas as nações
nórdicas existem linhas de família que são representadas também em comunidades
alpinas ou mediterrâneas. Qualquer análise da formação física de uma população
européia indica overlapping; o sueco de olhos escuros e cabelos escuros representa
linhas de família que estão concentradas mais para o sul, mas devemos
compreendê-lo em relação ao que sabemos sobre esses últimos grupos. Sua
hereditariedade, quanto a ter qualquer realidade física, é uma questão de sua linha
de família, que não se acha confinada à Suécia. Não sabemos até que ponto os
tipos físicos podem variar sem intermistura. Sabemos que o cruzamento entre
membros do mesmo grupo ocasiona um tipo local. Mas esta é uma situação que mal
existe em nossa cosmopolita civilização branca, e quando se invoca a "here-
ditariedade racial", como usualmente se faz para reunir um grupo de pessoas mais
ou menos do mesmo "status" econômico, formadas nas mesmas escolas, e lendo os
mesmos periódicos, tal categoria é apenas outra versão do "nosso grupo" e do
"grupo alheio" e não se refere à verdadeira homogeneidade biológica do grupo.
O que realmente liga os homens entre si é a sua cultura, − as idéias, os
padrões que eles têm em comum. Se em vez de escolher um símbolo, como a
hereditariedade de sangue comum, e de fazer disto uma divisa, a nação voltasse
sua atenção preferivelmente para a cultura que une o seu povo, ressaltando-lhe os
principais méritos e reconhecendo os diferentes valores que se podem desenvolver
numa cultura diferente, ela substituiria por um modo de pensar realista, uma espécie
de simbolismo que é perigoso por ser ilusório.
No pensamento social é necessário um conhecimento de formas culturais, e o
presente volume diz respeito a esse problema da cultura. Como acabamos de ver, a
forma corporal, ou raça, é separável da cultura, e pode, para os fins que temos em
vista, ser posta de lado, salvo em certos pontos em que por alguma razão especial
torna-se ela relevante. O principal requisito para uma discussão da cultura é basear-
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se ela numa ampla seleção de possíveis formas culturais. É somente por meio de
tais fatos que podemos possivelmente diferenciar entre os ajustamentos humanos
que são culturalmente condicionados e aqueles que são comuns e, segundo
podemos ver, inevitáveis na humanidade. Não podemos descobrir por introspecção
ou pela observação de uma sociedade qualquer qual o comportamento que é
"instintivo", isto é; organicamente determinado. Para classificar qualquer
comportamento de instintivo, não basta provar que ele é automático, é necessário
muito mais do que isso. A reação condicionada é tão automática quanto a
organicamente determinada, e as reações culturalmente condicionadas formam a
maior parte do nosso enorme aparelhamento de comportamento automático.
Portanto, o material mais esclarecedor para uma discussão sobre formas e
processos culturais é o das sociedades que historicamente são tão pouco
relacionadas quanto possível com a nossa própria sociedade, e entre si. Com a
vasta rede de contato histórico que tem espalhado as grandes civilizações por
enormes áreas, as culturas primitivas são agora a única fonte para a qual podemos
voltar-nos. Elas são um laboratório no qual podemos estudar a diversidade das
instituições humanas. Com seu relativo isolamento, muitas regiões primitivas têm
tido séculos para elaborar os temas culturais que tornaram os seus próprios. Elas
nos fornecem prontamente as informações necessárias que dizem respeito às
possíveis grandes variações nos ajustamentos humanos, e um exame crítico das
mesmas é essencial para qualquer compreensão dos processos culturais. É o único
laboratório de formas sociais que temos ou teremos.
Esse laboratório tem outra vantagem. Os problemas são expostos em termos
mais simples do que nas grandes civilizações ocidentais. Com as invenções que
facilitam o transporte, os telegramas e telefones internacionais e a rádiotransririssão,
as que asseguram a permanência e a ampla distribuição da página impressa, o
desenvolvimento de grupos profissionais e cultos e classes competidores, e a sua
padronização por todo o mundo, a civilização moderna tornou-se demasiado
complexa para uma análise adequada, a não ser que seja subdividida para esse fim
em pequenos setores artificiais. E essas análises parciais são inadequadas porque
tantos fatores externos não podem ser controlados. Um survey de um grupo
qualquer abrange indivíduos tirados de grupos heterogêneos opostos, com
diferentes padrões, objetivos sociais, relações domésticas e moralidade. A inter-
relação desses grupos é demasiado complicada para ser avaliada nos necessários
pormenores. Na sociedade primitiva, a tradição cultural é suficientemente simples
para ser contida no conhecimento dos adultos individuais, e as maneiras e a moral
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do grupo são moldadas de acordo com um padrão geral bem definido. É possível
estimar a inter-relação dos traços nesse ambiente simples de um modo que seria
impossível nas correntes contrárias da nossa complexa civilização.
Nenhuma dessas razões para dar relevo aos fatos da cultura primitiva tem
qualquer coisa que ver com o uso que tem sido classicamente feito desse material.
Esse uso dizia respeito a uma reconstrução das origens. Os primeiros antropólogos
tentaram dispor todos os traços de diferentes culturas numa seqüência evolucionista
desde as formas mais remotas até o seu desenvolvimento final na civilização
ocidental. Mas não há razão para supor que, discutindo a religião australiana em vez
da nossa, estejamos descobrindo a religião primitiva ou que discutindo a
organização social iroquesa, estejamos voltando a hábitos matrimoniais dos
primeiros ascendentes do homem.
Desde que somos forçados a acreditar que a raça do homem é uma só
espécie, segue-se que o homem em toda parte tem uma história igualmente longa
atrás de si. Algumas tribos primitivas podem ter-se mantido relativamente mais pró-
ximas às formas primordiais de comportamento do que o homem civilizado, mas isso
só pode ser relativo e as nossas adivinhações tanto poderão ser certas como
erradas. Não há justificativa para identificar um costume primitivo contemporâneo
qualquer com o tipo original de comportamento humano. Metodologicamente, há
apenas um meio pelo qual podemos adquirir um conhecimento aproximado desses
princípios remotos. Isto é, por meio de um estudo da distribuição dos poucos traços
que são universais ou quase universais na sociedade humana. Há diversos que são
bem conhecidos. Entre esses, todos concordam com o animismo e com as
restrições exógamas a respeito do casamento. Diversas como se mostram, as
concepções da alma humana, e de uma vida futura, provocam mais questão.
Crenças tão universais como essas podemos justificadamente considerar como
invenções humanas muitíssimo antigas. Isto não equivale a considerá-las como
biologicamente determinadas, pois elas podem ter sido invenções muito remotas da
raça humana, traços do "berço" que se tornaram fundamentais em todo pensamento
humano. Em última análise, podem elas ser condicionadas socialmente como
qualquer costume local. Mas de há muito se tornaram automáticas no
comportamento humano. Elas são velhas, e são universais. Tudo isso, porém, não
faz das formas que podem ser observadas hoje as formas originais que surgiram em
épocas primordiais. Nem há meio algum de reconstruir essas origens pelo estudo de
suas variedades. Pode-se isolar o cerne universal da crença e diferenciar daí suas
formas locais, mas ainda é possível que o traço tivesse começado a desenvolver-se
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numa forma local pronunciada e não em algum denominador original menos comum
entre todos os traços observados.
Por essa razão, o uso dos costumes primitivos para estabelecer origens é
especulativo. É possível construir um argumento para qualquer origem que se possa
desejar, origens que se excluam mutuamente, bem como aquelas que sejam
complementares. De todos os usos do material antropológico, este é aquele em que
a especulação seguiu-se mais rapidamente à especulação, e em que, quanto à
natureza do caso não se pode dar prova.
Nem a razão para usar as sociedades primitivas para discutir as formas
sociais tem necessária relação com. uma volta romântica ao primitivo. Essa razão
não existe com o espírito de poetizar os povos mais simples. Existem muitos modos
pelos quais a cultura de um ou outro povo nos atrai fortemente nesta era de padrões
heterogêneos e de tumulto mecânico confuso. Mas não é por meio de um regresso
aos ideais preservados para nós pelos povos primitivos que a nossa sociedade
poderá curar-se de suas moléstias. O utopismo romântico que se dirige aos
primitivos mais simples, por mais atraente que seja, às vezes tanto pode ser no
estudo etnológico, um empecilho como um auxílio.
O estudo cuidadoso das sociedades primitivas é importante hoje em dia, mais
porque, como dissemos, elas fornecem material de casos para o estudo de formas e
processos culturais universais. Elas nos auxiliam a diferenciar entre as reações que
são específicas de tipos culturais locais e aquelas que são comuns à humanidade.
Além disso, elas nos auxiliam a aferir e compreender o papel imensamente
importante do comportamento culturalmente condicionado. A cultura, com seus
processos e funções, é um assunto sobre o qual necessitamos de todo o
esclarecimento que podemos alcançar, e não há direção em que possamos procurar
com maior proveito do que nos fatos das sociedades pré-letradas.

Extraído de: PIERSON, Donald. 1970. Estudos de organização social – Tomo II:
leituras de sociologia e antropologia social. São Paulo: Martins. p. 497-513.

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