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COLEÇÃO Hermas

COLEÇÃO Parsifal
Malena Segura Contrera

Mediosfera
Meios, imaginário e
desencantamento do mundo

editora imaginalis
Malena Segura Contrera

Mediosfera
Meios, imaginário e
desencantamento do mundo
2a edição

série Hermas

imaginalis
Porto Alegre, 2017
CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO
BIBLIOTECA
___________________________________________________________________________________

S456m Segura Contrera, Malena


Mediosfera : meios, imaginário e desencantamento do mundo / Malena Segura
Contrera. 2. ed. — Porto Alegre : Imaginalis, 2017.
p. : il.

ISBN 978-85-69699-03-3

1. Meios de comunicação de massa. 2. Imaginário. I. Título.

CDU: 659.3

Livro disponível para download em www.imaginalis.pro.br/editora


conselho editorial imaginalis

coordenação
Ana Taís Martins Portanova Barros
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil)

série Hermas
Corin Braga
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(Universidade de São Paulo, Brasil)
Malena Contrera
(Universidade Paulsita, Brasil)
Blanca Solares
(Universidad Nacional Autónoma, México)
Cremilda Medina
(Universidade de São Paulo, Brasil)
Dedicado a Maria Eduarda, minha bênção.
Agradecimentos

Dietmar Kamper era amigo de Jean Baudrillard,


que era amigo de Muniz Sodré, que é amigo de Norval
Baitello Jr., que era amigo de D. Kamper. Os seres da
Noosfera encontram caminhos estranhos para eleger suas
famílias, para escolher quem pensará o pensamento que
os alimenta. A essas pessoas e a esses encontros, dos quais
tive e tenho o privilégio de ser uma das beneficiadas, às
vezes como testemunha, outras vezes como leitora, meu
carinho e agradecimento.
Ao CNPq, pelo apoio na pesquisa de pós-
doutoramento que resultou, em grande parte, no
presente livro.
À Universidade Paulista, pelo apoio e estímulo
recebidos.
Sumário

13 apresentação da 2ª edição

15 palavras iniciais

Sobre a Noosfera e o desencantamento do mundo


A autonomia relativa dos seres do espírito

27 capítulo 1 Comunicação e desencantamento

Comunicação e crise do sentido


Racionalidade e racionalização
A vingança do objeto
Uma cultura do excesso (que pensa ser êxtase)

61 capítulo 2 Mediosfera: a ação dos meios no imaginário

Por que propor a existência de uma Mediosfera?


A sociedade da emissão e o esvaziamento do sentido
Para além da emissão
81 capítulo 3 Tecnologia e autorreferência

A questão do sentido: a crise das competências simbólicas


Tecnologia e redenção
O apagamento do outro – somos todos usuários
A libertação de Prometeu

105 capítulo 4 Imagem: depois da dessacralização, a banalidade

Violência e sociabilidade
Medo – o trabalho das imagens
Depois do voyeurismo, a banalidade da mídia
Mono-imagem e patriarcado

135 considerações finais

Sobre o neo-paganismo ou o reencantamento do mundo


Resiliência – um trabalho para o próximo século

151 referências
Você pode inventar e pode tecer filosofias bonitas
com base na lógica, mas elas estarão mortas,
nunca estarão vivas. A vida é ilógica.

(Osho, 2008, p. 203)


Apresentação da 2ª edição
Na entrada da primavera de 2016, finalizo a revisão
dessa segunda edição com a sensação de que, após seis
anos de sua primeira edição, muita coisa ainda precisa
ser dita acerca da constituição dos imaginários e, em
especial, da Mediosfera. Impossível dar conta da análise
de um fenômeno tão vasto, impossível diagnosticar
com precisão o quanto estamos imersos nesse ambiente
imaginário dos meios eletrônicos de comunicação. Os
celulares se preparam para colar em nossa pele por meio
de adesivos inteligentes, os fios de todos os aparelhos
eletrônicos vão sumindo, tudo vira ar, tudo está no ar,
na atmosfera imaginária que inspiramos.
As imagens técnicas permeiam as relações sociais e
seguem nas embalagens dos alimentos, nas decorações
das festas infantis, nas estampas das roupas, nas
estampas dos corpos tatuados sem muita criatividade,
nos corpos mesmos, moldados pelos padrões e também
pelos antipadrões propostos, pelo constante trabalho de
colonização dos imaginários.
Ao mesmo tempo, nascem resistências urbanas
e rurais, alguns lidam com o desencantamento do
mundo de forma cínica, outros buscam reencantar o
mundo ao seu redor por meio de ações conscientes e
regeneradoras, alguns admitem que as promessas do
capital não mais os encantam, e alguns agem de acordo
com o que dizem.
Por todo o lado percebe-se a urgência de estratégias
comunicativas e imaginárias que favoreçam os diálogos
em torno das desigualdades culturais, religiosas,
ideológicas, econômicas, frente à onda de xenofobia e
intolerância de todo o tipo que convulsiona o mundo,
que mobiliza os ódios de fronteira.

Mediosfera | 13
E por todo o lado também surgem mãos que afagam,
acolhem, plantam, acariciam, anônimas e abençoadas
na sua capacidade de saber as mãos algo mais e maior
do que um aparato digitador.
O imaginário cultural continua transgressor e
indomável, e muitos continuam a trabalhar para
domesticá-lo – sem sucesso, se os deuses forem
favoráveis.
E continuamos aqui, agarrados ao monstro marinho
em alto mar, tentando aprender a linguagem das ondas.

Malena Segura Contrera

Primavera de 2016

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Palavras iniciais

Sobre a Noosfera e o desencantamento do mundo

A reflexão acerca da dimensão e da autonomia do


processo de desencantamento do mundo e de seus
agentes atuais requer o deslocamento da questão da
esfera das grandes motivações históricas para outras
motivações menos evidentes, para a ação dos conteúdos
imaginais desse processo, convidando ao exercício de
uma espécie de arqueologia do imaginário.
Além disso, tem nos parecido que as discussões
contemporâneas em Comunicação, tanto no âmbito da
produção quanto no da recepção mediática, têm se atido
mais às questões relativas à imagem, subestimando a
importância da formação e da ação dos imaginários. E
esse é exatamente nosso ponto, refletir como a natureza
e a ação dos imaginários dos meios de comunicação
não se esgotam nas especificidades da produção tecno-
instrumental das imagens mediáticas.
As proposições de Max Weber acerca do processo
de desencantamento do mundo apresentam-se
relacionadas à discussão que ele propôs sobre a ética
protestante, discussão esta na qual Weber ressaltou o
papel da ação e da força das ideias, questão fundamental
aos estudos da Cultura e da Comunicação. Essa questão
não passou despercebida aos especialistas da obra de
Weber, e ela nos interessa por estar de acordo com o que
temos encontrado de mais relevante no pensamento
de alguns autores que trataram de temas que dialogam
direta ou indiretamente com as nuances mais atuais,
e menos óbvias, do processo de desencantamento do
mundo (e com os quais buscamos dialogar no decorrer
do presente texto).
Mediosfera | 15
R. G. Filipe (2006, p. 10), na apresentação da edição
portuguesa de Sociologia das Religiões, chama-nos a
atenção: “Para Weber, as estruturas sociais só existem
como estruturas mentais, são, como ele diz, ‘uma
representação que flutua na cabeça dos homens reais’ ”.
Essa imagem acerca de “uma representação
que flutua na cabeça dos homens reais” pretendia
inicialmente ressaltar, segundo Filipe, a importância
que Weber atribuía às ações sociais, indo contra um
estruturalismo rígido, que pudesse definir a sociedade
como uma coisa determinada e distante da esfera
cotidiana dos embates éticos da ação social.
No entanto, Wilhelm Hennis, para pensar a
atualidade da teoria de Weber, seleciona de seus
escritos outra proposição que, somando-se à acima
referida e a outras tantas que esses dois pesquisadores
citam, aproxima algumas noções de Weber do conceito
moriniano de “seres do espírito”1, que aqui propomos
discutir:

O que interessa a Weber é a determinação da conduta de vida


através do deus (ou do ‘demônio’) que, na vida cotidiana, mais
poderosamente influencia os interesses dos seres humanos, é a
maneira como as representações religiosas determinam a conduta
de vida (W. Hennis apud Filipe 2006, p. 13).

Tanto na referência de G. Filipe às estruturas sociais


concebidas como representações mentais, como em W.
Hennis, que propõe que as representações religiosas
sejam, em Weber, concebidas como deuses ou demônios
que atuam na conduta cotidiana dos homens, vemos
a ressalva de que Weber considerava como certas a
existência e força desses “deuses” ou “coisas que flutuam

1
O termo “seres do espírito” é proposto por Edgar Morin (1997) para designar
as entidades da Noosfera.

16 | malena contrera
nas cabeças”, compreendendo-os como ideias, como
representações do espírito humano, extremamente
relevantes para pensar sua sociologia das religiões.
Ainda sobre isso, G. Filipe, referindo-se à proposição
trazida pelos estudos de Friedrich Tenbruck, afirma que
Weber:

[...] utiliza esse conceito (ideias), no sentido que ele revestiu no século
XIX, para designar aquelas concepções que ganharam validade
suprapessoal e em que são articulados aspectos fundamentais da
relação humana com o mundo (Filipe, 2006, p. 17).

É justamente esse caráter suprapessoal das ideias que


aqui nos interessa e de que trataremos mais adiante. A. F.
Pierucci reflete longamente sobre essa questão, usando
como referência um texto emblemático de Tenbruck
acerca da obra de Weber2. É o próprio Pierucci que
seleciona de Tenbruck este trecho:

Não obstante o fato de que a ação humana é motivada diretamente


por interesses, ocorrem períodos na história cuja direção em longo
prazo é determinada pelas ideias de tal maneira que os homens
podem se esfalfar até a morte na persecução dos seus interesses,
mas no longo prazo a água da história é conduzida pelo moinho
das ideias, e as ações dos homens permanecem sob a influência das
ideias (Pierucci, 2003, p. 92).

Esse poder das ideias existe exatamente por conta


de seu caráter suprapessoal, e essa questão, apresentada
por M. Weber e pelos especialistas da obra weberiana
aqui citados, aproxima-se de uma valiosa noção
proposta por Edgar Morin, especialmente para os
estudos sobre o imaginário mediático, a de Noosfera.
Morin apresenta-a em vários momentos de sua obra,

2
A citação que Pierucci faz foi retirada do seguinte texto de F. Tenbruck: “The
problem of thematic unity in the works of Max Weber”, British Journal of
Sociology, v. 31, n. 3, set 1980: 313-351.

Mediosfera | 17
mas mais sistematicamente em O método IV, não por
acaso referindo-se a Hegel e às suas proposições sobre a
força das ideias.
Porém, mais significativa e menos óbvia é a
referência que Morin faz, já no início de seu texto sobre
a Noosfera, à teoria dos arquétipos de C. G. Jung – teoria
que ele afirma julgar esclarecedora –, que acrescenta a
essa discussão valiosa (e normalmente subestimada)
contribuição:

Os arquétipos são formas a priori, ou Imagens primordiais, virtuais


em todo o espírito humano. Matrizes universais do inconsciente
coletivo, eles comandam e controlam os nossos sonhos e os nossos
mitos. Embora não existam independentemente de nós, nós
dependemos deles porque trazemos conosco as suas exigências e as
suas tiranias (Morin, 1992, p. 96).

Morin é um dos poucos autores fora da área de


Psicologia a entender plenamente esse conceito de
arquétipo proposto por Jung3, apontando-o como uma
exceção à tendência frequente de designar a natureza
das ideias ora como uma superestrutura, ora como
um epifenômeno. Essa crítica ele realiza, de um lado,
ao que ele designa por “vulgata estruturalista” e, de
outro, à visão kantiana, cuja dialética transcendental ele
diz retirar toda a realidade objetiva das ideias. Sobre a
oscilação entre os dois extremos, Morin afirma:

Como vamos ver, se o primeiro erro consiste em acreditar na


realidade física dos sonhos, deuses, mitos, ideias, o segundo erro
consiste em lhes negar a realidade e a existência objetivas (Morin,
1992, p. 96).

3
Para C. G. Jung (1986, p. 73), “Os arquétipos são formas de apreensão, e
todas as vezes que nos deparamos com formas de apreensão que se repetem
de maneira uniforme e regular, temos diante de nós um arquétipo, quer
reconheçamos ou não o seu caráter mitológico”.

18 | malena contrera
A distinção aqui feita por Morin entre realidade
física e realidade objetiva é fundamental para esclarecer
o que ele propõe com o conceito de seres da Noosfera,
cuja natureza se caracteriza não pela matéria, mas por
sua contraparte, a energia. Negar existência aos seres
da Noosfera seria, então, como negar a existência da
energia, de sua ação, de sua capacidade de se realizar,
ou seja, de sua realidade. Esse absurdo que a própria
Física moderna nunca chegou a conceber, no entanto,
segue sendo muito comum nas Humanidades, que
consideram ainda hoje como realidade objetiva apenas
o que se pode constatar concretamente, ou quantificar
empiricamente. Apresentando a Noosfera, Morin
propõe:

As representações, os símbolos, mitos, ideias, são englobados


simultaneamente pelas noções de cultura e de Noosfera. Sob
o ponto de vista da cultura, constituem a sua memória, os seus
saberes, os seus programas, as suas crenças, os seus valores, as suas
normas. Sob o ponto de vista da Noosfera, são entidades feitas de
substância espiritual e dotadas de uma certa existência. Saída das
próprias interrogações que tecem a cultura de uma sociedade, a
Noosfera emerge como uma realidade objetiva, dispondo de uma
relativa autonomia e povoada de entidades a que vamos chamar de
‘seres do espírito’ (Morin, 1992, p. 101).

Além de propor corajosamente a existência dos


seres do espírito como real, Morin os situa no terreno
das memórias, dos programas, das crenças, dos
valores, o que definitivamente situa a questão, além
de sua dimensão consciente ou racional, na dimensão
inconsciente da Noosfera. Essa concepção certamente
encontra uma feroz resistência na longa tradição do
pensamento cartesiano (e dos racionalistas radicais que
sobrevivem) que não reconhece vida fora da lógica do
cogito, eliminando a existência e a ação do inconsciente
nas relações sociais e, por conseqüência, nas relações
comunicativas.

Mediosfera | 19
A maior parte dos estudos contemporâneos sobre
Comunicação não ignora as questões psicológicas da
subjetividade, alguns ainda consideram as questões da
afetividade e do desejo, mas não é comum encontrarmos
nessas reflexões um interesse maior acerca da natureza
e da influência nas relações comunicativas desses seres
imaginais que habitam em grande parte o inconsciente.
Tudo ocorre como se pudéssemos – para respeitar a
classificação de áreas de saber imposta por uma visão
compartimentalizada do mundo e do ser humano –
tratar dos processos comunicativos sem refletir sobre
suas motivações e demandas inconscientes.
Essa postura se baseia na crença de que as intenções
comunicativas são essencialmente conscientes. Morin
também se posiciona frente a essa crença científica
propondo que não é possível mais praticar uma ciência
sem consciência, o que pressupõe um longo trabalho de
autoinvestigação que se pergunta constantemente por
suas reais motivações, inclusive, as inconscientes. Ele
propõe isso exatamente por entender que a única forma
de nos protegermos dos riscos da parcialidade obtusa
e da ação de alguns seres do espírito (as ideologias,
as crenças, os modismos) passa por uma autoanálise
constante, centro de uma autoética que necessariamente
subjaz a qualquer outra forma de ética possível.
Mas Morin vai ainda adiante e amplia a discussão
sobre a Noosfera valendo-se de uma longa tradição
científica sobre o tema, em diversas áreas, que passa
por nomes tais como Frege, K. Popper, G. Bateson, G.
Vickers, P. Auger, J. Monod, ao deparar-se com um
aspecto bastante polêmico – e igualmente relevante –
sobre a existência dos seres do espírito, que ele assim
apresentada:

Por meu lado, convencido que estou há muito da realidade


do mundo imaginário/mitológico/ideológico (Morin 1956),

20 | malena contrera
convencido de que este mundo é certamente um produto, mas
um produto recursivamente necessário à produção do seu
próprio produtor antropo-social, fui atingido pela concepção
de Auger/Monod [...] e fui assim incitado a explorar o problema
da autonomia relativa e da relação complexa (da simbiose à
exploração mútua) entre os seres do espírito e os seres humanos
(Morin, 1992, p. 99).

Sabemos que a noção de recursividade será uma


das noções centrais de toda a discussão que se segue a
esse respeito, e é também uma indiscutível contribuição
para a compreensão da relação entre a Noosfera e a
Mediosfera (aqui entendida como a esfera do imaginário
mediático), na distinção que apresentamos adiante entre
os imaginários cultural e mediático.
A partir dos estudos que realizamos sobre as
contribuições de M. Weber a esse tema, consideramos
que seja necessário propor um ajuste terminológico para
o termo “ideias”, na verdade já anteriormente sugerido
por J. Habermas (2007b) que, ao falar sobre o tema das
ideias na obra de Weber, utiliza o termo “imagens”
para designá-las. Aproximando os termos “ideia” e
“imagem”, trazemos a imagem para um contexto que
achamos mais apropriado do que na maior parte das
vezes a encontramos.
O termo imagem aqui proposto não se refere à
concepção de imagem tal como a maior parte dos
textos sobre comunicação hoje a utiliza, partindo
exclusivamente de uma noção centrada nos seus suportes
e nas técnicas de produção e inscrição das imagens
nesses suportes. Aproxima-se mais da concepção de
imagem de A. Damásio, por um lado, e da dinâmica das
imagens consideradas no contexto dos imaginários, por
outro. A. Damásio, acerca da imagem, afirma:

[...] imagem não se refere apenas à imagem ‘visual’, e também não há


nada de estático nas imagens... As imagens de todas as modalidades
‘retratam’ processos e entidades de todos os tipos, concretos e

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abstratos. As imagens também ‘retratam’ as propriedades físicas
das entidades e, às vezes imprecisamente, às vezes não, as relações
espaciais e temporais entre entidades, bem como as ações destas.
Em suma, o processo que chegamos a conhecer como mente
quando imagens mentais se tornam nossas, como resultado da
consciência, é um fluxo contínuo de imagens, e muitas delas se
revelam logicamente inter-relacionadas (Damásio, 2000, pp. 402-
403).

Damásio propõe que possamos considerar que


a mente seja fruto dos fluxos contínuos de imagens.
Parece-nos que é exatamente disso que estamos
tratando, de buscar uma concepção de imagem que
se aproxime mais dos seres do espírito dos quais trata
Morin, sobre os quais pensamos e pelos quais somos
“pensados”, do que de meras inscrições em suportes.
Nesse sentido, o caráter imaginal do homem – que
Morin (1988b) chama de demens – é exatamente o que faz
do homem um ser capaz de criar um universo mental
cuja natureza é pura energia em ação. Ao trazermos
essa definição de Damásio, queremos ressaltar não só
a natureza endógena da imagem (cf. H. Belting4), mas
também a complexidade do processo imaginal e a
relativa autonomia das imagens. Nesse sentido, não
se trata de desconsiderar o processo de inscrição das
imagens, mas sim de entendê-lo apenas como parte do
complexo contexto da constituição de imaginários.

A autonomia relativa dos seres do espírito

Considerando essa dinâmica da recursividade, Morin


atribui aos seres da Noosfera certo grau de autonomia,
tratando de situações em que o grau de inconsciência
humana gera contextos propícios para que essa

4
Essa distinção proposta por Hans Belting foi objeto de tratamento do artigo
Na selva das imagens, de N. Baitello Jr. e M. S. Contrera.

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autonomia se dê e se efetive em manifestações muito
concretas, assunto que segue causando uma enorme
resistência em alguns estudiosos da comunicação que
desconsideram que na esfera do inconsciente também
acontecem coisas. Para apresentar essa questão, Morin
(1992, p. 95) refere-se a Hegel: “Para Hegel, a Ideia
é Sujeito que se autodetermina e se auto-realiza na
História”, mas segue colocando-se em uma posição não
tão extrema como a de Hegel.
Para ele, será a noção-chave de recursividade que
possibilitará compreender essa mútua interferência,
na qual produzimos os deuses que nos produzem, ou
ainda, produzimos os sistemas ideológicos que passam
então a nos produzir, numa dança de simbiose – mútua
geração e devoração. De qualquer forma, estamos aqui
tratando da força e do poder do caráter imaginal que
as representações humanas têm sobre o mundo. Trata-
se de ver por outro ângulo a máxima bíblica de que as
criaturas também são criadores, propondo que, no devir
das relações, também os criadores possam se tornar
criaturas de suas criações. Essa inversão, da qual se
ocupou grande parte do movimento gnóstico medieval,
representava na realidade uma enorme possibilidade de
gestão dos conflitos advindos da complexidade humana,
que a ciência positivista abortou no momento em que
apostou todas as fichas no sujeito racional e consciente,
arrogante e deficiente por definição.
C. G. Jung dizia que o destino é a nossa inconsciência.
Dessa forma, temos de concordar que estamos destinados
também a sermos gerados pelos seres que geramos. E
que quanto mais inconscientes desse processo formos,
mas fatalmente atingidos por essa ação dos seres do
espírito seremos.
Representando muito bem esse processo de que
estamos falando, está a consideração de B. Cyrulnik (1999,

Mediosfera | 23
p. 78): “Quando um indivíduo não pensa, o pensamento
existe apesar de tudo, fora dele”. É a Noosfera esse
“pensamento que continua a existir enquanto o homem
não está pensando”. Na realidade, melhor seria dizer,
para descrever esse processo proposto por Cyrulnik –
que, como etólogo, não se preocupa em precisar alguns
termos de fora de sua área –, que a Noosfera continua
a imaginar (e a nos imaginar) mesmo enquanto não
imaginamos.
É preciso então reconhecer nessa Noosfera gerada/
geradora da sociedade industrial, os seres do espírito que
geraram, no seio dessa sociedade, a cultura mediática, e
que hoje, no que podemos chamar de sociedade pós-
industrial, continuam a gerá-la e a nos gerar por meio
dela. Entre esses seres estão certamente a visibilidade
e a questão da imagem (como forma contemporânea
residual da aparição hierofânica), a eletricidade e seu
poder simbólico, o culto à tecnologia e a hipertrofia do
símbolo “dinheiro”. Esses são, no sentido moriniano
da palavra, demônios5 que habitam a esfera mediática,
nossa única comum e inequívoca forma de religiosidade
contemporânea. E são eles também agentes centrais do
processo de desencantamento de que tratamos nesse
trabalho.
O primeiro demônio, a visibilidade e a questão
da imagem mediática na sociedade contemporânea,
é problematizado no capítulo 4, Imagem: depois da
dessacralização, a banalidade. Os demônios da eletricidade
e do culto à tecnologia, inseparáveis, são o foco do
capítulo 3, Tecnologia e autorreferência. O demônio
da hipertrofia do símbolo dinheiro, mais perspicaz
e escorregadio, mostrou-se um tema que perpassou,

5
A palavra demônio tem sua origem na palavra daimon ou daemon que, em
grego (δαιmϖν) significa espírito, divindade.

24 | malena contrera
transversalmente, todo o presente trabalho. Deixou-se
apenas ser mais especificamente focado nos trechos
finais do trabalho.
Fizemos ainda, no capítulo 1, Comunicação e
desencantamento, um esforço para explicitar as relações
que consideramos significativas entre o processo
de desencantamento do mundo e a comunicação,
bem como a constituição da máquina mediática e
das mediações que se desenrolam neste contexto.
Neste capítulo também procuramos apresentar quais
os aspectos do pensamento de Max Weber foram
selecionados para o estabelecimento de uma reflexão
que busca compreender como esse desencantamento
do mundo vem acontecendo na esfera da comunicação
e das mediações humanas. Essa questão gerou a
necessidade de, no capítulo 2, apresentarmos mais
detalhadamente o que consideramos que seja a existência
de um imaginário próprio dos meios de comunicação,
designado aqui por Mediosfera.
Durante todo esse trabalho defendi a posição
de que não vivemos, como alguns propõem, um
reencantamento do mundo. Vivemos, na realidade,
novas formas de encantamento geradas a partir
exatamente da aniquilação do mundo, tal qual
concebido até meados do século XX. Se seremos de fato
capazes de nos encantar com o vazio pelo qual estamos
atravessados, ou se esse aparente encantamento é apenas
uma resposta histérica à negação da visão do nada, não
sei. Essa é uma resposta que nossa época ainda não tem
e que eu não julgo, arrogantemente, ter.

Mediosfera | 25
capítulo 1

Comunicação e
desencantamento

Comunicação e crise do sentido

A discussão acerca de como o processo de


desencantamento do mundo – formulação proposta por
Max Weber em 1912 e por ele desenvolvida até 1920, ano
da sua morte – alterou e transformou as comunicações
humanas e suas mediações e exige de nós uma reflexão
mais atenta acerca do fenômeno que Weber designou
por essa expressão, que vai muito além de moldura para
se tratar do papel da ética protestante para o capitalismo
no Ocidente. Os estudos sociológicos que se detiveram
demoradamente sobre essa questão, especialmente a
contribuição de H. Marcuse, J. Habermas6, M. Berman e
A. F. Pierucci, foram imprescindíveis para a construção
de um melhor entendimento acerca de a que Weber
se referia quando diagnosticava um processo de
desencantamento do mundo.
Pierucci (2003) propõe ao termo “desencantamento
do mundo”, após um atento levantamento das situações
textuais nas quais o termo foi citado por Weber, dois
sentidos complementares: desmagicização e perda
do sentido, acrescentando a informação de que, nos

6
Trataremos mais especificamente da contribuição de J. Habermas sobre o
tema ao nos referirmos ao papel da técnica.

Mediosfera | 27
textos de Weber, “o conceito aparece doze vezes como
substantivo (Entzauberung) e cinco vezes como verbo”
(Pierucci, 2003, p. 58). Daí que Weber o concebesse
como um processo em certa medida já estabelecido
mas, ao mesmo tempo, ainda em ação.
Esse entendimento do desencantamento como um
processo de longo alcance histórico, e não como um
fenômeno pontual, é de fundamental importância, já
que Weber o via como algo claramente configurado
no começo do século XX, mas que possivelmente
continuaria a se desenvolver. Sobre esse aspecto, Pierucci
diz que o texto de Weber leva a crer que “[...] na medida
em que pode aumentar e crescer, o desencantamento
pode se concretizar historicamente com solidez variável
e diferentes intensidades” (Pierucci, 2003, p. 59).
Perguntando-nos sobre a atualidade desse processo
somos levados a pensar que fazemos hoje parte de um
momento em que ele se apresenta de maneira bastante
peculiar, provavelmente inimaginável até mesmo por
Weber em 1920.
As últimas décadas do século XX e a primeira década
do século XXI trouxeram a esse desencantamento
uma dimensão que requer uma considerável atenção,
especialmente quando a dinâmica entre sociedade
industrial e capitalismo teve e tem como seu grande
aliado e viabilizador (seguindo a lógica das demandas
do mercado), todo um aparato mediático eletrônico
que encontrou, especialmente desde a implantação da
televisão no Ocidente, meios efetivos de fazer triunfar o
que Weber chamaria de o espírito do capitalismo, ênfase
dada aqui para a palavra “espírito”, por se tratar de uma
construção da Noosfera, como propomos adiante.
Aproximando dos estudos da Comunicação os dois
aspectos centrais da definição de desencantamento do

28 | malena contrera
mundo – “desmagicização” e “perda do sentido” 7
–,
vemos como esses dois aspectos tiveram e ainda têm
uma ação definitiva na comunicação humana.
Há quem proponha que estamos vivendo um
reencantamento do mundo, uma fase que se seguiria
ao desencantamento de que tratamos. Não é essa nossa
opinião, e esperamos que a presente reflexão evidencie
os motivos que nos levam a pensar que vemos, na
realidade, um quadro de radical desencantamento, que
pode trazer já em seu bojo, isso sim, as sementes de um
possível reencantamento do mundo, no entanto ainda
não claramente delineado como espírito do nosso tempo.
Sabemos que a desmagicização a que Weber
se refere considera a centralidade da escrita para o
protestantismo, tratando também da passagem de uma
prática religiosa centrada em imagens visuais para uma
prática centrada nas imagens verbais8, mas pensamos
que essa passagem necessita ser entendida não apenas
como um processo de transferência de práticas
imagéticas, mas, antes de mais nada, como um processo
de crescente abstração, do que poderíamos chamar de
uma “retirada da alma” do mundo, que, como propõe
James Hillman, representa a destruição da relação
propriamente estética do homem com o mundo.

Sentir e imaginar o mundo não se separam na reação estética


do coração, como em nossas psicologias posteriores, derivadas

7
A perda do sentido está em relação direta com a questão da violência, e essa
relação foi apresentada também em outro momento do presente livro, em
capítulo sobre a imagem. Ainda na segunda edição do livro Mídia e Pânico
(2007), houve a inclusão de um novo capítulo, ao final, que trata exatamente
dessa questão da perda do sentido na mídia e da relação disso com a temática
da violência.
8
É preciosa a reflexão de Alberto Klein sobre essa passagem e sua relação com
a cultura mediática, especialmente a mídia eletrônica. Tratando do que ele
designa a passagem da iconolatria para a textolatria, seu livro Imagens de culto e
imagens da mídia, traz uma contribuição imprescindível ao tema.

Mediosfera | 29
dos escolásticos, cartesianos e empiristas britânicos. Suas ideias
favoreciam o assassinato da alma do mundo através da separação da
atividade natural do coração em sentir os fatos por um lado e, por
outro, intuir fantasias, deixando-nos imagens sem corpos e corpos
sem imagens, uma imaginação subjetiva imaterial separada de um
mundo amplo de fatos objetivos inanimados (Hillman, 1993a, p. 17).

Hillman postula também que é preciso que se


restabeleça a relação entre o sentido (semiótico,
semântico) e os sentidos corporais, e atentar para a
relação entre a crise do sentido da qual tratamos e o
projeto moderno de apagamento do corpo, corpo aqui
entendido em toda sua concretude, vitalidade, pulsação
e animação.
Com essa retirada da alma do mundo e o
estabelecimento de um mundo de “fatos objetivos
inanimados”, frutos de uma visão de mundo da
ciência do século XVII, torna-se fácil compreender
a desmagicização do mundo proposta por Weber
e o surgimento do que ele irá chamar de religiões
fundamentadas numa prática ética.
Pierucci chama a atenção para a ironia de que
Weber irá chegar à conclusão de que essas mesmas
religiões éticas seculares na realidade praticarão uma
espécie de baixa magia, na medida em que ele vê que
esta religiosidade (secular) se estabelece como algo
essencialmente pragmático, ligado ao enraizamento do
homem no mundo, às suas preocupações e interesses
cotidianos. Essa natureza cotidiana e instrumental
que Weber ressalta nas práticas das religiões seculares
as aproxima mais da natureza da magia, em seu
aspecto instrumental, do que à de uma ética religiosa
propriamente dita.
No entanto, temos aqui uma nova forma de magia
que transfere o poder mágico dos deuses presentes
em uma natureza encantada para os deuses político-
institucionais das religiões seculares. Daí que possamos

30 | malena contrera
dizer que se Weber tinha razão e as religiões éticas na
verdade tratam ainda de magia, estamos falando de uma
outra espécie de magia, de um trabalho com as imagens,
guiado por uma prática racionalizadora específica, como
veremos a seguir, não presente na magia praticada pelas
culturas primevas, anteriores ao processo de abstração
radical pelo qual passa o pensamento humano a partir
da escrita9.
Quem explicita essa transformação das religiões da
natureza para as religiões tribais do patriarcado (o que
consequentemente recairá sobre transformações de
suas práticas simbólico-mágicas) é J. Campbell.

Nota-se que, ao passo que em quase todas as demais tradições


religiosas da humanidade os deuses principais são poderes da
natureza, divindades cósmicas, com os vários grupos locais em
papéis secundários, entre os semitas em geral, e mais notadamente
entre os hebreus, o principal deus é a divindade patrona da tribo
[...] Ademais, as leis de um deus tribal são fundamentalmente leis
sociais (Campbell, 2002, pp. 93-94).

O que resulta dessa operação é uma transferência


do poder divino das experiências concretas do mundo
para as instâncias abstratas do poder simbólico celeste
(que é exatamente uma das operações que realiza a
passagem do politeísmo para o monoteísmo). O novo
poder, celeste e imaterial, é, neste caso, devidamente
representado por seus “eleitos”, que agem como
mediadores na relação deus/homem, submetendo o
que seria a proposta ética aos seus próprios interesses

9
Flusser (2010, p. 29) evidencia o processo de subtração presente nesta
abstração representada pela escrita, por exemplo, no seguinte trecho: “Na
verdade, o escrever consiste em uma transcodificação do pensamento, de uma
tradução do código da superfície bidimensional das imagens para o código
unidimensional das linhas, do compacto e confuso código das imagens para
o claro e distinto código da escrita, das representações por imagens para os
conceitos, das cenas para os processos, de contextos para os textos”.

Mediosfera | 31
pragmáticos e institucionais10. Daí que possamos
compreender que essa concepção de religião possa
fomentar todo o tipo de intolerância e dar origem às
guerras santas, das quais parece que não nos livraremos
enquanto seguirmos pensando o mundo e suas relações
a partir desse paradigma proposto pelas religiões
éticas do patriarcado monoteísta. Campbell (2002, p.
94) ilustra isso muito bem quando aponta para o fato
de que “Quando o seu principal deus é um deus tribal,
nenhuma outra tribo pode possuir a mesma teologia”.
Esse fracasso do caráter estritamente ético
das religiões assinalado por Weber (e frisado por
Pierucci) é compreensível quando pensamos que sem
a experiência estética do mundo, abolida junto com
as vivências corporais concretas, a experiência ética
também fica comprometida, já que não é possível
uma ética que prescinda de estética. Essa relação fica
evidente não só no pensamento de Hillman sobre a
“anima mundi”, acima referida, como também na
proposição de F. Varela (1992) acerca de uma ética
enativa, na qual ele propõe que uma forma de cognição
mais complexa passa necessariamente por uma
experiência sensório-motora do mundo11, ou seja, pelo
lugar da corporeidade humana. Sem essa sensibilidade
estética, que para Varela deve necessariamente ser
também muscular, essa abertura e capacidade de
interpenetração com o mundo, como importar-se com
ele? O estado da anestesia (não sinestesia) é também o
estado da indiferença que predispõe as sociedades às
crises éticas de nosso tempo.

10
Isso recai sobre a mudança das relações sociais que, antes fundada num
princípio ritual de comunhão, passam a se fundar no princípio arbitrário dos
acordos sociais. Tratamos desse tema no artigo “Do lado de fora do jardim
encantado”, publicado na revista E-Compós em 2009.
11
Essa questão já foi bastante tratada em Mídia e Pânico.

32 | malena contrera
Por isso as religiões éticas que se seguem às religiões
mágicas são religiões que trouxeram em sua própria
natureza uma contradição fundamental, tendendo a
degenerar-se em, como bem propõe Weber, e depois
desenvolve P. Bordieu, uma espécie de economia das trocas
simbólicas (o que aproxima definitivamente o tema da
religião não só do tema da economia, mas também dos
estudos da comunicação).
Daí que as formas anteriores de religiosidade
dessem lugar a um sistema “moralizante de conduta”
(Pierucci, 2003, p. 88), mais relacionado às demandas
históricas e econômicas dos jogos de poder do
que a questões cosmogônicas, ou ainda a questões
relativas à manifestação do sagrado ou às práticas
de transcendência, questões das quais se ocupavam
centralmente as sociedades arcaicas.
A observação do uso que as religiões fazem dos
aparatos mediáticos reforça ainda mais essa evidência,
inclusive na medida em que essa concepção de
religiosidade – centrada nas demandas do cotidiano e
da qual a Teologia da Prosperidade é herdeira e o caso
emblemático – aproxima-se claramente de um princípio
de religação social e de práticas comunicativas que
visam, entre outras coisas, gerar sincronizações sociais
e formas de sociabilidade viáveis dentro do sistema de
valores vigente, inclusive do ponto de visa econômico.
Nesse caso, é evidente que assistiríamos ao potencial
sincronizador dos meios de comunicação sendo usado
por instâncias simbólicas de domínio, como é o caso das
telerreligiões.
No entanto, a compreensão de que as religiões
seculares tornaram-se economias simbólicas do poder
não requer, como pensou Weber, que eliminemos
das sociedades modernas o fenômeno religioso
propriamente dito, o elemento de transcendência e o

Mediosfera | 33
movimento de busca do numinoso (conforme o propôs
R. Otto) – ou seja, a questão do sagrado. Muito embora
tenhamos que concordar que as religiões éticas, em sua
maioria, não têm essas questões como centrais em sua
proposição de um mundo objetal, uma ressalva deve ser
feita quando consideramos a capacidade individual do
homem de seguir estabelecendo conexões, religando-
se, mesmo num contexto disjuntivo. Esse fenômeno é
evidente em muitas manifestações da cultura popular,
das festas regionais, e mesmo no comportamento de
grande parte da população que frequenta os cultos das
religiões seculares que foram esteticamente formatadas
pela cultura do espetáculo e dos meios de comunicação.
É necessário reconhecer a evidência de que pode
haver a busca do sagrado e da transcendência para além
do caráter intramundano da religião reconhecido por
Weber, como pode haver comunhão na comunicação,
para além de formas de sociabilidade circunstanciais e
funcionais da grande máquina mediática, mesmo não
garantidas as condições institucionais para isso. É nesse
sentido que os estudos de comunicação sobre recepção
podem e têm contribuído para compreender os
processos reconjuntivos que o receptor pode operar por
conta de sua inserção cultural (e da memória arquetípica
de uma cultura)12.
De qualquer maneira, essa abordagem weberiana
do fenômeno religioso no Ocidente refere-se, ainda
que não tão claramente, a uma visão de mundo herdada
da ciência moderna que traz em seu âmago uma radical
dissociação entre sujeito e objeto, o que gera, como
consequência, uma série de dissociações outras, das quais

E. Morin fala de um princípio da complexidade que ele designa de princípio


12

hologramático que nos parece especialmente significativo nesse processo.


Trataremos mais desse ponto nas considerações finais deste trabalho.

34 | malena contrera
a separação entre corpo e espírito13. Esse paradigma,
que E. Morin (2000) designa como disjuntivo, é herança
do movimento científico que se inicia no final do século
XVI e que culmina na visão mecanicista do mundo,
como propõe Morris Berman.
Segundo M. Berman, o cenário científico europeu
até o final do século XVI seguia os pressupostos
herméticos, assim apresentados:

La ‘sabiduria hermética’, como ha sido denominada, estaba en


efecto dedicada a la noción de que el conocimiento verdadero
ocurria unicamente via la unión del sujeto y el objeto, en una
identificación psíquico-emocional con imágenes en lugar de
la examinación puramente intelectual de los conceptos... Es el
colapso de este universo mental, que comenzó (si tal cosa puede ser
fechada) a fines del siglo XVI, lo que delimita tan radicalmente el
mundo medieval del mundo moderno (Berman, 2005, pp. 73-75).

Essa visão medieval propôs nos termos da época, a


respeito da relação sujeito/objeto, uma visão totalmente
análoga ao que a física quântica contemporânea apresenta
como a impossibilidade de se excluir o comportamento
do observador do fenômeno observado14, ou seja, a
impossibilidade da dissociação entre, por exemplo, as
partes envolvidas em uma situação comunicativa, de
forma que isso põe por terra a visão fragmentar da
relação entre emissor e receptor e outras tantas herdadas
do modelo cibernético de comunicação.

13
As culturas arcaicas faziam uma distinção bem clara entre o espaço-tempo
sagrado e o profano, valorando o sagrado como doador de sentido, mas em
nenhum momento propunham que essa oposição seja disjuntiva, ou seja, não
afirmavam que o homem experimentasse uma dissociação entre essas duas
esferas, já que a cotidianidade profana, com suas normas de sociabilidade,
só eram concebíveis na medida em que se pautavam pelas diretrizes
estabelecidas pelas vivências do espaço-tempo sagrado, por suas hierofanias
que atribuíam sentido à vida da comunidade e promoviam modelos de
conduta (Eliade, [1957]).
14
Quem discorre sobre esse assunto de uma forma compreensível por não
especialistas é o físico indiano Amit Goswami (2009).

Mediosfera | 35
Essa identificação psíquico-emocional da qual fala
Berman se aproxima ainda do conceito de comunhão,
que também possui estreita relação com a noção de
participação mística, esse sentimento oceânico desde
sempre tão presente nas narrativas mitológicas, e ainda
hoje presente nos sonhos e nos estados alterados da
consciência (o que inclui os quadros psicopatológicos),
ou ainda nos movimentos nos quais ocorrem
aglomerados humanos, como torna claro o estudo de P.
Sloterdijk sobre o tema:

[...] a massa, compreendida como massa-ajuntamento, não pode ser


encontrada em outro lugar senão no estado da pseudoemancipação
e da semisubjetividade - como algo vago, frágil, desdiferenciado,
conduzido por correntes de imitação e excitações epidêmicas, algo
fáunico-feminino (Sloterdijk, 2002, p. 17).

Justamente por tratar dos fenômenos da psique,


onde tudo também é “desdiferenciado, fáunico-
feminino”, é que Carl G. Jung – partindo da ideia
proposta inicialmente por H. Lèvi-Bruhl – retoma
esse conceito de participação mística, ressaltando sua
relevância:

A camada mais profunda que conseguimos atingir na mente do


inconsciente é aquela em que o homem ‘perde’ a sua individualidade
particular, mas onde sua mente se alarga mergulhando na mente da
humanidade – não a consciência, mas o inconsciente, onde somos
todos iguais [...]. A esse nível coletivo não somos mais entidades
separadas, somos um. Podemos compreender isso quando
estudamos a psicologia dos povos primitivos. O fato que mais salta
à vista, na mentalidade primitiva, é essa falta de diferenciação entre
os indivíduos, essa união de sujeito e objeto, essa ‘participation
mystique’, como a chama Lèvy-Bruhl ( Jung, 2000, p. 59).

Ao tratar da questão da participação mística, Jung


pontua que o próprio Lèvy-Bruhl sofreu em sua época
um sério ataque por parte de etnólogos e antropólogos
ao tratar dessa questão, levando-o posteriormente a

36 | malena contrera
recapitular sobre o que havia afirmado anteriormente.
No entanto, Jung reafirma a validade desse conceito
e diz que ele trata exatamente de um processo de
identificação inconsciente, bastante compreensível pela
ótica dos fenômenos da psique, afirmando que:

Para evitar mal-entendidos devo lembrar que Lèvy-Bruhl


infelizmente retirou depois este termo devido a pressões da
crítica negativa. Mas seus críticos não têm razão, pois a identidade
inconsciente é um fato psicológico bem conhecido ( Jung, 2000, p.
197).

Berman também defende que essa participação


mística, longe de ser uma condição do homem
primitivo, como afirma o senso comum, é parte da
natureza humana em si mesma, ou, melhor dizendo,
parte da condição básica de toda matéria viva, e propõe
uma noção ampliada desse fenômeno que, no âmbito
dos processos de consciência humanos, poderia ser
designado como consciência participativa.
Essa consciência participativa leva o homem a buscar
uma profunda interação afetiva e psíquica com o
mundo com o qual interage, estabelecendo uma forma
de comunhão, o que não implica, obviamente, no
apagamento das tensões e contradições, considerando
a natureza ambivalente do ser humano, já tão bem
demonstrada pelos estudos da Psicologia15.
Ao nos referirmos às formas de consciência, questão
que subjaz ao processo de desencantamento do mundo,

15
Pareceu-me incrível que muitos pesquisadores de Comunicação com os
quais tive o prazer de debater sobre algumas dessas ideias se resistissem tanto,
ainda hoje, com a ideia de aproximação entre os processos de Comunicação
e Comunhão. Talvez isso se deva ao fato de que a maior parte deles baseia-
se numa visão de Comunicação como um ato totalmente consciente e sob o
controle da razão de um sujeito plano, sem inconsciente, sem ambivalências,
ou seja, o sujeito ideal do cartesianismo, considerado apenas em sua natureza
política.

Mediosfera | 37
pretendemos também propor a impossibilidade de se
pensar o fenômeno comunicativo sem considerarmos o
papel das transformações da consciência humana (e de
seu grau de inconsciência). Até mesmo porque sabemos
que o surgimento das capacidades simbólicas de
linguagem no homem se dá justamente com a irrupção
da consciência16.
Podemos considerar que essa forma de consciência
e de cognição que caracterizaria o desencantamento
do mundo tem seu marco divisório, segundo Morris
Berman afirma, em Francis Bacon (1561-1626) – cujo
pensamento postulava o império do homem sobre as
coisas do mundo e o conhecimento como um meio
seguro de conquistar o poder sobre a natureza – e em
René Descartes (1596-1650) e seu elogio à racionalidade
como forma única de conhecimento, com a proposição
de um método atomizador e quantificador, que é seguido
por Isaac Newton (1643-1727) e sua visão mecânica do
mundo. A mecânica newtoniana seria, segundo o autor,
o passo definitivo para o desencantamento do mundo.
William Blake soube entender isso quando criou “O
sonho de Newton”.
Não nos referiríamos a esse paradigma mecanicista,
originário do final do século XVI, se não constatássemos a
espantosa sobrevivência e atualidade desse pensamento,
como afirma Berman:

Y a pesar de que la física del siglo XX ha modificado significativamente


los detalles de la síntesis newtoniana, todo el pensamiento científico,

16
O que também sempre me causou estranhamento é ver estudos que
abordam a questão da imagem que ignoram completamente sua dimensão
cognitiva. Ou seja, a desconsideração de que, em última instância, é nosso
aparato perceptivo-cognitivo e nossa psique que, em nós, concebe as
imagens, desconsiderando também que justamente a articulação entre esse
aparato perceptivo-cognitivo com a dinâmica consciência/inconsciência que
estabelece diferentes formas de consciência (Damásio, 2000).

38 | malena contrera
O sonho de Newton, William Blake, 1795/1805.

si no el carácter mismo del pensamiento empírico racional


contemporáneo en general, permanece, en esencia, profundamente
newtoniano (Berman, 2005, p. 115).

Essa é uma constatação que necessitamos fazer


especialmente no âmbito da Comunicação, que
ironicamente se tornou, em grande parte, representante
contemporânea da fé nesse pensamento mecanicista
abandonado já há décadas por outras áreas.
O pensamento de Weber diagnostica como essa
visão de mundo mecanicista matizou as novas formas
de conceber a religiosidade do século XVII em diante.
Se considerarmos isso, torna-se possível compreender
porque a crise do sentido, a segunda questão central
identificada por Weber como um dos fenômenos

Mediosfera | 39
constitutivos do processo de desencantamento do
mundo, não implica literalmente num esvaziamento do
sentido, mas sim, como apontou Pierucci (2003, p. 88,
grifo nosso), num processo aparentemente contrário, no
qual há o “[...] ingresso num universo significativamente
ordenado pelas ideias religiosas”.
Trata-se de um processo de racionalização que
transferiu a centralidade da religião da esfera da experiência
religiosa para a esfera das ideias religiosas, gerando o
que poderíamos considerar uma crise do sentido pelo
excesso do sentido, mas pelo excesso de um sentido
construído a partir de uma codificação racionalizadora
(diferente da racionalidade propriamente dita, como
veremos adiante), a qual passam a se submeter todas as
experiências religiosas e que vem de mãos dadas com
o apagamento do corpo e a crise do ritual. Um excesso
de codificação que mata o sentido propriamente dito17 e
que desloca a centralidade do sagrado.
Essa questão é apresentada, de forma exemplar, por
G. Durand quando ele trata da imaginação simbólica –
o que nos interessa ainda mais se considerarmos que o
que exatamente estamos tratando ao falarmos da crise
do sentido é a crise do pensamento simbólico:

[...] o Ocidente sempre opôs aos três critérios precedentes (à


corrente cientista saída do cartesianismo) elementos pedagógicos
violentamente antagônicos: à presença epifânica da transcendência
as Igrejas irão opor dogmas e clericalismos; ao ‘pensamento
indireto’ os pragmatismos irão opor o pensamento direto, o
‘conceito’ – quando não é o ‘preceito’ – e, finalmente, face à
imaginação compreensiva, ‘mestra de erro e falsidade’, a Ciência
levantará longas sucessões de razões da explicação semiológica,
assimilando aliás estas últimas às longas sucessões de ‘fatos’ da

17
Não deixa de ser interessante lembrar que essa excessiva necessidade de
codificação e hiperatribuição de sentido, que enrijece qualquer forma de
cognição, é um dos traços encontrados por L. Navratil (1972) em esquizofrênicos
e por J. Hillman (1993b) em paranóicos.

40 | malena contrera
explicação positivista. De certo modo, estes famosos ‘três estados’
sucessivos do triunfo da explicação positivista são os três estados da
extinção simbólica (Durand, 1995, p. 20).

Durand (1995, p. 21) arremata, de forma contundente:


“O cartesianismo assegura o triunfo do signo sobre o
símbolo”.
Esse talvez seja o mais preciso diagnóstico da
(ainda atual) crise do sentido, fundamento de toda a
literalidade e pobreza simbólica que assolam grande
parte das instâncias comunicativas contemporâneas,
preocupadas demais em ser ciência - ou mercado.

Racionalidade e racionalização

Em seus estudos sobre sociologia da religião, M.


Weber aponta para a evidência de que o processo de
racionalização da visão de mundo foi responsável
pela passagem de uma religiosidade mágica a uma
religiosidade ética, ou seja, por uma desmagicização
que teve como raiz a separação entre corpo e
espírito, dessacralizando o corpo e postulando uma
espiritualidade centrada em acordos éticos geradores
de leis, processo esse todo baseado numa crescente
abstração da divindade que correspondia à ideia de um
deus imaterial e imaterializável (destruindo a hierofania
e a transmutação alquímica), situado na dimensão
abstrata de um céu superior, no além, de onde ele legisla
(mediado pelos seus representantes institucionais) sobre
o cotidiano desencantado do mundo. Nesse sentido,
de fato, as práticas e ações religiosas adquirem uma
finalidade exclusivamente legisladora, abafando a
possibilidade da experiência do sagrado, que até então
presumia necessariamente também uma vivência
corporal, e transferindo toda a questão da religiosidade
para um território abstrato que reitera os processos

Mediosfera | 41
racionalizadores18.
Essa abstração propõe, em seu sentido implícito,
uma deslegitimação do corpo e das vivências sensório-
motoras, como propõe F. Varela (2002), em prol de
uma visão de “corpo desprovido de pessoa”, gerando a
solução newtoniana apontada por M. Sodré:

Como a carne se revela um embaraço para a racionalidade, banaliza-


se o recurso à metáfora mecânica para designar e tecnologizar a
corporeidade (Sodré, 2006, p. 32).

Vemos na maneira ainda dominante de as pessoas


imaginarem o corpo como uma máquina, um exemplo
claro do que estamos falando.
Voltando às religiões éticas, Pierucci frisa que esse
aspecto racionalizador que Weber nelas reconhece
possui uma característica peculiar (já que ele percebe
que as práticas mágicas também são movidas por uma
prática racional19).

O processo de racionalização religiosa é também, de um outro


ponto de vista, um processo de intelectualização da oferta religiosa”
(Pierucci, 2003, p. 87).

Entendemos que esse processo de intelectualização


a que Pierucci se refere diz respeito exatamente à
instalação de uma “racionalidade crônica” que modela

18
Essa relação entre a visão religiosa do século XVII e o interesse legislador,
fica clara também em T. Hobbes, quando ele defende a ideia de uma
sociedade pautada pelas Leis da Natureza, por ele entendidas como “a ordem
da reta razão” – leis estas que reconhecem na realeza e no clero os legítimos
detentores do poder simbólico, logo, os legisladores.
19
“Um ato de magia é um ato de racionalidade prática subjetivamente
racional com relação a fins, ainda que irracional nos meios. O problema
com a magia é que sua validade salvífica ‘aguda’ não instala no indivíduo a
racionalidade ‘crônica’ de uma ‘conduta de vida’ (Lebensführung). Ela não fixa um
‘estado duradouro’ (Dauerhabitus).” (Pierucci, 2003, p. 88, grifos nossos).

42 | malena contrera
Detalhe de Der Mensch als Industriepalast, Fritz Kahn, 1926.

Mediosfera | 43
as condutas de vida e que vai gerar, nas palavras de
M. Sodré (2006, p. 32,) uma “vida social mecânica e
previsível”.
Esse tipo de nova racionalidade (melhor seria dizer
racionalização) proposta pelas religiões éticas se distingue
das formas de racionalidade anteriores e para entender
esse processo talvez seja importante recorrer à proposta
de distinção que E. Morin faz entre racionalidade e
racionalização (esta última relativa às religiões éticas),
não por acaso relacionando a racionalização exatamente
ao modelo mecanicista de pensar o mundo:

A racionalidade é a melhor proteção contra o erro e a ilusão... Mas


a racionalidade traz também em seu seio uma possibilidade de
erro e de ilusão quando se perverte, como acabamos de indicar,
em racionalização. A racionalização se crê racional porque
constitui um sistema lógico perfeito, fundamentado na dedução
ou na indução, mas fundamenta-se em bases mutiladas ou falsas
e nega-se à contestação de argumentos e à verificação empírica. A
racionalização é fechada, a racionalidade é aberta. A racionalização
nutre-se das mesmas fontes que a racionalidade, mas constitui uma
das fontes mais poderosas de erros e ilusões. Dessa maneira, uma
doutrina que obedece a um modelo mecanicista e determinista
para considerar o mundo não é racional, mas racionalizadora
(Morin, 2000, p. 23).

O processo de desencantamento do mundo


apontado por Weber é exatamente fundado nesse
modelo mecanicista racionalizador que nos apresenta
E. Morin. Nesse sentido é que podemos entender as
críticas científicas (especialmente das Ciências Sociais) às
práticas mágicas que sobrevivem na contemporaneidade
como sendo práticas irracionais, destituídas de qualquer
significado que deva ser considerado ou mesmo
respeitado, bem como a desimportância atribuída ao
papel das emoções.
Até mesmo no âmbito dos estudos da Comunicação

44 | malena contrera
o papel das emoções ficou muito negligenciado20, o
que demonstra o modelo racionalizador a que estamos
submetidos para pensar fenômenos que não são jamais
totalmente racionais, tais como são os fenômenos
comunicativos. Afinal, como diz J-P. Lebrun, “[...]
a existência do inconsciente é ainda um antídoto à
desumanização” (apud Melman, 2003, p. 137).
Sabemos que o que chamou especialmente a
atenção de M. Weber foi a conhecida relação que ele
propõe entre esse sistema de pensamento e o espírito
do capitalismo. Aqui vale a pena retomar essa relação
para pensá-la como contextualizadora do papel dos
meios de comunicação de massa em todo o século XX, e
da herança por eles deixada.
Essa visão de mundo desencantada, mecanicista, que
exclui a paradoxalidade e a incerteza como fenômenos
constituintes da vida, é a base da ciência moderna, sobre
a qual M. Berman afirma:

La ciencia moderna es el esquema mental de un mundo definido


por la acumulación de capital, y finalmente, citando a Ernest
Gellner, se convirtió en el ‘modo de cognición’ de la sociedad
industrial (Berman, 2005, p. 49).

Esse modo de cognição a que Gellner se refere é


representado por uma consciência não participativa que
propõe uma abordagem exclusivamente racionalizadora
do mundo e que coloca o homem (a quem o mundo

20
É necessário aqui fazer uma ressalva a alguns nomes que, no Brasil, têm
corajosamente tratado dessas questões ao longo de toda sua obra. M. Sodré e
N. Baitello Jr. são dois desses pesquisadores. Sodré dedica inclusive à questão
da relevância dos afetos para a mídia contemporânea seu livro As estratégias
sensíveis. Certamente há outros tantos nomes (Ciro Marcondes Filho, Eduardo
Peñuela, Alberto Klein, Rose Rocha, Raquel Paiva, Juremir Machado, Gustavo
de Castro, Josimey Rocha, Eugênio Menezes e muitos outros, com os quais
espero não estar sendo injusta), mas deixo aqui, a estes dois pesquisadores,
meu agradecimento pessoal por seu trabalho.

Mediosfera | 45
foi presenteado pelo seu Criador) no topo da cadeia
evolutiva, gerando uma visão antropocêntrica narcisista
que vê o mundo de forma objetal e desprovido de vida
e de alma. Essa visão de mundo é, de fato, muito mais
conveniente aos interesses econômicos e políticos que
despontavam do que à visão encantada pagã que via na
natureza o corpo e a morada dos deuses.
Berman pontua com muita clareza a afinidade
ideológica entre o paradigma mecanicista e o modelo
econômico capitalista que dele surge, ao falar da posição
que assume o poder instituído (Igreja Católica e governo
político) no período que antecede ao surgimento do
capitalismo:

Para esos grupos la idea de la materia viviente no constituía tan


solo una herejía, sino que también era inconveniente desde el
punto de vista económico. Una tierra inanimada rompe el delicado
equilibrio ecológico que se mantenia en la tradición alquímica,
pero si la naturaleza es algo muerto, entonces no hay restriciones
para explotarla en beneficio propio (Berman, 2005, p. 124).

É preciso considerar ainda que essa visão hermética


medieval, a que Berman se refere como alquímica,
é também resultado de uma enorme resistência das
tradições religiosas mágicas e politeístas que, por conta
da ainda enorme adesão popular, sobreviviam sob as
mais diversas formas, designadas aqui por ele, de forma
geral, como “visão hermética”. Esse hermetismo, na
realidade, abrigava uma vida religiosa panteísta com
uma gama de cultos e seitas mais ou menos autônomos e
autogestados, dando certa autonomia a pequenos grupos
de poder que conviviam de forma descentralizadora.
Certamente que ao espírito do tempo moderno,

46 | malena contrera
expansionista, centralizador e titânico21, que preparava
o cenário adequado para o surgimento e o triunfo da
industrialização e do capitalismo, essa visão de mundo e
essas práticas religiosas não convinham.
Referindo-nos ao cenário da Comunicação,
herdamos, como consequência, um mundo cujo
pensamento científico instituído e institucionalizado
sobre os fenômenos comunicativos promove o triunfo
da quantidade em detrimento da qualidade (com a
tirania dos medidores de impacto e índices de audiência),
da funcionalidade em detrimento do significado, da
eficiência em detrimento da criatividade e da vivência,
que sempre são lentas demais para o princípio da
eficiência e do resultado produtivistas22.
As implicações desse cenário no universo da
comunicação e dos meios são muitas e evidentes, mas
duas especialmente significativas são a fé na eficiência
numérica e na quantificação – que subjaz a uma visão
funcional e mercadológica da comunicação – e a fé na
técnica.
Da primeira podemos dizer que a grande mídia, e
mesmo as esferas que deveriam fazer a crítica a ela, são
regidas por índices de audiência e valoração suprema
dos medidores de impacto (numéricos) no lugar da
pergunta sobre a significância de algo, embasadas em
sistemas quantificadores de avaliação, transformando
as estratégias de marketing (o que inclui o marketing
pessoal e a política de interesses) no atual ethos da

Sobre o titanismo na cultura e na comunicação nos remetemos ao texto “Os


21

maiores e os melhores do mundo: o titanismo na comunicação e na cultura”,


da presente autora (2004).
22
Como herança disso para as relações entre pesquisadores no cenário atual do
campo da Comunicação no Brasil, temos o fato de que o “olhar do avaliador”
tem tragicamente se sobreposto ao “olhar do conhecedor, do interessado”.
Todos nos avaliamos, poucos nos conhecemos.

Mediosfera | 47
produção em comunicação. A importância que se dá ao
número de registros de visitantes nos blogs é sintomática
de que essa prática dos meios de comunicação de
massa está, infelizmente, de tal maneira introjetada na
sociedade atual que, ainda que dela pudéssemos agora
escapar, continuamos a reproduzi-la23.
Essa paixão pela quantificação, herdada do
pensamento capitalista do lucro e do crescimento
indefinidos, traz em si também um enorme gosto pela
funcionalidade técnica dos meios de comunicação,
questão que é sempre ressaltada ao custo da minimização
da discussão sobre o impacto semiótico e psicoafetivo24
desses meios junto à sociedade, e especialmente, se
e como eles cumprem seu papel de mediação (o que
inclui uma política de comunicação, ainda inominável
no Brasil).
Esse aspecto do desvio de questões fundamentais
por conta do encantamento pela funcionalidade da
técnica está evidenciado, por exemplo, na maneira
como ocorreu a implantação da TV digital no Brasil.
A enorme quantidade de pessoas ligadas às esferas
política, industrial e até mesmo científica que
estiveram envolvidas nesse projeto ocuparam-se, em
sua quase totalidade, da discussão de aspectos técnicos
e mercadológicos, calando sistematicamente sobre a
ausência de uma política de comunicação que pense

23
A esse respeito, emblemático é o exemplo oferecido por Suely Fragoso e
Nísia Rosário no texto “Just like me, but better”, publicizado na 6a Conferência
Internacional em Cultura, Tecnologia e Comunicação ( julho de 2008),
no qual apresentam uma pesquisa com 61 avatares do Second life, de 19
nacionalidades, e na qual identificaram que os avatares seguiam um padrão
de beleza estereotipado (homens altos e fortes, mulheres de cabelos longos e
seios grandes, etc.), exatamente o mesmo padrão oferecido pela grande mídia
de massa, mostrando claramente que ainda não houve a tão festejada des-
formatação estética ou ideológica das cabeças, resultado a maior liberdade do
usuário, como prometido pelas novas tecnologias da comunicação.
24
Remeto o leitor à nota de rodapé 22.

48 | malena contrera
essa nova possibilidade como fator comunitário,
mesmo quando sabemos que os modelos tecnológicos
e de negócios escolhidos, longe de serem neutros,
definirão em parte o que poderá ser realizado
posteriormente25.
Como consequência, ainda temos a máquina
funcional da grande mídia, que garante a padronização e a
velocidade de circulação da informação-mercadoria, seja
ela jornalística, pseudoeducativa ou de entretenimento (e
nesse sentido as mais recentes tecnologias dos meios de
comunicação não efetivaram a prometida desformatação
das cabeças, como vemos na pesquisa de Fragoso e
Rosário, acima citada), em detrimento do tempo lento da
reflexão e da experimentação, ou ainda em sacrifício da
diversidade criativa.
A segunda implicação, a fé na técnica, merecerá uma
reflexão à parte, que propomos mais a frente.

A vingança do objeto

O tipo de consciência que se dá a partir da


dissociação entre sujeito e objeto postulada pelo
pensamento cartesiano (feito projeto de mundo pela
ciência newtoniana, e que, como falamos acima, ainda
subjaz à maior parte do pensamento sobre as Ciências
Humanas e Sociais) foi peça fundamental ao triunfo do
capitalismo, para o qual um mundo objetal, destituído
de qualquer poder mágico, convertia-se em matéria-
prima perfeitamente adequada à lógica de produção
industrial. Vilém Flusser foi um dos que melhor
retrataram esse processo:

25
Sobre esse processo nos referimos ao estudo de mestrado de Ivan Peñuela
(2009) a respeito dos dilemas da implantação da TV Digital no Brasil, realizado
na UNIP em 2009.

Mediosfera | 49
[...] todo (ou praticamente todo) pensamento filosófico ocidental
está viciado por um ódio fundamental à natureza [...]. A história do
Ocidente é a realização progressiva desse ódio [...]. É a progressiva
profanação da natureza. Em seu ódio à natureza, em seu esforço
de humilhá-la, o homem ocidental se afasta dela e se opõe a ela.
Assume, nesse alheamento, a posição de observador. Torna-
se sujeito, cujo objeto é a natureza. A objetivação do mundo da
natureza, em oposição à subjetivação do mundo sobrenatural
(‘espiritual’) tem por consequência a transformação da natureza
em conjunto de objetos definidos ou definíveis. A natureza se
transforma em sistema de coisas, cada qual com seu lugar fixo. A
natureza fica paralisada nesse sistema. Torna-se manipulável. As
coisas da natureza, humilhadas e enquadradas no sistema, tornam-
se acessíveis ao trabalho manipulador do ‘espírito’, desse sujeito
sobrenatural da natureza. As coisas podem ser transformadas em
instrumentos. Impelido pelo ódio à natureza, o homem ocidental
a manipula, transformando-a em conjunto de instrumentos, em
parque industrial (Flusser, 2002, pp. 108-109).

Feliz e rico, habitando seu lindo parque industrial, o


mundo capitalista foi o palco dos atos finais do triunfo do
sujeito sobre o objeto. O sujeito moderno, que tomava
a si mesmo como o centro do mundo, considerou-se
seguro em sua ilusão de controle e autocontrole. Nessa
ilusão baseiam-se todas as propostas que consideram a
comunicação como um ato exclusivamente centrado na
razão e na consciência.
A Biosfera (os nichos naturais), antigo reduto mágico
da morada dos deuses, agora convertida na fonte
inesgotável de geração do parque industrial, foi, porém,
mais vingativa do que se imaginava, trazendo de volta
cenários dignos dos mitos das culturas arcaicas26. O
mundo-objeto, humilhado e transformado em produto
consumível, sempre descartável por conta da crescente
obsolescência de um projeto de vida centrado na
obsessão pela ideia de conforto e atualidade, encontrou
meios para sua vingança.

26
Referimo-nos aqui à vingança da Grande Mãe mitológica, arquétipo sobre
o qual trataremos mais adiante.

50 | malena contrera
J. Baudrillard, sempre brilhante e incômodo, falou
sobre essa vingança ao referir-se à crise do sujeito e à
superioridade do objeto:

O objeto é aquilo que desapareceu no horizonte do sujeito e é do


fundo desse desaparecimento que ele envolve o sujeito em sua
estratégia fatal. É então o sujeito que desaparece no horizonte do
objeto (Baudrillard, 1996, p. 102).

Baudrillard trata aqui do desgaste do projeto


moderno da subjetividade humana que, cansada de
si mesma e oprimida pela própria responsabilidade,
tendo de pagar a conta pelo infinito equívoco dessa
dissociação entre sujeito e objeto, esfacela-se no
esgotamento da própria ilusão de onipotência. O
homem contemporâneo não é mais o homem do
desejo, é o homem da indiferença, do cansaço frente
ao próprio narcisismo, diz Baudrillard:

[...] intimado a pôr em jogo, como sujeito, sua fraqueza, sua


fragilidade, sua feminilidade, sua morte, intimado a se demitir
como tal (não apenas o sujeito psicológico mas também o do poder
e o do saber) o sujeito foi apenas aprisionado no melodrama do
próprio desaparecimento - ele está cansado de se desfazer, de
se convulsionar nas próprias bases, de buscar um ‘gentleman’s
agreement’ com o seu objeto, o mundo, que ele se gabava de
dominar em proveito próprio (Baudrillard, 1996, p. 101).

É a partir desse desgaste, desse “cansaço” do sujeito,


da derrota frente a aparente passividade do objeto, que
J. Baudrillard propõe uma revisão da noção de servidão
voluntária, proposta por Adorno, que nos parece
fundamental para os estudos da comunicação de massas
e para o entendimento do fascínio exercido pelos meios
de comunicação eletrônicos:

Todo o problema da servidão voluntária deve ser revisto nesse


sentido, não para resolvê-lo, mas para pressentir seu enigma: a
obediência é uma estratégia banal, com efeito, e que não precisa

Mediosfera | 51
ser explicada, pois ela contém um segredo, toda obediência contém
em segredo uma desobediência fatal para a ordem simbólica
(Baudrillard, 1996, p. 161).

A servidão voluntária que assistimos durante todo


o século XX foi também, de certa maneira, não uma
forma de resistência, mas uma forma de desistência.
Desistimos da ordem simbólica.
A natureza e os deuses que a habitavam renderam-
se obedientemente à soberania do sujeito racional,
do produtor/consumidor, mas, em segredo, sua
rendição desequilibrou o jogo de forças entre os
opostos, desenergizando o sujeito, evidenciando o
ridículo de sua ordem simbólica autorreferente. O
silêncio aparentemente submisso dos deuses pagãos
(escondidos nos objetos) colocou abaixo a ordem
simbólica do mundo monoteísta. Os deuses partiram,
mas levaram com eles a possível ordem simbólica, já
que o monoteísmo e sua proposta racionalizadora não
foi capaz de dar conta da complexidade do mundo vivo.
Talvez assim possamos compreender porque os deuses
do monoteísmo se tornaram tão furiosos. A fúria e o
terror como uma reação à perda do poder.
Essa é também a crise do sentido a que nos referimos
como constitutiva do processo de desencantamento do
mundo. Por trás da busca de objetividade da ciência
moderna, escondia-se o desejo de domínio do sujeito
egocêntrico da racionalidade que a tudo precisava
atribuir um sentido específico (de preferência único),
realizando a crise do sentido pelo excesso de codificação,
pela saturação. É preciso que se entenda isso: que o
sentido não se esvazia pela falta, mas pelo excesso, pelo
desejo de exercer absoluto controle racional sobre o
mundo e sobre as relações entre as coisas (incluindo as

52 | malena contrera
pessoas) que habitam esse mundo racionalizado27.
Em um determinado ponto, cansados de decidir, de
comandar, inseguros frente aos rumos do fracasso do
projeto capitalista de gozo infinito por meio do consumo,
entregamo-nos ao fascínio do objeto. C. Mellman (2003,
p. 56) chega mesmo a afirmar que “Estamos, doravante,
em estado de adição com relação aos objetos”. Deixamos
de desejar para sermos submetidos, na transferência
do centro da ação da consciência do sujeito para a
inconsciência do objeto28. E o inconsciente, como dizia
Jung, é o nosso destino. Neste sentido, sermos seduzidos
pelo objeto é, para nós, inescapável, fatal. Ao objeto
estamos destinados. Essa inversão, que, no entanto,
continua mantendo a dissociação entre sujeito e objeto
em um grau de radicalidade patológico, é a tônica das
nossas relações comunicativas contemporâneas.
Toda a centralidade da prática social comunicativa
se pauta hoje (e já há algumas décadas) por essa lógica:
o sujeito serve às demandas do apelo dos objetos, à sua
sedução (e para isto está a Publicidade e a Propaganda),
ou, ainda, desfaz-se na subserviência ao caráter objetal
dos aparatos tecnológicos da comunicação (o fetiche
pela tecnologia dominante nas práticas das mediações
sociais contemporâneas).
A subjetivação do mundo antecedeu nosso atual
cenário de objetivação do humano. E esse embate entre

27
“Dizem que o pensamento selvagem subjetiva tudo, sem levar em conta a
objetividade do mundo. Mas somos nós que, por trás do álibi da razão objetiva,
subjetivamos tudo, psicologizamos tudo, impondo a tudo uma subjetividade
oculta” (Baudrillard, 1996, p. 149).
28
Vemos aqui a realização do processo de enantiodromia, assim apresentado
por C. G. Jung (1989, p. 363): “Todo extremo psicológico contém secretamente
o seu oposto ou está de alguma forma em estreita relação com ele. Na
verdade, é desta contradição que ele deriva a dinâmica que lhe é peculiar...
quanto mais extrema se tornar uma posição, tanto mais se pode esperar a sua
enantiodromia, sua reversão para o contrário”.

Mediosfera | 53
indissociáveis está na raiz do que entendemos como o
processo de desencantamento do mundo, que, agora
em sua forma atual, vê inverter-se o eixo do poder do
sujeito para o objeto, sem, contudo, proceder ao que
alguns consideram um reencantamento. Não penso
que se possa confundir o fascínio que o objeto exerce
sobre o sujeito (sobretudo o objeto técnico) com a
situação anterior ao processo de desencantamento, na
qual sujeito e objeto não pretendiam subjugar um ao
outro, mas se imbricavam numa espécie de consciência
participativa, para utilizar o termo proposto por M.
Berman.
Mas o objeto encontra também outra estratégia de
vingança: sua própria dissolução. Após capturar o sujeito
no poder atrator do fetiche, o objeto se desintegra, se
desmaterializa, vira imagem. C. Melman (2003, p. 140)
nos diz que “O último arrimo, ou o único que temos
hoje em dia e em torno do qual todo o planeta se põe a
gravitar, é o objeto”.
Ironicamente, o apelo fetichista do objeto é o
último reduto da materialidade do mundo, de sua
concretude, de uma corporalidade que, aos poucos, vai
se apagando no cenário do imaterial. Talvez subjaza ao
consumo compulsivo de nossa época, a última forma de
resistência a essa total desmaterialização do mundo.
A. Gorz vai falar do surgimento de um mundo
imaterial sobre os restos da matéria morta do antigo
mundo. Segundo Gorz (2005), a crise do modelo
tradicional de produção de bens materiais e do sistema
de atribuição de valores é seguida pela invenção do
bem imaterial, pelo triunfo do significado simbólico
do produto em detrimento de seu valor de uso. Sobre
isso também J. Baudrillard havia falado em seu O sistema
dos objetos, como sabemos. Gorz deixa claro, no entanto,
que esse não é um passo para uma quebra do sistema

54 | malena contrera
capitalista de produção e consumo, mas uma nova
estratégia deste:

[...] vemos que o capital fixo imaterial é utilizado num plano


inteiramente diferente: ele funciona como um meio de produzir
consumidores. Dizendo de outro modo, funciona para produzir
desejos e vontades de imagens de si e dos estilos de vida que,
adotados e interiorizados pelos indivíduos, transformam-nos nessa
nova espécie de consumidores que ‘não necessitam daquilo que
desejam, e não desejam aquilo de que necessitam’ (Gorz, 2005, p. 48).

Certamente Gorz, em suas considerações posteriores,


faz uma aposta otimista na qual esse mundo do imaterial
seja capaz de emancipar-se desse contexto capitalista
que o cria e abrir espaço para uma nova era, na qual seja
possível resgatar valores não meramente comerciais,
centrados em novas formas de sociabilidade.
Não vimos isso acontecer em escala significativa
ainda – mantemos as esperanças –, mas não nos
enganemos com o presente momento. O que vemos,
sim, é a plena realização da cultura das “imagens de si e
dos estilos de vida”, apontada por Gorz.
Esse é exatamente o cenário apresentado por
Norval Baitello Jr., a partir de um antigo diálogo com
D. Kamper29 (que fala do triunfo da imagem sobre o
corpo), acerca da era da iconofagia. Baitello nos diz:

Como o alimento das imagens é o olhar e como o olhar é um gesto


do corpo, transformamos o corpo em alimento do mundo das
imagens (Baitello, 2005, p. 86).

Livres da sedução dos objetos concretos, com os


quais, no entanto, podíamos ainda ter um corpo a corpo

29
É brilhante a reflexão que Kamper (1997) faz acerca de como o louvor ao
trabalho, bandeira central da ética protestante e do espírito do capitalismo, é
uma estratégia final de apagamento do corpo.

Mediosfera | 55
que possibilitasse a irrupção do erótico, em toda a sua
sensorialidade, vemo-nos na inescapável incorporeidade
da imagem. Esse fim do gozo, inviabilizado pela
supremacia da imagem autorreferente, que abriga a
minimização da propriocepção, abre espaço para o que
C. Melman chamaria – partindo do que ele designa
de uma crise das referências, a simulação como ethos
– de uma nova economia psíquica, “uma economia
organizada pela exibição do gozo” (Melman, 2003, p.
16). E a palavra-chave dessa afirmação é exibição, não
gozo. Isso evidencia o papel central da visibilidade
para a questão do reconhecimento que está na base do
processo social. Melman compara a atual situação com
a que vigorava anteriormente:

O sujeito capitalista, hoje, corre sem parar atrás desse


reconhecimento, exposto a todos os acasos do futuro próprio
à economia, isto é, arriscando se arruinar, ser preso, em suma,
desaparecer. Estamos em duas lógicas completamente diferentes:
uma é fundada na assunção do traço que assegura a identidade;
a outra é organizada pela busca incessante das marcas de uma
identidade que só vale no olhar do semelhante, que só pode ser
validada por um efeito de massa – reconhecimento público,
mediático – e que nunca é definitivamente adquirido (Melman,
2003, pp. 172-173).

Esse estado de dependência pelo reconhecimento


público e mediático do sujeito contemporâneo levou à
total desrealização do próprio sujeito que, transformado
em refém das imagens e dos meios eletrônicos (os
únicos com o impacto necessário ao efeito de massa),
torna-se não ficção mutante, pronto a criativamente
se reinventar a cada momento, como alguns propõem,
num gesto invejável de otimismo, mas sujeito que
se converte em matéria-prima e fonte de energia dos
aparatos de visibilidade mediática.
Esbarramos aqui com a questão da autonomização
do aparato mediático, consequência do triunfo do que

56 | malena contrera
J. Habermas (2007b) chamará, ao falar sobre Weber, a
conversão da ciência e da técnica em ideologia.
Essa desrealização, apontada por Melman (2003),
é o que nos desinvestiu do sentido, já que não nos
identificamos mais com o próprio corpo. Resta-nos
então a cultura da aparição e da experimentação
ilimitada30, e de sua principal prática: o excesso.

Uma cultura do excesso (que pensa ser êxtase)

Desencantar a natureza (o concreto), expulsar dela


os deuses, foi uma atitude que gerou um abismo sobre
o qual o pensamento racional não conseguiu construir
pontes. E onde faltam pontes, a única saída é atirar-se ao
abismo. Esse pulo no abismo, para a nossa época, tem
um nome: êxtase.
Corolário da apologia do excesso, típica da era
industrial capitalista, o êxtase parece ser a resposta do
homem contemporâneo à vacuidade do sujeito e ao
desaparecimento do objeto que o seduziu.
Sabemos que o êxtase nasce com a cultura, com o
símbolo, com o homo religiosus31; não é novo o fato de
que o êxtase sempre nos pareceu irresistível. Nova,
porém, é a sua emancipação do contexto do ritual
e da busca de transcendência, já que inicialmente o
homem buscava os estados alterados da consciência e
o êxtase nas práticas religiosas ou em rituais específicos
(que ele cria exatamente para conter e significar essas
práticas), em práticas que demarcavam claramente o
caráter extraordinário do êxtase – com tempo e espaço
diferenciados e delimitados – e que o relacionavam
com uma função transcendente ou mítica. O êxtase

30
Essa ideia é claramente trabalhada por J. Baudrillard no livro Telemorfose.
31
Termo utilizado por M. Eliade para tratar do caráter religioso do homem.

Mediosfera | 57
era, enfim, um meio para a ampliação da consciência
ou para a comunicação com os deuses (como no caso
do Xamanismo), e não um fim em si mesmo. Menos
ainda era o êxtase sinônimo de divertimento ou prazer,
buscado no dia-a-dia como uma prática individual32.
A mobilidade permanente do homem pós-
moderno, sua constante conectividade eletrônica
que deslocou sua presença para lugar nenhum, fez-se
acompanhar pela busca da velocidade e de seu ponto
máximo de desaparecimento do próprio objeto, ou seja,
a virtualidade pura da onipresença da rede. Melman
coloca muito bem essa questão, apontando para esse
estado de permanente mobilidade:

O zapping não é só das imagens, mas também do subjetivo. Você


não lida permanentemente com o mesmo sujeito. Você lida com
uma feição se possível neutra e insignificante, mas que é a máscara
de uma subjetividade móvel (Melman, 2003, p. 94).

Estava claro que as práticas corporais


acompanhariam esse processo, seja na paixão pela
velocidade dos centros urbanos, seja, bem mais ainda,
na paixão pela desincorporação, pelo desaparecimento
do sujeito (e da consciência) mediático, transformado
em elemento operacional do aparato mediático:

Quando se vê jovens passearem na rua com seus fones de ouvido


para, como é dito, escutar música, você verdadeiramente tem
o sentimento de assistir a uma espécie de tentativa mecânica de
produzir um ruído alucinatório permanente (Melman, 2003, p. 94).

O que em especial nos provoca na fala de Melman


é essa busca de um estado alucinatório permanente por

32
Sobre esta relação entre excesso, êxtase e mídia, escrevi um texto, em
parceria com Marcela Moro, que está publicado na Revista E-Compós (2008).

58 | malena contrera
meio de tentativas mecânicas. O êxtase, antes buscado
em técnicas rituais e/ou religiosas (respiração, jejum, uso
ritual de alucinógenos, dança, canto, recitação de textos
sagrados, etc.), agora é buscado no uso da tecnologia
eletrônica. Tornamo-nos usuários – adictos – do êxtase
tecnológico.
Essa relação entre alguns aspectos da religiosidade
e a tecnologia será retomada mais adiante, após
refletirmos melhor sobre o contexto no qual esses
processos ocorrem – a Mediosfera.

Mediosfera | 59
capítulo 2

Mediosfera: a ação
dos meios no imaginário

Por que propor a existência de uma


Mediosfera?

O imaginário tem sido estudado a partir de diversos


pontos de vista33, sob sua fundação mitológica, suas
matrizes culturais, seus desdobramentos nas artes
(incluindo vastos estudos sobre o imaginário icônico das
artes plásticas e o imaginário literário), mas as questões
relativas ao imaginário necessitam de constante atenção
e atualização, considerando que se trata de um universo
vivo e pulsante, sobretudo quando consideramos
as relações entre o imaginário cultural e as criações
imagéticas e imaginárias34 dos meios de comunicação
contemporâneos.

33
Estamos aqui considerando os estudos da psicologia arquetípica (C. G. Jung
e os pós-junguianos, em especial E. Neumann e R. Lopez-Pedraza) e cultural
( J. Hillman) e em especial a contribuição fundamental de G. Durand, bem
como os subsídios teóricos aos estudos do imaginário advindos do trabalho
de mitólogos e de historiadores da religião, tais como M. Eliade, J. Campbell
e J. S. Brandão.
34
É preciso distinguir aqui as criações imagéticas, que dizem respeito ao
universo das imagens exógenas e de sua visibilidade (o que tangencia sua
relação com os suportes mediáticos), das criações imaginárias, que dizem
respeito ao universo das imagens endógenas, relativo aos arquétipos e aos
estereótipos, e que trata diretamente com a questão da produção simbólica.
Esses dois processos não são dissociados, mas cada um deles apresenta
condições próprias de produção e significação. Essa diferença entre as
imagens endógenas e exógenas, tal como a entendemos, foi apresentada em
artigo já publicado, “Na selva das imagens” (2006).

Mediosfera | 61
É necessário resgatar a noção de retroalimentação
entre o imaginário cultural e o imaginário mediático
para entendermos que os meios de comunicação,
especialmente os meios de massa do século XX, nascem
no contexto dos imaginários culturais originais, dos
mais arquetípicos aos mais locais, e tiram deles seu
poder central.
E. Morin trata amplamente desse processo em
seu livro Cultura de massas no século XX, do qual um
fragmento acerca desse processo pode ser considerado
emblemático:

Não há dúvida de que já o livro, o jornal eram mercadorias,


mas a cultura e a vida privada nunca haviam entrado a tal ponto
no mundo – antigamente suspiros de fantasmas, cochichos de
fadas, anões, duendes, palavras de gênios e de deuses, hoje em
dia músicas, palavras, filmes levados através de ondas – haviam
sido ao mesmo tempo fabricados industrialmente e vendidos
comercialmente. Essas novas mercadorias são as mais humanas
de todas, pois vendem a varejo os ectoplasmas da humanidade, os
amores e os medos romanceados, os fatos variados do coração e da
alma (Morin, 1986, pp. 13-14).

Se até meados do século XX os meios de comunicação


reeditavam com poucas intervenções os conteúdos do
imaginário cultural que são ancestrais (milenares) e
arquetípicos, suficientemente enraizados em vivências
comunitárias, ou seja, se contentavam em “vender a
varejo o coração e a alma”, a partir da ação dos meios
de comunicação de massa eles começam a criar uma
versão própria desse imaginário e a propagá-la de tal
modo que podemos conferir a esse processo um status de
crescente autonomia em relação ao imaginário cultural.
Essa nova versão é inicialmente gerada pelos processos
de seleção, edição, composição e recontextualização
desses conteúdos e de sua representação em imagens
audiovisuais – que, podemos dizer, constituem uma visão
bem própria –, para em seguida ser gerada pela criação

62 | malena contrera
dos simulacros dos meios eletrônicos, onipresentes
em sua possibilidade técnica, então emancipados
radicalmente da experiência social comunitária – o que
vale dizer, socialmente vivenciada concretamente nos
moldes das comunidades de origem, conforme aponta
Z. Bauman (2003).
Se pensarmos nos termos propostos por E. Morin
(1992) sobre a Noosfera, conforme visto, podemos
considerar que os seres da Noosfera, de natureza
arquetípica, sofrem um tratamento de tal modo
estereotipador nas produções mediáticas35 que a
redução simbólica realizada gera um universo próprio
que gradativamente se afasta de suas raízes originais de
referência, gerando “seres do espírito” pertencentes a
uma esfera própria, a Mediosfera36.
É preciso reiterar que não estamos propondo que
a Mediosfera seja uma esfera a parte da Noosfera, mas
que, como um núcleo no âmago desta, cresceu e inflou
titanicamente37 de modo a vampirizar aos poucos a
energia dos outros conteúdos da Noosfera, pressionando
os limites da primeira por dentro. A analogia com um
tumor pode ser de mau gosto, mas parece bem real.
Nesse sentido, apesar da inspiração original nas
culturas populares, de raízes míticas e arquetípicas, como
bem assinala Morin (1992), a Mediosfera gradativamente

35
Essa transformação de conteúdos arquetípicos em formatos estereotipados
foi objeto do artigo “Publicidade e Mito”, do livro Publicidade e Cia (2003).
36
Deixo aqui meu agradecimento a Maria Helena Weber que, numa breve
conversa em um almoço, ao me dizer que não concebia a existência de um
imaginário mediático (uma Mediosfera) descolado do imaginário cultural,
me alertou sobre a necessidade de esclarecer com calma como concebo essa
mútua imbricação entre os dois imaginários, ainda assim considerando a
existência de uma Mediosfera. São, de fato, os exercícios de alteridade que
nos levam adiante.
37
Essa dinâmica que se pode chamar de titânica dos meios de comunicação
contemporâneos foi apresentada no artigo “O titanismo na comunicação e na
cultura” (2004).

Mediosfera | 63
vai inflando e roubando de outros núcleos do
imaginário cultural seu poder de centralização dos
olhares e da energia psíquica.
Considerando o caráter da visibilização radical dos
meios eletrônicos, é preciso não subestimar o poder do
gesto de olhar. O olhar, como sabemos, é o alimento
das imagens exógenas, o que equivale a dizer que essas
imagens se alimentam da nossa energia, da atenção que
a elas dispensamos. Essa proposição é feita por Baitello:
“como o alimento das imagens é o olhar e como o
olhar é um gesto do corpo, transformamos o corpo em
alimento do mundo das imagens” (Baitello, 2005, p.
86). Por sua vez, as imagens a que estamos expostos são
alimento de nossos processos imaginativos.
A proliferação de imagens exógenas que vemos
nos ambientes urbanos (seja no ambiente das cidades,
seja nos ambientes virtuais) cataliza todo nosso tempo
e energia e, consequentemente, temos dado pouca
atenção às imagens endógenas. Basta considerarmos
o tempo que dedicamos à televisão, à internet, à
telefonia em geral, e o tempo que dedicamos ao sonho,
aos relatos ou registros de sonhos, ao devaneio, ao ócio,
à contemplação, à meditação, à dança ou à prática de
alguma arte corporal (práticas de geração de imagens
interiores, sômato-motoras38, conversas com o
inconsciente e aberturas ao acaso – ginástica mecânica
não vale).
J. Baudrillard, ao tratar do processo de telemorfose,
toma emprestada a seguinte frase de Jacques Henric:
“A corrupção do poder está em inscrever no real tudo
o que era da ordem do sonho” (Baudrillard, 2004b, pp.
27-28). Essa foi uma contraindicação da adesão radical

38
Esse termo é proposto por A. Damásio (2000), mas essa noção já havia sido
proposta claramente por F. Varela (1992) ao se referir aos processos enactivos.

64 | malena contrera
de nossa comunicação ao audiovisual que quase não
foi considerada, fascinados que estávamos todos com
as possibilidades tecnológicas tão apregoadas pela
publicidade.
A representação ofereceu ao homem uma
fantástica possibilidade de exorcizar sua angústia, de
elaborar por meio das imagens exógenas os demônios
que nos assombravam por dentro, como vimos em
Morin (1988b). Mas nossa época radicalizou o gesto
de transformar em imagem-superfície os conteúdos
da angústia, buscando uma forma de controlá-los por
meio da imagem aparente, fazendo o mesmo também
com o sonho e as imagens interiores, como será melhor
desenvolvido no próximo capítulo.
Certamente que esse projeto de “dar visibilidade a
todos os sonhos”, e a qualquer forma de religiosidade,
diríamos ainda, triunfou porque, a partir daí, pudemos
fazer dos sonhos e dos deuses também uma forma de
mercadoria. Esse processo pode ser considerado uma
espécie de “consumo da alma”, tal qual apontado por J.
Hillman que o considera patológico, maníaco:

Qualificar o consumo de ‘maníaco’ refere-se à instantaneidade


de satisfação, descartabilidade, intolerância para interrupção
(consumismo), a euforia de comprar sem pagar (cartão de crédito)
e o voo das ideias que se tornam visíveis e concretas nas revistas e
anúncios de televisão (Hillman, 1993a, p. 16).

Essas “ideias” hoje, não voam mais, estão


virtualmente sempre em todos os lugares ao mesmo
tempo, onipresentemente.
O processo de como as produções da Mediosfera
retroagem sobre a Noosfera torna-se claro também
quando colhemos relatos de festas populares tradicionais

Mediosfera | 65
ou ainda de tradições populares39 (quase sempre orais)
que, após serem alvo das atenções e tratamentos
técnico-ideológicos dos meios de comunicação,
especialmente da televisão, alteram sua percepção de
si mesmos, reeditam seus relatos e memórias segundo
as edições da mídia. Tudo se passaria como naquele
chiste no qual a moça vai até um cirurgião plástico com
a sua foto retocada pelo Photoshop e ordena a ele que
a deixe como na foto, não importa quantas cirurgias
tiverem de ser realizadas. O exemplo é extremo
porque o fato em si também o é. Esse movimento
de retroação, no qual o imaginário proposto pelos
meios de comunicação age e transforma o imaginário
original, está na base do que Baudrillard apresentou em
vários momentos como o triunfo do simulacro sobre
qualquer forma de concepção de real. Ainda ao falar
sobre o fenômeno da telemorfose, Baudrillard (2004b,
p. 42) afirma que estamos vivendo “[...] a elevação de
toda uma sociedade ao estado paródico de uma farsa
integral, de um retorno-imagem implacável sobre sua
própria realidade”.
O poder da imagem mediática, por imagem/efígie
que é, e por mediadora de um olhar social que sempre
traz embutido uma forma de reconhecimento do
outro, não pode ser subestimada quando tratamos das
questões da constituição do imaginário.
Considerei, em certo momento, se esse termo
“mediosfera” não deveria vir no plural (“mediosferas”),
reconhecendo a existência de imaginários diferenciados
dos próprios meios de comunicação; mas a evidente
padronização estética, por um lado, e a maximização
da importância do caráter tecnológico, por outro, não

39
Os trabalhos de folkcomunicação em nossa área apresentam exemplos
abundantes desse processo.

66 | malena contrera
me deixa dúvidas de que as diferenças são bastante
superficiais, podendo-se dizer que respondem mais
a uma demanda de segmentação de mercado (logo,
estratégias de vendas) do que a demandas legítimas
de representação simbólico-cultural. No universo da
mídia nada escapa, até mesmo porque toda e qualquer
tentativa de reação contra hegemônica que gere
uma adesão quantitativamente significativa acaba,
após algum tempo, sendo reabsorvida pela lógica da
produção desenfreada e pelos modismos constantes
das reengenharias de “qualidade” da administração
do sistema. O caso do Software Livre é emblemático,
nascido de um movimento de contracultura, segue
resistindo, mas com desvios consideráveis do que se
acreditava que fosse a proposta inicial40.
Gostaríamos de propor agora que os mecanismos do
crescimento e do poder da Mediosfera, especialmente
sobre o Imaginário Cultural primário - e aqui é
importante que entendamos que não estamos tratando
de um imaginário das culturas primevas apenas, mas
de um imaginário nascido do universo do ritual e da
festa, no qual os acontecimentos eram concretamente
e corporalmente vivenciados, anterior ao domínio
do universo do espetáculo e do simulacro, no qual
os acontecimentos são consumidos ou simulados e o
corpo é obsoleto -, podem ser pensados, para além dos
motivos econômicos e políticos que todos sabemos,
também a partir de um movimento que marca a
constituição de uma “cultura da emissão”, gerada em

40
Sobre essa questão, E. Cazeloto apresenta uma reflexão interessante,
em seu livro A inclusão digital, chamando a atenção para o fato de que esse
movimento não se opõe necessariamente ao modelo de negócios capitalista,
como inicialmente identificado. “Assim, pelo menos em princípio, não há
contradição entre o software livre e a acumulação capitalista, tanto no que diz
respeito à compra e venda de aplicativos, quanto à prestação de serviços por
parte de desenvolvedores espalhados pelo mundo” (Cazeloto, 2008, p. 156).

Mediosfera | 67
grande parte pela crença na sociedade da informação
(o saudoso sonho iluminista de que a informação traria
reflexão e livre escolha).

A sociedade da emissão e o esvaziamento do


sentido

Não guardar nenhum segredo. Falar, falar, comunicar


incansavelmente. Tal é a violência feita ao ser singular e seu
segredo. E, ao mesmo tempo, é uma violência feita à linguagem,
pois a partir daí ela também perde sua originalidade, ela não é mais
senão médium, operadora de visibilidade, ela perde toda dimensão
irônica ou simbólica (Baudrillard, 2004b, p. 24).

O século XX (e a primeira década do século XXI) foi


cenário de um processo sem igual de multiplicação das
emissões. A sociedade da emissão é também (e ainda) a
sociedade da histeria, na qual há um transbordamento
dos discursos, como no caso dos blogs, mas a alma não
está neles, as pessoas apenas interpretam papéis num
circo exibicionista que abriga infinitas simulações e no
qual o espetáculo não pode parar.
Essa histeria busca sua conversão, ou seja, sua
realização catártica numa prática de experimentação
ilimitada, conforme apontou J. Baudrillard (2004b) e
R. Paiva (2000).
C. Melman (2003) chama essa forma atual de
histeria de nova economia psíquica, que se caracteriza,
entre outras coisas, por um imperativo do gozo (aqui
buscado na cena da emissão) que na verdade só faz
revelar o fim do gozo. No momento em que o corpo
(constantemente sedado41) não é mais vivenciado
como lugar da subjetividade e pode dessa forma ser
tratado como objeto com o qual se pode fazer qualquer

41
Noção apresentada por N. Baitello Jr. no texto ”A mídia e a sedação da
imagens”, presente no livro A era da iconofagia.

68 | malena contrera
experiência, a sua transformação em máquina de
emissão é claramente compreensível, considerando-
se especialmente o contexto tecnocêntrico do qual
tratamos mais adiante.
O fato é que para além da conversão histérica, há
pouco sentido nessa massa toda de produção feita
apenas para ser exibida, para servir de farol num mar
em que só há rochedos... e saudades da água.
O desenvolvimento dos recursos tecnológicos
de replicação infinita das emissões, e a crescente
possibilidade da ininterrupta ação dos veículos de
informação foram, sem dúvida, dois dos principais
fatores de geração desse estado de emissão generalizada,
perseguido socialmente como se dele dependesse o
próprio sentimento de existência (estou conectado,
logo existo). É preciso aqui diferenciar os veículos de
informação, pelo seu caráter operacional tecnicamente
autônomo, dos meios de comunicação, entendidos
como agentes de processos que abrigam maior
complexidade e nos quais a mediação de fato é o
principal objetivo – nesse caso, comportando aspectos
relacionais mais complexos do que o mero processo
técnico de transmissão de informações ou de postagem
de conteúdos.
K. Lorenz, já na década de 1970, diagnosticava com
precisão algo que ele designava como “necessidade de
ruído” – resposta para o que temos tratado como o
esvaziamento do sentido. Sobre esse quadro, ele afirma:

Não há outra explicação para a necessidade de ruído, verdadeiro


paradoxo, se tivermos em conta a neurastenia do homem
moderno, a não ser que alguma coisa tem de asfixiar-se a todo
custo (Lorenz, 1973, p. 35).

A coisa toda aconteceria como se frente à ausência


do sentido, o homem se pusesse a produzir/emitir

Mediosfera | 69
desesperadamente, na tentativa de preenchimento do
vazio existente, vazio com o qual ele não sabe mais
lidar. Então essa contínua emissão só faz aprofundar a
crise da produção de sentido, numa simulação patética
da atribuição desse sentido – e justamente quando
ele foi perdido, na maioria das vezes, por saturação.
O resultado é uma busca desesperada de hiper-
representar no vazio que evidencia a crescente perda
das competências simbólicas do homem.
H. K. Fierz (1997) vai falar da crise de uma sociedade
como consequência da perda dos símbolos diretores
dessa sociedade. Pensamos que não são apenas os
símbolos diretores que estão perdidos, mas a própria
competência simbólica que mingua na atualidade.
Resta então a emissão desesperada.
Uma cena emblemática do cinema, que podemos
convocar como uma metáfora perfeita desse processo,
é a da morte de uma das replicantes do filme Blade
Runner. À guerreira, quando está morrendo, não resta
alternativa senão a de debater-se violentamente,
movendo no ar as pernas em extrema velocidade, sem
sair do lugar.
Certamente que não podemos diminuir, nesse caso,
a importância da relação dessas formas de comunicação
(se é que podemos chamar a isso de comunicação)
com o sistema capitalista que as enquadra. Para o
capitalismo, é muito evidente a vantagem da produção
e da circulação ininterruptas de bens, questão tratada
claramente pela crítica econômica marxista. Nesse
sentido a proposição de A. Gorz (2005) acerca do
fenômeno econômico e social que ele chama de “a
produção de si”, ou seja, quando a própria pessoa é
o seu produto (o personal stylist, o marketing pessoal),
tem nessa proliferação de emissões um fenômeno
correlato, das quais contemporaneamente podemos

70 | malena contrera
destacar os blogs e twitters, como formas mais atuais.
A sociedade da emissão faz com que as imagens que
os homens fazem de si mesmos seja seu novo capital,
nesse processo no qual mais do que a produção de si, o
que vemos é a transformação do “si mesmo” em capital
(de giro).
No entanto, essa exacerbação da emissão, que é
análoga à exacerbação da produção, sinaliza a crise
do capitalismo, na medida em que é o seu apogeu
insustentável42. De fato, A. Gorz (2005) vai propor que o
capitalismo não tem controle do imaterial como tinha
da produção material. O imaterial tem sua própria
autonomia e, como veremos a seguir, o território do
virtual pode sempre ser invadido pelo universo do
imaginário. Nesse sentido, essa nova “cegueira dos
olhos” (em sua função recepção) é também o irônico
fim da sociedade da emissão/exposição.
É da sobrevida desse gesto de contínua e algo
desesperada hiperemissão que se constitui a esfera
mediática. A Mediosfera é caracterizada por uma
geração de conteúdos a partir desse processo centrado
na produção do máximo de emissão, e do mínimo de
sentido.
É importante considerar ainda que a sociedade da
emissão é a outra face da sociedade do consumo, em
um processo no qual já não sabemos até que ponto a
histeria da emissão provoca o consumo compulsivo e
as práticas de adição, ou são essas últimas que ampliam
o vazio sobre o qual ecoam desenfreadamente as
emissões.

42
Sobre o mesmo processo de morte por saturação, D. Kamper falou ao
tratar do fenômeno da hipervisibilidade, geradora de uma nova “cegueira dos
olhos”.

Mediosfera | 71
Para além da emissão

É preciso ainda citar alguns processos que são


constituintes da Mediosfera, e, em certo sentido,
também do modelo capitalista de pensamento sobre
o mundo a partir do qual a Mediosfera se constrói.
A maior parte desses processos já foi, direta ou
indiretamente, objeto de nossa atenção em textos
anteriores e, por esse motivo, nossa referência a esses
processos serão breves.

A literalidade

Uma das consequências dessa crise das


competências simbólicas é o triunfo da literalidade
como figura central de pensamento de grande parte do
mundo atual. Podemos elencar algumas instâncias em
que isso ocorre.
O pensamento econômico capitalista atual é
literalizante, na sua apologia ao dinheiro e à visão
financista, que desmerece crescentemente a noção
de valor. Aprendemos a crer que o valor supremo é
o dinheiro, originalmente criado para representar em
parte a noção de valor. Essa inversão sinaliza a forma
como o dinheiro passou a ser um fim em si mesmo,
usurpando aos poucos o valor do resto das coisas que,
esvaziadas de sentido, passaram a ser um caminho para
o dinheiro, caminho essencialmente instrumental.
Logo, essa visão instrumental da ação do homem no
mundo é uma ação pragmática que tem pressa de
atingir os objetivos, visando apenas a eficiência do
processo. É a imagem do caminho mais curto entre dois
pontos, e a busca do meio mais rápido de percorrê-lo,
sem a consideração da fruição estética e das vivências
que o caminho pode oferecer, ou seja, do sentido que

72 | malena contrera
poderíamos extrair da experiência do caminhar.
Também operam com modelos literalizantes as
religiões que mais crescem no mundo, o Islamismo e o
Neo-pentecostalismo43; ambas tem em comum a prática
de uma interpretação literal de suas escrituras sagradas44,
que considera muito pouco a dimensão metafórica
da linguagem, fundamento de toda elaboração do
conhecimento sobre religião e mitologia.
As formas atuais de culto ao corpo são outro
fenômeno que devemos considerar. Literais em sua
busca desesperada pelo fisiculturismo, disfarçado de
todo tipo de modismo e da busca da “saúde corporal”,
operam o triunfo da imagem do corpo sobre o corpo
(conforme D. Kamper bem pontuou em toda a sua obra).
Todos os sonhos têm de ser literalmente vividos
na sociedade do “se eu posso, por que não?”. Não
há densidade simbólica, não há desdobramento
metafórico, as mil pétalas de lótus murcham caídas
aos pés dos totens eletrônicos. As estrelas são apenas

43
Essa informação foi retirada do jornal O Estado de S.Paulo, em sua versão
online. Indicamos nas Referências os links e o sumário das notícias que
podem ser encontradas na busca do jornal, no entanto, as notícias na íntegra
não estavam mais disponíveis para leitura desde abril de 2010. Seguem, então,
as indicações completas das fontes: “Há mais muçulmanos do que católicos
no mundo, diz Vaticano [...] número de muçulmanos superou [...] vez, o de
católicos, fazendo do Islamismo seja...de adeptos no mundo, de acordo [...]
indicavam que 19,2% da [...] formada por muçulmanos, enquanto 17,4% são
católicos, disse o editor do Anuário Pontifício [...]. Anuário diz que a proporção
[...] população de católicos do mundo é razoavelmente [...] porcentagem de
muçulmanos vem aumentando [...]”. (Estado, 30/08/2008). “Islamismo cresce
entre os jovens na periferia de SP [...] retrasada que, pela primeira [...] número
de muçulmanos ultrapassou o de católicos no mundo. Islâmicos [...] 13 bi de
católicos. O crescimento [...] natalidade, mais altas em países [...] islâmicos.
No Brasil, há mais de 27 mil [...] acreditam que o número de [...] temos é o
do Instituto Brasileiro [...] número de muçulmanos convertidos” (Estado,
13/04/2008).
44
Certamente que não pretendo resumir as duas religiões a esse traço único.
Sabemos que uma análise sobre a complexidade religiosa e simbólica de cada
religião demandaria mais tempo e cuidado, mas apontamos aqui apenas um
traço que nos chamou a atenção por estar diretamente relacionado ao ponto
que desenvolvemos.

Mediosfera | 73
Richard Sandrak, fisiculturista infanto-juvenil conhecido
como “pequeno Hércules”. Foto: Divulgação.

“bolhas de gás” (explicação científica ironicamente


apresentada no desenho animado O Rei Leão).
Algo significativo sobre esse literalismo é que, de
certo modo, podemos considerá-lo como uma forma
de regressão cognitiva em relação ao pensamento
simbólico, o que nos leva ao fato de que assistimos a uma
forma de neobarbárie que, muito diferente do que alguns
propõem, não se trata de um mero retorno de conteúdos
das culturas pagãs (o reencantamento), mas sim uma
regressão das estruturas cognitivas. Nesse sentido é
preciso considerar que as culturas pagãs possuíam
elevada elaboração simbólica até mesmo para os gestos
aparentemente mais abomináveis para o homem
moderno, como o sacrifício humano ou o canibalismo.

74 | malena contrera
O sacrifício inseria-se num elaborado contexto ritual
da concepção do sagrado e podia servir também à
tentativa de delimitar a violência generalizada (Girard,
1990), e o canibalismo quase sempre remetia a uma
elaborada crença de que era preciso honrar o inimigo,
incorporando suas qualidades e, de certa forma, dando
sobre-vida a ele. Não podemos dizer que os assassinatos
em massa e as formas sofisticadas de crueldade do
homem contemporâneo sejam simbolicamente mais
elaboradas do que os “atos de barbárie” dos primitivos,
ou seja, que possuam uma dimensão simbólica que
atribua a elas algum sentido transcendente para além do
óbvio (prazer sádico, demonstração de força, etc.). Mais
adiante voltaremos a tratar dessa inflação que a crise das
competências simbólicas confere à violência.
Essa regressão a uma espécie de literalismo pré-
simbólico vem acompanhada da fuga para o hiper-real,
que é ao mesmo tempo o seu contrário, no momento
em que despreza o concreto, e o mesmo, no descaso pela
dimensão simbólica das experiências. Nesse quadro,
a consciência se desloca para o hiper-real e o real vira
sombra, no sentido que C. G. Jung atribui à sombra, ou
seja, o negado, o reprimido, o rejeitado. O real vira o
lugar do primitivo, da violência literal, do corpo em sua
concretude pura, desprovido de significado para além
da concretização de sua própria fisicalidade.
Impossível não ver nessa crise do sentido uma
espécie de estratégia suicida da civilização. Muniz
Sodré fala que “a humanidade é de certo modo
deicida e parricida porque apaga a origem, apaga o
tempo”45. A busca pelas origens e as mitologias perdem
seu sentido numa sociedade que pensa o mundo

Em palestra no Auditório do Ibirapuera, no evento “A Revolução Genômica”,


45

promovido pela Fapesp em 27 maio 2008.

Mediosfera | 75
literalmente, instrumentalizando até mesmo as formas
de religiosidade46.

O entretenimento

A Mediosfera traz também em sua natureza uma


tendência a abrigar tudo que seja “entretenimento”, essa
forma de histrionismo da diversão, que frequentemente
associa passividade e violência de forma paradoxal. Essa
passividade da cultura do espetáculo, que podemos
considerar condição básica para a sociedade do consumo,
em várias de suas formas, pode ser considerada a
atividade oposta às práticas criativas, regeneradoras em
sua essência. Como disse Cyrulnik:

A cultura criativa é um ligante social que dá esperança às provações


da existência, ao passo que a cultura passiva é uma distração, que
faz passar o tempo, mas nada resolve... A arte não é um lazer, é uma
pressão para lutar contra a angústia do vazio (Cyrulnik, 2004, p. 193).

Podemos relacionar esse processo de passividade,


por um lado, aos processos de sedação da mídia (cf.
Baitello Jr.), já referido, e, por outro lado, ao elogio
supremo que nossa época faz às formas de conforto.
K. Lorenz chamou a esta última de processo de
“nivelamento das emoções”, que, ao buscar o conforto
e eliminar as situações de conflito e de desprazer,
eliminou também o seu oposto, o prazer, gerando um
continuum de mesmice e acomodação que, para o
etólogo, é fator de “degeneração da espécie humana”
(Lorenz, 1973).
Sobre esse mesmo nivelamento das emoções,

46
Esse tem sido centralmente o tema dos trabalhos desenvolvidos por parte
dos pesquisadores do Grupo de Pesquisas em Mídia e Estudos do Imaginário,
da UNIP, sob a supervisão do Prof. Dr. Jorge Miklos.

76 | malena contrera
B. Cyrulnik, ao falar sobre pacientes submetidos à
lobotomia, coloca que:

Aqueles que defendem a organização de uma cultura tranquilizante


que destruiria a angústia e nos ofereceria distrações incessantes para
lutar contra o tédio, será que nos propõem outra coisa a não ser
uma lobotomia cultural? Se existisse esta cultura, conheceríamos
sucessões de bem-estar imediatas, ficaríamos satisfeitos, num
estado desprovido de sentido, pois apenas experimentaríamos uma
sucessão de presentes (Cyrulnik, 1999, p. 83).

B. Cyrulnik pode estar descrevendo a Disneyworld


ou qualquer um dos jogos virtuais que distraem
nossas crianças diariamente, por horas a fio. Não por
coincidência, frutos maravilhosos da cultura norte-
americana, berço triunfante do pensamento publicitário
sobre o mundo.

A sucessividade, o eterno presente e o apagamento da
memória

É na questão da ininterrupta sucessividade do


presente, apontada por Cyrulink como responsável
por substituir as outras experiências de temporalidade,
que vemos mais um traço constituinte da Mediosfera.
Seguindo a reflexão acima apresentada, Cyrulnik (1999,
p. 83) discorre sobre o que considera como apagamento
do “imperfeito doloroso”, do “futuro angustiante” e
do “condicional irritante”. Tudo ao mesmo tempo
aqui, à disposição de um click, sem precisar esperar ou
lidar com a dúvida, nem com os vazios da espera. Essa
sociedade da informação total, dromológica, é a mesma
da mercadoria total, do delivery e do comércio 24 horas.
Nada pode parar porque o dinheiro não pode parar de
girar, e em torno dele e de seus meios, gravitamos nós.
Temos ai um belo quadro do “faça tudo agora”,
“divirta-se já”, “se você quer, você pode”, palavras de

Mediosfera | 77
ordem da sociedade do entretenimento, apontados
por C. Melman (2003), ao falar da nova economia
psíquica da contemporaneidade. Sem dúvida essa
sociedade tem como viabilizadores desse novo ethos do
entretenimento os meios de comunicação eletrônicos
e o universo imaginário por eles proposto. Nesse caso,
um imaginário que também se propõe a reatualizar a
ideia da onipresença divina47.
No entanto, a questão central trazida pelas
sucessividade ininterrupta e abrangência total propostas
pela sociedade mediática é a questão do enfraquecimento
do papel do contexto para o pensamento e para a
comunicação. Os estudos da linguagem, em especial
os da Análise do Discurso, trataram exaustivamente do
papel central do contexto para a atribuição do sentido. A
Etologia Humana reafirma esse ponto, e Cyrulnik (2005,
p. 33) chega a afirmar, ao tratar do tema dos processos
humanos de geração de sentido presente nas relações
interpessoais, que o “significado do fato provém de seu
contexto”.
Ele ainda reforça a relação já conhecida entre
contexto e memória, reforçando que a ação desses dois
processos é central, inclusive, para que a resiliência seja
possível (algo que não deveríamos desprezar em tempos
de sociedades superpopulosas e crises ecológicas e
sociais de enormes dimensões).
Esse apagamento da memória tem sido inclusive
tema de várias produções culturais, e aqui gostaríamos
de lembrar da proposta do filme Brilho Eterno de uma
Mente sem Lembranças, que aponta para o ponto no qual
deixamos de ser apenas envolvidos por esse apagamento
para passarmos mesmo a desejá-lo como uma solução

47
Acerca da onipresença divina nos meios de comunicação, temos a
contribuição de J. Miklos no livro Ciber-religião.
Cartazes de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, Michel Gondry, 2004. Fonte: Divulgação.

para as crises pessoais, apontando para o desejo de


morte presente no esquecimento consentido.
A questão da memória já foi bastante tratada sob o
ponto de vista das sociedades modernas e da crise dos
grandes relatos sociais, mas, ao tratar dos processos de
resiliência, Cyrulnik recoloca o tema da memória como
um dos mais centrais de nossa época.
Para compreendermos a crise do sentido da qual
temos tratado, é fundamental sua contribuição como
etólogo e psicólogo, especialmente quando ele afirma
que “cada lembrança faz de nós um ser novo porque
cada acontecimento, escolhido para construir um tijolo
da memória, modifica a representação que fazemos
de nós mesmos” (Cyrulnik, 2005, p. 46). Continua sua
reflexão dizendo que, como consequência, modifica
também a representação que fazemos das outras pessoas
e do mundo, e das relações que com eles somos capazes
de ter. Isso nos dirige mais uma vez aos problemas

Mediosfera | 79
contemporâneos que enfrentamos nas relações de
alteridade, de que tratamos mais a frente.
A centralidade do contexto e da memória nas
pesquisas de Cyrulnik, acerca da resiliência e dos
processos de criação de identidade, nos traz a verdadeira
importância de certas formas de organização temporais
que estamos destruindo com a obsessão de nossa era
pela onipresença das redes de comunicação, já que a
onipresença pressupõe a abolição das relações espaço-
temporais às quais os corpos concretos (meramente
humanos e mortais) estão submetidos.
No ambiente dos meios de comunicação essa
abolição do contexto se evidencia pela crescente
dificuldade de tecer relações de sentido (não apenas
conexões fortuitas), de resgatar a rede de sentidos por
trás de uma imagem/conteúdo com o qual entramos
em contato, o que se evidencia, por exemplo, no caso
do jornalismo48.
E, por fim, a pergunta que podemos nos fazer
a partir desse cenário é acerca de como estão as
mediações promovidas pela Mediosfera. São elas
geradoras de sentido, ou seja, de conexões não
meramente operacionais, mas propositoras de formas
de cognição que possibilitem as operações reflexivas, as
contextualizações e a produção de memória49?

48
Essa questão foi apresentada no livro Jornalismo e realidade, de 2004.
49
Nesse caso, estamos falando da geração de contextos e de memória
pelo cérebro humano, o que pressupõe escolhas psicoafetivas e um
intenso processo de semiose, não da proposição de contextos e memórias
artificiais geradas pela funcionalidade autônoma das redes tecnológicas de
comunicação e pelos interesses sócio-econômicos pelos quais elas se pautam.
Uma interessante pesquisa acerca de como o Google tem se oferecido como
uma memória social tecnologicamente criada por instâncias que não são
sóciocomunitárias, mas sim comerciais, é a tese de doutorado de Diogo
Bornhausen, em andamento na PUC/SP. Alguns textos do autor já podem ser
encontrados sobre o assunto.

80 | malena contrera
capítulo 3

Tecnologia e
autorreferência

A questão do sentido: a crise das competências


simbólicas

Uma das questões centrais do processo de


desencantamento do mundo, conforme apresentado
por M. Weber é a questão da crise da magia50. Essa
questão se refere ao processo pelo qual as coisas
concretas deixaram de ser para nós transubstanciações
do divino, do sagrado e foram absorvidas pela visão
cartesiana, resultando em objetos sem vida, matéria
morta. A mudança de percepção que acompanhou a
passagem do Paganismo para o Monoteísmo Patriarcal
trouxe a transferência do lugar habitado pelos deuses;
antes, habitantes da natureza, depois, habitantes de
um céu conceitual, abstrato, ao qual não se tem acesso
direto pelos sentidos corporais. Foi necessário então que
a escalada da abstração, como proposta por V. Flusser,
completasse a abstração/subtração do mundo concreto
para que esse resultasse em “terra de ninguém”. O
mundo deixa de ser a morada dos deuses e a nossa casa e
passa a ser, gradativamente, um lugar que conquistamos,
um lugar que dominamos, um lugar de onde queremos
ir embora para um céu melhor, para, enfim, se tornar

50
Quem pontua muito bem a relevância dessa questão para Weber é A. F.
Pierucci, no livro O desencantamento do mundo.

Mediosfera | 81
um lugar de onde podemos extrair oportunidades
de negócios. Daí foi um passo para que a lógica da
produção industrial transformasse toda natureza
em matéria-prima e, logo, em produtos mercantis. E
líderes religiosos de denominações diversas se sentem
absolutamente à vontade para venderem lotes do céu
aos mais preocupados com a salvação das suas almas
após a morte.
Também não é de se espantar que a ciência dita séria
caminhe no mundo de mãos dadas com os interesses
exclusivos do capital, e que órgãos gestores da ciência
postulem que a “boa ciência” deve ter parcerias com
empresas privadas para a geração de royalties e patentes.
Longe de postular de fato uma integração entre pesquisa
e bem comum social, a máxima oculta nisso é a de que
sem lucro, a ciência não tem “impacto”.
Essa crise da magia, que gerou um mundo
desencantado e reduzido ao valor de matéria-prima
por meio do paradigma cartesiano, que promoveu
a visão de que as coisas do mundo podiam ser vistas
separadamente entre si, esteve sempre na raiz da crise
do sentido, como vimos anteriormente, e levou o
homem à condição de, nos dizeres de G. Durand, ser
cada vez mais incapaz de atribuir valor simbólico às
coisas do mundo e às suas experiências.
A crise da magia trouxe também a crise da
imaginação. Como pontuou G. Durand, o esvaziamento
das capacidades simbólicas se deu no seguinte contexto:

Não só o mundo é possível de exploração científica, como


só a exploração científica tem direito ao título desafecto de
conhecimento. Durante dois séculos a imaginação é violentamente
anatemizada [...] Na filosofia contemporânea realiza-se, sob o
impulso do cartesianismo, uma dupla hemorragia do simbolismo
(Durand, 1993, p. 22).

82 | malena contrera
E (Durand, 1993, p. 2)51 coloca claramente do que
estamos tratando: “o poder pragmático do signo triunfa
diariamente”.
Uma das principais consequências dessa crise do
pensamento simbólico é o triunfo da literalidade, ou seja,
a diminuição da capacidade simbólica e metafórica do
pensamento humano, derivando-se desse processo uma
espécie de pensamento empobrecido e empobrecedor,
passando a linguagem a ser um mero programa de
autoexecução que, por fim, acaba se exaurindo na falta
de sentido de sua própria existência. J. Baudrillard
havia já tratado desse processo em seus últimos
livros52, e certamente essa literalidade da linguagem
contemporânea e seu conseqüente sem-sentido estão
também presentes no fenômeno da proliferação dos
discursos no espaço das redes virtuais. A verborragia dos
blogs, twitters e outros formatos análogos que a internet
possibilitou contemporaneamente são não apenas um
traço da histeria mediática, como bem propôs R. Paiva
(2000), mas também sinalizadores da perda da dimensão
simbólica da linguagem (e conseqüentemente de como o
homem pensa e comunica seu mundo); são o triunfo das
palavras-coisas operacionais que não apontam para nada
além de si mesmas ou do próprio sistema para o qual
foram criadas. É a natureza autorreferente da tecnologia
retroagindo sobre a linguagem e criando, aí também,
um mundo de alta produtividade, porém fechado para
o espanto, para o não operacionalizável, para o não

51
Quem tem desenvolvido um belo trabalho acerca das contribuições do
pensamento de Gilbert Durand para a área de Comunicação é Ana Taís
Martins Portanova Barros, contribuindo para atualizar as discussões acerca do
imaginário a partir da complexa teoria de Durand.
52
A contribuição que Baudrillard oferece à nossa pesquisa sobre esse tema,
que já vem nos ocupando transversalmente há alguns anos, foi apresentada
no livro Jornalismo e realidade.

Mediosfera | 83
comunicável, para o encantamento sem palavras frente à
grandiosidade do desconhecido e do silêncio.
Primeiro as coisas do mundo são desencantadas
pela racionalização, depois a própria linguagem é
desencantada pela lógica produtiva que se esconde
na centralidade dada à emissão (como veremos mais
adiante). Está dada a lógica do eco: a palavra batendo no
abismo de sua própria inutilidade e voltando igual, mil
vezes igual, ensurdecedoramente muda.
Esvaziadas as possibilidades mágico-simbólicas das
coisas do mundo e da linguagem, a busca do sagrado
e do sentido se transfere para as operações, de onde a
centralidade dada à tecnologia nos últimos séculos. Há
tempos nossa sociedade não se pergunta mais pelas
coisas, pelo que elas são, por quais suas motivações, a
única pergunta pertinente no mundo moderno (e ainda
contemporaneamente) é o “como” do poder pragmático
que Durand reconhece. Como funciona, como fazer,
como utilizar, como consertar, como acertar nos
testes, a vida quase se reduz a uma sensação constante
de treinamento para tudo e para coisa alguma. Uma
constante autoexecução de algum programa que nunca
se conhece o suficiente, bem ao estilo de Kafka.
Não podemos ignorar que o homem sempre esteve
às voltas com suas técnicas e com as tecnologias relativas
à sua época, mas não é dessa relação indissociável entre
humanidade e técnica que estamos tratando, tratamos na
realidade de um momento específico na história dessa
relação, do momento em que um conjunto de técnicas
se transforma em uma forma de pensar o mundo que
passa a se pautar centralmente em critérios relativos à
sua própria operacionalidade. Nisso reside seu caráter
centralmente ideológico, como bem propôs J. Habermas
(2007b). Estamos falando da tecnologia eletrônica e de
seu caráter autorreferente, e mais especialmente das

84 | malena contrera
tecnologias eletrônicas aplicadas às comunicações que
atravessam o mundo contemporâneo.
Trata-se de estarmos cada vez mais submetidos ao
que E. Trivinho chama de razão tecnológica, e que ele
assim apresenta:

Razão tecnológica no sentido de uma razão cotidiana, pragmático-


utilitária, imediatista, em relação à máquina. Implicitamente
ideológica e ufanista [...] em relação à sociedade tecnológica, essa
razão apresenta sempre um reencantamento feliz diante das
proezas e potencialidades da tecnologia. Como tal, trata-se de
uma razão não mediada pela simbolização, isto é, desprovida de
autorreflexão crítica sobre suas próprias manifestações exteriores e
práticas, em particular aquela em relação aos objetos tecnológicos
(Trivinho, 2001, p. 88).

­­­­­­­­­­­­­­­­­A ideologia e a economia capitalistas coincidiram


com a descoberta da eletricidade, e impuseram-
se plenamente por meio da industrialização e da
criação das possibilidades de produção em série de
aparatos tecnológicos que serviram para criar ainda
mais produtos em série. Tecnologia moderna e o que
poderíamos chamar de uma “estética da seriação” estão
indissociavelmente ligadas. Esse é o princípio gerador
do que E. Morin chamou “industrialização do espírito”
(1986), processo crucial da cultura de massas, não por
acaso centrada nas redes de mediação de massa e em
seu poder tecnológico de enfeitiçamento por meio da
ação mágica das imagens eletrônicas.
Mais de cem anos depois do desencantamento do
mundo proposto por M. Weber, e a praticamente 50
anos da publicação do Cultura de Massas no século XX, de
E. Morin, o cenário dos meios eletrônicos mudou muito,
mas ainda não abandonou a sua vocação tecnológica
para a formatação dos espíritos.
É preciso não confundir essa situação com a
necessidade de aprendizagem contínua para a qual a

Mediosfera | 85
crescente complexidade do mundo nos destinou. A
presente situação visa na realidade a nos transformar,
crescentemente, em funcionários do aparelho, como
declarou V. Flusser (2002). Sobre o papel da tecnologia
na transmutação do homem em funcionário que
Flusser propõe (cuja noção foi apresentada em capítulo
anterior), N. Baitello Jr. comenta:

Distinto do conceito de ‘máquina’, aí se abriga uma sensação


de impotência diante das materializações do conhecimento
tecnológico e diante de estruturas sócio históricas ou político
culturais complexas que se desenvolvem como obra de sujeitos
coletivos e autodeterminam seus próprios rumos, em sua força
sugada de múltiplas e complexas fontes. Dissolve-se, diante
do aparelho, a vontade do ‘funcionário’, já que as regras de
funcionamento previamente programam as suas possibilidades de
ação (Baitello, 2010, p. 20).

Contemporaneamente, vemos toda a complexidade


da comunicação humana ser minimizada e a
centralidade das trocas comunicativas e dos
processos vinculares se deslocarem para a questão da
apropriação ou não das tecnologias da comunicação.
Transformamo-nos, triunfantes, em usuários, título
que alegremente repartimos com os drogadictos. A
consciência que se exerce sobre todo esse processo
é tanto menor quanto mais eficientemente se há
estabelecido essa programação da qual Baitello trata. A
ciência moderna propagou tanto a falácia de que enfim
triunfávamos na investigação sobre a natureza humana
que acreditamos piamente nisso. Esse é o autoengano
que nos predispõe mais ainda ao tipo de programação
do que Flusser chamou de aparelho (e que, nesse caso,
não se aproxima do jargão político sobre aparelho
ideológico); um aparelho que se autolegitima por meio
de uma operação fundada na força das entidades da
Noosfera, como vimos.

86 | malena contrera
Esse caráter autorreferente se apresenta em todo
sistema noológico e/ou ideológico que enlouqueceu,
seja pela falta de reflexão e autocrítica, seja pela falta de
capacidade de interagir com outras esferas da existência
(tais como o sentimento, a intuição, o devaneio, o
sonho), recusando-se a considerar a relevância de uma
ecologia da comunicação53. Tudo se reduz a sonhar o
sonho das máquinas, como anteviu D. Kamper (1997).
A autorreferência se revela totalmente no modus
operandi da tecnologia moderna: seus critérios centrais
sempre partiram do princípio de automanutenção ou
aperfeiçoamento de suas próprias operações e métodos.
Ela autoexecuta um programa complexo que a coloca na
própria centralidade da vida e das questões humanas sob
o pretexto constante do aperfeiçoamento. Lembramos-
nos de C. G. Jung alertando sobre o perigo da busca
pela perfeição (a imagem perfeita da TV digital), que
conduz necessariamente a uma dissociação, no mínimo,
disjuntiva, como também já alertou Morin.
Os discursos (publicitários ou científicos) sobre as
novas tecnologias da comunicação têm um jeito próprio
e cool de manter atual o mito do progresso, ainda que
disfarçado de atualização permanente (Vicente Romano
me disse certa vez, ácido e preciso: “não se esqueça de
que coisas ruins também progridem, câncer também
progride, por exemplo...”).
O fato é que vemos nesse processo uma inversão: a
técnica, de meio, passa a ser um fim, e o homem, que
deveria gerir sua utilização, passa a girar ao seu redor.

53
O tema da ecologia da comunicação vem sendo bastante debatido por
um grupo de pesquisadores junto ao Centro Interdisciplinar de Semiótica
da Cultura e da Mídia (CISC-PUC), do qual podemos destacar Eugenio de
Oliveira Menezes, que há anos vem pesquisando o tema associado a uma
cultura do ouvir. Podemos ainda fazer referência ao livro de mesmo nome,
Ecologia da Comunicação, de Vicente Romano.

Mediosfera | 87
Estamos já vivendo em um tempo em que os aparatos
tecnológicos não são mais próteses humanas, o que
vemos é o ser humano (a dimensão essencialmente
humana do inabarcável) como prótese dos aparatos
tecnológicos. E essa operação é realizada justamente
pelo projeto de autoexecução e autorreferência disso
que Trivinho chama de razão tecnológica.

Tecnologia e redenção

Há um segundo enfoque interessante sobre a


dimensão que a tecnologia adquiriu que pode ser
relacionada ao fenômeno que Trivinho chama de
“tecnologia como religião”, e que ele assim apresenta:

Desde os apontamentos de Heidegger acerca da técnica como


metafísica realizada no século XX, constata-se, na fase atual da
sociedade tecnológica, em função da dependência da máquina,
uma intensificação da característica da tecnologia como religião
(Trivinho, 2001, p. 83).

M. Berman (2005) volta a se ocupar de uma questão


que estava também na genealogia do pensamento de M.
Weber sobre o desencantamento do mundo, a questão
de que a tentativa de dominar a natureza nasce com
o pensamento mágico. Essa questão foi muito bem
mapeada por E. Morin (1988b)54 que apontou como
as sociedades arcaicas concebiam magia e técnica
como sendo praticamente a mesma coisa, já que todo
“saber fazer” era prerrogativa dos sacerdotes ou xamãs
que eram instruídos pelos deuses55. Até as técnicas

54
Também E. Durkheim ocupou-se dessa questão, especialmente ao tratar do
animismo, em As formas elementares da vida religiosa.

Sobre essas sociedades e a relação de seus sacerdotes com os instrumentos


55

mágicos, ver El chamanismo y las técnicas arcaicas del éxtasis de M. Eliade.

88 | malena contrera
aparentemente banais, cotidianas, eram circunscritas
em uma mitologia específica que as legitimava. O que
nos parece pertinente nessa questão é percebermos que
magia e técnica possuem a mesma motivação inicial,
diferenciando-se não na finalidade, mas na maneira e
nas ferramentas de execução e, especialmente, na fonte
de onde emana o seu poder de intervir na realidade.
Essa origem comum faz com que muitos afirmem
que, sob a primazia do tecnológico, estamos vivendo um
reencantamento. Podemos decerto chamar essa atitude
de uma forma de encantamento, mas certamente não
podemos comparar a situação atual com o que vigorava
antes do racionalismo, quando então vigorava um
pensamento que M. Berman chamou de pensamento
hermético sobre o mundo. A diferença central a ser
considerada nesse caso, e que não é um detalhe desprezível,
é a de que o que podemos chamar de encantamento do
mundo nas culturas arcaicas se pautava por uma relação
muito diferenciada com o mundo concreto, incluindo
o próprio corpo. A tecnologia contemporânea apaga
justamente as marcas da natureza concreta do mundo, a
cibercultura é a evidência máxima desse comportamento
de negação das condições concretas, ou seja, dos limites
espaço-temporais dados pela realidade concreta.
É nesse ponto central que não se pode dizer que
estamos vivendo um reencantamento do mundo,
na medida em que a palavra “encantamento”, como
proposta por M. Weber, referia-se a uma visão de
mundo na qual o homem praticamente brotava da terra
e a ela estavam indissociavelmente relacionadas todas
as esferas da sua vida. O momento atual se parece mais
à consumação de um processo de desmaterialização do
mundo (seguindo o desmantelamento já operado pelas
sociedades industriais). Nesse sentido, A. Gorz (2005)
acerta ao tratar o presente momento como o triunfo de

Mediosfera | 89
uma economia (no sentido complexo do termo, e não
apenas monetário) do imaterial.
Essa desmaterialização do mundo, da qual tratamos
em outro momento, começa a se dar efetivamente com
o monoteísmo que considera o espírito algo santo e o
corpo a morada do pecado. Todos sabemos do longo
trabalho do Catolicismo para apagar a relação simbólica
dos pagãos com a terra e com os cultos que envolviam
os deuses da natureza, processo que a Inquisição
evidenciou com especial poder de ilustração.
Altera-se centralmente, com o estabelecimento do
patriarcado e do monoteísmo, o lugar dos deuses. Os
deuses, nas culturas pagãs (em grande parte mantendo
relações com a cultura matriarcal56) habitavam os mares,
a terra, os grãos, as árvores e todos os seres encantados
da natureza. O mundo concebido pelo patriarcado
coloca os seus deuses inicialmente no poder masculino
e nos fenômenos celestes, operando a transferência
do lugar terreno para o espaço distante e intocável
do sagrado, agora associado ao imaterial. O próximo
passo é a criação dos deuses tribais sociais, nos dizeres
de J. Campbell (2002), associados a tribos específicas
e ligados a elas por linhagens ancestrais (que é o caso
evidente do Judaísmo).
O espírito puro não demora a revelar-se o maior
processo de apagamento da concretude do mundo, e
seu rebaixamento à matéria-prima é uma conseqüência
fácil de compreender. O sobrenatural das religiões
monoteístas constrói seu valor sobre os destroços do
natural, após ter dele se dissociado.
A ironia é que nosso enredo monoteísta e patriarcal,
após passar pela supremacia da razão e do cogito, nos

A questão das culturas matriarcais é tratada com mais atenção em outro


56

momento deste livro, por isso não nos extendemos nesse assunto aqui.

90 | malena contrera
Loja da Apple Inc. na Nova Zelândia. Foto: Divulgação.

leva a reeditar os deuses do trovão e dos raios, os deuses


celestes e imaterias, na tecnologia eletrônica, que, na
modernidade, aprisionou o relâmpago de Zeus na
fulgurância da máquina. Essa operação simbólica atribui
um valor mágico à tecnologia, o valor mágico que antes
era atribuído à aparição hierofânica do deus celeste.
Assim, a tecnologia moderna, por sua capacidade de
reproduzir imagens exógenas indefinidamente ocupa
o lugar de Zeus, por exemplo, o grande reprodutor,
senhor dos raios. Mas como em quase toda releitura
contemporânea do mito, essa reedição não contempla
a complexidade simbólica do núcleo mítico original57.
Esse processo atribuiu um valor mágico especial
à tecnologia, o valor mágico que antes era atribuído à
aparição hierofânica do deus celeste, e que agora se vê

57
Sobre esse processo escrevemos um artigo intitulado “Publicidade e Mito”,
presente no livro Publicidade e Cia.

Mediosfera | 91
reduzido às operações espetaculares de mostragem em
que a aparição não impacta por seu significado nem
por sua origem, mas sim por seus efeitos tecnológicos.
Dessa maneira as tecnologias eletrônicas utilizadas nos
processos de mediação social, por sua capacidade de
reproduzirem imagens exógenas indefinidamente (era
Zeus o grande reprodutor), esvaziam o poder criativo
do deus celeste e o usurpam.
E como a vida sempre supera a teoria, um
maravilhoso caso é o da Apple e de sua loja central, nos
EUA, que apresenta toda uma estrutura arquitetônica e
luminosidade que remetem claramente aos espaços de
culto58.
Dr. Frankenstein talvez seja a imagem mais
emblemática desse encantamento tecnológico, dessa
fé na eletricidade e na tecnologia que dela se mantém.
Hoje, ainda, quem não isentaria o doutor, em sua
megalomania e delírio de controle, e culparia o monstro?

O apagamento do outro – somos todos usuários

Rituais de casamento que ocorrem no espaço


virtual da rede, velórios virtuais59, caixões em forma de
celular60, em todas essas (e muitas outras) situações a
verdadeira relação se desenvolve com a tecnologia, com
a natureza tecnológica do meio. As especificidades do
meio formatam as possibilidades de representação da
pessoa que por meio dele se apresenta, se relaciona, e,
consequentemente, dão forma também às possibilidades

58
Leonardo de Souza Torres Soares tem pesquisado o que ele chama de culto
à Apple desde seu mestrado desenvolvido na UNIP/SP, e parte dessa reflexão
está em alguns artigos que evidenciam a relação entre tecnologia e religião.
59
Todos esses fenômenos são analisados livro de Jorge Miklos, Ciber-religião.
60
Conforme matéria publicada no dia 07/04/2010 no Portal Terra.

92 | malena contrera
de percepção do outro. Sabemos que ciberpessoas são
invenções possíveis dentro do ambiente infotecnológico
da rede, e mesmo que não menosprezemos o papel
imaginário dessas invenções, sabemos também que o
que impera nesse processo é a autodeterminação (não
em relação à tecnologia, mas sim em relação ao outro
humano), ou seja, o outro será, no mais das vezes, o que
quisermos que ele seja.
As questões relativas às perdas advindas da
compressão espaço-temporal desse processo foram já
bem mapeadas (Virilio, Trivinho), mas aqui queremos
tratar de uma das dimensões que é perdida nessa
relação quase que exclusiva com a tecnologia: a noção
de alteridade. Inicialmente dada pelos deuses, pelos
duplos, pelos objetos mágicos e encantados repletos
de sobrenaturalidade divina (e que era nesse caso uma
espécie de intranaturalidade, já que os deuses estavam
na biosfera) a noção de alteridade é apagada pela
identificação imediata do homem com a tecnologia,
na medida em que a tecnologia é algo percebido como
exclusivamente humano, próxima demais, prótese.
Temos de considerar ainda que, ao serem os objetos
tecnológicos inseridos no modus operandi funcional da
sociedade produtivista, essa identificação se exacerba e
adquire contornos claramente narcisistas, como sugere
V. Flusser:

Essa transformação gradativa das coisas em instrumentos explica a


deterioração progressiva do nosso sentimento religioso. As coisas
eram revelações do nada, e como tal, carregadas de sacralidade. Os
instrumentos obstruem a visão do nada e são portanto o contrário
do sacro, são o corriqueiro. As coisas representavam algo, eram
símbolos de algo, e era possível adorar esse algo atrás das coisas.
Os instrumentos representam, no melhor dos casos, o trabalho
manipulador da existência humana, e a única coisa que é possível
adorar nos instrumentos é o trabalho humano atrás deles. A única
religiosidade da qual somos capazes, portanto, é a auto-adoração, é
o narcisismo (Flusser, 2002, pp. 94-95).

Mediosfera | 93
Essa autoadoração, que deixa evidente seu traço
narcísico, encobre algo pior, que é o apagamento
da alteridade, exatamente em um mundo que,
ironicamente, gira em torno de infinitas interconexões.
Sintomático desse cenário é o sucesso das redes
sociais que se baseiam em “temos isso em comum”. O
mais espantoso é que na década de 1990, quando da
explosão do Orkut no Brasil, tantas pessoas quisessem se
encontrar a partir de critérios de absoluta “mesmidade”61,
critério evidente nos nomes dos grupos, a grande maioria
nomeados como “eu adoro isso”, “eu odeio aquilo”,
reproduzindo nauseantemente um discurso tipicamente
adolescente de auto-afirmação por meio de agrupamento
de iguais – “eu e minha turma”, só que agora virtual. Muda
o suporte, mas o conteúdo marcadamente narcísico
permanece, com ainda alguns retrocessos (fico vendo
como os adolescentes de hoje são mais conservadores
do que os de 30 anos atrás, alguns até bem moralistas),
incluindo o culto à aparência e a importância dada aos
critérios quantitativos (a velha breguice do mais popular
da escola, agora transposta para o espaço das redes, na
obsessão pela medição de agregados ou seguidores). No
Brasil, em 2015 e 2016, em meio às convulsões políticas
que tomaram o país, dividindo as opiniões em uma
lógica binária primitiva, o Facebook se tornou uma
vitrine do horror. As radicalidades, os xingamentos, as
ofensas vigorosas que pessoas que absolutamente não
se conheciam eram capazes de trocar deixou-nos um
maravilhoso exemplo de como somos capazes de odiar
virtualmente.
Isso torna mais compreensível o fato de que a
internet, que surgiu acompanhada dos discursos
proféticos de que ela seria a grande unificação da espécie

61
Mesmidade é um termo proposto por Z. Bauman em Amor líquido.

94 | malena contrera
humana, tenha sido o ambiente ideal para fomentar
intolerâncias de todos os tipos. Vimos recrudescer uma
forma popular de fascismo nas mensagens moralistas de
vídeos domésticos que circulam entre adolescentes, ao
mesmo tempo em que o neonazismo62 e toda produção
social de intolerâncias e xenofobias encontraram
também na internet um espaço asséptico o suficiente
para abrigar ideais e valores essencialmente sangrentos.
Quem chama a atenção para essa tendência
das sociedades contemporâneas a regredirem suas
capacidades de negociar de forma complexa a alteridade
é Z. Bauman, e não coincidentemente o faz de forma
bem eloqüente em um livro que se chama Amor líquido:

O impulso na direção de uma ‘comunidade de semelhança’ é um


signo de recuo não apenas em relação à alteridade externa, mas
também ao compromisso com a interação interna(...) Quanto mais
as pessoas permanecem num ambiente uniforme – na companhia
de outras ‘como elas’, com as quais podem ‘socializar-se’ de modo
superficial e prosaico sem o risco de serem mal compreendidas
nem a irritante necessidade de tradução entre diferentes universos
de significações -, mais tornam-se propensas a ‘desaprender’ a arte
de negociar um modus covivendi e significados compartilhados
(Bauman, 2004, pp. 134-135).

Bauman parece ter encontrado o tom que define as


sociabilidades contemporâneas, centradas nas afinidades
de ocasião e numa estética do eco: superficial, mas sem o
benefício do tato; prosaico, mas sem o lirismo da prosa.

62
A dissertação de mestrado defendida no Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Unicamp, com o título de Os Anacronautas do Teutonismo Virtual:
uma etnografia do neonazismo na Internet, por Adriana Abreu Magalhães Dias,
mapeou o universo de sites, portais, comunidades, fóruns, chats, blogs e listas
de discussão que abordam a temática racista e revisionista (que tenta invalidar
a veracidade histórica do holocausto na Segunda Guerra Mundial e o número
de judeus mortos por agentes nazistas). A pesquisa etnográfica realizada por
ela verificou que em língua portuguesa, espanhola e inglesa há na Internet
cerca de 12,6 mil sites racistas, revisionistas e neonazistas, entre sites pessoais
e institucionais, blogs e fóruns.

Mediosfera | 95
A libertação de Prometeu

O mito é a forma de vida que a ciência, embora almeje, jamais será.


E se a ciência pretende transformar-se numa forma de vida, como
pode bem nos parecer na civilização altamente tecnicista de hoje, só
o será miticamente (Moura, 1988, p. 50).

A técnica surge para o espírito humano como


ferramenta de adequação ao mundo, como possibilidade
de sobrevivência por meio do desenvolvimento de
habilidades que possibilitem ao homem adaptar ou
subjugar condições naturais indesejáveis, como conta
a história do homo faber. No entanto, essas “condições
naturais” eram inicialmente relacionadas aos deuses,
a quem se atribuíam todos os desastres ou benesses
naturais. Nesse sentido, a ferramenta nasce também
como uma forma de mediação do homem com o
mundo dos deuses.
O mito de Prometeu foi objeto de várias análises,
mas sua capacidade de desdobramento de sentidos ainda
hoje nos revela questões significativas sobre a relação do
homem com a técnica. Como sabem os que estudaram
Mitologia Comparada, uma de suas belezas reside em
sua natureza metafórica, arquetípica, representativa de
questões mais ou menos atemporais. Ao considerarmos
o caráter atemporal do mito afastamo-nos de seus
referenciais históricos e aproximamo-nos de seu poder
representativo de aspectos fundamentais da natureza
humana. É por isso que podemos utilizar o mito de
Prometeu como uma grande metáfora do que vivemos
ainda hoje.
Eudoro de Souza, citando as reflexões de Vicente
Ferreira da Silva, afirma essa natureza fecunda do
mito, sua natureza desveladora que se abre a sentidos
múltiplos e a múltiplas recontextualizações:

96 | malena contrera
O impacto simbólico de uma tempestade elétrica. Foto: Vasin Lee/Shutterstock.

O mito é poesia original, porque manifestação do ser; esta é


instauradora do mundo, amplia a consciência humana oferecendo
paradigmas mais elevados do ser e aproximando da órbita da vida
humana novas modalidades de existência (Almeida, 1988, p. 64).

É nesse sentido que buscar as origens míticas da


eletricidade é também uma forma de refletir acerca
da presente situação, já que estamos tão embebidos na
sociedade tecnológica e eletrônica que o próprio discurso
científico já traz em suas entranhas a crença na redenção
tecnológica. É possível que recorrer às raízes mitológicas,
arcaicas, dos processos que envolvem hoje eletricidade
e técnica nos ajude a compreender a dimensão não
explicitada pelas abordagens críticas tradicionais.
É esse exercício de desdobramento que pretendemos
ao estabelecermos relações entre o “fogo dos deuses”
roubado por Prometeu com o trovão e com o raio, e,

Mediosfera | 97
consequentemente, com a eletricidade, que é uma
representação moderna desse núcleo arquetípico do
poder dos deuses celestes63. Por meio dessa relação
compreendemos porque nossa sociedade se comporta
como se o contato com os aparatos da mídia eletrônica a
pusesse em contato, na realidade, com as esferas divinas
do fogo sagrado de Zeus (o poder do deus masculino no
qual se centram as religiões do patriarcado).
L. Greene ressalta, em sua análise, que Prometeu era
considerado pelos gregos como uma espécie de “pai da
técnica” e a ele, juntamente com Atenas, atribuía-se o
título de benfeitor dos homens, bem como a origem de
ensinamentos e técnicas diversas:

Prometeu é um herói da cultura; ensinou ao homem as artes da


matemática, da criação de animais, da agricultura, da profecia e da
arquitetura (Greene, 1989, p. 316).

O mito conta também que a razão pela qual Zeus


pune Prometeu por ter entregado o fogo aos homens
é muito próxima da natureza da técnica, a tentativa
dos homens de se igualar aos deuses, considerada por
Zeus inadmissível demonstração de hubris (Meunier,
1976). O fato é que há no fogo de Prometeu a promessa
de rebelião da condição humana, da criatura e de
sua fragilidade, e a pretensão de tornar-se criador, o
que acontece especificamente pela possibilidade de
desenvolvimento técnico que o fogo representa.
A narrativa mítica do roubo de Prometeu é
bastante conhecida, mas apenas até o ponto em que
ele é acorrentado à rocha por Zeus, como punição por

63
M. Eliade apresentou em vários de seus escritos uma série de casos por
ele estudados de culturas cujas mitologias apresentavam seus deuses celestes
sempre associados aos raios, trovões e fenômenos luminosos (o que inclui os
mitos solares, é claro).

98 | malena contrera
roubar o fogo dos deuses e entregá-lo aos homens. Essa
primeira parte do mito narra a grandeza da transgressão
de Prometeu, no entanto, algo é ocultado quando a
história pára por ai. É a continuidade da narrativa
que nos parece reveladora. Essa continuidade nos é
apresentada da seguinte forma:

El último episodio de su leyenda concierne a su immortalidad:


el centauro Quíron, herido accidentalmente por una flecha de
Heracles y no pudiendo ser curado, renuncia a su inmortalidad en
favor de Prometeo, quien la acepta (Martinez, Galiano & Melero,
1996, p. 540).

Essa versão do mito, trazida por Ésquilo (1987), na


qual Prometeu é resgatado de seu suplício por Héracles,
que propõe a Zeus libertá-lo em troca do sacrifício do
centauro Quíron, põe em cena uma nova personagem,
que tem muito a dizer sobre o próprio Prometeu. O
centauro Quíron é descrito da seguinte forma por L.
Greene:

Quíron é um filho da terra [...] Era conhecido como o mais sábio


e mais justo dos centauros. Sua fama de curador, de erudito e
de profeta espalhou-se por toda parte. Mas ele é uma divindade
ctônica, pertencente ao grupo dos tutores fálicos ou meio-animais
dos deuses, que simbolizam a sabedoria da natureza e do próprio
corpo (Greene, 1989, p. 214).

Essa passagem do mito nos narra sobre o sacrifício


da natureza animal em benefício da técnica originária
do fogo, já que Quíron é compreendido como sendo o
representante de um saber superior e mágico, curador e
sábio, e seus talentos são mais próximos aos dos xamãs e
curandeiros das sociedades arcaicas do que aos talentos
de inventor e técnico representados por Prometeu, como
afirma L. Greene (1989, p. 224), já que, para ela, Prometeu
“[...] representa um espírito que não se contenta com a
vida meramente instintiva”.

Mediosfera | 99
Quando Quíron toma o lugar de Prometeu, o
mito conta a saída de cena de um tipo de sabedoria
(que podemos associar à sabedoria dos curandeiros
pagãos) e a entrada em cena de outro tipo de poder: o
da transformação do mundo pela técnica, pelo espírito,
pelas estratégias do fogo.
Prometeu tem seu fígado/espírito salvo, enquanto
Quíron tem seu corpo homem/animal64 sacrificado,
apesar de sua sabedoria e do papel proeminente que a
narrativa mítica lhe dá como grande sábio (foi ele quem
educou o próprio Zeus após ele ter sido salvo por sua
mãe da devoração de Cronos).
Esse sacrifício da natureza instintiva que Quíron
representa e seu conseqüente apagamento (Quíron
morre) narra uma situação que conhecemos, invertem-
se os papéis e, apagando-se os traços da natureza ctônica
do homem, são as estratégias do fogo, entre elas a
tecnologia eletrônica, que se impõem como sua nova
natureza, até que, por fim, ela mesma se “naturaliza”.
A naturalização da técnica (Simondon, 2001) é tema
dos mais significantes para compreender sua aceitação
irrestrita e irrefletida. A técnica, alçada à posição de
agente principal, torna-se natural. Não estamos tratando
de manter certa dissociação existente entre natureza
e cultura, já que, como se sabe, a mútua imbricação
entre essas duas esferas transformou de tal maneira as
condições naturais de vida do homem póscivilização
que hoje torna-se impossível pensar numa definição de
natureza que não passe pelo viés de como uma cultura
específica a concebe. Estamos tratando justamente de
um senso comum que ainda compreende a natureza

64
No artigo Os monstros na/da mídia, apresentei uma hipótese sobre essas
representações de híbridos tratarem exatamente da natureza biológica do
homem, normalmente reprimida pelo processo civilizatório.

100 | malena contrera


como algo indiscutível, e, por isso, algo dado por
uma esfera que independe de questões ideológicas e
noológicas. Temos a tendência de não questionar a
chuva, o sol, ou o que quer que nos pareça dado pela
natureza, exceto quando esses questionamentos são de
ordem religiosa (a tendência de consolar-se frente aos
desastres naturais com a crença de que “foi porque deus
quis”). Desse modo, esconde-se nessa maneira natural
de conceber a técnica sua origem como construção
social, portanto arbitrada, e ideológica; a técnica torna-
se então inquestionável, algo dado a priori, e que se
mantém familiar por sua aparente banalidade cotidiana.
Naturalidade e familiaridade: está dada a base sobre
a qual não só a tecnologia dos meios de comunicação
foi implantada, mas, especialmente, sobre a qual ela se
reitera e reafirma continuamente65.
O mito trata, ao final, do sacrifício do Quíron que há
em nós, ou seja, da natureza ctônica do corpo, seja ele
o corpo humano ou o corpo da terra. Imolamos nosso
corpo no altar erigido para a tecnologia.
No que se refere ao corpo humano isso se torna
claro no processo de sedação exercido pelas imagens
mediáticas66 (a invenção da cadeira e do “homem
sentado”, receptor perfeito de todo o universo
mediático), processo este consumado pela televisão e
pelo computador, mas iniciado com a civilização e a
escrita, como bem apontou V. Flusser (2002) ao tratar
da escalada da abstração.
Segundo K. Lorenz (1973), o alto grau de sedentarismo
(que ele chama precisamente de domesticação) a que
nossa espécie chegou nos custou muito mais do que as

65
Essa estratégia da familiaridade na mídia é tratada no artigo “Publicidade
e Mito”.
66
Esta noção foi apresentada por N. Baitello Jr. no livro A era da iconofagia.

Mediosfera | 101
contra-indicações ou reações adversas que nos foram
informadas nos manuais de uso. Isso, dito por ele em
1973, antes da onipresença dos computadores pessoais,
alcança hoje uma dimensão inimaginável por Lorenz,
mas experienciável por todos nós. Essa realidade segue,
no entanto, consciente para pouquíssimos.
Lembro-me de ouvir várias vezes de V. Romano que
ele não entendia como as pessoas frente a um novo apa-
relho eletrônico aderiam totalmente ao discurso publici-
tário sobre as qualidades e vantagens da nova tecnologia,
sem nunca se perguntarem sobre os custos (além do fi-
nanceiro). E, acostumado pela sua veia marxista a pro-
curar onde estava o engano, arrematava: nada que surge
de novo possui só vantagens, tudo que propõe uma mu-
dança de hábitos e de métodos de se fazer alguma coisa
também exige algum sacrifício. Frente ao discurso do
vendedor, é preciso sempre se perguntar o que eu perco
para ganhar algo novo, e avaliar se a troca vale a pena.
Romano dizia que essa é uma lição de política de comu-
nicação que nossa sociedade ignorou por completo.
Quanto ao corpo da Terra, vemos enfim as
informações que tratam da dimensão catastrófica dos
nossos problemas ecológicos chegarem aos telejornais,
ainda que como notícia do cenário político, já que falta
totalmente aos nossos gestores de comunicação de massa
(especialmente nos bastidores da televisão) noção de
cidadania ou ética planetária (como chamaria E. Morin).
Provavelmente isso se tornou pauta tarde demais, mas
a real dimensão da destruição vital perpetrada pela
sociedade industrial está disponível no resultado de
uma enormidade de pesquisas que tratam da questão.
Foi um preço muito alto pela chance de brincarmos
de deus onipotente, onisciente e onipresente, até
mesmo porque essa brincadeira não respondeu a nada
mais do que às demandas de uma sociedade pautada

102 | malena contrera


em interesses e mentalidade correspondentes a um ego
infantil, daí sua marca inconfundivelmente narcísica.
Será preciso agora colocar à prova se há realmente
tanto valor quanto imaginávamos em nossa amada
tecnologia, se ela nos servirá para encontrarmos saídas
para superar essa crise monumental a que nossa paixão
por ela nos levou. E será preciso também considerar,
nesse processo, as palavras de I. Illich (1985): “À medida
que eu domino a ferramenta, eu preencho o mundo
com sentido; à medida que a ferramenta me domina,
ela me molda e me estrutura, e me impõe uma ideia de
mim mesmo”.

Mediosfera | 103
capítulo 4

Imagem: depois da
dessacralização, a
banalidade

Violência e sociabilidade

Matar para fazer cultura (Cyrulnik, 1999, p. 52)

Quando tratamos da natureza da imagem não


podemos ignorar sua relação com o que E. Morin (1988b)
considerou o caráter demens do Homo sapiens, conforme
vimos. Nesse sentido, de todos os excessos que nos
dizem respeito, talvez seja a desmedida propensão às
formas de violência aquele que mais se relaciona ao
tema da imagem.
A natureza da violência observada no
comportamento da espécie humana foi objeto de
vasto estudo antropológico e filosófico, mas das muitas
contribuições a essa questão, destacaremos quatro
autores que nos auxiliaram a compor a reflexão que
aqui trazemos. Um autor relaciona essa violência ao
estado natural do homem (T. Hobbes), outro a relaciona
à questão do sagrado (R. Girard), o terceiro a relaciona à
sua natureza mental, húbrica (E. Morin), questão central
para os estudos do Imaginário, e o quarto a pensa do
ponto de vista das construções cognitivas (B. Cyrulnik).
Hobbes (2003, p. 41), já em 1640, ao falar “Da
condição humana fora da sociedade civil”, postulou

Mediosfera | 105
que o ser humano, em “estado de natureza”67, isto é,
antes de submeter-se ao que ele designa como as “leis
da natureza”, consideradas por ele como sendo os
ditames da reta razão, é um ser em permanente estado
de guerra. Preocupado em propor o domínio da razão
para o fundamento de uma legislação possível para seu
tempo, sua motivação evidente é a premissa de que os
homens são seres naturalmente dotados de violência
e destinados ao medo, já que avalia que “Todos os
homens em Estado de natureza têm o desejo e a
vontade de ferir” (Hobbes, 2003, p. 33). Vemos ainda
que, para Hobbes:

[...] não pode ser negado que o estado natural dos homens, antes
de ingressarem em sociedade, era um estado de guerra e não
uma guerra qualquer, mas sim uma guerra de todos contra todos
(Hobbes, 2003, p. 37).

Partindo dessa premissa, ele considera que esse


estado de coisas é incompatível com as questões de
segurança e com o estabelecimento da paz, já que para
ele a situação dos homens deixados a si próprios é
geradora de insegurança e medo. Nesse sentido é que
ele estabelece as bases da proposição de que a sociedade
só pode se constituir a partir de formas de regulação por
meio de uma legislação assentada nas Leis da Natureza,
o que na realidade é uma nova ordem instituída a partir
de um contrato social, um pacto pelo qual todos abdicam
de sua vontade primeira em favor de uma instância
simbólica (que tanto pode ser um homem - o soberano
-, como um grupo de homens constituídos pelo direito

67
Para Hobbes (2003, p. 40) o estado de natureza é o estado primeiro da
condição humana, que deve ser submetido às leis da natureza, que, segundo
ele, são: “...defino assim a lei da Natureza: é a ordem da reta razão, familiarizada
àquelas coisas que, na medida de nossas capacidades, devemos fazer, ou
omitir, a fim de garantir a preservação da vida e das partes de nosso corpo”.

106 | malena contrera


de legislar). Mais ainda do que isso, poderíamos dizer
que Hobbes propõe que todos abdiquem de seus direitos
primeiros pela construção de uma razão comum.
Dessa forma, ele propõe que o ser humano não é um
ser da paz por natureza, e que o que o leva a procurar
esse estado social e a autoridade político-simbólica
é o fato de que deles depende sua segurança, possível
apenas por meio da criação de instâncias simbólicas68
racionalmente69 criadas.
Para Hobbes (2003) a sociedade de sua época,
na qual os pactos sócio-políticos ainda são frágeis
demais para abdicar de qualquer forma de violência,
necessitava de um Estado de poder absoluto e exercido
pela força. Ou seja, continuaria a haver violência, mas
delimitada e contida, exercida quando necessário pelo
poder absoluto instituído, o que o faz considerar que os
acordos sem a ação e a força da espada não passariam
de meras palavras. Quando, afinal, o próprio Hobbes se
pergunta se não é muito miserável a condição de súdito
frente a tantas restrições, conclui que nada se compara à

68
Apesar de aqui nos interessar essa leitura que Hobbes (2003) realiza
acerca da violência do estado de natureza do homem, não sob a dimensão
especificamente política dessa discussão, sabemos que Hobbes se referia à
esfera do político, já que para ele o poder do soberano deveria ser absoluto,
isto é, ilimitado. A transmissão do poder dos indivíduos ao soberano deveria
ser total, caso contrário, a liberdade relativa ao estado natural do homem que
fosse conservada traria potencialmente a capacidade e instaurar novamente
a guerra. Parece-nos que o ponto central de seu pensamento seja o fato de
que, uma vez instituída a autoridade por meio de um pacto simbólico-social,
essa autoridade não pode ser contestada, é absoluta. Para explicitar seu ponto,
Hobbes usou como metáfora a figura bíblica do Leviatã. Para ele, essa era a
figura que o Estado representava, um gigante cuja carne é a mesma que a de
todos que a ele delegaram o papel de os defender. Tanto mais assertivo ele
é no absolutismo do poder da instância simbólico-social constituída, quanto
mais seguro ele nos parece da necessidade de proteger a sociedade do estado
natural de violência do homem.
69
Referimo-nos em outro momento do trabalho a essa questão de como o
século XVII inicia esse processo de construção de uma racionalidade, quando
tratamos da aposta racionalizadora da ciência moderna, acusada por M.
Weber, e posteriormente debatida por J. Habermas e M. Berman.

Mediosfera | 107
condição de homens sem um senhor ou às misérias que
advém da guerra civil, dando mostras claras de julgar
que nenhum horror se equivaleria ao horror da própria
violência humana presente no estado de natureza.
O que especialmente nos interessa no pensamento
de Hobbes (2003) é a sua proposição da existência
de uma tendência à violência relativa a algo que
poderíamos considerar como uma espécie de instinto de
sobrevivência, e a crença de que só a razão, que institui o
pacto simbólico-social, oferece condições de lidar com
isso. Temos, no pensamento de Hobbes, um caso muito
claro da crença do século XVII na salvação pela razão,
como veremos mais adiante em nossa discussão.
R. Girard, por sua vez, em 1972, irá propor que as
culturas sacrificiais encontraram uma outra forma de
lidar com isso que Hobbes considerou um estado natural
de violência, mas, ainda que essa forma pressuponha o
trabalho simbólico-social proposto por este, Girard não
considera que a razão seja para isso a única estratégia
possível.
Ele propõe que a violência está presente no ato
fundador da sociedade, quando se refere à evidência
de que o assassinato possui um papel central nos mitos
cosmogônicos:

O número extraordinário de comemorações rituais que consistem


em uma morte, faz pensar que o acontecimento original seria
normalmente um assassinato. O Freud de Totem e tabu percebeu
claramente esta exigência. A unidade notável dos sacrifícios sugere
que se trataria do mesmo tipo de assassinato em todas as sociedades
(Girard, 1990, p. 121).

Relacionando esse acontecimento original ao ritual,


René Girard aponta para a relação entre violência e
sagrado, já que o acontecimento original é sempre o
gesto mítico fundador de uma sociedade, gesto divino
presente na cosmogonia.

108 | malena contrera


É exatamente esse caráter ritual que ele propõe à
violência, por meio do “assassinato original”, atualizado
pela ação do sacrifício, que a liga indissoluvelmente
à sociabilidade, já que sabemos que um dos sentidos
centrais do ritual era exatamente gerir processos de
sociabilização, a partir dos quais o grupo se auto-
organizava.
Ele propõe ainda ser o sacrifício, imbuído de um
sentido sagrado, uma forma ritual de contenção/
expurgo das tensões que subjazem à violência. Tratando
da complexa construção semiótica que o sacrifício
apresenta, aponta claramente o constante medo
humano de estar no alvo dessa violência, o medo que
temos, há tempos e ainda hoje, de que as tensões sociais
recaiam sobre nós, de sermos as vítimas sacrificiais, alvo
desse movimento catártico.
Apesar de não explicitar essa ideia, Girard dá razões
para que se possa presumir, especialmente por conta
desse caráter catártico do sacrifício, que o estado social
é um estado de constante tensão, na medida em que a
convivência social se pauta por uma série de interdições,
sem as quais a convivência do grupo não seria possível:

As interdições têm uma função primordial: preservam, no coração


das comunidades humanas, uma zona protegida, um mínimo de
não-violência absolutamente indispensável às funções essenciais,
à sobrevivência das crianças, à sua educação cultural, a tudo que
constitui a humanidade do homem (Girard, 1990, p. 272).

No entanto, enquanto para Hobbes a violência


poderia ser simbolicamente mediada pela constituição
racional de uma esfera sociopolítica, para Girard essa
mediação se daria nas práticas do sagrado, ou seja,
seriam os acordos simbólico-religiosos que dariam
conta desse processo dentro das sociedades primitivas,
para as quais ele ressalta a importância do sacrifício.

Mediosfera | 109
Em ambos os casos a violência é projetada para uma
instância simbólica culturalmente criada com o fim de
realizá-la dentro de possíveis limites de contenção.
Ao apresentar uma análise sobre os processos de
eleição da vítima expiatória, Girard aponta para um
incontestável dado: a vítima sacrificial, receptáculo da
projeção das tensões do grupo, é eleita entre os mais
fracamente vinculados ao grupo social. Ou seja, aquele
cujo sentimento de pertença em relação ao grupo esteja
mal estabelecido, será possível candidato a ser a vítima
sacrificial. Isso, segundo ele, se dá pela clara relação da
violência com a vingança, já que quanto mais vinculado
ao grupo esteja o bode expiatório, mais retaliações
tenderiam a acontecer, o que geraria uma cadeia de
violência interminável70. Logo, o excluído ou o mal
adaptado a um determinado grupo é já, de saída, um
forte alvo da violência desse mesmo grupo.
Essa proposição de Girard é significativa ao nosso
trabalho na medida em que contribui para uma reflexão
sobre a aparente imbricação que constatamos entre a
violência e a imagem (esta última central à compreensão
da religiosidade), como veremos a seguir.
B. Cyrulnik fala a partir de uma área de estudos que
cada vez mais se aproxima dos estudos da Comunicação,
a Etologia Humana, e parte de premissas bem próximas
às de Hobbes e Girard. Ele considera também a presença
de uma violência que poderíamos designar como
inerente ao homem:

Onde o animal agarra uma presa e a come, o homem mata. Não


há ato mais humano do que o de matar, pois os homens matam
sempre duas vezes, no real e na representação (Cyrulnik, 1999, p. 56).

70
É impossível deixar de recordar do filme brasileiro Abril Despedaçado, que
ilustra essa dinâmica da vingança interminável que Girard apresenta com
precisão e poesia.

110 | malena contrera


Após todo o processo civilizatório que se ocupou,
entre outras coisas, de tentar conter as explosões da
violência (e que mais não fez do que des-ritualizá-
la), em busca de viabilizar a sobrevivência da espécie
(necessidade especial se consideramos os incrementos
da máquina de guerra, cada vez mais sofisticada e de
longo alcance), é tarefa muito incômoda constatar que
temos o que parece ser uma natural predisposição para
a violência, e que, ainda hoje, esse traço se manifesta em
toda a sua realidade.
E. Morin propõe, por sua vez, que a fundamental
paradoxalidade da natureza humana faz surgir a
sociabilidade (e a afetividade que ela pressupõe)
exatamente unida à violência, já que a violência também
pode ser entendida como demonstração de uma
afetividade destrutiva. É o caráter demens, complementar
ao sapiens, apresentado por ele já há algumas décadas:

É um ser de uma afetividade intensa e instável, que sorri, ri, chora,


um ser angustiado e ansioso, um ser gozador, ébrio, extático,
violento, furioso, amante, um ser invadido pelo imaginário, um ser
que conhece a morte, mas que não pode acreditar nela, um ser que
segrega o mito e a magia, um ser possuído pelos espíritos e pelos
deuses, um ser que se alimenta de ilusões e de quimeras, um ser
subjetivo cujas relações com o mundo objetivo são sempre incertas,
um ser sujeito ao erro e à vagabundagem, um ser úbrico que produz
desordem. E, como nós chamamos loucura à conjunção da ilusão,
do excesso, da instabilidade, da incerteza entre real e imaginário, da
confusão entre subjetivo e objetivo, do erro, da desordem, somos
obrigados a ver o Homo sapiens como Homo demens (Morin, 1988b, p.
108).

Uma bela maneira ainda de compreender essa


intensa paradoxalidade do sapiens-demens é a imagem
proposta por ele:

Risos e lágrimas são estados violentos, convulsivos, espasmódicos,


são rupturas, abalos, e, de resto, podem reunir-se e permutar-se:
ri-se até as lágrimas e os soluços podem transformar-se em ‘riso
demente’ (Morin, 1988b, p. 105).

Mediosfera | 111
Para Morin, ambas – violência e sociabilidade – são
frutos do caráter demens, da afetividade exacerbada e do
excesso que lhes são característicos. Esse caráter demens,
para ele, é também o responsável pela capacidade
humana de organizar-se em sociedades mais complexas,
em processos que exigem um constante e sofisticado
trabalho de sociabilidade71.
Partindo dos estudos de que poderíamos chamar
de uma arqueologia dos processos de representação e
de sociabilidade das sociedades arcaicas (Morin, 1988b),
ele também situa claramente o papel que as imagens
ocuparam antigamente nesse processo, deixando
um legado que retorna e se atualiza sempre que nos
defrontamos com elas.
A questão central colocada por Morin (1988a) é
que os primeiros sinais de consciência no homem
irrompem no confronto com a morte. É a contundência
da experiência da morte que, para Morin, mobiliza
as primeiras manifestações da consciência e todo o
processo de complexidade que dela advém. A morte é
sentida pelo homem como uma espécie de violência,
e assim sendo aproxima-se da noção de “assassinato
original” referida por R. Girard, que também se refere a
Freud (apesar de criticá-lo duramente) para pensar essa
relação do fundamento social com o que ele designa de
violência fundadora, indissociável do sagrado.
É neste contexto que E. Morin situa a questão
da imagem (como ferramenta da magia), quando a
considera uma estratégia humana contra o medo da
morte:

71
Logo após apresentar o caráter demens, Morin aponta algumas de suas
consequências diretas, e em quarto lugar das consequências por ele
enumeradas encontramos: “A constituição de uma sociedade mais complexa
do que a paleossociedade, apta a tornar-se uma unidade no seio de um
conjunto social mais largo, e, mais tarde, a constituição de sociedades vastas,
de Estados e de cidades.” (Morin, 1988b, p. 110).

112 | malena contrera


Portanto, tudo nos indica que o Homo sapiens é atingido pela morte
como por uma catástrofe irremediável, que vai trazer consigo uma
ansiedade específica, a angústia ou horror da morte, que a presença
da morte passa a ser um problema vivo, isto é, que trabalha a sua
vida. Tudo nos indica igualmente que esse homem não só recusa
essa morte, mas que a rejeita, transpõe e resolve, no mito e na
magia (Morin, 1988b, p. 95).

Nesse sentido, Morin dá à noção de estado natural


de violência, de Hobbes, e à proposição de violência
fundadora (via assassinato), de Girard, uma nova
dimensão, sinalizando que sob as manifestações da
violência pode estar o medo da morte. Isso lança luz
sobre a frase de W. Shakespeare (1997): “Ficar enfurecido
é revelar-se assombrado de medo”.
Sobre essa complexa relação Cyrulnik contribui com
uma discussão que aponta o papel da violência como
fundante no humano por meio de sua relação com a
sobrevivência da espécie, via obtenção de alimento:

[...] a caça, muito mais trágica, exige a coordenação dos papéis, a


aprendizagem das especialidades, o uso das armas e das ferramentas.
A harmonização do grupo põe em cena uma representação de
vitória sobre a caça que impulsiona uma intensa sensação de
existência para o caçador e a sua coletividade. Tudo se passa como
se os primeiros caçadores dissessem: A morte dos outros dá-nos
vida. Matar passa, então, a ser um acontecimento, talvez fundador
da humanidade (Cyrulnik, 1999, pp. 52-53).

Nesse contexto, a sociabilidade necessária para o


trabalho conjunto é criada por meio de um processo
de representação e geração de imagens que pode ser
entendido exatamente como a criação da “sensação
de existência” realizada pelo ritual da caça. Violência
ritualizada que, por meio das representações e das
imagens, gera a sensação de existência ao mesmo tempo
em que gera sociabilidade.
Essa marca das sociedades caçadoras, que une
violência, afetividade, medo e imagem, é ainda hoje a

Mediosfera | 113
nossa marca na medida em que a memória masculina
da caça se perpetua dentro da lógica patriarcal (e
monoteísta) que subjaz ao capitalismo. Dessa forma,
a violência intrínseca à espécie humana (somos os
maiores predadores do planeta, sem sombra de
dúvidas) nos destinou a sermos igualmente medrosos e
a buscarmos nas imagens uma estratégia de elaboração
desse medo.

Medo – o trabalho das imagens

Durante o século XX vimos a implantação de uma


ética da visibilidade72 absoluta. Essa visibilidade, no
entanto, é parte de um cenário maior que poderíamos
considerar como de desequilíbrio ecológico das imagens,
um processo que se consuma com a proliferação das
imagens exógenas73 que, pela cultura dromológica
da qual fazem parte, usurpam o tempo destinado às
imagens endógenas, ou seja, ao sonho, à divagação, à
imaginação ativa, que necessitam do tempo lento da
interioridade e da reflexão. Esse é um processo que
nos interessa especialmente na medida em que recai
sobre as conformações contemporâneas do imaginário
cultural.
Baitello (2002), ao propor a teoria da iconofagia,
nos dá uma clara visão desse processo de hipertrofia
da imagem exógena e de suas consequências para a
sociedade contemporânea pós-industrial, processo que,
no século XX foi efetivado pela reprodução desenfreada
das imagens técnicas. Trata-se de um processo no qual

72
Destacamos a contribuição especial para o presente estudo dos trabalhos de
H. Belting, V. Romano, D. Kamper e N. Baitello Jr. sobre o tema da imagem.
73
Sobre esse processo de hipertrofia das imagens exógenas em detrimento das
imagens endógenas, tratamos anteriormente no texto “Na selva das imagens”.

114 | malena contrera


o homem, já há tempos, perdeu o controle (se é que
alguma vez já o teve), sendo tragado pelo “furacão” das
imagens visuais que se autorreproduzem tecnicamente,
retroagindo sobre nós, alimentando-se dos nossos
olhares cansados.
Essa megaoperação de mostragem, ininterrupta,
fruto de um processo de desencantamento gerador de
uma visão de ciência que pretende conhecer o mundo
dissecando-o, foi ainda tratada por J. Baudrillard
(2004b) que, ao falar da televisão e do processo de
telemorfose, identifica-a, e às suas consequências,
como um fenômeno no qual se explicita o que ele
nomeia, com precisão, de “uma curiosidade de ordem
visceral, orgânica, endoscópica [...] Gozo espeleológico.”
(Baudrillard, 2004b, p. 51). E segue apontando o atual
cenário:

Estamos além do panóptico, da visibilidade como fonte de poder


e de controle. Não se trata mais de tornar as coisas visíveis a um
olho externo, e sim de torná-las transparentes a si mesmas, pela
perfusão do controle de massa, e apagando em seguida os traços da
operação (Baudrillard, 2004b, p. 22).

Essa transparência das coisas a si mesmas, essa


consequência final da crise da representação, da qual
Baudrillard fala desde seus textos sobre o simulacro, nos
apresenta uma pergunta incômoda: quais as motivações
centrais dessa espécie de suicídio do real?
O próprio Baudrillard dá as pistas para essa
resposta quando compara esse processo a uma reação
contrafóbica, que busca provocar o objeto ou situação
geradores de medo, pela incapacidade de suportar sua
iminência. O confronto buscado pelo contrafóbico dá
sinais da fragilidade frente à tragédia anunciada. O
aparente gesto suicida que nossa sociedade atual pratica
contra o real, que até então servia para a construção

Mediosfera | 115
de um senso de realidade comum imprescindível à
sociabilização, pode ser entendido, desta maneira, como
um gesto desesperado de medo, um gesto que prefere a
morte à vida na iminência da catástrofe.
Esse medo frente à virtual catástrofe (e a questão
aqui é exatamente a virtualidade, a condição humana
de, como seres de linguagem, vivermos no universo
do simbólico, sobre o qual ironicamente temos ainda
menos controle do que sobre o universo concreto) é
identificado por B. Cyrulnik (1999, p. 101) pelo nome de
angústia, ao tratar do que ele designa de “filogênese da
percepção semiótica”:

Ao evoluir do significante para o significado, passei do mundo


percebido do medo ao mundo despercebido da angústia... O medo
leva à ruína, à imobilidade que protege ou à fuga desenfreada que,
quando termina pondo o predador fora de jogo, provoca uma
euforia. Ao passo que o fato de viver num mundo despercebido
obriga o organismo a uma adaptação representacional. Para se
sentir seguro, tem de ir à procura do objeto de angústia a fim de
o transformar em objeto de medo, perante o qual conhece uma
estratégia de ruína ou de fuga. É isto que fazem os fóbicos e os
paranóicos cuja angústia acalma assim que podem localizar e
indicar o objeto que os atemoriza. A partir de então, basta evitar o
objeto fobógeno ou agredir o agressor (Cyrulnik, 1999, p. 101).

Essa questão, apresentada por Cyrulnik, contribui


diretamente para a compreensão do atual estado de
desequilíbrio ecológico das imagens mediáticas. Ele nos
diz que as estratégias de elaboração semiótica geradas
pelo homem procederam a uma transformação do medo
primitivo do mundo percebido/vivido para a angústia
do mundo do não perceptível, do representacional.
Especialmente interessante é a relação que ele aponta
entre medo, frente ao qual o homem já possui uma reposta
adaptativa instintiva, e entre a angústia, frente a qual falta
uma resposta adaptativa do ser humano, obrigando-o a
se valer cada vez mais do universo da linguagem como

116 | malena contrera


forma de defesa simbólica. Essa defesa simbólica, no
entanto, faz aumentar a impotência humana na medida
em que a virtualização do objeto ameaçador desmonta
toda a estratégia de defesa anteriormente codificada pela
espécie frente à ameaça concreta e perceptível, e da qual
o homem poderia lançar mão.
A complexidade humana precisou inventar o
fantasma que nos aterroriza para gerar, por meio
do universo simbólico que apresenta como resposta
a esse fantasma, uma hipercomplexidade infinita,
segundo Morin. É como se, para nos livrar do medo,
inventássemos a angústia.
Essa é uma ideia que nos interessa para entender
nossa era da plena visibilidade, da plena encenação de
todas as dimensões do humano, dos mundos virtuais e
da apologia da cibervida.
Podemos compreender por trás dessa constatação
de Cyrulnik que a produção de imagens visuais é, entre
outras possibilidades, uma estratégia para transformar
o objeto indefinido e não perceptível da angústia, frente
ao qual a fragilidade humana se apresenta em toda sua
magnitude, em objeto definido e perceptível do medo,
frente ao qual o homem possui uma resposta de fuga ou
de confronto já adaptada.
Por mais ameaçadoras que sejam as coisas, visibilizá-
las é uma estratégia para transformá-las em algo com
que já sabemos lidar, ainda que possamos ser derrotados.
Insuportável é lidar com o universo da angústia, do
despercebido. O homem não teme nada tanto quanto
teme a dimensão endógena da imagem, suas próprias
imagens interiores.
Esse universo do despercebido já foi culturalmente
identificado como o mundo do duplo, o mundo dos
deuses, o mundo dos fantasmas, dos espíritos, e, agora,
o mundo das imagens interiores. E segundo a maneira

Mediosfera | 117
da arrogância humana (Zoja, 1992) de lidar com as
coisas, submetendo-as e dominando-as, foi preciso dar
corpo ao duplo, matar os deuses, eliminar os fantasmas,
exorcizar os espíritos e tornar visíveis todas as imagens
endógenas. Foi preciso visibilizar a alma e as entranhas,
não para dar a elas o direito à existência, mas para
submetê-las à nossa própria banalidade, ao desvalor de
um mundo desencantado.
Sobretudo é preciso visibilizar tudo, tentando lutar
contra a angústia, mas acabando por amplificar o medo.
Ironicamente, no entanto, é o universo da angústia,
a capacidade de lidar com o despercebido (fruto da
descontextualização espaço-temporal do percebido
imediato) que nos define como humanos, já que,
segundo os estudos etológicos, todas as outras formas
de relação com o mundo são encontradas nos demais
primatas superiores. Cyrulnik (1999, p. 101) torna clara
essa questão quando nos diz que “[...] viver no mundo
do medo obriga a agir, ao passo que viver no mundo da
angústia obriga a compreender e a falar”.
Se o medo requer respostas concretas, literais, a
angústia exige um complexo trabalho simbólico de
exorcismo. Dessa maneira, a necessidade de transformar
tudo em imagem exógena evidencia a incapacidade
humana contemporânea de lidar com o universo
das imagens endógenas que, em última instância, é o
universo simbólico. Estamos, portanto, falando da crise
das capacidades de simbolização do humano74, que gera
uma regressão às formas literais de ação e busca de
solução para os conflitos.
Os rituais arcaicos apresentavam uma série de
ações que respondiam ao medo de forma criativa, já

74
Tratamos desse tema no livro Jornalismo e realidade, mas voltaremos a ele
ainda no presente livro.

118 | malena contrera


André Dahmer/Os Malvados.

que por meio da performatividade corporal dávamos


corpo concreto ao que nos afligia, de forma a derrotá-
lo (ou sermos derrotados por ele). Vemos nas culturas
arcaicas uma forma híbrida da imagem, o duplo, que
ao mesmo tempo em que evidenciava uma grande
elaboração simbólica, não prescindia da experiência
concreta na solução criativa que propunha, na medida
em que o duplo era um desdobramento do referente.
Um desdobramento que fazia com que a imagem, pela
materialidade do seu suporte, superasse sua natureza
fantasmagórica e se apresentasse, na realidade como
uma transfiguração, uma hierofania que tornava
presente o ausente por meio de uma ação direta que não
podia jamais prescindir da materialidade do suporte.
A imagem primitiva religiosa não era um fim, mas
uma mediação, não estava ali para preencher uma
ausência, mas para tornar presente uma vez mais o
que havia se ausentado. Por isso após a elaboração
da imagem, o homem primitivo interagia com ela75,

75
Essa interação do homem com a imagem religiosa foi objeto da fala de H.
Belting, em aula concedida ao Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura
e da Mídia em 31 de agosto de 2008, em S. Paulo (disponibilidade em contato
com o Centro de Pesquisas).

Mediosfera | 119
elaborando rituais encantatórios que atestavam que a
imagem tinha o status de uma presença.
A transformação histórica da função religiosa da
imagem (duplo) para a função estética da imagem
eliminou a possibilidade dessa solução simbólica,
imaginativa, como bem apresenta E. Morin:

[...] a finalidade cultural ou ritual das obras do passado se atrofiou


ou desapareceu progressivamente para deixar emergir uma
finalidade propriamente estética; assim nós removemos estátuas e
quadros dos templos para museus, removendo de um só golpe as
significações das anunciações e das crucificações... Às vezes até as
significações imaginárias desaparecem; assim, as danças modernas
ressuscitam as danças arcaicas de possessão, mas os espíritos não
estão nelas (Morin, 1986, p. 79).

Hoje, após termos matado o duplo, podemos apenas


agir de forma a dar ao nosso objeto de angústia um
corpo imaterial dessimbolizado, ainda que perceptível,
ou seja, podemos transformar tudo em imagens sem
referente, em aparências que não revelam aparições. O
corpo referente foi apagado e por isso não é possível
evocá-lo. A sociedade atravessada totalmente pela
mídia eletrônica cria então imagens cujo suporte é o
ar, a eletricidade, sem percebermos que essa operação
de virtualização radical fortalece os fantasmas que nos
ameaçam. Não é à toa que D. Kamper dizia que vivemos
num mundo de fantasmas (imagens sem corpos) e de
zumbis (corpos feitos só de aparência, sem alma, sem
interioridade).
Ainda assim, o universo das representações
estéticas nos valeria muito para a realização do trabalho
de constante ressignificação das situações sociais,
especialmente se guardassem sua capacidade simbólica.
No entanto, com Baudrillard, sabemos que não vivemos
mais em um mundo de representações, salvo casos
localizados, mas sim no mundo dos simulacros.

120 | malena contrera


Esse triunfo do simulacro – e de suas máquinas de
simulação – deu o tiro final à possibilidade humana
de defesa e adaptação às ameaças pelo caminho
representacional da angústia, pelo caminho da
linguagem e da representação simbólica.
Isso adquire um sentido ainda mais específico
quando constatamos que nossa época optou pela
visualidade. Mesmo considerando a capacidade que a
imagem visual tem de estimular as outras sensações,
pela reconstituição sinestésica realizada pelo receptor,
ou ainda pelo acionamento das redes neuronais de
ressonância, verificamos que a velocidade com que
essas imagens se sucedem em nossa sociedade atual, em
especial na mídia eletrônica e no entorno dos grandes
centros urbanos, onde a proliferação das imagens se
apresenta como o pior pesadelo (que nem W. Benjamin
ousou ter), faz com que a única sensação possível, além
do medo, seja a da vertigem76.
A vertigem é o novo estado de alma da sociedade
da visibilidade e da eletrificação das mediações,
antecipada pela eletrificação do mundo da produção
industrial. D. de Kerkhove77 chega mesmo a falar de
uma nova eletrificação: a eletrificação da aura humana,
postulando que o estado de constante e instantânea

76
Tratamos dessa relação no artigo “Vertigem mediática nos megaeventos
musicais”, publicado na revista E-Compós, 2008. Também Maurício Ribeiro
da Silva, ao tratar das questões espaciais na Comunicação e nas mediações,
aponta o que considero uma das mais interessantes contribuições acerca
da relação entre mídia e vertigem ao falar que antes organizado a partir
do simbolismo do Centro (cf. M. Eliade), que era um centro geográfico e
simbólico, o espaço passa agora a se organizar a partir de um centro que é
móvel – os aparatos móveis de comunicação. Com um centro que se move
todo o tempo, mais do que gerar localização e sentido de organização, a
relação do homem contemporâneo com o espaço passa a ser uma relação
pautada pela vertigem, pela deambulação.

Palestra realizada no auditório da Escola Superior de Propaganda e


77

Marketing, em São Paulo, em 8 de novembro de 2007.

Mediosfera | 121
Foto: SV Luma / Shutterstock.

conectividade, bem como seu caráter “glocal”78, gera


agora uma aura eletrônica que permeia o homem atual
e que, segundo ele, pretende resgatar a capacidade de
conexão e presença da aura tradicional, destruída pela
reprodutibilidade da obra de arte (W. Benjamin).
Não sei se é possível concordar que essa aura possa
ser reconstruída no seu sentido original, mas certamente
a proposição de Kerkhove de uma aura eletrificada é
bastante interessante de ser pensada. Não podemos evitar
lembrar do Dr. Frankenstein, investindo também na
eletricidade suas esperanças míticas de vivificar o corpo
morto, seja esse corpo um cadáver humano, seja esse
corpo uma rede social que, apesar das conectividades

78
Independente da proposição original de P. Virilio para o termo, D. de
Kerckhove esclareceu na palestra acima referida que esse termo estava sendo
usado por ele no sentido de trabalharmos com conteúdos locais dentro de um
contexto global.

122 | malena contrera


constantes, não consegue se converter em comunidade,
como afirma Z. Bauman (2003).
A cruzada realizada pela sociedade industrial e pelo
imaginário mediático contra o imaginário cultural, este
último sempre descontrolado e subversor, gerou por um
lado um mundo de objetos concretos desalmados79, e, por
outro lado, um mundo de imagens em abismo, que não se
referem a nada a não ser a si mesmas, destruindo a relação
entre a imagem e as vivências humanas corporais80,
renegando o corpo e a materialidade do mundo às
sombras, completando assim o desencantamento do
mundo através do desenvestimento libidinal do corpo,
do desencantamento radical da matéria.
Ora, essa dissociação entre a representação e a
experiência concreta é exatamente o que está na raiz
da enorme crise de sentido que presenciamos não só
na mídia e nas produções mediáticas, mas também na
sociedade que por meio dela se representa.
Se a criação dessa eletrificação da aura do mundo
será capaz de gerar as condições favoráveis ao que
Kerkhove chama de uma nova fluidez do mundo, que,
segundo ele, existia nas culturas míticas e se perdeu com
a visão “sólida” de uma ciência de raiz galilêica (ele ser
refere a Galileu, e nisso situa o marco inicial definitivo
da ciência moderna no mesmo momento que o define
Morris Berman), não temos ainda como saber.
Mas podemos afirmar que, se a materialidade
do mundo não for fecundada por essa eletrificação
reinante, se essa eletrificação se mantiver a alguns
palmos do chão, apenas no nível dos dígitos (dedos) e do

79
J. Hillman apresenta um diagnóstico muito interessante a respeito desse
mundo sem alma, em seu livro Cidade e Alma.
80
Essa dissociação entre imagem e vivências corporais já foi bastante tratada
por autores como D. Kamper e N. Baitello Jr. e no livro Mídia e Pânico.

Mediosfera | 123
pensamento digital81 e digitalizador, estaremos, ao invés
de construindo um novo estado heraclitiano fluido do
mundo, testemunhado a realização final do projeto de
seu desencantamento.

Depois do voyeurismo, a banalidade da mídia

[...] a imersão na banalidade é o equivalente a um suicídio da


espécie (Baudrillard, 2004b, p. 59).

A visibilidade absoluta, processo central da


sociedade do espetáculo, gerou um estado de extrema
identificação, até o esgotamento e o surgimento do
seu oposto, a indiferença. O estado constante de busca
de “um emoção qualquer que sirva”82 desembocou
no que J. Baudrillard designou como um processo de
experimentação ilimitada, de consumação da própria
realidade, apagando a experiência do erótico. Sobre
isso, com muita propriedade, M. Sodré comenta:

[...] não se sustenta a hipótese explicativa de um ‘voyeurismo’


freudiano, pois não é a sexualidade que está em jogo, mas a mesma
escopofilia visceral que liga a banalidade dos fluxos televisivos à
existência banal dos espectadores (Sodré, 2004, p. 15).

A criação dessa banalidade, que se mascara


de uma normalidade que se pode pressupor ser
apenas a consequência da proliferação do homem
consumidor mediano da sociedade industrial, pode
ser também entendida como um traço do processo
do desencantamento do mundo, que se dá agora no

81
Kerkhove, na mesma palestra acima referida, propõe que o avanço se dará
na direção de não mais um pensamento digital, mas sim de um pensamento
e uma tecnologia quântica. Nossas considerações finais trazem algumas
palavras sobre essa questão.
82
Referência à música “Socorro”, do grupo de rock brasileiro Titãs.

124 | malena contrera


desencantamento do corpo, na medida em que se pauta
exatamente na destruição do sentido existente no corpo,
convertido também em matéria-prima da indústria da
imagem e do entretenimento.
Isso sem dúvida condiz com a proposição de C.
Melman que sugere ser a falta absoluta de segredo um
sinal do fim do erótico. Acaba o erótico porque acaba
seu sentido de “iniciação”:

[...] trata-se agora de buscar o autêntico, em outras palavras, não


mais uma aproximação organizada pela representação, mas de ir
para o objeto mesmo. Se continuarmos nessa linha, o que marca
essa mutação cultural é esse apagamento do lugar de esconderijo
próprio a abrigar o sagrado, quer dizer, aquilo pelo que se sustentam
tanto o sexo quanto a morte (Melman, 2003, p. 20).

Um modo que a indústria do espetáculo encontrou


para driblar o fim do voyeurismo, com o fim do erótico,
e continuar a movimentar seu mercado foi a criação do
que poderíamos chamar de um voyeurismo agressivo,
especialmente no ambiente dos programas televisivos.
Se o voyeurismo até então conhecido se baseava no
prazer erótico do olhar, da transgressão do olhar via
penetração simbólica da imagem do objeto interditado,
o voyeurismo agressivo trata de uma operação em que
não basta olhar o que se mostra, nem tampouco “roubar”
com os olhos o que se esconde.
Esse novo tipo de voyeurismo, característico
dos programas televisivos que invadem a casa de
famosos83, bem como todos os redutos de privacidade
da vida pessoal de quem quer que seja (tornada assim
completamente explicitada), já não nos parece movido
pelo erótico, mas sim por uma forma de violência

83
Há vários quadros desse tipo em programas televisivos em diversos países,
mas no Brasil temos alguns bastante conhecidos já há vários anos (Programa
do Gugu, Domingão do Faustão, Pânico na TV etc.).

Mediosfera | 125
simbólica. Trata-se de obrigar a mostrar a qualquer
preço, pela imposição de uma visibilidade total que
renega o não mostrado à categoria de não existente.
Quando o violado consente, feliz, como o fazem
os big-brothers em cena, nossa consciência se permite
então o autoengano de que estamos tratando do erótico.
Mas sabemos que se trata apenas da sucessão de imagens-
chiclete, feitas para mastigar, sem deglutição, sem
contágio. Apenas destruição, mastigação compulsiva
relacionada ao hábito do consumo ininterrupto.
Mais do que a demanda do desejo, o que está em
ação é a demanda da imagem que, em sua voracidade
agressiva, precisa transformar todos os redutos da vida
humana em mercadoria imaterial do grande espetáculo
da visibilidade absoluta. Essa sem dúvida poderia ser
considerada uma das formas de iconofagia a que se
refere N. Baitello Jr. É também o que C. Melman designa
como “exigência de transparência”:

Hoje a questão é exibir. O que se chama de gosto pela proximidade


vai tão longe que é preciso exibir as tripas, e o interior das tripas,
e até o interior do interior. Não há mais limite algum à exigência
de transparência. A surpresa são essas transmissões televisivas que
reúnem um público leigo para debater uma questão extremamente
delicada ou íntima... as pessoas se desnudam diante das câmeras
com um impudor que não seriam forçosamente capazes de
manifestar no consultório de um médico. A presença das luzes e
das câmeras age como um imperativo diante do qual ninguém
poderia recusar-se, como se se estivesse diante de um torturador
a quem conviria confessar tudo, inclusive o que não se fez... O
olhar é hoje essa espécie de torturador diante do qual nada pode
ser dissimulado. Nosso jornalismo dito de investigação se deleita
frequentemente com os caçadores de assuntos escabrosos e com a
exibição (Melman, 2003, p. 23).

A partir dessa ótica, podemos compreender de outra


maneira a banalidade do sexo pela internet, das pessoas
que postam na rede vídeos domésticos de pornografia
(muito kitsch e de péssima qualidade técnica), o mercado

126 | malena contrera


da explicitação de todos os redutos de vida, até mesmo
o da infância, pelo crescimento da pedofilia na internet.
Os exemplos são muitos, todos conhecemos.
Trata-se aqui de uma das consequências desse processo
radical de virtualização da vida que desinveste o homem
de seu próprio corpo, restando assim só a monótona
banalidade da “curiosidade endoscópica” a que se refere
Baudrillard (2004, p. 53) e o “gozo necroscópico”84 que
dela pode advir. Essa é a sociedade na qual as “estrelas”
e os ídolos são atores e atrizes pornôs, cantoras cuja
performance musical se resume à transformação do
próprio corpo em mercadoria, atores de telenovela
que não sustentam qualquer dramaticidade maior do
que passear pelo cenário sem camisa, insinuando uma
virilidade que, possivelmente, não existe.
A ênfase nas encenações do apelo sexual é um claro
sintoma de que o sexo mesmo se retirou. O tema da
conturbada relação entre pornografia e a crescente
incapacidade de jovens de manterem relações sexuais
presenciais é uma evidência de que as teorias não estão
assim tão descoladas das ruas, como querem alguns85.

Mono-imagem e patriarcado

A religião que mais cresce no mundo no começo


do século XXI é o Islamismo86 (Boscov, [2001]),
enquanto as religiões que mais crescem no Brasil são

84
C. Melman (2003, p. 18) propõe esse termo ao falar sobre a exposição
iniciada na cidade de Mannhein, na Alemanha, em 1997, e que correu o
mundo expondo cadáveres embalsamados, em processo de dissecação,
concebida pelo o Dr. Gunther von Hagens.
85
Sobre esse tema ver, por exemplo, o vídeo The Great Porn Experience, a
entrevista Fap or Fuck: It’ time to choose ou ainda o fórum Your brain on
porn.
86
Conforme artigo de I. Boscov publicado em 31/01/2001 na Revista Veja.

Mediosfera | 127
as neopentecostais (Mariano, 1999). O que elas têm
em comum é que negam as imagens, são religiões
patriarcais e monoteístas, herdeiras de uma tradição
que, no combate às religiões arcaicas da Grande
Deusa87, procuraram se afastar de toda experiência que
remetia diretamente ao corpo, à sua materialidade crua.
Por isso recusam a ideia de que a divindade possa ser
representada por meio de uma imagem cujo suporte
seja perceptível sensorialmente e experienciável
concretamente. Ficou famoso no Brasil há alguns anos o
“chute na santa”, dado pelo pastor da Igreja Universal do
Reino de Deus Sérgio Von Helder, no dia 12 de outubro
de 1995, que teve repercussões inusitadas na esfera
televisiva, sendo um gesto emblemático do desprezo
dessa visão religiosa a qualquer materialidade concreta
relacionada à divindade.
A imagem religiosa arcaica era sempre uma
evocação do duplo, ou seja, era sempre uma
possibilidade de desdobramento do representado, de
que a imagem, como que pelo processo alquímico da
coagulatio88, tornasse novamente presente o referente,
o “incorporasse”. Essa função de duplo que a imagem
potencialmente apresenta foi bastante trabalhada por

87
Apesar do tema da Grande Deusa não ser o foco da presente reflexão,
parece-nos significativo retomar a obra de E. Neumann (1996) a esse respeito.
Dessa obra podemos destacar o seguinte trecho: “Com as esculturas da Idade
da Pedra, retratando a Grande Mãe como deusa, repetidamente emerge na
humanidade o arquétipo do Grande Feminino pela primeira vez [...] Essas
imagens da Grande Deusa, apesar de serem pinturas rupestres, são as obras
cúlticas e artísticas mais antigas que a humanidade conhece. A existência
dessas imagens numa área que se estende desde a Sibéria até os Pirineus
parece pressupor a existência de uma ‘visão de mundo’ unitária em cujo centro
está a Grande Deusa [...] Elas são o exemplo do domínio do matriarcado,
absolutamente independente da extensão em que os grupos masculinos dessa
época – por exemplo, os caçadores – se apoderavam do comando sobre as
mulheres” (Neumann, 1996, p, 89).
88
Referimo-nos aqui a uma das etapas da Obra, descrita pela Alquimia, que
representa a etapa da coagulação ( Jung, 1994).

128 | malena contrera


E. Morin (1988a, 1988b), que, inclusive nos disse de que
forma a imagem pode ainda hoje continuar a exercer
um papel de duplo em situações em que sua função
religiosa supera sua função estética (1986)89.
Nesse sentido, podemos pensar que a negação
das imagens proposta pelas religiões monoteístas
(especialmente o Islamismo e o Protestantismo90) seja
de certa forma uma estratégia de imposição da visão
de mundo patriarcal, por meio da negação da presença
corporal que o duplo evoca, traço determinante das
religiões pagãs das sociedades matriarcais.
Tratar-se-ia então de uma tentativa de dominação
do politeísmo mórfico que, para o seu morfismo, precisa
de um corpo sensorial. No politeísmo matriarcal, o deus
está na imagem que o contém no momento de sua
hierofania, e essa imagem não pode prescindir de um
corpo sensorial (o suporte no qual o deus en/carna).
E. Durkheim (2003), fala das religiões anímicas com
certo desdém, deixando transparecer o preconceito
racionalista, mas são essas religiões matriarcais, nas
quais os deuses habitam a natureza, que compunham
o que se pode entender como “mundo encantado”. A
natureza, nesse caso, é a morada dos deuses, de deuses
que se fundem ao corpo concreto da terra. O próprio
catolicismo, que teve nos pagãos sua resistência maior
até o século XVIII, deixou inúmeros documentos que
demonstram como o processo de repressão desse
mundo encantando era realizado. Um fragmento de
um documento da Igreja Católica que pregava contra as
religiões pagãs, por exemplo, dizia: “Além disso, muitos

89
É o caso, por exemplo, das imagens religiosas e das imagens de culto que
ainda resistem especialmente na cultura popular. Temos no Brasil, como caso
emblemático, a festa do Círio de Belém, no Pará.
90
O neo-pentecostalismo substituiu as imagens tradicionais pelas imagens
mediáticas, como bem mostrou A. Klein (2007).

Mediosfera | 129
demônios, expulsos do paraíso, também residem nos
mares, nos rios, nas nascentes ou nas florestas” (Braga
apud Hillgarth, 2004, p. 73). Há uma enorme série de
textos que se ocupam exclusivamente disso, como é
sabido, e o estudo de Hillgarth tem por sua vez o mérito
de reunir esses documentos.
No entanto, provavelmente não seja por acaso
que entre as religiões monoteístas e patriarcais, o
Islamismo e o Protestantismo sejam as que mais
crescem (no mundo e no Brasil, respectivamente). Elas
continuam a crescer ainda hoje porque coincidem
com a visão desincorporadora que subjaz à ideologia
capitalista, como bem assinalou M. Weber ao tratar da
racionalidade que subjaz a uma visão tecnoinstrumental
do mundo moderno. O catolicismo incorporou tantos
elementos pagãos que não se tornou a religião ideal
do “deus desencarnado”, como até hoje comprovam
a papel exercido pelos santos, as velas, as romarias, o
culto às relíquias e uma infinidade de outras práticas
que mantém relações muito próximas com algumas
práticas pagãs, comprovando que mudou o nome do
deus, mas não mudou radicalmente a forma, nem
a maneira de o adorar, e às vezes nem mesmo sua
natureza simbólica (é o caso da profusão de virgens
e santas adoradas pelos católicos, referências muito
claras ao arquétipo da Grande Mãe).
Um mundo animado por deuses que se incorporam
à natureza, politeísta e encantado, não servia aos
propósitos capitalistas de transformar o mundo em
matéria-prima, em “parque industrial”, para usarmos a
metáfora proposta por V. Flusser para esse processo. Se,
segundo as religiões de matriz africana, por exemplo,
o mar é a morada de Iemanjá, não é possível fazer
experiências atômicas nele, ou nele instalar polos
petroquímicos, o que seria uma ofensa pessoal ao

130 | malena contrera


orixá. Se as matas são o corpo de Oxósi, não é possível
desmatá-las em nome de uma prática comercial de
extração predatória. A visão encantada da natureza foi
desde sempre totalmente incompatível com o projeto
capitalista, ao qual convinha mais a crença monoteísta
de que o mundo nos foi dado por um deus pai bondoso
(como apresentado no Novo Testamento, que se ocupa
de “adoçar” o deus do Velho Testamento), de quem
somos feitos à “imagem e semelhança”, para dele
dispormos segundo nossa consciência e racionalidade.
Triunfo da criatura eleita sobre o resto do mundo, o que
incidirá sobre a obsessão narcísica da humanidade por
suas próprias criações, aqui se inclua a tecnologia.
O caráter altamente antropocêntrico e narcisista
dessa concepção até hoje parece não escandalizar, a não
ser a alguns poucos (filósofos, antropólogos, ecologistas,
pescadores, camponeses etc.), obscurecido que foi por
sua conveniência operacional.
É nesse contexto capitalista que temos de situar a
mídia eletrônica, herdeira ela também dessa visão de
mundo. A questão das imagens técnicas é justamente a
questão da abolição do suporte concreto. No momento
em que o suporte não é mais concreto, mas sim a luz,
o que ocorre com o advento da eletricidade e das
imagens da mídia eletrônica, temos a solução há tanto
tempo buscada pelo monoteísmo para esse impasse
das imagens e da evocação do duplo material que a
cultura popular (herdeira da memória das culturas
arcaicas) ainda insistia em fazer.
A imagem eletrônica responde aos interesses do
capitalismo porque essa é uma imagem que, glorificada,
se refere a uma manifestação de um referente que
permanece no âmbito do imaterial. Na imagem
mediática eletrônica, na qual a luz é o suporte, ou as
telas fluidas, onde tudo se dá a partir da dinâmica

Mediosfera | 131
dos fluxos e da impermanência, já não há coagulatio
possível. Tudo é apenas “ar e fogo”, tudo permanece no
reino do impalpável. Há uma elevação que não volta a
“baixar”91 nunca mais. Nada pode en/carnar no mundo
do imaterial e dos fluxos permanentes. Daí também a
precariedade de todos as relações afetivas, as soluções
que já nascem obsoletas.
O suporte imaterial das imagens da mídia eletrônica
é o triunfo (final?) do patriarcado e do capitalismo
desencantatório sobre o mundo. Por isso patriarcado,
monoteísmo, capitalismo e mídia eletrônica se deram
tão bem e prosperaram juntos. E por isso não nos
espanta perceber que a crise da eficiência da economia
capitalista que se faz ver a partir do final do século
XX vem acompanhada de claros sinais da ineficácia
simbólica das grandes religiões monoteístas e patriarcais.
O irônico é que essa posição de um culto à imagem,
que a primeira vista pode parecer transcendente,
voltada para o espírito puro e imaterial, liberta das
“amarras” do corpo, é na realidade antitranscendente
porque extingue a possibilidade de transcendência na
medida em que destrói a experiência da imanência.
Não há como transcender a partir de lugar algum,
transcender é sempre transcender um limite específico,
corporalmente demarcado. A abolição da condição
corporal, a imaterialidade pura é na realidade o oposto
da transcendência, é o vazio absoluto, a ausência total de
relação entre imagem e corpo num processo em que, ao
apagar-se o corpo, destrói-se igualmente a imagem (em
seu potencial mágico).
O mito grego de Eros e Psiquê trata dessa mútua
dependência dos processos de transcendência e

91
Esse conceito foi apresentado por J. Hillman (1997) e referido em análises
no livro O mito na mídia.

132 | malena contrera


imanência. A tradução de Psiquê é Alma, e o que havia
de mais específico na Psiquê mitológica era sua natureza
mortal, concreta, corporal, humana92. O que resta são
fantasmas, como disse D. Kamper:

Fazer-se uma imagem do corpo humano significa torná-lo imortal,


significa alinhá-lo na falange dos mortos vivos, dos espectros e
fantasmas. Transformar a imagem que está no lugar da ferida da
mortalidade em milagre e sinal, que são eternos, é pura ilusão”
(Kamper, 2002, p. 11).

Resta um tipo de imagem que não é incorporação,


que não é presença, antihierofânica, a imagem sem
alma, o “puro espírito que mata”.
A imagem que nega a corporalidade do suporte (que
nas religiões arcaicas não era considerado mero suporte,
mas sim matéria transformada, transfigurada pela
reapresentação do referente) tem a pretensão de ser uma
“imagem pura”. Daí a obsessão das novas tecnologias da
comunicação pelos aparelhos técnicos que reproduzem
uma “imagem perfeita”. Esse mote já rendeu milhões a
publicitários, a fabricantes de aparelhos de televisão, a
concessões de sinal de TVs a cabo.
Perdida a alma e a capacidade de animar da
imagem, tal qual vemos nos meios eletrônicos
contemporaneamente (vale lembrar a postura catatônica
dos telespectadores frente à TV), resta simular essa
animação, o que é feito por meio do movimento,
ou seja, da velocidade, da sucessão ininterrupta de
imagens desanimadas (logo, des/almadas e incapazes de
movimentar o imaginário interior).
Nesse cenário, vemos que apenas a esfera técnica
da máquina funcional de reprodução de imagens
sobrevive. E alimenta-se de nossa energia.

92
Sobre essa relação, ver J. S. Brandão, J. Hillman e E. Neumann.

Mediosfera | 133
Essa relação do homem contemporâneo com a
imagem e com a negação da materialidade do corpo,
e de toda a dimensão sensorial concreta que ele abriga,
é que torna inaceitável a afirmação de alguns de que
estaríamos vivendo um resgate do paganismo, um
neopaganismo hedonista. Como se fosse possível colocar
no lugar do corpo apenas as imagens exógenas do corpo
(ou esse corpo-imagem que se faz hoje em dia), como
se apagar a dimensão concreta do mundo e sua estreita
relação com o sagrado não implicasse num afastamento
radical dos princípios pagãos. Não é possível propor
que estejamos presenciando um reencantamento do
mundo, se estamos negando a sua concretude (não seu
materialismo, mas o princípio da transubstanciação do
divino na matéria), apagando as marcas de sua natureza
e colocando no lugar os simulacros que nossa sociedade
gera. Por meio da industrialização e do capitalismo
destruímos a ponte pela qual poderíamos voltar.
Uma vez mais, o mapa nunca será o território
concreto, lembrando de J. L. Borges. Hoje, prefere-se
viver no mundo do mapa. Um mapa sempre pode se
restaurar, dele se fazer cópias; já o mundo concreto
segue inabarcável. Nele, a morte ainda é inevitável e a
natureza, como uma antiga deusa ferida, se vinga.

134 | malena contrera


Considerações finais

O capitalismo esgotou todas as suas possibilidades


de crescimento e superação das próprias crises no
momento em que a inflação dos seus processos
esbarraram enfim com a irreversibilidade a curto e
médio prazo do quadro atual de desequilíbrio e crise do
ecossistema. A tentativa de superar a crise da matéria-
prima pela invenção do bem imaterial, como bem
assinalaram Baudrillard, ao falar do valor simbólico
e das marcas (2004b, 2009), e A. Gorz (2005), ao falar
sobre a economia do imaterial, também não logrou
realizar a transformação das formas de pensamento
sobre as quais esses processos de produção e consumo
dos bens ditos imateriais se construíram.
A produção e o consumo da tecnologia necessária
para a manutenção da indústria da imagem tem sido tão
predatória (ou mais) do que foi a forma de produção
industrial que a antecedeu. Ilusão pensar que a sociedade
da imagem e das mediações eletrônicas pudesse ser
mais sustentável. Na realidade, aos danos ao ecossistema
até então causados, somamos os danos ao noosistema,
à Noosfera. O consumo material desenfreado se fez
acompanhar do consumo ininterrupto de imagens e da
tecnologia que as viabiliza e propaga. Resultado: não só
temos a frente todo tipo de problemas relacionados à
viabilidade da vida material, como buscamos encontrar
soluções para esses problemas em um estado geral de

Mediosfera | 135
incomunicação reinante (o Encontro de Genebra93 foi
exemplar dessa situação).
O dinheiro, convertido em medida do sucesso
da ação do homem no mundo (bem ao gosto do
protestantismo, como evidencia M. Weber), foi o
símbolo diretor principal do monoteísmo ocidental,
mas sua inconsistência como símbolo diretor central
do capitalismo, seu pacto com a abstração pura (as
bolsas de valores, por exemplo), fez com que sua função
diretora não pudesse ser sustentada por mais tempo.
O século XX chegou ao final assistindo à derrocada do
capitalismo e de seu mega-símbolo, o dinheiro. Todo o
dinheiro do mundo em breve não comprará um litro
de água mineral, brincam os ecologistas, não sem uma
sombra macabra de razão.
Mas o capitalismo não é o único que entra em crise,
sua crise na verdade é a ponta de um iceberg maior, o
que podemos considerar o desgaste do paradigma do
patriarcado monoteísta, que mais do que simplesmente
fundar-se numa visão religiosa de um deus único,
representou nos últimos milênios o triunfo de uma
visão de poder centralizadora e verticalizante, baseada
na proposição de uma forma única de pensar o mundo,
na crença pensamento e de prática científica que tem na
disjunção e na análise seus principais processos.
O deus único do monoteísmo é o deus da imagem
feita de luz, é o deus da aparição, não da vivência. Daí

93
Referimo-nos à III Conferência Mundial sobre o Clima, que aconteceu de
31 de agosto a 4 de setembro de 2009, e que contou com a participação de
150 países com o intuito de ajudar os governos, através do aperfeiçoamento
dos serviços de observação do clima, a adotar medidas que ajudem os países
a adaptar-se da melhor forma às alterações climáticas e a reduzir o impacto
destas mudanças, segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM),
a entidade organizadora do encontro. O encontro, como amplamente
comentado, foi uma demonstração pública de má vontade governamental e
de incomunicação generalizada.

136 | malena contrera


que, com o tempo, a aparição – e depois a aparência -
passe a ocupar o lugar central do que antes era epifania,
revelação vivida.
As culturas matriarcais (Maturana & Verden-Zoller,
1994) possuíam uma relação direta com a terra. Esse
mundo encantado evocava reverência, em uma relação
que pressupunha, como vimos, uma consciência
participativa com o mundo objetivo (com vivências de
participação mística), muito diferente da relação sujeito/
objeto centrada na visão ainda dominante de mundo
que o pensamento científico propôs a partir do século
XVII (a dimensão “encantada” do paradigma quântico
até agora não foi suficientemente tratada).
A substituição do matriarcado pelo patriarcado
inaugurou o desterro humano – o deus já não está na
terra, e seguir o deus vai crescentemente significar o
abandono da terra, da casa, do corpo -, na direção de
um deus único no céu, o que implica dizer, um poder
único e inalcançável, ou melhor, inexperimentável
concretamente. A experiência corporal das divindades
do paganismo é substituída pela fé no que, sem o corpo,
que se civiliza, já não se pode experimentar, no que
tem de ser concebido racionalmente por meio de uma
cultura de letrados, de textólatras.
Para entender melhor essa mudança, talvez valha
a pena resgatar a fala de H. Maturana e de G. Verden-
Zoller, que trata claramente da questão dos valores
sobre os quais se funda o patriarcado:

a) relaciones de apropriación y exclusión, enemistad y guerra,


jerarquia y subordinación, poder y obediencia;
b) relaciones con el mundo natural que se han desplazado desde
la confianza activa en la armonía espontánea de toda existencia,
a la desconfianza activa en aquella armonía, y un deseo por la
dominación y el contról;
c) [...] la búsqueda ansiosa de la seguridad que trae consigo la
abundancia unidireccional que se obtiene al valorar la procreación,
la apropriación y el crecimiento sín límites;”

Mediosfera | 137
d) [...] un deseo de abandonar la comunidad de lo viviente a través
de una experiencia de pertenencia en una unidad cósmica que
conforma un domínio de espiritualidad invisible que trasciende lo
vivo (Maturana & Verden-Zoller, 1994, pp. 35-36).

Esses são justamente os valores que hoje não é mais


possível manter: subordinação, obediência, dominação
e controle da existência, apropriação, crescimento sem
limites. Poderíamos com isto estar descrevendo o
capitalismo, e a semelhança não é mera coincidência.
M. Weber viu essa afinidade de outro modo, por meio
da análise das relações entre capitalismo e monoteísmo
protestante.
Trata-se de compreender, no entanto, que
justamente o patriarcado se estabelece como estrutura
social na passagem das mitologias centradas no
politeísmo e no culto às deusas femininas da Grande
Mãe para as mitologias centradas inicialmente no culto
aos deuses masculinos (como vemos na Mitologia
Greco-Romana, na qual os deuses masculinos passam
lentamente a se sobrepor às deusas), e depois ao deus
masculino único, no monoteísmo.
No primeiro momento, as manifestações materiais
eram os próprios deuses (a terra como corpo da deusa),
no segundo momento, as manifestações materiais, as
estátuas e imagens, como bem coloca K. Armnstrong
(2008, p. 69), ao falar sobre as práticas religiosas dos
cananeus e dos babilônicos: “[...] eram pontos focais
que ajudavam os fiéis a se concentrar no elemento
transcendente da vida humana”. É o terceiro momento
desse processo que opera a desmaterialização radical
e propõe o deus imaterial, resultado da abstração total
das manifestações concretas, que se apresenta sobre os
homens como legislador e protetor.
Não entramos no mérito da questão sobre as boas
intenções desse deus legislador e protetor que, segundo K.

138 | malena contrera


Armstrong (2008), era apresentado pelos profetas como
um deus da igualdade de tratamento, da fraternidade,
que pedia solidariedade e ecumenismo entre os seus
eleitos (mas só entre eles...). A questão que nos diz
respeito é que a ascensão do monoteísmo é a história
do triunfo da abstração sobre a dimensão concreta
do mundo, e o conseqüente desprezo que o mundo
concreto passa a inspirar foi condição central para que
ele pudesse ser explorado por uma lógica econômica tal
como o capitalismo, como vimos anteriormente.
É claro que sabemos que esse processo não foi
absoluto e, da mesma maneira que uma espécie de
politeísmo se infiltrou por meio dos santos e santas no
monoteísmo católico, a cultura popular resistiu na sua
adesão ao paganismo.
Mas os destinos econômicos do capitalismo e da
industrialização do mundo não foram, e não são ainda
hoje, decididos pela cultura popular (assim como não
o são as proposições científicas do stablishment). Isso
fica evidente quando as pesquisas de opinião pública
apontam para o fato de que a opinião popular de cidadãos
um país acerca das decisões climáticas não é exatamente
representada nas decisões de seus governantes sobre
essas mesmas questões (o que também se evidenciou na
Conferência de Genebra).
E mesmo o catolicismo aceitou fácil essa espécie
de hibridismo desde que esse santos e santas
permanecessem no âmbito do abstrato (a santificação
ocorre apenas depois da morte, é preciso ser só espírito,
sem carne), enquanto a Igreja Católica se tornava a
maior proprietária de terras do mundo, especialmente
após as expropriações feitas pela Inquisição.
Esse sistema ironicamente se vê ameaçado hoje
pelas novas formas de fundamentalismo (o religioso, o
econômico). Na ciência, a disciplinaridade encontrou os

Mediosfera | 139
fundamentalistas certos para pensá-la e impô-la como
modelo único de pensamento; o método científico
cartesiano, armadilha da repetição do mesmo previsível.
Estamos frente à falência de toda uma concepção
de mundo que se mostra no desgaste de seus principais
símbolos diretores – o sucesso, o enriquecimento, o
conforto, o consumo.
O sucesso é uma noção cada vez mais vazia e sem
eficácia no mundo atual; já o enriquecimento, dentro
do cenário da superpopulação mundial e da miséria
de sua grande maioria, tornou-se imoral. O consumo
desenfreado, tal como se estabeleceu no século XX (cf.
Bauman), já começa a ser compreendido como o que
de fato é: doença da alma, pulsão suicida da espécie; e
o conforto gerou uma legião de zumbis entediados que
apertam ininterruptamente os botões dos seus jogos
virtuais em busca de alguma emoção simulada.
A noção de contrato social tem falhado
crescentemente e as instâncias sociais de referência do
patriarcado se vêem crescentemente desmoralizadas. A
figura do pai, do chefe, do Estado, enfim, da autoridade
social não parecem ter mais o poder simbólico
suficiente para conter a neobarbárie que vemos no
crime organizado (inclusive o dos governos instituídos),
no terrorismo, nas crescentes desigualdades de
direitos e de condições de vida. A institucionalização
das práticas de corrupção parece ser o atestado mais
evidente da falência do contrato social, aquele centrado
na convicção de que o homem era um ser plenamente
racional e capaz de decidir, por meio de consensos
alcançados, sobre questões diversas, visando o triunfo
do social. O social virou refrão de rap.
A crescente busca por comunidades, virtuais ou
concretas, tem sido a saída do homem contemporâneo
para o resgate de um senso de participação possível. Por

140 | malena contrera


isso o sucesso das redes sociais da internet, por isso o
sucesso das igrejas neopentecostais. No entanto, as redes
sociais da internet não dão conta do resgate da dimensão
concreta da vida, justamente o que o patriarcado
monoteísta negou, e as igrejas neopentecostais fizeram
do modelo comunitário apenas seu grande negócio.
Frente a esse cenário, não se torna difícil entender
a urgência da proposição de práticas comunicativas
que ofereçam a possibilidade de estabelecimento de
novos vínculos (e da alimentação dos antigos vínculos
desejáveis). No entanto, como é possível propor práticas
comunicativas que se prestem a esse papel partindo de
uma visão tão mecanicista e racionalista de comunicação,
voltada mais para o mercado do consumo tecnológico
do que para a complexidade da alma humana?
É preciso trazer à pauta da comunicação questões
como o silêncio, o afeto, o vínculo, o corpo, ao invés de
centrarmos a atenção na verborragia das redes virtuais,
na eficiência tecnológica, na conectividade técnica. O
projeto da comunicação precisa considerar, mais do
que nunca, seu potencial de oferecer estratégias de
resiliência.

Sobre o neopaganismo ou o reencantamento do


mundo

M. Maffesoli, entre outros significantes nomes


da pesquisa social contemporânea, tem falado numa
espécie de neopaganismo, centrado na experiência
estética do mundo, e não na ética. O problema
que vemos aqui é justamente que esse movimento
esteja centrado na experiência estética, apagando as
configurações religadoras originais do paganismo. Não
nos parece que a experiência estética, tal como vivida
contemporaneamente, especialmente no ambiente

Mediosfera | 141
da Mediosfera, seja capaz de resgatar esse sentimento
de religação tão central ao que concebemos como
reencantamento. Isso ocorre porque as experiências
estéticas contemporâneas são quase totalmente vividas
num contexto de impermanência constante e falta de
vínculos, no qual os compromissos pessoais a médio
ou longo prazos dão lugar a conexões instrumentais e
descartáveis, e o vínculo com o espaço concreto e seus
desdobramentos está cada vez mais rarefeito, como
já tratamos anteriormente. Parece-me incrível que
pesquisadores de Comunicação que têm visto nessa
descrição um exagero não justificável não tenham
nunca se dado ao trabalho de conversar com psicólogos
e perguntar-lhes pelo que anda acontecendo em seus
consultórios...
O cenário contemporâneo das metrópoles (e o
crescimento populacional parece destinar o mundo
todo a isso), atravessadas pelas emissões incessantes,
suscita mais a formação de vivências estéticas tais
como as que Bauman considera centrais na formação
das “comunidades estéticas”, marcadamente centradas
em práticas ou interferências oriundas do universo
mediático.
Na maior parte das vezes geradas a partir da
identificação a um ídolo ou celebridade (ainda que
relâmpago), o totem que reúne ao redor de si sua
comunidade, fala muito sobre o tipo de relação que a
comunidade estética pode oferecer:

Os ídolos servem a outro propósito: sugerir que a não-permanência


e a instabilidade não são desastres completos, e podem acabar
premiadas na loteria da felicidade; pode-se construir uma vida
sensível e agradável em meio a areias movediças. Os ídolos,
portanto – aqueles que são verdadeiramente “necessários” – devem
ser portadores da mensagem de que a não-permanência está aqui
para ficar, mostrando, ao mesmo tempo, que a instabilidade deve
ser apreciada e experimentada. Enquanto cortesia da indústria da
ilusão, não há falta de tais ídolos (Bauman, 2003, p. 65).

142 | malena contrera


De fato esse crescente apelo estético tem mais um
sentido comercial do que social; procede-se à criação de
estados emocionais coletivos para vender produtos. Não
há economia capitalista sem capitalização das emoções.
A impermanência apontada por Bauman, por sua
vez, é a parceria ideal da abstração. Mas sabemos que
os corpos concretos não são tão facilmente superados
na busca do fluxo contínuo da impermanência, os
despojos nem sempre podem ser jogados em alto mar.
Esse processo foi chamado por Baudrillard, há dez anos,
de crime perfeito (2001), e foi sintetizado por M. Sodré
(2004, p. 13) como “[...] ‘a eliminação do mundo real’. O
criminoso é, aqui, a perfeição, o acabamento técnico do
mundo como uma espécie de solução final”.
Baudrillard responde perfeitamente às vozes que
propõem que assistimos a uma forma de reencantamento
do mundo a partir do que se poderia considerar uma
retomada da busca original dos prazeres que estariam
nas vivências corporais pressupostas nas experiências
estéticas. Sodré comenta como Baudrillard via que
as condições contemporâneas sobre as quais vivemos
essas experiências estéticas apontam para o contrário
do reencantamento:

[...] orgia é metáfora para a ponta extrema ou a culminação de


produtividade e riqueza do Centro capitalista, de onde se supõe a
passagem a um novo estágio histórico de desfrute do econômico,
cultural e político. Baudrillard empenha-se em mostrar que não
é nada disso, que no momento subsequente ao ‘êxtase’ orgiástico,
resta apenas o simulacro do corpo e da consciência. Ainda que
mergulhado em ilusões retrospectivas da realidade, o indivíduo
‘pós-orgiástico’, este que já não mais consegue localizar o fim das
coisas (e por isto, entrega-se à busca sôfrega das origens de tudo),
abandona-se à sombra artificial de si mesmo, ao mais acabrunhante
isolamento sensorial” (Sodré, 2004, p. 13).

Paradoxalmente, a orgia da emissão é o outro lado do


que Baudrillard chamaria de “acabrunhante isolamento

Mediosfera | 143
sensorial”, situação essa que consideramos evidente no
uso crescente dos aparatos dos meios eletrônicos de
comunicação que, ao centrarem-se apenas nos sentidos
da visão e da audição, mantém o corpo a distância da
cena, recalcando os sentidos de proximidade (paladar,
tato, olfato) e as “inconveniências” de uma corporalidade
indomável. É nesse sentido que o momento atual não
pode ser entendido como um neopaganismo, como
uma reedição do paganismo massacrado pela História.
De fato, podemos considerar que a única
manifestação pagã mais concreta em nossa civilização
contemporânea são as sombras do paganismo. Se
há uma lição que definitivamente deveríamos ter
aprendido com a Psicologia é que o reprimido, quando
volta, volta de início sombrio. A sombra do reprimido é
quem volta primeiro.
Temos visto isso: todo o tipo de horror e grotesco
alçados ao valor da estética vigente, os valores do
projeto civilizatório (não a ética cristã) sobrepujados
pelo autoerotismo infantil da obsessão por “aproveitar
a vida”, ou, como propôs Mellman, “gozar a qualquer
preço”. Esse fenômeno vem como uma forma de horda
primitiva revisitada que busca as formas sintéticas de
êxtase (nas drogas, na droga do poder, no poder de
qualquer droga, no consumo), a qualquer preço, ávidas
por, após a experimentação ilimitada da qual se referiu
Baudrillard, desincorporarem-se nos cibercultos da
imagem eletrônica. Avatares sintéticos do mau gosto,
adorando um misticismo pobre de almanaque (do qual
o próprio filme Avatar, de Cameron, é um exemplo, a
despeito de todas as coisas boas que colegas puderam
– por mérito próprio, porque têm beleza nos próprios
olhos - ver nesse filme). Temos preguiça demais para
ressuscitar as tradições herméticas, os misticismos
originais, para mergulharmos fundo em matrizes

144 | malena contrera


religiosas significativas, preferimos ficar com os
vampiros high-tec de Hollywood e da indústria da mídia.
Todos querem poder, ninguém mais tem autoridade94.
Não é possível, então, considerar o momento atual
como um reencantamento do mundo (por mais que
isso me deixasse pessoalmente feliz). Poderíamos dizer,
na realidade, que estamos frente a uma nova forma de
encantamento sem mundo, um encantamento que, sem
objeto de culto, mais se aproxima de um estado abobado
de autoencantamento do que a um neopaganismo de
fato. Mas essas são as sombras do paganismo reprimido;
do paganismo original só restou o derramamento de
sangue, no entanto, fora do sacro-ofício.
Estamos enfrentando as sombras dos deuses
esquecidos, e não aprendemos a lição de que o que
esquecemos não nos esquece necessariamente (os seres
da noosfera tem autonomia relativa). Ainda somos
egocêntricos como as crianças de três anos (mas elas
estão de acordo com seu tempo e seus processos de
maturação).
Os deuses pagãos não nos esqueceram. Por ora,
temos o seu rancor. Pode ser que futuramente eles
voltem a mostrar sua face luminosa. Então, estaremos
de fato frente a um possível reencantamento do mundo.

Resiliência – um trabalho para o próximo século

E. Morin, no livro Introdução ao pensamento


complexo, propõe como um dos princípios da
complexidade o princípio hologramático, e que é assim
apresentado:

94
A palavra autoridade abriga em seu âmago a ideia de alguém que impôs a si
mesmo a passagem por ritos, os iniciados.

Mediosfera | 145
A ideia do holograma ultrapassa, quer o reducionismo que só vê
as partes, quer o holismo que só vê o todo... na lógica recursiva
sabe-se muito bem que o que se adquire como conhecimento das
partes regressa sobre o todo. O que se aprende sobre as qualidades
emergentes do todo que não existe sem organização, regressa sobre
as partes (Morin, 1990, p. 109).

Esse princípio proposto por Morin é inspiração


para pensarmos em novas possibilidades criativas a
partir do presente cenário feito de fragmentos. No
entanto, esse processo de reconstituição do todo não
pode ser concebido se não considerarmos a cultura
como elemento central desse processo, como contexto
possível para uma recomposição hologramática. No
entanto, é preciso entender cultura como uma esfera
cujas marcas centrais constituintes seriam, por um lado
a cumulatividade, e por outro a ação dos arquétipos,
dos seres da noosfera. Esses dois processos constituem
uma noção de memória que requer a compreensão de
que memória é elemento inscrito nas manifestações
e nas configurações da realidade. Não temos uma
memória, somos uma memória. Aquilo que somos e
que nos forma, deforma, conforma, transforma, é a
memória; aquilo que, de tudo que vivemos, nos restou
significativo, valeu a pena ser inscrito na nossa natureza,
sejam vivências de dor ou de prazer. É a memória da
espécie, não do indivíduo, que nos constitui como seres
transcendentes. E a memória imaginária da espécie são
os arquétipos, os mitos, as mitologias religiosas que, até
hoje, deformadas ou não, inspiram a quase totalidade
das ações do homem no mundo.
É a esse imaginário arquetípico que podemos recorrer
para propor novas formas de imaginar o mundo; esse
é certamente o motivo pelo qual somos capazes ainda
de, às vezes, nos reinventarmos. Testemunhos disso
são os gestos extremos de solidariedade e compaixão
e também a capacidade de propormos usos mediáticos

146 | malena contrera


contrahegemônicos e transgressores, geradores de
vínculos comunicativos, e não apenas consumadores
de conexões possíveis.
No entanto, a possibilidade em questão pressupõe
uma amplificação da consciência para além dos jogos
virtuais de simulação, não essa forma de contentamento
resignado dos profetas da internet, da cibercultura, que
vêem nas redes tecnológicas a salvação da humanidade,
sem considerarem que a noção de rede é muito mais
antiga do que o fenômeno da eletricidade e que a rede da
qual precisamos não pode ser dominada por interesses
econômicos, e ainda deve ser capaz de sobreviver aos
problemas de saturação das fontes de energia que o
futuro imediato nos trará.
Os físicos e os biólogos trabalham há muito com a
noção de rede e já ultrapassaram as ciladas da herança
do pensamento cibernético sobre o mundo, sabendo
muito bem que não se pode pensar sistemas vivos
com os mesmos parâmetros que se pensa sistemas
artificiais, apesar dos que tentam fundir os dois
sistemas, quase sempre simplificando os sistemas vivos
para comporem harmoniosamente com a limitação
(ainda) dos sistemas artificiais.
Quem apresenta claramente essa questão é F. Capra
(1997), apontando para as armadilhas da herança do
pensamento newtoniano e cartesiano sobre a concepção
de rede com a qual a cibernética opera, e aproximando
a noção de rede do que ele considera uma profunda
relação de vínculo ecológico (que se aproxima muito
da noção de “consciência participativa” proposta por
Morris Berman , apresentada anteriormente).
O físico indiano A. Goswami (2008a), em seus
estudos sobre a física quântica, fala sobre pesquisas
que estão sendo desenvolvidas a respeito do fenômeno
da telepatia, e que apontam para uma potencialidade

Mediosfera | 147
real a ser investigada num futuro próximo, segundo os
cientistas que desse fenômeno se ocupam95. Enquanto
outras áreas se ocupam de pesquisas ousadas sobre
temas que até a poucos anos poderiam ser considerados
ficção científica, grande parte dos comunicólogos e
tecnólogos continuam encantados com as possibilidades
advindas das ferramentas oferecidas pela Microsoft ou
pela Apple.
Por sua vez, muitos psicólogos, psiquiatras
e etólogos têm proposto repetidamente a noção
de resiliência (oriunda da física) para tratar das
possibilidades humanas de regeneração em um mundo
crivado por guerras e desterro político e econômico.
B. Cyrulink é um dos nomes mais significativos nessa
área atualmente; neuropsiquiatra, dirige a Clínica do
Apego da Universidade de Toulon, na França, que
desenvolve uma enorme quantidade de pesquisas
relevantes sobre o tema. Alguns dos resultados das
pesquisas desenvolvidas pela Clínica são apresentados
por ele em vários de seus livros já traduzidos no Brasil,
e em praticamente todos ele ressalta o papel estratégico
de alguns elementos possibilitadores de resiliência.
Entre eles estão a narratividade e a reconstrução da
memória como elementos que possibilitam atribuir
novos sentidos ou transformar os sentidos anteriores
de uma experiência traumática. Reiteradamente, ele
apresenta a importância de tutores de resiliência,
que seriam pessoas ou instâncias que partilham a
experiência da resignificação implicada na resiliência.
Essas experiências todas apresentadas por ele têm em
comum a centralidade dos processos comunicativos,

95
Segundo Goswami (2008a, p. 50), especialmente reveladora tem sido
a pesquisa realizada por Jacobo Grinberg-Zylberbaum, neurofisiologista
da Universidade do México, acerca dos fenômenos de não-localidade nos
cérebros humanos.

148 | malena contrera


especialmente a comunicação interpessoal não mediada
eletronicamente, para que a resiliência se estabeleça
como possibilidade real.
Narratividade, resgate do contexto, ressignificação,
afetividade, relações interpessoais – elementos centrais
do processo de resiliência – são relativos à área de
Comunicação que, no entanto, os têm subestimado,
presa do encantamento pelo tema da informação (que,
a rigor, se quisermos ser cinicamente coerentes com a
atual visão compartimentalizada dos saberes, deveria
ser mais da alçada de ciberneticistas e tecnólogos do que
de comunicólogos).
Talvez seja essa uma tarefa para o próximo século:
pensar o papel da comunicação e suas possibilidades
como processos de resiliência, para além da moldura
capitalista e tecnocrática que vem pautando grande
parte das reflexões que temos oferecido à nossa época.

Mediosfera | 149
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Malena Segura Contrera, 2017
2a edição, revista e ampliada
Obra sob licença Creative-Commons BY-NC

coordenação editorial Ana Taís Martins Portanova Barros


projeto gráfico, diagramação e revisão
Anelise Angeli De Carli
capa Francisco dos Santos

Editora Imaginalis
Vol. 1 da Série Hermas
Porto Alegre
Junho 2017
www.imaginalis.pro.br

Nesta edição, respeitou-se o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


Este livro foi composto com as fontes Alegreya e Libre Baskerville.
A Mediosfera é caracterizada por uma
geração de conteúdos a partir desse
processo centrado na produção do
máximo de emissão, e do mínimo de
sentido. É importante considerar ainda
que a sociedade da emissão é a outra
face da sociedade do consumo, em um
processo no qual já não sabemos até
que ponto a histeria da emissão provoca
o consumo compulsivo e as práticas
de adição, ou são essas últimas que
ampliam o vazio sobre o qual ecoam
desenfreadamente as emissões.

série Hermas

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