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Malena Contrera - Mediosfera PDF
Malena Contrera - Mediosfera PDF
COLEÇÃO Parsifal
Malena Segura Contrera
Mediosfera
Meios, imaginário e
desencantamento do mundo
editora imaginalis
Malena Segura Contrera
Mediosfera
Meios, imaginário e
desencantamento do mundo
2a edição
série Hermas
imaginalis
Porto Alegre, 2017
CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO
BIBLIOTECA
___________________________________________________________________________________
ISBN 978-85-69699-03-3
CDU: 659.3
coordenação
Ana Taís Martins Portanova Barros
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil)
série Hermas
Corin Braga
(Universitatea Babeș-Bolyai, Romênia)
Ionel Buse
(Universitatea din Craiova, Romênia)
Artur Simões Rozestraten
(Universidade de São Paulo, Brasil)
Ana Maria Lisboa de Mello
(Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil)
série Parsifal
Jean-Jacques Wunenburger
(Université de Lyon III, França)
Maria Cecília Sanchez Teixeira
(Universidade de São Paulo, Brasil)
Malena Contrera
(Universidade Paulsita, Brasil)
Blanca Solares
(Universidad Nacional Autónoma, México)
Cremilda Medina
(Universidade de São Paulo, Brasil)
Dedicado a Maria Eduarda, minha bênção.
Agradecimentos
13 apresentação da 2ª edição
15 palavras iniciais
Violência e sociabilidade
Medo – o trabalho das imagens
Depois do voyeurismo, a banalidade da mídia
Mono-imagem e patriarcado
151 referências
Você pode inventar e pode tecer filosofias bonitas
com base na lógica, mas elas estarão mortas,
nunca estarão vivas. A vida é ilógica.
Mediosfera | 13
E por todo o lado também surgem mãos que afagam,
acolhem, plantam, acariciam, anônimas e abençoadas
na sua capacidade de saber as mãos algo mais e maior
do que um aparato digitador.
O imaginário cultural continua transgressor e
indomável, e muitos continuam a trabalhar para
domesticá-lo – sem sucesso, se os deuses forem
favoráveis.
E continuamos aqui, agarrados ao monstro marinho
em alto mar, tentando aprender a linguagem das ondas.
Primavera de 2016
14 | malena contrera
Palavras iniciais
1
O termo “seres do espírito” é proposto por Edgar Morin (1997) para designar
as entidades da Noosfera.
16 | malena contrera
nas cabeças”, compreendendo-os como ideias, como
representações do espírito humano, extremamente
relevantes para pensar sua sociologia das religiões.
Ainda sobre isso, G. Filipe, referindo-se à proposição
trazida pelos estudos de Friedrich Tenbruck, afirma que
Weber:
[...] utiliza esse conceito (ideias), no sentido que ele revestiu no século
XIX, para designar aquelas concepções que ganharam validade
suprapessoal e em que são articulados aspectos fundamentais da
relação humana com o mundo (Filipe, 2006, p. 17).
2
A citação que Pierucci faz foi retirada do seguinte texto de F. Tenbruck: “The
problem of thematic unity in the works of Max Weber”, British Journal of
Sociology, v. 31, n. 3, set 1980: 313-351.
Mediosfera | 17
mas mais sistematicamente em O método IV, não por
acaso referindo-se a Hegel e às suas proposições sobre a
força das ideias.
Porém, mais significativa e menos óbvia é a
referência que Morin faz, já no início de seu texto sobre
a Noosfera, à teoria dos arquétipos de C. G. Jung – teoria
que ele afirma julgar esclarecedora –, que acrescenta a
essa discussão valiosa (e normalmente subestimada)
contribuição:
3
Para C. G. Jung (1986, p. 73), “Os arquétipos são formas de apreensão, e
todas as vezes que nos deparamos com formas de apreensão que se repetem
de maneira uniforme e regular, temos diante de nós um arquétipo, quer
reconheçamos ou não o seu caráter mitológico”.
18 | malena contrera
A distinção aqui feita por Morin entre realidade
física e realidade objetiva é fundamental para esclarecer
o que ele propõe com o conceito de seres da Noosfera,
cuja natureza se caracteriza não pela matéria, mas por
sua contraparte, a energia. Negar existência aos seres
da Noosfera seria, então, como negar a existência da
energia, de sua ação, de sua capacidade de se realizar,
ou seja, de sua realidade. Esse absurdo que a própria
Física moderna nunca chegou a conceber, no entanto,
segue sendo muito comum nas Humanidades, que
consideram ainda hoje como realidade objetiva apenas
o que se pode constatar concretamente, ou quantificar
empiricamente. Apresentando a Noosfera, Morin
propõe:
Mediosfera | 19
A maior parte dos estudos contemporâneos sobre
Comunicação não ignora as questões psicológicas da
subjetividade, alguns ainda consideram as questões da
afetividade e do desejo, mas não é comum encontrarmos
nessas reflexões um interesse maior acerca da natureza
e da influência nas relações comunicativas desses seres
imaginais que habitam em grande parte o inconsciente.
Tudo ocorre como se pudéssemos – para respeitar a
classificação de áreas de saber imposta por uma visão
compartimentalizada do mundo e do ser humano –
tratar dos processos comunicativos sem refletir sobre
suas motivações e demandas inconscientes.
Essa postura se baseia na crença de que as intenções
comunicativas são essencialmente conscientes. Morin
também se posiciona frente a essa crença científica
propondo que não é possível mais praticar uma ciência
sem consciência, o que pressupõe um longo trabalho de
autoinvestigação que se pergunta constantemente por
suas reais motivações, inclusive, as inconscientes. Ele
propõe isso exatamente por entender que a única forma
de nos protegermos dos riscos da parcialidade obtusa
e da ação de alguns seres do espírito (as ideologias,
as crenças, os modismos) passa por uma autoanálise
constante, centro de uma autoética que necessariamente
subjaz a qualquer outra forma de ética possível.
Mas Morin vai ainda adiante e amplia a discussão
sobre a Noosfera valendo-se de uma longa tradição
científica sobre o tema, em diversas áreas, que passa
por nomes tais como Frege, K. Popper, G. Bateson, G.
Vickers, P. Auger, J. Monod, ao deparar-se com um
aspecto bastante polêmico – e igualmente relevante –
sobre a existência dos seres do espírito, que ele assim
apresentada:
20 | malena contrera
convencido de que este mundo é certamente um produto, mas
um produto recursivamente necessário à produção do seu
próprio produtor antropo-social, fui atingido pela concepção
de Auger/Monod [...] e fui assim incitado a explorar o problema
da autonomia relativa e da relação complexa (da simbiose à
exploração mútua) entre os seres do espírito e os seres humanos
(Morin, 1992, p. 99).
Mediosfera | 21
abstratos. As imagens também ‘retratam’ as propriedades físicas
das entidades e, às vezes imprecisamente, às vezes não, as relações
espaciais e temporais entre entidades, bem como as ações destas.
Em suma, o processo que chegamos a conhecer como mente
quando imagens mentais se tornam nossas, como resultado da
consciência, é um fluxo contínuo de imagens, e muitas delas se
revelam logicamente inter-relacionadas (Damásio, 2000, pp. 402-
403).
4
Essa distinção proposta por Hans Belting foi objeto de tratamento do artigo
Na selva das imagens, de N. Baitello Jr. e M. S. Contrera.
22 | malena contrera
autonomia se dê e se efetive em manifestações muito
concretas, assunto que segue causando uma enorme
resistência em alguns estudiosos da comunicação que
desconsideram que na esfera do inconsciente também
acontecem coisas. Para apresentar essa questão, Morin
(1992, p. 95) refere-se a Hegel: “Para Hegel, a Ideia
é Sujeito que se autodetermina e se auto-realiza na
História”, mas segue colocando-se em uma posição não
tão extrema como a de Hegel.
Para ele, será a noção-chave de recursividade que
possibilitará compreender essa mútua interferência,
na qual produzimos os deuses que nos produzem, ou
ainda, produzimos os sistemas ideológicos que passam
então a nos produzir, numa dança de simbiose – mútua
geração e devoração. De qualquer forma, estamos aqui
tratando da força e do poder do caráter imaginal que
as representações humanas têm sobre o mundo. Trata-
se de ver por outro ângulo a máxima bíblica de que as
criaturas também são criadores, propondo que, no devir
das relações, também os criadores possam se tornar
criaturas de suas criações. Essa inversão, da qual se
ocupou grande parte do movimento gnóstico medieval,
representava na realidade uma enorme possibilidade de
gestão dos conflitos advindos da complexidade humana,
que a ciência positivista abortou no momento em que
apostou todas as fichas no sujeito racional e consciente,
arrogante e deficiente por definição.
C. G. Jung dizia que o destino é a nossa inconsciência.
Dessa forma, temos de concordar que estamos destinados
também a sermos gerados pelos seres que geramos. E
que quanto mais inconscientes desse processo formos,
mas fatalmente atingidos por essa ação dos seres do
espírito seremos.
Representando muito bem esse processo de que
estamos falando, está a consideração de B. Cyrulnik (1999,
Mediosfera | 23
p. 78): “Quando um indivíduo não pensa, o pensamento
existe apesar de tudo, fora dele”. É a Noosfera esse
“pensamento que continua a existir enquanto o homem
não está pensando”. Na realidade, melhor seria dizer,
para descrever esse processo proposto por Cyrulnik –
que, como etólogo, não se preocupa em precisar alguns
termos de fora de sua área –, que a Noosfera continua
a imaginar (e a nos imaginar) mesmo enquanto não
imaginamos.
É preciso então reconhecer nessa Noosfera gerada/
geradora da sociedade industrial, os seres do espírito que
geraram, no seio dessa sociedade, a cultura mediática, e
que hoje, no que podemos chamar de sociedade pós-
industrial, continuam a gerá-la e a nos gerar por meio
dela. Entre esses seres estão certamente a visibilidade
e a questão da imagem (como forma contemporânea
residual da aparição hierofânica), a eletricidade e seu
poder simbólico, o culto à tecnologia e a hipertrofia do
símbolo “dinheiro”. Esses são, no sentido moriniano
da palavra, demônios5 que habitam a esfera mediática,
nossa única comum e inequívoca forma de religiosidade
contemporânea. E são eles também agentes centrais do
processo de desencantamento de que tratamos nesse
trabalho.
O primeiro demônio, a visibilidade e a questão
da imagem mediática na sociedade contemporânea,
é problematizado no capítulo 4, Imagem: depois da
dessacralização, a banalidade. Os demônios da eletricidade
e do culto à tecnologia, inseparáveis, são o foco do
capítulo 3, Tecnologia e autorreferência. O demônio
da hipertrofia do símbolo dinheiro, mais perspicaz
e escorregadio, mostrou-se um tema que perpassou,
5
A palavra demônio tem sua origem na palavra daimon ou daemon que, em
grego (δαιmϖν) significa espírito, divindade.
24 | malena contrera
transversalmente, todo o presente trabalho. Deixou-se
apenas ser mais especificamente focado nos trechos
finais do trabalho.
Fizemos ainda, no capítulo 1, Comunicação e
desencantamento, um esforço para explicitar as relações
que consideramos significativas entre o processo
de desencantamento do mundo e a comunicação,
bem como a constituição da máquina mediática e
das mediações que se desenrolam neste contexto.
Neste capítulo também procuramos apresentar quais
os aspectos do pensamento de Max Weber foram
selecionados para o estabelecimento de uma reflexão
que busca compreender como esse desencantamento
do mundo vem acontecendo na esfera da comunicação
e das mediações humanas. Essa questão gerou a
necessidade de, no capítulo 2, apresentarmos mais
detalhadamente o que consideramos que seja a existência
de um imaginário próprio dos meios de comunicação,
designado aqui por Mediosfera.
Durante todo esse trabalho defendi a posição
de que não vivemos, como alguns propõem, um
reencantamento do mundo. Vivemos, na realidade,
novas formas de encantamento geradas a partir
exatamente da aniquilação do mundo, tal qual
concebido até meados do século XX. Se seremos de fato
capazes de nos encantar com o vazio pelo qual estamos
atravessados, ou se esse aparente encantamento é apenas
uma resposta histérica à negação da visão do nada, não
sei. Essa é uma resposta que nossa época ainda não tem
e que eu não julgo, arrogantemente, ter.
Mediosfera | 25
capítulo 1
Comunicação e
desencantamento
6
Trataremos mais especificamente da contribuição de J. Habermas sobre o
tema ao nos referirmos ao papel da técnica.
Mediosfera | 27
textos de Weber, “o conceito aparece doze vezes como
substantivo (Entzauberung) e cinco vezes como verbo”
(Pierucci, 2003, p. 58). Daí que Weber o concebesse
como um processo em certa medida já estabelecido
mas, ao mesmo tempo, ainda em ação.
Esse entendimento do desencantamento como um
processo de longo alcance histórico, e não como um
fenômeno pontual, é de fundamental importância, já
que Weber o via como algo claramente configurado
no começo do século XX, mas que possivelmente
continuaria a se desenvolver. Sobre esse aspecto, Pierucci
diz que o texto de Weber leva a crer que “[...] na medida
em que pode aumentar e crescer, o desencantamento
pode se concretizar historicamente com solidez variável
e diferentes intensidades” (Pierucci, 2003, p. 59).
Perguntando-nos sobre a atualidade desse processo
somos levados a pensar que fazemos hoje parte de um
momento em que ele se apresenta de maneira bastante
peculiar, provavelmente inimaginável até mesmo por
Weber em 1920.
As últimas décadas do século XX e a primeira década
do século XXI trouxeram a esse desencantamento
uma dimensão que requer uma considerável atenção,
especialmente quando a dinâmica entre sociedade
industrial e capitalismo teve e tem como seu grande
aliado e viabilizador (seguindo a lógica das demandas
do mercado), todo um aparato mediático eletrônico
que encontrou, especialmente desde a implantação da
televisão no Ocidente, meios efetivos de fazer triunfar o
que Weber chamaria de o espírito do capitalismo, ênfase
dada aqui para a palavra “espírito”, por se tratar de uma
construção da Noosfera, como propomos adiante.
Aproximando dos estudos da Comunicação os dois
aspectos centrais da definição de desencantamento do
28 | malena contrera
mundo – “desmagicização” e “perda do sentido” 7
–,
vemos como esses dois aspectos tiveram e ainda têm
uma ação definitiva na comunicação humana.
Há quem proponha que estamos vivendo um
reencantamento do mundo, uma fase que se seguiria
ao desencantamento de que tratamos. Não é essa nossa
opinião, e esperamos que a presente reflexão evidencie
os motivos que nos levam a pensar que vemos, na
realidade, um quadro de radical desencantamento, que
pode trazer já em seu bojo, isso sim, as sementes de um
possível reencantamento do mundo, no entanto ainda
não claramente delineado como espírito do nosso tempo.
Sabemos que a desmagicização a que Weber
se refere considera a centralidade da escrita para o
protestantismo, tratando também da passagem de uma
prática religiosa centrada em imagens visuais para uma
prática centrada nas imagens verbais8, mas pensamos
que essa passagem necessita ser entendida não apenas
como um processo de transferência de práticas
imagéticas, mas, antes de mais nada, como um processo
de crescente abstração, do que poderíamos chamar de
uma “retirada da alma” do mundo, que, como propõe
James Hillman, representa a destruição da relação
propriamente estética do homem com o mundo.
7
A perda do sentido está em relação direta com a questão da violência, e essa
relação foi apresentada também em outro momento do presente livro, em
capítulo sobre a imagem. Ainda na segunda edição do livro Mídia e Pânico
(2007), houve a inclusão de um novo capítulo, ao final, que trata exatamente
dessa questão da perda do sentido na mídia e da relação disso com a temática
da violência.
8
É preciosa a reflexão de Alberto Klein sobre essa passagem e sua relação com
a cultura mediática, especialmente a mídia eletrônica. Tratando do que ele
designa a passagem da iconolatria para a textolatria, seu livro Imagens de culto e
imagens da mídia, traz uma contribuição imprescindível ao tema.
Mediosfera | 29
dos escolásticos, cartesianos e empiristas britânicos. Suas ideias
favoreciam o assassinato da alma do mundo através da separação da
atividade natural do coração em sentir os fatos por um lado e, por
outro, intuir fantasias, deixando-nos imagens sem corpos e corpos
sem imagens, uma imaginação subjetiva imaterial separada de um
mundo amplo de fatos objetivos inanimados (Hillman, 1993a, p. 17).
30 | malena contrera
dizer que se Weber tinha razão e as religiões éticas na
verdade tratam ainda de magia, estamos falando de uma
outra espécie de magia, de um trabalho com as imagens,
guiado por uma prática racionalizadora específica, como
veremos a seguir, não presente na magia praticada pelas
culturas primevas, anteriores ao processo de abstração
radical pelo qual passa o pensamento humano a partir
da escrita9.
Quem explicita essa transformação das religiões da
natureza para as religiões tribais do patriarcado (o que
consequentemente recairá sobre transformações de
suas práticas simbólico-mágicas) é J. Campbell.
9
Flusser (2010, p. 29) evidencia o processo de subtração presente nesta
abstração representada pela escrita, por exemplo, no seguinte trecho: “Na
verdade, o escrever consiste em uma transcodificação do pensamento, de uma
tradução do código da superfície bidimensional das imagens para o código
unidimensional das linhas, do compacto e confuso código das imagens para
o claro e distinto código da escrita, das representações por imagens para os
conceitos, das cenas para os processos, de contextos para os textos”.
Mediosfera | 31
pragmáticos e institucionais10. Daí que possamos
compreender que essa concepção de religião possa
fomentar todo o tipo de intolerância e dar origem às
guerras santas, das quais parece que não nos livraremos
enquanto seguirmos pensando o mundo e suas relações
a partir desse paradigma proposto pelas religiões
éticas do patriarcado monoteísta. Campbell (2002, p.
94) ilustra isso muito bem quando aponta para o fato
de que “Quando o seu principal deus é um deus tribal,
nenhuma outra tribo pode possuir a mesma teologia”.
Esse fracasso do caráter estritamente ético
das religiões assinalado por Weber (e frisado por
Pierucci) é compreensível quando pensamos que sem
a experiência estética do mundo, abolida junto com
as vivências corporais concretas, a experiência ética
também fica comprometida, já que não é possível
uma ética que prescinda de estética. Essa relação fica
evidente não só no pensamento de Hillman sobre a
“anima mundi”, acima referida, como também na
proposição de F. Varela (1992) acerca de uma ética
enativa, na qual ele propõe que uma forma de cognição
mais complexa passa necessariamente por uma
experiência sensório-motora do mundo11, ou seja, pelo
lugar da corporeidade humana. Sem essa sensibilidade
estética, que para Varela deve necessariamente ser
também muscular, essa abertura e capacidade de
interpenetração com o mundo, como importar-se com
ele? O estado da anestesia (não sinestesia) é também o
estado da indiferença que predispõe as sociedades às
crises éticas de nosso tempo.
10
Isso recai sobre a mudança das relações sociais que, antes fundada num
princípio ritual de comunhão, passam a se fundar no princípio arbitrário dos
acordos sociais. Tratamos desse tema no artigo “Do lado de fora do jardim
encantado”, publicado na revista E-Compós em 2009.
11
Essa questão já foi bastante tratada em Mídia e Pânico.
32 | malena contrera
Por isso as religiões éticas que se seguem às religiões
mágicas são religiões que trouxeram em sua própria
natureza uma contradição fundamental, tendendo a
degenerar-se em, como bem propõe Weber, e depois
desenvolve P. Bordieu, uma espécie de economia das trocas
simbólicas (o que aproxima definitivamente o tema da
religião não só do tema da economia, mas também dos
estudos da comunicação).
Daí que as formas anteriores de religiosidade
dessem lugar a um sistema “moralizante de conduta”
(Pierucci, 2003, p. 88), mais relacionado às demandas
históricas e econômicas dos jogos de poder do
que a questões cosmogônicas, ou ainda a questões
relativas à manifestação do sagrado ou às práticas
de transcendência, questões das quais se ocupavam
centralmente as sociedades arcaicas.
A observação do uso que as religiões fazem dos
aparatos mediáticos reforça ainda mais essa evidência,
inclusive na medida em que essa concepção de
religiosidade – centrada nas demandas do cotidiano e
da qual a Teologia da Prosperidade é herdeira e o caso
emblemático – aproxima-se claramente de um princípio
de religação social e de práticas comunicativas que
visam, entre outras coisas, gerar sincronizações sociais
e formas de sociabilidade viáveis dentro do sistema de
valores vigente, inclusive do ponto de visa econômico.
Nesse caso, é evidente que assistiríamos ao potencial
sincronizador dos meios de comunicação sendo usado
por instâncias simbólicas de domínio, como é o caso das
telerreligiões.
No entanto, a compreensão de que as religiões
seculares tornaram-se economias simbólicas do poder
não requer, como pensou Weber, que eliminemos
das sociedades modernas o fenômeno religioso
propriamente dito, o elemento de transcendência e o
Mediosfera | 33
movimento de busca do numinoso (conforme o propôs
R. Otto) – ou seja, a questão do sagrado. Muito embora
tenhamos que concordar que as religiões éticas, em sua
maioria, não têm essas questões como centrais em sua
proposição de um mundo objetal, uma ressalva deve ser
feita quando consideramos a capacidade individual do
homem de seguir estabelecendo conexões, religando-
se, mesmo num contexto disjuntivo. Esse fenômeno é
evidente em muitas manifestações da cultura popular,
das festas regionais, e mesmo no comportamento de
grande parte da população que frequenta os cultos das
religiões seculares que foram esteticamente formatadas
pela cultura do espetáculo e dos meios de comunicação.
É necessário reconhecer a evidência de que pode
haver a busca do sagrado e da transcendência para além
do caráter intramundano da religião reconhecido por
Weber, como pode haver comunhão na comunicação,
para além de formas de sociabilidade circunstanciais e
funcionais da grande máquina mediática, mesmo não
garantidas as condições institucionais para isso. É nesse
sentido que os estudos de comunicação sobre recepção
podem e têm contribuído para compreender os
processos reconjuntivos que o receptor pode operar por
conta de sua inserção cultural (e da memória arquetípica
de uma cultura)12.
De qualquer maneira, essa abordagem weberiana
do fenômeno religioso no Ocidente refere-se, ainda
que não tão claramente, a uma visão de mundo herdada
da ciência moderna que traz em seu âmago uma radical
dissociação entre sujeito e objeto, o que gera, como
consequência, uma série de dissociações outras, das quais
34 | malena contrera
a separação entre corpo e espírito13. Esse paradigma,
que E. Morin (2000) designa como disjuntivo, é herança
do movimento científico que se inicia no final do século
XVI e que culmina na visão mecanicista do mundo,
como propõe Morris Berman.
Segundo M. Berman, o cenário científico europeu
até o final do século XVI seguia os pressupostos
herméticos, assim apresentados:
13
As culturas arcaicas faziam uma distinção bem clara entre o espaço-tempo
sagrado e o profano, valorando o sagrado como doador de sentido, mas em
nenhum momento propunham que essa oposição seja disjuntiva, ou seja, não
afirmavam que o homem experimentasse uma dissociação entre essas duas
esferas, já que a cotidianidade profana, com suas normas de sociabilidade,
só eram concebíveis na medida em que se pautavam pelas diretrizes
estabelecidas pelas vivências do espaço-tempo sagrado, por suas hierofanias
que atribuíam sentido à vida da comunidade e promoviam modelos de
conduta (Eliade, [1957]).
14
Quem discorre sobre esse assunto de uma forma compreensível por não
especialistas é o físico indiano Amit Goswami (2009).
Mediosfera | 35
Essa identificação psíquico-emocional da qual fala
Berman se aproxima ainda do conceito de comunhão,
que também possui estreita relação com a noção de
participação mística, esse sentimento oceânico desde
sempre tão presente nas narrativas mitológicas, e ainda
hoje presente nos sonhos e nos estados alterados da
consciência (o que inclui os quadros psicopatológicos),
ou ainda nos movimentos nos quais ocorrem
aglomerados humanos, como torna claro o estudo de P.
Sloterdijk sobre o tema:
36 | malena contrera
recapitular sobre o que havia afirmado anteriormente.
No entanto, Jung reafirma a validade desse conceito
e diz que ele trata exatamente de um processo de
identificação inconsciente, bastante compreensível pela
ótica dos fenômenos da psique, afirmando que:
15
Pareceu-me incrível que muitos pesquisadores de Comunicação com os
quais tive o prazer de debater sobre algumas dessas ideias se resistissem tanto,
ainda hoje, com a ideia de aproximação entre os processos de Comunicação
e Comunhão. Talvez isso se deva ao fato de que a maior parte deles baseia-
se numa visão de Comunicação como um ato totalmente consciente e sob o
controle da razão de um sujeito plano, sem inconsciente, sem ambivalências,
ou seja, o sujeito ideal do cartesianismo, considerado apenas em sua natureza
política.
Mediosfera | 37
pretendemos também propor a impossibilidade de se
pensar o fenômeno comunicativo sem considerarmos o
papel das transformações da consciência humana (e de
seu grau de inconsciência). Até mesmo porque sabemos
que o surgimento das capacidades simbólicas de
linguagem no homem se dá justamente com a irrupção
da consciência16.
Podemos considerar que essa forma de consciência
e de cognição que caracterizaria o desencantamento
do mundo tem seu marco divisório, segundo Morris
Berman afirma, em Francis Bacon (1561-1626) – cujo
pensamento postulava o império do homem sobre as
coisas do mundo e o conhecimento como um meio
seguro de conquistar o poder sobre a natureza – e em
René Descartes (1596-1650) e seu elogio à racionalidade
como forma única de conhecimento, com a proposição
de um método atomizador e quantificador, que é seguido
por Isaac Newton (1643-1727) e sua visão mecânica do
mundo. A mecânica newtoniana seria, segundo o autor,
o passo definitivo para o desencantamento do mundo.
William Blake soube entender isso quando criou “O
sonho de Newton”.
Não nos referiríamos a esse paradigma mecanicista,
originário do final do século XVI, se não constatássemos a
espantosa sobrevivência e atualidade desse pensamento,
como afirma Berman:
16
O que também sempre me causou estranhamento é ver estudos que
abordam a questão da imagem que ignoram completamente sua dimensão
cognitiva. Ou seja, a desconsideração de que, em última instância, é nosso
aparato perceptivo-cognitivo e nossa psique que, em nós, concebe as
imagens, desconsiderando também que justamente a articulação entre esse
aparato perceptivo-cognitivo com a dinâmica consciência/inconsciência que
estabelece diferentes formas de consciência (Damásio, 2000).
38 | malena contrera
O sonho de Newton, William Blake, 1795/1805.
Mediosfera | 39
constitutivos do processo de desencantamento do
mundo, não implica literalmente num esvaziamento do
sentido, mas sim, como apontou Pierucci (2003, p. 88,
grifo nosso), num processo aparentemente contrário, no
qual há o “[...] ingresso num universo significativamente
ordenado pelas ideias religiosas”.
Trata-se de um processo de racionalização que
transferiu a centralidade da religião da esfera da experiência
religiosa para a esfera das ideias religiosas, gerando o
que poderíamos considerar uma crise do sentido pelo
excesso do sentido, mas pelo excesso de um sentido
construído a partir de uma codificação racionalizadora
(diferente da racionalidade propriamente dita, como
veremos adiante), a qual passam a se submeter todas as
experiências religiosas e que vem de mãos dadas com
o apagamento do corpo e a crise do ritual. Um excesso
de codificação que mata o sentido propriamente dito17 e
que desloca a centralidade do sagrado.
Essa questão é apresentada, de forma exemplar, por
G. Durand quando ele trata da imaginação simbólica –
o que nos interessa ainda mais se considerarmos que o
que exatamente estamos tratando ao falarmos da crise
do sentido é a crise do pensamento simbólico:
17
Não deixa de ser interessante lembrar que essa excessiva necessidade de
codificação e hiperatribuição de sentido, que enrijece qualquer forma de
cognição, é um dos traços encontrados por L. Navratil (1972) em esquizofrênicos
e por J. Hillman (1993b) em paranóicos.
40 | malena contrera
explicação positivista. De certo modo, estes famosos ‘três estados’
sucessivos do triunfo da explicação positivista são os três estados da
extinção simbólica (Durand, 1995, p. 20).
Racionalidade e racionalização
Mediosfera | 41
racionalizadores18.
Essa abstração propõe, em seu sentido implícito,
uma deslegitimação do corpo e das vivências sensório-
motoras, como propõe F. Varela (2002), em prol de
uma visão de “corpo desprovido de pessoa”, gerando a
solução newtoniana apontada por M. Sodré:
18
Essa relação entre a visão religiosa do século XVII e o interesse legislador,
fica clara também em T. Hobbes, quando ele defende a ideia de uma
sociedade pautada pelas Leis da Natureza, por ele entendidas como “a ordem
da reta razão” – leis estas que reconhecem na realeza e no clero os legítimos
detentores do poder simbólico, logo, os legisladores.
19
“Um ato de magia é um ato de racionalidade prática subjetivamente
racional com relação a fins, ainda que irracional nos meios. O problema
com a magia é que sua validade salvífica ‘aguda’ não instala no indivíduo a
racionalidade ‘crônica’ de uma ‘conduta de vida’ (Lebensführung). Ela não fixa um
‘estado duradouro’ (Dauerhabitus).” (Pierucci, 2003, p. 88, grifos nossos).
42 | malena contrera
Detalhe de Der Mensch als Industriepalast, Fritz Kahn, 1926.
Mediosfera | 43
as condutas de vida e que vai gerar, nas palavras de
M. Sodré (2006, p. 32,) uma “vida social mecânica e
previsível”.
Esse tipo de nova racionalidade (melhor seria dizer
racionalização) proposta pelas religiões éticas se distingue
das formas de racionalidade anteriores e para entender
esse processo talvez seja importante recorrer à proposta
de distinção que E. Morin faz entre racionalidade e
racionalização (esta última relativa às religiões éticas),
não por acaso relacionando a racionalização exatamente
ao modelo mecanicista de pensar o mundo:
44 | malena contrera
o papel das emoções ficou muito negligenciado20, o
que demonstra o modelo racionalizador a que estamos
submetidos para pensar fenômenos que não são jamais
totalmente racionais, tais como são os fenômenos
comunicativos. Afinal, como diz J-P. Lebrun, “[...]
a existência do inconsciente é ainda um antídoto à
desumanização” (apud Melman, 2003, p. 137).
Sabemos que o que chamou especialmente a
atenção de M. Weber foi a conhecida relação que ele
propõe entre esse sistema de pensamento e o espírito
do capitalismo. Aqui vale a pena retomar essa relação
para pensá-la como contextualizadora do papel dos
meios de comunicação de massa em todo o século XX, e
da herança por eles deixada.
Essa visão de mundo desencantada, mecanicista, que
exclui a paradoxalidade e a incerteza como fenômenos
constituintes da vida, é a base da ciência moderna, sobre
a qual M. Berman afirma:
20
É necessário aqui fazer uma ressalva a alguns nomes que, no Brasil, têm
corajosamente tratado dessas questões ao longo de toda sua obra. M. Sodré e
N. Baitello Jr. são dois desses pesquisadores. Sodré dedica inclusive à questão
da relevância dos afetos para a mídia contemporânea seu livro As estratégias
sensíveis. Certamente há outros tantos nomes (Ciro Marcondes Filho, Eduardo
Peñuela, Alberto Klein, Rose Rocha, Raquel Paiva, Juremir Machado, Gustavo
de Castro, Josimey Rocha, Eugênio Menezes e muitos outros, com os quais
espero não estar sendo injusta), mas deixo aqui, a estes dois pesquisadores,
meu agradecimento pessoal por seu trabalho.
Mediosfera | 45
foi presenteado pelo seu Criador) no topo da cadeia
evolutiva, gerando uma visão antropocêntrica narcisista
que vê o mundo de forma objetal e desprovido de vida
e de alma. Essa visão de mundo é, de fato, muito mais
conveniente aos interesses econômicos e políticos que
despontavam do que à visão encantada pagã que via na
natureza o corpo e a morada dos deuses.
Berman pontua com muita clareza a afinidade
ideológica entre o paradigma mecanicista e o modelo
econômico capitalista que dele surge, ao falar da posição
que assume o poder instituído (Igreja Católica e governo
político) no período que antecede ao surgimento do
capitalismo:
46 | malena contrera
expansionista, centralizador e titânico21, que preparava
o cenário adequado para o surgimento e o triunfo da
industrialização e do capitalismo, essa visão de mundo e
essas práticas religiosas não convinham.
Referindo-nos ao cenário da Comunicação,
herdamos, como consequência, um mundo cujo
pensamento científico instituído e institucionalizado
sobre os fenômenos comunicativos promove o triunfo
da quantidade em detrimento da qualidade (com a
tirania dos medidores de impacto e índices de audiência),
da funcionalidade em detrimento do significado, da
eficiência em detrimento da criatividade e da vivência,
que sempre são lentas demais para o princípio da
eficiência e do resultado produtivistas22.
As implicações desse cenário no universo da
comunicação e dos meios são muitas e evidentes, mas
duas especialmente significativas são a fé na eficiência
numérica e na quantificação – que subjaz a uma visão
funcional e mercadológica da comunicação – e a fé na
técnica.
Da primeira podemos dizer que a grande mídia, e
mesmo as esferas que deveriam fazer a crítica a ela, são
regidas por índices de audiência e valoração suprema
dos medidores de impacto (numéricos) no lugar da
pergunta sobre a significância de algo, embasadas em
sistemas quantificadores de avaliação, transformando
as estratégias de marketing (o que inclui o marketing
pessoal e a política de interesses) no atual ethos da
Mediosfera | 47
produção em comunicação. A importância que se dá ao
número de registros de visitantes nos blogs é sintomática
de que essa prática dos meios de comunicação de
massa está, infelizmente, de tal maneira introjetada na
sociedade atual que, ainda que dela pudéssemos agora
escapar, continuamos a reproduzi-la23.
Essa paixão pela quantificação, herdada do
pensamento capitalista do lucro e do crescimento
indefinidos, traz em si também um enorme gosto pela
funcionalidade técnica dos meios de comunicação,
questão que é sempre ressaltada ao custo da minimização
da discussão sobre o impacto semiótico e psicoafetivo24
desses meios junto à sociedade, e especialmente, se
e como eles cumprem seu papel de mediação (o que
inclui uma política de comunicação, ainda inominável
no Brasil).
Esse aspecto do desvio de questões fundamentais
por conta do encantamento pela funcionalidade da
técnica está evidenciado, por exemplo, na maneira
como ocorreu a implantação da TV digital no Brasil.
A enorme quantidade de pessoas ligadas às esferas
política, industrial e até mesmo científica que
estiveram envolvidas nesse projeto ocuparam-se, em
sua quase totalidade, da discussão de aspectos técnicos
e mercadológicos, calando sistematicamente sobre a
ausência de uma política de comunicação que pense
23
A esse respeito, emblemático é o exemplo oferecido por Suely Fragoso e
Nísia Rosário no texto “Just like me, but better”, publicizado na 6a Conferência
Internacional em Cultura, Tecnologia e Comunicação ( julho de 2008),
no qual apresentam uma pesquisa com 61 avatares do Second life, de 19
nacionalidades, e na qual identificaram que os avatares seguiam um padrão
de beleza estereotipado (homens altos e fortes, mulheres de cabelos longos e
seios grandes, etc.), exatamente o mesmo padrão oferecido pela grande mídia
de massa, mostrando claramente que ainda não houve a tão festejada des-
formatação estética ou ideológica das cabeças, resultado a maior liberdade do
usuário, como prometido pelas novas tecnologias da comunicação.
24
Remeto o leitor à nota de rodapé 22.
48 | malena contrera
essa nova possibilidade como fator comunitário,
mesmo quando sabemos que os modelos tecnológicos
e de negócios escolhidos, longe de serem neutros,
definirão em parte o que poderá ser realizado
posteriormente25.
Como consequência, ainda temos a máquina
funcional da grande mídia, que garante a padronização e a
velocidade de circulação da informação-mercadoria, seja
ela jornalística, pseudoeducativa ou de entretenimento (e
nesse sentido as mais recentes tecnologias dos meios de
comunicação não efetivaram a prometida desformatação
das cabeças, como vemos na pesquisa de Fragoso e
Rosário, acima citada), em detrimento do tempo lento da
reflexão e da experimentação, ou ainda em sacrifício da
diversidade criativa.
A segunda implicação, a fé na técnica, merecerá uma
reflexão à parte, que propomos mais a frente.
A vingança do objeto
25
Sobre esse processo nos referimos ao estudo de mestrado de Ivan Peñuela
(2009) a respeito dos dilemas da implantação da TV Digital no Brasil, realizado
na UNIP em 2009.
Mediosfera | 49
[...] todo (ou praticamente todo) pensamento filosófico ocidental
está viciado por um ódio fundamental à natureza [...]. A história do
Ocidente é a realização progressiva desse ódio [...]. É a progressiva
profanação da natureza. Em seu ódio à natureza, em seu esforço
de humilhá-la, o homem ocidental se afasta dela e se opõe a ela.
Assume, nesse alheamento, a posição de observador. Torna-
se sujeito, cujo objeto é a natureza. A objetivação do mundo da
natureza, em oposição à subjetivação do mundo sobrenatural
(‘espiritual’) tem por consequência a transformação da natureza
em conjunto de objetos definidos ou definíveis. A natureza se
transforma em sistema de coisas, cada qual com seu lugar fixo. A
natureza fica paralisada nesse sistema. Torna-se manipulável. As
coisas da natureza, humilhadas e enquadradas no sistema, tornam-
se acessíveis ao trabalho manipulador do ‘espírito’, desse sujeito
sobrenatural da natureza. As coisas podem ser transformadas em
instrumentos. Impelido pelo ódio à natureza, o homem ocidental
a manipula, transformando-a em conjunto de instrumentos, em
parque industrial (Flusser, 2002, pp. 108-109).
26
Referimo-nos aqui à vingança da Grande Mãe mitológica, arquétipo sobre
o qual trataremos mais adiante.
50 | malena contrera
J. Baudrillard, sempre brilhante e incômodo, falou
sobre essa vingança ao referir-se à crise do sujeito e à
superioridade do objeto:
Mediosfera | 51
ser explicada, pois ela contém um segredo, toda obediência contém
em segredo uma desobediência fatal para a ordem simbólica
(Baudrillard, 1996, p. 161).
52 | malena contrera
pessoas) que habitam esse mundo racionalizado27.
Em um determinado ponto, cansados de decidir, de
comandar, inseguros frente aos rumos do fracasso do
projeto capitalista de gozo infinito por meio do consumo,
entregamo-nos ao fascínio do objeto. C. Mellman (2003,
p. 56) chega mesmo a afirmar que “Estamos, doravante,
em estado de adição com relação aos objetos”. Deixamos
de desejar para sermos submetidos, na transferência
do centro da ação da consciência do sujeito para a
inconsciência do objeto28. E o inconsciente, como dizia
Jung, é o nosso destino. Neste sentido, sermos seduzidos
pelo objeto é, para nós, inescapável, fatal. Ao objeto
estamos destinados. Essa inversão, que, no entanto,
continua mantendo a dissociação entre sujeito e objeto
em um grau de radicalidade patológico, é a tônica das
nossas relações comunicativas contemporâneas.
Toda a centralidade da prática social comunicativa
se pauta hoje (e já há algumas décadas) por essa lógica:
o sujeito serve às demandas do apelo dos objetos, à sua
sedução (e para isto está a Publicidade e a Propaganda),
ou, ainda, desfaz-se na subserviência ao caráter objetal
dos aparatos tecnológicos da comunicação (o fetiche
pela tecnologia dominante nas práticas das mediações
sociais contemporâneas).
A subjetivação do mundo antecedeu nosso atual
cenário de objetivação do humano. E esse embate entre
27
“Dizem que o pensamento selvagem subjetiva tudo, sem levar em conta a
objetividade do mundo. Mas somos nós que, por trás do álibi da razão objetiva,
subjetivamos tudo, psicologizamos tudo, impondo a tudo uma subjetividade
oculta” (Baudrillard, 1996, p. 149).
28
Vemos aqui a realização do processo de enantiodromia, assim apresentado
por C. G. Jung (1989, p. 363): “Todo extremo psicológico contém secretamente
o seu oposto ou está de alguma forma em estreita relação com ele. Na
verdade, é desta contradição que ele deriva a dinâmica que lhe é peculiar...
quanto mais extrema se tornar uma posição, tanto mais se pode esperar a sua
enantiodromia, sua reversão para o contrário”.
Mediosfera | 53
indissociáveis está na raiz do que entendemos como o
processo de desencantamento do mundo, que, agora
em sua forma atual, vê inverter-se o eixo do poder do
sujeito para o objeto, sem, contudo, proceder ao que
alguns consideram um reencantamento. Não penso
que se possa confundir o fascínio que o objeto exerce
sobre o sujeito (sobretudo o objeto técnico) com a
situação anterior ao processo de desencantamento, na
qual sujeito e objeto não pretendiam subjugar um ao
outro, mas se imbricavam numa espécie de consciência
participativa, para utilizar o termo proposto por M.
Berman.
Mas o objeto encontra também outra estratégia de
vingança: sua própria dissolução. Após capturar o sujeito
no poder atrator do fetiche, o objeto se desintegra, se
desmaterializa, vira imagem. C. Melman (2003, p. 140)
nos diz que “O último arrimo, ou o único que temos
hoje em dia e em torno do qual todo o planeta se põe a
gravitar, é o objeto”.
Ironicamente, o apelo fetichista do objeto é o
último reduto da materialidade do mundo, de sua
concretude, de uma corporalidade que, aos poucos, vai
se apagando no cenário do imaterial. Talvez subjaza ao
consumo compulsivo de nossa época, a última forma de
resistência a essa total desmaterialização do mundo.
A. Gorz vai falar do surgimento de um mundo
imaterial sobre os restos da matéria morta do antigo
mundo. Segundo Gorz (2005), a crise do modelo
tradicional de produção de bens materiais e do sistema
de atribuição de valores é seguida pela invenção do
bem imaterial, pelo triunfo do significado simbólico
do produto em detrimento de seu valor de uso. Sobre
isso também J. Baudrillard havia falado em seu O sistema
dos objetos, como sabemos. Gorz deixa claro, no entanto,
que esse não é um passo para uma quebra do sistema
54 | malena contrera
capitalista de produção e consumo, mas uma nova
estratégia deste:
29
É brilhante a reflexão que Kamper (1997) faz acerca de como o louvor ao
trabalho, bandeira central da ética protestante e do espírito do capitalismo, é
uma estratégia final de apagamento do corpo.
Mediosfera | 55
que possibilitasse a irrupção do erótico, em toda a sua
sensorialidade, vemo-nos na inescapável incorporeidade
da imagem. Esse fim do gozo, inviabilizado pela
supremacia da imagem autorreferente, que abriga a
minimização da propriocepção, abre espaço para o que
C. Melman chamaria – partindo do que ele designa
de uma crise das referências, a simulação como ethos
– de uma nova economia psíquica, “uma economia
organizada pela exibição do gozo” (Melman, 2003, p.
16). E a palavra-chave dessa afirmação é exibição, não
gozo. Isso evidencia o papel central da visibilidade
para a questão do reconhecimento que está na base do
processo social. Melman compara a atual situação com
a que vigorava anteriormente:
56 | malena contrera
J. Habermas (2007b) chamará, ao falar sobre Weber, a
conversão da ciência e da técnica em ideologia.
Essa desrealização, apontada por Melman (2003),
é o que nos desinvestiu do sentido, já que não nos
identificamos mais com o próprio corpo. Resta-nos
então a cultura da aparição e da experimentação
ilimitada30, e de sua principal prática: o excesso.
30
Essa ideia é claramente trabalhada por J. Baudrillard no livro Telemorfose.
31
Termo utilizado por M. Eliade para tratar do caráter religioso do homem.
Mediosfera | 57
era, enfim, um meio para a ampliação da consciência
ou para a comunicação com os deuses (como no caso
do Xamanismo), e não um fim em si mesmo. Menos
ainda era o êxtase sinônimo de divertimento ou prazer,
buscado no dia-a-dia como uma prática individual32.
A mobilidade permanente do homem pós-
moderno, sua constante conectividade eletrônica
que deslocou sua presença para lugar nenhum, fez-se
acompanhar pela busca da velocidade e de seu ponto
máximo de desaparecimento do próprio objeto, ou seja,
a virtualidade pura da onipresença da rede. Melman
coloca muito bem essa questão, apontando para esse
estado de permanente mobilidade:
32
Sobre esta relação entre excesso, êxtase e mídia, escrevi um texto, em
parceria com Marcela Moro, que está publicado na Revista E-Compós (2008).
58 | malena contrera
meio de tentativas mecânicas. O êxtase, antes buscado
em técnicas rituais e/ou religiosas (respiração, jejum, uso
ritual de alucinógenos, dança, canto, recitação de textos
sagrados, etc.), agora é buscado no uso da tecnologia
eletrônica. Tornamo-nos usuários – adictos – do êxtase
tecnológico.
Essa relação entre alguns aspectos da religiosidade
e a tecnologia será retomada mais adiante, após
refletirmos melhor sobre o contexto no qual esses
processos ocorrem – a Mediosfera.
Mediosfera | 59
capítulo 2
Mediosfera: a ação
dos meios no imaginário
33
Estamos aqui considerando os estudos da psicologia arquetípica (C. G. Jung
e os pós-junguianos, em especial E. Neumann e R. Lopez-Pedraza) e cultural
( J. Hillman) e em especial a contribuição fundamental de G. Durand, bem
como os subsídios teóricos aos estudos do imaginário advindos do trabalho
de mitólogos e de historiadores da religião, tais como M. Eliade, J. Campbell
e J. S. Brandão.
34
É preciso distinguir aqui as criações imagéticas, que dizem respeito ao
universo das imagens exógenas e de sua visibilidade (o que tangencia sua
relação com os suportes mediáticos), das criações imaginárias, que dizem
respeito ao universo das imagens endógenas, relativo aos arquétipos e aos
estereótipos, e que trata diretamente com a questão da produção simbólica.
Esses dois processos não são dissociados, mas cada um deles apresenta
condições próprias de produção e significação. Essa diferença entre as
imagens endógenas e exógenas, tal como a entendemos, foi apresentada em
artigo já publicado, “Na selva das imagens” (2006).
Mediosfera | 61
É necessário resgatar a noção de retroalimentação
entre o imaginário cultural e o imaginário mediático
para entendermos que os meios de comunicação,
especialmente os meios de massa do século XX, nascem
no contexto dos imaginários culturais originais, dos
mais arquetípicos aos mais locais, e tiram deles seu
poder central.
E. Morin trata amplamente desse processo em
seu livro Cultura de massas no século XX, do qual um
fragmento acerca desse processo pode ser considerado
emblemático:
62 | malena contrera
dos simulacros dos meios eletrônicos, onipresentes
em sua possibilidade técnica, então emancipados
radicalmente da experiência social comunitária – o que
vale dizer, socialmente vivenciada concretamente nos
moldes das comunidades de origem, conforme aponta
Z. Bauman (2003).
Se pensarmos nos termos propostos por E. Morin
(1992) sobre a Noosfera, conforme visto, podemos
considerar que os seres da Noosfera, de natureza
arquetípica, sofrem um tratamento de tal modo
estereotipador nas produções mediáticas35 que a
redução simbólica realizada gera um universo próprio
que gradativamente se afasta de suas raízes originais de
referência, gerando “seres do espírito” pertencentes a
uma esfera própria, a Mediosfera36.
É preciso reiterar que não estamos propondo que
a Mediosfera seja uma esfera a parte da Noosfera, mas
que, como um núcleo no âmago desta, cresceu e inflou
titanicamente37 de modo a vampirizar aos poucos a
energia dos outros conteúdos da Noosfera, pressionando
os limites da primeira por dentro. A analogia com um
tumor pode ser de mau gosto, mas parece bem real.
Nesse sentido, apesar da inspiração original nas
culturas populares, de raízes míticas e arquetípicas, como
bem assinala Morin (1992), a Mediosfera gradativamente
35
Essa transformação de conteúdos arquetípicos em formatos estereotipados
foi objeto do artigo “Publicidade e Mito”, do livro Publicidade e Cia (2003).
36
Deixo aqui meu agradecimento a Maria Helena Weber que, numa breve
conversa em um almoço, ao me dizer que não concebia a existência de um
imaginário mediático (uma Mediosfera) descolado do imaginário cultural,
me alertou sobre a necessidade de esclarecer com calma como concebo essa
mútua imbricação entre os dois imaginários, ainda assim considerando a
existência de uma Mediosfera. São, de fato, os exercícios de alteridade que
nos levam adiante.
37
Essa dinâmica que se pode chamar de titânica dos meios de comunicação
contemporâneos foi apresentada no artigo “O titanismo na comunicação e na
cultura” (2004).
Mediosfera | 63
vai inflando e roubando de outros núcleos do
imaginário cultural seu poder de centralização dos
olhares e da energia psíquica.
Considerando o caráter da visibilização radical dos
meios eletrônicos, é preciso não subestimar o poder do
gesto de olhar. O olhar, como sabemos, é o alimento
das imagens exógenas, o que equivale a dizer que essas
imagens se alimentam da nossa energia, da atenção que
a elas dispensamos. Essa proposição é feita por Baitello:
“como o alimento das imagens é o olhar e como o
olhar é um gesto do corpo, transformamos o corpo em
alimento do mundo das imagens” (Baitello, 2005, p.
86). Por sua vez, as imagens a que estamos expostos são
alimento de nossos processos imaginativos.
A proliferação de imagens exógenas que vemos
nos ambientes urbanos (seja no ambiente das cidades,
seja nos ambientes virtuais) cataliza todo nosso tempo
e energia e, consequentemente, temos dado pouca
atenção às imagens endógenas. Basta considerarmos
o tempo que dedicamos à televisão, à internet, à
telefonia em geral, e o tempo que dedicamos ao sonho,
aos relatos ou registros de sonhos, ao devaneio, ao ócio,
à contemplação, à meditação, à dança ou à prática de
alguma arte corporal (práticas de geração de imagens
interiores, sômato-motoras38, conversas com o
inconsciente e aberturas ao acaso – ginástica mecânica
não vale).
J. Baudrillard, ao tratar do processo de telemorfose,
toma emprestada a seguinte frase de Jacques Henric:
“A corrupção do poder está em inscrever no real tudo
o que era da ordem do sonho” (Baudrillard, 2004b, pp.
27-28). Essa foi uma contraindicação da adesão radical
38
Esse termo é proposto por A. Damásio (2000), mas essa noção já havia sido
proposta claramente por F. Varela (1992) ao se referir aos processos enactivos.
64 | malena contrera
de nossa comunicação ao audiovisual que quase não
foi considerada, fascinados que estávamos todos com
as possibilidades tecnológicas tão apregoadas pela
publicidade.
A representação ofereceu ao homem uma
fantástica possibilidade de exorcizar sua angústia, de
elaborar por meio das imagens exógenas os demônios
que nos assombravam por dentro, como vimos em
Morin (1988b). Mas nossa época radicalizou o gesto
de transformar em imagem-superfície os conteúdos
da angústia, buscando uma forma de controlá-los por
meio da imagem aparente, fazendo o mesmo também
com o sonho e as imagens interiores, como será melhor
desenvolvido no próximo capítulo.
Certamente que esse projeto de “dar visibilidade a
todos os sonhos”, e a qualquer forma de religiosidade,
diríamos ainda, triunfou porque, a partir daí, pudemos
fazer dos sonhos e dos deuses também uma forma de
mercadoria. Esse processo pode ser considerado uma
espécie de “consumo da alma”, tal qual apontado por J.
Hillman que o considera patológico, maníaco:
Mediosfera | 65
ou ainda de tradições populares39 (quase sempre orais)
que, após serem alvo das atenções e tratamentos
técnico-ideológicos dos meios de comunicação,
especialmente da televisão, alteram sua percepção de
si mesmos, reeditam seus relatos e memórias segundo
as edições da mídia. Tudo se passaria como naquele
chiste no qual a moça vai até um cirurgião plástico com
a sua foto retocada pelo Photoshop e ordena a ele que
a deixe como na foto, não importa quantas cirurgias
tiverem de ser realizadas. O exemplo é extremo
porque o fato em si também o é. Esse movimento
de retroação, no qual o imaginário proposto pelos
meios de comunicação age e transforma o imaginário
original, está na base do que Baudrillard apresentou em
vários momentos como o triunfo do simulacro sobre
qualquer forma de concepção de real. Ainda ao falar
sobre o fenômeno da telemorfose, Baudrillard (2004b,
p. 42) afirma que estamos vivendo “[...] a elevação de
toda uma sociedade ao estado paródico de uma farsa
integral, de um retorno-imagem implacável sobre sua
própria realidade”.
O poder da imagem mediática, por imagem/efígie
que é, e por mediadora de um olhar social que sempre
traz embutido uma forma de reconhecimento do
outro, não pode ser subestimada quando tratamos das
questões da constituição do imaginário.
Considerei, em certo momento, se esse termo
“mediosfera” não deveria vir no plural (“mediosferas”),
reconhecendo a existência de imaginários diferenciados
dos próprios meios de comunicação; mas a evidente
padronização estética, por um lado, e a maximização
da importância do caráter tecnológico, por outro, não
39
Os trabalhos de folkcomunicação em nossa área apresentam exemplos
abundantes desse processo.
66 | malena contrera
me deixa dúvidas de que as diferenças são bastante
superficiais, podendo-se dizer que respondem mais
a uma demanda de segmentação de mercado (logo,
estratégias de vendas) do que a demandas legítimas
de representação simbólico-cultural. No universo da
mídia nada escapa, até mesmo porque toda e qualquer
tentativa de reação contra hegemônica que gere
uma adesão quantitativamente significativa acaba,
após algum tempo, sendo reabsorvida pela lógica da
produção desenfreada e pelos modismos constantes
das reengenharias de “qualidade” da administração
do sistema. O caso do Software Livre é emblemático,
nascido de um movimento de contracultura, segue
resistindo, mas com desvios consideráveis do que se
acreditava que fosse a proposta inicial40.
Gostaríamos de propor agora que os mecanismos do
crescimento e do poder da Mediosfera, especialmente
sobre o Imaginário Cultural primário - e aqui é
importante que entendamos que não estamos tratando
de um imaginário das culturas primevas apenas, mas
de um imaginário nascido do universo do ritual e da
festa, no qual os acontecimentos eram concretamente
e corporalmente vivenciados, anterior ao domínio
do universo do espetáculo e do simulacro, no qual
os acontecimentos são consumidos ou simulados e o
corpo é obsoleto -, podem ser pensados, para além dos
motivos econômicos e políticos que todos sabemos,
também a partir de um movimento que marca a
constituição de uma “cultura da emissão”, gerada em
40
Sobre essa questão, E. Cazeloto apresenta uma reflexão interessante,
em seu livro A inclusão digital, chamando a atenção para o fato de que esse
movimento não se opõe necessariamente ao modelo de negócios capitalista,
como inicialmente identificado. “Assim, pelo menos em princípio, não há
contradição entre o software livre e a acumulação capitalista, tanto no que diz
respeito à compra e venda de aplicativos, quanto à prestação de serviços por
parte de desenvolvedores espalhados pelo mundo” (Cazeloto, 2008, p. 156).
Mediosfera | 67
grande parte pela crença na sociedade da informação
(o saudoso sonho iluminista de que a informação traria
reflexão e livre escolha).
41
Noção apresentada por N. Baitello Jr. no texto ”A mídia e a sedação da
imagens”, presente no livro A era da iconofagia.
68 | malena contrera
experiência, a sua transformação em máquina de
emissão é claramente compreensível, considerando-
se especialmente o contexto tecnocêntrico do qual
tratamos mais adiante.
O fato é que para além da conversão histérica, há
pouco sentido nessa massa toda de produção feita
apenas para ser exibida, para servir de farol num mar
em que só há rochedos... e saudades da água.
O desenvolvimento dos recursos tecnológicos
de replicação infinita das emissões, e a crescente
possibilidade da ininterrupta ação dos veículos de
informação foram, sem dúvida, dois dos principais
fatores de geração desse estado de emissão generalizada,
perseguido socialmente como se dele dependesse o
próprio sentimento de existência (estou conectado,
logo existo). É preciso aqui diferenciar os veículos de
informação, pelo seu caráter operacional tecnicamente
autônomo, dos meios de comunicação, entendidos
como agentes de processos que abrigam maior
complexidade e nos quais a mediação de fato é o
principal objetivo – nesse caso, comportando aspectos
relacionais mais complexos do que o mero processo
técnico de transmissão de informações ou de postagem
de conteúdos.
K. Lorenz, já na década de 1970, diagnosticava com
precisão algo que ele designava como “necessidade de
ruído” – resposta para o que temos tratado como o
esvaziamento do sentido. Sobre esse quadro, ele afirma:
Mediosfera | 69
desesperadamente, na tentativa de preenchimento do
vazio existente, vazio com o qual ele não sabe mais
lidar. Então essa contínua emissão só faz aprofundar a
crise da produção de sentido, numa simulação patética
da atribuição desse sentido – e justamente quando
ele foi perdido, na maioria das vezes, por saturação.
O resultado é uma busca desesperada de hiper-
representar no vazio que evidencia a crescente perda
das competências simbólicas do homem.
H. K. Fierz (1997) vai falar da crise de uma sociedade
como consequência da perda dos símbolos diretores
dessa sociedade. Pensamos que não são apenas os
símbolos diretores que estão perdidos, mas a própria
competência simbólica que mingua na atualidade.
Resta então a emissão desesperada.
Uma cena emblemática do cinema, que podemos
convocar como uma metáfora perfeita desse processo,
é a da morte de uma das replicantes do filme Blade
Runner. À guerreira, quando está morrendo, não resta
alternativa senão a de debater-se violentamente,
movendo no ar as pernas em extrema velocidade, sem
sair do lugar.
Certamente que não podemos diminuir, nesse caso,
a importância da relação dessas formas de comunicação
(se é que podemos chamar a isso de comunicação)
com o sistema capitalista que as enquadra. Para o
capitalismo, é muito evidente a vantagem da produção
e da circulação ininterruptas de bens, questão tratada
claramente pela crítica econômica marxista. Nesse
sentido a proposição de A. Gorz (2005) acerca do
fenômeno econômico e social que ele chama de “a
produção de si”, ou seja, quando a própria pessoa é
o seu produto (o personal stylist, o marketing pessoal),
tem nessa proliferação de emissões um fenômeno
correlato, das quais contemporaneamente podemos
70 | malena contrera
destacar os blogs e twitters, como formas mais atuais.
A sociedade da emissão faz com que as imagens que
os homens fazem de si mesmos seja seu novo capital,
nesse processo no qual mais do que a produção de si, o
que vemos é a transformação do “si mesmo” em capital
(de giro).
No entanto, essa exacerbação da emissão, que é
análoga à exacerbação da produção, sinaliza a crise
do capitalismo, na medida em que é o seu apogeu
insustentável42. De fato, A. Gorz (2005) vai propor que o
capitalismo não tem controle do imaterial como tinha
da produção material. O imaterial tem sua própria
autonomia e, como veremos a seguir, o território do
virtual pode sempre ser invadido pelo universo do
imaginário. Nesse sentido, essa nova “cegueira dos
olhos” (em sua função recepção) é também o irônico
fim da sociedade da emissão/exposição.
É da sobrevida desse gesto de contínua e algo
desesperada hiperemissão que se constitui a esfera
mediática. A Mediosfera é caracterizada por uma
geração de conteúdos a partir desse processo centrado
na produção do máximo de emissão, e do mínimo de
sentido.
É importante considerar ainda que a sociedade da
emissão é a outra face da sociedade do consumo, em
um processo no qual já não sabemos até que ponto a
histeria da emissão provoca o consumo compulsivo e
as práticas de adição, ou são essas últimas que ampliam
o vazio sobre o qual ecoam desenfreadamente as
emissões.
42
Sobre o mesmo processo de morte por saturação, D. Kamper falou ao
tratar do fenômeno da hipervisibilidade, geradora de uma nova “cegueira dos
olhos”.
Mediosfera | 71
Para além da emissão
A literalidade
72 | malena contrera
poderíamos extrair da experiência do caminhar.
Também operam com modelos literalizantes as
religiões que mais crescem no mundo, o Islamismo e o
Neo-pentecostalismo43; ambas tem em comum a prática
de uma interpretação literal de suas escrituras sagradas44,
que considera muito pouco a dimensão metafórica
da linguagem, fundamento de toda elaboração do
conhecimento sobre religião e mitologia.
As formas atuais de culto ao corpo são outro
fenômeno que devemos considerar. Literais em sua
busca desesperada pelo fisiculturismo, disfarçado de
todo tipo de modismo e da busca da “saúde corporal”,
operam o triunfo da imagem do corpo sobre o corpo
(conforme D. Kamper bem pontuou em toda a sua obra).
Todos os sonhos têm de ser literalmente vividos
na sociedade do “se eu posso, por que não?”. Não
há densidade simbólica, não há desdobramento
metafórico, as mil pétalas de lótus murcham caídas
aos pés dos totens eletrônicos. As estrelas são apenas
43
Essa informação foi retirada do jornal O Estado de S.Paulo, em sua versão
online. Indicamos nas Referências os links e o sumário das notícias que
podem ser encontradas na busca do jornal, no entanto, as notícias na íntegra
não estavam mais disponíveis para leitura desde abril de 2010. Seguem, então,
as indicações completas das fontes: “Há mais muçulmanos do que católicos
no mundo, diz Vaticano [...] número de muçulmanos superou [...] vez, o de
católicos, fazendo do Islamismo seja...de adeptos no mundo, de acordo [...]
indicavam que 19,2% da [...] formada por muçulmanos, enquanto 17,4% são
católicos, disse o editor do Anuário Pontifício [...]. Anuário diz que a proporção
[...] população de católicos do mundo é razoavelmente [...] porcentagem de
muçulmanos vem aumentando [...]”. (Estado, 30/08/2008). “Islamismo cresce
entre os jovens na periferia de SP [...] retrasada que, pela primeira [...] número
de muçulmanos ultrapassou o de católicos no mundo. Islâmicos [...] 13 bi de
católicos. O crescimento [...] natalidade, mais altas em países [...] islâmicos.
No Brasil, há mais de 27 mil [...] acreditam que o número de [...] temos é o
do Instituto Brasileiro [...] número de muçulmanos convertidos” (Estado,
13/04/2008).
44
Certamente que não pretendo resumir as duas religiões a esse traço único.
Sabemos que uma análise sobre a complexidade religiosa e simbólica de cada
religião demandaria mais tempo e cuidado, mas apontamos aqui apenas um
traço que nos chamou a atenção por estar diretamente relacionado ao ponto
que desenvolvemos.
Mediosfera | 73
Richard Sandrak, fisiculturista infanto-juvenil conhecido
como “pequeno Hércules”. Foto: Divulgação.
74 | malena contrera
O sacrifício inseria-se num elaborado contexto ritual
da concepção do sagrado e podia servir também à
tentativa de delimitar a violência generalizada (Girard,
1990), e o canibalismo quase sempre remetia a uma
elaborada crença de que era preciso honrar o inimigo,
incorporando suas qualidades e, de certa forma, dando
sobre-vida a ele. Não podemos dizer que os assassinatos
em massa e as formas sofisticadas de crueldade do
homem contemporâneo sejam simbolicamente mais
elaboradas do que os “atos de barbárie” dos primitivos,
ou seja, que possuam uma dimensão simbólica que
atribua a elas algum sentido transcendente para além do
óbvio (prazer sádico, demonstração de força, etc.). Mais
adiante voltaremos a tratar dessa inflação que a crise das
competências simbólicas confere à violência.
Essa regressão a uma espécie de literalismo pré-
simbólico vem acompanhada da fuga para o hiper-real,
que é ao mesmo tempo o seu contrário, no momento
em que despreza o concreto, e o mesmo, no descaso pela
dimensão simbólica das experiências. Nesse quadro,
a consciência se desloca para o hiper-real e o real vira
sombra, no sentido que C. G. Jung atribui à sombra, ou
seja, o negado, o reprimido, o rejeitado. O real vira o
lugar do primitivo, da violência literal, do corpo em sua
concretude pura, desprovido de significado para além
da concretização de sua própria fisicalidade.
Impossível não ver nessa crise do sentido uma
espécie de estratégia suicida da civilização. Muniz
Sodré fala que “a humanidade é de certo modo
deicida e parricida porque apaga a origem, apaga o
tempo”45. A busca pelas origens e as mitologias perdem
seu sentido numa sociedade que pensa o mundo
Mediosfera | 75
literalmente, instrumentalizando até mesmo as formas
de religiosidade46.
O entretenimento
46
Esse tem sido centralmente o tema dos trabalhos desenvolvidos por parte
dos pesquisadores do Grupo de Pesquisas em Mídia e Estudos do Imaginário,
da UNIP, sob a supervisão do Prof. Dr. Jorge Miklos.
76 | malena contrera
B. Cyrulnik, ao falar sobre pacientes submetidos à
lobotomia, coloca que:
Mediosfera | 77
ordem da sociedade do entretenimento, apontados
por C. Melman (2003), ao falar da nova economia
psíquica da contemporaneidade. Sem dúvida essa
sociedade tem como viabilizadores desse novo ethos do
entretenimento os meios de comunicação eletrônicos
e o universo imaginário por eles proposto. Nesse caso,
um imaginário que também se propõe a reatualizar a
ideia da onipresença divina47.
No entanto, a questão central trazida pelas
sucessividade ininterrupta e abrangência total propostas
pela sociedade mediática é a questão do enfraquecimento
do papel do contexto para o pensamento e para a
comunicação. Os estudos da linguagem, em especial
os da Análise do Discurso, trataram exaustivamente do
papel central do contexto para a atribuição do sentido. A
Etologia Humana reafirma esse ponto, e Cyrulnik (2005,
p. 33) chega a afirmar, ao tratar do tema dos processos
humanos de geração de sentido presente nas relações
interpessoais, que o “significado do fato provém de seu
contexto”.
Ele ainda reforça a relação já conhecida entre
contexto e memória, reforçando que a ação desses dois
processos é central, inclusive, para que a resiliência seja
possível (algo que não deveríamos desprezar em tempos
de sociedades superpopulosas e crises ecológicas e
sociais de enormes dimensões).
Esse apagamento da memória tem sido inclusive
tema de várias produções culturais, e aqui gostaríamos
de lembrar da proposta do filme Brilho Eterno de uma
Mente sem Lembranças, que aponta para o ponto no qual
deixamos de ser apenas envolvidos por esse apagamento
para passarmos mesmo a desejá-lo como uma solução
47
Acerca da onipresença divina nos meios de comunicação, temos a
contribuição de J. Miklos no livro Ciber-religião.
Cartazes de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, Michel Gondry, 2004. Fonte: Divulgação.
Mediosfera | 79
contemporâneos que enfrentamos nas relações de
alteridade, de que tratamos mais a frente.
A centralidade do contexto e da memória nas
pesquisas de Cyrulnik, acerca da resiliência e dos
processos de criação de identidade, nos traz a verdadeira
importância de certas formas de organização temporais
que estamos destruindo com a obsessão de nossa era
pela onipresença das redes de comunicação, já que a
onipresença pressupõe a abolição das relações espaço-
temporais às quais os corpos concretos (meramente
humanos e mortais) estão submetidos.
No ambiente dos meios de comunicação essa
abolição do contexto se evidencia pela crescente
dificuldade de tecer relações de sentido (não apenas
conexões fortuitas), de resgatar a rede de sentidos por
trás de uma imagem/conteúdo com o qual entramos
em contato, o que se evidencia, por exemplo, no caso
do jornalismo48.
E, por fim, a pergunta que podemos nos fazer
a partir desse cenário é acerca de como estão as
mediações promovidas pela Mediosfera. São elas
geradoras de sentido, ou seja, de conexões não
meramente operacionais, mas propositoras de formas
de cognição que possibilitem as operações reflexivas, as
contextualizações e a produção de memória49?
48
Essa questão foi apresentada no livro Jornalismo e realidade, de 2004.
49
Nesse caso, estamos falando da geração de contextos e de memória
pelo cérebro humano, o que pressupõe escolhas psicoafetivas e um
intenso processo de semiose, não da proposição de contextos e memórias
artificiais geradas pela funcionalidade autônoma das redes tecnológicas de
comunicação e pelos interesses sócio-econômicos pelos quais elas se pautam.
Uma interessante pesquisa acerca de como o Google tem se oferecido como
uma memória social tecnologicamente criada por instâncias que não são
sóciocomunitárias, mas sim comerciais, é a tese de doutorado de Diogo
Bornhausen, em andamento na PUC/SP. Alguns textos do autor já podem ser
encontrados sobre o assunto.
80 | malena contrera
capítulo 3
Tecnologia e
autorreferência
50
Quem pontua muito bem a relevância dessa questão para Weber é A. F.
Pierucci, no livro O desencantamento do mundo.
Mediosfera | 81
um lugar de onde podemos extrair oportunidades
de negócios. Daí foi um passo para que a lógica da
produção industrial transformasse toda natureza
em matéria-prima e, logo, em produtos mercantis. E
líderes religiosos de denominações diversas se sentem
absolutamente à vontade para venderem lotes do céu
aos mais preocupados com a salvação das suas almas
após a morte.
Também não é de se espantar que a ciência dita séria
caminhe no mundo de mãos dadas com os interesses
exclusivos do capital, e que órgãos gestores da ciência
postulem que a “boa ciência” deve ter parcerias com
empresas privadas para a geração de royalties e patentes.
Longe de postular de fato uma integração entre pesquisa
e bem comum social, a máxima oculta nisso é a de que
sem lucro, a ciência não tem “impacto”.
Essa crise da magia, que gerou um mundo
desencantado e reduzido ao valor de matéria-prima
por meio do paradigma cartesiano, que promoveu
a visão de que as coisas do mundo podiam ser vistas
separadamente entre si, esteve sempre na raiz da crise
do sentido, como vimos anteriormente, e levou o
homem à condição de, nos dizeres de G. Durand, ser
cada vez mais incapaz de atribuir valor simbólico às
coisas do mundo e às suas experiências.
A crise da magia trouxe também a crise da
imaginação. Como pontuou G. Durand, o esvaziamento
das capacidades simbólicas se deu no seguinte contexto:
82 | malena contrera
E (Durand, 1993, p. 2)51 coloca claramente do que
estamos tratando: “o poder pragmático do signo triunfa
diariamente”.
Uma das principais consequências dessa crise do
pensamento simbólico é o triunfo da literalidade, ou seja,
a diminuição da capacidade simbólica e metafórica do
pensamento humano, derivando-se desse processo uma
espécie de pensamento empobrecido e empobrecedor,
passando a linguagem a ser um mero programa de
autoexecução que, por fim, acaba se exaurindo na falta
de sentido de sua própria existência. J. Baudrillard
havia já tratado desse processo em seus últimos
livros52, e certamente essa literalidade da linguagem
contemporânea e seu conseqüente sem-sentido estão
também presentes no fenômeno da proliferação dos
discursos no espaço das redes virtuais. A verborragia dos
blogs, twitters e outros formatos análogos que a internet
possibilitou contemporaneamente são não apenas um
traço da histeria mediática, como bem propôs R. Paiva
(2000), mas também sinalizadores da perda da dimensão
simbólica da linguagem (e conseqüentemente de como o
homem pensa e comunica seu mundo); são o triunfo das
palavras-coisas operacionais que não apontam para nada
além de si mesmas ou do próprio sistema para o qual
foram criadas. É a natureza autorreferente da tecnologia
retroagindo sobre a linguagem e criando, aí também,
um mundo de alta produtividade, porém fechado para
o espanto, para o não operacionalizável, para o não
51
Quem tem desenvolvido um belo trabalho acerca das contribuições do
pensamento de Gilbert Durand para a área de Comunicação é Ana Taís
Martins Portanova Barros, contribuindo para atualizar as discussões acerca do
imaginário a partir da complexa teoria de Durand.
52
A contribuição que Baudrillard oferece à nossa pesquisa sobre esse tema,
que já vem nos ocupando transversalmente há alguns anos, foi apresentada
no livro Jornalismo e realidade.
Mediosfera | 83
comunicável, para o encantamento sem palavras frente à
grandiosidade do desconhecido e do silêncio.
Primeiro as coisas do mundo são desencantadas
pela racionalização, depois a própria linguagem é
desencantada pela lógica produtiva que se esconde
na centralidade dada à emissão (como veremos mais
adiante). Está dada a lógica do eco: a palavra batendo no
abismo de sua própria inutilidade e voltando igual, mil
vezes igual, ensurdecedoramente muda.
Esvaziadas as possibilidades mágico-simbólicas das
coisas do mundo e da linguagem, a busca do sagrado
e do sentido se transfere para as operações, de onde a
centralidade dada à tecnologia nos últimos séculos. Há
tempos nossa sociedade não se pergunta mais pelas
coisas, pelo que elas são, por quais suas motivações, a
única pergunta pertinente no mundo moderno (e ainda
contemporaneamente) é o “como” do poder pragmático
que Durand reconhece. Como funciona, como fazer,
como utilizar, como consertar, como acertar nos
testes, a vida quase se reduz a uma sensação constante
de treinamento para tudo e para coisa alguma. Uma
constante autoexecução de algum programa que nunca
se conhece o suficiente, bem ao estilo de Kafka.
Não podemos ignorar que o homem sempre esteve
às voltas com suas técnicas e com as tecnologias relativas
à sua época, mas não é dessa relação indissociável entre
humanidade e técnica que estamos tratando, tratamos na
realidade de um momento específico na história dessa
relação, do momento em que um conjunto de técnicas
se transforma em uma forma de pensar o mundo que
passa a se pautar centralmente em critérios relativos à
sua própria operacionalidade. Nisso reside seu caráter
centralmente ideológico, como bem propôs J. Habermas
(2007b). Estamos falando da tecnologia eletrônica e de
seu caráter autorreferente, e mais especialmente das
84 | malena contrera
tecnologias eletrônicas aplicadas às comunicações que
atravessam o mundo contemporâneo.
Trata-se de estarmos cada vez mais submetidos ao
que E. Trivinho chama de razão tecnológica, e que ele
assim apresenta:
Mediosfera | 85
crescente complexidade do mundo nos destinou. A
presente situação visa na realidade a nos transformar,
crescentemente, em funcionários do aparelho, como
declarou V. Flusser (2002). Sobre o papel da tecnologia
na transmutação do homem em funcionário que
Flusser propõe (cuja noção foi apresentada em capítulo
anterior), N. Baitello Jr. comenta:
86 | malena contrera
Esse caráter autorreferente se apresenta em todo
sistema noológico e/ou ideológico que enlouqueceu,
seja pela falta de reflexão e autocrítica, seja pela falta de
capacidade de interagir com outras esferas da existência
(tais como o sentimento, a intuição, o devaneio, o
sonho), recusando-se a considerar a relevância de uma
ecologia da comunicação53. Tudo se reduz a sonhar o
sonho das máquinas, como anteviu D. Kamper (1997).
A autorreferência se revela totalmente no modus
operandi da tecnologia moderna: seus critérios centrais
sempre partiram do princípio de automanutenção ou
aperfeiçoamento de suas próprias operações e métodos.
Ela autoexecuta um programa complexo que a coloca na
própria centralidade da vida e das questões humanas sob
o pretexto constante do aperfeiçoamento. Lembramos-
nos de C. G. Jung alertando sobre o perigo da busca
pela perfeição (a imagem perfeita da TV digital), que
conduz necessariamente a uma dissociação, no mínimo,
disjuntiva, como também já alertou Morin.
Os discursos (publicitários ou científicos) sobre as
novas tecnologias da comunicação têm um jeito próprio
e cool de manter atual o mito do progresso, ainda que
disfarçado de atualização permanente (Vicente Romano
me disse certa vez, ácido e preciso: “não se esqueça de
que coisas ruins também progridem, câncer também
progride, por exemplo...”).
O fato é que vemos nesse processo uma inversão: a
técnica, de meio, passa a ser um fim, e o homem, que
deveria gerir sua utilização, passa a girar ao seu redor.
53
O tema da ecologia da comunicação vem sendo bastante debatido por
um grupo de pesquisadores junto ao Centro Interdisciplinar de Semiótica
da Cultura e da Mídia (CISC-PUC), do qual podemos destacar Eugenio de
Oliveira Menezes, que há anos vem pesquisando o tema associado a uma
cultura do ouvir. Podemos ainda fazer referência ao livro de mesmo nome,
Ecologia da Comunicação, de Vicente Romano.
Mediosfera | 87
Estamos já vivendo em um tempo em que os aparatos
tecnológicos não são mais próteses humanas, o que
vemos é o ser humano (a dimensão essencialmente
humana do inabarcável) como prótese dos aparatos
tecnológicos. E essa operação é realizada justamente
pelo projeto de autoexecução e autorreferência disso
que Trivinho chama de razão tecnológica.
Tecnologia e redenção
54
Também E. Durkheim ocupou-se dessa questão, especialmente ao tratar do
animismo, em As formas elementares da vida religiosa.
88 | malena contrera
aparentemente banais, cotidianas, eram circunscritas
em uma mitologia específica que as legitimava. O que
nos parece pertinente nessa questão é percebermos que
magia e técnica possuem a mesma motivação inicial,
diferenciando-se não na finalidade, mas na maneira e
nas ferramentas de execução e, especialmente, na fonte
de onde emana o seu poder de intervir na realidade.
Essa origem comum faz com que muitos afirmem
que, sob a primazia do tecnológico, estamos vivendo um
reencantamento. Podemos decerto chamar essa atitude
de uma forma de encantamento, mas certamente não
podemos comparar a situação atual com o que vigorava
antes do racionalismo, quando então vigorava um
pensamento que M. Berman chamou de pensamento
hermético sobre o mundo. A diferença central a ser
considerada nesse caso, e que não é um detalhe desprezível,
é a de que o que podemos chamar de encantamento do
mundo nas culturas arcaicas se pautava por uma relação
muito diferenciada com o mundo concreto, incluindo
o próprio corpo. A tecnologia contemporânea apaga
justamente as marcas da natureza concreta do mundo, a
cibercultura é a evidência máxima desse comportamento
de negação das condições concretas, ou seja, dos limites
espaço-temporais dados pela realidade concreta.
É nesse ponto central que não se pode dizer que
estamos vivendo um reencantamento do mundo,
na medida em que a palavra “encantamento”, como
proposta por M. Weber, referia-se a uma visão de
mundo na qual o homem praticamente brotava da terra
e a ela estavam indissociavelmente relacionadas todas
as esferas da sua vida. O momento atual se parece mais
à consumação de um processo de desmaterialização do
mundo (seguindo o desmantelamento já operado pelas
sociedades industriais). Nesse sentido, A. Gorz (2005)
acerta ao tratar o presente momento como o triunfo de
Mediosfera | 89
uma economia (no sentido complexo do termo, e não
apenas monetário) do imaterial.
Essa desmaterialização do mundo, da qual tratamos
em outro momento, começa a se dar efetivamente com
o monoteísmo que considera o espírito algo santo e o
corpo a morada do pecado. Todos sabemos do longo
trabalho do Catolicismo para apagar a relação simbólica
dos pagãos com a terra e com os cultos que envolviam
os deuses da natureza, processo que a Inquisição
evidenciou com especial poder de ilustração.
Altera-se centralmente, com o estabelecimento do
patriarcado e do monoteísmo, o lugar dos deuses. Os
deuses, nas culturas pagãs (em grande parte mantendo
relações com a cultura matriarcal56) habitavam os mares,
a terra, os grãos, as árvores e todos os seres encantados
da natureza. O mundo concebido pelo patriarcado
coloca os seus deuses inicialmente no poder masculino
e nos fenômenos celestes, operando a transferência
do lugar terreno para o espaço distante e intocável
do sagrado, agora associado ao imaterial. O próximo
passo é a criação dos deuses tribais sociais, nos dizeres
de J. Campbell (2002), associados a tribos específicas
e ligados a elas por linhagens ancestrais (que é o caso
evidente do Judaísmo).
O espírito puro não demora a revelar-se o maior
processo de apagamento da concretude do mundo, e
seu rebaixamento à matéria-prima é uma conseqüência
fácil de compreender. O sobrenatural das religiões
monoteístas constrói seu valor sobre os destroços do
natural, após ter dele se dissociado.
A ironia é que nosso enredo monoteísta e patriarcal,
após passar pela supremacia da razão e do cogito, nos
momento deste livro, por isso não nos extendemos nesse assunto aqui.
90 | malena contrera
Loja da Apple Inc. na Nova Zelândia. Foto: Divulgação.
57
Sobre esse processo escrevemos um artigo intitulado “Publicidade e Mito”,
presente no livro Publicidade e Cia.
Mediosfera | 91
reduzido às operações espetaculares de mostragem em
que a aparição não impacta por seu significado nem
por sua origem, mas sim por seus efeitos tecnológicos.
Dessa maneira as tecnologias eletrônicas utilizadas nos
processos de mediação social, por sua capacidade de
reproduzirem imagens exógenas indefinidamente (era
Zeus o grande reprodutor), esvaziam o poder criativo
do deus celeste e o usurpam.
E como a vida sempre supera a teoria, um
maravilhoso caso é o da Apple e de sua loja central, nos
EUA, que apresenta toda uma estrutura arquitetônica e
luminosidade que remetem claramente aos espaços de
culto58.
Dr. Frankenstein talvez seja a imagem mais
emblemática desse encantamento tecnológico, dessa
fé na eletricidade e na tecnologia que dela se mantém.
Hoje, ainda, quem não isentaria o doutor, em sua
megalomania e delírio de controle, e culparia o monstro?
58
Leonardo de Souza Torres Soares tem pesquisado o que ele chama de culto
à Apple desde seu mestrado desenvolvido na UNIP/SP, e parte dessa reflexão
está em alguns artigos que evidenciam a relação entre tecnologia e religião.
59
Todos esses fenômenos são analisados livro de Jorge Miklos, Ciber-religião.
60
Conforme matéria publicada no dia 07/04/2010 no Portal Terra.
92 | malena contrera
de percepção do outro. Sabemos que ciberpessoas são
invenções possíveis dentro do ambiente infotecnológico
da rede, e mesmo que não menosprezemos o papel
imaginário dessas invenções, sabemos também que o
que impera nesse processo é a autodeterminação (não
em relação à tecnologia, mas sim em relação ao outro
humano), ou seja, o outro será, no mais das vezes, o que
quisermos que ele seja.
As questões relativas às perdas advindas da
compressão espaço-temporal desse processo foram já
bem mapeadas (Virilio, Trivinho), mas aqui queremos
tratar de uma das dimensões que é perdida nessa
relação quase que exclusiva com a tecnologia: a noção
de alteridade. Inicialmente dada pelos deuses, pelos
duplos, pelos objetos mágicos e encantados repletos
de sobrenaturalidade divina (e que era nesse caso uma
espécie de intranaturalidade, já que os deuses estavam
na biosfera) a noção de alteridade é apagada pela
identificação imediata do homem com a tecnologia,
na medida em que a tecnologia é algo percebido como
exclusivamente humano, próxima demais, prótese.
Temos de considerar ainda que, ao serem os objetos
tecnológicos inseridos no modus operandi funcional da
sociedade produtivista, essa identificação se exacerba e
adquire contornos claramente narcisistas, como sugere
V. Flusser:
Mediosfera | 93
Essa autoadoração, que deixa evidente seu traço
narcísico, encobre algo pior, que é o apagamento
da alteridade, exatamente em um mundo que,
ironicamente, gira em torno de infinitas interconexões.
Sintomático desse cenário é o sucesso das redes
sociais que se baseiam em “temos isso em comum”. O
mais espantoso é que na década de 1990, quando da
explosão do Orkut no Brasil, tantas pessoas quisessem se
encontrar a partir de critérios de absoluta “mesmidade”61,
critério evidente nos nomes dos grupos, a grande maioria
nomeados como “eu adoro isso”, “eu odeio aquilo”,
reproduzindo nauseantemente um discurso tipicamente
adolescente de auto-afirmação por meio de agrupamento
de iguais – “eu e minha turma”, só que agora virtual. Muda
o suporte, mas o conteúdo marcadamente narcísico
permanece, com ainda alguns retrocessos (fico vendo
como os adolescentes de hoje são mais conservadores
do que os de 30 anos atrás, alguns até bem moralistas),
incluindo o culto à aparência e a importância dada aos
critérios quantitativos (a velha breguice do mais popular
da escola, agora transposta para o espaço das redes, na
obsessão pela medição de agregados ou seguidores). No
Brasil, em 2015 e 2016, em meio às convulsões políticas
que tomaram o país, dividindo as opiniões em uma
lógica binária primitiva, o Facebook se tornou uma
vitrine do horror. As radicalidades, os xingamentos, as
ofensas vigorosas que pessoas que absolutamente não
se conheciam eram capazes de trocar deixou-nos um
maravilhoso exemplo de como somos capazes de odiar
virtualmente.
Isso torna mais compreensível o fato de que a
internet, que surgiu acompanhada dos discursos
proféticos de que ela seria a grande unificação da espécie
61
Mesmidade é um termo proposto por Z. Bauman em Amor líquido.
94 | malena contrera
humana, tenha sido o ambiente ideal para fomentar
intolerâncias de todos os tipos. Vimos recrudescer uma
forma popular de fascismo nas mensagens moralistas de
vídeos domésticos que circulam entre adolescentes, ao
mesmo tempo em que o neonazismo62 e toda produção
social de intolerâncias e xenofobias encontraram
também na internet um espaço asséptico o suficiente
para abrigar ideais e valores essencialmente sangrentos.
Quem chama a atenção para essa tendência
das sociedades contemporâneas a regredirem suas
capacidades de negociar de forma complexa a alteridade
é Z. Bauman, e não coincidentemente o faz de forma
bem eloqüente em um livro que se chama Amor líquido:
62
A dissertação de mestrado defendida no Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Unicamp, com o título de Os Anacronautas do Teutonismo Virtual:
uma etnografia do neonazismo na Internet, por Adriana Abreu Magalhães Dias,
mapeou o universo de sites, portais, comunidades, fóruns, chats, blogs e listas
de discussão que abordam a temática racista e revisionista (que tenta invalidar
a veracidade histórica do holocausto na Segunda Guerra Mundial e o número
de judeus mortos por agentes nazistas). A pesquisa etnográfica realizada por
ela verificou que em língua portuguesa, espanhola e inglesa há na Internet
cerca de 12,6 mil sites racistas, revisionistas e neonazistas, entre sites pessoais
e institucionais, blogs e fóruns.
Mediosfera | 95
A libertação de Prometeu
96 | malena contrera
O impacto simbólico de uma tempestade elétrica. Foto: Vasin Lee/Shutterstock.
Mediosfera | 97
consequentemente, com a eletricidade, que é uma
representação moderna desse núcleo arquetípico do
poder dos deuses celestes63. Por meio dessa relação
compreendemos porque nossa sociedade se comporta
como se o contato com os aparatos da mídia eletrônica a
pusesse em contato, na realidade, com as esferas divinas
do fogo sagrado de Zeus (o poder do deus masculino no
qual se centram as religiões do patriarcado).
L. Greene ressalta, em sua análise, que Prometeu era
considerado pelos gregos como uma espécie de “pai da
técnica” e a ele, juntamente com Atenas, atribuía-se o
título de benfeitor dos homens, bem como a origem de
ensinamentos e técnicas diversas:
63
M. Eliade apresentou em vários de seus escritos uma série de casos por
ele estudados de culturas cujas mitologias apresentavam seus deuses celestes
sempre associados aos raios, trovões e fenômenos luminosos (o que inclui os
mitos solares, é claro).
98 | malena contrera
roubar o fogo dos deuses e entregá-lo aos homens. Essa
primeira parte do mito narra a grandeza da transgressão
de Prometeu, no entanto, algo é ocultado quando a
história pára por ai. É a continuidade da narrativa
que nos parece reveladora. Essa continuidade nos é
apresentada da seguinte forma:
Mediosfera | 99
Quando Quíron toma o lugar de Prometeu, o
mito conta a saída de cena de um tipo de sabedoria
(que podemos associar à sabedoria dos curandeiros
pagãos) e a entrada em cena de outro tipo de poder: o
da transformação do mundo pela técnica, pelo espírito,
pelas estratégias do fogo.
Prometeu tem seu fígado/espírito salvo, enquanto
Quíron tem seu corpo homem/animal64 sacrificado,
apesar de sua sabedoria e do papel proeminente que a
narrativa mítica lhe dá como grande sábio (foi ele quem
educou o próprio Zeus após ele ter sido salvo por sua
mãe da devoração de Cronos).
Esse sacrifício da natureza instintiva que Quíron
representa e seu conseqüente apagamento (Quíron
morre) narra uma situação que conhecemos, invertem-
se os papéis e, apagando-se os traços da natureza ctônica
do homem, são as estratégias do fogo, entre elas a
tecnologia eletrônica, que se impõem como sua nova
natureza, até que, por fim, ela mesma se “naturaliza”.
A naturalização da técnica (Simondon, 2001) é tema
dos mais significantes para compreender sua aceitação
irrestrita e irrefletida. A técnica, alçada à posição de
agente principal, torna-se natural. Não estamos tratando
de manter certa dissociação existente entre natureza
e cultura, já que, como se sabe, a mútua imbricação
entre essas duas esferas transformou de tal maneira as
condições naturais de vida do homem póscivilização
que hoje torna-se impossível pensar numa definição de
natureza que não passe pelo viés de como uma cultura
específica a concebe. Estamos tratando justamente de
um senso comum que ainda compreende a natureza
64
No artigo Os monstros na/da mídia, apresentei uma hipótese sobre essas
representações de híbridos tratarem exatamente da natureza biológica do
homem, normalmente reprimida pelo processo civilizatório.
65
Essa estratégia da familiaridade na mídia é tratada no artigo “Publicidade
e Mito”.
66
Esta noção foi apresentada por N. Baitello Jr. no livro A era da iconofagia.
Mediosfera | 101
contra-indicações ou reações adversas que nos foram
informadas nos manuais de uso. Isso, dito por ele em
1973, antes da onipresença dos computadores pessoais,
alcança hoje uma dimensão inimaginável por Lorenz,
mas experienciável por todos nós. Essa realidade segue,
no entanto, consciente para pouquíssimos.
Lembro-me de ouvir várias vezes de V. Romano que
ele não entendia como as pessoas frente a um novo apa-
relho eletrônico aderiam totalmente ao discurso publici-
tário sobre as qualidades e vantagens da nova tecnologia,
sem nunca se perguntarem sobre os custos (além do fi-
nanceiro). E, acostumado pela sua veia marxista a pro-
curar onde estava o engano, arrematava: nada que surge
de novo possui só vantagens, tudo que propõe uma mu-
dança de hábitos e de métodos de se fazer alguma coisa
também exige algum sacrifício. Frente ao discurso do
vendedor, é preciso sempre se perguntar o que eu perco
para ganhar algo novo, e avaliar se a troca vale a pena.
Romano dizia que essa é uma lição de política de comu-
nicação que nossa sociedade ignorou por completo.
Quanto ao corpo da Terra, vemos enfim as
informações que tratam da dimensão catastrófica dos
nossos problemas ecológicos chegarem aos telejornais,
ainda que como notícia do cenário político, já que falta
totalmente aos nossos gestores de comunicação de massa
(especialmente nos bastidores da televisão) noção de
cidadania ou ética planetária (como chamaria E. Morin).
Provavelmente isso se tornou pauta tarde demais, mas
a real dimensão da destruição vital perpetrada pela
sociedade industrial está disponível no resultado de
uma enormidade de pesquisas que tratam da questão.
Foi um preço muito alto pela chance de brincarmos
de deus onipotente, onisciente e onipresente, até
mesmo porque essa brincadeira não respondeu a nada
mais do que às demandas de uma sociedade pautada
Mediosfera | 103
capítulo 4
Imagem: depois da
dessacralização, a
banalidade
Violência e sociabilidade
Mediosfera | 105
que o ser humano, em “estado de natureza”67, isto é,
antes de submeter-se ao que ele designa como as “leis
da natureza”, consideradas por ele como sendo os
ditames da reta razão, é um ser em permanente estado
de guerra. Preocupado em propor o domínio da razão
para o fundamento de uma legislação possível para seu
tempo, sua motivação evidente é a premissa de que os
homens são seres naturalmente dotados de violência
e destinados ao medo, já que avalia que “Todos os
homens em Estado de natureza têm o desejo e a
vontade de ferir” (Hobbes, 2003, p. 33). Vemos ainda
que, para Hobbes:
[...] não pode ser negado que o estado natural dos homens, antes
de ingressarem em sociedade, era um estado de guerra e não
uma guerra qualquer, mas sim uma guerra de todos contra todos
(Hobbes, 2003, p. 37).
67
Para Hobbes (2003, p. 40) o estado de natureza é o estado primeiro da
condição humana, que deve ser submetido às leis da natureza, que, segundo
ele, são: “...defino assim a lei da Natureza: é a ordem da reta razão, familiarizada
àquelas coisas que, na medida de nossas capacidades, devemos fazer, ou
omitir, a fim de garantir a preservação da vida e das partes de nosso corpo”.
68
Apesar de aqui nos interessar essa leitura que Hobbes (2003) realiza
acerca da violência do estado de natureza do homem, não sob a dimensão
especificamente política dessa discussão, sabemos que Hobbes se referia à
esfera do político, já que para ele o poder do soberano deveria ser absoluto,
isto é, ilimitado. A transmissão do poder dos indivíduos ao soberano deveria
ser total, caso contrário, a liberdade relativa ao estado natural do homem que
fosse conservada traria potencialmente a capacidade e instaurar novamente
a guerra. Parece-nos que o ponto central de seu pensamento seja o fato de
que, uma vez instituída a autoridade por meio de um pacto simbólico-social,
essa autoridade não pode ser contestada, é absoluta. Para explicitar seu ponto,
Hobbes usou como metáfora a figura bíblica do Leviatã. Para ele, essa era a
figura que o Estado representava, um gigante cuja carne é a mesma que a de
todos que a ele delegaram o papel de os defender. Tanto mais assertivo ele
é no absolutismo do poder da instância simbólico-social constituída, quanto
mais seguro ele nos parece da necessidade de proteger a sociedade do estado
natural de violência do homem.
69
Referimo-nos em outro momento do trabalho a essa questão de como o
século XVII inicia esse processo de construção de uma racionalidade, quando
tratamos da aposta racionalizadora da ciência moderna, acusada por M.
Weber, e posteriormente debatida por J. Habermas e M. Berman.
Mediosfera | 107
condição de homens sem um senhor ou às misérias que
advém da guerra civil, dando mostras claras de julgar
que nenhum horror se equivaleria ao horror da própria
violência humana presente no estado de natureza.
O que especialmente nos interessa no pensamento
de Hobbes (2003) é a sua proposição da existência
de uma tendência à violência relativa a algo que
poderíamos considerar como uma espécie de instinto de
sobrevivência, e a crença de que só a razão, que institui o
pacto simbólico-social, oferece condições de lidar com
isso. Temos, no pensamento de Hobbes, um caso muito
claro da crença do século XVII na salvação pela razão,
como veremos mais adiante em nossa discussão.
R. Girard, por sua vez, em 1972, irá propor que as
culturas sacrificiais encontraram uma outra forma de
lidar com isso que Hobbes considerou um estado natural
de violência, mas, ainda que essa forma pressuponha o
trabalho simbólico-social proposto por este, Girard não
considera que a razão seja para isso a única estratégia
possível.
Ele propõe que a violência está presente no ato
fundador da sociedade, quando se refere à evidência
de que o assassinato possui um papel central nos mitos
cosmogônicos:
Mediosfera | 109
Em ambos os casos a violência é projetada para uma
instância simbólica culturalmente criada com o fim de
realizá-la dentro de possíveis limites de contenção.
Ao apresentar uma análise sobre os processos de
eleição da vítima expiatória, Girard aponta para um
incontestável dado: a vítima sacrificial, receptáculo da
projeção das tensões do grupo, é eleita entre os mais
fracamente vinculados ao grupo social. Ou seja, aquele
cujo sentimento de pertença em relação ao grupo esteja
mal estabelecido, será possível candidato a ser a vítima
sacrificial. Isso, segundo ele, se dá pela clara relação da
violência com a vingança, já que quanto mais vinculado
ao grupo esteja o bode expiatório, mais retaliações
tenderiam a acontecer, o que geraria uma cadeia de
violência interminável70. Logo, o excluído ou o mal
adaptado a um determinado grupo é já, de saída, um
forte alvo da violência desse mesmo grupo.
Essa proposição de Girard é significativa ao nosso
trabalho na medida em que contribui para uma reflexão
sobre a aparente imbricação que constatamos entre a
violência e a imagem (esta última central à compreensão
da religiosidade), como veremos a seguir.
B. Cyrulnik fala a partir de uma área de estudos que
cada vez mais se aproxima dos estudos da Comunicação,
a Etologia Humana, e parte de premissas bem próximas
às de Hobbes e Girard. Ele considera também a presença
de uma violência que poderíamos designar como
inerente ao homem:
70
É impossível deixar de recordar do filme brasileiro Abril Despedaçado, que
ilustra essa dinâmica da vingança interminável que Girard apresenta com
precisão e poesia.
Mediosfera | 111
Para Morin, ambas – violência e sociabilidade – são
frutos do caráter demens, da afetividade exacerbada e do
excesso que lhes são característicos. Esse caráter demens,
para ele, é também o responsável pela capacidade
humana de organizar-se em sociedades mais complexas,
em processos que exigem um constante e sofisticado
trabalho de sociabilidade71.
Partindo dos estudos de que poderíamos chamar
de uma arqueologia dos processos de representação e
de sociabilidade das sociedades arcaicas (Morin, 1988b),
ele também situa claramente o papel que as imagens
ocuparam antigamente nesse processo, deixando
um legado que retorna e se atualiza sempre que nos
defrontamos com elas.
A questão central colocada por Morin (1988a) é
que os primeiros sinais de consciência no homem
irrompem no confronto com a morte. É a contundência
da experiência da morte que, para Morin, mobiliza
as primeiras manifestações da consciência e todo o
processo de complexidade que dela advém. A morte é
sentida pelo homem como uma espécie de violência,
e assim sendo aproxima-se da noção de “assassinato
original” referida por R. Girard, que também se refere a
Freud (apesar de criticá-lo duramente) para pensar essa
relação do fundamento social com o que ele designa de
violência fundadora, indissociável do sagrado.
É neste contexto que E. Morin situa a questão
da imagem (como ferramenta da magia), quando a
considera uma estratégia humana contra o medo da
morte:
71
Logo após apresentar o caráter demens, Morin aponta algumas de suas
consequências diretas, e em quarto lugar das consequências por ele
enumeradas encontramos: “A constituição de uma sociedade mais complexa
do que a paleossociedade, apta a tornar-se uma unidade no seio de um
conjunto social mais largo, e, mais tarde, a constituição de sociedades vastas,
de Estados e de cidades.” (Morin, 1988b, p. 110).
Mediosfera | 113
nossa marca na medida em que a memória masculina
da caça se perpetua dentro da lógica patriarcal (e
monoteísta) que subjaz ao capitalismo. Dessa forma,
a violência intrínseca à espécie humana (somos os
maiores predadores do planeta, sem sombra de
dúvidas) nos destinou a sermos igualmente medrosos e
a buscarmos nas imagens uma estratégia de elaboração
desse medo.
72
Destacamos a contribuição especial para o presente estudo dos trabalhos de
H. Belting, V. Romano, D. Kamper e N. Baitello Jr. sobre o tema da imagem.
73
Sobre esse processo de hipertrofia das imagens exógenas em detrimento das
imagens endógenas, tratamos anteriormente no texto “Na selva das imagens”.
Mediosfera | 115
de um senso de realidade comum imprescindível à
sociabilização, pode ser entendido, desta maneira, como
um gesto desesperado de medo, um gesto que prefere a
morte à vida na iminência da catástrofe.
Esse medo frente à virtual catástrofe (e a questão
aqui é exatamente a virtualidade, a condição humana
de, como seres de linguagem, vivermos no universo
do simbólico, sobre o qual ironicamente temos ainda
menos controle do que sobre o universo concreto) é
identificado por B. Cyrulnik (1999, p. 101) pelo nome de
angústia, ao tratar do que ele designa de “filogênese da
percepção semiótica”:
Mediosfera | 117
da arrogância humana (Zoja, 1992) de lidar com as
coisas, submetendo-as e dominando-as, foi preciso dar
corpo ao duplo, matar os deuses, eliminar os fantasmas,
exorcizar os espíritos e tornar visíveis todas as imagens
endógenas. Foi preciso visibilizar a alma e as entranhas,
não para dar a elas o direito à existência, mas para
submetê-las à nossa própria banalidade, ao desvalor de
um mundo desencantado.
Sobretudo é preciso visibilizar tudo, tentando lutar
contra a angústia, mas acabando por amplificar o medo.
Ironicamente, no entanto, é o universo da angústia,
a capacidade de lidar com o despercebido (fruto da
descontextualização espaço-temporal do percebido
imediato) que nos define como humanos, já que,
segundo os estudos etológicos, todas as outras formas
de relação com o mundo são encontradas nos demais
primatas superiores. Cyrulnik (1999, p. 101) torna clara
essa questão quando nos diz que “[...] viver no mundo
do medo obriga a agir, ao passo que viver no mundo da
angústia obriga a compreender e a falar”.
Se o medo requer respostas concretas, literais, a
angústia exige um complexo trabalho simbólico de
exorcismo. Dessa maneira, a necessidade de transformar
tudo em imagem exógena evidencia a incapacidade
humana contemporânea de lidar com o universo
das imagens endógenas que, em última instância, é o
universo simbólico. Estamos, portanto, falando da crise
das capacidades de simbolização do humano74, que gera
uma regressão às formas literais de ação e busca de
solução para os conflitos.
Os rituais arcaicos apresentavam uma série de
ações que respondiam ao medo de forma criativa, já
74
Tratamos desse tema no livro Jornalismo e realidade, mas voltaremos a ele
ainda no presente livro.
75
Essa interação do homem com a imagem religiosa foi objeto da fala de H.
Belting, em aula concedida ao Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura
e da Mídia em 31 de agosto de 2008, em S. Paulo (disponibilidade em contato
com o Centro de Pesquisas).
Mediosfera | 119
elaborando rituais encantatórios que atestavam que a
imagem tinha o status de uma presença.
A transformação histórica da função religiosa da
imagem (duplo) para a função estética da imagem
eliminou a possibilidade dessa solução simbólica,
imaginativa, como bem apresenta E. Morin:
76
Tratamos dessa relação no artigo “Vertigem mediática nos megaeventos
musicais”, publicado na revista E-Compós, 2008. Também Maurício Ribeiro
da Silva, ao tratar das questões espaciais na Comunicação e nas mediações,
aponta o que considero uma das mais interessantes contribuições acerca
da relação entre mídia e vertigem ao falar que antes organizado a partir
do simbolismo do Centro (cf. M. Eliade), que era um centro geográfico e
simbólico, o espaço passa agora a se organizar a partir de um centro que é
móvel – os aparatos móveis de comunicação. Com um centro que se move
todo o tempo, mais do que gerar localização e sentido de organização, a
relação do homem contemporâneo com o espaço passa a ser uma relação
pautada pela vertigem, pela deambulação.
Mediosfera | 121
Foto: SV Luma / Shutterstock.
78
Independente da proposição original de P. Virilio para o termo, D. de
Kerckhove esclareceu na palestra acima referida que esse termo estava sendo
usado por ele no sentido de trabalharmos com conteúdos locais dentro de um
contexto global.
79
J. Hillman apresenta um diagnóstico muito interessante a respeito desse
mundo sem alma, em seu livro Cidade e Alma.
80
Essa dissociação entre imagem e vivências corporais já foi bastante tratada
por autores como D. Kamper e N. Baitello Jr. e no livro Mídia e Pânico.
Mediosfera | 123
pensamento digital81 e digitalizador, estaremos, ao invés
de construindo um novo estado heraclitiano fluido do
mundo, testemunhado a realização final do projeto de
seu desencantamento.
81
Kerkhove, na mesma palestra acima referida, propõe que o avanço se dará
na direção de não mais um pensamento digital, mas sim de um pensamento
e uma tecnologia quântica. Nossas considerações finais trazem algumas
palavras sobre essa questão.
82
Referência à música “Socorro”, do grupo de rock brasileiro Titãs.
83
Há vários quadros desse tipo em programas televisivos em diversos países,
mas no Brasil temos alguns bastante conhecidos já há vários anos (Programa
do Gugu, Domingão do Faustão, Pânico na TV etc.).
Mediosfera | 125
simbólica. Trata-se de obrigar a mostrar a qualquer
preço, pela imposição de uma visibilidade total que
renega o não mostrado à categoria de não existente.
Quando o violado consente, feliz, como o fazem
os big-brothers em cena, nossa consciência se permite
então o autoengano de que estamos tratando do erótico.
Mas sabemos que se trata apenas da sucessão de imagens-
chiclete, feitas para mastigar, sem deglutição, sem
contágio. Apenas destruição, mastigação compulsiva
relacionada ao hábito do consumo ininterrupto.
Mais do que a demanda do desejo, o que está em
ação é a demanda da imagem que, em sua voracidade
agressiva, precisa transformar todos os redutos da vida
humana em mercadoria imaterial do grande espetáculo
da visibilidade absoluta. Essa sem dúvida poderia ser
considerada uma das formas de iconofagia a que se
refere N. Baitello Jr. É também o que C. Melman designa
como “exigência de transparência”:
Mono-imagem e patriarcado
84
C. Melman (2003, p. 18) propõe esse termo ao falar sobre a exposição
iniciada na cidade de Mannhein, na Alemanha, em 1997, e que correu o
mundo expondo cadáveres embalsamados, em processo de dissecação,
concebida pelo o Dr. Gunther von Hagens.
85
Sobre esse tema ver, por exemplo, o vídeo The Great Porn Experience, a
entrevista Fap or Fuck: It’ time to choose ou ainda o fórum Your brain on
porn.
86
Conforme artigo de I. Boscov publicado em 31/01/2001 na Revista Veja.
Mediosfera | 127
as neopentecostais (Mariano, 1999). O que elas têm
em comum é que negam as imagens, são religiões
patriarcais e monoteístas, herdeiras de uma tradição
que, no combate às religiões arcaicas da Grande
Deusa87, procuraram se afastar de toda experiência que
remetia diretamente ao corpo, à sua materialidade crua.
Por isso recusam a ideia de que a divindade possa ser
representada por meio de uma imagem cujo suporte
seja perceptível sensorialmente e experienciável
concretamente. Ficou famoso no Brasil há alguns anos o
“chute na santa”, dado pelo pastor da Igreja Universal do
Reino de Deus Sérgio Von Helder, no dia 12 de outubro
de 1995, que teve repercussões inusitadas na esfera
televisiva, sendo um gesto emblemático do desprezo
dessa visão religiosa a qualquer materialidade concreta
relacionada à divindade.
A imagem religiosa arcaica era sempre uma
evocação do duplo, ou seja, era sempre uma
possibilidade de desdobramento do representado, de
que a imagem, como que pelo processo alquímico da
coagulatio88, tornasse novamente presente o referente,
o “incorporasse”. Essa função de duplo que a imagem
potencialmente apresenta foi bastante trabalhada por
87
Apesar do tema da Grande Deusa não ser o foco da presente reflexão,
parece-nos significativo retomar a obra de E. Neumann (1996) a esse respeito.
Dessa obra podemos destacar o seguinte trecho: “Com as esculturas da Idade
da Pedra, retratando a Grande Mãe como deusa, repetidamente emerge na
humanidade o arquétipo do Grande Feminino pela primeira vez [...] Essas
imagens da Grande Deusa, apesar de serem pinturas rupestres, são as obras
cúlticas e artísticas mais antigas que a humanidade conhece. A existência
dessas imagens numa área que se estende desde a Sibéria até os Pirineus
parece pressupor a existência de uma ‘visão de mundo’ unitária em cujo centro
está a Grande Deusa [...] Elas são o exemplo do domínio do matriarcado,
absolutamente independente da extensão em que os grupos masculinos dessa
época – por exemplo, os caçadores – se apoderavam do comando sobre as
mulheres” (Neumann, 1996, p, 89).
88
Referimo-nos aqui a uma das etapas da Obra, descrita pela Alquimia, que
representa a etapa da coagulação ( Jung, 1994).
89
É o caso, por exemplo, das imagens religiosas e das imagens de culto que
ainda resistem especialmente na cultura popular. Temos no Brasil, como caso
emblemático, a festa do Círio de Belém, no Pará.
90
O neo-pentecostalismo substituiu as imagens tradicionais pelas imagens
mediáticas, como bem mostrou A. Klein (2007).
Mediosfera | 129
demônios, expulsos do paraíso, também residem nos
mares, nos rios, nas nascentes ou nas florestas” (Braga
apud Hillgarth, 2004, p. 73). Há uma enorme série de
textos que se ocupam exclusivamente disso, como é
sabido, e o estudo de Hillgarth tem por sua vez o mérito
de reunir esses documentos.
No entanto, provavelmente não seja por acaso
que entre as religiões monoteístas e patriarcais, o
Islamismo e o Protestantismo sejam as que mais
crescem (no mundo e no Brasil, respectivamente). Elas
continuam a crescer ainda hoje porque coincidem
com a visão desincorporadora que subjaz à ideologia
capitalista, como bem assinalou M. Weber ao tratar da
racionalidade que subjaz a uma visão tecnoinstrumental
do mundo moderno. O catolicismo incorporou tantos
elementos pagãos que não se tornou a religião ideal
do “deus desencarnado”, como até hoje comprovam
a papel exercido pelos santos, as velas, as romarias, o
culto às relíquias e uma infinidade de outras práticas
que mantém relações muito próximas com algumas
práticas pagãs, comprovando que mudou o nome do
deus, mas não mudou radicalmente a forma, nem
a maneira de o adorar, e às vezes nem mesmo sua
natureza simbólica (é o caso da profusão de virgens
e santas adoradas pelos católicos, referências muito
claras ao arquétipo da Grande Mãe).
Um mundo animado por deuses que se incorporam
à natureza, politeísta e encantado, não servia aos
propósitos capitalistas de transformar o mundo em
matéria-prima, em “parque industrial”, para usarmos a
metáfora proposta por V. Flusser para esse processo. Se,
segundo as religiões de matriz africana, por exemplo,
o mar é a morada de Iemanjá, não é possível fazer
experiências atômicas nele, ou nele instalar polos
petroquímicos, o que seria uma ofensa pessoal ao
Mediosfera | 131
dos fluxos e da impermanência, já não há coagulatio
possível. Tudo é apenas “ar e fogo”, tudo permanece no
reino do impalpável. Há uma elevação que não volta a
“baixar”91 nunca mais. Nada pode en/carnar no mundo
do imaterial e dos fluxos permanentes. Daí também a
precariedade de todos as relações afetivas, as soluções
que já nascem obsoletas.
O suporte imaterial das imagens da mídia eletrônica
é o triunfo (final?) do patriarcado e do capitalismo
desencantatório sobre o mundo. Por isso patriarcado,
monoteísmo, capitalismo e mídia eletrônica se deram
tão bem e prosperaram juntos. E por isso não nos
espanta perceber que a crise da eficiência da economia
capitalista que se faz ver a partir do final do século
XX vem acompanhada de claros sinais da ineficácia
simbólica das grandes religiões monoteístas e patriarcais.
O irônico é que essa posição de um culto à imagem,
que a primeira vista pode parecer transcendente,
voltada para o espírito puro e imaterial, liberta das
“amarras” do corpo, é na realidade antitranscendente
porque extingue a possibilidade de transcendência na
medida em que destrói a experiência da imanência.
Não há como transcender a partir de lugar algum,
transcender é sempre transcender um limite específico,
corporalmente demarcado. A abolição da condição
corporal, a imaterialidade pura é na realidade o oposto
da transcendência, é o vazio absoluto, a ausência total de
relação entre imagem e corpo num processo em que, ao
apagar-se o corpo, destrói-se igualmente a imagem (em
seu potencial mágico).
O mito grego de Eros e Psiquê trata dessa mútua
dependência dos processos de transcendência e
91
Esse conceito foi apresentado por J. Hillman (1997) e referido em análises
no livro O mito na mídia.
92
Sobre essa relação, ver J. S. Brandão, J. Hillman e E. Neumann.
Mediosfera | 133
Essa relação do homem contemporâneo com a
imagem e com a negação da materialidade do corpo,
e de toda a dimensão sensorial concreta que ele abriga,
é que torna inaceitável a afirmação de alguns de que
estaríamos vivendo um resgate do paganismo, um
neopaganismo hedonista. Como se fosse possível colocar
no lugar do corpo apenas as imagens exógenas do corpo
(ou esse corpo-imagem que se faz hoje em dia), como
se apagar a dimensão concreta do mundo e sua estreita
relação com o sagrado não implicasse num afastamento
radical dos princípios pagãos. Não é possível propor
que estejamos presenciando um reencantamento do
mundo, se estamos negando a sua concretude (não seu
materialismo, mas o princípio da transubstanciação do
divino na matéria), apagando as marcas de sua natureza
e colocando no lugar os simulacros que nossa sociedade
gera. Por meio da industrialização e do capitalismo
destruímos a ponte pela qual poderíamos voltar.
Uma vez mais, o mapa nunca será o território
concreto, lembrando de J. L. Borges. Hoje, prefere-se
viver no mundo do mapa. Um mapa sempre pode se
restaurar, dele se fazer cópias; já o mundo concreto
segue inabarcável. Nele, a morte ainda é inevitável e a
natureza, como uma antiga deusa ferida, se vinga.
Mediosfera | 135
incomunicação reinante (o Encontro de Genebra93 foi
exemplar dessa situação).
O dinheiro, convertido em medida do sucesso
da ação do homem no mundo (bem ao gosto do
protestantismo, como evidencia M. Weber), foi o
símbolo diretor principal do monoteísmo ocidental,
mas sua inconsistência como símbolo diretor central
do capitalismo, seu pacto com a abstração pura (as
bolsas de valores, por exemplo), fez com que sua função
diretora não pudesse ser sustentada por mais tempo.
O século XX chegou ao final assistindo à derrocada do
capitalismo e de seu mega-símbolo, o dinheiro. Todo o
dinheiro do mundo em breve não comprará um litro
de água mineral, brincam os ecologistas, não sem uma
sombra macabra de razão.
Mas o capitalismo não é o único que entra em crise,
sua crise na verdade é a ponta de um iceberg maior, o
que podemos considerar o desgaste do paradigma do
patriarcado monoteísta, que mais do que simplesmente
fundar-se numa visão religiosa de um deus único,
representou nos últimos milênios o triunfo de uma
visão de poder centralizadora e verticalizante, baseada
na proposição de uma forma única de pensar o mundo,
na crença pensamento e de prática científica que tem na
disjunção e na análise seus principais processos.
O deus único do monoteísmo é o deus da imagem
feita de luz, é o deus da aparição, não da vivência. Daí
93
Referimo-nos à III Conferência Mundial sobre o Clima, que aconteceu de
31 de agosto a 4 de setembro de 2009, e que contou com a participação de
150 países com o intuito de ajudar os governos, através do aperfeiçoamento
dos serviços de observação do clima, a adotar medidas que ajudem os países
a adaptar-se da melhor forma às alterações climáticas e a reduzir o impacto
destas mudanças, segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM),
a entidade organizadora do encontro. O encontro, como amplamente
comentado, foi uma demonstração pública de má vontade governamental e
de incomunicação generalizada.
Mediosfera | 137
d) [...] un deseo de abandonar la comunidad de lo viviente a través
de una experiencia de pertenencia en una unidad cósmica que
conforma un domínio de espiritualidad invisible que trasciende lo
vivo (Maturana & Verden-Zoller, 1994, pp. 35-36).
Mediosfera | 139
fundamentalistas certos para pensá-la e impô-la como
modelo único de pensamento; o método científico
cartesiano, armadilha da repetição do mesmo previsível.
Estamos frente à falência de toda uma concepção
de mundo que se mostra no desgaste de seus principais
símbolos diretores – o sucesso, o enriquecimento, o
conforto, o consumo.
O sucesso é uma noção cada vez mais vazia e sem
eficácia no mundo atual; já o enriquecimento, dentro
do cenário da superpopulação mundial e da miséria
de sua grande maioria, tornou-se imoral. O consumo
desenfreado, tal como se estabeleceu no século XX (cf.
Bauman), já começa a ser compreendido como o que
de fato é: doença da alma, pulsão suicida da espécie; e
o conforto gerou uma legião de zumbis entediados que
apertam ininterruptamente os botões dos seus jogos
virtuais em busca de alguma emoção simulada.
A noção de contrato social tem falhado
crescentemente e as instâncias sociais de referência do
patriarcado se vêem crescentemente desmoralizadas. A
figura do pai, do chefe, do Estado, enfim, da autoridade
social não parecem ter mais o poder simbólico
suficiente para conter a neobarbárie que vemos no
crime organizado (inclusive o dos governos instituídos),
no terrorismo, nas crescentes desigualdades de
direitos e de condições de vida. A institucionalização
das práticas de corrupção parece ser o atestado mais
evidente da falência do contrato social, aquele centrado
na convicção de que o homem era um ser plenamente
racional e capaz de decidir, por meio de consensos
alcançados, sobre questões diversas, visando o triunfo
do social. O social virou refrão de rap.
A crescente busca por comunidades, virtuais ou
concretas, tem sido a saída do homem contemporâneo
para o resgate de um senso de participação possível. Por
Mediosfera | 141
da Mediosfera, seja capaz de resgatar esse sentimento
de religação tão central ao que concebemos como
reencantamento. Isso ocorre porque as experiências
estéticas contemporâneas são quase totalmente vividas
num contexto de impermanência constante e falta de
vínculos, no qual os compromissos pessoais a médio
ou longo prazos dão lugar a conexões instrumentais e
descartáveis, e o vínculo com o espaço concreto e seus
desdobramentos está cada vez mais rarefeito, como
já tratamos anteriormente. Parece-me incrível que
pesquisadores de Comunicação que têm visto nessa
descrição um exagero não justificável não tenham
nunca se dado ao trabalho de conversar com psicólogos
e perguntar-lhes pelo que anda acontecendo em seus
consultórios...
O cenário contemporâneo das metrópoles (e o
crescimento populacional parece destinar o mundo
todo a isso), atravessadas pelas emissões incessantes,
suscita mais a formação de vivências estéticas tais
como as que Bauman considera centrais na formação
das “comunidades estéticas”, marcadamente centradas
em práticas ou interferências oriundas do universo
mediático.
Na maior parte das vezes geradas a partir da
identificação a um ídolo ou celebridade (ainda que
relâmpago), o totem que reúne ao redor de si sua
comunidade, fala muito sobre o tipo de relação que a
comunidade estética pode oferecer:
Mediosfera | 143
sensorial”, situação essa que consideramos evidente no
uso crescente dos aparatos dos meios eletrônicos de
comunicação que, ao centrarem-se apenas nos sentidos
da visão e da audição, mantém o corpo a distância da
cena, recalcando os sentidos de proximidade (paladar,
tato, olfato) e as “inconveniências” de uma corporalidade
indomável. É nesse sentido que o momento atual não
pode ser entendido como um neopaganismo, como
uma reedição do paganismo massacrado pela História.
De fato, podemos considerar que a única
manifestação pagã mais concreta em nossa civilização
contemporânea são as sombras do paganismo. Se
há uma lição que definitivamente deveríamos ter
aprendido com a Psicologia é que o reprimido, quando
volta, volta de início sombrio. A sombra do reprimido é
quem volta primeiro.
Temos visto isso: todo o tipo de horror e grotesco
alçados ao valor da estética vigente, os valores do
projeto civilizatório (não a ética cristã) sobrepujados
pelo autoerotismo infantil da obsessão por “aproveitar
a vida”, ou, como propôs Mellman, “gozar a qualquer
preço”. Esse fenômeno vem como uma forma de horda
primitiva revisitada que busca as formas sintéticas de
êxtase (nas drogas, na droga do poder, no poder de
qualquer droga, no consumo), a qualquer preço, ávidas
por, após a experimentação ilimitada da qual se referiu
Baudrillard, desincorporarem-se nos cibercultos da
imagem eletrônica. Avatares sintéticos do mau gosto,
adorando um misticismo pobre de almanaque (do qual
o próprio filme Avatar, de Cameron, é um exemplo, a
despeito de todas as coisas boas que colegas puderam
– por mérito próprio, porque têm beleza nos próprios
olhos - ver nesse filme). Temos preguiça demais para
ressuscitar as tradições herméticas, os misticismos
originais, para mergulharmos fundo em matrizes
94
A palavra autoridade abriga em seu âmago a ideia de alguém que impôs a si
mesmo a passagem por ritos, os iniciados.
Mediosfera | 145
A ideia do holograma ultrapassa, quer o reducionismo que só vê
as partes, quer o holismo que só vê o todo... na lógica recursiva
sabe-se muito bem que o que se adquire como conhecimento das
partes regressa sobre o todo. O que se aprende sobre as qualidades
emergentes do todo que não existe sem organização, regressa sobre
as partes (Morin, 1990, p. 109).
Mediosfera | 147
real a ser investigada num futuro próximo, segundo os
cientistas que desse fenômeno se ocupam95. Enquanto
outras áreas se ocupam de pesquisas ousadas sobre
temas que até a poucos anos poderiam ser considerados
ficção científica, grande parte dos comunicólogos e
tecnólogos continuam encantados com as possibilidades
advindas das ferramentas oferecidas pela Microsoft ou
pela Apple.
Por sua vez, muitos psicólogos, psiquiatras
e etólogos têm proposto repetidamente a noção
de resiliência (oriunda da física) para tratar das
possibilidades humanas de regeneração em um mundo
crivado por guerras e desterro político e econômico.
B. Cyrulink é um dos nomes mais significativos nessa
área atualmente; neuropsiquiatra, dirige a Clínica do
Apego da Universidade de Toulon, na França, que
desenvolve uma enorme quantidade de pesquisas
relevantes sobre o tema. Alguns dos resultados das
pesquisas desenvolvidas pela Clínica são apresentados
por ele em vários de seus livros já traduzidos no Brasil,
e em praticamente todos ele ressalta o papel estratégico
de alguns elementos possibilitadores de resiliência.
Entre eles estão a narratividade e a reconstrução da
memória como elementos que possibilitam atribuir
novos sentidos ou transformar os sentidos anteriores
de uma experiência traumática. Reiteradamente, ele
apresenta a importância de tutores de resiliência,
que seriam pessoas ou instâncias que partilham a
experiência da resignificação implicada na resiliência.
Essas experiências todas apresentadas por ele têm em
comum a centralidade dos processos comunicativos,
95
Segundo Goswami (2008a, p. 50), especialmente reveladora tem sido
a pesquisa realizada por Jacobo Grinberg-Zylberbaum, neurofisiologista
da Universidade do México, acerca dos fenômenos de não-localidade nos
cérebros humanos.
Mediosfera | 149
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Mediosfera | 151
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Editora Imaginalis
Vol. 1 da Série Hermas
Porto Alegre
Junho 2017
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