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II
Seleção, tradução e ensaio
MAUW~CIO ARRUDA MENBONP
O 1999
Maurício Arruda Mendonqa

Coordenação editorial e design gráfico


Joca Reiners Terron

Revisáo
Maurício Arruda Mendonga

Caligrafias
Shinshiti Minowa

Fotografias
Acervo particular da família Sato

ISBN
85-87515-01-2

Rua José Maria Lisboa, 534/32


01423-910 São Paulo SP
- Tels: (0**11)3051-2407 9108-1623
e-mail: terron@ uol.com.br
Apresentação ................................................. 09

Da tradução ....................................................11

Haikais de Nenpuku Sato .............................. 13

Notas ............................................................... 99

Esboço biográfico ......................................... 101

Álbum de fotografias .................................... 10.5

NENPUKU SATO:
um mestre de haikai no Brasil ...................... 167
Meus agradecimentos hs pessoas que ajudaram a tornar
este trabalho realidade: Fumiko Sugimoto, Shinshiti
Minowa, Futaro Sato, família Kenjiro Sato, Tokui
Gyudoshi Sato, Eliane Eme Sato, Ademir Assunção, Vera
e Benício A. Mendonça, Maysa Previdello, Jacqueline
Sasano e Silvio Kazushi Sano.
Incumbido por seu mestre, o grande Takahama Kyoshi, de
semear e cultivar a poesia japonesa em solo brasileiro, Kenjiro
"Nenpuku" Sato dedicou 50 anos de sua vida ao ensino e prática
do "haiku", o poema curto japonês, também conhecido no
Brasil como "haicai".
Nenpuku Sato trabalharia incessantemente para estimular
e manter integrada uma comunidade de cerca de 6.000 adeptos
do haicai em todo o Brasil. E tal número de praticantes não é
exagero, uma vez que a prática do haicai não se desenvolve
apenas solitariamente, mas pressupõe as chamadas "haiku-kai",
as reuniões nas quais os poetas mantêm a língua e a tradição
vivas, trocam impressões e se aprimoram, orientados por um
professor experiente.
Assim, neste ano em que se completam 20 anos de fale-
cimento do poeta, com a publicação do presente trabalho de
Maurício Arruda Mendonça, que reúne quarenta e dois haicais
do mestre, vejo finalmente um antigo sonho realizado.
Na condição de filho de Nenpuku Sato, junto meus esforços,
pois acredito que a contribuição literária deste que é con-
siderado um dos dez mais importantes mestres de haicai pela
prestigiosa revista "Hototogisu", tenha qualidade para
transcender o âmbito da colônia japonesa e chegar até os poetas,
leitores e estudiosos deste nosso querido Brasil multicultural.
Os haikais que constam da presente coletânea foram
extraídos dos seguintes volumes: Nenpuku-kushu nQ 1 e
Nenpuku-kushu no 2, ambos publicados pela editora Kurashi
no Techo, Tokyo, respectivamente em 1953 e 1961.
Selecionamos quarenta e dois haikais segundo o critério de
amostragem de temas e situações e, também, de traduzibilidade,
visando uma melhor adaptação ao português. Utilizamo-nos,
por vezes, de uma versão poético visual icônica propondo ao
leitor um desvendamento criativo à semelhança dos pictogra-
mas japoneses e das imagens sugeridas pelos próprios haikais.
Os primeiros vinte e quatro haikais pertencem à antologia
Nenpuku-kushu no I e os demais a Nenpuku-kushu no 2.
Gostaria de expressar o meu profundo agradecimento à Sra.
Fumiko Sugimoto que por muitos anos me incentivou e
auxiliou na leitura paciente dos quase dois mil haikais das duas
antologias mencionadas, bem como nas resoluções de dúvidas
sobre a tradução. Agradeço igualmente ao Sr. Shinshiti
Minowa pelas belíssimas caligrafias deste volume.
Seleção e Tradução
Maurício Arruda Mendonqa
vela sobre a terra
vida que se esvai
orvalho nessa relva'

Tsuchi kure ni rõsoku tatenu kusa no tsuyu


rio estrelas aqui

suave ali

céu fluem

Happõ ni nagaruru hoshi ya ama no gawa


o espelho do poço
distorce meu rosto
desperto da sesta

Zkagami ya kanbase yugamu hirune oki


estrondos do trovão
ecos no mar da mata
filhotes de trovão3

Kanzirmri ya yomo no jukai no kogamiizari


E de repente,
a lua iluminando
a roda de amigos

Tachimachi ni tsuki no tomo ari tsudoi keri


árvores de pedra
machados retinem
o outono na montanhá

Seki boku ni ono uchi atenu aki no yama


pássaros migrando
por toda a minha vida
ceifar tudo que planto

Wataridori waga isshõ no nora shigoto


névoa

ando

borboletas

Chõ maeru naka wo kakiwake tõru nari


brazucas
(uns dez mais ou menos)
primeiro sorriso do ano

Hakujin no jü-nin hodo to hatsuwarai


a geada queimou tudo
até o cachorro
vaga a'esmo

Sõgai ya inu no gotoku ni sarna yoeru


n év oa en. tre

tr on c o s

e nt re v er

O V e re sta

d e um ent erro

Kiri gakure miki gakure shite nobeokuri


se as nuvens dia a dia
se acumulam sobre a lua
em breve, a chuva

Hi ni tsuide kumomasu tsuki ya uki chikaku


lá vai
nas costas do porco
borboleta primaverindo

Ayumi iru buta no se ni tobu haru no chõ


olha o arco-íris!
o moleque pitando
cigarro de palha

Niji tatsu ya shünen sueru nora tabaco


uma após outra
vingam as flores de cactos
enquanto a lua não vem

Saboten no sakimasu yoyo ni tsuki osoku


sementes de algodão
agora são de vento
as minhas mãos

Kaze ni muite nageutsu gotoshi wata wo maku


varrer folhas caídas
usando uma pulseira
isso não é vaidade

Ochiba haku udewa kyoei ni shimo arazu


trilha forrada de folhas
sem saber o leste e oeste
japonês que chega aqui

ljü shite tõzai wakazu michi ochiba


hálito branco
palavras curtas
gênio difícil'

Iki shiroku kotoba mijika ni kimuzukashi


com enxada estudei
aquilo que a terra ensinou
tocando a roça

Kuwa ni manabi tsuchi ni osowari tagayaseru


aluno de Kyoshi
entre analfabetos - primeiro
inseto na luz da lamparina

Kyoshimon ni mugaku dai-ichi hitorimushi


paguei a passagem
com a carteira vazia
eu vou tomando sol

Kippu katte nõchõmunashi hinata boku


pairando no ar
meus castelos de sonho
ao som de gorjeios

Kiichü no waga rõkaku ni saezureru


flor
do
café
lavando
essa
roupa
flutua
mais
branca

Nagare kuru kõhii no hana ni sosogi keri


a lua se insinua
na alvura perfumada
do cafezal florido6

Kõhii no hana akari yori ideshi tsuki


nas plumas do tâmpopo
do cavalo em que montava
onde de costas me joguei7

Tampopo ya uma wo oritaru mi yo nagete


a moça da seda
pra se demitir do serviço
passou pó-de-arroz na face8

Kogai me ya kyb hima wo koü usugeshõ


jardim de violetas
agora somos dois
no banco a borboleta

Sumire niwa clzõ ki benti wa ima futari


na mira da carabina
a lua de primavera
cagando tatu

Jii saki ni haru no tsuki izu tatsügari


no suor do rosto
brilha no negro

Ase no kao hikaru niguro to tasogarum


primeira risada do ano
estou meio assim
que será que pensam de mim?"

Haraguroku omoi omoware hatsuwarai


levando a boiada
o vento de verão sopra tão forte
que até impede a respiração

Aoarashi iki wo tome tsutsu ushioeru


que barato
quando compro melão
penso em katakaná no ato"

Meron kaü toki katakana wo omoi keri


as rosas da cerca
se agitam nos chiIres
deixaram o boi solto

a cerca já era
nos chifres do touro
coroade rosas

Bara gaki ni tsuno furitatete hanare ushi


soa tristeza
essa noite de chuva
bebendo cerveja sozinho

Yoru ame no oto kanashi tote kumu biru kana


pica-pau repica
pau canoa empurra
ecos d'água"

Kitsutsuki no kodama saosasu mizu ni ari


não tinha nada
mas não me esqueci
trouxe de lembrança este caqui

Miagemono kuü mono mo naku kaki wo kaü


via láctea
em qualquer lugar que eu viva
envelheço

Ama no gawa doko ni aredo oyu no mizo


palavra de consolo
inda mais triste
o vento do outono

Nagusarne no kotoba wa kanashi aki no kaze


pio de pássaro noturno
ou bramido de veado?
bêbado de pinga!

Yo no tori ka shika no koe kato kashyu ni you


será que você percebe
na sobrancelha do papagaio
uma lua que cresce?"

Mikkazuki no õmu no mayu wo kimi shiru ya


montanha de inverno
o menino adotivo do bar
é filho do sol nascente

Yama nemuru chaya no moraigo nippon-jin


Notas aos Poemas

1. Ver ensaio, pág. 125.


2. Anza no gawa significa "Via Láctea". Optamos por conservar
a imagem suscitada pelo sentido literal da expressão: "ama"
(céu) + "no" (de,do) + "gawa" (rio). A idéia de um rio de estrelas
mantém relação com nagururu, "fluxo", "correnteza"; que
denota ainda a idéia de infinitude da água (mizu) como fica
evidente no original.
3. Caligrafado em monumento no pátio do pavilhão japonês no
Parque do Ibirapuera, São Paulo. Também se encontra caligra-
fado em monumento em Niigata, Japão, rincão natal do poeta.
Ver ensaio, pág. 123.
4. O poeta se refere à sutil propagação do som metálico do
machado numa atmosfera de outono. Como se sabe, os sons se
propagam diferentemente de acordo com as estações.
5. Haikai de inverno. Iki shiroku, "fôlego branco"; condensação
da respiração no ar frio.
6. Caligrafado em monumento em Mirandópolis, Noroeste de
São Paulo, cidade onde primeiro residiu o poeta e sua família.
Notar nesta belíssimo poema verdadeiro modelo de "haikai
brasileiro": a estação a que se refere é a primavera. A brancura
das flores de uma imensa lavoura de café mescla-se ao brilho
prateado da lua. Implícito, na beleza da cena, o aroma. Porém
há algo pairando no ar, uma certa inquietude. Primeiro: a florada
do café é transitória, não dura muito tempo, como a própria
existência humana. Tem-se aqui uma velha metáfora oriental,
de inspiração budista, transplantada para a realidade brasileira.
7. Tumpopo. A flor denominada "dente-de-leão" (Taraxacum
oficinale).
.. No haikai fica implícita a imagem do poeta voltando
cansado do trabalho rural e se jogando sobre estas flores. O
impacto do peso de seu corpo faz estas flores "explodirem"
numa névoa de minúsculas plumas brancas. Temos aqui um
belo exemplo do conceito de wabi, a leveza espiritual na qual
não tendo nada, possuímos tudo.
8. O poeta se refere a uma funcionária que tratava de bichos-
da-seda. Notar a delicada relação: seda (tecido, casulo do
inseto) e pó-de-arroz (maquiagem).
9. O poeta se refere a uma pessoa da raça negra.
10. Haraguroku, literalmente, "barriga-negra". Isto é,
"pensamentos ruins", estar desconfiado.
11. Ver ensaio, pág. 124.
12. Saosasu, i.é., "zingar"; empurrar canoa ou barco com uma
zinga ou bastão comprido. Este haikai sugere o poeta
navegando por um rio coberto pela mata espessa.
13. Ver ensaio, pág. 124.
, I

i1 Kenjiro Sato nasceu em 28 de maio de 1898, na cidade de


;$
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Sasaoka, província de Niigata, Japão, o segundo de seis filhos
do casal Yosaku Sato e Tose Sato. Seu pai, era um modesto
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comerciante de produtos marítimos.
De acordo com a tradição japonesa, o primeiro filho do
casal fora educado com maior esmero, tendo freqüentado as
melhores escolas; cabendo a Kenjiro e aos demais irmãos,
cursar apenas o primário. Inconformado, Kenjiro dedicar-se-ia
apaixonadamente a leitura de obras literárias e ao aprendizado
de diferentes formas de poesia típicas do Japão, compensando
assim a sua parca instrução.
No ano de 1922, conheceu Mizuno Nakata, professor
catedrático da faculdade de medicina de Niigata, com quem
iniciou sua carreira de haikaísta, adotando o pseudônimo de
Nenpuku, filiando-se, então, à escola de Takahama Kyoshi.
Passo a passo Nenpuku foi aperfeiçoando sua poesia, e logo já
se destacava como um dos mais talentosos e promissores
discípulos de Kyoshi.
Nos anos 20, a crise econômico-financeira do Japão
obrigava o próprio governo japonês a estimular a emigração
de seu povo. Dotado de espírito idealista e descontente com o
ambiente fechado e conservador do Japão interiorano, Nenpuku
Sato decide dar adeus à sua terra natal, Destino: Brasil.
Por ocasião da partida, seu mestre Takahama Kyoshi
dedicou-lhe três haikais nos quais lhe encarregava de difundir
a arte do haikai entre os imigrantes japoneses do Brasil, o que,
conseqüentemente, transformava Nenpuku num mestre com
autoridade para transmitir os ensinamentos de sua escola.
Nenpuku Sato desembarcou em Santos em 24 de maio de
1927,chefiando um clã que incluía seus pais, irmãos e a esposa,
Sra. Kyo. O poeta tinha então 29 anos e se dirigia para Colônia
Aliança em Mirandópolis, noroeste de São Paulo, a fim de
exercer o cultivo do café em seus próprios 10 alqueires de terra,
previamente adquiridos no Japão, através da Sociedade
Colonizadora.
Infelizmente a família não chegou completa a seu destino.
Logo no segundo dia em solo brasileiro, o trem no qual viajava
os Satos chocou-se com um outro nas proximidades da Agudos,
SP. Shogo, um dos irmãos de Nenpuku, de dezessete anos,
esforçou-se demasiadamente para socorrer as vítimas,
ignorando sua própria lesão no fígado, e, em decorrência dela,
veio a falecer num hospital de Sorocaba.
Nenpuku Sato exerceu por longos anos a atividade de
lavrador, sem nenhuma orientação inicial por parte da
Sociedade Colonizadora, sofrendo, juntamente com seus
familiares, desde a derrubada da mata até formação de um
cafezal que foi totalmente perdido em decorrência das
consecutivas geadas que caíram logo nos primeiros anos de
colheita. Os Satos também cultivaram arroz, milho e algodão.
Como a lavoura naquelas terras não prosperava, nem lhes
proporcionavam rendimentos suficientes, mudou de atividade,
passando a tocar modesta criação de gado, a qual veio a ser,
finalmente, o sustento do casal e de seus seis filhos: Futaro,
Keshi, Madoi, Natsuzo, Nae e Yumio.
Paralelamente à sua atividade de agricultor, Nenpuku Sato
escrevia seus haikais e mantinha aceso em seu íntimo o
compromisso firmado com seu mestre Kyoshi. Certa feita, apro-
veitando uma época de seca, após as colheitas, iniciou suas
peregrinações por pequenas cidades, patrimônios e vilas, onde
quer que encontrasse seus patncios. Ministrava conferências,
encabeçava reuniões de haikai, mesmo a altas horas da noite,
quer à luz de lamparinas ou do luar, rodeado por lavradores
vindos dos mais distantes lugarejos. Nessas reuniões ou Haiku-
kai, Nenpuku ensinava, dava orientações, apresentava críticas
ao trabalho dos praticantes, com competência e severidade de
mestre.
No ano de 1935, graças à intervenção de Keiso Seki e
Shuhei Uetsuka (o "pai" dos imigrantes japoneses), Sato con-
seguiu estabelecer uma coluna de haikai no jornal da colônia,
Brasil Jiho, abrindo caminho para uma maior divulgação do
seu trabalho poético. Com a extinção do Brasil Jilzo em 1942,
Nenpuku só viria a desenvolver novamente sua atividade na
imprensa, a convite do Jornal Paulista, em 1947; sendo já à
época considerado o mais destacado mestre de haikai do exte-
rior em seu estilo. Sua nova coluna no Jornal Paulista duraria
até 1977. -

Em novembro de 1948, Nenpuku Sato fundaria a revista


Kokage ("Sombra da Árvore7') com 46 páginas, especializada
na crítica e na divulgação do haikai. A revista chegaria até o
n ú m e r ~372 correspondente ao mês de outubro de 1979.

Nenpuku mudou-se de Mirandópolis paraBauru em 26 de


setembro de 1954, deixando o campo para dedicar-se exclu-
sivamente à missão de ensino do haikai, às viagens e reuniões
com seus discípulos, espalhados pelo interior de São Paulo,
Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Reconhecido como
mestre por seis mil praticantes, Nenpuku Sato tornava-se
definitivamente um professor reverenciado.
O poeta deixou apenas duas antologias publicadas,
Nenpuku-kushu nQI e Nenpuku-kushu nQ2, ambas editadas no
Japão; contudo, sua obra inédita -que hoje se encontra sob a
guarda do Sr. Gyudoshi Sato - é vastíssima.
Kenjiro Sato, o mestre Nenpuku, faleceu no dia 22 de outu-
I
bro de 1979, na cidade de Bauru, aos 81 anos de uma vida
dedicada a uma causa poética: cultivar o haikai no Brasil.
Corir o.\ ~ > c i i . s(, ir.~lldo.s.c / r i t < , . ~c/c i r r ~ i ~ r - c r r x p, ~r r!/ ~- c i o l i ~ . t r . ~h'(,rrl>ilXi/
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Eni dois rnonientos
cle sucr viagem ao
. I ~ l l k i onos rinos 60.
Um Haiku-kai
(encontro em torno
&i produçzo de
haikais) orientado
e julgado por
Nenpuku Sato.
LI

feito no Parand.

No interior de seu
escritório, em março de
1979, ano de sua morte.
Ao,funclo, o mestre,
Kyoslzi Ezkahnrna.
NENPUKU SATO:
UM MESTRE DE HAIKAI NO BRASIL

" A friagem de um dia frio, o calor de um dia


quente, a lisura de urna pedra, a brancura de
uma gaivota, a lonjura das montanhas distan-
tes. a pequenez de uma florzinlza, a umidade
de uma estaçúo chuvosa ... Estas coisas sem
qualquer pensunzento ou emocúo ou beleza ou
de,s<ja é haikai. "
R.H. BLYTH

O navio Kasato-maru chegaria às praias brasileiras em 18


de junho de 1908 para desembarcar aquela que seria a maior
colônia japonesa do mundo. Aí mesmo, teria aportado pelo
menos o primeiro praticante de haikai: Shuhei Uetsuka (1876-
1935), o encarregado de conduzir os imigrantes japoneses na
I
nova terra .
Na realidade, os primeiros imigrantes que além dos ideais de
trabalho e prosperidade vieram com o intuito de praticar o haikai
foram: Kan-ichiro ~ i r n u i - (1867-
2 1938),que desembarcou em
1926; e Kenjiro Sato (1 898-1979), que se estabeleceu no Brasil
em 1927. Ambos fixariam residência na Colônia Aliança em
Mirandópolis, 605 kin a noroeste de São Paulo, cidade de onde
3
o haikai se espraiaria para toda a colônia japonesa-.
Sem dúvida, é a obra de Kenjiro (Nenpuku) Sato que merece
especial destaque, em razão do alcance de sua intervenção, de
sua filiação a uma linhagem poética esteticamente definida e
de seu empenho na prStica, ensino e difusão do haikai entre
seus compatriotas, tendo criado (à feição de Shiki, no Japão) a
primeira coluna de haikai na imprensa da colônia japonesa, e
fundado a revista especializada Kokuge, na qual discutia os
haikais de seus seguidores e explicitava suas próprias con-
cepções poéticas. Dada a qualidade de sua obra, Nenpuku Sato
ainda seria considerado pela revista japonesa Hototogisu, como
um dos dez principais haikaístas do Japão dentro do estilo
definido por Masaoka Shiki e preservado por seu sucessor e
herdeiro poético, Takahama Kyoshi.
Assim sendo, a entrada do primeiro mestre de haikai no
Brasil dar-se-ia no dia 24 de maio de 1927, no porto de Santos.
Nenpuku Sato trazia na bagagem presentes valiosos:

Kochi no fune tsukiski tokoro ~zi kunizukirri

Faça um país de poesia


aonde leve esse navio
vento de primavera

Kuwa totte kunitokotachi no mikoto kana

Lavre a terra
feito um deus como
Kunitokotatchi no Mikoto

Kuwa totte haikai-koko wo hirakubeshi

Lavrando a terra
plante também
um país de haikai
Eram como se fossem verdadeiros "haikais-mandamentos"
recebidos das mãos de seu mestre Takahama Kyoshi (1874-
1959) que, ao saber de sua partida para o Brasil, pedia-lhe que
cultivasse o haikai entre os imigrantes mitigando-lhes a saudade
do Japão. Nenpuku aceitou com honra o pedido, disse adeus e
se tornou mestre.
A história do haikai no Brasil ou do haikai brasileiro começa,
de fato, no seio da literatura moderna do Japão, especificamente
com Shiki, ancestral direto, o avô, o fundador da linhagem
estética da qual Nenpuku descende. Para termos uma noção da
importância de Shiki para a literatura nipônica, basta saber que
ele é considerado o quarto grande nome do "panteão do haikai",
juntamente com Bashô, Buson e Issa.
Se Bashô é o criador do haikai como um Do ou "caminho
para a iluminação Zen-budista (satori)"; se Buson é o pintor,
mestre do haikai artístico; se Issa é o "mais japonês dos hai-
kaístas japoneses"; Shiki é o crítico arguto, o poeta competente,
restaurador e modernizador do haikai. Foi ele quem pela pri-
meira vez levou o haikai à grande imprensa e criou a legendária
Hototogisu, revista especializada em haikai.
Shiki é a síntese de um período de transformações radicais
... 4
no Japão, a chamada Restauração Megz. Como um artista mo-
demo japonês, conviviam nele a formação de samurai, a influ-
ência da literatura chinesa, o racionalismo neo-confucionista,
a estética ocidental, e um feroz e contundente desejo de revisar
os gostos e modelos tradicionais do haikai.
O poeta exporá suas idéias sistematicamente através de sua
coluna sobre haikai no jornal Nippon. Essa série de artigos
aparecerão a partir de 1892, ficando consagradas publicações
tais como Basho Zatsudan (1893), na qual demostra acidamente
sua aversão ao culto prestado pelos poetas do final do século
XIX ao poeta-zen Matsuo Bashô (1644-1694). Mais do que
um poeta de carne e osso, Bashô era considerado um religioso
iluminado, tornado, por decreto governamental, santo xintoísta.
Shiki buscava assim desmitificar a poética do maior nome do
haikai visando arrancar esta arte de um anacrônico estado de
estagnação. Era o momento propício para atacar valores do
Japão antigo e revitalizar um liaikai em franco processo de
I
decadência. Como afirma R.H. Blyth:
I

"Slziki revoluciorzou o haikai. Ele se es-


f o r ç o ~enz
~ capacitczr a s pessoas a
escrever sem qualquer .fundamento
espiritual ou religioso muito definido;
escrever Izaikai embora nr?o trilhando
o Caminlzo-do-ffaikai."
I Shiki tencionava separar os elementos espirituais que faziam
I
do haikai mais uma prática religiosa do que um fazer poético.
I A afirmação de Shiki era clara: "haikai éliteratura", e portanto,
i passível de análise crítica e de novas abordagens estéticas. Para
1
ele o haikai era concebido pelo indivíduo e, por isso, assumia
características particulares. Daí seu desprezo pelo haihni-no-
renga, o poema coletivo resultante de encadeamento de haikais,
de caráter eminentemente Iúdico, modalidade "destituída de
. arte" na visão de Shiki.
Mas quais eram os valores estéticos defendidos por Shiki?
Desde 1894 o poeta já demonstrava uma predileção pelo
haikaísta Buson (17 16-1783), tendo inclusive publicado o volu-
me H~lijinBLLSOII (1896), no qual enaltecia as qualidades de
verdadeira pintura de seus haikais, sua habilidade erii contar
uma história em 17 sílabas. Para Shiki, Buson era superior a
I
Bashô por sua objetividade:
I

Shiragaku ni slzibnshi tayutau Izasami kana


Ante o branco crisântemo
a tesoura hesita
por um momento
O ano de 1894 também será importante porque Shiki se
encontrará com o pintor de estilo ocidental Nakamura Fusetsu
(1 866-1943) que o iniciará na sua teoria denominada shasei6,
a qual privilegiava o retrato do estado natural, a representação
verídica não só de paisagens, mas também de situações do co-
tidiano. Descrevendo os objetos com clareza e objetividade,
como se estivessem emoldurados na "tela" de uma janela
imaginária, o ideal de shasei poderia ser levado a um alto grau
de refinamento. Pode-se dizer que, baseado na poética de Buson
e na teoria do shasei, Shiki chegaria a defender a tese de que o
haikai e a pintura são artes idênticas.

Kusa mura ya na mo shiranu kana no shiroku saki

No meio do mato
a flor branca
seu nome desconhecido

O balanço da intervenção de Masaoka Shiki foi positivo: o


poeta dera alento ao haikai moderno, abrindo perspectivas para
sua prática e possibilitando aos poetas subseqüentes uma nova
investigação da forma e da sensibilidade haikaística.
Seu legado poético foi assumido por dois de seus mais
destacados discípulos: Kawahigari Hekigodo (1 873-1937) e
Takahama Kyoshi (1 874- 1959). Escolhidos pessoalmente por
Shiki, a princípio partilhavam dos mesmos ideais mas, em
breve, viriam a divergir esteticamente. Hekigodo seria o fu-
turo fundador do "Novo Haikai", uma versão experimental que
chegaria a abandonar os dois pilares do haikai: as 17 sílabas e
a expressão sazonal ("lua de verão", "chuva de primavera"
etc.) obtendo resultados bastante interessantes. Contudo, é a
trajetória de Takahama Kyoshi que nos interessa de perto por
que são as idéias de sua escola que, a princípio, serão
introduzidas no Brasil.
Kyoshi viveu um período agitado e de grandes revoluções
na poesia japonesa. A ocidentalização da literatura nipônica
era uma questão sobre a qual forçosamente teve de se posi-
cionar. Considerando o "novo haikai" como uma radicalização
perigosa capaz de jogar por terra as conquistas de Shiki, Kyoshi
optou por um viés conservador, dando importância à tradição.
Sem dúvida, ele aceitava a teoria do shasei herdada de seu
mestre, mas imprimia a ela um colorido pessoal: o sabor nos-
tálgico. Kyoshi ensinava que os objetos encarados sob a ótica
do shasei deveriam despertar associações poéticas na mente
do poeta. Porém, estas associações deveriam ser coerentes com
as referências emotivas já consagradas na história do haikai.
E, logicamente, Kyoshi ainda propugnava pela manutenção
da forma do haikai. Para sua escola as 17 sílabas e a referência
sazonal eram elementos inquestionáveis.
Em 1912, na revista Hototogisu, Kyoshi declararia:

"O haikai, como eu o entendo, é uma


arte literária clássica. Considerá-lo
dessa maneira não é diminui-lo como
se fosse coisa antiquada. Uma arte li-
terária clássica é algo especial, cons-
truída sob regras há muito estabele-
cidas. O poeta que permanece dentro
dessa disciplina é livre para trabalhar
desembaraçadamente como lhe aprou-
ver: Quais são as convenções do haikai?
As principais são o interessepelos tópi-
cos sazonais, a limitação a dezessete
silabas e a linguagem poética. r77

Se por um lado o forte tradicionalismo de Kyoshi conseguiu


manter o haikai imutável a despeito das contribuições dos
poetas modernos radicais; deve-se dizer, em seu favor, que o
movimento poético por ele liderado (que tinha como centro
irradiador a revista Hototogisu), foi durante muito tempo o
único reduto no qual se praticava haikai seriamente.
Famoso e idolatrado nos últimos dias de sua longa vida,
Kyoshi conseguira tomar o haikai "a arte literária do homem
comum778,acessível a todos, independentemente de situação
financeira, posição política, classe ou grau de instrução.
O haikai introduzido no Brasil por Nenpuku Sato é legítimo
representante d o movimento deflagrado pela revista
Hototogisu. Nenpuku certamente aceitava o conceito de shasei
e as associações nostálgicas de Takahama Kyoshi, mas as ques-
tões eram: Como a teoria do slzasei poderia ser aplicada fora
do Japão? Se o elemento sazonal é essencial ao haikai, como
descrever as relações emotivas longe da natureza de sua terra?
Como Nenpuku poderia escrever numa outra latitude sem negar
o caráter do "aqui e agora" inerente a o haikai?
Mesmo Kyoshi, em suas viagens ao estrangeiro, escreveria
haikais como se sua mente permanecesse no Japão:
"Quando ele (Kyoshi)visitou a Europa
em 1936, descreveu em seus haikais as
paisagens de viagem algumas vezes de
maneira inepta ( "Bélgicai um pais sem
montanhas/tulipas!"), outras de um
modo que dificilmente se distingue do
haikai feito no Japão ("Velho castelo/
em meio as jovens folhas verdes/per-
siste a neve. "). Esta peregrinação con-
venceu Kyoshi de que ojaponês deveria
se orgulhar do haikai porque não
existiu, em nenhum outro lugar; nada
que se comparasse a ele. Suas expe-
riências de viagem porpaises de outros
continentes não alteraram de forma
alguma seus pontos de vista sobre os
afazeres humanos; apesar de sua
exaltação de orgulho pelo haikai, ele
de fato, reduziu sua iinporthncia ao
restringir sua abraizgência. ,,9
Da resposta de Nenpuku aos impasses nascidos no seio
da própria escola de Kyoshi, emergiria sua grande contribuição.
Ora, o haikai de Sato havia cruzado os mares, entrado num
país de clima tropical, sem quatro estações perfeitamente dis-
tintas. Cabia-lhe investigar o princípio formal do kigo'"o tópico
referente às estações, ao clima, à geografia, à fauna e flora, e
inteirar-se dos afazeres humanos no Brasil. Em suma, cabia a
ele adaptar sua percepção à nova terra e estender horizontes e
fronteiras do haikai. Em suas próprias palavras:
"O Brasil é uin país de cliína tropical
e subtropical e, apareizteineizte, 1160
possui qiiatro estações definirkrs. No
entaízto, nzomndo uns cinco aizo.s aqui,
pode-se perceber as sutis diferenças e
suas respectivas mudanças. Irma-
nando-se com a natureza (corno no meu
caso, sendo um lavrador), nota-se
pegeitamente tais mudanças... ,,I I
O trabalho físico com a terra, a adaptação ao espaço, com-
portavam duplo enfoque: estabelecer-se como um lavrador efi-
ciente, e, também, ampliar a sua percepção para "aclimatar" o
kigo a um novo país, incorporando diferentes referências à
experiência japonesa. Nenpuku estava criando um haikai
renovado, um genuíno "haikai brasileiro", aperfeiçoando a seu
modo os ensinamentos da escola de Kyoshi.
Neste aspecto não se poderia considerar a visão estética de
Nenpuku como totalmente conservadora. Na realidade, sua obra
representa um ponto de fuga dos conceitos poéticos de Shiki e
de Kyoshi até então impensáveis. Tratava-se de uma reeducação
dos cinco sentidos do próprio Nenpuku e de seus discípulos
"desorientados" ou "desorientalizados".
Foi em busca desse processo pessoal que o mestre passou a
peregrinar por estradas poeirentas, visitando patrimônios e cida-
des do interior de São Paulo e Norte do Paraná. Anotava paisa-
gens, impressões, estados de alma e reunia seus discípulos:
um levantamento do Brasil através de perfumes, animais, cores,
luas e chuvas. Mais uma vez Nenpuku:
"Levei vinte anos da minha vida para
compreender a direçiío dos ventos, que
é completamente diferente da do Japão.
Levei vinte anos da minha vida para
perceber que o vento sul &frioe o vento
norte, quente. ,,12

Seu processo de re-sensibilização, sua aplicação na pesquisa


do kigo, levaram Nenpuku a uma afirmação um tanto quanto
polêmica mas absolutamente coerente, como contam alguns
de seus discípulos: "Para escrever o haikai brasileiro é preciso
esquecer o haikai aprendido no Japão." Era como se Nenpuku
quisesse cortar os laços afetivos com a pátria àquela altura da
imigração, romper com a nostalgia de Kyoshi, como que
intuindo que o sonho do imigrante japonês de enriquecer e
retornar ao Japão tivesse desvanecido para sempre. A fortuna
na lavoura não sorriria tão depressa quanto se esperava. A dura
realidade a ser encarada era esta, aqui: o país a ser construído
era o Brasil.
Isso, é claro, influiu na prática poética. O haikai escrito no
Brasil tornava-se algo específico, independente, não podendo
ser compreendido completamente por alguém que o lesse no
Japão sem conhecer o Brasil. Temos então algo assim como
uma nova escola, um novo estilo no seio da tradição, que surge
na década de trinta e que ainda hoje sobrevive, um haikai que
está explícita ou implicitamente falando do Brasil, de sua
natureza e de sua gente. Disse o mestre:

"O japonês é sensível às quatro esta-


ções. Ele nüo pode conter sua emoçüo.
Disto nasce o espírito do haikai... Os
brasileiros parecem izüo perceber esttrs
mudanças cliinbticas. Encontram-se
brasileiros que desconhecern o nonze
de flores prcíprius de cada estação.
Brasileiros que sabem o nome deplan-
tas e seiztem as estações siío pessoas
muito especiais. ,r13

Os haikais de Nenpuku são essencialmente fotográficos. O


poeta parece querer registrar tudo, dizer o máximo sobre essa
outra natureza que encontra. Quer assinalar minúcias de cada
estação a fim de que seus discípulos aprendam a aguçar suas
percepções e reconheçam dentro do aparente verão, o inverno,
a primavera, o outono. Cabe aqui também uma outra lição de
Nenpuku:
"Faca o haikai mais simples, sem pre-
tensüo de ser brilhante porque o haikcri
pegeitofica, na maioria das vezes, afe-
tado. Deixe seu lado siinpks, comum,
aparecer: Na verdade épreciso escrever
o que você viu e sentiu, mesmo que lhe
pareça tolo, pois, este é, muitas vezes, o
verdadeiro haikai: ele é cupaz de toctrr
o corc~çüodas pessoas. ,714
O trabalho de Nenpuku Sato foi correndo à margem, em
silêncio, ainda que fosse o introdutor do haikai na imprensa
da colonia e dirigisse a revista especializada Kokage que duraria
até o ano de 1977. Sabe-se contudo, que Nenpuku teria recusado
uma comenda do governo japonês, oferecida pelo próprio
imperador, como reconhecimento por sua atuação literária. O
poeta teria alegado que tal condecoraçáo nada significaria para
ele, posto que seu compromisso era com o haikai e que - nas
palavras de seu filho, Sr. Futaro Sato: "sua medalha era os
inúmeros amigos que tinha feito no decorrer de sua trajetória
poética."'5
Obviamente, conjecturam-se outras razões para a recusa.
Uma delas baseada no fato de que os Satos tiveram muitas
dificuldades para se estabelecer no Brasil. Essas dificuldades
poderiam ter sido minimizadas se as autoridades japonesas res-
ponsáveis pela imigração tivessem fornecido, entre outras
coisas, apoio social e orientação técnica para a atividade agrí-
cola. É preciso reconhecer que tal sensação de desamparo, a
mágoa pelo descaso das autoridades, não eram exclusivas do
cidadão Kenjiro Sato; mas eram sim, um sentimento comum a
muitos imigrantes japoneses.
De qualquer maneira, o irmão do poeta, Sr. Tokui
(Gyudoshi) Sato, hoje com 80 anos, põe um ponto final na
querela: " Isso não significava nada para ele (Nenpuku)... Ele
utilizou o haicai para mostrar para os mais saudosos que aqui
também havia uma natureza bonita e que podíamos construir
uma nova pátria."'6
Todavia, Nenpuku Sato teria um haikai postumamente fixa-
do em monumento no pavilhão japonês do Ibirapuera em São
Paulo, e em sua província natal, Niiigata:

Kaminari ya yomo no jukai no kogaminari

O barulho do trovão
ecoa na imensidão de selva
feito filhotes de trovão

Emoção imortalizada em caligrafia na pedra, este haikai é


um importante documento do maravilhamento do poeta, e de
tantos imigrantes japoneses, diante da vastidão da terra e da
natureza do Brasil.
Vejamos alguns haikais brasileiros do mestre, por exemplo:

Mikkaz~ikino õmu mayu w o kirnishiru ya

a lua crescente
na sobrancelha do papagaio
você não percebe?

Nítido aviso aos distraídos. Nenpuku é claro e preciso:


mikkazuki significa literalmente "lua-de-três-dias", é a
expressão nipônica exata para aquele fio de lua crescente. Em
português não dispomos de uma palavra para designar este
sutil estado da lua. Para o poeta, a "sobrancelha" do papagaio
lembra esta lua. O papagaio é uma ave característica do Brasil
e que traz as cores da nossa bandeira. Resumindo: será que
vocês não notaram essa sutil lua japonesa neste papagaio verde-
amarelo? O que há de japonês no Brasil que não seja brasileiro
no Japão?
O abrasileiramento do haikai pode ser visto também numa
de suas peças mais originais:

Meiun kcrG tuki katakana wo oinoi keri

Comprei melão
pensei em katakanu
no inesino momento

Meláo (nieion) é uma palavra brasileira, e portanto, precisa


ser grafada com o silabário japonês próprio para palavras estran-
geiras (katclkclncr).Neiipuku registra o processo de pensar-comer
uma palavra brasileira. O sabor do melão, o sabor da escrita:
caligrafar e incorporar o estrangeiro. Isso condiz com o pseu-
dônimo haikaístico Nenpuku. Nen significa "pensar". P~iku
significa "barriga". O nome do mestre é "aquele que pensa
com a barriga", pois para o japonês a barriga é, folcloricamente,
a sede do pensamento. Por isso, quando alguém se encontra
enredado por um problema, o conselho japonês é "pense com
a barriga". Trata-se de uma associação na qual o ato de pensar
e conhecer o mundo passa pela via oral. Nenpuku também
significa a posição de concentração relaxada, a postura ideal
tanto para a meditação quanto para o combate.
O Sr. "Barriga-Pensante", claro, também criaria momentos
sublimes:

T.~uchikure ni r6soku tatenu kusn no tsuyu

vela sobre a terra


vida que se esvai
orvalho nessa relva

Este foi um dos primeiros haikais escritos por Nenpuku no


Brasil. Ele se refere à súbita morte de seu irmão caçula, Shogo
Sato, durante a viagem de trem que levaria a família até seu
destino no noroeste paulista. Poema carregado de dor, pungente.
Percebe-se a sucinta descrição do poeta acendendo uma vela
sobre uni modesto túmulo de terra. Ao amanhecer o orvalho
começa a desvanecer sobre um inato qualquer de um cemitério
baldio. Imaginemos o primeiro registro da dor de imigrar: o
nome do iriiião não será escrito ein japonês, mas numa língua
incompreensível. Mistura-se no haikai o sentimento de perda
e de sabishisa, tristeza desértica. Nenpuku elabora uma
comparação de inspiração budista: a transitoriedade da vida e
a efemeridade do orvalho que desaparecerá aos primeiros raios
do sol nascente. Orvalho que cunipre seu destino de umedecer
pétalas, frutos, capim, em absoluto silêncio. Quietude que
também toma conta de homens e inulheres quando se defrontam
com a tragicidade da morte, do saber-se frugilinente mortal.
Então, o mestre acende uma vela. A chama arderá em silêncio e
a cera derreterá e escorrerá feito liígriinas. feito gotas de orvalho.
Sem dúvida, o "haikai brasileiro" de Nenpuku Sato repre-
senta uma linha de fuga, um convite ao aguçaiiiento de nossa
percepção poética e, também, uma bela possibilidade de diálogo
entre duas culturas. Mesmo escrevendo em japonês, Nenpuku
Sato bem que poderia (e pode) ser considerado um poeta bra-
sileiro. MasNenpuku, andeiro, gravita no entre, ora se desori-
enta, ora se reorientaliza sem se deixar fixar:
Wataridori waga issho mo nora shigoto
pássaros migrando
por toda a minha vida
ceifar tudo que planto

O movimento dessas aves vindas do Sul, que passam por


nossas cabeças na metade do outono. Elas voam em bandos,
guiadas por um pássaro mais experiente, que sabe partir sempre
e descansar nos vales, sob as árvores mais altas, justo quando
o sol vai se pondo, vermelho, prenúncio de frio.
Nenpuku Sato é este pássaro esperto. O Brasil foi sendo
descoberto por seus sentidos orientais, pensado com a barriga,
numa antropofagia às avessas.
esse vôo
ao vento que mais dói
eu dôo

Neste ano de 1999, em que se completam cento e um anos


de nascimento e vinte de falecimento de nosso primeiro mestre
de haikai, criador daquilo que podemos chamar de "haikai
brasileiro", enfim desatam-se os nós de uma vida e uma obra
literária de valor e qualidade inestimáveis.

Seja bem vindo, Nenpuku sensei!

MAUR~CIO
ARRUDA
MENDONÇA
Londrina, inverno de 1999
I
H. Masuda GOGA in "O Haicai no Brasil", pdg. 33, Editora
Oriento, São Paulo, 1988.

I Seu nome hakaístico era "Keiseki"; Cf. H. Masuda GOGA,


Op.Cit. Pág. 34.
3
I Carlos VERÇOSA, in "Oku, Viajando com Basho", pdg. 327,
Secretaria de Cultura e Turismo do Governo da Bahia, Salvador,
1996.
4
Restauração Meiji ( 1 868- 1912) marca o fim do feudalismo no Japão
e o início da monarquia imperial, após a derrocada do shogunato
Tokugawa em 1867.
5
R.H. BLYTH in "A History of Haiku", Vol. 11, Pg. 102, The
Hokuseido Press, Tokyo, 1967.
I 6
"Copiar a vida"; "pintura ou desenho do estado natural das
coisas". Cf. Donald KEENE, in "Dawn to the West (Japonese

I Literature in the Modem Era - Poetry, Drama, Criticism)", Vol. 11,


Pág. 98, Henry Holt and Company, New York, 1984.
7
Takahama Kyoshi, apud. Donald KEENE, Op. Cit. Pág. 115.
8
Donald KEENE, Op. Cit. Pág. 118.
9
Donald KEENE in 0p.Cit. Págs. 1 17-1 18
10
"Por mais livre que um haikai seja como idéia e poema, costuma
obedecer a certo esquema de sentido, uma forma do conteiírlo: o
primeiro verso expressa, em geral, uma circunstância eterna, absoluta,
cósinica, não humana, normalmente, uma alusão à estação do ano,
presente em todo haikai." Paulo LEMINSKI in "Matsuó Bashô, A
Llígrima do Peixe", pág. 44, Editora Brasiliense, São Paulo, 1983.
II
Nci~pukuSATO in "Nenpuku-Haiwa", Edição do autor, São Paulo.
Esta singela obra reúne comentários estéticos e críticos de Sato sobre
Iinikais seus e de seus discípulos, compilados a partir das edições da
rcvista "Kokage".
I' Ncnpuku SATO in 0p.Cit.
I1
Ncnpuku SATO in 0p.Cit.
I.I
Ncnpuku SATO in 0p.Cit.
15
I i i entrevista particular.
I0
I i i "Mestre do Haicai Ganha Homenagem", Ilustrada, Pág. 417,
1:ollin de São Paulo, 3 de abril de 1999, matéria realizada pelo
,ioriinlista José Alberto Bombig.
17
li1 "La Vie en Close", phg. 110, Editora Brasiliense, São Paulo,
I 00 I.
Trillzu Forrucla de Folhas foi impresso pela
Book R J Grájicn para a Ciêrlcia do Aciclenfe,
na pi-imaverade 1999, na cidade de Si30 Paulo.
As tipologias usadas foram Serpentine e Times.
O papel do miolo é Pólen Bold 90g
e o da capa, cartão Supremo 250.

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