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Aspectos

da teoria do cotidiano:
Agnes Heller
em perspectiva
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

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Marisa S. Z. Mendiondo
Michele Ruschel
Ruthe Corrêa da Costa Schnorr
Zélia Maria Ferrazzo Farenzena

Aspectos
da teoria do cotidiano:
Agnes Heller
em perspectiva
---------··---------

~ EDIPUCRS

Porto Alegre, 2002


© EDIPUCRS, 2002

Capa: Clarissa Furlan Zabka

Preparação de originais: Eurico Saldanha de Lemos

Revisão: dos Autores

Editoração e composição: Suliani Editografia

Impressão e acabamento: Gráfica EPECÊ

Dados Internacionais de Catalogação na Publ icação (CIP)

H477 Aspectos da teoria do cotidiano: Agnes Heller em perspec-


tiva I Gleny Terezinha Duro Guimarães, org.; Idília
Fern andes ... [et al.].- Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
147 p.

ISBN 85-7430-316-X

1. Filosofia Húngara. 2. Heller, Agnes - Crítica e Interpre-


tação. 3. Cotidiano - Aspectos Sociais. I. Guimarães, Gleny
Terezinha Duro. II. Femandes, Idília.

CDD 199.439
301.2

Ficha Catalogrática elaborada pelo


Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS

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Apresentação
Jayme Paviani

----------···----------

A constituição de uma área de conhecimento, especialmente de


uma área relativamente nova como a do Serviço Social ou da Assis-
tência Social, requer uma adequada definição de domínio teórico e
metodológico. Uma teoria científica, no sentido formal, é um con-
junto de enunciados logicamente coerentes a respeito de um deter-
minado objeto; sob o aspecto material, as teorias podem ser classi-
ficadas de diferentes modos, podem ser macro ou micro teorias.
Microteorias são aquelas que pertencem a uma disciplina e, em ge-
ral, só funcionam nos limites de suas possibilidades. Macroteorias
são por natureza transdisciplinares. Áreas de conhecimento que tra-
dicionalmente provêm de conhecimentos de áreas consolidadas co-
mo a economia, a sociologia, a psicologia, a pedagogia, a filosofia e
outras, requerem, ao mesmo tempo, o estudo de macro e micro teorias.
A presente obra organizada pela professora Dra. Gleny Terezi-
nha Duro Guimarães, Aspectos da teoria do cotidiano: Agnes Hei-
ler em perspectiva, põe-nos diante de uma macroteoria e, por isso,
de grande relevância para o avanço dos conhecimentos científicos
na área do Serviço Social. É uma teoria que pode apontar proble-
mas e soluções que, por sua vez, poderão exigir a elaboração de ou-
tras teorias, ainda mais específicas, para dar conta das exigências da
área. Uma teoria é uma especulação racional que possibilita a for-
mulação de hipóteses ou conjecturas objetivas e adequadas e,
igualmente, possibilita métodos de investigação eficazes e coerentes.
Os dois artigos miciais da organizadora da obra, professora
Gleny Guimarães, definem com clareza o conceito de cotidiano que
é a palavra-chave de todo o livro e apresentam o contexto do pen-
samento de Agnes Heller ao investigar os conceitos do O não-
cotidiano do cotidiano e o Cotidiano e cotidianidade: limite tênue
entre os reflexos da teoria e senso comum. Os demais capítulos re-
digidos por Idília Fernandes, Marina Patrício de Arruda, Marisa S.
Z. de Mendiondo, Michele Ruschel, Ruthe Corrêa da Costa Schnorr
e Zélia Maria Ferrazzo Farenzena desenvolvem aspectos específi-
cos da teoria da cotidianidade, assim, oferecendo uma contribuição
indispensável para quem se dedica a essa área de estudos e de atua-
ção profissional.
Um dado notável dessa obra coletiva é o fato dos estudos e dos
ensaios que formam seus capítulos terem sido desenvolvidos a par-
tir de uma disciplina ministrada no Programa de Pós-graduação em
Serviço Social, da PUCRS, enfocando a teoria do cotidiano da vas-
ta obra de Agnes Heller. Se todas as disciplinas de nossos cursos de
pós-graduação produzissem uma obra assim, haveria uma maior so-
cialização dos conhecimentos científicos. Essa indicação mostra ao
mesmo tempo a natureza e o alcance dos estudos. Programas de en-
sino que integram o ensino e a pesquisa, que refletem sobre o que
está sendo estudado, realizam efetivamente a aprendizagem. Quan-
do se pode pensar e usar o que está sendo aprendido, as informa-
ções são transformadas em conhecimento real.
Se a vida cotidiana, como diz Agnes Heller, constitui a vida do
homem inteiro, envolvendo todos os aspectos de sua individualida-
de e de sua personalidade, espera-se que esses estudos, e a atividade
de suas autoras, sejam também compreendidos e avaliados como
uma reflexão sobre a própria cotidianidade da investigação científi-
ca. Por isso, só posso saudar mais essa contribuição na área dos es-
tudos do Serviço Social. Fazer ciência é um processo permanente.
Não importa se os conhecimentos ainda não amadureceram o sufi-
ciente, o decisivo é continuar a investigação, a busca do aprofun-
damento dos temas, o rigor teórico e metodológico. Instaurado o
processo é preciso mantê-lo vivo, sob a vigilância da crítica e os
cuidados da reflexão.
Sumário

--------~··---------

Introdução 9
1 O não-cotidiano do cotidiano 11
Gleny Terezinha Duro Guimarães
2 Cotidiano e cotidianidade:
limite tênue entre os reflexos da teoria e senso comum 27
Gleny Terezinha Duro Guimarães
3 A dialética dos grupos e das relações cotidianas 37
Idília Fernandes
4 O papel social do professor universitário 61
Marina Patrício de Arruda
5 Institucionalização do idoso:
observância ou transgressão de sistemas normativos? 83
Marisa S. Z. de Mendiondo
6 Aproximando-se de Agnes Heller:
interpretando sentimentos e afetividade 101
Michele Ruschel
7 A questão cotidiana do trabalho e suas interfaces
com a terceira idade 109
Ruthe Corrêa da Costa Schnorr
8 A construção de preconceitos na diversidade humana 139
Zélia Maria Ferrazzo Farenzena
Introdução

----------·----------
Üs artigos apresentados a seguir, foram desenvolvidos a partir da
disciplina "A Categoria do Cotidiano em Agnes Heller", ministrado
no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, para mestrandos
e doutorandos. Esta disciplina vem sendo desenvolvida desde 1997.
Para todos os alunos era a primeira vez que entravam em conta-
to com a vasta literatura desta autora fascinante e como seus textos
não são simples e pressupõem conhecimentos teóricos a priori de
filosofia, um embasamento que a maioria dos alunos, formados em
Serviço Social, não possuem o aprofundamento necessário nesta
área de formação.
O primeiro desafio era pensar em elaborar um artigo, o que por
si só já contém um grau de dificuldade, pois para muitos era a pri-
meira vez que se dispunham a escrever. Neste momento contamos
com a valiosa colaboração da Professora Drª Solange Medina, da
Faculdade de Letras e atual Pró-Reitora de Graduação da PUCRS,
que nos ministrou excelentes aulas de como se elabora um artigo.
O objetivo dos artigos era realizar uma articulação entre um dos
temas da teoria de Agnes Heller com a temática estudada pelo alu-
no, demonstrando ser possível compreender um conteúdo a partir
da teoria helleriana.
Outra grande contribuição foi a do Prof. Dr. Juan Mosquera que
também participou de alguns debates sobre o tema, trazendo uma
interessante compreensão sobre a teoria dos sentimentos em Agnes
Heller.

Introdução 9
Ao introduzir a disciplina no programa, obtivemos também
como resultado várias produções teóricas, tanto as dissertações de
mestrado como as teses do doutorado, começaram a utilizar pressu-
postos teóricos da teoria de Heller. A maioria dos alunos que escre-
vem esses artigos também a utilizaram em suas produções acadêmicas.
Apesar de Heller desenvolver várias temáticas como a pós-
modernidade, a teoria dos sentimentos, a questão do valor, etc., a
temática central neste livro recai sobre a teoria do cotidiano. Sabe-
se que é característico desta autora, tratar seus temas de forma inte-
grada; geralmente sua produção não aborda apenas um dos temas,
mas ele se relaciona com todos os demais. Talvez por isso, alguns
iniciantes considerem sua leitura difícil, pois também é uma de suas
características não ficar conceituando o que está dizendo, ela pres-
supõe que seu leitor já tenha um certo conhecimento sobre a temáti-
ca. Ela desenvolve suas idéias, fazendo comentários e críticas a ou-
tros posicionamentos, para depois apresentar o seu. Um aluno desa-
visado, pode pensar que ela disse alguma coisa, quando na verdade
ela está construindo argumentos suficientes para contestar uma de-
terminada posição. Portanto, a leitura de suas obras merece cuidado
e análise. Não é possível devorar seus livros, pois eles são digeridos
lentamente em função do grau de complexidade e relações feitas,
tanto no que diz respeito ao conteúdo, como autores, posições, his-
tória, etc. Cada vez que se relê uma obra, mais coisas se apreende e
se "enxerga" o que antes tinha passado despercebido, pois temos
que considerar o próprio amadurecimento intelectual dos leitores
que passam cada vez mais a fazer novas relações, portanto novas
análises e interpretações.
O fato de tentarmos traduzir suas idéias para um âmbito único e
traduzir seus conceitos, vai contra a própria produção da autora. No
entanto, fazemos isso com uma preocupação didática para facilitar a
leitura dos novos leitores, não queremos que a conseqüência disso
seja um "engessamento" da teoria da autora, mas apenas um
estímulo para que o leitor vá à fonte, entenda com maior facilidade
e compreenda as contribuições da genialidade desta autora.
Esperamos que o conjunto destes artigos sirva de estímulo aos
futuros iniciados, leitores hellerianos, para que possam aprofundar
cada vez mais seus estudos a partir dessa brilhante teórica contem-
porânea.

1O Aspectos da teoria do cotidiano


1

O não-cotidiano do cotidiano
Gleny Terezinha Duro Guimarães*

----------·----------
A teoria da cotidianidade procura trazer novos elementos para se
pensar o próprio cotidiano e que permite ir além das formas de pen-
samento do senso comum. Pois o próprio nome sugere que o coti-
diano, palavra que vem do latim cotidie ou cotidianus, significa to-
dos os dias, o diário, o dia-a-dia, o comum, o habitual.
Faremos uma diferença para nossos interlocutores: quando nos
referimos ao cotidiano, estamos falando sob o prisma da represen-
tação social do dia-a-dia, ou seja, falar em cotidiano num primeiro
momento nos leva a pensar diretamente em ações que dizem respei-
to a nossas rotinas, a tudo que se realiza empiricamente, repetida-
mente, é o viver o dia-a-dia de uma forma quase que banal.
No entanto, pensar o cotidiano de um prisma teórico implica
descobrir o incomum no repetido. É descobrir que a essência do co-
tidiano está no não-cotidiano ou na cotidianidade.
Quando nos referimos à cotidianidade estamos pressupondo
uma teoria que evoca uma série de elementos que a comparam,
cujos conceitos baseiam-se principalmente na fi losofia. Neste senti-
do temos a contribuição de vários autores. 1

Prof" Drª em Serviço Social da PUCRS.


1
Vários autores, desde o início do século passado, têm teorizado sobre o cotidiano.
Numa perspectiva fenomenológica encontramos Mafesoli como representante. Na
teoria do materialismo histórico encontramos os autores Lefebvre, Marcuse, Kosik,

O não-cotidiano do cotidiano 11
Para Heller a vida cotidiana é a constituição e reprodução do
próprio indivíduo e conseqüentemente da própria sociedade, através
das objetivações. O processo de objetivação se caracteriza por essa
reprodução, que não ocorre do nada para se efetivar, ela pressupõe
uma ação do homem sob o objeto, transformando-o para seu uso e
benefício. Assim tudo pode ser objetivado, pois tudo está em cons-
tante mutação, em todas as dimensões da vida. Por ex., a árvore é
transformada em papel; o leite se transforma em bolo; o tijolo se
transforma em casa; o recém-nascido balbucia e se transforma na
criança que domina a linguagem mãe. Portanto tudo o que se realiza
é objetivação. Porém estas objetivações não ocorrem no mesmo ní-
vel.
Chama-se de objetivações em si aquilo que constitui a coisa por
si mesma, ou seja, ela é aquilo porque não é outra coisa. Ex .: a me-
sa é mesa porque temos uma representação do que ela significa,
tanto em nossa linguagem, quanto em nossa cultura, que lhe dá um
determinado uso social. E sabemos que mesa não é armário, assim
como não é todas as outras coisas. Logo, a mesa possui uma consti-
tuição em si que a faz ser mesa independente de seus atributos co-
mo forma, cor, textura, volume, densidade, etc.
A objetivação em si é que está presente no cotidiano do senso
comum e é a que cria as condições para vivermos em determinada
sociedade com seus costumes, ritos, etc. Adquirir e dominar a lin-
guagem materna é uma objetivação em si, portanto tudo aquilo que
nos rodeia e que é transformado para nosso uso é uma objetivação.
Se pensarmos uma cultura como a dos índios, que utilizam a
palha seca para construir o barco, os cestos, o invólucro para arma-
zenar as comidas, suas casas, etc., percebemos o processo de obje-
tivação quando ocorrer a transformação da palha em outros objetos,
cuja ação só é possível, porque é realizada pelo homem. Temos aí
uma objetivação em si.
A objetivação em si é "indispensável a todo homem enquanto
processo formativo em si mesmo, constante e permanente, de que o
homem necessita apropriar-se como condição básica para a vida na
sociedade e na época em que vive" (Guimarães, 2000, p. 29).

Luckács e Heller. Um estudo mais detalhado sobre esses autores encontra-se no


próximo artigo "Cotidiano e cotidianidade: limi te tênue entre o senso comum".

12 Aspectos da teoria do cotidiano


Para Heller, as objetivações em si, compreendem basicamente a
apropriação dos instrumentos e produtos, costumes e linguagem. Os
instrumentos e produtos são tudo aquilo que está à nossa disposição
na sociedade; por exemplo, a colher, o microcomputador, o café, o
arroz, etc. Os costumes dizem respeito àquilo que é apropriado para
a sociedade em que se vive, como tomar chimarrão, tomar banho
diariamente, dar três beijos no rosto para cumprimentar, etc. E sem
a linguagem não é possível a comunicação; portanto, dominá-la é
uma questão de sobrevivência.
Essas objetivações em si proporcionam "sucesso" na vida coti-
diana, ou seja, as pessoas conseguem sobreviver em sua sociedade.
Por exemplo, se um esquimó chegasse hoje em nossa cidade, pro-
vavelmente teria muita dificuldade em se comunicar, comprar ali-
mento, sacar dinheiro no banco, tomar chimarrão. Portanto, se me
aproprio de algo, sou capaz de lidar com isso e conseqüentemente
terei sucesso em seu uso.
Explicando melhor: o conjunto das atividades que permitem a
reprodução do indivíduo podem ser chamadas como as característi-
cas da vida cotidiana, porque dizem respeito às particularidades
humana. Estas características expressam a forma como os indiví-
duos pensam, agem e se relacionam na sociedade, assim classifica-
das: heterogeneidade, hierarquia, repetição, economicismo, espon-
taneísmo, probabilística, entonação, precedente, imitação, pragma-
tismo, analogia, juízos provisórios como preconceito e ultragenera-
lização.
A heterogeneidade se caracteriza por sermos todos diferentes;
não há pessoas iguais, é a alteridade a partir do singular.
O cotidiano se baseia numa escala de valores que lhe dão uma
hierarquia, pois não podemos fazer tudo ao mesmo tempo, nem es-
colhermos tudo. É necessário, selecionar e as escolhas acabam por
determinar uma hierarquia de valores e por conseqüência de ações.
A repetição está presente em dois níveis, tanto no particular,
escovamos os dentes todos os dias e várias vezes ao dia; seu proce-
dimento se caracteriza por uma repetição de movimentos já treina-
dos e assimilados, a ponto de podermos realizá-lo mesmo "esque-
cendo", isto é, sem concentração e sem estar pensando nele. É aqui-
lo que fazemos ao trancar uma porta sem pensar; depois de algum

O não-cotidiano do cotidiano 13
tempo temos que voltar e verificar se realmente fechamos a porta
ou desligamos o ferro. A ação estava ligada ao ato repetitivo, no
"automático".
O economicismo, permite que sejamos mais rápidos e breves no
decorrer da vida cotidiana, como, por exemplo, para obter alimen-
tos, não preciso plantar, esperar crescer, colher, vou direto ao su-
permercado e compro o que desejo. Portanto, o tempo e o esforço
dispensados a uma atividade é bem menor, porque, a cada inovação
facilita o uso prático na sociedade. Cada vez mais em que a tecno-
logia se aprimora, mais o uso das coisas se tornam facilitadas e
economizam tempo, estrutura, pois cada vez, não reinvento a roda,
utilizo direto o último conhecimento aplicado a ela e me aproprio
do seu uso. Aquilo que pode ter levado anos para ser descoberto,
depois que está em uso na sociedade, basta alguns minutos para uti-
lizá-lo.
O espontaneísmo que está presente no comportamento do coti-
diano, diz respeito às ações não planejadas; elas se caracterizam pe-
lo seu espontaneísmo e em decorrência daquele momento específi-
co que está sendo vivido, sem considerar as conseqüências futuras.
A opção é imediata, a vontade é satisfeita no ato, o comportamento
é natural e espontâneo em oposição ao racional ao planejado, ao
preventivo. Na linguagem popular "se faz e depois se vê o que
acontece", "o que vale é o aqui e o agora" e em função disso os
comportamentos são definidos e as ações são gerenciadas.
A probabilidade é o que caracteriza a ação e o pensamento em-
pírico, ou seja, para realizar uma ação não o faço através da física e
da matemática, calculando o tempo, a distância, etc., simplesmente
se faz. Por exemplo, para subir uma escada, ninguém pára e calcula
o tamanho, o ângulo, as medidas para poder subir, simplesmente se
sobe a escada, e se no meio tiver um degrau com distância menor e
não for visto, a pessoa tropeça. O mesmo sucede quando se atraves-
sa a rua, empiricamente se percebe se dá ou não para atravessar,
embora se saiba dos riscos de acerto e erro. Se estiver certo, atra-
vessa, se errado, é atropelado. Mas ninguém calcula a distância, a
velocidade, etc. Portanto, a probabilidade é a possibilidade de uma
ação empírica dar certo ou errado e geralmente o sucesso é alcança-
do e esse ato passa a ser sempre repetido, isto é, posso passar a vida

14 Aspectos da teoria do cotidiano


toda executando ações sem nunca ter feito um cálculo sequer, e
sempre ter êxito, até que um dia, um dos mesmos sentidos já não
tão alerta, erra na escolha da possibilidade ...
A entonação é aquele jeitinho dado por cada um, é o tom dei-
xado pela pessoa, ou melhor, é a marca da pessoa. Às vezes a gente
diz: "isso só podia ser coisa do fulano", porque está impregnado de
sua entonação que somente ele poderia dar. Assim, as pessoas po-
dem fazer as mesmas coisas, podem até imitar, clonar, dublar, mas
não será a mesma coisa, pois tem a marca registrada de quem o fez,
e que somente poderia ter sido feito daquela maneira por aquela
pessoa. É a irrepetibilidade da singularidade de cada um. Assim
como todo mundo conhece o "jeitinho brasileiro", que o faz dife-
rente das outras nacionalidades. Isso é entonação e que faz parte da
própria constituição da identidade, seja de um povo, como de uma
pessoa. A entonação não permite que ninguém seja substituído, po-
de ocupar o mesmo lugar ou função ou espaço, mas jamais será
igual, pois cada um é caracterizado por sua única entonação, sua
marca registrada. Assim, todos têm polegar, porém a entonação do
polegar são as digitais, ninguém consegue ter as mesmas curvas e
características. A entonação marca a diferença em nosso corpo físi-
co, biológico, psicológico e mental. Eis o paradoxo: somos uma es-
pécie de iguais, no entanto, totalmente diferente uns dos outros.
Precedente significa uma ação que já é precedida de outras, que
já aconteceram anteriormente. É uma característica que se opõe ao
novo, a criação e por isso que, quem fica preso aos precedentes, ao
já estabelecido, tem muita dificuldade de criar, soltar a imaginação,
pois vale mais colocar tudo dentro dos quadrados. Podemos dizer
que a nossa justiça geralmente baseia-se nos precedentes, nos já
acontecidos e que tornam a ser reproduzidos. No geral, qualquer
procedimento de rotina, seja a de um dentista ou a de um vendedor
ambulante acontece sempre da mesma forma, precede um compor-
tamento de sempre fazer uma obturação do mesmo jeito ou de con-
vencer o cliente a comprar da mesma maneira. Se todo o dia re-
criássemos uma técnica diferente de ação, certamente o precedente
continuaria existindo, porque, não se cria do nada, até mesmo a
criação são novas combinações de velhos precedentes. Porém, o pe-
rigo e a tendência geral do precedente é a acomodação e a perma-

O não-cotidiano do cotidiano 15
nência da mesmice. Tudo aquilo que se sabe fazer, é feito do mes-
mo modo. Até o trajeto de carro que realizamos, tem a tendência a
ser o mesmo de sempre, depois que se cristalizou o precedente des-
te trajeto. No senso comum este precedente é traduzido quando as
pessoas dizem "se deixar, o carro vai sozinho para casa".
A imitação pode ser considerada como a primeira ação do coti-
diano, pois antes de os sujeitos terem consciência, obedecerem a
regras e normas, etc., existe o comportamento que se constitui por
imitações e que se faz presente a partir dos primeiros anos de vida
das pessoas. "A imitação ou mimese, nos termos hellerianos, se
constitui no primeiro momento de assimilação das relações sociais"
(Guimarães, 2000, p. 57). A imitação constitui-se numa objetivação
em si, porque, a partir da imitação de um comportamento ou pen-
samento, passo a me apropriar de algo ou de alguma coisa. Esta ca-
racterística pode permanecer presente durante toda a vida das pes-
soas, pois é um comportamento, que muitas vezes é reforçado so-
cialmente. Um exemplo concreto é a moda, quando todos passam a
se vestir e calçar igual; também a imitação de comportamento de
grupos como os tatuados ou os que só vestem preto, e assim por di-
ante. Esta característica traz aos sujeitos uma sensação de pertenci-
menta e aceitação daqueles grupos com os quais ele se relaciona ou
os imita. O sistema capitalista, possui uma particularidade em rela-
ção a esta característica, pois ele a incentiva através do consumo, e
todos passam a consumir a mesma coisa, se não conseguem, sen-
tem-se excluídos. Esta característica pode ser banal e ingênua (imi-
tar uma criança chupando bico) como pode se tornar perigosa (basta
lembrarmos dos seguidores de Hitler, ou daqueles que assistem a
um filme, o imitam nas ações matando vários na escola) e ela se
torna mais perigosa, quando praticada em grupo, pois a tendência é
imitar o que o outro do grupo faz, e como faço parte do grupo, tam-
bém o imito (basta lembrar o grupo de homens que colocou fogo no
corpo de um índio que dormia na rua).
O pragmatismo é aquela ação baseada num pensamento essen-
cialmente prático, empírico, que não necessita de teorias que expli-
quem, pois a prática diária confirma que aquilo é o verdadeiro. É o
que normalmente chamamos de ação pela ação, não existe raciona-
lidade. É também aquilo que caracteriza a dicotomia entre ação e

16 Aspectos da teoria do cotidiano


discurso, pois pratica uma coisa, mas se tiver que explicar cientifi-
camente, pode significar outra coisa. Ou seja, é a ação baseada na
prática e que permite sucesso em sua vida diária. Nesta característi-
ca existe uma tendência à não-reflexão ou críticas dos atos, pois se
a prática confirma o sucesso, é porque é considerado cotTeto e por-
tanto uma prática que se reproduz permanentemente.
A analogia é uma característica que se manifesta para manter a
repetição de um mesmo procedimento. Por ex., se resolvi uma si-
tuação a partir de uma atitude, tentarei resolver as demais situações
que aparecem com o mesmo comportamento. Neste sentido, a ana-
logia se relaciona com os juízos provisórios, pois ao não considerar
uma crítica da ação, pode manter um padrão de comportamento
preestabelecido e preconceituoso. É a utilização de um saber popu-
lar para resolver qualquer situação enfrentada, uma vez que esta te-
nha dado certo ou signifique sucesso nos resultados almejados.
Os juízos provisórios são assim considerados porque não pos-
suem nenhuma teoria que os sustentem, ou seja, são pensamentos
empíricos baseados na experiência cotidiana e social das pessoas,
sendo que a prática os confirma como verdadeiros.
A base desses juízos é o senso comum, é um pensamento cotTi-
queiro que não é "conhecedor de causa", geralmente ele se confir-
ma porque os outros acreditam e assim também passa a ser acredi-
tado. Ele é determinado pelas experiências diárias, pela convivência
com grupos que compartilham de um mesmo juízo provisório.
Segundo Heller os juízos provisórios podem ser de dois tipos:
os juízos ultrageneralizadores e os preconceitos. A característica
básica que os diferencia é que o primeiro está baseado na confiança
e o preconceito na fé. A fé se caracteriza por sua inabalável consis-
tência, ou seja, não existe argumento que os faça mudar de posição,
é um acreditar cego que nem sempre tem justificativa ou razão.
Acredito porque acredito. Baseia-se na certeza absoluta de que
aquilo em que acredita é o certo e os demais devem também fazê-
lo. Um exemplo típico são os crentes que acreditam de olhos fecha-
dos que eles detêm o caminho da salvação. É também uma certeza
intuitiva que não requer explicações. A fé também se baseia nos
sentimentos de amor e ódio, sendo identificado aquilo que é verda-
deiro eu amo, aquilo que eu não compartilho, eu odeio.

O não-cotidiano do cotidiano 17
A ultrageneralização, além de se basear na confiança, o seu
significado engloba a todos. Pelo fato de que se fui roubado por um
menino de rua, vou achar que todos os meninos de rua são ladrões.
É uma justificativa baseada numa experiência própria, cujo concei-
to se generaliza para uma categoria, envolve também o sentimento
de confiança, pois nunca mais terei confiança nos meninos de rua.
Estas características acabam dando sucesso, porque as ações do
cotidiano são conseguidas. Todas as características se relacionam
entre si e acabam reproduzindo o indivíduo porque se realizam
através das objetivações em si, ou seja, o homem se reproduz a si
mesmo e em última instância, sua própria espécie.
Segundo Heller (1987), a reprodução da vida cotidiana, por ex-
celência deveria ser a família, como núcleo central e natural, ou se-
ja, a vida cotidiana é o lugar natural de reprodução das característi-
cas da particularidade da vida cotidiana, isso ainda é assegurado nas
características como imitação que envolve os primeiros anos de vi-
da.
Porém a autora nos mostra que, historicamente, através das
próprias conquistas da mulher (movimento feminista, revolução se-
xual) e todas as suas conquistas enquanto lei, a partir do surgimento
da sociedade civil (garantindo direitos como voto, emprego, divór-
cio, etc.) paradoxalmente acaba por "tirar" esta função social e afe-
tiva da própria família e sua reprodução da vida cotidiana.
Hoje, como as características da família mudaram radicalmente,
ou sej a, não se tem mais uma família constituída e patriarcal, onde
o marido manda, a esposa obedece e cria os filhos. A família está
assentada em novas bases e composições, algumas são constituídas
de apenas mulheres: é a mãe, a avó e os filhos; outras são compos-
tas por gerações distintas como avós e netos; como também um
agregado de várias famílias que aos novos casamentos vão se agru-
pando com outros filhos e parentes. Hoje, a maior parte do tempo
não é passado em família e sim para muitos na rua, ou no trabalho,
ou na escola, ou com os amigos. Enfim, as formas de reprodução da
vida cotidiana se tornaram de múltiplas fontes. Mas é fato que elas
continuam se reproduzindo e caracterizando as ações e pensamen-
tos que compõem a particularidade da vida cotidiana de cada um e
de todos.

18 Aspectos da teoria do cotidiano


"O fenômeno que se tem pela frente é o da dissolução da família. A
casa não é mais o lar, mas um albergue [... ].o progresso se fez acom-
panhar do casamento de curta duração [... ] vão se difundindo cada
vez mais as relações livres e temporárias [... ]. Até as responsabilida-
des desapareceram. As pessoas, enfim independentes, não as parti-
lham mais: um não é responsável pelo outro e nem pelos fi lhos [... ]
privam-se de sua importante função de reproduzir a vida cotidiana da
família" (Heller, 1987, p. 17 -19).

A superação do cotidiano
O extraordinário do cotidiano é superar o próprio cotidiano, em
outras palavras: "o extraordinário do cotidiano era a cotidianidade
finalmente revelada[ .. .]" (Lefebvre, 1968, p. 15).
Esse extraordinário inclui a dimensão da cotidianidade ou do
não-cotidiano, porque é um cotidiano que tem que extrapolar sua
particularidade, sua umbilicalidade, sua centralidade.
O não-cotidiano pressupõe relacionar-se com objetivações pa-
ra-si, que se direcionam ao humano genérico, à espécie humana. O
elemento que o faz pertencer à espécie é a consciência humana,
pois senão, o que o conduziria seria a "atividade vital animal".
A consciência por si só, não garante o processo de superação. A
consciência no âmbito da particularidade tem como objetivo a auto-
conservação da espécie, garantindo assim a reprodução da particu-
laridade. A consciência da genericidade desempenha uma função
bem diferente, que é colocar de forma consciente a ligação da parti-
cularidade com a genericidade.
Na perspectiva Helleriana (1991) algumas áreas cognitivas que,
por excelência, compreendem as objetivações genéricas para-si, são
a filosofia, as artes, a moral, a ciência. A filosofia baseia-se na críti-
ca da realidade, a arte baseia-se na estética, a moral na base da ação
do homem, a ciência baseia-se no conhecimento. Portanto nenhuma
dessas áreas se efetivam na redução do empírico e sim na consciên-
cia máxima dos atos do ser humano e na sua própria essência. "É
um contato consciente e intencional com a genericidade" (Guima-
rães, 2000, p. 30).
A arte é considerada uma dimensão do não-cotidiano, porque
através dela é possível liberar a criatividade e a imaginação, é pos-

O não-cotidiano do cotidiano 19
sível romper com regras e normas estabelecidas, ela representa a
fronteira sem limites, onde tudo é possível a todos, portanto, em
igualdade de condições. É uma dimensão que representa o rompi-
mento com o instituído, a ruptura com as amarras do cotidiano par-
ticular; é o grande "vôo" do homem.
Segundo Heller, esse processo não pode ser dimensionado a
partir da ótica da criação ao nível do particular, mas como conse-
qüência do processo histórico. Ela cita como exemplo, o rompimen-
to com a era do pré-moderno, pois "depois que a grande transfor-
mação terminou e o arranjo social moderno foi considerado natural,
a velocidade da inovação artística também diminuiu e a era da
grande produção artística terminou" (1999, p. 17).
É interessante observar que, para a autora esse tipo de comentá-
rio é possível, porque é uma "percepção pós-moderna" de como
analisamos e interpretamos os fatos ou como "o mundo registra este
estado de coisa". Dito em outras palavras, a pós-modernidade é a
forma como percebemos e concebemos a visão de modernidade e
pré-moderno.
A cotidianidade que consegue a supremacia através da arte, se
torna grandiosa.
"[ ... ] nossa vida cotidiana é realmente cinzenta, mesquinha, e então
inventamos um mito que fala de uma vida que não é mesquinha, que é
grandiosa e que, talvez, não tenha nunca existido. [... ] Esse romantis-
mo é invenção nossa. Só pode haver para ele um tipo de remédio: tor-
nar mais 'grandiosa' a própria vida tal como é, desenvolver as formas
da grandeza humana nas circunstâncias existentes, transformar a vida
prosaica em poesia. Só assim não teremos mais necessidades de mi-
tos" (Heller, 1982, p. 195).
A arte se opõe a uma vida cotidiana que acredita em mitos. A
vida cotidiana quando é "cinzenta e mesquinha" é que se tem ne-
cessidade da busca de mitos, etc.
Em relação à filosofia, ela pode ser uma das formas de supera-
ção do cotidiano porque uma das características da filosofia é "cri-
ticar a inessencialidade do ser".
"A filosofia é uma utopia racional que ordena o mundo segundo o cri-
tério de dever-ser do Bem e do Verdadeiro. Ela constitui o seu Bem e
Verdadeiro, o seu valor supremo, que tem por missão guiar o homem,

20 Aspectos da teoria do cotidiano


indicar-lhe como deve pensar, como deve agir, como deve viver. A
utopia da filosofia é uma utopia da racionalidade com relação ao va-
lor" (1983, p. 54).
"[ ... ]a função da filosofia como satisfação do carecimento de raciona-
lidade com relação ao valor, de uma racionalidade liberta de precon-
ceitos" (1983, p. 55).
É também função da arte acabar com os preconceitos; por isso
Heller diz que "em determinado tipo de recepção parcial - a recep-
ção iluminadora - a arte e a filosofia passam ser funcionalmente
equivalentes" (1983, p. 55).
A objetivação mediadora entre a em-si e para-si, constitui a ob-
jetivação para-nós.
O homem não pode viver sempre na esfera do não-cotidiano, ou
seja, não passará o tempo todo num processo de superação da sua
relação de indivíduo com as formas de atividade que lhe dão suces-
so e mobilidade na vida cotidiana. Somente um homem excepcio-
nal, um gênio, que se mantivesse sempre superando as experiências
da vida cotidiana é que estaria na esfera do não-cotidiano. Esta si-
tuação é muito rara e dos gênios que conhecemos através da histó-
ria, como Beethoven e outros, por certo também faziam a relação
com a particularidade.
Então, nosso desafio enquanto profissionais, é tentar atingir e
atuar na esfera da tensão. Muitos casos podemos citar, como de
uma senhora que é surda, cega e muda, mas mora sozinha, limpa
sua casa e pátio, cozinha, enfim, realiza tudo como se a falta dos
sentidos não lhe faltassem. Isso é exemplo de superação. Exemplo
de pessoas cegas e com outras deficiências que conseguem levar
uma vida normal, isto é, realizam tudo como se aquele limite físico
não existisse.
Um dos aspectos ressaltados por Heller, é de que sua proposta
está voltada para a liberdade, portanto se contrapõe a todas as for-
mas que levam a relações do tipo de escravidão. Exemplo do quan-
to somos escravos no cotidiano são muitos, por exemplo o depen-
dente químico, que se torna escravo do hábito; da mulher que sofre
violência em casa e é escrava da dependência econômica do mari-
do, etc.

O não-cotidiano do cotidiano 21
"Já que imagino a nova forma de vida como uma forma livre, não
consigo imaginar a possibilidade de que a construção dessa nova for-
ma de vida seja obra de homens que se tornam escravos de um hábi-
to" (1982, p. 189).
Portanto, o cotidiano ao nível da particularidade pode estar
amarrado a todo o tipo de dependência ou escravidão, de formas su-
tis que muitas vezes nem temos consciência delas, porém no âmbito
do não-cotidiano, estas amarras são rompidas, são inescrupulosa-
mente arrancadas, porque o que prevalece é a autonomia e a liber-
dade.
Segundo Heller, "devemos desenvolver formas de vida genera-
lizáveis" (1982, p. 190), em outras palavras significa diversidade no
que se faz.
Uma outra questão que atravessa a vida cotidiana são os movi-
mentos feministas, que deles Heller é a favor, desde que seus obje-
tivos de luta sejam pela igualdade entre homens e mulheres. Geral-
mente as mulheres que já conseguiram uma independência financei-
ra, uma carreira, não têm tanta necessidade de participar destes mo-
vimentos. Porém, aquelas mulheres que não tiveram acesso à cultu-
ra e à independência financeira, que as deixa escravas de seus mari-
dos, estas têm maior necessidade de participar destes movimentos
feministas e constituí-los; pois "na maioria dos casos, as mulheres
instintivamente se calam quando os homens falam, aceitando assim
o papel predominante deles, [... ] e que, no fundo, aceitaram por
muito tempo o silêncio e, por causa disso não são capazes de se ex-
pressar" (1982, p. 196).
A dimensão do não-cotidiano, passa por elemento essencial que
é a moral nas ações. Porém não podemos entender o que Heller diz
se pensarmos a partir de pressupostos de moralidade ou de classifi-
cações naquilo que é moral ou não. Esses pressupostos do senso
comum, não servem para se compreender a teoria helleriana. Por-
tanto é necessário suspender esta concepção e estar aberto para en-
tender que a moral é uma dimensão da ação que irá fazer a media-
ção entre o cotidiano e o não-cotidiano.
É a esfera que mantém a tensão permanente entre estes dois
elementos do senso comum e da superação. O objetivo não é a pie-

22 Aspectos da teoria do cotid iano


nitude e sim a manutenção nesta faixa de tensão entre o genérico e
o particular.
A moral pressupõe valores que se baseiam na consciência tanto
ética quanto social e que acabam por definir toda ação e comporta-
mento. Ou seja, a moral subjaz toda ação. Porém a grande diferença
está em esta ação ser ou não do cotidiano particular. Para que ela se
caracterize pela não-cotidianidade é necessário que a ação tenha um
conteúdo moral.
Segundo Heller (1991 , p. 133-138), existem quatro fatores que
caracterizariam o conteúdo moral das ações, a saber: a elevação das
motivações particulares, que se definiriam por uma opção ao que se
refere à genericidade em oposição a sua particularidade; a escolha
de fins e conteúdos, voltados à genericidade, ou seja, os fins e con-
teúdos da ação não devem ser definidos pelo interesse do eu parti-
cular; a constância na elevação às determinadas exigências, isso
significa que, buscar a superação dos interesses da particularidade
deve ser uma opção constante e busca consciente, não deve ser um
impulso de momento e a finalmente a capacidade de aplicar estas
exigências em todas as situações de vida, ou seja, é uma busca
consciente desta elevação que deve ter aplicabilidade nas situações
concretas da vida, não é uma dimensão puramente etérea ou abstra-
ta, ela deve se materializar no próprio cotidiano.
A teoria da cotidianidade está esquematizada na Figura 1.

O não-cotidiano do cotidiano 23
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8V> Sucesso na vida cotidiana
(1)
Referências bibliográficas
GUIMARÃES, Gleny T. D. Historiografia da cotidianidade: nos labirintos do
discurso. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
HELLER, A. Uma crise global da civilização: os desafios fut uros. In: - - - et ai.
A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o século XXI. Rio
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- - - . Sociología de la vida cotidiana. Barcelona:Península, 1991.
- - - . A filosofia radical. São Paulo: Brasiliense, 1983 .
- - - . Para mudar a vida. São Paulo: Brasiliense, 1982.
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LEFEBVRE, H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo : Ática, 1968.

O não-cotidiano do cotidiano 25
2

Cotidiano e cotidianidade:
limite tênue entre os reflexos da teoria
e senso comum

Gleny Terezinha Duro Guimarães*

----------···----------

Ü objetivo deste artigo é compreender a gênese da discussão so-


bre o tema do cotidiano, pois, vários autores já contribuíram com
este debate. O importante é identificar suas concepções e diferen-
ças, podendo desta forma se perceber no que se identificam ou dife-
renciam da contribuição de Agnes Heller.
Foram escolhidos textos de autores que tradicionalmente são
considerados da corrente marxista. A análise realizada, diz respeito
exclusivamente ao que se referem à teoria do cotidiano, portanto
não estamos nos propondo a uma análise de toda a obra desses au-
tores. Os textos são: Lefebvre (1968), A vida cotidiana no mundo
moderno; Kosic (1963), Dialética do concreto; Lukács (1966), Es-
tética.
A discussão sobre o cotidiano não se inicia com a sistematiza-
ção que reconhecidamente lhe é dada por Lefebvre, na década de
40, também não se restringe a autores marxistas ou neomarxistas. O
tema também está presente em outras perspectivas como a fenome-
nológica e socioantropológica. Muitos autores, em suas produções,
nas artes, na literatura, no cinema, entre outros, foram inspirados

• Prof" Drª em Serviço Social da PUCRS.

Cotidiano e cotidianidade 27
para retratar, relatar e dimensionar aspectos da vida cotidiana, desde
a ação mais concreta até as mais abstratas e sentimentais. O cotidia-
no configura-se como a fonte primeira da criação e da inspiração
dos mais diversos autores e artistas.
Lefebvre ao teorizar sobre o cotidiano no mundo moderno,
busca demonstrar através de personagens de destaque da literatura
alguns aspectos que marcaram cenários distintos da vida cotidiana.
Ulisses, personagem de Homero na obra "Odisséia", retrata a vida
cotidiana da Grécia Antiga entre o século 8 e 7 aC. Mesmo assim, a
cotidianidade acaba sendo negada, porque Ulisses aparece como
herói, como mito, como a transfiguração do homem em sobre-
humano, como o "antípoda da nanação que articula figuras estereo-
tipadas" (Lefebvre, 1968, p. 7).
Um parâmetro comparativo utilizado é a narrativa de Joyce,
uma obra da literatura da modernidade, em que o autor procura en-
tender o homem a partir da história do início do século XX. Estes
personagens, embora anos os distanciem, possuem um aspecto em
comum, que é a revelação do cotidiano de uma forma mítica, de um
imaginário que encobre e revela a riqueza escondida do cotidiano
ou de um mundo real, duro e empírico, relatado pela escrita metafó-
rica. Joyce e Ulisses retratam o expoente, o incomum que traduz o
próprio comum da vida cotidiana, sendo assim, o cotidiano em si é
tão banalizado que se torna, ao mesmo tempo, insignificante. Sendo
o cotidiano a fonte primeira de tudo, torna-se significante, na medi-
da em que traz à tona sua própria insignificância.
O contínuo vir-a-ser heraclitiano, entre objetividade e subjeti-
vidade, já traduzia os movimentos cíclicos, inepetíveis e alienares,
que caracterizam a cotidianidade.
"O conceito de cotidianidade provém da filosofia e não pode ser
compreendida sem ela. Ele designa o não-filosófico para e pela filo-
sofia [... ]. O conceito de cotidianidade não vem do cotidiano nem o
reflete: ele exprime antes de tudo a transformação do cotidiano vista
como possível em nome da filosofia. Também não provém da filoso-
fia isolada; ele nasce da filosofia que reflete a não-filosofia, o que é
sem dúvida o arremate supremo da sua própria superação!" (Lefeb-
vre, 1968, p. 19).

28 Aspectos da teoria do cotidiano


Na perspectiva lefebvriana, o único meio possível de se analisar
o cotidiano, de desvelar a sua essência ou desnudar a sua decadên-
cia é através da filosofia. O autor chama a atenção para alguns as-
pectos: a filosofia por si só, deslocada do cotidiano, como um pa-
tamar superior passível de análise, torna-se uma filosofia alienada.
Ao mesmo tempo, se o cotidiano ficar isolado em si mesmo, se
apresentando como não-filosófico, caracteriza-se como cotidiano
alienado.
O desafio posto para que não haja a bipolaridade pendular entre
cotidiano e filosofia é "gerar" a fusão circular entre ambos. É pen-
sar o cotidiano a partir da reflexão filosófica mostrando a dualida-
de, riqueza e miséria do mesmo.
Lefebvre, numa crítica ao sistema capitalista, observa que a vi-
da cotidiana da modernidade, em seus diversos "tentáculos", domi-
na através da tirania da moda, do consumo, da opressão sexual, da
publicidade, etc. Apresenta como saída a "revolução cultural per-
manente" onde a função da filosofia é definir uma revolução teórica
desencadeadora de uma revolução cultural em vários segmentos: a
revolução sexual, a revolução urbana e a revolução da dominação
do cotidiano.
Na metafísica da vida cotidiana, para Kosik, o elemento pri-
mordial da economia é adie Sorge- a "preocupação com". A preo-
cupação, neste contexto, seria o elemento que perpassa todas as re-
lações objetivas e subjetivas da vida cotidiana e que dão mobilidade
e êxito às ações diárias.
A ocupação e a preocupação estão presentes em todas as ins-
tâncias da vida diária e, na visão kosikiana, isso expressa a
"práxis das operações diárias, em que o homem é empregado no sis-
tema das 'coisas' já prontas, isto é, dos aparelhos, sistema em que o
próprio homem se torna objeto de manipulação. A práxis da manipu-
lação transforma os homens em manipuladores e objetos de manipu-
lação" (Kosik, 1963, p. 64).
Na vida cotidiana, o fato de o homem ter êxito nas operações
diárias, seja através dos hábitos, das ações repetitivas, da realização
de alguma(s) atividade(s), traduz apenas uma forma de manipulação
do "ethos" do sistema, como da reprodução da própria manipula-
ção, o que ele chamaria de uma "práxis no seu aspecto fenomênico

Cotidiano e cotidianidade 29
alienado", isto é, uma forma utilitarista de fazer uma determinada
apropriação da realidade.
A práxis utilitarista, segundo o autor, consiste nas ações que
permitem mobilidade ao homem no sistema de códigos e usos his-
toricamente estabelecidos em determinada época e local. Essas
ações são direcionadas por um conjunto de representações ou cate-
gorias do senso comum e proporcionam uma mobilidade utilitarista
dos aspectos fenomênicos da realidade. Ou seja, práxis utilitária e
senso comum orientariam as ações repetitivas, automatizadas, irre-
fletidas e "naturais" da vida corriqueira. Longe estariam da noção
de compreensão da realidade e de superação do cotidiano.
As representações do senso comum, que consubstanciam a prá-
xis utilitarista, seriam o invólucro da pseudoconcreticidade da vida
cotidiana. Comparativamente, o que Lefebvre chama de cotidiano
alienado é o que Heller chamaria de petrificação das características
da vida cotidiana no âmbito da particularidade, em última instância
um cotidiano alienado.
Para Kosik, a pseudoconcreticidade da vida cotidiana seria co-
mo um cotidiano nebuloso e de sentido ambíguo, cuja essência fe-
nomenal aparece de uma forma parcial, às vezes distorcida, dando
uma falsa idéia de verdadeiro. Isto é, na pseudoconcreticidade os
fenômenos externos aparecem de uma forma superficial, fetichiza-
da, manipulativa, com uma ideologia mascarada e cujas formas de
produção dos objetos nem sempre são "reconhecidos como resulta-
do da atividade social dos homens".
Este pseudoconcreto aparente é assumido pela consciência dos
indivíduos como um aspecto natural da realidade, e a manifestação
da essência do fenômeno é confundida com a própria aparência do
fenômeno. Daí que a ação da vida cotidiana ocorre no mundo fe-
nomênico da pseudoconcreticidade.
Este mundo cotidiano, caracterizado pela familiaridade, mobili-
dade e aparências, possui uma fronteira que, para Kosik, é a Histó-
ria, sendà que esta é a guerra. A guerra se situa fora da cotidianida-
de (embora também tenha o seu cotidiano) porque "vive no hori-
zonte, na memória e na experiência da vida de cada dia" (1963, p.
70) rompendo e destruindo o curso normal do cotidiano. É nesta
fronteira que se rompe com o cotidiano. Lefebvre acredita que este

30 Aspectos da teoria do cotidiano


rompimento ocorre através da filosofia. Kosik - sem desconsiderar
a importância da filosofia-, rompe o cotidiano através da História.
O rompimento que a História produz no cotidiano sobrevém
porque, enquanto este se manifesta num mundo fenomênico, a His-
tória produz uma cisão com o fetichismo que envolve a realidade.
"Se a cotidianidade é a característica fenomênica da realidade, a supe-
ração da cotidianidade reificada não se processa como salto da coti-
dianidade à autenticidade, mas como destruição prática do fetichismo
da cotidianidade e da história, isto é, como eliminação prática da rea-
lidade reificada, tanto nos seus aspectos fenomênicos como na sua es-
sência real" (Kosik, 1963, p. 73).

Lefebvre e Kosik coincidem no aspecto de que através da filo-


sofia é que se pode perceber a cotidianidade, ou retirar o cotidiano
da pseudoconcreticidade. A raiz deste ponto em comum está em
Marx - O Capital -, ao considerar como função da ciência o desve-
lamento da essência do fenômeno, sendo a filosofia uma atividade
indispensável.
Outro aspecto comum entre Kosik e Lefebvre é a tirania da cul-
tura na sociedade capitalista que Kosik denomina de manifestação
da "anonimidade como tirania do poder impessoal, que dita a cada
indivíduo seu comportamento" (1963, p. 73). Este anonimato de
"alguém-ninguém" contribui para a coisificação do cotidiano no
mundo fenomênico.
O pensamento do senso comum, que permeia a constituição da
vida cotidiana, em Kosik é chamada de práxis utilitária, é o mundo
da mistificação; em Lefebvre é o cotidiano banal, acrítico, é o mun-
do da manipulação, e em Lukács e Heller representa as característi-
cas do cotidiano ao nível da singularidade do indivíduo.
Enquanto Lefebvre apresenta como saída a "revolução cultural
permanente", Kosik apresenta a "crítica revolucionária da práxis da
humanidade" através do rompimento da pseudoconcreticidade.
Lukács, numa premissa epistemológica, critica a falta de aten-
ção dos teóricos para o "pensamento vulgar cotidiano", manifesta-
ções estas peculiares que também traduzem os reflexos científicos e
estéticos da realidade. Porém, numa visão metafísica, não seria pos-
sível encontrar um método histórico-sistemático que contemplasse
uma abordagem teórica do cotidiano.

Cotidiano e cotidian idade 31


Na visão lukacsiana, a arte e a ciência seriam por excelência as
estruturas das objetivações. No entanto, na vida cotidiana também
acontecem objetivações decorrentes da intenção humana, entre as
quais, a linguagem e o trabalho. De uma tradição marxista, o traba-
lho pressupõe uma finalidade ou teleologia e portanto uma reflexão
e ação sobre a realidade. O trabalho portanto, torna-se um aspecto
fundamental da vida cotidiana.
Embora os reflexos científicos e estéticos estejam em pólos dis-
tintos, num movimento pendular contínuo, eles se diferenciam con-
forme tempos históricos, tipos de sociedade e, principalmente, de
acordo com as necessidades características da vida cotidiana. Estes
reflexos, ao fundirem-se com as manifestações do cotidiano, tornam
estas como palco da diversidade e da riqueza dos acontecimentos.
Portanto, para se entender o pensamento da vida cotidiana, im-
porta visualizá-lo a partir da interação simultânea com os reflexos
científicos e estético-artísticos, considerando que estas três dimen-
sões refletem a mesma realidade, considerando que esta, sob o en-
foque do materialismo dialético, é única e unitária. Nas palavras de
Lukács "os reflexos reais surgem na interação do homem com o
mundo externo" (1966, p. 36).
A característica geral do pensamento cotidiano tem como gêne-
se o trabalho e a linguagem, pois estes distanciam o homem do es-
tágio natural e animal. A necessidade animal é a satisfação imediata
e a do homem é planejada, pois através do trabalho prevê no futuro
a satisfação da necessidade.
A vida cotidiana é por excelência o lugar em que se desenvolve
a vida humana. Na visão lukacsiana, a principal dificuldade consis-
te no fato de o cotidiano ter sido objeto de estudo filosófico, face às
objetivações que não ocorrem da forma intensa como se manifes-
tam na ciência e na arte.
Lukács não está afirmando que na vida cotidiana não ocorrem
objetivações, pois estas se manifestam por intermédio do trabalho,
da linguagem, do pensamento, do sentimento, da ação e reflexão do
homem. O aspecto central, em que o autor levanta suas questões, é
o "reflexo da realidade objetiva na cotidianidade".
A ação do homem através do trabalho, enquanto um princípio
teleológico "pressupõe certo grau de reflexo da realidade objetiva

32 Aspectos da teoria do cotidiano


na consciência do homem" (1966, p. 40). O trabalho na ciência e na
arte, possui uma objetivação que constantemente se transforma, já o
trabalho na vida cotidiana, embora também seja uma objetivação,
não possui a mutabilidade existente na ciência e arte; ou seja no ca-
pitalismo a ciência é transformada na tecnologia.
Na vida cotidiana aparecem todos os reflexos da totalidade das
atividades humanas, sejam as objetivações na ciência e na arte, se-
jam as que se fazem nas instituições sociais. Na verdade, a ciência e
a arte estão em contraste permanente com a vida cotidiana e até
mesmo podem ser consideradas esferas diferentes do cotidiano. Ao
mesmo tempo, não podemos dizer que alguma objetivação exista
fora do cotidiano, como uma instância diferenciada a constituir a
cotidianidade. Neste sentido, para Lukács, cotidiano e cotidianidade
não significam a mesma coisa. A cotidianidade caracteriza-se por
objetivações mais elaboradas, onde ela, nada mais é que um cotidi-
ano mais elaborado. "O trabalho, como fonte permanente de desen-
volvimento da ciência, alcança provavelmente na vida cotidiana o
grau de objetivação supremo da cotidianidade" (1966, p. 43).
Entre o limite tênue do cotidiano e da cotidianidade, o trabalho
caracteriza-se pelas objetivações científicas, e o pensamento e a
ação, baseados no espontaneísmo, os costumes ou tradição caracte-
rizam a dimensão subjetiva da cotidianidade.
Na vida cotidiana, as respostas a funcionamentos práticos fa-
zem parte e dão mobilidade de ação no dia-a-dia. Isso não quer di-
zer que a vida cotidiana se caracteriza apenas pelo imediatismo, ao
contrário, a mobilidade está permeada por um "sistema de media-
ções" que se desdobram e ampliam segundo as características so-
ciais, econômicas e culturais das sociedades que, ao mesmo tempo
em que são introjetadas, passam a ter características imediatistas.
A fonte das mediações é a própria ciência, portanto existe uma
constante e íntima relação entre ciência, arte e vida cotidiana. "Os
problemas que nascem da ciência nascem direta ou mediatamente
da vida cotidiana, e esta se enriquece constantemente com a aplica-
ção dos resultados e dos métodos elaborados pela ciência" (1966, p.
45).
Uma das características do pensamento cotidiano se manifesta
através das representações que o homem possui, sejam místicas ou

Cotidiano e cotidianidade 33
não, o que Lukács chama de materialismo espontâneo, ou seja, a
representação vem do senso comum, da imediaticidade e do aparen-
te, não se caracterizando como um processo dialético. Portanto, as
rédeas do cotidiano são, entre outras, a espontaneidade, o imedia-
tismo e a analogia.
Para Lukács, o materialismo filosófico seria a superação do ma-
terialismo espontâneo da vida cotidiana, porque é possível a supe-
ração da
"conexão imediata entre o reflexo da realidade, sua interpretação
mental e a prática, com o que conscientemente se inserta uma série
crescente de mediações entre o pensamento - que assim chega a ser
propriamente teórico - e a prática" (1966, p. 50).
Uma das contribuições mais marcantes de Luckács foi ter apre-
sentado as características da vida cotidiana. Além do imediatismo,
da analogia, do espontaneísmo, ele aponta também para as caracte-
rísticas da heterogeneidade- a vida das grandes diferenças, a super-
ficialidade - que nos impulsiona a lidar sempre com as aparências,
com as demandas emergentes; a falta de aprofundamento em parte é
explicável em função das demais características, pois atuamos na
vida cotidiana enquanto seres singulares, onde existe uma predomi-
nância das necessidades particulares. Esta última é uma das caracte-
rísticas centrais do cotidiano, pois o que nos prende a ela é a singu-
laridade do particular e não a ação e o pensamento vinculado ao gê-
nero humano.
Na singularidade do cotidiano, o homem está por inteiro nas
suas ações, porém, quando ultrapassa a dimensão da cotidianidade
na suspensão ao humano-genérico, o homem está inteiramente na
ação. Isso aconteceu através do que mencionávamos anteriormente:
por intermédio do trabalho criativo, da arte e da ciência. Na verdade
da vida cotidiana se sai e a ela se retoma de uma outra forma.
Uma das discípulas mais reconhecidas internacionalmente de
Lukács foi a filósofa húngara Agnes Heller, que nas suas diversas
obras aprofunda algumas idéias deste autor, principalmente no que
diz respeito a uma teoria da vida cotidiana.
Os autores apresentados assinalam para um aspecto em comum:
o cotidiano é a dimensão do senso comum, com todo o sofrimento,
prazer, alegria, tristeza, destruição e construção que somente o ser

34 Aspectos da teoria do cotidiano


humano é capaz de viver. A dimensão da cotidianidade estaria no
circuito de tensão permanentemente conectado com a possibilidade
de sermos seres humanos melhores, a possibilidade da grande trans-
formação que somente o próprio homem poderá realizar.

Referências bibliográficas
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USP, 1994. (Cadernos CERU, 5)
HELLER, Agnes. Sociologia de la vida cotidiana . Barcelona: Península, 1977.
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Cotidiano e cotidian idade 35


3

A dialética dos grupos


e das relações cotidianas
Idília Fernandes*

--------~·----------
Tudo indica pela história da humanidade, que a vida associativa é
elementar. Desde que nascemos convivemos com a emergência da
presença do outro em nossa vida. Quiçá fosse possível sobreviver
sem alguém a nossa volta, os animais até conseguem quando são
abandonados pelas suas progenitoras, sair a alguns passos e se de-
senvolver. Seres humanos, no entanto, são absolutamente depen-
dentes uns dos outros.
Este indício nos leva a refletir sobre a complexa arte das rela-
ções humanas, pois, mesmo sendo quase natural "o ter que estar
com alguém", isto por si só não garante que as relações humanas
sejam satisfatórias para quem delas depende. Há uma dialética de
opostos entre a necessidade de estar com o outro e a possibilidade
de este "estar" ser algo agradável, justo, equânime, enfim, algo bom
de ser vivido.
São grandes as dificuldades da vida associativa, da vida dos
grupos, quase sem saída, porque sem os outros não pode existir o
eu. Na complexa teia da interdependência humana encontra-se,

Professora e doutoranda da Faculdade de Serviço Social da PUCRS; Assistente So-


cial da Fundação de Atendimento ao Deficiente e ao Superdotado do RS, na área de
saúde mental.

A dialética dos grupos e das re lações cotidianas 37


também, o potencial da existência, da transformação, da possibili-
dade de saída dos emaranhados que a vida proporciona a todos sem
discriminação.
Somos seres sociais, na origem de nossa vida até o final produ-
zimos para um mundo já posto, rodeados por outros semelhantes a
nós e ao mesmo tempo tão diferentes. Criamos a nós mesmos crian-
do o mundo, oferecendo a este o resultado da nossa práxis social.
Nossa identidade pessoal é traspassada pela coletividade e seu con-
texto histórico, cultural, econômico, emocional.
Os grupos, entendidos como seres interligados entre si por al-
guma coisa em comum, podem constituir espaços de reconstrução
da capacidade relaciona! das pessoas que ali compartilham alguma
experiência. O dia-a-dia da vida de cada pessoa produz específicas
experiências de singulares maneiras. Embora essas vivências sejam
únicas para cada indivíduo em seu cotidiano, elas podem ser com-
partilhadas entre diferentes pessoas. As pessoas são diferentes, as
experiências são vividas particularmente, mas o que há em comum
é o fato da cotidianidade, ou seja, tudo aquilo que é humano é vivi-
do, sentido objetivamente e subjetivamente.
As experiências são processos em mutação, dialeticamente
transformáveis. Nesse sentido nos valemos, entre outros conceitos,
dos conceitos categóricos de Agnes Heller sobre a questão da coti-
dianidade. Considerando o cotidiano ponto crucial para o desen-
volvimento dos processos sociais e ponto alto para a superação
da imediaticidade e superação da reificação do real e a transforma-
ção das relações de opressão que subjugam as subjetividades e im-
põem um ritmo desumano ao cotidiano das pessoas.
Neste ensaio que aqui se apresenta, transitaremos pelos cami-
nhos que nos levam aos grupos já constituídos ou aqueles que se
pretende formar. Neste trânsito, situamos o grupo como espaço de
possibilidades para o sujeito fortalecer sua identidade, entender me-
lhor a si mesmo e aos outros, reconstruir sua vivência cotidiana
através do espaço reflexivo que sugere esta atividade.
No percurso que será trilhado nas páginas a seguir, o "grupo"
se apresenta ao leitor, em seu conceito, sua dinâmica, sua dialética
processual, suas fases, seu potencial teórico-prático. Este não é uma
entidade, mas, também não é soma das partes, não é o todo, nem

38 Aspectos da teoria do cotidiano


tampouco, cada um sozinho. Quem sabe todos juntos formem esta
unidade em totalidade?

A incrível arte da relação entre humanos


Disse um pensador do século passado:
"Embora o homem seja um indivíduo único - e é justamente esta par-
ticularidade que o torna um indivíduo, um ser comuna] realmente in-
dividual - ele é igualmente o todo, o todo ideal, a existência subjetiva
da sociedade como é pensada e vivenciada" (Marx, 1993, p. 119).
Este pensamento "envelhecido" pelo passar dos anos que nos
separam do mesmo, ainda intriga-nos em sua dimensão complexa,
que nos coloca diante de uma ambigüidade existencial. Somos indi-
víduos, mas também somos o social; como podemos enfrentar tal
permanência de dois aspectos complementares e quase opostos?
O enfrentamento do ser nas tramas relacionais dará o tom ao
conjunto da sociedade onde esse ser se insere. Se o conjunto das
pessoas de uma determinada sociedade estiver constituído por pes-
soas que tiveram acesso à informação, à educação, à consciência
crítica, tenderá a formar um conjunto social de relações democráti-
cas. Onde o grupo social tende a poder exigir cidadania, pelo exer-
cício da participação. Ao contrário, se uma minoria detém o conhe-
cer, e a maioria desconhece a forma como se organizam os meios
essenciais da vida social de seu contexto, esta sociedade tenderá a
ser autoritária, monolista.
Os grupos sociais vão se configurando de acordo com o movi-
mento dos seus indivíduos dentro deles, ao mesmo tempo esses in-
divíduos se movimentam num espaço prefigurado, no qual terão
menor ou maior dificuldade em transformar-se. Somos seres so-
ciais, predestinados a comungar com todos os outros a nossa exis-
tência, pelo menos em alguns aspectos.
As relações humanas estão permeadas pelas contradições so-
ciais e individuais, assim imbricam-se em constantes conflitos que,
por vezes, não se resolvem de forma imediata. Há uma necessária
reconstrução da forma de viver em grupo que se precisará aprender.
Talvez uma desconstrução da forma inicial da vida em grupo seja o
caminho para novas perspectivas de formas relacionais.

A dialética dos grupos e das relações cotidianas 39


O primeiro exemplo da vida social é a vida em família; nesta
estão os primeiros passos em direção à autonomia do indivíduo e do
seu fortalecimento, enquanto sujeito. Em grande número de vezes,
na família aprendemos a ser submissos, a obedecer, reproduzindo a
violência social da dominação-dominado. De outra forma podemos
experienciar, também na família, a ausência de leis, de normas, de
limites, o que não será menos prejudicial para uma vida social, do
que no primeiro caso.
A família é o primeiro grupo do qual participamos e deve poder
nos dar o norte para a vida em coletividade, mas esta, também, está
imbricada na teia relaciona! de um contexto sempre maior do que o
seu horizonte pode abranger. A família que constitui o sujeito, é
constituída por outros sujeitos que continuam a constituírem-se e a
constituir. Há um processo dialeticamente inacabado, onde o ser
social se insere, neste a relação que se estabelece tem uma base
cognitiva e uma base de experimentação.
Para Heller (1970, p. 18), "o homem nasce já inserido em sua
cotidianidade [.. .]". Entendemos que esta inserção aconteça de for-
ma inclusiva. O sujeito faz parte da família, nela se insere pela exis-
tência e pela experiência, que é parte da existência. Em sua vivência
cada qual aprende com a repetição cotidiana de diversos atos e va-
lores, ao mesmo tempo aprende com a inovação e a ruptura daquilo
que se faz presente no dia-a-dia.
A inserção no cotidiano acontece de forma dialética, pois, não
se dá só de forma "positiva", nem só de forma "negativa", não é
apenas afetiva, nem apenas cognitiva. Incluem-se todos estes aspec-
tos e outros. Considerando o aspecto dialético inclusivo e o proces-
so de inacabamento das relações sociais, o cotidiano poderá ser re-
inventado, desconstruído, desaprendido e transformado.
"A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem parti-
cipa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade,
de sua personalidade. Nela colocam-se em 'funcionamento' todos os
seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades
manipulativas, seus sentimentos, paixões, idéias, ideologias [... ]"
(Heller, 1970, p. 17).
De acordo com o pensamento de Heller exposto acima, é jus-
tamente o cotidiano o espaço rico para que coloquemos a nossa

40 Aspectos da teoria do cotidiano


atenção. Se no cotidiano há muita repetição, reprodução, é a partir
dele que se pode conquistar a superação das restrições, porque nele
o "homem está por inteiro" para aprender e desaprender, inventar e
desinventar suas relações cognitivas e afetivas.
A relação cognoscitiva que se faz a partir do que podemos
chamar de grupo de origem ou grupo familiar, requer por vezes um
desaprender. O indivíduo aprende determinadas formas de se rela-
cionar que entram em contraste com seu grupo social. Por exemplo,
uma criança que estabeleceu uma relação de poder com os pais, on-
de ela é quem, predominantemente, lança os ditames no seu "mun-
do relaciona!'', de como devem ser as coisas, terá sérias dificulda-
des com um grupo de colegas. O contrário também nos forneceria
inúmeros exemplos.
É preciso desaprender, em muitas situações. Se uma criança foi
tratada com desprezo, desconsideração, desrespeito, rejeição, em
função de sua condição social, de limitações físicas ou motivos de
ordem diversa, isto poderá levá-la a uma inserção social hostil ou
submissa. A escola, as demais instituições, muitas vezes rejeitam
crianças que não correspondem ao "grau de normalidade", exigido
por um padrão socialmente estabelecido. São tramas sociais tecidas
e reproduzidas, que perpassam todas as esferas da sociedade, os in-
divíduos, as famílias, as instituições, até formarem um conjunto
maior, uma totalidade.
Esse conjunto, essa totalidade, porém, não é absoluta, nem irre-
vogável e nem sempre perceptível para nós que dela fazemos parte.
O movimento dos indivíduos dentro dela podem mudar sua face, se
desaprenderem os preconceitos da relação cognitiva aprendida em
seu grupo de origem e com os demais grupos. Aquela criança que
aprendeu o pouco valor do ser humano, em condições difíceis, na
medida de um processo de conscientização, de reflexão, poderá re-
aprender que tem direito a voz e a vez, que todo ser humano deverá
ter.
Um grupo com fins operativos, terapêuticos, de reflexão, de au-
to-ajuda ou de outras alternativas, poderá trabalhar estes aspectos
referidos acima e ser um instrumento de uma nova reinscrição no
social. Este é um assunto que trataremos em um próximo item, no
momento devemos voltar à teia relaciona! de que nos ocupávamos.

A dialética dos grupos e das re lações cotidianas 41


Na complexidade do mundo social, em seu começar, na relação
com a família, com os primeiros grupos afetivos, além da relação
cognitiva que dá uma base para a constituição do indivíduo, en-
quanto ser social, tem-se uma base de experimentação. As primeiras
experiências que temos no mundo dos objetos, na sua manipulação,
nos permite avançar um pouco determinadas concepções.
A exemplo do que foi dito, sobre a base de experimentação,
podemos refletir sobre os primeiros anos da infância, onde manipu-
lamos com o mundo exterior e a partir daí nos capacitamos para o
crescimento intelectual. A atividade prática que cada um de nós vai
desenvolvendo dará o tom de nossa inserção social, isto experimen-
tamos na família, em um primeiro momento, onde acontecem as re-
lações sujeito-sujeito.
Por atividade prática, entendemos todas as ações, criações re-
sultantes da relação sujeito-sujeito e sujeito-objeto. Os objetos são
transformados pelo contato humano, não apenas pelo projeto que se
possa ter daqui_lo que se quer mudar, mas, de uma determinação
prática do sujeito sobre o objeto. Assim crescemos e transformamos
o mundo. Neste trâmite se encontra o aspecto cognitivo e prático do
mundo das relações .
Marx, em seu pensamento secular, alertava-nos para o caráter
de práxis social 1 que permeia as relações entre os indivíduos, veja-
mos em sua assertiva:
"Os animais só constroem de acordo com os padrões e necessidades
da espécie a que pertencem, enquanto o homem sabe produzir de
acordo com os padrões de todas as espécies e como aplicar o padrão
adequado ao objeto. Assim, o homem constrói também em conformi-
dade com as leis do belo" (Marx, 1983, p. 96).
Seguindo este raciocínio, encontramos o ser social como ser da
práxis social, aquele que transforma o mundo com suas ações e ao
mesmo tempo se transforma com ele. O indivíduo da prática é o in-
divíduo das relações, nossa prática é para o mundo, com os outros,
a partir dos outros e para além de cada um.

Para aprofundar o entendimento de práxis, ver Marx (1983 e 1993) e Vázquez


(1977).

42 Aspectos da teoria do cotidiano


Nascemos e vivemos a partir dos grupos de origem para conti-
nuar a grande obra da vida humana. Essa grande obra, porém, se
consolida em pequenas ações de cada qual para o seu meio e nos li-
ames da possibilidade do aprendizado que o indivíduo faz em seu
contexto, tanto quanto na possibilidade de transposição deste. No
desaprender, nas rupturas com o que está estabelecido na sociedade,
poderá estar contido o potencial de superações históricas.
As transformações vão se dando na práxis social dos sujeitos,
esse processo vai consolidando a possibilidade de expressão do ser,
enquanto parte integrante, pertencente ao seu contexto. A identida-
de pessoal e seu fortalecimento passa por esta mediação com con-
texto, com os grupos onde cada um se faz pertencente. Na coletivi-
dade, na força do não ser apenas um, mas mais um com os demais,
é que se dá a possibilidade das grandes alterações históricas da
forma de viver dos sujeitos sociais.
O sujeito transita por uma contextualidade que lhe é externa
tanto quanto o constitui como sujeito, tornando-se parte dele. Neste
sentido a arte de relacionar-se com os demais, é também a arte de se
encontrar em um mundo humano feito por quem o vive, ao mesmo
tempo submetido a determinantes extra-subjetivos, que ultrapassam
a sua possibilidade de escolha.
A subjetividade humana está além e aquém do indivíduo, esta
se produz num contexto de totalidade. A construção social da subje-
tividade não fala de um engessamento do indivíduo ao seu meio,
mas da possibilidade de este se diferenciar, se individualizar a partir
da interdependência de todos os seres. A consciência lúcida e críti-
ca sobre os determinismos sociais será o fio condutor de uma vida
sem determinismo.
Escolhemos a nossa história ao fazê-la, repetimos a história
alheia ao reproduzirmos o que já está consolidado no tempo e no
espaço. Reconstruímos a vida social quando a colocamos em ques-
tão e encontramos força de enfrentar tais questões de forma a reali-
zar rupturas com o tempo e a história. Tal força, porém, encontra-
remos em um caminho conjugado e não no isolamento ou na frag-
mentação de atividades solitárias. Do grupo viemos e com os gru-
pos consolidamos a romaria do Ser, especialmente deste lugar da
subjetividade que não se contenta com o que está pronto.

A dialética dos grupos e das relações cotidianas 43


O espaço cotidiano poderá ser reconstruído num movimento
dialético dos grupos, onde se fazem sempre novas relações sociais,
na teia relaciona! do cotidiano dos grupos.

O grupo como espaço social de reconstrução da cidadania


e de (re)significação do cotidiano
Situamos a importância social dos grupos, na complexa arte das
relações, mas afinal o que é um grupo, como se constituem? Como
podem ser um espaço social de reconstrução da cidadania e de
(re)significação do cotidiano? Esta é uma temática que desenvolve-
remos neste item. Ao caracterizar os grupos somos levados a encon-
trar seu significado social para a expressão das individualidades e
para além disto, seu sentido libertário, a possibilidade por intermé-
dio do grupo, de consolidar uma estratégia de fortalecimento do ser
social. Este segundo aspecto, porém, será melhor avaliado no ter-
ceiro item, no que segue examinaremos mais especificamente a
configuração teórico-técnica do que se chama grupo.
"O ser humano é gregário, e ele só existe, ou subsiste, em função de
seus inter-relacionamentos grupais. Sempre, desde o nascimento, ele
participa de diferentes grupos, numa constante dialética entre a busca
de sua identidade individual e a necessidade de uma identidade grupal
e social" (Zimerman, 1993, p. 51).
Muito embora esta característica "gregária" do que é humano,
um conjunto de pessoas por si só não constitui um grupo, no senti-
do que estamos dando ao mesmo. O aspecto fundante da congrega-
ção grupal vai ser definido por algo que se denomina vínculo, onde
o número de pessoas presentes em um determinado contexto, se li-
gam por objetivos em comum.
A característica vincular dos grupos se manifesta numa rede
emaranhada pela complexidade das subjetividades de diferentes
pessoas que se ocupam do mesmo espaço. Isto não será definido
por um número de indivíduos, nem pela soma total destes. É um
emaranhado complexo, dinâmico, de integração de interesses, mas
que ao mesmo tempo não significa homogeneização dos sujeitos.
Nos grupos que se constituem enquanto grupo, desenvolvem
um processo inclusivo de subjetividade e coletividade, o comum da

44 Aspectos da teoria do cotidiano


congregação vai além de cada um, a partir de cada um com o todo.
Cada pessoa permanece com sua singularidade como indivíduo, po-
rém, esta singularidade estará mediada pelo grupo, em suas tarefas,
nas atividades práticas a que se propõe.
Lapassade (1983, Cap. V) enfatiza a prática dos grupos, como
aquilo que dá unidade a estes. O nós é ação coletiva e não o subs-
tancial do individual. O grupo tem uma práxis em comum e se
constitui enquanto ato e não enquanto ser. Este ato não é necessa-
riamente uma ação concreta, absolutamente visível, explícita. Em
muitos casos a tarefa dos grupos está implícita, subentendida, laten-
te, não aparente, mas existente.
Vejamos um exemplo: suponhamos que um grupo de mulheres
se reúna semanalmente em um determinado espaço institucional x,
a discussão habitual fica em torno de questões do cotidiano, suas di-
ficuldades em comum com os filhos, com o marido, no trabalho,
nas instituições em que utiliza os serviços, e outras questões que
apareçam e este grupo questiona suas dificuldades em relação ao
que foi levantado, e em relação aos impedimentos que o contexto
apresenta, para sua realização pessoal. Neste caso, as situações e a
forma de enfrentá-la são explícitas, as pessoas colocam sua forma
particular de entender a problemática, bem como, sua maneira de
responder a tudo isto. O que poderá estar implícito, é justamente a
tarefa do grupo, que será, em conjunto encontrar novas maneiras
para o enfrentamento de tais questões, de transformar aquela reali-
dade, de se fortalecer enquanto sujeito de sua própria história.
Com este exemplo, verificamos a dimensão prática de um gru-
po, como este pode estar num constante trabalho de elaboração dos
empecilhos e ao mesmo tempo de construção de uma nova forma de
inscrição no social. Sendo assim, pode-se repetir o que nos diz La-
passade:
"Todos os membros são 'terceiras pessoas' ao mesmo tempo que são
todos sócios em pares de reciprocidade; como terceira pessoa, cada
um totaliza as reciprocidades de outrem. É isso uma das mediações
que constituem o grupo" (Lapassade, 1983, p. 232).

A dialética dos grupos e das re lações cotid ianas 45


Na relação de reciprocidade que vai consolidando os grupos,
acontece um fenômeno denominado de "ressonância", 2 este indica a
troca de sentimentos entre as pessoas, o compartilhar emoções co-
muns. Isto acontece quando a fala de um rebate nos outros e os de-
mais vão interagindo a partir daquele significado exposto por al-
guém. Alguém fala dos preconceitos vividos em determinado pe-
ríodo de sua vida, cada um é levado a pensar nos preconceitos que
já sofreu ou já teve em relação a alguém. A temática passa a ser
"preconceito", todos se envolvem nela e numa tarefa de superá-la
de alguma forma. De uma situação singular passa-se às diversifica-
das vivências e a um contexto onde estas se dão, seu meio social.
Quem coordena um grupo deve ter a habilidade de perceber a temá-
tica em comum e propiciar a expressão destas vivências, neste cole-
tivo.
A propósito do emaranhado que se imbrica no vínculo grupal,
Fernández (1993) considera o "laço" como constituinte do grupo.
Há uma complexidade e multiplicidade nas inscrições grupais. Cada
singularidade se inscreve no contexto grupal, de uma determinada
forma. O conjunto destas inscrições é permeado pelo vínculo que
vai dinamizar a relação entre as pessoas. "Algo faz laço", liga os
sujeitos entre si e dá ao grupo uma característica peculiar, própria a
ele mesmo.
Para ilustrar o aspecto singular de cada grupo, pensemos em um
batizado, por exemplo. Na cerimônia, os participantes do grupo são
os pais, a criança, os padrinhos, amigos, o padre. Todos formam os
personagens fundamentais para que ocorra o batismo. Mas além de
tudo, o conjunto deste grupo forma o "batismo" que não é nem cada
um em si, nem a simples soma de todos. É algo que acontece, se re~
aliza, portanto, vai além da participação dos seus integrantes, po-
rém, só se realiza com sua participação. Este acontecer é quase que
um novo sujeito, não-humano -o grupo -constituído ele é a reali-
zação de uma coletividade, que toma uma forma peculiar, própria, a
partir de um determinado laço.
Observando a força das congregações, pode-se considerar o
grupo como espaço privilegiado para o "fortalecimento dos sujei-
tos", para o exercício da cidadania, da autonomia, que é a participa-

2
Sobre o "fenômeno da ressonância", ver Zimerman, 1993, p. 94-95.

46 Aspectos da teoria do cotidiano


ção. É, também um dispositivo terapêutico importante. Como cada
individualidade poderá se beneficiar de um processo grupal? De
que maneira o agente grupal poderá contribuir para favorecer o pro-
cesso dos grupos?
Há uma certa tendência a cristalizarmos por determinado tem-
po, mais ou menos longo, algumas situações desagradáveis, de
opressão, de aprisionamento. Como se o nosso ser estivesse alheio,
estranho a nós mesmos, nele não nos reconhecemos e repetimos a
história até que um dia tenhamos consciência da possibilidade de
transformar as condições que nos sufocam, inúmeros são os exem-
plos do cotidiano que demonstram este fato. Em psicanálise isto foi
chamado de 'repetição neurótica', para Marx um processo de 'alie-
nação', um estranhamento do sujeito na relação com a sociedade e
consigo mesmo. 3
Ilustraremos o pensamento acima recorrendo a uma figura da
mitologia grega, o PAN, conhecido no Ocidente pelo nome de dia-
bo:
"A figura do diabo nos mostra um sátiro - criatura metade homem,
metade bode - dançando ao som da gaita que está segurando com a
mão esquerda. Na mão direita segura dois fios, amarrados ao pescoço
de duas pessoas de tamanho menor. Essas pessoas - um homem e
uma mulher - também têm chifres como os do sátiro e, embora te-
nham as mãos e os pés livres para dançar, estão presos às cadeias do
medo e do fascínio pela música. A cena tem lugar dentro de uma gru-
ta escura. As figuras que dançam, na realidade são livres se deseja-
rem, pois as mãos estão soltas para retirar as correntes a qualquer
momento. A servidão ao diabo é uma questão que o consciente pode
resolver" (Burke e Greene, 1988, p. 66).
A história deste mito grego se aproxima da vivência de muitas
pessoas e da sociedade em geral. Há um aprisionamento psíquico e
social que nos impomos ou ao qual nos rendemos, quando não se
tem clareza das possibilidades do ser de transformar sua própria
história, a favor de si mesmo. Pan é um grande fetiche, mas não é
absoluto, dele se pode afastar se a embriaguez de sua música não
mais exercer fascínio sobre nós. Em nossa sociedade são muitos os

Para aprofundar o entendimento sobre "repetição neurótica", ver Zimerman, 1993.


Sobre "alienação", ver Marx, 1983, I, II e III manuscritos.

A dialética dos grupos e das relações cotidianas 47


fetiches que nos afastam da consciência, que nos levam à reprodu-
ção de padrões prefixados.
O cotidiano, tomado em sua imediaticidade é o lugar do "frag-
mentário, do microscópio, do efêmero, do imaginário", conforme
Yamamoto (1997, p. 60). No grande fetiche do dia-a-dia, na em-
briaguez que nos afasta da consciência e de uma visão de totalidade
da vida social, nos aprisionamos a diversas situações que se repe-
tem em nossa história, como se estagnasse a vida. O movimento na-
tural dos acontecimentos que devem mover a história, nestas cir-
cunstâncias, parecem congelarem-se na rotina da vida que se faz
"comum".
Lukács caracteriza as determinações fundamentais do cotidiano
como: "a heterogeneidade, a imediaticidade, e a superficialidade
extensiva" (apud Netto, 1996, p. 67-67). Estas características cons-
tituem o imediatismo de nossos dias, onde geralmente não nos des-
locamos construtivamente em direção ao futuro. Ficamos presos e
alheios ao processo ativo da vida que se faz em movimento.
Para Kosik (1995, p. 73),
"Todo modo de existência humana ou de existir no mundo possui sua
própria cotidianidade ... Se a cotidianidade é a característica fenomê-
nica da realidade, a superação da cotidianidade reificada não se pro-
cessa como salto da cotidianidade à autenticidade, mas como destrui-
ção prática do fetichismo da cotidianidade e da história; isto é, como
eliminação prática da realidade reificada, tanto nos seus aspectos fe-
nomênicos como na sua essência real".

O fato de ser necessário uma superação da "cotidianidade reifi-


cada" não significa que no cotidiano só haja espaço para a necessi-
dade e a alienação, mas que este é um espaço onde a reificação se
faz presente. Entretanto, o cotidiano é espaço rico de significados,
no qual pode-se aprofundar a busca dos desvendamentos de seus
enredos.
Conforme Heller (1998, p. 53), "o cotidiano aparece como es-
paço onde nossas experiências básicas de vida podem desenvolver
em nós necessidades pelas quais estamos dispostos a fazer reivindi-
cações [... ]". Quando o sujeito busca, a partir da necessidade, a su-
peração da vivência cotidiana reificada, então pode-se ter um mo-
vimento que Heller (1998, p. 40-41) pontua como transformação da

48 Aspectos da teoria do cotidiano


dimensão da carência em autodeterminação. Onde o sujeito pode
escolher os caminhos e fazer sua própria história.
Faz-se, necessário olhar para o dia-a-dia de forma crítica e pro-
funda, para que dele se tenha um profundo conhecimento e reco-
nhecimento de seus múltiplos significados e sinais. É preciso en-
contrar as brechas da cotidianidade para sua superação. Para Heller
(1970, p. 26), o cotidiano apresenta "possibilidades de suspensão
temporárias, estas se dão no trabalho, na arte, na ciência e na mo-
ral". Esses momentos não se dão de forma à parte do cotidiano,
constituem-se em momentos produtivos do ponto de vista do pro-
cesso da (des)alienação. Kosik (1995, p. 77) nos fala que a
"destruição do mundo alienado da cotidianidade, não significa apenas
a transformação revolucionária, conquanto forma superior, mas tam-
bém, como alienação e como modificação existencial, 'soluções' em
nível individual".
Trabalhar com a finalidade de abrir um espaço social para a re-
construção da cidadania, para o (re)significar do cotidiano, para o
"fortalecimento do sujeito" e o desenvolvimento de sua autodeter-
minação, é uma forma de saída da "dimensão da necessidade" e da
alienação. Neste sentido o dispositivo grupal pode ser um recurso
significativo. Justamente pelo fato de poder ter-se, nos grupos, um
dos momentos de "trabalho e arte" que propicia a "suspensão tem-
porária da cotidianidade".
O recurso grupal, através de um processo de reflexão, diálogo,
congregação, poderá ser o momento de uma abertura para o proces-
so de conscientização do potencial do sujeito. De se redescobrir, de
perceber "que as mãos estão livres", que é possível sair, romper
com a "alienação" e com a "repetição neurótica". A história de cada
indivíduo e a história da sociedade, em geral, estagnou naquele pro-
cesso, tomará novo dinamismo com a saída do sujeito de seu casu-
lo, no retorno a seu aspecto 'natural, o de ser um ser social.
O coordenador ou um terapeuta de um grupo poderá contribuir
com o processo grupal, na medida em que propicia o espaço para a
reflexão e, também, quando exerce a função de "continente" e de-
senvolve uma "atividade interpretativa", assim denominados, por

A dialética dos grupos e das relações cotidianas 49


Zimerman. 4 É uma dispersão geral, a marca inicial de qualquer gru-
po, aos poucos, este se encaminha para uma coesão, unidade. O co-
ordenador ou o terapeuta vai auxiliar na junção das partes fragmen-
tadas, sustentando e dando continência ao contexto dos indivíduos
que se agrupam, isto se faz, também, com a "atividade interpretati-
va".
O grupo precisa de um sustentáculo, especialmente no início,
alguém que o "segure", que possa ter uma visão de conjunto, e ao
mesmo tempo, localize as singularidades desses sujeitos, nesse con-
junto. Nesta função de agente grupal, considera-se a possibilidade
de que, a partir de uma base de sustentação, o grupo possa desen-
volver-se.
Na continência está, também, a necessária "atividade interpre-
tativa", onde se tem uma intervenção mais direta do coordenador ou
terapeuta, esta atividade vai se estendendo aos demais membros do
grupo, com o desenrolar do processo grupal. Mas, em que consiste
tal "atividade interpretativa"?
Tal atividade é uma intervenção dialogal, onde aspectos signifi-
cativos do que já foi falado são pontuados e ressaltados para o gru-
po, com o objetivo de clarificar determinadas questões que vão sur-
gindo. Nesta intervenção os participantes devem ser levados a no-
vas perguntas e reflexões que os façam inscrever-se no processo do
qual fazem parte. A finalidade desta atividade é propiciar a partici-
pação e a reelaboração das questões iniciais, para uma superação
dialética do momento anterior ao processo grupal.

A dialética dos grupos como alternativa


para uma sociedade humanitária
No trabalho com grupos, os profissionais desta área se aproxi-
mam do cotidiano das pessoas, do seu modo de viver as dificulda-
des e as possibilidades da existência. O cotidiano aparece em seu
imediatismo, num primeiro momento, para que se possa ultrapassar
esta esfera imediata. O viver de cada um está impregnado pela cu!-

Sobre a "função de continente do grupo" e sobre a "atividade interpretativa", ver


Zimerman, 1993, cap. XVII e XX.

50 Aspectos da teoria do cotidiano


tura, pela história, pela economia, pela música, pela mídia, por
amores e desamores.
A dinâmica grupal traz o cenário humano com toda sua expres-
são, em suas diversas facetas. Onde há presença da alienação, da
criatividade, onde convivem todas as contradições humano-sociais.
É um rico espaço de conteúdo ontológico e, também, de práxis so-
cial. Cada singularidade poderá expressar-se num contexto grupal,
que no principiar, é novo, portanto, uma alternativa de recomeçar
uma nova forma relaciona!. O espaço do grupo faz o acolhimento
do sujeito e o reconhecimento dos pontos em comum entre seus
membros.
A temática que emerge da discussão grupal é o ponto conver-
gente, sob o qual a dinâmica grupal vai se processar. Os sujeitos a
partir desta dinâmica vão se inteirando, aproximando uns dos ou-
tros, se diferenciando. É um processo de entrega ao grupo, de parte
da subjetividade de cada qual a um processo de interação. Este es-
paço é mediado pela comunicação, pelo significativo desenvolver
da linguagem, da inter-relação dos significantes pessoais de cada
individualidade, encontrando-se com as demais.
O potencial dos sentidos, dos significados dos outros é visto na
linguagem. O estilo de vida do outro, sua cultura, sua forma de vi-
ver, transforma-se em nossa grande indagação. Começamos a com-
preender os sujeitos e a nós mesmos, no intercâmbio dialogal, onde
se permite questionar o outro sobre os significados que ele atribui a
sua maneira de se localizar no mundo. Da maneira como o outro su-
jeito encara sua vida e seu contexto, "o outro se torna nossa grande
pergunta". 5
Existe um tipo peculiar a cada grupo que é adquirido na convi-
vência entre seus componentes. O fato é que os grupos têm sua
forma particular de se comunicar, que não se confunde com outros
grupos, que vai caracterizá-lo de um jeito específico. O diálogo é
um instrumento para favorecer a emancipação, vejamos nas pala-
vras de Souza (1993, p. 92):

Expressão utilizada pelo professor Hans Georg Flikinger em aula ministrada no cur-
so de Doutorado em Serviço Social, em setembro de 1998.

A dialética dos grupos e das relações cotidianas 51


"Entre os diversos mecanismos pedagógicos de ação a serem utiliza-
dos pelo profissional está o diálogo. Este supõe um processo de troca,
através do qual elementos de globalidade e de particularidade vão se
confrontando e construindo como processo crítico de pensar e trans-
formar a realidade".
Ao servirmo-nos deste instrumento, numa perspectiva pedagó-
gica e política nos orientamos por uma ética libertária. Uma ética
que não se conforma com uma determinada ordem social que nau-
fraga os sujeitos em seu oposto, ou seja, à condição de sujeitado.
Ética que sugere desnaturalizar as relações de poder, de opressão,
de desigualdade, de submissão, de conformismo. O que conduz a
orientação deste sentido, é uma ética que enalteça a possibilidade
de o sujeito superar seu tempo histórico, bem como superando a si
mesmo na relação com os seus contemporâneos.
Passamos agora a uma ilustração de parte de uma dinâmica
grupal, através do relato condensado de uma vivência, que aconte-
ceu em uma instituição y. Nesta um grupo de mulheres, na presença
de seus filhos, debatiam sobre os problemas encontrados com os
mesmos. A escola apresentava constantes reclamações, em função
do "comportamento agressivo" e da dificuldade de aprendizagem
dessas crianças, o que tornou-se a temática desse grupo:

Anderson6 [ 1O anos] vive com a mãe e um irmão de 2 anos, fi-


lho do atual companheiro da mãe, seu padrasto. A queixa inicial,
do relato da mãe, era o isolamento do menino, em especial na es-
cola. Os professores reclamam sua falta de atenção, "ele fica meio
fora do ar, mas sempre tira nota dez" [sic].
A mãe de Anderson considera que ele se sente revoltado com o
abandono do pai e a rejeição do padrasto. Este o trata com agres-
sividade, lhe dá castigos, "xinga" por qualquer motivo, diz Ander-
son a todos os presentes no grupo, mobilizando bastante as pes-
soas, com seu relato.
Carmem (mãe do menino) conta que os dois brigam muito, que
o atual companheiro não tem paciência com seu filho, fica o tempo
todo disputando com o menino. "Até na hora de servir a comida, se

6
Todos os nomes contidos neste relato são fictícios, em respeito à história particular
dos sujeitos.

52 Aspectos da teoria do cotidiano


o Anderson for servido primeiro, o companheiro faz muitas recla-
mações, não aceita" [sic].
Anderson tem muitas mágoas em função do tratamento que re-
cebe do padrasto, escreveu uma composição para a escola, de títu-
lo: "Minha Vida", onde relata toda sua tristeza por não ser com-
preendido em casa, por não se sentir amado, por receber castigos
injustos e a culpa por tudo de "ruim" que acontece em casa. Ao ler
sua carta, emocionou muito as pessoas do grupo, muitas choraram.
Carmem considera que a indisposição do companheiro com
seu filho se deve ao fato de este estar vendo no menino a sua antiga
relação, ficando com ciúmes. Segundo a mesma, ele é muito ciu-
mento e possessivo. É um homem de pouca iniciativa, "só faz as
coisas" se ela estiver junto. Ele é zelador, mas, como o salário não
é suficiente, faz biscates como pinturas, consertos, para comple-
mentar o salário. Porém, só vai se ela for junto; para pagar as con-
tas é a mesma coisa. "Ele é ignorante, muito difícil, brigão e ainda
por cima se considera o dono de tudo, o poderoso" [sic]. Nesta al-
tura do relato as outras mulheres presentes também desabafaram
as mágoas em relação a seus companheiros.
Anderson se colocou algumas vezes no grupo, para falar. Con-
tou que por duas vezes o padrasto o encostou na parede e lhe deu
pontapés. Ângela, mãe de Álvaro, lhe sugere que quando ele estiver
maior, mais forte poderá devolver a agressão, não precisará mais
ser agredido.
Álvaro [9 anos] sugeriu que ele matasse o padrasto. Anderson
respondeu imediatamente que não valia a pena sujar as mãos e ir
para a FEBEM. Os participantes do grupo estavam muito mobili-
zados e discutiam sobre o fato de que violência não deve ser repro-
duzida. Devem encontrar outros meios para amenizar a situação.
Teresa, mãe de Jonatan, disse que ele pode recorrer ao conselho
tutelar.
Carmem diz que pensa em separação, mas considera-se inca-
paz de enfrentar a vida, sem o recurso financeiro do marido e não
quer voltar para sua família de origem.
Teresa, que também falava das caraterísticas de seu marido,
associa as dificuldades de Jonatan [11 anos] ao comportamento do
pai dele. O menino repete pela quarta vez a primeira série, "é mui-

A dialética dos grupos e das relações cotidianas 53


to nervoso, agressivo, não obedece a ninguém" [sic]. Na ocasião
do grupo, a irmã de Jonatan, de 5 anos, estava junto e mexia nos
cabelos dele, enquanto ele manipulava alguns brinquedos. Ele dis-
se alterado: "esta daí me irrita". A coordenadora do grupo per-
guntou, "esta daí" quem? Ele respondeu que foi para a irmã. A
coordenadora explicou que pensou que ele tivesse se referido à
mãe. Teresa ressalta que ele fala assim com ela também, não tem
limites.
Teresa volta a falar no marido, na sua dificuldade em relação
à bebida, diz que ele, quando está embriagado, atormenta os filhos
e a família inteira. A filha mais velha já pensou em sair de casa por
causa do pai. Acredita que o filho é nervoso por tudo isso, tantas
vezes ele se assustou e chorou assistindo às "explosões do pai".
Repete o que disse Carmem, pensa em se separar, mas o marido
acha que é dono de tudo e se eles se separassem ela fica sem nada.
Ângela tinha relatado o quanto se incomodou com o marido
(falecido) e que o mesmo nem reconheceu o filho, o que a deixou
muito magoada a ponto de, após o falecimento do marido, ela não
requerer a parte na herança a que tinham direito. Ângela conta,
também, que seu pai foi um homem severo com sua mãe. Batia nela
com freqüência, e, certa vez, quando ainda era pequena, presen-
ciou seu pai furar os olhos de sua mãe com os dedos. Relata que
aos 14 anos se vingou, um dia reuniu todos os irmãos, que já esta-
vam grandes, numa ocasião que ele batia em sua mãe, bateram no
pai porque já eram mais fortes do que ele. É mesmo esta a saída
dos problemas, pela reprodução da violência? No caso foi uma sa-
ída encontrada na ocasião, que não serve como modelo, mas con-
tribui para a reflexão.
Teresa e Carmem comentam que Ângela teve sorte de ficar viú-
va, só assim resolveu seus problemas com o marido. Assim o "des-
tino" resolve os problemas que a vida tem. Tem mesmo que ser
uma mão invisível para transformar nossas vidas? Não poderíamos
encontrar em algum lugar humano esta possibilidade de mudança?

Este relato foi de um processo inicial de grupo, encontramos


pessoas fragilizadas pelas dificuldades e os dramas de suas histórias
de vida. O grupo vai se constituindo, tecido a todo este conteúdo

54 Aspectos da teoria do cotidiano


dramático. De um drama real, vivido por cada um de uma forma
particular, apesar dos inúmeros pontos em comum.
O grupo que não é a soma de todos, mas para além de todos, se
torna um sustentáculo, um lugar onde essas individualidades vão
compartilhar seu drama, mas para além disto, aos poucos vão en-
contrar os nexos que ligam os fatos entre si. Já não serão mais soli-
tárias em um cenário sombrio, fazem parte de um conjunto, de um
todo, se redescobrirão mais fortes e mais capazes, no processo.
Numa dialética dos grupos, o movimento decorrente de sua di-
nâmica é constante e inacabado. Não se poderá pensar que o grupo
atinge um momento ideal, que estará pronto, preparado para a vida.
É uma dialética do inacabamento, onde as pessoas envolvidas esta-
rão em constante aprendizado e criação, criando e recriando o mun-
do e a si mesmo, sempre é tempo para recomeçar. O recomeço é fim
e início, não há acabamento, superações acontecem para propiciar
outras superações.
Os interesses em comum entre um determinado grupo podem
ser superados. Entretanto, o que foi consolidado no processo per-
manece, tanto quanto permanece a necessidade de apreender as re-
lações grupais. A dinâmica relaciona! que registram os grupos, pro-
porciona aos seus associados a possibilidade de uma diferenciada
inscrição contextual, onde foi possível ser sujeito.
Um grupo é a superação daquilo que Lapassade (1983, cap. V)
chamou de "serialidade", nesta os indivíduos estão em quantidade,
porém, não estabelecem uma relação qualitativa. Não se comuni-
cam substancialmente, não há interesses em comum, não há unida-
de. A "serialidade" é a dispersão inicial que poderá formar o grupo
no momento posterior, e, também, o lugar para onde o grupo poderá
voltar se não estiver em uma constante produtividade, se não de-
senvolver uma práxis comum a todos.
O processo inacabado dos grupos é uma alternativa de politizar
o cotidiano. No exercício do debate e da reflexão, o dia-a-dia co-
mum de cada um poderá ser localizado na conjuntura contemporâ-
nea do tempo vivido pelas pessoas. A visão de conjuntura leva a um
entendimento estrutural da organização da sociedade, começa-se a
vislumbrar suas leis. Quando se conhece o funcionamento das leis
que organizam uma coletividade, pode-se descobrir, também, a

A dialética dos grupos e das relações cotid ianas 55


forma de superar aquilo que já está ultrapassado, que está em desa-
cordo com as necessidades dos sujeitos desta sociedade.
Uma visão de contexto, de conjunto, será propícia para não lo-
calizar no sujeito, a culpabilidade absoluta pelo seu "fracasso" es-
colar, no trabalho, no não-trabalho, na família, com os grupos da
sociedade. Enfim o sujeito faz parte de uma conjuntura e de uma es-
trutura social, seu cotidiano, sua história de vida está imersa nestes
meandros institucionais, sociais, não é possível uma visão fragmen-
tária.
Há uma tendência, nas relações sociais, de individualizar os
problemas que dizem respeito à coletividade, sobrecarregando o in-
divíduo e relegando a este o lugar da impossibilidade e do fracasso.
Neste sentido alerta-nos Souza (1993, p. 88) sobre a consciência
individual, em contraponto a uma consciência social:
"consciência individual é aquela que se concretiza pelo fato do ho-
mem ter personalizado, em si mesmo, os motivos e causalidades das
necessidades e frustrações que requerem enfrentamentos coletivos".
Desnaturalizar esta tendência, estará implícito nas funções do
grupo. O dispositivo grupal servirá como campo para um trabalho
que desenvolva o processo social da participação. O imediatismo
que aparece nas relações cotidianas pode ser matéria-prima para o
desenrolar de um trabalho pedagógico e político. A ultrapassagem
das condições imediatas requer o engajamento dos sujeitos em sua
própria história, como partícipes, ativos e criativos.
A participação é um processo social e ao mesmo tempo uma
questão existencial. O ser humano, para se desenvolver, precisa in-
serir-se em seu meio, fazer parte do todo. Uma visão ampla da rea-
lidade social, que estabeleça as conexões entre ser e contexto é um
elemento constitutivo da participação. A articulação das ações entre
os membros do grupo organiza uma coletividade de ações; a admi-
nistração dessas capacita o grupo para o enfrentamento de questões
vivenciadas pelo mesmo.
A conscientização, a organização e a capacitação são elementos
pedagógicos da participação 7 que os grupos podem ser levados a
processualizar.

7
Sobre os elementos pedagógicos da participação, ver Souza, op. cit, cap. 6.

56 Aspectos da teoria do cotidiano


É sempre necessário lançarmos um novo olhar sobre as possibi-
lidades do sujeito. Por vezes a realidade é esmagadora, especial-
mente no trabalho institucional, o drama humano que se apresenta
tem caracteres dolorosos, onde os sujeitos sobrevivem às tempesta-
des da vida. Situações de abandono, de perda de trabalho, de famí-
lia, de casa, de amor. A doença, a morte, as separações dos filhos de
suas mães, o impedimento de fazer parte do seu contexto, por limi-
tações físicas, econômicas, culturais, étnicas, psíquicas, pela difi-
culdade de se "enquadrar" em um mundo padronizado.
São tantos os dramas humanos e todos nos dizem respeito, afi-
nal somos humanos? Os profissionais desta sociedade que ainda
mantêm aspectos constitutivos, que vão de encontro à realização
dos seus sujeitos sociais, têm um compromisso com sua reversão.
O compromisso de reversão, que diz respeito aos profissionais
do social, se expressam nas estratégias lançadas para enfrentar a or-
dem estabelecida na história. O retorno a um caminho de possibili-
dades e reconstrução das relações humanas, só poderá ser trilhado
pelos seus autores, aqueles que a escrevem. A história de nossa so-
ciedade será escrita por cada um de nós, na medida em que a cons-
ciência do ser é a consciência do ser com o mundo, no mundo e pa-
ra um mundo mutante, inacabado. Consciência de que o tom das re-
lações sociais é dado por cada um de nós.
Nascemos numa sociedade já organizada em seus padrões, com
uma cultura própria, que já cristalizou algumas relações de poder,
de discriminações, de desigualdades, com suas leis, sua ordem, com
uma determinada forma de organizar seus meios materiais e produ-
tivos. Muito embora tudo esteja em seu "lugar", há um dinamismo
profundo nas relações que se dão na sociedade e "tudo que é sólido
se desmancha no ar" (Marx).
No dinamismo de um tempo que não pára, de um mundo de
constantes e profundas transformações, é que nos movemos. So-
mos, igualmente, mutantes, seres em movimento. Na dialética da
vida é preciso apostar no ser social e, como o artista, poder fazer da
'estranha mania de ter fé na vida', o norte para superar nosso tempo
histórico e não perder o trem da existência humana.

A dialética dos grupos e das relações cotid ianas 57


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58 Aspectos da teoria do cotidia no


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A dialética dos grupos e das relações cotidianas 59


4

O papel social do professor


universitário
Marina Patrício de Arruda*

----------·----------

Meu primeiro contato com Agnes Heller deu-se por meio de um


artigo de jornal. A autora esteve em Porto Alegre para proferir uma
palestra na qual abordava o atraente tema: felicidade. Atraída por
suas idéias e pela possibilidade de conhecer uma filósofa contem-
porânea, procurei-a numa disciplina oferecida pelo Mestrado em
Serviço Social ministrada pela professora Gleny Guimarães. Hoje,
ouso refletir acerca de um de seus pontos de vista: o papel social.
Ao longo dos dois anos do curso de Mestrado em Serviço So-
cial, busquei articular algumas idéias de Agnes Heller. Especifica-
mente aquelas que faziam sentido para o meu trabalho enquanto
mestranda ávida de saberes e disposta a organizar alguns dispositi-
vos para uma compreensão possível de referenciais tão brilhante-
mente disponibilizados por essa respeitável autora. Compreender,
na medida do possível, o significado do papel social do professor
na estrutura da vida cotidiana foi para mim um grande exercício de
aprendizado. Assim, predisposta, renovei os meus saberes. Tal re-
novação, além do exercício de compreensão, renovou também meu
interesse em desenvolver estudos sobre o processo educacional bra-

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social da


PUCRS.

O papel social do professor universitário 61


sileiro, processo no qual o professor é um elo imprescindível en-
quanto elemento de decisão.
O conjunto de mudanças que ora assistimos -desencadeado pe-
lo avanço tecnológico, pela globalização da economia e pela conse-
qüente internacionalização do conhecimento- instiga-nos a pesqui-
sar as práticas relativas à educação no decorrer de nosso processo
histórico para melhor compreendê-Ias, sem, contudo, perdermos de
vista as atuais demandas deste fim-de-século. É importante ressaltar
que a educação é um fato eminentemente histórico e suas modifica-
ções vão aparecendo na proporção em que os modelos adotados se
revelam inadequados para satisfazer as necessidades emergentes.
Podemos, então, discutir neste artigo algumas práticas e con-
cepções relativas à educação, bem como o papel social do professor
à luz do referencial teórico de Agnes Heller.
Tendo em vista as transformações que o mundo vem sofrendo,
deparamo-nos com o papel da universidade e com a conseqüente
necessidade de inovação de seus processos, a fim de possibilitar a
formação de seus alunos numa sociedade em vertiginosa mudança.
Vale também ressaltar que a formação, por ser um fato eminente-
mente histórico, tem nos professores seus fatores mais influentes
em virtude de eles se constituírem em elementos de decisão. Assim,
as necessidades sociais apresentam problemas para que o educador
reflita e repense a educação. Reflexão necessária tendo em vista que
a própria sociedade passa a solicitar do educador alternativas e so-
luções para as atuais demandas.
Se as necessidades sociais se modificarem, os processos de
formação também deverão ser capazes de se reorganizarem, e so-
mente um estudo detalhado pode garantir-nos a possibilidade de ve-
rificarmos o modo pelo qual os professores universitários estão
formando os profissionais do século XXI .
Sabemos que as funções da universidade mudam de acordo
com o movimento histórico que a sociedade está vivendo. Assim
sendo, ela não pode permanecer uma ilha, fechada em si mesmo.
Ao prosseguirmos nesta reflexão, podemos observar que a im-
portância desse tipo de estudo reside no fato de que, ao final do sé-
culo XX, evidenciou-se uma era pós-moderna que colocou em xe-

62 Aspectos da teoria do cotidiano


que a funcionalidade da educação brasileira da forma como vem
sendo concebida e operacionalizada.
As instituições teoricamente responsáveis pela produção e pela
socialização do saber sistematizado convivem com uma fase de
transição de valores e conceitos. E à educação cabe subsidiar os
homens na definição de novos caminhos, menos complexos mas
não menos científicos.
Porém, à medida que o terceiro milênio vinha se aproximando,
compreender o mundo e transformá-lo tornou-se cada vez mais di-
fícil. As conquistas científicas clamam por atualização de atitudes.
Ao professor cabe avaliar o progresso tecnológico, os valores da
sociedade contemporânea e os fenômenos sociais, refletir sobre eles
e, conseqüentemente, avançar. Mesmo porque o tempo do "enci-
clopedismo" se acabou, e à educação cabe considerar o preparo do
homem para uma sociedade que assim se configura.
A preocupação com os problemas educacionais tem crescido de
maneira significativa fora do círculo dos profissionais da educação.
Podemos acompanhar, por meio das notícias divulgadas pelos ór-
gãos de imprensa de todo o país, uma séria preocupação da socie-
dade em geral com a educação. Várias são as frentes ou os movi-
mentos desencadeados contra o analfabetismo financiados por
ONGs (organizações não-governamentais), por empresas privadas
ou por órgãos públicos. Isso porque houve, nas últimas décadas, o
reconhecimento da complexidade do campo da educação, que
abrange desde a instrução até amplas questões de política educacio-
nal do país, tendo em vista o relevante aspecto da automação das
formas de produção.
A educação, desse modo, tem sido analisada como processo,
como fato histórico, como prática social, etc. Apesar da complexi-
dade, da abrangência e da variedade de significados, importa-nos
que a educação ainda é a chave para a compreensão do mundo e é
um espaço de formulações de transformações para o futuro. Assim,
a observação do processo de reestruturação dos espaços voltados à
formação é de grande importância por tratar-se de lugar privilegia-
do na produção de futuros profissionais.
As transformações sociais resultantes do avanço tecnológico e
da globalização da economia impõem mudanças sem precedentes

O papel social do professor universitário 63


no mundo do trabalho e da formação, exigindo habilidades nunca
antes priorizadas; porém, a desarticulação entre esses dois mundos,
hoje mais acentuada, representa um grande obstáculo ao desenvol-
vimento da sociedade atual - é a educação tradicional revelando
suas contradições. O conhecimento não mais se transmite, ele é
construído por meio das relações de troca e de diálogo. É preciso,
portanto, aprender a aprender, e a construção desse novo profis-
sional passa a representar o grande desafio do professor preocupado
com a produção de profissionais com um novo perfil.
Por conseguinte, refletir sobre a universidade, significativo es-
paço de formação de profissionais, torna-se relevante, pois remete-
nos à análise do papel do professor que faz parte desse movimento
mais geral.
Entretanto, uma análise sobre o processo educacional toma
forma apenas quando contextualizada histórica e politicamente.
Compreender a direção que foi dada à educação formal universitá-
ria significa estabelecer relações, explicar as forças políticas em jo-
go, analisar, mesmo que não de maneira extensa, o processo eco-
nômico.
Se aceitarmos como plausível o cenário desenhado para o mun-
do do terceiro milênio, seremos levados a concluir que um estudo
sobre o papel do professor universitário adquire grande importân-
cia. Daí a necessidade de apreendermos o funcionamento do siste-
ma educacional no contexto histórico da sociedade capitalista brasi-
leira, tendo em vista o relevante papel da educação universitária, a
indissociabilidade das tarefas do ensino na construção do conheci-
mento, moeda mais valiosa do século XXI.

O professor universitário e o processo educacional brasileiro


No Brasil, a mudança nos padrões de emprego ocorreu de for-
ma abrupta. Até 1990, nossa economia era fechada e os empresários
não precisavam preocupar-se com a qualidade, pois não havia con-
corrência. A abertura de nossa economia expõe toda a ineficiência
de nossas empresas sem técnicas modernas de gerência e de produ-
ção. O primeiro passo da reviravolta brasileira foi a modernização
das máquinas, pois, até 1990, não se podiam importar equipamentos

64 Aspectos da teoria do cotidiano


computadorizados. Passados dois anos do início dessa abertura, me-
tade das grandes indústrias já utilizava computadores em larga esca-
la, passando a exigir operários mais bem preparados. O impulso de
modernização joga luz sobre um problema ainda mais sério do Bra-
sil - a educação. Metade da população que trabalha tem educação
precária, incapaz de operar com eficiência em economias modernas.
Como qualificar essas pessoas e reunir esforços contra o desempre-
go é um dos problemas a ser enfrentado neste início de milênio. A
educação torna-se um fator decisivo para o desenvolvimento, e a
revolução tecnológica que transformou a economia nas últimas dé-
cadas cria um problema para empregadores e trabalhadores. É certo
que o Brasil ainda tem um índice relativamente baixo de desempre-
gados em comparação aos países europeus. Isso porque o país cres-
ceu pouco nos anos 80 e tem toda uma infra-estrutura para ser re-
modelada, o que vai exigir o recrutamento de milhões de trabalha-
dores. O problema é que, à medida que nossa economia se moder-
niza, os bons empregos ficam restritos aos mais bem preparados, e
muitos estarão excluídos, atuando no mercado informal. Essa é ou-
tra tendência de nossa época, com baixa remuneração e trabalho
precário.
É evidente que o processo de formação sofreu mudanças ao
longo dos anos em decorrência das atuais exigências de mercado.
Se até a metade do século XX a formação tinha um cunho totalizan-
te, rígido e autoritário, hoje a educação firma-se em moldes mais
globalizantes (Desaulniers, 1993), porque a tecnologia impõe um
ritmo acelerado de mudanças sociais e econômicas, implicando uma
constante reposição de saberes, não necessariamente ligados aos
postos de trabalho. É nessa medida que o conceito de educação
também sofre alterações, podendo, hoje, ser incluído na categoria
formação, compreendida como um conceito capaz de designar as
qualidades sociais da escola e de diversos outros modos de sociali-
zação desencadeados na sociedade industrial desenvolvida que ga-
rantem aos indivíduos desenvolverem outros tipos de competências
específicas.
Assim, buscamos também compreender aqui o movimento de
construção de conceitos que se dá dentro de uma sociedade em
transformação. A educação enquanto formação, considerando o fa-

O papel social do professor universitário 65


to de que todo conceito é socialmente construído. Somos levados a
pensar que, em se tratando do contexto de globalização, este passa a
envolver várias outras dimensões referentes à vida social, como a
aprendizagem, a reciclagem, o aperfeiçoamento, a formação profis-
sional, o que, em outras palavras, pode significar um processo de
formação contínua ou, como vem registrando a imprensa de um
mod0 geral, a exigência de um perfil mínimo que permita acompa-
nhar as mudanças tecnológicas.
Vem sendo veiculada pelos meios de comunicação a idéia de
que a/armação é um dos fatores mais importantes para a recupera-
ção do emprego e de que a sociedade como um todo já é considera-
da sinônimo de melhora profissional. O discurso de que a formação
seja um fator fundamental de garantia de emprego faz com que as
pessoas busquem "na formação a chave para alcançar suas expecta-
tivas laborais" (Lope, 1998).
De fato, nem a literatura sociológica nem o debate social, regis-
trado pela imprensa, deixam claro o uso do conceito de formação
(Lope, 1998, p. 186). Sabe-se, porém, que ela envolve conhecimen-
tos abstratos e técnicos, saberes adquiridos dentro e fora dos siste-
mas educativos. E que a formação não é mais patrimônio exclusivo
desses sistemas - sua aquisição dá-se por meio de um processo con-
tínuo e múltiplo e, sendo assim, podemos incluir dentro de tal con-
ceito as experiências e a socialização adquiridas em outras esferas
sociais.
Esse conceito multidimensional também inclui uma disposição
da sociedade em oferecer a cada um oportunidades de educação a
cada momento, conforme as necessidades sentidas. Abrange tam-
bém a articulação entre escolaridade e experiência, visando a capa-
citar para as diferentes atividades profissionais de maneira flexível
e conversível às necessidades atuais.
Isso nos faz refletir sobre a questão crucial de nossa época: a
globalização econômica. Na sociedade global, a capacidade dos Es-
tados nacionais para resolver problemas fica reduzida. O Estado
não detém mais o monopólio do espaço público, existem novas ori-
entações para as políticas globais e os novos problemas passam a
exigir novas instâncias de decisão. A formação é um ponto crítico
da globalização da economia para os países em desenvolvimento.

66 Aspectos da teoria do cotid iano


Os novos processos de produção exigem trabalhadores mais quali-
ficados. Surge a nova classe do trabalhador do conhecimento da
economia mundializada. Peter Drucker, referência da administração
moderna, ressalta que isso, mais que uma mudança social, é uma
mudança na condição humana. O que ela significa, quais são os
seus valores, os compromissos e os problemas da nova sociedade,
ainda não sabemos. O que sabemos é que eles serão muito diferen-
tes (Drucker, apud Bridges, 1996, p. 2).
É nesse contexto que o papel da educação universitária, a indis-
sociabilidade das tarefas do ensino na construção do conhecimento
e o importante papel do professor universitário enquanto uma das
faces do processo ensino-aprendizagem desafiam-me a prosseguir
nessa reflexão.

Revendo a História
O debate que hoje se instaura considera os problemas do ensino
em geral. O dilema diz respeito ao fato de que a universidade com a
qual nos deparamos e que imaginamos que poder ser alterada é uma
universidade fortemente influenciada por uma nova organização da
sociedade nacional. O predomínio do capital em grande escala
transnacional tomou conta do Estado e influenciou amplamente a
própria universidade. A Reforma Universitária de 68 posta em prá-
tica por militares e por vários educadores "ajustou" a universidade
às exigências do capitalismo nacional e internacional.
Essas colocações nos levam a pensar que o autoritarismo e a
centralização burocráticos, característicos da sociedade brasileira,
evidentemente, afetaram a universidade como parte de um todo so-
cial.
Desse modo, nossas inquietações são resultantes do fato de que
ainda hoje nos deparamos com uma universidade ainda estruturada
segundo as exigências do grande capital, em que existem profissio-
nais capazes de ler receitas, pessoas que cumprem competentemen-
te tarefas que lhes são atribuídas.
Até 64, tínhamos uma universidade com outra conotação, uma
universidade com compromisso político, cujo ambiente era próprio
ao debate intenso, tendo em vista as contribuições internacionais

O papel social do professor universitário 67


diversas. Fomos vítimas de uma ditadura militar numa escala de de-
sastre cultural e política que ainda não conseguimos avaliar. Aí, a
formação do professor universitário defronta-se com uma estrutura-
ção que induz a um certo tipo de profissionalização.
O grande desafio desse profissional é pensar a formação desse
novo homem num contexto de capital mundializado, de dissemina-
ção da teoria neoliberal, altos índices de desemprego e exclusão so-
cial e conseqüente reorganização do mundo do trabalho, para que
ele possa apreender e assimilar o mundo em que vivemos em con-
dições de transformá-lo e não de reproduzi-lo.
Entendo como desafio, pois o conhecimento que permeia os
currículos escolares está comprometido com o saber fragmentado e
com valores que servem a grupos dominantes. Tudo isso porque os
sistemas educativos têm como objetivos fornecer à indústria e à so-
ciedade em geral trabalhadores, consumidores e indivíduos aptos a
manterem o equilíbrio do mundo moderno (Régnier, 1993). A edu-
cação tem sido uma grande aliada desse processo massificante, na
medida em que se ocupa cada vez mais em transmitir conhecimen-
tos a respeito de coisas e verdades científicas em detrimento da
formação integral do ser humano.
Não se trata de deixar de ensinar história ou qualquer outra área
do conhecimento humano. Tampouco desprezar a qualificação pro-
fissional do trabalhador só porque é reducionista e fragmentada. O
que precisa mudar é a atitude de quem ensina, porque nela estão
condensados os valores que sustentam as práticas pedagógicas: le-
var para dentro dos sistemas educativos a preocupação com a am-
pliação da consciência humana, privilegiar a formação integral do
trabalhador, ajudando-o a compreender sua evolução enquanto ser
humano, não apenas enquanto trabalhador, ajudando-o a compreen-
der seu valor único como indivíduo, sua relação com o todo e sua
responsabilidade de colocar-se no quadro geral da sociedade.
Os educadores que se abrirem a essa nova postura poderão estar
ajudando na construção de um alicerce seguro para as próximas ci-
vilizações, mas terão que se preparar para um renascimento de todo
um conhecimento criativo do homem. Certamente, desses passos
iniciais dependerá a natureza da civilização deste milênio.

68 Aspectos da teoria do cotidiano


Contudo, os limites para esse tipo de atitude ousada podem es-
tar na própria tradição cultural brasileira. Ao longo dos anos, o pro-
fessor tem-se mostrado um agente puro e simples de transmissão
cultural. A esse propósito é o que bem nos mostra Fernandes
(1986):
"[ ... ] o intelectual era, por assim dizer, domesticado, quer fosse de
origem nobre ou de origem plebéia, automaticamente se qualificava
como um componente da elite e, quando isso não ocorria, como suce-
deu com os professores de primeiras letras, ele era um elemento de
mediação, na cadeia interminável de dominação política e cultural".
É essa a tendência que se mantém nos nossos dias. Quando foi
fundada a Faculdade de Filosofia, já se sabia que não estavam plan-
tando no Brasil a semente de uma revolução cultural, mas sim bus-
cando fortalecer seus quadros humanos. O professor nunca foi pos-
to num contexto de relação democrática com a sociedade, ele foi
sempre considerado um instrumento de dominação. O reflexo disso
está na maioria dos livros escolares em que muitos de nós estuda-
mos e que marcavam de uma maneira quase hierárquica o caráter
autoritário da educação. A criança ia para a escola não para se de-
senvolver enquanto pessoa, mas para aprender mecanicamente o
que lá era repassado. O que Fernandes ( 1986) chama de "empobre-
cimento cultural", aprender técnicas divorciadas da capacidade de
pensar e de ser diferente.
Com a implantação da Repúbl ica, era de se esperar que a edu-
cação deixasse de ser uma educação dos príncipes para ser uma
educação da massa de cidadãos. Na verdade, isso não se deu, e essa
massa continuou a ser ignorada como antes. No circuito das trans-
formações, acabou prevalecendo a idéia, tanto na Escola Normal
quanto na Faculdade de Filosofia, de que o professor deveria man-
ter uma atitude de neutralidade ética com relação aos problemas da
vida e com relação aos valores. A essa concepção correspondeu à
idéia de que era necessário separar o cidadão do cientista e do pro-
fessor, o que foi fatal para muitas gerações. O cidadão não pode fi-
car de um lado e o professor de outro, pois o cidadão é o principal
elemento da condição humana do professor.

O papel social do professor universitário 69


"Se o professor não tiver em si a figura forte do cidadão, acaba se
tornando instrumental para qualquer manipulação, seja ela democráti-
ca ou totalitária" (Fernandes, 1986).

O professor, então, não pode estar alheio a essa dimensão; se


ele quer mudança, tem que realizá-la dentro da escola e fora dela. O
pensar politicamente não se aprende fora da prática, e a mudança,
em qualquer sociedade, é um processo político. É pensando politi-
camente que o professor pode fazer da escola e seu cotidiano ins-
trumentos de transformação do meio ambiente social.
Muitas vezes, o professor não possui formação suficiente para
entender o que lhe compete fazer. Mas muitos aprenderam várias
formas de se articular e não têm mais aquela atitude de distancia-
mento e sim de confraternização. Ao ser rebaixado de seu nível so-
cial, o professor respondeu positivamente. Em vez de se considerar
degradado, procurou naquele ser humano, que antes não compreen-
dia, um igual, e com ele buscou uma proposta de cooperação na so-
ciedade. Essa atitude pode ser vista mais como assistencial do que
propriamente política, mas é um posicionamento, uma ruptura e,
como bem nos coloca Fernandes (1986):
"[ ... ] uma vitória da percepção de que o elemento humano que vai pa-
ra a escola realmente precisa ser aí compreendido e transformado,
dentro dos limites possíveis".
Haveria também outros tantos problemas a salientar, como o
desnivelamento pelo qual passa a atividade do professor, que, em
sendo profissional, é também econômico e, sendo as duas coisas,
acaba sendo cultural. O professor perde prestígio como profissional,
perde renda e também perde tempo para adquirir cultura e melhorá-
la para que possa tornar-se um cidadão ativo e exigente.
Antes da década de 70, o magistério era considerado profissão
de muita competência, os professores eram respeitados, embora o
afastamento entre eles e o aluno fosse maior. "A competência era
aliada à falta de diálogo, marca dos anos 80 como mudança e opo-
sição à década de 70" (Wernec, 1995).
Naquele momento, a sindicalização era nula e os debates sobre
salários e mensalidades eram inexistentes, porém, ganhava-se mais,
e a lei da paridade fazia com que o professor fosse comparado ao

70 Aspectos da teoria do cotidiano


coronel da Polícia Militar. O respeito existia, e a consideração co-
mo uma profissão de alto valor era um fato. Se, por um lado, a dé-
cada de 70 promoveu um aumento sensível da população escolari-
zada, por outro desqualificou o magistério. Isso tudo sem contar as
complexas relações entre o Brasil e outras sociedades capitalistas.
Ou ainda o fato de termos tido a Reforma do Ensino de 68 que aca-
bou reordenando nosso sistema educacional, introduzindo concep-
ções que fortaleceram a idéia de que a educação, para ser responsá-
vel, precisava sobretudo ser uma mercadoria. Daí a necessidade que
o professor tem de ser crítico diante dessa realidade para nela de-
senvolver um nova prática.
Paulo Freire (1997, p. 2), num texto inédito publicado recente-
mente por um jornal do país, reforça e distingue a reflexão proposta
com sua colocação sobre a educação atual e o papel do professor:
"a prática educativa tem que ver, na medida em que é uma prática so-
cial e histórica, com as condições de tempo e espaço em que se dá.
Por causa das revoluções tecnológicas que se sucedem em prazos ca-
da vez menores .. .esses avanços colocam algumas exigências para essa
geração jovem que está aí ou para a outra que está chegando".
É nesse novo contexto desencadeado pelo avanço tecnológico
que surge a necessidade de a experiência educativa ser centrada no
desenvolvimento, na criação e na construção de uma consciência
que Paulo Freire chama de "consciência crítica". A tecnologia passa
a exigir cada vez mais respostas rápidas e precisas, propondo desa-
fios diferenciados que não podem ficar à espera de amanhã. Esse é
um dos problemas a ser enfrentado pela atual geração e o motivo
pelo qual ela precisa assumir a briga por uma transformação peda-
gógica, que implica também o papel do professor enquanto uma das
faces do processo ensino-aprendizagem.
A autoritária tradição brasileira coloca sempre o formando co-
mo um objeto sob a orientação do educador. E assim, retomando
Régnier (1993), citada anteriormente nesta reflexão, é preciso mu-
dar urgentemente a postura de quem ensina. O conhecimento, mo-
eda mais valiosa do século XXI, não se transfere; o conhecimento,
como a inteligência, se constrói. Esse passa a ser o problema mais
sério do processo educacional.

O papel social do professor universitário 71


Preocupa-me, enquanto professora universitária, o modo como
devemos viver a prática educativa. Assim sendo, parece primordial
a compreensão do que seja o papel social do professor e, para tal,
sob o enfoque de Agnes Heller, coloco-me frente ao desafio dessa
percepção.

O papel social do professor na estrutura da vida cotidiana


Agnes Heller (1987) considera a "vida cotidiana" como sendo
"a vida do homem inteiro". É nela que se desenvolve toda a carac-
terística fís ica, social e psicológica e também em que o homem
exercita todas as suas habilidades, capacidades e paixões.
A vida cotidiana representa, então, o conjunto de atividades que
caracteriza as reproduções particulares criadoras da possibilidade
global e permanente da reprodução social, ou seja, as atividades de-
senvolvidas na vida cotidiana caracterizam a reprodução dos ho-
mens singulares que, por sua vez, vão criar a possibilidade da re-
produção social. Sem a vida cotidiana o ser humano não sobrevive-
ria, pois trata-se da base da própria mobilização humana.
Ao estudar a categoria "papel social" segundo sua forma clássi-
ca de manifestação, não se pretende negar os numerosos fatores da
vida cotidiana, dados de modo geral na existência social do homem,
mesmo porque não existe fronteira rígida entre os comportamentos
destituídos do caráter de "papel social" e aqueles que o possuem.
No entanto, vale ressaltar que "o comportamento global dos
homens transforma-se quando eles estão colocados diante do públi-
co" e, nesses casos, os homens adotam uma "postura". É em públi-
co que eles são mais sinceros, é ali que ele representa um papel "dá
seu espetáculo, expressa opiniões, etc. Mas não há nenhum homem
que conheça o outro indivíduo em todas as suas relações, na totali-
dade de suas reações" (Heller, 1985, p. 92). Isso porque as pessoas
só podem captar apenas aspectos isolados da personalidade dos in-
divíduos. Por outro lado, é possível conhecer o homem mediante
suas experiências sociais individuais averiguando se um determina-
do indivíduo se manifestou num ato importante, decisivo, essencial
e, a partir desse conhecimento, traçar tendências sobre o comporta-
mento desse indivíduo em situações futuras. Evidentemente, essa

72 Aspectos da teoria do cotidiano


inferência pode também nos levar a um equívoco, pois em qualquer
conhecimento há possibilidade de equívoco Mas é possível, como
nos diz Heller, inferir a interioridade a partir da exterioridade, e,
ademais, é imprescindível fazê-lo.
A autora também ressalta que o comportamento do indivíduo
com relação ao seu papel ou a seus papéis pode variar muito e que
essas variações são praticamente inesgotáveis. Chama também nos-
sa atenção para o fato de que "a plena identificação com o papel ou
com os papéis é precisamente a forma mais direta de se entregar à
alienação, nesse caso, chega-se a perder a continuidade do caráter,
chega-se à completa atrofia, à dissolução da personalidade" (idem,
p. 98).
A partir dessa colocação podemos, então, entender que o nosso
papel social inclui nossa mobilidade na vida cotidiana, nossa capa-
cidade de articulação frente a nossos diferentes papéis. A questão
que se coloca é como nós nos colocamos frente a eles. No caso de
nos identificarmos plenamente com um único papel, podemos estar
possibilitando uma cristalização que nos pode levar à perda de nos-
sa própria identidade. Em assim sendo, é necessário ter um distan-
ciamento que nos garanta uma mobilidade para vivermos em socie-
dade nossos outros papéis sociais.
Porém, é preciso considerar que o homem é mais do que o con-
junto de seus papéis, mesmo porque tais papéis são apenas as for-
mas de suas relações sociais estereotipadas em clichês e também
porque os papéis sociais jamais esgotam o comportamento humano
em sua totalidade.
"A verdadeira espontaneidade é sempre exteriorização da personali-
dade, e, como tal, um ato de liberdade, a verdadeira consciência é um
comportamento que busca as conexões objetivas da realidade, sendo
também um ato de liberdade" (Heller, 1985, p. 105).
Outra questão importante a ser ressaltada é que as funções de
tipo "papel" são condicionadas pelo conjunto da sociedade. Geral-
mente, em situações novas ou surpreendentes nas quais os estereó-
tipos deixem de funcionar ou funcionem mal, restabelece-se sempre
a unidade da personalidade, isto é, "que tipo de homem se trata". Aí
entram em ação as qualidades humanas mais gerais e imediatas,
como solidariedade, bondade ou também indiferença, egoísmo, co-

O papel social do professor univers itário 73


modismo, as quais incluem um comportamento contrário às quali-
dades humanas. Seria "ridículo" afirmar, segundo Heller, que nes-
ses casos as pessoas assumam outros "papéis", como o de médico,
enfermeiro ou amigo. As qualidades que aparecem em situações
inusitadas ou surpreendentes são características do homem inteiro,
do indivíduo, que não se limitam a papéis determinados (idem,
ibid., p. 107).
Tendo como apoio as idéias de Heller, vamos encontrar a edu-
cação como um palco de objetivações realizadas por meio do jogo
da vida cotidiana, desencadeado pelas práticas sociais imediatas.
Dessas objetivações distingue-se o ensino como elemento de inicia-
ção ao saber mais amplo. Saber este que, como as ciências e as ar-
tes, irão permitir-nos superar a própria vida cotidiana.
Ao professor, sendo o elo central da aprendizagem do aluno,
cabe considerar que ele é um sujeito concreto de carne e osso, si-
tuado num espaço e num tempo e que atua juntamente com o con-
texto da realidade na qual a escola e os alunos se inserem e atuam.
Vale questionar também quem é o professor universitário, esse
intelectual que vai desempenhar atividades de docência em diferen-
tes ambientes, sejam eles públicos ou privados, espaço privilegiado
da vida cotidiana. Sabemos que o professor é um intelectual que
entra no jogo das forças sociais. Portanto, ele precisa assumir-se um
intelectual produtivo. E à medida que seu trabalho se realiza, ele
entra na produção ou na reprodução cultural de valores, idéias, pa-
drões que engendram a máquina social no âmbito da sociedade, fa-
zendo parte das forças sociais em luta pela reforma universitária,
pela democracia, pelo capitalismo ou pelo socialismo.
No comportamento de "papel" os homens atuam segundo as re-
gras do jogo e, por mais cristalizado que esteja em papel, não existe
nenhum comportamento que não desperte com alguma freqüência a
consciência da responsabilidade pessoal, e dela o professor pode-se
utilizar com a finalidade de promover transformações em seu coti-
diano.
Portanto, a realidade escolar não é uma realidade dada e imutá-
vel. E é conforme o professor toma consciência e assume seu papel
social que se pode repensar a ação pedagógica em função do mo-
mento histórico.

74 Aspectos da teoria do cotidiano


Heller ajuda-nos nessa compreensão ao afirmar que o cotidiano
é o lugar do espontâneo, do hábito, do desempenho automático de
papéis, de rotina, mas é também o lugar onde o homem participa
por inteiro e inteiramente. Onde apreende o mundo e nele se objeti-
va de forma única. Portanto, é um espaço onde o homem vive sua
particularidade, mas também onde pode superá-la em direção ao
humano-genérico. Assim sendo, o professor precisa ampliar seus
limites de mundo, principalmente no que se refere a seu papel so-
cial. Isso pode ser feito por meio do diálogo, da leitura, do estudo
de autores capazes de auxiliarem nessa caminhada e, por que não
dizer também, de sua capacidade de se articular frente a outros pa-
péis.
É certo que os professores avançaram em relacionamentos; alu-
nos e professores trocam hoje muito mais experiências. Certo é
também que a década de 70 permitiu uma certa desqualificação do
magistério. Professores, formados em curtas temporadas para aten-
der às necessidades do mercado, trocavam a formação por salários
incompatíveis com a dignidade da profissão, fazendo com que sur-
gisse também o subemprego numa carreira necessária ao desenvol-
vimento nacional.
Os salários foram caindo e os profissionais passaram a lutar por
melhores para poderem garantir suas necessidades básicas, deixan-
do para trás a busca de saberes de aperfeiçoamento, pois esse pro-
fissional não tinha tempo nem dinheiro para reciclar-se.
O tempo avançou e, com ele, a técnica. Muitos mestres, porém,
ficaram paralisados nos conhecimentos adquiridos nas faculdades,
além de terem introjetado outras idéias como a descrença na reci-
clagem e nas discussões sobre educação. Enquanto lutavam por
perdas advindas de planos econômicos desastrosos, a sociedade
também perdia; os mestres não conseguiam acompanhar o avanço
de um tempo em mudança vertiginosa.
E assim os professores viveram enquanto "seres particulares",
produtos e expressões das relações sociais desencadeadas na socie-
dade naquele momento, sem se preocuparem com o humano-
genérico, canal que nos permite formas de elevação acima da vida
cotidiana que produzem resultados duradouros como a arte e a ci-
ência. Podemos, a partir disso, inferir que o comportamento desses

O papel social do professor universitário 75


indivíduos com relação a seu papel social era em certa medida alie-
nado. Havia uma identificação plena, o que garantia uma cristaliza-
ção de seu papel de professor, levando-os a uma certa imobilidade
na vida cotidiana.
Isso também é devido ao fato de que o capitalismo, à medida
que se desenvolve, aliena todas as relações humanas, cristalizando
em papéis todas as hierarquias de comportamento, a relação com a
tradição, com os costumes, fatos vitais imprescindíveis para a cons-
ciência humana. Para a média dos homens passa a ser impossível
distinguir entre as estruturas valiosas e a sua função de papel. Para
que essa distinção seja possível, alerta-nos Heller (1985), "são ne-
cessárias capacidades intelectuais incomuns e uma força moral ex-
traordinária".
Sendo assim, se é na sociedade que o homem se coloca por in-
teiro e põe em funcionamento todos os seus sentidos, suas habilida-
des, seus conhecimentos, ideologias, etc., é bom lembrarmos que,
se quizermos mudar a história, precisamos estar dentro dela e apro-
veitar, quem sabe, nosso papel social.
Importante também se torna a contribuição da autora em ques-
tão no que diz respeito ao comportamento global dos homens. Este
se transforma quando eles se encontram em público, pois é lá que
ele dá seu espetáculo e expressa suas opiniões. Observa-se então
que o professor não pode manter atitudes de neutralidade ética com
relação aos problemas da vida e com relação aos valores. Isso por-
que não se pode separar o cidadão do professor. E é na vida coti-
diana que o professor se mostra enquanto indivíduo, na sua particu-
laridade. E, assim, mediante suas experiências sociais, ele será co-
nhecido, analisado.
Vale também ressaltar que o papel social é resultado de nume-
rosos fatores da vida cotidiana. A vida social desde a mais elemen-
tar não pode ser imaginada sem a imitação de comportamentos e
conduta. Isto se torna evidente sobretudo na imitação de usos. Os
homens, nas sociedades pré-capitalistas, tinham então uma orienta-
ção voltada para o passado, isto é, reproduziam os atos dos pais e
dos avós, o que garantia a perpetuação dos usos assimilados. No ca-
so da educação, o repasse de conhecimentos, a postura distanciada
dos professores também lhes garantia certa posição de competência

76 Aspectos da teoria do cotidiano


e respeito. Hoje, porém, as coisas mudaram. Os homens passaram a
se orientar voltados ao futuro. A produção não se limita mais ao es-
sencial. Ela passou a ser indefinida, despertando nos homens uma
necessidade contínua de renovação e de transformação tanto da so-
ciedade como dele próprio. Mudou também o paradigma educacio-
nal.
Na educação enquanto transmissão de conhecimento tradicio-
nal, não encontra a construção do verdadeiro conhecimento, uma
vez que não existe diálogo entre as partes interessadas. É preciso,
então, assegurar que o processo educativo seja libertador; um per-
manente ato de conhecimento.
A escola, pela natureza do trabalho que desenvolve, tem um sé-
rio compromisso com a liberdade da sociedade brasileira, ao lado
de outras instâncias que a compõem. Para derrubar o cerco roboti-
zante e reprodutor de conhecimentos é preciso determinar novas fi-
nalidades para a educação. Não se pode mais aceitar no professor a
cristalização de um papel, ou seja, a "coisificação" desse profissio-
nal. Em vez da acomodação, o professor deve buscar a superação
desse papel. Trata-se, portanto, de uma revolução qualitativa do se-
tor educacional, o que exigirá esforço, o que significa dizer não à
acomodação e à alienação, pois é exatamente a procura de tal supe-
ração que irá possibilitar o humano-genérico.
É nessa perspectiva que também muda todo o papel social do
professor. O ensino não pode mais ser visto como algo transmitido
e acumulado pelo aluno. Apropriar-se do conhecimento não inclui
simplesmente reprodução. Ensinar pressupõe diálogo, troca, forma-
ção da consciência crítica. O modo pelo qual tudo isso pode ajudar
no processo de organização da sociedade e na transformação da rea-
lidade é algo que deve ser pensado, produzido e recriado pelo pró-
prio educador. Daí a necessidade de não aceitar a realidade imposta,
colocando-a em permanente questionamento e análise em função
dos novos desenvolvimentos. Essa é a obrigação de todo professor
consciente. Somente uma problematização da ação pedagógica atu-
al pode, de maneira gradual e participativa, levar a reescrever uma
nova realidade em nível de educação.
Existe também a necessidade de esse professor estar atento para
não sucumbir à plena identificação com seu papel - o que o tornaria

O papel social do professor universitário 77


um indivíduo alienado. É preciso considerar que nosso papel social
também prescinde de mobilidade para melhor transitarmos por nos-
sa vida cotidiana, que, por si só, já nos reserva vários outros papéis.
A questão que se coloca é como nos colocamos frente a esses pa-
péis. Se nos identificarmos plenamente com um papel, poderemos
estar permitindo a cristalização de tal papel e correndo o risco de
perdermos nossa própria identidade.
Os papéis sociais são condicionados, antes de tudo, pelo con-
junto da sociedade; porém, vale ressaltar que, mesmo em contextos
mais manipulados, é possível produzir a "recusa de papel". Em to-
dos os contextos, existem excêntricos, rebeldes e revolucionários. E
eles são capazes de cumprir o papel que lhe é exigido no mundo
sem abandonar seu núcleo humano e sem desprezar os homens que
representam ingenuamente vários papéis.
Em se tratando de educação, sendo o saber historicamente cons-
truído, sob nenhum aspecto este pode ser visto como um corpo aca-
bado de conhecimentos (Rays, 1989). Em sendo o saber inacabado
e historicamente produzido, vale repensar o confronto entre o "sa-
ber sistematizado" e o "saber cotidiano", este último podendo ser
entendido como: "a soma de nossos conhecimentos sobre a realida-
de que utilizamos de um modo efetivo na vida cotidiana do modo
mais heterogêneo" 1 (Heller, 1987). Esse confronto deverá ser con-
siderado de forma mais detalhada por parte dos educadores que se
dispuserem a desencadear um trabalho crítico e inserido num proje-
to emancipador da educação. Começando, quem sabe, pelo modo
como esse profissional desempenha o seu papel social.
Ao final dessas reflexões sobre papel social não poderíamos
deixar de abordar a questão da moral que permeia basicamente toda
a teoria utilizada neste ensaio. Para Heller, é elementar o fato de o
indivíduo desenvolver capacidades diferenciadas na execução de ta-
refas ou papéis também diferenciados. É atuando em diferentes si-
tuações que ele consegue inverter a atitude de todo o seu ser moral,
ou seja a sua inferioridade, que se transforma em interação com
sua exterioridade. Mas, na medida em que os papéis se convertem
em estereótipos, as transformações mantêm-se como meras aparên-
cias. Assim, quanto mais se estereotipar os papéis, menos o homem

1
Tradução livre da versão em espanhol.

78 Aspectos da teoria do cotidiano


poderá crescer enquanto ser histórico. Os comportamentos do tipo
papel modificam a função do dever-ser na vida cotidiana. O dever-
ser revela-se na relação do homem inteiro com seus deveres, com
suas vinculações, sejam políticas, morais ou de outro tipo. O certo é
que, em situações sociais não-alienadas ou até mesmo parcialmente
alienadas, o dever-ser referido a inteiros complexos de comporta-
mentos pressupõe o dever-ser moral. Na medida em que os aspectos
morais do dever-ser se atrofiam, não terei condições de saber se se-
rei uma boa professora quando prescreve o papel, ou se basta como
conteúdo de uma vida o exato cumprimento dos deveres de profes-
sor!

Tentativa de análise
Se hoje nossos problemas educacionais se constituem num
grande obstáculo à nova dinâmica imposta pelo avanço social, cer-
tamente propostas políticas educacionais estão sendo e serão im-
plementadas. Quem sabe seja esse o espaço, o momento de apos-
tarmos, enquanto professores, numa verdadeira consciência capaz
de revolucionar nossa educação e de garantir o desempenho de um
papel social que, ao buscar conexões objetivas de realidade, não
comporte atitudes que sejam simples adaptações, mas que, por ou-
tro lado, inclua também um ato de liberdade. O que só será possível
se o professor deixar vir à tona suas qualidades humanas mais ge-
rais e imediatas, como a bondade, a solidariedade e o respeito. Jun-
to a elas também a capacidade de avaliar com tato uma situação ou
um aluno. É assim que possibilitará a construção do verdadeiro
aprendizado, aquele baseado nas relações de troca. Neste momento,
vale esclarecer que, ante os múltiplos desafios do futuro, a forma-
ção surge como um trunfo indispensável à humanidade na sua cons-
trução dos ideais da paz, da liberdade e da justiça social. Não se tra-
ta de um pensamento ingênuo que aponta esse fenômeno social co-
mo a panacéia para todos os males, mas um pensamento que consi-
dera a formação um processo permanente de enriquecimento dos
conhecimentos e também como uma via privilegiada de construção
da própria pessoa, das relações sociais, dos grupos e das nações.

O papel social do professor universitário 79


Mesmo porque, neste momento de tantas rupturas, de mudanças rá-
pidas e de economia globalizada, a formação faz a diferença.
Além do mais, é preciso pensar que "há um desejo que não po-
de ser anulado por nenhum outro: compartilhar a responsabilidade
com nossa contemporaneidade" (Heller, 19822 ). É dessa maneira
que o professor estará preparando o profissional demandado pelo
século XXI, construindo a história, como tão bem nos coloca Bel-
ler; o suporte da vida cotidiana.
Ao iniciar esta reflexão anunciei a forma pela qual fui apresen-
tada a Agnes Heller, um artigo de jornal que expunha sua palestra
sobre a felicidade. Neste momento posso dizer que: felicidade foi
tê-la conhecido. Suas idéias possibilitaram estas reflexões, com as
quais tenho como objetivo contribuir para um melhor entendimento
do papel social do professor evidenciando sua implicação no pro-
cesso educacional.

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2
Tradução livre da versão em espanhol.

80 Aspectos da teoria do cotidiano


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O papel social do professor universitário 81


5

Institucionalização do idoso:
observância ou transgressão
de sistemas normativos?
Marisa S. Z. de Mendiondo*

--------~·----------

A velhice é considerada um dos fenômenos mais significativos


deste século, pois não são já as pessoas isoladas que envelhecem
senão as populações das cidades, das regiões, dos países. Tornou-se
um fenômeno universal. Até nos países mais pobres, os diversos
avanços tecnológicos e científicos têm conseguido aumentar as ex-
pectativas de vida, possibilitando que as pessoas adultas vivam
mais tempo. Os chamados países jovens, atualmente, estão experi-
mentando um envelhecimento acelerado de sua estrutura popula-
cional.
O processo de envelhecimento pouco respeita raças, grupos
sociais, sexo. Mais cedo ou mais tarde, um número cada vez mais
crescente de pessoas são consideradas pessoas idosas. Existem em
nossas sociedades critérios mais ou menos discutíveis que rotulam e
demarcam a entrada da pessoa na velhice. A idade cronológica é
ainda um dos critérios mais cruéis. A Organização Mundial da Saú-
de tem determinado, para os países em desenvolvimento, os 60 anos

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de


Serviço Social da PUCRS.

lnstitucionalização do idoso: observância ou transgressão de sistemas. .. 83


como a idade do começo da velhice, coincidindo, para muitos paí-
ses, com o afastamento do trabalho, isto é, das camadas chamadas
"ativas" da sociedade. Tais acontecimentos conduzem ao fato de
que dentro da população idosa do Brasil, por exemplo, encontrem-
se duas gerações de idosos numa mesma família, nas regiões onde a
expectativa de vida é mais elevada, como é a região sul.
O grande número de idosos e as idades tão diversas descobre
um segmento populacional com interesses, necessidades, demandas
e reivindicações extremadamente heterogêneos. Quais são os espa-
ços que a sociedade oferece para esse enorme contingente? A reali-
dade demonstra que fora do âmbito familiar as oportunidades que
têm o idoso são muito escassas. A mais tradicional é o asilo, resi-
dência de idosos destinada principalmente a indivíduos sem famí-
lias e em situação de pobreza e vulnerabilidade extremas. Lenta-
mente também foram surgindo alguns agrupamentos de idosos, im-
pulsionados por igrejas, instituições, clubes, dos quais participam
idosos dispostos que lutam contra os preconceitos e estereótipos
que a sociedade não se cansa de reforçar para essa fase da vida.
Também, fruto das mudanças da sociedade, foram surgindo as casas
de repouso, as residências, as clínicas geriátricas, verdadeiras em-
presas lançando-se a um novo mercado, o da velhice.
Frente a esta situação e à falta de alternativas, a institucionali-
zação da pessoa idosa é freqüente. Essa é uma situação muito com-
plexa que gera inúmeros conflitos em primeiro lugar para o idoso, e
em decorrência para todos aqueles envolvidos na tomada de tal de-
cisão, porque, além das necessidades de assistência que os idosos
possam ter nesse momento, entram em jogo valores e todo um con-
junto de normas, regras, costumes que a sociedade tem construído.
Assim, emergem questionamentos, tais como: Como a sociedade li-
da com seus sistemas normativos quando se trata da velhice? Como
emergem no sistema de usos e costumes as mudanças na estrutura
familiar? A institucionalização de um idoso observa ou transgride
os limites dos costumes em nossa sociedade? Quais as principais
tensões que emergem em relação aos sistemas normativos da socie-
dade no momento da institucionalização do idoso?

84 Aspectos da teoria do cotid iano


Os sistemas normativos da sociedade
Dentro da vida cotidiana, o sistema normativo, composto de
normas, regras, usos ou costumes e hábitos, ocupa um papel extre-
mamente importante na socialização da pessoa. Segundo explica
Heller (1995), esta é a razão de não viver num mundo habitado por
seres regulados pelo instinto e, sim, por seres disciplinados por re-
gras e normas. Isso leva a autora a afirmar que não existe um mun-
do sem ética, como tampouco um mundo sem lógica. A ética é a
condição do mundo, pois implica a distinção entre bom e mau, por-
tanto contém em si a orientação do valor. Existem diferenças entre
normas, regras, costumes, hábitos. É isso o que brevemente tenta-se
explicar aqui. Essas diferenças referem-se principalmente ao senti-
do da aplicação.
A regra geralmente é inflexível. Ocasionalmente, pode permitir
algum tipo de acomodamento, que representa a exceção, mas é
muito relativo. O comportamento que corresponde à regra, se-
gundo afirma Heller (1995) permite uma grande variedade de mo-
dos de ação. A regra "prescreve de modo completo o que se deve e
o que não se deve fazer" (1995, p. 49), nasce quando há referência a
algo cuja observância é obvia e natural, ficando evidente quando se
produz uma violação dela.
As normas diferenciam-se das regras, sendo prescrições que
nem sempre são respeitadas completamente, nem são infringidas
completamente. As normas podem manter-se em prática em diver-
sos graus, porque oferecem maior espaço para a deliberação por
parte da pessoa.
Existem dois tipos de normas. As "abstratas", que representam
a genericidade, o universal. Elas expressam as prescrições de valor
humano, portanto, seus conteúdos são universais. São abstratas de-
vido a sua continuidade e estabilidade num determinado grupo so-
cial. As outras são as "concretas" e representam os valores sociais.
A pessoa apropria-se do conteúdo das normas abstratas e do como
aplicar essa norma na realidade. Sendo assim, as normas se fazem
visíveis tanto no mundo dos objetos como no mundo da ação, tanto
nos meios como nos usos.

lnstitucionalização do idoso: observância ou transgressão de sistemas.. . 85


Heller (1991, p. 254) fala que o cumprimento de uma norma
possui uma "aura". 1 Uma norma cumpre-se quando realiza-se de-
terminada função, mas essa função pode ser realizada de diferente
modo. A norma só se interessa pelo seu cumprimento. A amplitude
da "aura" não é estática, sendo seu limite evidente quando a ampli-
tude da "aura" começa a impedir o cumprimento dessa função, ou
seja, a ação deixa de corresponder a essa norma. Podem surgir di-
versas motivações para que se produza a necessidade de superação
desse limite. A superação pode se dar por casualidade, por impre-
visto ou por própria vontade, mas de qualquer forma produz altera-
ções da vida cotidiana, ou seja, existe uma intenção clara de modi-
ficar essa práxis. Nas regras, a superação dessa "aura" refere-se não
a seu cumprimento, senão ao como cumpri-la.
O sistema de normas e regras de um grupo social pode ser al-
tamente complexo e altamente diferenciável. A diferenciação está
relacionada aos valores que lhe dão sustento. Tais valores que per-
meiam as normas e regras fazem com que exista, em conseqüência,
uma hierarquização entre elas. No sistema normativo abstrato estão
impressos os valores que determinam o agir. Segundo Heller
(1991 ), muitas vezes, surgem contradições na vida cotidiana sem
que as pessoas tenham consciência disso. Só quando o particular
consegue sair da sua esfera da cotidianeidade é que consegue trazer
ao consciente essas contradições. E é dessa forma que pode recha-
çar um sistema de usos ou costumes, ou agir considerando a relati-
vidade de certos costumes, ou até começar a orientar-se por novos
sistemas.
Os sistemas normativos funcionam como "princípios ordenado-
res" dentro da esfera das objetivações-genéricas-em-si. Isso quer
dizer que também os sentimentos, impulsos e aspirações pessoais
estão influenciados por esses sistemas normativos e não só o mane-
jo de instrumentos, a relação com os objetos e coisas e as apropria-
ções da linguagem.
Na sociedade de hoje, os costumes modernos são mais flexíveis
e mudam com um ritmo diferente quando comparados àqueles das
sociedades tradicionais. Atualmente, o modo como é cumprido um

O termo aura vem representar metaforicamente a flexibilidade dos limites das nor-
mas.

86 Aspectos da teoria do cotidiano


uso é muito pessoal como por exemplo, o cuidado dos filhos, o ma-
trimônio, o idoso na sociedade. O sistema normativo de uma socie-
dade não está determinado apenas pelos conteúdos que regula, nem
pela amplitude da "aura", senão também pelos diversos estratos,
grupos sociais e interesses sociais.
Segundo Heller (1991), existem distintos tipos de usos ou cos-
tumes. Os usos ou costumes particulares que regulam a convivên-
cia nos grupos expressam os interesses, os fins, os valores e as ideo-
logias. Os usos por estarem dotados de conteúdo ideológico, ex-
pressam também uma atitude em relação ao sistema de valores.
Quando o particular observa um uso, ele o faz com determinada in-
tensidade, o que explica até que ponto essa pessoa se identifica com
ele.
Os sistemas de usos ou costumes são muito complexos, e numa
mesma época estão vigentes usos diversos. A violação do uso é in-
teressante quando o que leva a violá-los é a não-aceitação desse
uso. Quando essa violação se faz consciente, a ideologia que o em-
basa fica evidente.
Os usos ou costumes condicionados são aqueles que caracteri-
zam um grupo relativamente grande de pessoas. Neles se encaixam
as tradições. Por isso, são usos muito heterogêneos e, por sua vez,
muito pessoais, podendo estar até fora da normatividade. Heller
(1991) opina que:
"O número incrivelmente elevado e a grande difusão dos usos condi-
cionados revelam-nos um fato geral: os usos são 'contagiosos'. Facili-
tam a orientação nas complexas estruturas de atividades, dão enqua-
dramento e forma (freqüentemente de natureza estética e moral) à vi-
da cotidiana" (Heller, 1991, p. 281 ).
Os usos ou costumes pessoais fixam formas de agir determina-
das como, por exemplo, o ritmo de vida. A observância pode variar,
mas devem permanecer dentro da "aura" de usos socialmente vi-
gentes. Para algumas pessoas são tão pessoais que não podem ser
seguidos por outras pessoas. Esta singularidade, muitas vezes, não
está relacionada com as estruturas de usos objetivados, ou bem com
as representações coletivas predominantes em determinados am-
bientes. O uso pessoal é, segundo Heller (1991), indicador da per-
sonalidade do particular. Os usos ou costumes são formados tanto

lnstitucionalização do idoso: observância ou transgressão de sistemas.. . 87


por normas abstratas como por normas concretas, sendo que as que
predominam são as normas concretas. Nas sociedades estratificadas
os sistemas de costumes também estão estratificados, surgindo de-
les os padrões de comportamento.
Notam-se a seguir as diferenças entre usos, ou costumes, e os
hábitos. O hábito surge da práxis repetitiva. Ele significa que de-
terminados tipos de decisões, comportamentos e modos de pensar
aparecem como totalmente "naturais", sendo que sua prática já não
é motivo de discussões.
As normas, regras, usos, ou costumes, e os hábitos são normas
em distintos níveis de concretização e abstração. Elas informam aos
atores como devem agir pois têm a finalidade de sustentar e manter
determinados valores da sociedade.

'
()

"
A

REGRAS
NORMAS

I "'
Abstratas Concretas s
T
I

OBJETIV. EM SI _QSOS e C?STUM~ '


T
o
MESMAS ---------- T ---........ '
Particulares Condicionados Pessoais N
i
Ideologia Formas de agir

HÁBITOS

Figura 2 - Esquema elaborado pela autora para ilustrar os diferentes


níveis das normas e hábitos.

88 Aspectos da teoria do cotidiano


A velhice na sociedade de final do século XX
"Onde tem vida humana, tem também normas e regras. As normas e
regras constituem grupos sociais e as normas e regras que constituem
um grupo social dado devem ser aplicadas a todos os membros desse
grupo de forma consistente e contínua" (Heller, 1995, p. 143)_2

Segundo a citação anterior, a condição humana está intimamen-


te ligada à criação de sistemas normativos que regulam socialmente
o homem no mundo, diferenciando-o dos animais que são regulados
pelos instintos. Os sistemas normativos podem ir mudando seus
conteúdos e suas estruturas ao longo do tempo, porque as regula-
ções sociais são criadas pelo homem, portanto pode criar novas e
substituir as antigas. Relacionando os sistemas normativos vigentes
na sociedade atual com a questão da velhice, pode se observar que
eles prescrevem o respeito pelo idoso, a não- discriminação, o cui-
dado e o amparo à velhice. Isso fica demonstrado concretamente
quando se efetivam denúncias publicamente contra abusos, maus
tratos, desrespeitos e discriminações que sofrem os idosos. Tanto é
assim que o homem tem criado instituições sociais que objetivam
zelar pelo cumprimento desses sistemas normativos punindo atitu-
des transgressoras. Alguns exemplos são a Delegacia do Idoso, a
Secretaria Municipal de Saúde através do setor de fiscalização de
casas e residências para idosos, o Conselho Estadual do Idoso, en-
carregado de gestar e providenciar o cumprimento das políticas so-
ciais para esse segmento populacional.
Os últimos censos nacionais vêm divulgando dados que indi-
cam um importante aumento da população idosa. Há vários anos,
dados demográficos internacionais, vêm tratando de tendências que
indicam o envelhecimento acelerado da população latino-america-
na, principalmente porque países como Uruguai, Argentina e Brasil
têm alcançado índices de longevidade maiores nos últimos cinqüen-
ta anos, enquanto os índices de natalidade têm diminuído. Isto vem
provocando, indiscutivelmente, um importante envelhecimento po-
pulacional. A perspectiva para o próximo milênio é que existam,
nestes países, cada vez mais pessoas idosas.

Todas as citações do livro de Agnes Heller intitulado Ética general, são uma tradu-
ção livre da versão em espanhol.

lnstitucionalização do idoso: observância ou transgressão de sistemas... 89


O envelhecimento populacional é um fenômeno próprio deste
século que afeta a população mundial, mas que no contexto sacio-
cultural latino-americano adquire características peculiares e dife-
rentes das que vêm-se manifestando em outros países mais desen-
volvidos. A situação social, política, econômica em que se encon-
tram os paises coloca em risco a qualidade do atendimento e supor-
te oferecidos à população em geral e à população idosa, em particu-
lar. Observam-se diversos posicionamentos frente à velhice e ao
envelhecimento. Por um lado, destacam-se todos os seus traços ne-
gativos, criando expectativas, temores e rejeição. Por outro lado,
existem cada vez mais estudos e pesquisas que tentam derrubar pre-
conceitos e estereótipos culturais em relação ao tema. Essas
diferentes visões da velhice encontram-se profundamente ligadas
aos valores que predominam na sociedade neste momento histórico.
Lamentavelmente hoje a sociedade está lidando com um ethos no
qual predominam valores materialistas, consumistas e individualis-
tas. As pessoas veneram e consomem padrões determinados de be-
leza, juventude, saúde e outros, em detrimento de tudo aquilo que
não se ajusta a tais padrões. A velhice por não enquadrar-se dentro
do estabelecido como algo positivo e valioso de ter, vê-se prejudi-
cada. Não se conseguirá facilitar uma velhice digna e feliz enquanto
se desconsidera o idoso, fortalecendo estereótipos e preconceitos
que se traduzem em práticas desumanizadoras e indignas para ele.
A mudança na escolha de valores tem sua origem na possibili-
dade que tem o homem enquanto ator e construtor de sua própria
história. E essa escolha de valores está intimamente ligada a algo
que é inerente ao homem, a moralidade. Na escolha de valores que
norteiam a vida do ser humano se efetiva a eleição entre o bom e o
mau. Nessa eleição o homem escolhe atuar de acordo a valores mais
ou menos positivos ou até negativos. Nessa eleição, hoje mais do
que nunca, é necessário lembrar as circunstâncias que envolvem
cada situação, no caso do idoso e particularmente da institucionali-
zação do idoso isso está muito presente.
A velhice não é só um conjunto de aspectos negativos confor-
me aponta a sociedade. Pelo contrário, ela traz consigo possibilida-
des de viver a vida com maturidade, sabedoria e felicidade. O enve-
lhecimento é um processo biológico irreversível, mas ele pode ser

90 Aspectos da teoria do cotidiano


vivido prazerosamente, constituindo-se em uma etapa bem-sucedi-
da, tanto quanto as demais. Os ganhos e as possibilidades que de-
correm da experiência e da sabedoria facilitam o enfrentamento e a
superação das perdas de tipo biológico e físico.
É importante chamar a atenção acerca da complexidade do pro-
cesso de envelhecimento e das diversas formas de viver a velhice.
Nessas diversas formas há que considerar a heterogeneidade dos
idosos segundo o grupo social a que pertencem, e suas diferenças
profundas e antagônicas. Também é necessário destacar as várias
faixas etárias que fazem parte do período que se considera como ve-
lhice. As faixas etárias estão aumentando na medida que aumenta a
expectativa de vida. Esse é um fato para o qual se quer chamar es-
pecialmente a atenção porque as necessidades, interesses, demandas
e reivindicações são diferentes para os idosos em faixas de menos e
mais idade. Tanto é assim, que alguns autores estão fazendo distin-
ções entre idosos jovens e idosos velhos, ou entre terceira e quarta
idade.
A heterogeneidade que envolve a velhice contém em si uma re-
lação antagônica entre autonomia e dependência do idoso. Percebe-
se que para os idosos saudáveis, autônomos existem propostas da
sociedade muito interessantes que tentam manter o idoso nela enga-
jado e que procuram ampliar os espaços de participação social. Tais
propostas envolvem diferentes instituições e organizações sociais,
nas quais têm um papel central os grupos de convivência para a ter-
ceira idade.
Com o transcurso do tempo o processo de envelhecimento vai
se acentuando, acarretando perdas físicas, biológicas, psicológicas e
sociais profundas e irreversíveis e o idoso inicia a transição dos li-
mites da autonomia e começa a torna-se dependente. É lamentável
observar que são escassas as alternativas para as pessoas com per-
das de saúde física, psíquica ou outras. A proposta que a sociedade
apresenta para estes idosos, restringe-se quase que exclusivamente à
institucionalização. Nesse contexto o idoso choca-se, com uma rea-
lidade nova e ambígua a qual ele se submete, com expectativas,
medos e ansiedades.
Quem se encontra envolvido na decisão da institucionalização
do idoso lida com os sistemas normativos criados pela sociedade a

lnstitucionalização do idoso: observância ou transgressão de sistemas... 91


respeito da velhice e com a autonomia de decisão, que, enquanto
seres humanos, possuem. Claro que essa autonomia, segundo expli-
ca Heller (1995) é uma autonomia moral relativa, porque implica a
capacidade de decisão moral (busca do bem), dentro de um marco
de possíveis determinações, involucrando situações contraditórias.
As contradições surgem porque, se bem, os sistemas normati-
vos prescrevem a consideração, o cuidado e o respeito pelos idosos,
a institucionalização dos idosos pode ser uma escolha que em mui-
tas situações está embasada em valores negativos que conduzem à
transgressão de regras, normas sociais e costumes. Exemplo disso, é
quando familiares "depositam" o idoso em algum local ou institui-
ção só com a finalidade de usufruir de seus bens, de esquecerem
responsabilidades de manutenção e cuidado, etc., resultando em
abandono, descaso e desvalorização do idoso enquanto ser humano.

As mudanças na família e o aumento das instituições


O tema da institucionalização do idoso é sempre polêmico e re-
quer especial atenção. Porque a transgressão de regras, normas e
costumes não é exclusiva dos familiares; a realidade demonstra que
muitas vezes é realizada pelas próprias instituições e também pelos
demais envolvidos no processo decisório.
Freqüentemente a institucionalização do idoso é necessária por-
que ele precisa de um lugar que lhe ofereça condições dignas para a
vida humana. Esse é o caso dos idosos que moram em condições de
pobreza extrema, de miséria que são encaminhados para casas de
residência de idosos, que contribuem a melhorar algumas condições
de vida, principalmente no que se refere a alimento, vestuário e
moradia. Outras vezes, o idoso e/ou sua família demandam
cuidados e serviços contínuos, porque o idoso está vivendo um pro-
cesso de envelhecimento acelerado que lhe tem ocasionado perdas
físicas, psíquicas, sociais e é necessário o cuidado permanente.
Mas, embora existam ou se apresentem inúmeras justificativas, mo-
rar numa instituição nunca é um fato natural do ser humano.
Na sociedade atual o idoso tem cada vez mais restrito o espaço
dentro da família. Nos casos em que começa a requerer atenções e
cuidados especiais as chances diminuem. Enquanto ele se mantém

92 Aspectos da teoria do cotidiano


saudável e pode realizar tarefas domésticas ou até colaborar na eco-
nomia familiar ele é ainda contido dentro dessa estrutura. Mas, re-
querendo de atendimentos e cuidados mais intensivos a família re-
corre ao auxilio de cuidadores ou à institucionalização, devido à es-
cassez de alternativas da sociedade.
O que em algum momento do século XX se pensou como estru-
tura da farm1ia nuclear, hoje no limiar do século XXI tem sofrido
intensas mudanças. Algumas das causas estão direcionadas para a
emancipação feminina, o divórcio, entre outras. A estrutura da fa-
mília nuclear hoje vê-se cada vez mais complexa. As relações fami-
liares nem sempre têm os laços sangüíneos como denominador co-
mum.
Esses acontecimentos e fatos históricos que definem a mudança
como aspecto central de final de milênio, mais uma vez demons-
tram a capacidade e as possibilidades do homem como construtor
de sua história. Em relação aos sistemas normativos isso é de ex-
trema importância porque a sociedade apesar de manter certas pro-
posições e mandamentos denominadas normas abstratas, na prática,
isso é, em nível do concreto, as formas de obedecer tais normas so-
ciais mudam com o tempo, e isso está acontecendo com o idoso,
sua família e a temática da institucionalização. O ritmo do cotidiano
na cidade é muito rigoroso para o idoso dependente e para a sua
família. Mas isso não quita para nenhuma das partes envolvidas na
tomada de tal decisão a responsabilidade. Heller explica o seguinte:
"Tanto se a ação é meritória, moralmente indiferente, controvertida
moralmente, injusta, criminal ou malvada, o executor da ação é
sempre responsável e, em igualdade de condições, igualmente res-
ponsável" (1995, p. 89) mas, embora exista autonomia para atuar
essa autonomia não pode ser moral na medida em que sejam supri-
midas certas inclinações morais como por exemplo, a piedade, a
empatia (Heller, 1995).
Tradicionalmente as instituições de idosos surgiram para a
atenção e cuidado de pessoas sem nenhum tipo de recursos mate-
riais e financeiros para se manter. Todo o acionar era movido pela
filantropia e caridade aos necessitados. As mudanças aceleradas da
sociedade de final de milênio têm influenciado o aumento da insti-
tucionalização do idoso. Tanto é assim, que nos últimos anos tem

lnstitucionalização do idoso: observância ou transgressão de sistemas. .. 93


proliferado uma gama muito diversificada de instituições para ido-
sos3. A grave situação econômico-financeira pela qual estão atra-
vessando muitas pessoas idosas as levam a procurar a instituição
porque nela encontram segurança ou um teto que lhes oferece pro-
teção. Numa pesquisa realizada por Deps (1993) em duas institui-
ções do estado de São Paulo, foi confirmada esta situação. Os ido-
sos que procuram voluntariamente a instituição aceitam mais facil-
mente viver nela, tendo maior dificuldade aqueles que são engana-
dos e vão contra sua vontade. Os idosos aumentam e em conse-
qüência aumenta uma nova área de atuação. Mas, lamentavelmente,
por trás de muitas das instituições, existe como objetivo principal o
lucro e não o idoso como sujeito. Muitas vezes essa área emergente
é vista somente através do prisma da economia e surgem institui-
ções que se convertem em empresas prestadoras de serviços, fre-
qüentemente não devidamente especializados.
Sendo assim, a decisão da institucionalização do idoso é con-
trovertida porque entram em jogo as regras, normas e costumes que
regem a sociedade e com elas a responsabilidade moral de evitar in-
fringi-las, pois elas prescrevem obrigações para com esse segmento
populacional. Em relação a isso Heller explica:
"As obrigações são também de conhecimento públ ico, e não pode
alegar-se ignorância em relação a elas. Não cumprir tais obrigações,
deixar de fazê-las, implica saber perfeitamente bem que algo que de-
via de ser feito não se fez ... O deixar de fazer um ato obrigatório con-
verte-se numa dívida que tem que se pagar [... ]" ( 1995, p. 93).
No momento em que o idoso, a família ou terceiras pessoas par-
ticipam da decisão de que o idoso passe a morar numa instituição,
estão de certo modo desafiando as prescrições sociais abstratas.
Heller (1995) comenta o seguinte:
"se a norma, valor ou princípio que constitui o ponto de vista para de-
safiar nossas próprias obrigações não aparece como um princípio
mais alto que as normas de obrigação desafiadas (tanto na forma co-
mo no conteúdo), nosso ato não será super-rogatório, senão meramen-

3
Dados obtidos no Núcleo de Pesquisas em Demandas e Políticas Sociais - NE-
DEPS , da Faculdade de Serviço Social, em 1997.

94 Aspectos da teoria do cotidiano


te controvertido e problemático desde o ponto de vista dos sucesso-
res" (1995, p. 1O1).

As normas concretas e os costumes também são desafiados no


momento em que a dinâmica do cotidiano impõe espaços cada vez
mais limitados para o idoso dentro da família. E principalmente
quando o traslado do idoso a uma instituição se realiza desconside-
rando a qualidade de vida que esse idoso possa ter nesse local. Sa-
be-se que em muitas delas os fins lucrativos superam o desafio de
oferecer um local digno para o idoso, oferecendo apenas condições
mínimas de sobrevivência através de pessoas com escassa ou sem
preparação e especialização para o atendimento da velhice.

Os costumes na decisão do traslado do idoso a uma instituição


A internação vai surgindo, desta forma, como alternativa a de-
terminadas situações. A família começa a pensar no fato da interna-
ção quando aparecem manifestações de dependência física ou psí-
quica e a velhice começa a ser visualizada pelo grupo familiar. A
intolerância ou a impossibilidade de lidar com tais situações podem
levar às famílias a optar pela institucionalização. Assim, o fato, sur-
ge por falta de outras alternativas, e aqui a família deve ser lembra-
da que ela nunca vai ser substituída pela instituição.
Também o fato da institucionalização pode ser conseqüência
dos casos em que o idoso mora só, sem família com graves dificul-
dades socioeconômicas para se sustentar. Nestes casos a Instituição
aparece como possibilidade de proteção e segurança.
Acaba-se numa situação ambígua que traz inúmeros questio-
namentos. O idoso que passa a morar numa instituição deve enfren-
tar sérias mudanças em sua vida cotidiana, onde entram em cena
inúmeros aspectos, desde a existência de regras e normas institu-
cionais que regulam cada ação de seu dia-a-dia até a convivência
com pessoas que ao longo de sua vida foram desconhecidas e com
as quais ele não optou por compartilhar sua vida. Isto influi na inte-
gração do idoso que chega à instituição. Numa pesquisa realizada,
foi confirmado que alguns dos agravantes do problema de relacio-
namento entre os idosos institucionalizados são, entre outros fato-

lnstitucionalização do idoso: observância ou transg ressão de sistemas... 95


res, os preconceitos existentes entre os próprios idosos pois muitos
consideram os outros colegas senis, "caducos" ... (Deps, 1993).
É importante considerar que quando o idoso participa da deci-
são de ir a morar numa instituição apresentam-se para ele períodos
de muita ansiedade, incerteza e medo pois tem que enfrentar-se com
um cotidiano até então desconhecido. Já no período de adaptação à
Instituição podem aparecer outras situações derivadas desta mudan-
ça na sua vida, por exemplo podem surgir dificuldades enquanto à
orientação temporal e espacial (e muitas vezes pode aparecer como
sintomas de uma demência). As diferentes reações dependem muito
das potencialidades individuais e do suporte que possa oferecer a
instituição para lidar com tais situações. Freqüentemente a institui-
ção encontra-se limitada para oferecer segurança e possibilidades
de desenvolvimento afetivo. E muitas vezes, longe de produzir-se a
integração do idoso ao meio institucional, contribui na formação de
estereótipos e preconceitos, facilitando a perda da identidade, de
autonomia. Produz-se uma perda da liberdade pessoal, a institucio-
nalização diminui os contatos sociais e as atividades em geral.
Na tomada de decisão da institucionalização do idoso deve en-
trar em cena as características das possíveis instituições de residên-
cia. Sabe-se que muitas delas são criadas para o atendimento de
idosos com algumas dependências físicas e psíquicas, mas acabam
aceitando entre seus residentes pessoas jovens ou adultos jovens
com problemas psíquicos. Para um idoso com um processo de enve-
lhecimento avançado que foi morar numa instituição por abandono
familiar, ou por limitações físicas para morar só, isso acarreta sérias
controvérsias.
A vida moderna impôs a mudança nos costumes, isso é na for-
ma de observar as normas concretas a respeito da velhice. Freqüen-
temente o ritmo da vida cotidiana tem levado a buscar subsídios fo-
ra do âmbito familiar para oferecer ao idoso dependente cuidados e
suporte adequados para viver sua velhice com qualidade. Mas nesse
processo a responsabilidade por não infringir os sistemas normati-
vos a respeito da velhice continuam. Embora as novas estruturas
familiares deixem escasso ou nulo o espaço para o cuidado e aten-
dimento do idoso dentro de seu seio, a responsabilidade de amparo,

96 Aspectos da teoria do cotidiano


respeito, e qualidade de vida continuam sendo responsabilidade de
toda a sociedade.
Sendo assim, fica claro que as normas vigentes são desrespeita-
das ou infringidas quando por exemplo, não se leva em considera-
ção a opinião do próprio idoso no processo decisório, quando não
são avaliadas as condições institucionais e o suporte que ela pode
oferecer para garantir a qualidade de vida do idoso. Também os sis-
temas normativos são desrespeitados quando a burocracia e a lenti-
dão do aparelho gerador de políticas sociais não efetiva novas alter-
nativas para a institucionalização como centros dias, casas lares,
sistemas de cuidados e serviços a domicilio, entre outros. O incum-
primento dos sistemas normativos também se efetiva quando não é
exigida a especialização e o devido preparo e formação profissional
daqueles que dão atendimento e assistência ao idoso. Os próprios
idosos também têm sua responsabilidade no incumprimento de re-
gras, normas e costumes porque é necessário que eles exijam os
seus direitos perante a sociedade, e aqueles que ainda estão vivendo
um envelhecimento saudável é preciso que sejam a voz daqueles
que já não podem fazê-lo.
Esses são apenas alguns exemplos das tensões e contradições
que emergem entre a observância e transgressões dos sistemas nor-
mativos a respeito da velhice. Ali estão envolvidos o próprio idoso,
a família, as instituições e a sociedade em geral e o fato de estar vi-
vendo uma época de mudanças rápidas é ainda um agravante, Hei-
ler traz a seguinte reflexão:
"Em épocas de rápida mudança normativa essas formas de legitima-
ção [o carisma pessoal ou o dos sentimentos] podem inclusive chegar
a ser dominantes. Isso é o que acontece quando tanto as formas tradi-
cionais como as racionais de legitimação de normas entram em fase
de crises" (1995, p. 166).

Não se pode desvalorizar a época de crises e mudanças pela


qual a sociedade está passando neste final de século pois a oportu-
nidade de superar certas contradições através da realização concreta
de determinadas normas pode promover a gestação de costumes,
capazes de gerar hábitos emocionais positivos em relação à velhice:

lnstitucionalização do idoso: observância ou transg ressão de sistemas. .. 97


"A valorização emocional depende sempre da situação. Mas se têm
sido desenvolvido certos hábitos emocionais, isso significa precisa-
mente que a pessoa reage com a mesma emoção e com o comporta-
mento pertinente a inúmeras situações distintas (simi lares, analógicas
ou divergentes): em tal caso é o próprio sentimento quem realiza a
'abstração' da situação[ ... ]" (Heller, 1993, p. 1844 ).

Pelo tratado até aqui, constata-se a importância de redirecionar


as estratégias e táticas que permitam ressaltar e promover as poten-
cialidades e as possibilidades do idoso e da velhice como totalidade
torna-se necessário considerar a dialética entre ganhos e perdas e
contribuir para que esta etapa da vida seja vivida de forma saudável
e feliz reorganizando e repensando a prestação de serviços sanitá-
rios, educacionais, sociais, as políticas e as práticas dos governos
em geral. É preciso, portanto, aprofundar mais plenamente o estudo
das múltiplas dimensões do processo de envelhecimento e da velhi-
ce no país.

Considerações finais
Estamos vivendo uma época de rápidas e profundas mudanças
no que se refere à velhice e ao envelhecimento, o segmento popula-
cional de idosos aumenta consideravelmente e a sociedade não tem
lhes garantido, ainda, uma adequada qualidade de vida. De modo
que, embora existam nos sistemas normativos prescrições que ze-
lem pelo cuidado, atenção e respeito pelo idoso, os costumes, isso
é, a efetivação das normas concretas no cotidiano revelam inúmeras
contradições.
O cumprimento e a observância das normas revelam contradi-
ções no sentido de que já não se discute que em determinados casos
e isso de nenhuma maneira se pode constituir numa regra, a institu-
cionalização do idoso é necessária, porque para garantir uma me-
lhor qualidade da velhice o idoso necessita de cuidados permanen-
tes e especializados. A transgressão dos limites dos sistemas norma-
tivos é evidente quando por trás dos fatos escondem-se atitudes mo-
ralmente negativas de quem decide e concretiza a institucionaliza-
ção de um idoso. Alguns exemplos disso seriam quando a institu-

4
· Tradução livre da versão em espanhol.

98 Aspectos da teoria do cotidiano


cionalização se transforma num meio para se desfazer dessa pessoa
que incomoda o alcance de determinados fins.
Melhorar e criar novas alternativas para os idosos na sociedade
pode levar a superar algumas dessas contradições. Desde o Serviço
Social gerontológico ainda fica muito caminho por ser construído
em relação às melhoras das alternativas para o trabalho com idosos.
É necessário investir esforços para que essas alternativas sejam
mais completas, que atinjam a integridade do ser humano idoso.
Centro dias, o trabalho voluntário, o trabalho a domicílio, o traba-
lho com a família deve ser ainda ampliado. Isso requer além dos re-
cursos tanto humanos, como materiais e financeiros, a qualificação
dos recursos humanos. Porque não se pode propor novas estratégias
de enfrentamento da problemática se ela em si é desconhecida para
quem trabalha com idosos. O mesmo acontece com os Grupos de
Convivência, eles precisam avançar nas formas atuais; devem partir
para novos patamares de discussão, em relação aos direitos e aos
deveres dos idosos não só como cidadão senão também como seres
humanos com responsabilidade ética frente aos demais seres. Isso é
de extrema importância porque senão se corre o risco de criar novos
e talvez mais perigosos estereótipos e preconceitos para a velhice.
Os idosos continuam sendo pessoas com capacidades de propor no-
vas idéias, novas alternativas para si e para os demais homens. Essa
é uma responsabilidade que os assistentes sociais que trabalham
com idosos tanto quanto os demais profissionais que trabalham com
gerontologia não podem descuidar.

Referências bibliográficas
BIANCHI, H. O Eu e o tempo: psicanálise do eu e do envelhecimento. Tradução
por M. J. Briant. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1993.
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lnstitucionalização do idoso: observância ou transgressão de sistemas. .. 99


HELLER, A. Sociología de la Vida Cotidiana. Traducido por: J.F.Yvars e
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- - - . Teoría de los sentimientos. Traducido por: Francisco Cusó. 3. ed. Méxi-
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- - - . Diccionário de términos y conceptos de psicología y psicología social.
Buenos Aires: Nueva Visión, 1995.

100 Aspectos da teoria do cotidiano


6

Aproximando-se de Agnes
Heller: interpretando sentimentos
e afetividade
Michele Ruschel*

---------·---------
"Todo conhecimento começa pelo sentimento".
Leonardo Da Vinci

Üptamos por pensar sobre o que a autora trata acerca dos senti-
mentos, já que este assunto tem relação com o tema de nossa Dis-
sertação, "relacionamentos afetivos e terceira idade". Obviamente,
ao tratarmos de sentimentos na perspectiva de Heller, entendemos
que é impossível separá-los dos demais assuntos tratados pela auto-
ra, principalmente, cotidiano, ser humano-genérico, entre outros.
O cotidiano é o espaço de vida do ser humano. É onde se de-
senrolam suas experiências, opções, idéias e sentimentos, bem co-
mo suas capacidades intelectuais e criadoras. O Homem, desde o
nascimento, está inserido no cotidiano, buscando configurar-se en-
quanto indivíduo. Indivíduo que contém, ao mesmo tempo, traços
do ser particular e traços do ser genérico.
A maioria dos sentimentos e paixões podem ser consideradas
como humano genéricas, pois seus conteúdos e existência podem

• Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da FSS/PUCRS.

Aproximando-se de Agnes Heller: interpretando sentimentos e afetividade 101


ser úteis para manifestar a substância humana. Assim, o que será
particular não é o sentimento em si, mas o modo de manifestá-lo.

Sentimentos e afetividade através de uma interpretação


de Agnes Heller
Porque falar de sentimentos? Será científico falar de sentimen-
tos? Será relevante este debate? Para nós a resposta é sim. Faz parte
da vida humana, tem papel de destaque em nossa existência, então,
devemos lhe dar a devida atenção. Talvez, normalmente pensemos
que o amor e os outros sentimentos são objetos "humanos demais"
para serem acessíveis às reflexões da Ciência. Entretanto, muitos
teóricos, das mais diversas vertentes, já provaram o contrário.
O próprio Marx (1844, p. 300), nos Manuscritos, traz uma bela
passagem sobre o amor:
"Se amais sem atrair amor, isto é, se vosso amor é tal que não produz
amor, se através de uma expressão de vida como pessoa amante não
fazeis de vós mesmos uma pessoa amada, então vosso amor é impo-
tente ... "
A citação anterior de Marx fala da necessidade do amor em se-
mear frutos, em tornar-se mútuo para ser real. Nos valemos dela pa-
ra mostrar como, mesmo este autor crítico que muito teorizou sobre
o capitalismo, também preocupou-se com os sentimentos, com o
amor.
Mosquera (1979) afirma que as ciências humanas e sociais há
muito já vêm se debruçando sobre os sentimentos, principalmente
sobre o par amor e ódio. Mas, todavia, ninguém chegou a conclu-
sões definitivas. Realmente o estudo dos sentimentos é difícil, pois
desafia toda convenção a respeito deles.
Podemos dar margens a muitas críticas ao nos determos num
assunto como este, já que, num primeiro olhar, pode parecer algo
restrito às artes ou à psicologia. Entretanto, como colocaremos a
seguir, entendemos que os sentimentos não são atributos meramente
subjetivos, mas sociais. Sendo assim, relevantes e desafiantes.
Mosquera coloca-nos o seguinte:

1 02 Aspectos da teoria do cotidiano


"Em nenhuma cultura até agora conhecida tem faltado o mundo emo-
cional, embora expresso de maneiras diferenciadas, este mundo é su-
mamente importante para o desenvolvimento da personalidade e cres-
cimento no sentido humano" (1979, p. 73).
Assim, entendemos que a importância subjetiva está no desen-
volvimento do Ego (personalidade). Mas a relevância social está
implicada no sentido humano, que traduz-se no humano-genérico.
Social também pelo potencial de criação-destruição que está ligado
aos sentimentos.

O sentimento que nos une ao Outro


Retomando a mensagem inicial de autoria de Leonardo Da
Vinci, "todo conhecimento começa pelo sentimento", percebemos
que esta tem grande relação com as propostas de Agnes Heller. Hei-
ler (1993) coloca que os sentimentos distanciam-se muito de ser
conhecimento, mas, todavia, são o ponto de partida para o conhe-
cimento.
Assim, ela distancia-se dos positivistas que viam o sentimento
em contradição ao saber. Freud, através do positivismo psicológico,
via uma dicotomia entre sentimento e ação racional. O ponto de vis-
ta da teoria dos sentimentos, conforme enfatiza a própria Heller,
parte da análise da relação entre sentimentos e pensamentos.
A autora (1993) afirma que apreciação, objetivação e expressão
do Eu são igualmente atuar, pensar e sentir. Ação, pensamento e
sentimento caracterizam todas as manifestações da vida humana,
que só podem ser separadas funcionalmente e para estudos, já que
na prática estão interligadas.
Dentre os sentimentos, destacamos aquele que leva uma pessoa
a aproximar-se de outra e com ela travar um relacionamento. O re-
lacionamento amoroso existe para os idosos como para qualquer ser
humano, entretanto, suas formas de manifestação e expressão po-
dem assumir características particulares.
Para Heller (1993), o homem é um ser de intencionalidade, ori-
entado para o futuro, mas também essencialmente um ser "nostálgi-
co". Os idosos podem também ter o desejo de desenvolverem rela-
cionamentos afetivos com um parceiro. Através desses relaciona-

Aproximando-se de Agnes Heller: interpretando sentimentos e afetividade 103


mentos, buscam a satisfação e a complementação de suas vidas, na
tentativa de encontrar alguém para compartilhar rotina, problemas,
conquistas e planos.
Esse desejo de se relacionar afetivamente, de ter um parceiro,
seja através de namoro, casamento ou outras formas de arranjo, tem
suas motivações particulares, relacionadas à personalidade. Mas,
sem dúvida, também sofre fortes influências sociais, nos relacio-
narmos com um parceiro e nos ligarmos ao Eu do outro.
Os relacionamentos afetivos, ao nosso ver, podem surgir entre
os idosos pelos mais diversos motivos, seja para diminuir a solidão,
ter um companheiro, parceiro sexual, questões financeiras, necessi-
dades de cuidados e outros.
Conforme Heller (1994), o sentimento de amor nos liga àquelas
pessoas cujo contato aparece como importante para nossa persona-
lidade. Mas, além disso, este tipo de afeto tem a função de guiar a
produção dos contatos cotidianos. Assim, temos de entender que es-
tes afetos não são somente subjetivos, tão ligados à personalidade
como poderiam parecer num primeiro momento. O amor, então, é
também uma norma social.
Os idosos ao buscarem relacionamentos amorosos podem estar
buscando atender às suas necessidades e/ou desejos particulares.
Mas, todavia, tal fenômeno também sofre influências sociais e ge-
néricas.
O genérico (universal) parece propor que nenhum ser humano
viva em solidão. Vigoram os traços da sociabilidade. A sociabili-
dade é um dos atributos do ser social ligado ao ser genérico. Ter um
companheiro na terceira idade, ter alguém para dividir projetos, an-
gústias, dúvidas e sonhos.
Segundo Fromm (1961, p. 27),
"A consciência da separação humana, sem a reunião pelo amor, é a
fonte da vergonha. É, ao mesmo tempo, a fonte da culpa e da ansie-
dade".
No que tange ao social, um parceiro na velhice pode permitir
que a família se preocupe menos com o cuidado de seu idoso. En-
tretanto, pode também gerar novos conflitos, movidos pela preocu-
pação, pelo zelo ou, por outro lado, pela discriminação, pelos pre-
conceitos.

104 Aspectos da teoria do cotidiano


Ainda referente ao aspecto social, acreditamos que uma pessoa
acompanhada acaba por ter mais oportunidades de engajar-se em
atividades e na sua comunidade. Principalmente tendo em vista as
ofertas atuais de bailes, encontros de casais e outras propostas onde
um casal é muito mais bem recebido do que um indivíduo.
Os idosos, muitas vezes, quando contam com certa estabilidade
financeira, dispõem de mais tempo para dedicar-se aos relaciona-
mentos afetivos, podendo direcionar suas energias neste sentido.
Fromm (1961) coloca-nos que, durante a fase adulta jovem, prati-
camente todas nossas energias são utilizadas em busca de sustento,
dinheiro, poder e sucesso. Dinheiro e prestígio são coisas proveito-
sas no mundo moderno, enquanto amar "só" traz benefícios à alma.
O amor amadurecido, conforme Fromm (1961), é uma união
que preserva a integridade própria, a própria individualidade. O
amor, para este autor, é uma força ativa no homem. No amor ocorre
o paradoxo de que dois seres sejam um, e, entretanto, permanece-
rem dois.
Sentimentos como o amor e o ódio distanciam-se dos impulsos,
pois não podem ser definidos apenas endocrinologicamente. Logo,
mesmo o afeto sexual não existe para os seres humanos de forma
pura, não podendo ser delimitado somente por alterações orgânicas.
Esses têm determinações pelo organismo e pelas circunstâncias so-
ciais.
Para Heller (1980, p. 73), instintos são
··mecanismos compulsivos de comportamento ou coordenações moto-
r:~~ compulsivas herdadas do código genético, desencadeados por es-
tím ulos internos ou externos, próprios da espécie e específicos de cer-
tas ações".
Logo, sentimentos e impulsos são diferenciados pelos seus de-
terminantes. Para os impulsos, que estão ligados diretamente aos
instintos, os determinantes são orgânicos, biológicos. Já para os
sentimentos, mesmo havendo contribuição biológica, o maior atri-
buto é socioemocional.
Entendemos que as determinações para os sentimentos possam
ser orgânicas e sociais. Já suas manifestações são emocionais, além
de também orgânicas e sociais.

Aproximando-se de Agnes Heller: interpretando sentimentos e afetividade 105


Mas, então, o que são sentimentos para Heller? Segundo a auto-
ra (1993, p. 15), "sentir significa estar implicado em algo". Ela par-
te da formulação de Plessner: 1 "o sentimento é essencialmente a re-
lação do meu Eu com algo".
Sentir, então, é quando meu Eu relaciona-se com algum objeto
(concreto ou abstrato). Em se tratando de sentimentos positivos,
percebemos que o objeto desperta em nós algo agradável, algo car-
regado de potencialidades de atender nossas necessidades e/ou de-
sejos .
Quando há envolvimento amoroso entre duas pessoas é porque,
de alguma forma, o Eu do outro tem algo agradável ao meu Eu. A
inter-relação nos faz crescer e traz expectativas, possibilidades e
novas necessidades. Segundo Heller (1994, p. 362), "todas as rela-
ções sociais são relações interpessoais".
E esta nossa "implicação com algo" sofre várias formas de re-
gulação, sendo a principal através de costumes e ritos. Os sentimen-
tos são regulados pelos costumes e ritos sociais de modo a mante-
rem os limites socialmente prescritos, assim como, o conteúdo des-
tes sentimentos não deve superar o limite tolerado pela homeostase
biológica?
A homeostase não é meramente biológica, mas também social,
já que não podemos nos sustentar e nos reproduzir fora de um en-
torno social. Assim, somos levados a pensar de que modo os senti-
mentos (mais especificamente o amor, o afeto sexual e seus afins)
manifestam-se nos idosos, tendo em vista nosso entorno social (so-
ciedade brasileira) e o caráter biológico próprio da velhice (período
degenerativo).
Conforme afirmamos na introdução deste artigo, o indivíduo
contém, ao mesmo tempo, o ser particular e o ser genérico. Con-
forme Heller (1990, p. 22), "o indivíduo contém tanto a particulari-
dade quanto o humano-genérico que funciona consciente e incons-
ciente do homem". Heller (1994) coloca que a relação do compor-
tamento particular com as exigências genérico-sociais se expressa
1
A definição de Heller sobre sentimento aproxima-se da formulação de Plessner, po-
rém não são idênticas (PLESSNER, Helmutt. Reír y gritar. 1941).
2
Heller coloca-nos que o limite inferior da implicação é zero, já o limite superior é
determinado pelo organismo e pelas circunstâncias sociais. Ressalta a necessidade
de man ter a homeostase biológica, ou seja, um dado equilíbrio do organismo.

106 Aspectos da teoria do cotidia no


através de três motivações principais do particular: necessidade
(desejo), o costume e o conhecimento. E todas essas três mo ti vações
vêm acompanhadas por sentimentos.
Conforme Heller (1990), o par de sentimentos amor e ódio di-
vide nossos preconceitos em dois grupos: positivos e negativos; em
preconceitos acerca de nossa própria vida e em preconceitos refe-
rentes aos demais, alienados e contrapostos a nós. Vale salientar
que, assim como os sentimentos, os preconceitos também podem ter
ênfase individual ou social. Entretanto, a maioria tem caráter
mediata ou imediatamente social.

Considerações finais
Parece-nos claro que Heller localiza os sentimentos em várias
dimensões do humano. De um lado eles estão, ao mesmo tempo,
imputados na particularidade e na generacidade. De outro lado, os
sentimentos têm determinações biológicas, mas também são marca-
damente influenciados pelo social.
A partir dessa consideração acerca do estudado já podemos vis-
lumbrar sua aplicação para nossa Pesquisa. Pretendemos vislumbrar
essas várias dimensões do humano no que se refere aos sentimen-
tos. Especificando mais, interessa-nos aqueles sentimentos que nos
ligam afetivamente a outra pessoa.
Num primeiro instante pode parecer pouco relevante ao Serviço
Social debruçar-se sobre a questão dos sentimentos dos idosos, sua
manifestação, limites e possibilidades. Entretanto, entendemos que
os sentimentos não estão somente relacionados ao Ego (personali-
dade), mas, sobretudo, são sociais e sofrem tais influências. Não é
algo que fique na esfera cognitiva ou privada, pelo contrário, am-
plia-se para horizontes bem mais largos. Influi e tem influências so-
ciais, culturais, entre outras.
Sentir é estar implicado em algo, ou seja, é estar comprometido
de alguma forma com algo. É também mais do que isto! Sentir é
uma forma de conhecer e interpretar o mundo, o cotidiano, a reali-
dade.
Tendo por objetivo de nosso projeto de pesquisa, estudar rela-
cionamentos afetivos entre homens e mulheres ocorridos a partir

Aproximando-se de Agnes Heller: interpretando sentimentos e afetividade 107


dos 60 anos de idade, enfatizando as motivações e as dificuldades
encontradas para tais relacionamentos, estaremos voltados para os
sentimentos e preconceitos.
Sentimentos e preconceitos que são individuais e sociais e, por
isso, interessam ao Serviço Social. É através da relação com outro
que aprendemos a nos relacionar em sociedade e, também, que for-
talecemos nossa própria individualidade. E é nessa "tensão" entre
social e individual que nossa atenção estará centrada.
O relacionamento afetivo, no que se refere aos comportamen-
tos, é em grande parte aprendido. Assim como, os preconceitos e
estereótipos também o são. Muitas vezes, a sociedade coloca que os
relacionamentos afetivos entre os idosos, seja o namoro, o ficar e
mesmo o casamento, são algo ridículo e impróprio, limitando-lhes a
possibilidade que poderia proporcionar afeto, bem-estar, segurança,
companhia, prazer e aceitação.

Referências bibliográficas
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HELLER, Agnes. Instinto, agresividad y caráter. Barcelona: Península, 1980.
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MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. Sttuttgart: 1844.
MOSQUERA, Juan José Mourifío. As ilusões e os problemas da vida. Porto Ale-
gre: Sulina, 1979.

108 Aspectos da teoria do cotidiano


7

A questão cotidiana do trabalho


e suas interfaces
com a terceira idade
Ruthe Corrêa da Costa Schnorr*

---------·---------
Neste artigo, desenvolve-se um estudo decorrente do banco de da-
dos que originou a dissertação de mestrado O trabalho na terceira
idade: uma realidade em questão a qual foi defendida em junho de
1998. A fim de multiplicar as informações ali contidas e, ao mesmo
tempo, dando continuidade à mesma temática no Doutorado,
acreditamos ser de grande aproveitamento nos valermos desse
documentário para aprofundar nossas reflexões.
Para tanto, é relevante a Disciplina A Categoria da Cotidiani-
dade, que nos instigou a respeito da necessidade em aprofundar es-
tudos nesse sentido. E foi com esse intuito que nos debruçamos so-
bre esta categoria epistemológica. Trabalho e cotidiano vêm a ser a
chave de nossas reflexões em interface com a Terceira Idade, nas
quais se enfocam também mitos, preconceitos e discriminações, que
fluem da fala do trabalhador idoso e fundamenta-se filosoficamente
em Agnes Heller, Marx, entre outros renomados estudiosos de
questões relacionadas à temática aqui abordada.

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social da


PUCRS .

A questão cotidiana do trabalho e suas interfaces... 109


Categoria cotidiano
Segundo Guimarães, "a vida cotidiana se caracteriza por um
espaço de tensão simultânea entre o ser genérico e o ser particular"
(2000, p. 28). O cotidiano está permeado de indagações, vivências,
experiências. Seguindo as reflexões de Guimarães, "as atitudes me-
canizadas ou refletidas, os desejos, a ação profissional" encontram-
se imbricadas e, dessa forma, tensionam o dia-a-dia das pessoas. In-
sistentemente, buscamos abordar esse cotidiano, pois acreditamos
que a vida cotidiana é o núcleo central do movimento histórico e,
assim sendo, urge um estudo aprofundado sobre esta categoria que
engendra a humanidade.
Para que se absorva a cotidianidade de uma determinada época
histórica, é necessário, também, que a história da raça humana pos-
sa ser assimilada mesmo que essa assimilação não seja consciente, e
que permaneça na esfera da objetivação em si; em Guimarães, em
explicitação a esse respeito, vem clarificar:
"A repetição é o que legitima e dá identidade a uma atividade no âm-
bito das objetivações genéricas em si, o que não significa que o ser
particular tenha que repetir uma ação inumeráveis vezes. Essa repeti-
ção diz respeito a uma repercussão na práxis social, ou seja, a ação
tem que ser repetida enquanto uma das unidades que compõe um sig-
nificado e uma função social" (2000, p. 30).
Essas questões engendram o bojo dos acontecimentos no decor-
rer da vida, Heller coloca que "a vida cotidiana não está 'fora' da
história, mas no 'centro' do acontecer histórico: é a verdadeira 'es-
sência' da substância social" (1970, p. 20).
Para reforçar a importância de se estudar a partir do cotidiano,
algumas explicitações de Agnes Heller são trazidas, destacando-se,
assim, o seguinte trecho de uma de suas obras: "A vida cotidiana é
a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção,
qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e físi-
co" (Heller, 1970, p. 17).
A partir da explanação, busca-se entender como vivem os ho-
mens na cotidianidade, na qual o homem é atuante, participativo,
ativo e receptivo. Heller também refere o seguinte: "A vida cotidia-
na é a vida do homem inteiro, ou seja, o homem participa na vida

11 O Aspectos da teoria do cotidiano


cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua per-
sonalidade" (1970, p. 17).
Para avançarmos a respeito das concepções aqui explicitadas,
buscamos nessa mesma autora a compreensão sobre o termo "ho-
mem inteiro", que se dirige ao particular, singular. É nas objetiva-
ções em si que este se encontra, e é a partir daqui que se dá a vida
inicial do homem, assim sendo, todos os movimentos que compõem
o processo de engendramento da cultura, dos hábitos, dos costumes
que levam o homem a desenvolver ações encontram-se na esfera da
vida cotidiana. Cumpre ainda lembrar que segundo Heller:
"A vida cotidiana é o conjunto de atividades que caracterizam a re-
produção dos homens particulares, os quais, por sua vez, criam a pos-
sibilidade da reprodução social" (1977, p. 19).

É importante sentir-se estabelecido na vida cotidiana, pois é


nesse movimento que os homens desenvolvem suas atividades e se
reproduzem nas mais variadas situações e relações sociais. Estas se
revelam através da práxis na cotidianidade, e é nessa cotidianidade
que nos deparamos com transformações que se desvelam de manei-
ra acelerada, tanto em valores, como também em normas, hábitos e
costumes, entre outros.
Dessa forma, a realidade social está em constantes movimentos
e constantes transformações que levam à superação alcançada atra-
vés da práxis. Segundo Bottomore: "A práxis é considerada como a
forma especificamente humana de ser do homem, como atividade
livre e criadora e autocriadora" (1993, p. 294). Assim sendo, nesse
movimento na cotidianidade é o meio em que o homem é criativo e
transformador do mundo e também de si mesmo.
Ainda trazendo idéias de Heller sobre a estrutura da vida coti-
diana, uma vez que é ali que os homens deparam-se ao chegarem
ao mundo e, imediatamente, inserem-se na cotidianidade que vem
sendo construída através dos tempos, perpassando a humanidade
em distintos momentos históricos, na cotidianidade está presente
uma imensidão de subjetivações que constantemente procuram in-
tegrar-se, através da transformação, na objetivação. E reinicia-se,
para todo sempre, o movimento dialético.

A questão cotidiana do trabalho e suas interfaces.. . 111


É assim que se concebe o estudo realizado, como sendo parte
da história, uma vez que os sujeitos 1 puderam expressar os aconte-
cimentos livremente, surgindo, dessa forma, a vida cotidiana de ca-
da indivíduo. Heller comenta:
"A vida cotidiana é a vida do indivíduo. O indivíduo é sempre, simul-
taneamente, ser particular e ser genérico. No caso do homem a parti-
cularidade expressa não apenas seu ser 'isolado', mas também seu ser
individual" (1970, p. 20).
No trabalho, tratou-se do cotidiano dos entrevistados que se
mantêm com vínculo empregatício, incluindo o cotidiano dos traba-
lhadores já aposentados que, de alguma forma, continuam a buscar
atividades de trabalho.

Categoria Trabalho
Para Marx (1985), a essência do ser humano encontra-se no tra-
balho e é através dele que o homem transforma a si mesmo. Essa
importância concedida ao trabalho acompanha a vida do homem
desde muito cedo, como foi constatado na pesquisa aqui referida,
para aqueles sujeitos que não tiveram oportunidade de freqüentar os
bancos escolares, como foi constatado na vida de muitos entrevista-
dos2. Pode-se observar que o homem "no mundo capitalista está re-
presentado pelo trabalho", tendo a preparação para este muito pre-
cocemente.
No processo de formação, o homem depara-se com a natureza
e, através de sua ação, impulsiona, regula e controla seu intercâm-
bio natural com a mesma. Portanto, para o desenvolvimento de tra-
balhos, como relata Marx (1985), há a combinação entre homem e
natureza. O homem dispõe de suas forças físicas, como corpo, bra-
ços e pernas, cabeça e mãos, a fim de se apropriar dos recursos da
natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Assim, Marx
(1985) narra o processo que acontece entre as duas forças, uma que
se movimenta e a outra que permanece enquanto natureza em esta-

Fazem parte do Banco de Dados da Dissertação de Mestrado, O cotidiano de traba-


lho na terceira idade: uma realidade em questão. 1988- PUCRS.
Ver: SCHNORR, Ruthe Corrêa da Costa. O cotidiano de trabalho na terceira ida-
de: uma realidade em questão. (D issertação de Mestrado: 1998) FSS/PUCRS.

112 Aspectos da teoria do cotidiano


do de inércia até a ação do homem. Ali, então, o homem transforma
a natureza e é transformado por ela. Agindo assim, o homem de-
senvolve as potencialidades contidas e adormecidas na natureza,
submetendo ao seu domínio o jogo das forças naturais. Essa é a
maneira na qual o trabalho ocorre entre homem e natureza no senti-
do da forma primitiva de trabalho.
Assim, o jogo de forças entre natureza e homem insere-se nos
meios de produção e exploração. Alguns sujeitos desenvolvem suas
atividades de trabalho diretamente com a natureza em seu estado
natural. Para exemplificar, existem trabalhos como dinamitar "pe-
dreiras", que necessitam da ação do homem para sua efetivação,
que vem a ser o trabalho que se aproxima das explicitações teóricas
referidas. A fim de complementar as explicitações, referimo-nos aos
demais meios de produção em que o homem se insere através da
natureza.
A exemplificação citada tem cunho ilustrativo; seguindo-se o
raciocínio de Marx, observa-se que, em trabalhos diretamente com
a natureza, como se destacou, que são os meios de produção, os
homens estão desenvolvendo os avanços tecnológicos, fazendo uso
de utensílios. Quando se refere a explorar a natureza, através de
"pedreiras", tem-se que no processo de dinamitar, portanto, são
usados recursos de força mecânica que extrapolam a natureza física
do homem para a concretização da ação humana transformando a
natureza. Segundo Agnes Heller, "os utensílios guiam sobre todas
as atividades materiais-concretas, os usos, os modos de comporta-
mento, e a linguagem, o pensamento" (1994, p. 239).
Engendra-se também nesse sistema a exploração da força de
trabalho do homem, por isso explicitar-se-á o processo de trabalho
em que o trabalhador executa as atividades de trabalho para o capi-
talista e não para si mesmo. Assim sendo, os resultados desse traba-
lho são de propriedade do capitalista e não daquele que vendeu sua
força de trabalho, que, ao vendê-la, passou a ser "mercadoria", e o
processo de trabalho é, então, o consumo da mercadoria que com-
prou. Isto é, o homem vai tendo perdas à medida que suas forças fí-
sicas vão se ausentando.
O questionamento a respeito dessa situação leva-nos a refletir
sobre a categoria trabalho, e, relacionando à terceira idade, visuali-

A questão cotidiana do trabalho e suas interfaces... 113


za-se que se trata de um estudo longitudinal, "este sujeito é teste-
munho vivo de sua história de trabalho", uma vez que o trabalhador
que é alvo de nossos estudos é o sujeito idoso. E, dessa forma, esse
ser humano construiu e vem construindo essa relação com o traba-
lho através de muitas décadas, em diferentes atividades . Os sujeitos
advêm de áreas prestadoras de serviços e, de uma maneira geral,
desempenham suas atividades em ofícios preestabelecidos, que ti-
veram sua criação em continuada transformação, a qual foi ocor-
rendo através de muitas gerações, sendo realizada pelo controle do
homem e pelo seu trabalho. Marx assim expõe: "No tocante aos
meios de trabalho, a observação mais superficial descobre, na gran-
de maioria deles, os vestígios do trabalho de épocas passadas"
(1985, p. 206).
A fim de complementar as idéias expressas acima, Heller expõe
a respeito da importância da comunicação através dos tempos e
afirma que o trabalho necessita ser intermediado pela linguagem,
que pode ser expressa por ordens, informações e, principalmente,
por diversas comunicações lingüísticas. O trabalho concreto é guia-
do pelo instrumento e pelo objeto, na concepção da realização de
uma determinada atividade concreta.
O trabalho, como forma exclusivamente humana, gera esforço
dos órgãos que trabalham, sendo preciso manifestar a vontade ade-
quada que se desvela através da atuação durante todo o transcorrer
do trabalho; assim, o trabalho concebido vai mostrando-se através
do modo de agir. Como se pode observar, natureza e invenção en-
trelaçam-se no trabalho humano, passando a fazer parte de antece-
dentes históricos que servem para fundamentar e orientar novas in-
terferências da ação do homem na natureza e/ou nos instrumentos,
buscando constantemente a superação, e esta se dá de maneira bas-
tante heterogênea. As formas de atividade da cotidianidade humana
são conduzidas e reguladas por três objetivações, que são o mundo
das coisas, o mundo dos usos e a linguagem, e dessa forma direcio-
nam a vida e suas atividades abarcando a história de trabalho dos
sujeitos em questão. Esse fato dá-se nos mais diversos níveis, desde
o dispêndio de forças mecânicas e naturais à mais controlada e
consciente. Marx (1985, p. 202) destaca os elementos componentes
do processo de trabalho: a) a atividade adequada a um .fim, isto é, o

114 Aspectos da teoria do cotidiano


próprio trabalho; b) a matéria a que se aplica o trabalho, o objeto
de trabalho; c) os meios de trabalho, o instrumental de trabalho.
A seguir, procurar-se-á relacionar a pesquisa realizada com os
elementos explicitados por Marx, para assim poder identificá-los na
vida dos sujeitos entrevistados. Tem-se o trabalho a ser realizado,
tem-se o objeto de trabalho que, pela transformação da ação huma-
na, passou do estado de matéria-prima para transformar-se em obje-
to de trabalho, e, ainda, têm-se objetos de trabalho que não se en-
contram em estado de matéria-prima. Portanto, segundo Marx:
"Toda matéria-prima é objeto de trabalho, mas nem todo objeto de
trabalho é matéria-prima. O objeto de trabalho só é matéria-prima de-
pois de ter experimentado modificação efetuada pelo trabalho" (1985 ,
p. 203).

Segundo Heller, parafraseando Marx, refere-se ao trabalho em


"sentido econômico como produção, como intercâmbio orgânico
entre a sociedade e a natureza" (1994, p. 120). Com isso, teceremos
algumas aproximações, em relação às nossas concepções, e acerca
do que é explicitado por Marx, pois para a terceira idade o trabalho
é o sentido da vida. A questão que chama atenção, na biografia de
sujeitos de terceira idade, quando indagados a respeito do desliga-
mento do trabalho, é o extremo sofrimento que passam ou que vi-
vem em função da necessidade burocrática deste afastamento, quase
compulsória para alguns.
Outras inferências que podem fazer parte deste comentário são
as que levantaram inquietações, relativas aos aspectos culturais e
sociais que, no âmbito das relações de trabalho, estigmatizam os
idosos, e estes sentem-se pressionados a se afastarem do mercado
de trabalho. Isso é destaque quando se teve oportunidade de abordar
questões referentes a preconceitos, mitos e crenças, em relação ao
trabalho na terceira idade.
O colocado até o momento discorre sobre a importância do tra-
balho e como este se fez e se faz presente para o homem. O trabalho
liga-se intimamente ao bem-estar dos indivíduos, isto é, a partir
desta categoria a vida cotidiana organiza-se. Destaca-se, na fala de
um sujeito de 74 anos, uma frase bastante significativa, na qual ele
refere que, "se o trabalho vai bem, as demais questões vão que é

A questão cotidiana do trabal ho e suas interfaces.. . 115


uma maravilha". Assim, o trabalho engendra-se no cotidiano, ser-
vindo como orientador para a vida humana. Em Heller, a explicita-
ção que desvela a concepção mais corrente entre a população, o tra-
balho como labor:
"Trabalho é 'ganhar o pão', 'ganhar dinheiro', é uma atividade que
deve ser cumprida para poder viver. Finalmente, o pensamento coti-
diano entende também por trabalho consumo, gasto. O trabalho não
somente deve ser feito, para manter-se com vida, senão que é algo
que sistematicamente, dia após dia, dura por um certo período de
tempo, pelo qual o trabalho consome e gasta a energia, a capacidade
do homem" (1994, p. 122).

A conceituação acima tem a finalidade de clarificar a respeito


do significado do trabalho na vida do homem. Não se encontra aí
coincidência com conceituações econômicas ou filosóficas. Infe-
rem-se comentários que insiram atividades desenvolvidas pelos in-
divíduos como na primeira oração de Heller, referida acima. Neste
sentido, no presente estudo, encontramos e destacamos depoimen-
tos em relação à necessidade do trabalho, ou seja, sujeitos, apesar
de aposentados, tendo de trabalhar para subsidiar o próprio susten-
to. E, ainda, destaca-se, como Heller comenta, o "consumo", que se
refere ao desgaste físico e mental do trabalhador. Para desvendar o
que a autora está referindo, constata-se que sujeitos se desgastam
através de estresse com o trabalho, através da falta de tempo para o
repouso suficiente de recuperação das energias despendidas na jor-
nada de trabalho. Destacar-se-á o trabalho como work:
"[ ... ] é uma objetivação imediatamente genérica, cujo fundamento é o
processo de produção, o intercâmbio orgânico entre natureza e socie-
dade e cujo resultado é a reprodução material e total da sociedade. Os
produtos de trabalho levam sempre em si o selo da universalidade em
si e não diz nada sobre o produtor particular" (1994, p. 122).
Isso, nas palavras de Heller, esclarece que work é o trabalho
que tem uma função social, isto é, a partir dele, necessidades sociais
são satisfeitas. É aquele trabalho que traz resultados úteis a outras
pessoas.
Observou-se, diante dos temas abordados, que, em muitos ca-
sos, palavras, tais como "necessidade", "satisfação", "liberdade",

116 Aspectos da teoria do cotidiano


"autonomia" e outras que poderiam aqui seguir ampliando essas es-
pecificações, tiveram destaque. O fato de serem trazidas categorias,
como trabalho e cotidiano para serem as norteadoras do estudo,
exigiu um esforço em abordá-las didaticamente, pois ambas engen-
dram-se uma na outra. Trabalho é o eixo da vida do homem, e o co-
tidiano é o embasamento central para que, a partir dele, surjam ob-
jetivos desejáveis, surjam necessidades e satisfações dessas neces-
sidades, surgindo, também, a partir dele, lutas e entraves para a
busca de autonomia, bem como tantas outras palavras que pudes-
sem compor aqui a importância dessas categorias para a vida do
homem.

O cotidiano do trabalhador na terceira idade e sua transição


para a aposentadoria
As perspectivas dos trabalhadores de terceira idade quanto à
aposentadoria não são novas, uma vez que alguns são aposentados
que retornaram ao trabalho, ou ainda aqueles que se aposentaram
apenas nos trâmites burocráticos. Suas falas irão mostrar experiên-
cias como se aposentar e não se desligar do trabalho; desta forma
não vivenciaram o afastamento propriamente dito, trazendo muitas
inseguranças em relação a esse momento da aposentadoria.
Apresentar-se-ão questões que envolvem o homem no final da
carreira profissional. Para que se possam abordar temas dessa rele-
vância, optou-se em fazer comentários sobre o tripé Pré-Aposen-
tadoria,3 Aposentadoria e Terceira Idade, por serem questões que
caminham paralelamente, pretendendo-se, desta forma, abordar a
transição por que passam as pessoas nesses períodos da vida.
A experiência com trabalhadores pré-aposentados é instigadora
e desafiante para conhecer o cotidiano do trabalhador que se encon-
tra nessa fase de transição da atividade profissional (mundo do tra-
balho produtivo) para a aposentadoria (o afastamento do mundo do
trabalho produtivo). Por isso é importante aprofundar estudos que
venham desvelar o complexo mundo que envolve trabalhadores em

Fase designada para um período que antecede a aposentadoria propriamente dita.


Esse período é variável, podendo ser entre dez e dois anos.

A questão cotidiana do trabalho e suas interfaces.. . 117


via de aposentadoria e, após terem se aposentado, como se encon-
tram nesse cotidiano.
No cotidiano já nos tempos pré-históricos, o trabalho ocupou
um lugar dominante na escala de valores, e, para determinadas clas-
ses trabalhadoras, essa mesma escala manteve-se durante ainda
muito tempo. Desta forma, toda a vida cotidiana se constituía em
torno da organização do trabalho, à qual se subordinavam todas as
demais formas de atividade. Ainda hoje, presencia-se na vida dos
sujeitos o "trabalho" como uma das principais atividades desenvol-
vidas na vida do cidadão, num mundo onde a atividade produtiva é
a essência do capitalismo.
O trabalhador pré-aposentado encontra-se inserido num merca-
do de trabalho, que busca incessantemente manter-se, também, no
tripé da produtividade, qualidade e competitividade. Assim, já nes-
se período de preparação para afastamento, encontram-se estigmati-
zados pelo castigo da idade. Podendo esta situação estar relacionada
ao medo do futuro, assim A. Heller expressa-se a respeito desse
sentimento:
"O medo é um dos afetos mais expressivos: a expressão de medo é
característica da espécie em geral, mas o que suscita o sentimento (o
estímulo) vem sempre dado socialmente. [... ]o medo é provocado por
um estímulo presente" (1979, p. 104-105).
Esse estímulo presente permeia o cotidiano de trabalho e procu-
ra afastar os idosos das atividades, gerando insegurança e por fim o
"medo". A fala de um dos entrevistados vem testemunhar o dia-a-
dia de trabalhadores idosos:
"Senti que a gente foi sendo colocado de lado, e coisas que a gente
sabia bastante da burocracia [... ] foi relegado para segundo plano; vie-
ram os computadores e designaram vários para fazer cursos e para
mim só botaram nos dois iniciais [o sujeito está se referindo à discri-
minação sofrida por não lhe permitirem cursar todos os módulos do
curso de computador]" (Sr. Tb., 67 anos).
Diante de tais constatações na pesquisa, pode-se inferir, conjun-
tamente com o autor, se a pessoa trabalhou durante trinta anos ou
mais, encontra-se, agora, "velho para o mercado produtivo" (Mos-
quera, 1987, p. 131). Fazer muito em trabalhos de escritório signifi-

118 Aspectos da teoria do cotidiano


ca, hoje, entender de Informática. Nesse sentido, pode-se parafrase-
ar Marx, quando ele aponta para a substituição do trabalho da mão
humana pelas máquinas, sendo suas colocações categóricas ao falar
sobre esse assunto: "O instrumento de trabalho, que, ao tornar a
forma de máquina, logo se torna concorrente do próprio trabalha-
dor" (1985, p. 492).
Muitas pessoas manifestam, até mesmo, a vontade de continua-
rem no trabalho porque se sentem úteis, produtivas. Neste caso, as
palavras do Sr. I. vêm esclarecer sobre a importância do trabalho.
Com mais de cinqüenta anos de carteira assinada e já aposentado,
resiste às pressões e continua trabalhando:
"Quando me aposentei, tinha 52 anos de trabalho registrado na cartei-
ra. É uma vida de trabalho. Às vezes me dizem: 'Tu não vai parar?'.
Eu digo: 'Não! Vou até quando dá'. Porque eu acho que, se parar [... ],
cria uma série de doenças e vai envelhecendo mais rapidamente do
que quem trabalha" (Sr. 1., 74 anos).
Em Heller, encontra-se registrada a intensidade do trabalho pa-
ra as pessoas, uma vez que este "é parte orgânica da vida cotidiana;
sem ele não é possível manter-se com vida" (1994, p. 123). Alguns
sujeitos também referem que suas experiências poderiam ser repas-
sadas para outras pessoas, com o intuito de colaborar para a amplia-
ção de conhecimentos daqueles que o sucederão. Portanto, faz-se
imprescindível a fala de um sujeito que se encontra inserido no
mercado de trabalho; no seu cotidiano, aparecem questões de não-
valorização daquilo que já apreendeu. Assim o Sr. Tb. relata: "Ul-
timamente tenho falado muito com o interior do Estado, porque tem
dado muita coisa errada, em função de não aproveitarem as expe-
riências das pessoas" (Sr. Tb., 67 anos).
Na fala do entrevistado acima, sente-se o quanto é prejudicial
para sua pessoa sentir a não-valorização do apoio que poderia dar
para a empresa, no seu caso específico. Ele visualiza em sua imagi-
nação os rumos que poderiam advir caso levassem em conta suas
sugestões. Ainda, esse mesmo entrevistado faz desabafos quando
foi lhe perguntado qual seria sua postura diante de sugestões que
poderiam contribuir para a melhoria do desempenho das atividades
de trabalho. A narrativa a seguir mostra sua posição diante desses
acontecimentos:

A questão cotidiana do trabalho e suas interfaces... 11 9


"Eu não me furto em dizer, embora eu sei que eles não ouvem! Eu di-
go, eu não deixo escapar nada que eu possa falar pelo menos em
cumprir com a minha obrigação. Agora, se vão atender ou não, nor-
malmente, não dão bola, eu fico na minha consciência tranqüila por-
que a empresa está me pagando para isso" (Sr. Tb., 67 anos) .
O Sr. Tb., no âmago dos seus sentimentos, transborda mágoas,
o que se percebe na fala acima. Os ressentimentos vêm à tona
quando refere que suas sugestões não são consideradas. A palavra-
chave para identificar tais sentimentos aparece implícita como roti-
na, pois já entrou na normalidade do seu cotidiano de trabalho.
O cotidiano de pré-aposentadoria e a transição para a aposenta-
doria foram analisados especificamente para os sujeitos que se en-
contram trabalhando com vínculo empregatício. Abordou-se a tran-
sição do período que antecede a aposentadoria, ou seja, o afasta-
mento definitivo do trabalho que os mantém com vínculo , sendo es-
te o princípio que norteou a abordagem com esses suj eitos. A inten-
cionalidade era de verificar, junto aos entrevistados, como se sen-
tem vivendo o momento de transição, o cotidiano atual (aqui e ago-
ra).
Muitas atitudes acima explicitadas devem ser abordadas pelo
fato de se encontrarem encharcadas de ansiedade e tantos outros
sentimentos. Dessa maneira, estes acabam por cristalizar-se, pas-
sando a compor a história de trabalho. Para os sujeitos entrevista-
dos, a ansiedade é contínua e se deve ao futuro desconhecido e in-
certo, uma vez que o afastamento do trabalho os deixa sem a certe-
za do cotidiano presente.

A questão da aposentadoria e suas interfaces


no cotidiano de trabalho
A aposentadoria, na terceira idade, representa um momento no
qual o sujeito deve redefinir sua vida, ao mesmo tempo em que de-
ve assumir sua velhice e, também, imbricado nesse contexto,
encontra-se o estigma de ser "inativo". De fato, o pensamento
dominante em torno da aposentadoria parece ser o de que o trabalho
é a única atividade útil e, em decorrência, todas as demais
atividades são perda de tempo; portanto, para uma sociedade que
idolatra o trabalho e a produção em detrimento do homem, passa a

120 Aspectos da teoria do cotidiano


trabalho e a produção em detrimento do homem, passa a ser, para
muitos, a perda do próprio sentido da vida, comumente caracteriza-
do como "uma morte social". Esta representa para o suj eito não
uma progressão na vida, mas uma constatação de fim (devido à pa-
rada, ao declínio). É neste período da vida que os trabalhadores en-
frentarão situações no cotidiano que os levará a uma reorganização
na sua identidade.
Em se tratando de trabalhadores idosos com vínculo empregatí-
cio, com o qual a maioria dos entrevistados desenvolve suas ativi-
dades atuais em empresas, foi indagado sobre a participação volun-
tária em alguma espécie de programa, como, por exemplo, Progra-
ma de Preparação para a Aposentadoria- PPA, que abordasse a
questão da aposentadoria. Aqueles sujeitos, que referiram sobre a
participação ou não em PPA, o fizeram projetando-se para um futu-
ro, demonstrando assim total desinteresse numa preparação para se
afastarem do trabalho. Optou-se em trazer a fala da Sra. Pr., para
representar o adiamento do momento da aposentadoria:
"Não, nunca participei. Sabe por quê? Porque sempre tenho muito
serviço, e acho que sair do trabalho não é certo. Mas acho que seria
muito bom. Futuramente, gostaria de participar" (Sra. Pr., 62 anos).
Assim acontece no cotidiano de trabalho dos sujeitos que bus-
cam prorrogar o máximo possível a aposentadoria. Os sujeitos fa-
zem reflexões e visualizam suas perspectivas futuras, quando per-
guntados sobre concepções acerca da aposentadoria.
Pode-se refletir sobre os efeitos que a aposentadoria engendra
na perda de um papel social e, conseqüentemente, do status. Essas
perdas são relacionadas com a inclusão dos indivíduos em outra
classe social, aquela que a sociedade rotula como "grupo dos ido-
sos"; implicitamente, engendra-se nesse contexto uma preparação
para a velhice que nem sempre é aceita. Sobre a recusa em aceitar
as circunstâncias da vida, Lehr faz o seguinte comentário: "Quando
a aposentadoria é iminente deseja-se demorar o momento da apo-
sentadoria e teme-se abandonar as atividades profissionais" (1988,
p. 227).
Nesse sentido, os suj eitos entrevistados apontaram para o temor
que sentem ao se lembrarem do momento do desenlace com traba-
lho. A fim de uma melhor visualização das explicitações a esse res-

A questão cotidiana do trabalho e suas interfaces.. . 121


peito, colocar-se-ão em seqüência as falas dos entrevistados desta-
cadas de suas narrativas:
"Vai ser um desenlace difícil. Qualquer hora que eu fale nisso me
comove" [emoção] (Sr. Wl., 63 anos).
"Sempre trabalhei, então acho que na hora que eu vou ver. Eu não sei
ficar parada. Mas, parar para olhar para as paredes, eu não quero"
(Sra. Z., 64 anos).

"Me aposentei por idade e não por tempo de serviço [... ] continuo a
trabalhar em dois serviços" (Sra. E., 65 anos).
"Eu quero me aposentar, mas não hoje, talvez eu saia daqui a uns três
anos. Caso contrário, estou ali bem e tudo" (Sra. Pr., 62 anos).
"Tenho medo de me anular totalmente em casa. Não quero ficar den-
tro de casa com saúde. [... ] As pessoas que, por dentro, têm aquela
ânsia de fazer alguma coisa, têm que estar trabalhando. E é melhor fo-
ra de casa, porque em casa a tendência é afrouxar no horário" (Sr.
Tb., 67 anos).
"Estou aposentada e fiquei trabalhando, então eu não cheguei ainda a
encarar porque eu não saí; acho que eu vou achar falta do serviço o
dia que eu sair, eu gosto de trabalhar. Tenho a impressão de que eu
vou ter que sair porque eu não vou ficar para semente aqui dentro e
com essas novas leis por aí de repente eles soltam a gente" (Sra. Sf.,
63 anos).
"Me aposentei, eu tava construindo a casa, fiquei um ano construindo,
eu continuei trabalhando mais. Aprontei a casa, eu peguei a trabalhar
de novo, tava me sentindo bem, com saúde e fui trabalhar" (Sr. Ir., 62
anos).
"Encaminhei os papéis o ano passado, né. Agora já mudou, a advoga-
da ia fazer pelo Fundo Rural, para inteirar o tempo com o da carteira.
Daí eu tinha que ir no interior arrumar os papéis; quando voltei, ela
disse que eu não tinha trazido tudo. Lutei e vim trabalhar aqui, faz um
ano e pouco" (Sr. A., 65 anos).
"Aposentadoria para mim, a pessoa viver só da aposentadoria é difícil
porque ela tem um cálculo que vai havendo uma defasagem no
reajuste. Então a pessoa tem que procurar ganhar mais um pou-
quinho" (Sr. 1., 74 anos).

122 Aspectos da teoria do cotidiano


A negação da proximidade do momento da aposentadoria é vi-
sível. Essa transição, do mercado ativo de trabalho para a aposenta-
doria, ou seja, o não-trabalho, é rejeitada pelos trabalhadores, o que
pode ser percebido nos depoimentos acima. Preparar pessoas para
aposentadoria não pode ser somente no campo individual, mas,
também, significa preparar a comunidade para atender a seus apo-
sentados. Informar sobre a possibilidade de utilizar serviços e equi-
pamentos sociais é necessário, bem como as providências para criar
condições para um atendimento satisfatório para essa demanda.
Faz-se necessário criar oportunidades para que os aposentados
encontrem na comunidade outras ocupações, socialmente produti-
vas, para que possam participar, contribuindo com atividades que
nem sempre podem ser exercidas pelos trabalhadores que se encon-
tram na atuação profissional. É nessa conjuntura que se debate a
conquista de espaços para os trabalhadores de terceira idade junto à
sociedade e, assim, valorizar a experiência de vida e, a partir daí,
acrescentar-se em conhecimentos através das trocas com os sujeitos
que detêm a experiência.
São necessários investimentos na área da terceira idade, que te-
nham em seu bojo a finalidade de sensibilizar a sociedade, para que
pessoas, após contribuírem para o crescimento do país, possam ter
na aposentadoria o reconhecimento e o respeito ao direito de con-
quista do tempo livre e assim poderem dispor de sua liberdade. Esse
seria o período que se constituiria na época ideal à consecução de
empreendimentos para os quais não teve tempo anteriormente, e
nesse período podendo dispor dessa liberdade de acordo com suas
próprias convicções.
A seguir, trata-se de sujeitos entrevistados já aposentados. Co-
mo aparece o cotidiano dos trabalhadores aposentados? Como se
encontram nesse cotidiano? A defasagem da aposentadoria é real?
Muitas outras questões aparecem na fala desses sujeitos que estão a
viver a aposentadoria. A partir daqui, confrontar-se-ão com as pers-
pectivas dos trabalhadores que se encontram no mercado ativo e
que, portanto, traçam planos para concretizarem após a aposentado-
ria. As falas dos aposentados desvelarão muitas questões levantadas
nas perspectivas daqueles que se encontram no processo de transi-
ção para o mundo fictício do não-trabalho.

A questão cotidiana do trabalho e suas interfaces... 123


O Sr. Ar., após trabalhar mais de quarenta anos de empregado,
resolveu aposentar-se. Quando foi providenciar a documentação pa-
ra encaminhar o processo, foi reconhecidamente merecida a conces-
são da sua aposentadoria. A funcionária que lhe atendeu no órgão
público admirou-se de suas carteiras profissionais estarem todas
corretamente preenchidas e sem nenhuma anotação que precisasse
de averiguações. As palavras do Sr. Ar. servem de testemunho para
o ocorrido:
"[ ... ] sempre trabalhei na mesma empresa, 42 anos só numa firma eu
trabalhei; aí, quando chegou 35 anos, eu fui me aposentar, naquela
época pra gente se aposentar sempre demorava um ano, um ano e 6
meses pra ficar aposentado. Foi numa segunda-feira, e quando foi na
sexta-feira tava aposentado. Quando foram olhar no lugar onde se
aposenta, ela disse: 'Não tem nenhuma falha, tu já tá aposentado, tem
mais de 35 anos de serviço, não tem nenhuma falha'. Aí, eu me apo-
sentei" (Sr. Ar., 65 anos).

O Sr. Ar. sente-se orgulhoso em falar desse fato , reforçando os


valores que ele concede ao mérito de ter conseguido essa façanha.
O trabalho que desenvolveu foi sempre para uma mesma empresa.
Hoje, aposentado, faz reflexões sobre a vida que leva, vida de traba-
lhador autônomo, que sem medo do trabalho o enfrenta com muita
coragem, ressaltando as vantagens de ser trabalhador por conta pró-
pria. Assim ele se expressa:
"Quem trabalha por conta tem mil vezes mais do que trabalhar em
firma. A aposentadoria não dá para viver, é muito pouco. Uma pessoa
trabalha por conta dá muito mais e trabalha menos" (Sr. Ar., 65 anos).
O entrevistado acima, além de destacar as vantagens financeiras
do trabalho autônomo, faz comparação com a sua remuneração
quando estava trabalhando na empresa. Financeiramente, para esse
sujeito, houve melhora, não pelo valor recebido pela aposentadoria,
mas pelo trabalho que desenvolve após a mesma. Diante dessas
constatações trazidas pelo Sr. Ar., torna-se imprescindível sua con-
cepção sobre aposentadoria definitiva. Seus comentários a respeito
são bastante significativos: "Se a pessoa é trabalhadeira, se ele se
aposenta e ele pára, morre antes do tempo, começa ou a beber ou a
fumar, ou jogo, ou fana e aí termina a vida" (Sr. Ar., 65 anos). Este

124 Aspectos da teoria do cotidiano


mesmo entrevistado ainda refere a importância do trabalho para o
homem. O cotidiano para esse sujeito é eivado de atividades rela-
cionadas ao trabalho. Assim, ele continua a falar sobre o assunto:
"Trabalhar aquilo ali dá saúde para a pessoa, senão o cara se termina
logo. Cinco, seis colegas se aposentaram na mesma época; estou vivo
sou só eu, o resto morreu tudo. Um se botou na bebida, outro jogava,
chegava em casa de noite, pegava o dinheiro da mulher e brigava
[... ]" (Sr. Ar. , 65 anos).
O entrevistado Sr. At. concorda com as palavras ditas pelo Sr.
Ar., ao dizer o seguinte: "As pessoas podem trabalhar até o momen-
to que elas tiverem saúde, enquanto tiverem condições até é bom, é
uma terapia" (Sr. At., 62 anos) . A aposentadoria para o Sr. At. ocor-
reu por motivo de doença pulmonar e cardíaca. As explicitações
sobre o ocorrido são sucintas, mas servem para entender o proces-
so:
"Eu estive doente por muito tempo com sonda no pulmão, do pó das
obras [doença profissional], me tratei, me curei, fiquei bom. Nas ra-
diografias a mancha do pulmão foi diminuindo e limpou. Tenho o co-
ração acelerado. O médico disse: 'Está com problema, o coração mui-
to acelerado'. Me mandaram para o Instituto do Coração, fiquei cinco
anos fazendo tratamento. O governo baixou um decreto, as pessoas
cinco anos encostadas por nervos/coração automaticamente seriam
aposentadas. Me aposentei em 1970 e segui trabalhando normal" (Sr.
At., 62 anos).
O Sr. At., aposentado há mais de vinte anos, comenta sobre a
defasagem salarial. Assim expressa o seu entendimento: "Aposen-
tadoria tinha um valor e, gradativamente, foi diminuindo. Hoje está
em um salário-mínimo" (Sr. At., 62 anos).
No caso do entrevistado Sr. Ev., este não tem problemas finan-
ceiros, mas, como outros aposentados referidos neste grupo, tam-
bém fala da defasagem salarial. Especifica números que vêm facili-
tar a visualização do comentário: "Me aposentei com 8.78 salários
mínimos, hoje estou com 7 e pouco, o governo já agarrou" (Sr. Ev.,
73 anos). Este sujeito afirma não ter problemas financeiros devido
ao capital que conseguiu formar com seu trabalho autônomo. Pos-
suía uma frota de caminhões pequenos, que vendeu após se aposen-
tar. Assim ele comenta: "Quando me aposentei, tinha oito cami-

A questão cotidiana do trabalho e suas interfaces... 125


nhões; vendi, fiquei só com a carreta que dei pro filho. Eu vivo com
um pouco de dinheiro aplicado" (Sr. Ev., 73 anos).
O Sr. Jo. teve suas atividades profissionais como taxista, apo-
sentando-se nessa profissão. Ao fazer paralelo entre o tempo de tra-
balho e agora, o tempo da aposentadoria, também refere bastante
diferença em relação ao salário, que é menor após essa. Assim co-
menta: "Tem diferença bem grande. Sou aposentado por tempo de
serviço nessa profissão de motorista de táxi, é uma profissão que
tem liquidez do fim do dia" (Sr. Jo., 64 anos).
Diante das questões explicitadas neste ponto, referindo-se ao
trabalho cotidiano e à aposentadoria, observou-se que os valores re-
lacionados à categoria trabalho, entre os entrevistados, envolvem
concepções de utilidade, isto é, ser útil, ser ativo, ser disposto, ser,
enfim, trabalhador. Esses estereótipos são assimilados e cristaliza-
dos, sendo, dessa maneira, dados a priori culturalmente.

O cotidiano de trabalho entre sujeitos de terceira idade com


vínculo empregatício e/ou aposentados: sua relação com mitos,
preconceitos e discriminações
Mitos, preconceitos e discriminações, muitos assumidos, outros
impingidos, pelo meio em que nascemos, crescemos e vivemos, en-
fim, acompanham a vida das pessoas desde a infância. Dessa forma,
faz com que haja um constante atrelamento do indivíduo para com
os preconceitos. Estes fazem parte da sociedade e, muitas vezes,
não podem ser eliminados, mas amenizados. Caso não se trabalhe
na busca de amenizar os preconceitos, acabar-se-á levando os ido-
sos ao fracasso, ao isolamento, a um recolher-se em si mesmo. Hei-
ler refere:
"[ ... ] pode-se passar muito tempo até percebermos com atitude crítica
esses esquemas recebidos, se é que chega a produzir-se uma tal atitu-
de. Isso depende da época e do indivíduo. Em períodos estáticos pas-
sam-se freqüentemente inteiras gerações sem que se problematizem
os estereótipos de comportamento e pensamento" (1970, p. 44).
Acredita-se estar vivendo não em uma época estática, mas, sim,
em época dinâmica no sentido de questionamentos sobre as coloca-
ções acima descritas. É preciso retroceder historicamente, a fim de

126 Aspectos da teoria do cotidiano


compreender as origens das conquistas sociais e conscientizar-se
das demandas emergentes. Os costumes e hábitos do cotidiano fa-
zem com que surjam preconceitos e, através deles, são engendradas
crenças relacionando envelhecimento com doença. Cristaliza-se, as-
sim, a idéia de que envelhecer é adoecer, como se a doença não
passasse de um acidente, e a velhice não fizesse parte da vida.
A partir dessa breve explicitação, dar-se-á início às falas dos
trabalhadores entrevistados. A princípio serão abordados os sujeitos
que referiram algum tipo de mito. A Sra. E. afirma, categoricamen-
te, que doenças relacionam-se com a idade, citando exemplos de
pessoas conhecidas, na mesma faixa de idade, com problemas se-
melhantes. Suas palavras são: "[ ... ] quando a gente fica com um
pouco de idade já vêm as dores" (Sra. E., 65 anos). Diante dessa a-
firmação, realizou-se a seguinte pergunta:
"[A Sra. acha normal quem tem idade ter doença?] Eu acho que tem
que ter alguma coisa. Isso aqui [braço inchado e vermelho] não foi do
serviço, não foi nada. Isso aqui é da idade" (Sra. E., 65 anos).
Ao ouvir a resposta com tanta veemência, insistiu-se com inda-
gações no mesmo sentido, a fim de verificar o grau de entendimen-
to sobre aquelas afirmações. O diálogo foi o seguinte:
"[A Sra. conhece pessoas que têm a sua idade que também tenham es-
se problema?] Todos têm. Por exemplo, aqui no prédio a Dona V., ela
sofre horrivelmente do reumatismo. A outra Sra. ali do Sr. P. também.
Só vive na cama. Essa aqui do térreo sofre horrivelmente de osteopo-
rose. Então, isso aí é da idade" (Sra. E., 65 anos).
Destacaram-se fragmentos da entrevista da Sra. Z., por se en-
tender que se trata também de crenças populares, porém, não da
parte da entrevistada, mas daqueles que a rodeiam no seu cotidiano
de trabalho. A fala é a seguinte: "Às vezes, dizem: 'Tem que parar
Dona Z., ficar em casa, curtir seu velho' [risos]" (Sra. Z., 64 anos).
Essa fala suscitou outra indagação: "[A Sra. vê isso como algo posi-
tivo ou como piadinha para deixar de trabalhar?] Não, é porque ela
tem que dizer, né. Acham que tenho que parar. Mas estou bem, não
estou doente" (Sra. Z., 64 anos).
Em algumas entrevistas apareceram falas demonstrando a apo-
sentadoria relacionada à ausência da saúde. As expressões são as

A questão cotidiana do trabalho e suas interfaces... 127


seguintes: "Não vou parar porque tenho saúde." (Sra. Z., 64 anos),
ou, ainda, outro entrevistado entende que se aposentar significa en-
velhecer mais rapidamente, citando, inclusive, exemplos de amigos:
"Às vezes, me dizem: 'Tu não vai parar?'. Tenho amigos que se
aposentaram há mais de 20 ou 30 anos e estão mais envelhecidos do
que eu, e são mais jovens" (Sr. I., 74 anos). Já o próximo comentá-
rio vem de colegas de trabalho que acenam aos trabalhadores idosos
quando apresentam qualquer sintoma que se relacione à ausência da
saúde, dizendo ser o momento de se afastarem do trabalho. Assim,
aparece na fala da Sra. Pr.: "Quando eu andava meio ruim, diziam:
você tem que se aposentar" (Sra. Pr., 62 anos).
Outro aspecto levantado, referente aos mitos, é sobre questões
econômicas. O convite à aposentadoria chega a partir de justificati-
vas de renda, o que se percebe pela maneira que expressa a narrati-
va da Sra. Pr.:
"[ ... ] as pessoas têm os problemas delas e ficam meio assim, 'ah, você
tem bastante dinheiro', porque eu ten ho mi nhas economias no banco,
não é. 'Não precisava mais trabalhar'. Não! Eu posso trabalhar, o tra-
balho é muito bom" (62 anos).
Questões relevantes, como as abordadas acima, são caracteriza-
das pela entrevistada como algo sem importância. Isso é percebido
em sua fala quando comenta sobre insinuações recebidas no traba-
lho atual. Assim ela expressa tal angústia:
"É, eu acho que não vale a pena a gente discutir [... ]. Eles [...] vão
chegar a essa idade, só se eles morrem pra não chegar. É isso que eu
fico pensando, será que não vão chegar a essa idade?" (Sra. Pr., 62
anos).
A contradição desvela-se e a entrevistada acaba por desabafar
sobre seus sentimentos para com seus colegas de trabalho. Ao
mesmo tempo em que refere não valer a pena abordar tais questões,
a Sra. Pr. tenta deixar claro, na entrevista, que esse assunto não me-
receria ser mencionado, referindo-se, em tom de vingança, sobre o
fato da idade dos colegas mais jovens, fazendo as indagações que
constam nesse trecho referido.
Os preconceitos engendram-se no cotidiano dos entrevistados,
brotando nas falas das mais variadas maneiras. A idade, em se tra-

128 Aspectos da teoria do cotidiano


tando de trabalhadores idosos, é um dos pontos abordados. Os pre-
conceitos aparecem de forma mascarada em relação à idade no co-
tidiano dos trabalhadores, e falas, como a da Sra. Pr., mostram co-
mo influi na vida das pessoas: "Eles gostam de ferir as pessoas pela
idade, mas eu não firo ninguém pela idade" (Sra. Pr., 62 anos). O
fato concreto mostra que a vítima do preconceito sente-se ferida em
seu âmago.
O Sr. Wl. inicia abordando, afirmativamente, questões sobre
preconceitos em relação à idade, referindo, também, preconceitos
pelo tempo de trabalho nessa mesma empresa. Sua fala assim vem
demonstrar:
"É, de fato aqui na empresa existe preconceito. Eu me sinto assim,
existe preconceito contra mim. Parte pela idade e parte pelo tempo de
serviço [49 anos se considerar as licenças-prêmio a que tem direito].
Eles acham que a pessoa já é descartável" (Sr. Wl., 63 anos).
O Sr. Wl. ainda refere à falta de consideração para com a sua
pessoa, mas se julga merecedor de um tratamento condigno. A nar-
rativa vem fundamentar esse comentário:
"Eu me julgo merecedor de ser tratado assim com certa dignidade,
com respeito, o que não ocorre. Não há respeito das chefias superio-
res, valorizando as pessoas que tanto contribuíram para o crescimento
da empresa" (Sr. Wl., 63 anos).
O comentário a seguir difere-se dos anteriores em relação aos
preconceitos destacados pelos sujeitos pesquisados, uma vez que
todos, até o presente momento, abordaram preconceitos externos,
que são aqueles que partem de outrem. Agora, abordar-se-á o pre-
conceito interno, que se mostra na fala do Sr. Wl., quando faz um
comentário sobre sua chefia imediata:
"Tenho boas relações profissionais, eu só me queixo do sistema;
acho que três pessoas com curso superior não poderiam ser dirigidos
por um técnico. Acho que deveria ser, pelo menos, uma pessoa de ní-
vel superior" (Sr. Wl., 63 anos).
A partir daqui, alguns pontos referentes a discriminações terão
destaque. Assim sendo, diversas características são alavancadas nas
entrevistas, as quais se mostram por serem trabalhadores velhos,
por serem velhos trabalhadores, por serem organizados, por terem o

A questão cotidiana do trabalho e suas interfaces .. . 129


tempo para se aposentarem e, assim, não procederem, por serem
aposentados e não se afastarem do trabalho, por serem aposentados
e recontratados. Uma situação pode ser destacada para confirmar as
discriminações comentadas:
"Existe mesmo essa discriminação; não sou só eu que sou aposentado
e que continuo trabalhando. Há outros que se aposentaram e não saí-
ram, continuam trabalhando" (Sr. Wl. , 63 anos).
Estudos poderiam ser aprofundados nesse tópico pela dimensão
da existência de tantos outros meios de segregação para com os tra-
balhadores de terceira idade. É possível se encontrar outras caracte-
rísticas com cunho discriminatório no ambiente de trabalho? Diante
do que apareceu nesta amostra a resposta é afirmativa.
O cotidiano desses trabalhadores é coberto de questões que tor-
nam o ambiente de trabalho, por melhor que seja, um verdadeiro
caldeirão de problemas ocultos. Os sentimentos dos trabalhadores
em relação ao trabalho, ao longo da história de cada sujeito, apare-
cem nas falas. A metamorfose a que se assiste diante de tais comen-
tários é a mais distinta, podendo ser entendida por sentimentos pó-
sitivos e/ou negativos. Para abordar essas questões, é necessário te-
cer algumas palavras sobre alterações corporais dos sujeitos pesqui-
sados: expressões faciais alternavam-se entre as mais diversas emo-
ções.
O Sr. Mn., ao ser indagado sobre preconceitos e/ou discrimina-
ção em relação à idade, afirma que realmente existe entre colegas
de trabalho, fazendo sua colocação: "Os colegas do grupo tratam
diferente, tem, tem" (Sr. Mn., 69 anos). Este entrevistado não se
alonga a esse respeito, mas sua fala é pausada, o que demonstra sua
discrição em comentar o assunto, sendo visível o desconforto.
O Sr. Ar. viveu na prática o que o Sr. Mn. referiu como fatos
que acontecem com trabalhadores aposentados. Assim ele faz a nar-
rativa:
"Em seguida que eu sai da firma, trabalhei três ou quatro anos numa
fábrica de extintor de incêndio, para entregar em lojas, em firmas.
Trabalhei lá, mas o cara, o dono da firma, era muito pão-duro; aí, um
dia, eu disse assim: 'Não. É a última vez. Eu não trabalho mais para o
senhor'. Ele perguntou: 'Por quê?'. 'O senhor só ganha dinheiro e

130 Aspectos da teoria do cotidiano


não paga', porque diz que o aposentado trabalha só com o salário mí-
nimo" (Sr. Ar., 65 anos).
Em sua narrativa acima, o entrevistado expressa sua indignação
com a exploração a que se submeteu por mais de três anos. Após
essa experiência de trabalho, depois de se aposentar, o Sr. Ar. vol-
tou-se para outras atividades de maneira autônoma. O trabalho para
este sujeito é parte dominante do seu cotidiano, o que o leva a acre-
ditar em mitos como:
"Depois que se aposenta, tem que trabalhar, porque, se a pessoa que
se aposenta não trabalhar num lugar, vira jogador, bebe nos botecos,
já pega de dia e dorme, a noite sai. Ele não fica em casa" (Sr. Ar., 65
anos).
O Sr. Jo. presenciou vários episódios de preconceitos e discri-
minações contra motoristas-taxistas idosos. Foi lhe perguntado se
as pessoas de mais idade eram discriminadas no trabalho, sendo a
resposta a seguinte:
"Sim, o idoso é. É vergonhoso isso aí. Parece que não existe, que não
é gente. A maioria das vezes, o passageiro não queria pegar. É muito
chato isso aí. A discriminação que existe foi uma das coisas piores
que encontrei na profissão" (Sr. Jo., 64 anos).
O Sr. Jo. continua as colocações sobre esse assunto, comentan-
do:
"Era comum andar na rua e parar na sua frente, ter um passageiro ne-
cessitando de um carro e, se o motorista era negro ou idoso, não pe-
gava. Isso era a coisa mais comum que existia" (Sr. Jo., 64 anos).
Diante de verdadeiras confissões a respeito da profissão, sur-
gem indagações como:
"[Em que época aconteciam? E como foi percebido?] Na continuação
do seguimento do serviço, há mais ou menos uns 12 anos, até uns 12
anos, existia com muita freqüência. [... ] Agora não tanto, porque essas
leis que apareceram de não ter discriminação. As leis acalmaram, me-
lhorou sensivelmente" (Sr. Jo., 64 anos).
Algumas considerações de Agnes Heller sobre preconceito se
fazem necessárias neste momento a fim de iluminar o que foi dis-
corrido pelos sujeitos entrevistados. "O preconceito é a categoria do

A questão cotidiana do trabalho e suas interfaces... 131


pensamento e do comportamento cotidianos .... Quem não se liberta
de seus preconceitos, [... ] acaba fracassando, inclusive pessoalmen-
te" (1970, p. 43).
Encontram-se na esfera da vida cotidiana que, segundo Guima-
rães, "[ ... ] podem ser de vários tipos: morais, políticos, religiosos,
raciais, nacionais, étnicos" (2000, p. 37). Para Agnes Heller: "os ju-
ízos provisórios refutados pela ciência e por uma experiência cui-
dadosamente analisada, mas que se conservam inabalados contra
todos os argumentos da razão, são preconceitos" (1970, p. 47).
Para que possamos trilhar rumo à compreensão sobre essa cate-
goria, devemos mergulhar na cotidianidade, porque a cotidianidade
é o ambiente mais abundante do preconceito. É aqui que nos depa-
ramos com pensamentos, ações, repetições, reproduções que a prio-
ri nos são impostas e, sem questionamentos, vamos participando da
vida de maneira cômoda, isto é, aceitamos a vida como ela se colo-
ca diante de nossos olhos. As normas, os valores engendram nossas
vidas como se fossem algo perene e eterno, cristalizados no tempo.
Posturas que caracterizam estereótipos, analogias e esquemas já
elaborados, contribuem, sobremaneira, para o fortalecimento dos
preconceitos.
Espera-se que esses fragmentos das entrevistas venham instigar
muitas indagações, entre elas: Por que se têm tantos mitos, precon-
ceitos e, em conseqüência destes, há discriminação em relação aos
idosos, se ser idoso é uma conseqüência natural para o homem?

Considerações finais
Esta pesquisa proporcionou respostas acerca das indagações
enunciadas ao longo da mesma, que conduziram o estudo em torno
da terceira idade e da organização do cotidiano de trabalho dos en-
trevistados, buscando-se explicar as contradições que surgiram.
Demonstrou-se que o trabalho na terceira idade é possível e se faz
presente na vida dos entrevistados, apesar das muitas dificuldades
no âmbito da valorização desse trabalhador.
Os sujeitos entrevistados agarram-se ao trabalho, deixando
transparecer muitas expectativas do cotidiano que povoam esse dia-
a-dia. Constatou-se também que são inúmeras as expectativas nega-

132 Aspectos da teoria do cotidiano


tivas que os sujeitos carregam em suas vidas, principalmente no pe-
ríodo de pré-aposentadoria, engendrando nesse cotidiano questões
altamente relevantes. As expectativas negativas podem ser aponta-
das iniciando-se pelas inseguranças no ambiente de trabalho, que
são provocadas em muitos momentos pelos colegas que procuram
dificultar o acesso do trabalhador idoso a determinados aperfeiçoa-
mentos profissionais que visem à atualização.
Outras questões que foram detectadas, e que igualmente provo-
cam inseguranças, são aquelas que trouxeram um cunho de perdas
durante a história de trabalho, levando muitos dos entrevistados a
perderem seus postos para atividades de menor valor hierárquico
nas escalas das suas respectivas empresas, se comparados com os
postos de trabalho que foram alcançados antes de pertencerem à
terceira idade. Como se pode constatar, esse é um fator altamente
negativo na vida do trabalhador idoso, colaborando para que ele,
mesmo com muitas qualificações, acabe por optar em deixar o mer-
cado de trabalho.
Constatou-se, também, o jogo de forças que são travadas entre
os trabalhadores de terceira idade e trabalhadores mais jovens. Nes-
te encontro de opostos, inserem-se preconceitos e mitos, que muitos
dos entrevistados trouxeram de suas vivências nesse cotidiano. As
discriminações que sentiram e/ou sentem através daquilo que se so-
lidificou em suas mentes transparecem nas histórias relatadas. Foi
constatado, a partir de suas posturas frente à vida, que buscam, de
muitas formas, estratégias que são verdadeiros suportes para se
concretizar a vontade de continuar trabalhando com todas as con-
tradições visíveis que, cotidianamente, se apresentam a desafiá-los.
O esforço para que consigam superar essas desavenças no cotidiano
de trabalho é construído dia após dia. Tais estratégias foram de-
monstradas a partir de frases que, na análise de conteúdo, tornaram-
se visivelmente importantes, sendo colocadas de maneira a transpa-
recer que: "[ ... ] essas coisas não atingem [.. .]", " [...] nem dou bola
[... ]" "[ ... ] inveja santa [... ]", e outras explicitações que ilustram a
análise desta pesquisa.
É importante refletir, diante das perspectivas futuras, a fim de
possibilitar um alargamento das dimensões na consciência da so-
ciedade a respeito da importância em se abordar, e também se pro-

A questão cotidiana do trabalho e suas interfaces... 133


blematizar, tais questões sociais, porque o trabalho para o homem é
vital, fazendo com que se sinta útil.
Teve-se a felicidade de poder explicitar, a partir dos depoimen-
tos, o comprometimento e a responsabilidade que os sujeitos de ter-
ceira idade têm para com o trabalho. Pode-se ver que não se atingiu
o trabalho em nível de essência da vida humana, porque, em Agnes
Heller, para se chegar ao trabalho como "essência humana", pres-
supõe-se que ele atinja uma necessidade social e, a partir daí, resul-
tem objetivações genéricas, que possam vir a ser universalizadas.
Com isso, entendeu-se que o trabalho, da forma como se mostrou,
não chegou a atingir o nível de abrangência de work.
Para a maioria dos entrevistados, o apoio familiar é de suma
importância para as vivências no trabalho, bem como para a satisfa-
ção nesse cotidiano. As influências que são exercidas no seio fami-
liar são muito significativas para que essas relações sejam harmoni-
osas entre idosos e seus familiares, o que não significa dizer que o
idoso que não desenvolva atividades de trabalho não tenha relações
harmoniosas com suas famílias.
Considera-se que um envelhecimento saudável e produtivo con-
tribui para um crescimento que traga em si a realização de um de-
senvolver-se continuamente. Diante da longevidade do homem,
existe a necessidade de que haja preparação para um melhor envol-
vimento da sociedade com trabalhadores idosos, por ser esta uma
população que, em curto espaço de tempo, poderá vir a ser não mais
a minoria no ambiente de trabalho, mas, possivelmente, num futuro
muito próximo, a maioria.
Nesse contexto, o Serviço Social engendra-se nos mais diversos
ramos sociais em que o ser humano se desenvolve. É a partir daí
que se busca tecer a relação com a Gerontologia Social que, sem
sombra de dúvidas, é uma das áreas sociais que se mostra em cons-
tante atrelamento com a ciência e a tecnologia, tanto em meios co-
mo o da saúde, e outros campos, como também o do trabalho; da
saúde pelo aumento da expectativa de vida, e vida com qualidade
de se manterem ativos no mercado de trabalho, bem como pelo
avanço tecnológico no ramo do trabalho, com inovações que se
mostram dia após dia. Este fato está intimamente ligado às questões
sociais, devendo as áreas das ciências humanas, entre elas o Serviço

134 Aspectos da teoria do cotid iano


Social, estar atentas para as profundas modificações na vida dos su-
jeitos que acabam por ficar à margem das inovações da tecnologia
no ambiente de trabalho.
O Serviço Social pode contribuir para que o trabalhador idoso
continue ativo no mercado de trabalho sem que precise passar por
pressões que o levem ao afastamento precoce de suas atividades
profissionais, fazendo com que, quando esse trabalhador decidir se
aposentar, o faça com espontaneidade. Assim, verifica-se que o
Serviço Social pode contribuir para o bem-estar do trabalhador de
terceira idade através de atividades sistemáticas entre trabalhadores
das diversas faixas etárias, proporcionando trocas a respeito do tra-
balho, da vida e de muitos outros aspectos que emergem a partir do
convívio grupal.
É neste contexto que o Assistente Social pode e deve intervir
com atividades que possam contribuir para a integração e a valori-
zação das experiências e dos saberes do trabalhador idoso. O espa-
ço de trabalho, através das relações sociais, pode vir a ser um am-
biente que veja no trabalhador idoso o alicerce para o desenvolvi-
mento produtivo que se mostrará através dos frutos que dele resul-
tem.
Dessa forma, proporcionar-se-á um despertar a respeito de se
valorizar a vida dos trabalhadores prestes a se aposentar e os já apo-
sentados. Estes últimos poderão contribuir com argumentos que
contextualizem o cotidiano, durante a fase que antecedeu a aposen-
tadoria, e trazer testemunhos vivos dos momentos que estão viven-
ciando no dia-a-dia de aposentados.
Acredita-se que, diante de posturas que vêm desmantelar mitos,
preconceitos e discriminações, a caminhada possa vir a ser mais
humana e menos estigmatizante para a geração que se encontra nu-
ma etapa da vida com mais maturidade e experiência, fazendo com
que se sintam reconhecidos pelo tanto que investiram de suas vidas
para o trabalho. Assim, ao chegarem à terceira idade, possam sentir-
se orgulhosos de terem se oportunizado a troca de experiências vi-
vidas, passando, assim, aos mais jovens, a história do trabalho que
hoje estão desenvolvendo. Este reconhecimento possibilitaria um
grande bem-estar, tanto para os trabalhadores que se aproximam do

A questão cotidiana do trabalho e suas interfaces. .. 135


afastamento quanto para os trabalhadores que permaneceram por
mais alguns anos no mercado de trabalho.
O trabalhador, quando chega a atingir a terceira idade, carrega
em si sua bagagem de conhecimento, de experiência, de muitas lu-
tas travadas para galgar a vida, podendo-se concluir que o tempo o
fez um homem, enfim, sábio. É nessa premissa que se pode perce-
ber o quanto se perde em aproveitamento, se não se der ouvido ao
trabalhador idoso. Quem sabe não se está perdendo a oportunidade
de reverter a atual situação preocupante com acontecimentos que
estão deteriorando a natureza e degradando a própria vida humana,
que são importantes e imprescindíveis para a sobrevivência da hu-
manidade, por não se dar crédito às palavras de pessoas que podem
ver no futuro as repercussões de atos impensados, que estão sendo
feitos no presente e/ou já fizeram parte do passado.
Gerações mais jovens não concedem a devida importância aos
alertas advindos de trabalhadores de mais idade, o que se observou
claramente nesta pesquisa. Para onde caminha a humanidade se a
maneira de ver a vida recomeça a cada nascimento e morre a cada
morte? As experiências que não se tornam valorizadas nem sequer
ouvidas, como é o caso de idosos que são abandonados em institui-
ções para o silêncio. Com eles, são enterradas muitas histórias de
vida que poderiam contribuir em muito para a melhoria dos ho-
mens.
Diante do quadro que se desenha para o futuro do homem, é
preciso que se tenha em mente as muitas necessidades referentes à
demanda emergente que a longevidade humana forçosamente de-
sencadeará. A partir dessas reflexões, torna-se urgente um despertar
da sociedade para prover meios de integração de pessoas de terceira
idade nos meios sociais. Meios estes que podem ser iniciados no
seio familiar e nos bancos escolares, proporcionando uma reflexão
sobre a essência do homem enquanto ser, não cultivando idéias de
afastamento e competições entre jovens e velhos. Isso pode ser es-
tendido para os mais diversos locais de trabalho, engendrando um
fim único que é aquele de valorizar as pessoas, independentemente
de idade.
Em última análise, este trabalho de pesquisa vem para reforçar
a importância do homem idoso no percurso da vida. Fica como su-

136 Aspectos da teoria do cot idiano


gestão final a relevância da valorização da vida dos idosos, para que
cada um de nós traga, para o nosso próprio ambiente familiar e es-
paço de trabalho, as lições apre(e)ndidas através do somatório de
muitas e muitas décadas de conhecimento, enfim, de pura experiên-
cia de vida.

Referências bibliográficas
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A questão cotidiana do trabalho e suas interfaces... 137


8

A construção de preconceitos
na diversidade humana
Zélia Maria Ferrazzo Farenzena•

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As mudanças sociopolíticas e científico-tecnológicas vertiginosas


vivenciadas na contemporaneidade provocam desafios incontestá-
veis a respeito da vida do ser humano. Produzir e socializar conhe-
cimentos, transitar através das emoções pelas relações interpessoais
e mover-se corporalmente pelos espaços da vida cotidiana se consti-
tuem em pensamentos, em ações, em fonte, em exemplo e em ponto
de partida para a explicitação da cotidianidade.
O mundo está imerso em inten·ogações a respeito das perspec-
tivas do homem no novo milênio. As incertezas e os questionamen-
tos, as verdades sobre os acontecimentos localizados ou globaliza-
dos fazem parte do pensamento reflexivo do ser humano e de suas
ações na heterogênea estrutura da vida cotidiana.
O homem realiza conquistas tecnológicas surpreendentes a par-
tir do cotidiano e faz ciência. Constantemente pergunta sobre si
mesmo, logo, o homem pensa sobre o homem. Ele é a referência
permanente nos estudos, nas pesquisas, nas concretudes pessoais e
coletivas, no princípio, nos meios e nos fins dos processos cogniti-
vos, socioafetivos e culturais.

Mestre em Serviço Social; Prof" da Faculdade de Educação da PUCRS .

A questão de preconceitos na diversidade humana 139


O homem é unidade, singularidade, particularidade. Também é
um ser genérico, um ser social. De cada tese faz surgir novas hipó-
teses, novas possibilidades: é um ser de pensamento inquieto. É um
ser criativo. Mobiliza-se apontando os sintomas dos contínuos con-
flitos na sociedade e organiza-se com intencionalidade, promoven-
do coletivamente movimentos sociais históricos que transformam o
mundo.
A sociedade não dispõe de nenhuma substância além do ho-
mem, portador da objetividade social, cabendo-lhe exclusivamente
a construção e a transmissão de cada estrutura social, afirma Agnes
Heller (1972). O homem é quem faz a história, e esta é a substância
da sociedade. É na historia, substância social, que encontramos a
essência do gênero humano e a continuidade de valores estabeleci-
dos na heterogênea estrutura de uma sociedade. Tais valores são
manifestos no percurso das diferentes épocas históricas, num pro-
cesso de construção, degenerescência ou ocaso desses valores.
Na sociedade ocorrem, então, as colisões de valores de esferas
heterogêneas que se desenvolvem de modo desigual. Assim, numa
esfera como a família ou instituições sociais podem desenvolver-se
valores da essência humana relacionados com aspectos da socieda-
de bem distintos de outros valores de outras esferas sociais. Nessas
esferas acontecem oscilações entre constituição de valores e desva-
lorização.
Os valores conquistados pela humanidade não se perdem de
modo absoluto e, como categoria ontológica social, é a expressão e
o resultado de relações e situações sociais na estrutura pragmática
da vida cotidiana. Assim, o homem orienta-se nesse complexo so-
cial através de normas e estereótipos avançando nas objetivações e
subjetivações entre valores, juízos provisórios e preconceitos.
A imersão e inserção no campo da filosofia e no da sociologia
permite um encontro com os fundamentos que traçam as idéias de
Agnes Heller (1972) sobre a vida cotidiana e, dentro do cotidiano, a
formação dos preconceitos sociais que são, na maioria, de proce-
dência histórica. Preconceitos que estão sujeitos a uma permanente
transformação e são obra da própria integração social.
Transitar pelos pensamentos filosóficos e sócio-históricos, nos
aportes de Heller, permitem encontrar referenciais significativos pa-

140 Aspectos da teoria do cotidiano


ra uma análise reflexiva das manifestações humanas e para uma crí-
tica ao nosso tempo no que diz respeito às pessoas com deficiência
e, conseqüentemente apresentam necessidades significativamente
especificas, bem como, diferentes estruturas de necessidades.
O estudo reflexivo permite (re)visitar a origem dos preconcei-
tos e seus conteúdos axiológicos negativos na esfera da vida coti-
diana das pessoas que, por contingências diferentes, apresentam o
que é denominado, socialmente, deficiência na diversidade do ser
humano. Ser diferente dos padrões denominados normais para uma
determinada sociedade provoca nas pessoas manifestações diversas,
expressas por ações frente às emoções, quer pela forma de olhar,
pela forma de agir ou até pelo silêncio ou omissão. Este pensamen-
to e comportamento são determinados pelos preconceitos e pelos
estereótipos. Os preconceitos que transitam, hoje, ainda, pelo coti-
diano da pessoa com deficiência, constituíram-se no decorrer da
história e continuam sendo construídos pelo ser humano individual
alcançando o ser humano genérico/social. Os padrões aceitos, no
desenvolvimento humano, obedecem, assim, às concepções que são
construídas pelo entorno social.
O constrangimento manifesto faz parte do cotidiano das pes-
soas cujos determinantes orgânicos apontam para uma deficiên-
cia/diferença. Os preconceitos que as envolvem, construídos pelas
pessoas na heterogênea esfera da vida cotidiana, apresentam a rigi-
dez das formas de pensamento e do comportamento, mas podem
modificar-se. As atitudes baseiam-se numa avaliação probabilística
que se confirma no infinito processo da prática. O saber na vida co-
tidiana se comprova mediante o conteúdo correto do juízo em que
se baseia aquele saber. Os juízos e esquemas de comportamento da
cotidianidade são sempre provisórios, e a maior parte dos juízos
provisórios não são preconceitos. O preconceito é um tipo particu-
lar de juízo provisório. Os juízos provisórios refutados pela ciência
e por uma experiência cuidadosamente analisada, mas que se con-
servam inabalados contra todos os argumentos da razão, são pre-
conceitos.
A unidade imediata de pensamento e da ação caracteriza a vida
cotidiana. Nesta, o coletivo e cada indivíduo predisposto ao precon-
ceito rotula o que tem diante de si e o enquadra, a priori, numa es-

A questão de preconceitos na diversidade humana 141


tereotipia de grupo. O individual torna-se genérico, excluindo todas
as demais propriedades que não ocupam aquele espaço do pensa-
mento em que os determinantes são as características estabelecidas
pela própria sociedade cuja fonte é o humano particular. Essas pro-
priedades são sempre produtos da vida e do pensamento cotidianos.
O preconceito pode ser individual ou social. O homem pode es-
tar tão carregado de preconceitos com relação a uma pessoa ou ins-
tituição concreta que não lhe faz falta saber a fonte social do conte-
údo dos preconceitos. Crer em preconceitos é cômodo porque pro-
tege de conflitos, permite o isolamento aparente do problema, inibe
as escolhas, confirma as ações preconcebidas e joga para fora do
individual o compromisso social e o compromisso com a vida. Os
preconceitos ajudam a interesses imediatos de uma classe dominan-
te, pelo seu conservadorismo e pelo seu conformismo. Também,
com a ajuda dos preconceitos é fácil a mobilização contra os inte-
resses da própria integração e contra a práxis orientada no sentido
do humano genérico. O preconceito formado impede que sejam re-
veladas as demais propriedades e qualidades do indivíduo.
Construídos os preconceitos, a tendência é a generalização, di-
ficultando a leitura da realidade individual do ser humano, sua sin-
gularidade. Sem confronto com os fatos verdadeiros, sem verifica-
ção da fonte do juízo e sem investigação dos seus fundamentos, não
se pode constatar o verdadeiro e o correto na unidade de pensamen-
to e ação; logo, são desenhadas garatujas sobre a pessoa encobrindo
seus verdadeiros traços, definindo uma imagem distorcida. Ocorre,
então, o fracasso social e a desvalorização do potencial individual
frente à diversidade humana adotando a generalização de uma par-
ticularidade de um indivíduo para outros, ou, até, para um determi-
nado grupo. Daí ser necessário uma (re)orientação correta no meio
ambiente para que não se instalem as catástrofes da vida cotidiana
quando se elimina a pessoa toda a partir de alguns indicadores de
problemáticas orgânicas em detrimento dos potenciais que a carac-
terizam como seres de uma espécie capaz de pensar sobre sua con-
tingência de vida. Se generalizarmos incorretamente, afirma Heller
(1972), a própria atividade nos corrigirá.
Os preconceitos são moralmente negativos. Isso não quer dizer
que ter um preconceito define o homem como imoral. Isso depende

142 Aspectos da teoria do cotidiano


da relação da individualidade com a totalidade, das conseqüências e
das motivações dos preconceitos. Esses são sempre negativos por-
que impedem a autonomia do homem, ou seja, diminuem sua liber-
dade relativa diante do ato de escolha, ao deformar e, conseqüente-
mente, estreitar a margem real de alternativa de cada indivíduo. Os
preconceitos que surgem na estrutura da vida cotidiana em face da
ideologia hegemônica são produzidos pela classe dominante.
Na vida cotidiana, a organização do trabalho e da vida privada,
os lazeres e o descanso, a atividade social sistematizada, o inter-
câmbio e a participação são partes orgânicas dessa estrutura hetero-
gênea. É nessas esferas que se produzem os preconceitos. Assim, é
na família, nas instituições educacionais e na comunidade que os
conteúdos expressos no pensamento e no comportamento determi-
nam os tipos de preconceitos dominantes nas diferentes esferas so-
ciais que atingem a individualidade humana.
O preconceito, como elemento da cotidianidade, intervém no
convívio social de cada sujeito num espaço-tempo do dia-a-dia. O
tempo (Heller, 1972) é a irreversibilidade dos acontecimentos e o
tempo histórico é a irreversibilidade dos acontecimentos sociais.
Daí a responsabilidade do indivíduo particular na expressão dos
seus conteúdos de pensamento e ação frente a outro indivíduo, bus-
cando superar a ênfase na deficiência para enfatizar a eficiência,
compreender as possibilidades de uma vida convivida para minimi-
zar os conteúdos dos preconceitos. Através do conteúdo são distin-
guidos os tipos de preconceitos que podem ser tópicos, morais, ci-
entíficos, políticos, podem ser grupais, nacionais, religiosos, raciais.
A sua esfera é sempre a vida cotidiana. Assim, é a partir da esfera
do cotidiano que podem ser desenvolvidos estudos a respeito da in-
tegração social da pessoa com deficiência no contexto da escola e
da comunidade. Também, é possível analisar o conteúdo expresso
nas políticas públicas que preceituam a integração social desses in-
divíduos, seus direitos humanos, seus deveres como cidadãos, bem
como o distanciamento entre o discurso e a realidade. O conteúdo
expresso e interpretado pelo indivíduo na sua singularidade, mas al-
cança o humano genérico através das interações sociais. É no coti-
diano dessas pessoas que encontramos os conteúdos dos preconcei-

A questão de preconceitos na diversidade humana 143


tos, socialmente instalados, determinando os desvios no processo da
integração social.
Se os preconceitos são produtos do pensamento e da vida coti-
diana, vida do homem todo, é preciso considerar a fixação afetiva
no preconceito, pois muitos preconceitos não são eliminados à luz
da razão, afirma Agnes Heller (1972). A fé e a confiança são dois
diferentes afetos do preconceito. A fé nasce da particularidade indi-
vidual, cuja necessidade satisfaz, ou seja, todo homem é, ao mesmo
tempo, ente particular/individual e ente humano-genérico. Todo
homem tem motivações que se referem apenas a si mesmo e, ao
mesmo tempo, está inserido necessariamente no desenvolvimento
global da humanidade. Particular é a sua relação com os objetos da
fé e com a necessidade satisfeita pela fé. O afeto do preconceito é a
fé. Diferente da fé, a confiança, enraíza-se no indivíduo e está numa
relação mais consciente com a sua essência humano-genérica. Toda
confiança se apóia no saber, assim a confiança refutada pela expe-
riência e pelo pensamento termina por desaparecer. A fé está em
contradição com o saber, ela então pode permanecer inabalável. A
ideologia não tem caráter de preconceito, por mais tendenciosa que
seja. Assumir uma ideologia é algo difícil para o indivíduo, pois ela
não faz apelo ao particular/individual, e sim ao humano-genérico, à
confiança e não à fé.
Os sentimentos de amor e ódio dividem nossos preconceitos em
dois grupos: positivos e negativos. Os positivos são a própria vida,
a própria moral os próprios preconceitos, a própria comunidade e as
próprias idéias. Os negativos são aqueles referentes aos demais,
alienados e contrapostos a nós. O preconceito, individual ou social,
assimila-se em nosso ambiente e aplica-se espontaneamente através
das mediações. A vida cotidiana produz os preconceitos e a base
antropológica dessa produção é particularidade. Os sistemas de pre-
conceitos são provocados pelas integrações sociais através das clas-
ses sociais nas quais vivem os homens.
Os valores universais liberdade e vida têm como condição a
igualdade na liberdade e igualdade nas oportunidades de vida. O ser
humano, cuja constituição biológica, cujas manifestações cognitivas
ou sociais se apresentam significativamente diferenciados, provo-
cam nas pessoas incluídas nos padrões normais de referência, olha-

144 Aspectos da teoria do cotidiano


res e conseqüentemente pensamentos expressos por comportamen-
tos de comoção, de piedade, de atitudes de exclusão social como
parte do sistema normativo de interação pessoal. Esses olhares que
manifestam o pensar sobre a diversidade/diferença humana provo-
cam/promovem, constantemente, a tomada de decisões pelo outro,
por aquele que tem o direito de ser ouvido/olhado e respeitado no
seu projeto de vida, nos seus desejos, nas suas possibilida-
des/potencialidades e nos seus deveres como cidadãos, lançando-o
a espaços de minoridade sociocultural.
A desvantagem e o descrédito social, vistos como característica
inerente à própria pessoa, devem ser suplantados para dar lugar ao
bom julgamento, à sabedoria prática (phonesis). Também, não pode
ser negligenciada a análise dos fatores circundantes definidos pelo
contexto social, pois, o encontro do excluído ocorre sempre no es-
paço das relações sociais. Estas, de certa forma, confirmam a dis-
tinção da diferença em uns e da normalidade em outros. A extensão
dada ao desvio de uns assegura a normalidade de outros, conse-
qüentemente as ambigüidades surgem socialmente, ignorando, mui-
tas vezes, o aspecto político do problema. Dessa maneira, as áreas
de possibilidades no atendimento aos direitos individuais do ser
humano permanecem obscuras ou camufladas no interior de grupos
ou organizações como a família, a escola, as instituições assisten-
ciais, ou ainda, espetacularmente bem definidas nos documentos le-
gais e fatidicamente distantes da prática.
O desaparecimento do preconceito não é utópico, poderia cons-
tituir-se de pensamentos e ações, numa sociedade onde cada ser
humano se forma como sujeito comprometido consigo mesmo e
com a coletividade na condução da vida e na construção da paz. En-
tretanto, uma sociedade construída sobre a base de um indefinido
progresso do capital, numa constante busca da produção pela ênfase
no produto final, a qualidade de vida boa, não é possível, pois as
forças conservadoras e os preconceitos não são eliminados do de-
senvolvimento sociocultural.
Para superar os preconceitos o homem deve assumir riscos do
erro, deve confiar nos ideais e nas convicções sob a base de um
permanente controle da situação das próprias motivações e não per-
der a capacidade de julgar corretamente o singular reconquistando

A questão de preconceitos na diversidade humana 145


sempre no dia-a-dia a relativa liberdade de escolha. Todo homem,
em certa medida e sobre alguns aspectos, tem preconceitos. Todo
preconceito impede a autonomia e a liberdade no ato da escolha.
Cada um é responsável pelos seus preconceitos. E, na medida em
que o homem se conserva livre deles é possível mensurar o quanto
ele é singular e o quanto pode se impulsionar para vôos de liberdade.
O conhecimento da realidade é necessariamente inacabado, é
mutante. Admitir isso possibilita mover-se em direção a novas des-
cobertas, em direção a novas formas de pensamento e ação, ense-
jando a superação da concepção ingênua que possamos ter de nossa
própria presença no mundo. O dogmatismo, a rigidez de pensamen-
to, o conformismo, a inércia mental, a aceitação acrítica dos pre-
conceitos são interfaces de um todo que obedece ao princípio da
submissão passiva e da alienação pessoal.
Urge acreditar no potencial dos seres humanos, independente-
mente de seus indícios de diferenças, para ter-se a certeza da crença
em si mesmo. É importante decretar que padrões comuns a todos,
sob a égide da igualdade, são mais injustos e preconceituosos do
que padrões que atendam as diferentes necessidades e estruturas de
necessidades biopsicossociais. Todos os indivíduos são únicos a
compreender a totalidade humana, na dimensão da diferença/diver-
sidade, e complexo.
O conhecimento sobre a singularidade dos indivíduos e a com-
plexidade do ser humano genérico, bem como da singularidade de
culturas e da complexidade do mundo global deve provocar a in-
quietação, comprovar a dúvida acerca dos conhecimentos, necessa-
riamente inacabados, promovendo a busca da sabedoria. A unidade
de pensamento e ação deve ampliar os espaços de criatividade que
impulsionam para frente constituindo-se num ato de liberdade hu-
mana. A reflexão crítica sobre os próprios preconceitos, indubita-
velmente existentes, deve problematizar a vida cotidiana: precon-
ceitos, não ... Mas, como? A decisão é diretamente dependente da
particularidade e da genericidade do ser humano. E diretamente
respondente à verdade que cada pessoa assume sobre si mesma.
A vida cotidiana deve ser orientada para uma ação efetiva de
uma educação para todos, além da escola, além da justiça, além do

146 Aspectos da teoria do cotid iano


humano genérico, além das necessidades sociais e centrada nas di-
ferentes necessidades do humano particular, singular, único.

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HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo. Paz e Terra, 1972.
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A questão de preconceitos na diversidade humana 147


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EDIPUCRS

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