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Pontifícia Universidade Católica


Do Rio do Janeiro

Marcos Antonio Farias de Azevedo

A LIBERDADE CRISTÃ EM CALVINO


Uma Resposta ao Mundo Contemporâneo

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Teologia.

Orientador: Prof. Dr. Nilo Agostini

Volume I

Rio de Janeiro
Março de 2007
2

Pontifícia Universidade Católica


Do Rio do Janeiro

Marcos Antonio Farias de Azevedo

A LIBERDADE CRISTÃ EM CALVINO


Uma Resposta ao Mundo Contemporâneo

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção


do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em
Teologia do Departamento de Teologia do Centro de
Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela
Comissão Examinadora.

Prof. Dr. Nilo Agostini


Orientador
Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Alfonso Garcia Rubio


Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Mário de França Miranda


Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Luiz Longuini Neto


Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil

Prof. Lindomar Rocha Mota


PUC – Minas

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade


Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro
de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro,
3

Todos os direitos autorais reservados. É proibida a


reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do
autor, do orientador e da Universidade.

Marcos Antonio Farias de Azevedo

Graduou-se em Teologia pelo Seminário Teológico


Presbiteriano do Rio de Janeiro. Concluiu Mestrado em
Teologia pela PUC-Rio, em 1996. Especializou-se em
Missiologia, pela Universidade Mackenzie de São Paulo,
SP, em 2003. Foi professor de Teologia Contemporânea e
Religiões Comparadas no Seminário Teológico
Presbiteriano do Rio de Janeiro, STPRJ. Foi coordenador
da Área de Sistemática do referido Seminário. É professor
de Ética no referido Seminário. É professor em diversas
cadeiras na Faculdade Teológica Unida, FTU, no Espírito
Santo – ES. Colabora com Cursos de Extensão na referida
Faculdade e ministra diversas palestras na área teológica.

Ficha Catalográfica
Azevedo, Marcos Antonio Farias de

A Liberdade Cristã em Calvino – uma resposta ao


mundo contemporâneo / Marcos Antonio Farias de
Azevedo: orientador: Nilo Agostini. – Rio de Janeiro:
PUC, Departamento de Teologia, 2007.

418f.; 30 cm

Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro, Departamento de
Teologia.

Inclui referências bibliográficas.

1. Teologia – Teses. 2. Cristianismo. 3. Teologia


Moral. 4. Liberdade. 5. Modernidade. 6. Pós-
modernidade. 7. Teologia Reformada. 8. História da
Reforma. I. Agostini, Nilo. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
Teologia. III. Título.
4

À minha esposa, Priscila, e aos meus filhos,


Abílio Marcos e João Marcos, com ternura e gratidão.
5

Agradecimentos

Ao Eterno e amoroso Pai, por sua graça, capacitação e presença constante ao


longo da senda percorrida;

Ao meu orientador e amigo Professor Frei Nilo Agostini pela primorosa e


encorajadora orientação durante a realização deste trabalho;

Ao CNPq, à FAPERJ e à PUC-Rio, pela oportunidade de estudo e auxílio


financeiro durante este tempo de estudos;

Aos distintos membros da banca examinadora pela atenção e disponibilidade em


prestar este serviço;

Aos professores, professoras e colegas do Departamento de Teologia pelas belas e


profundas experiências ao longo do caminho;

À secretária do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Teologia,


Denise Bandeira, pela presteza e gentileza em servir aos alunos;

À secretária do Programa de Graduação do Departamento de Teologia, Jussara,


pela gentileza e presteza;

À minha família pelo carinho, acolhimento e incentivo constante;

Ao companheiro de Caminho, Rev. Brian e ao grande amigo Aury (in memorian),


pela colaboração preciosa nos trabalhos da tese.
6

Resumo

Azevedo, Marcos Antonio Farias de Azevedo; Agostini, Nilo. A Liberdade


Cristã em Calvino – uma resposta ao mundo contemporâneo. Rio de
Janeiro, 2007. 418p. Tese de Doutorado - Departamento de Teologia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Cremos que a temática central do cristianismo é a questão da liberdade, resultado


imediato de toda obra redentora de Deus, ofertada pelo Filho, Jesus Cristo, e aplicada pela
ação do Espírito Santo. O cristianismo é desafiado, sobretudo nesse tempo moderno e
pós-moderno, a responder a seus interlocutores sobre a liberdade cristã, em face da
maneira como se vive e se anuncia o evangelho. Impõe-se, portanto, refletir sobre a
Liberdade Cristã, o que faremos na perspectiva da teologia do reformador João Calvino,
locus central da presente tese. Na teologia cristã, liberdade e verdade caminham juntas –
“a verdade vos fará livres” – como elementos fundamentais ao cumprimento da vocação
da Igreja. Para tanto, faz-se necessário proceder a uma leitura da modernidade e da pós-
modernidade em suas dimensões sociocultural, econômica, antropológica e religiosa,
procurando uma definição para cada um dos paradigmas e verificar onde e como o agir da
Igreja se encontram. Em seguida, a tese apresenta uma descrição histórica da Reforma
Protestante do Século XVI e seu período preparatório, verificando que suas repercussões
foram muito além da questão teológico-doutrinária. Segue-se uma exposição sobre a vida,
a obra e o pensamento de João Calvino, com ênfase na temática da liberdade, nas
dimensões antropológica, cristológica, soteriológica e eclesiológica. Em seguida, retorna-
se a uma análise do Reino de Deus e da liberdade cristã, a partir dos evangelhos e da
teologia paulina, em sua carta aos Gálatas, tendo Jesus Cristo como principal interlocutor,
na Sua grande missão de anunciar o Reino de Deus, que é o anúncio da liberdade e vem
acompanhado de Suas atitudes, sinais concretos da atuação deste Reino. Finalmente, são
apresentadas perspectivas novas a partir dos paradigmas teológico-doutrinários de
Calvino, viabilizando uma presença eclesial significativa, no contexto da cultura atual,
estabelecendo diálogo e anúncio, sem perder a identidade cristológica, constitutiva à fé
cristã.

Palavras-chave

Cristianismo; Teologia Moral; Liberdade; Modernidade; Pós-modernidade; Teologia


Reformada; História da Reforma.
7

Resumé

Azevedo, Marcos Antonio Farias de Azevedo; Agostini, Nilo. La Liberté


Chrétienne dans Calvin – une réponse au monde contemporain. Rio de
Janeiro, 2007. 418p. Thése de Doctorat - Département de Théologie, Pontifce
Université Catholique de Rio de Janeiro.

Nous croyons que la thématique centrale du christianisme, c’est la question de la


liberte, résultat immédiat de toute oeuvre rédemptrice de Dieu, offerte par son fils Jésus
Christ, et appliquée par l’action de l’Esprit Saint. Le christianisme est défié surtout
pendant ces derniers temps modernes et post moderne, à répondre à ses interlocuteurs sur
la liberté chrétienne dans la manière dont on vit et on annonce l’Evangile. Le faut
cependant, réfléchir sur la liberté chrétienne, ce que nous allons faire dans la perspective
de la theologie du réformateur Jean Calvin, lócus central de la présente thèse. Dans la
théologie chrétienne la liberté et la verité marchent ensembles – “la liberté nous rendra
libres” – comme éléments fondamentaux pour l’accomplissement de la vocation de
l’Église. Pour cela, il faut faire une lecture de la modernité et de la post modernité dans
ses dimensions socio-culturelle, économique, entropologique et religieuse, cherchant une
définition pour chacun des paradygmes en vérifiant ou et comment l’action de l’Église se
trouve ensuite la thèse présente une description historique de la Réforme Protestante du
XVI ème siècle et la période préparatoire en notant que ses répercutions sont allées
beaucoup plus au–dela de la question théologico-doctrinaire. Suit une exposition sur la
vie, l’oeuvre et la pensée de Jean Calvin mettant en valeur la thématique de la liberté dans
les dimensions entropologique christique, sotériologique et éclesiastique. Ensuite on
reviendra à l’analyse du Royaume de Dieu et de la liberté chrétienne à partir des
Evangiles et de la théologie paulinienne dans ses lettres aut galates, ayant Jésus Christ
comme principal interlocuteur, dans sa grande mission à l’annonce du royaume de Dieu
qui est une annonce de la liberté qui précède ses attitudes, signes concrets de ce royaume.
Finalement des nouvelles perspectives sont présentées à partir des paradygmes
théologico-doctrinaire de Calvin en viabilisant une présence éclésiale significative dans le
contexte de la culture actuelle, créant um dialogue et une annonce sans perdre l’identité
christologique constitutive de la foi chrétienne.

Mots clef

Christianisme; théologie morale, liberté, modernité, post modernité, théologie


réformée, histoire de la Réforme, liberté chrétienne.
8

Sumário

Introdução 15

PRIMEIRO CAPÍTULO

1 Uma Abordagem Sociocultural, Econômica, 21


Antropológica e Religiosa do Nosso Tempo
1.1 O Fenômeno da Modernidade 23
1.1.1 Uma Definição da Modernidade 24
1.1.2 Dimensão Sociocultural 33
1.1.3 Dimensão Econômica 37
1.1.4 Dimensão Antropológica 40
1.1.5 Dimensão Religiosa 41

1.2 O Fenômeno da Pós-modernidade 47


1.2.1 Uma Definição da Pós-modernidade 48
1.2.2 Dimensão Sociocultural 51
1.2.3 Dimensão Econômica 54
1.2.4 Dimensão Antropológica 57
1.2.5 Dimensão Religiosa 60

1.3 Pluralismo Religioso e as Questões Crísticas 66


1.3.1 Paradigmas Teológicos diante do Diálogo Inter-religioso 69
como Pano de Fundo à Questão Crística
1.3.2 O Paradigma Exclusivista 72
1.3.3 O Paradigma Inclusivista 74
1.3.4 O Paradigma Pluralista 76

1.4 Implicações Teológicas e Exigências Éticas 80

Conclusão 86

SEGUNDO CAPÍTULO

2 A Reforma Protestante do Século XVI: um Caminho 87


para a Liberdade Cristã
2.1 As Bases da Reforma Protestante do Século XVI 88
2.1.1 O Pano de Fundo do Reformador João Calvino 89

2.2 Os Pré-Reformadores 95
2.2.1 John Wycliff e os Lolardos 97
2.2.2 John Huss e os Hussistas 101
2.2.3 Jerônimo Savanarola 103
9

2.3 A Reforma Prostestante 105

2.4 Calvino: sua Vida e Obra 107


2.4.1 João Calvino: sua Infância e seus Anos de Estudos 110
(1509-1535)
2.4.2 A Primeira Estada de Calvino em Genebra (1536 – 117
1541)
2.4.3 A Segunda Estada de Calvino em Genebra (1536 – 127
1541)
2.4.4 Os Últimos Anos de Calvino 134
2.4.5 Beza, o Sucessor e Biógrafo de Calvino 139
2.4.6 As Obras de João Calvino 141

Conclusão 154

TERCEIRO CAPÍTULO

3 Calvino e a Liberdade Cristã: a Práxis Libertadora do 155


Calvinismo em Genebra
3.1 A Antropologia de Calvino e a Liberdade cristão dela 157
decorrente
3.1.1 A Relação entre o Conhecimento de Deus e o 159
Conhecimento de Si Mesmo em Calvino
3.1.2 Fontes 161
3.1.3 A Imago Dei 167
3.1.4 O Sensus Divinitatis e a Semen Religionis 171
3.1.5 A Soberania de Deus e o Livre-arbítrio 175
3.1.6 A Antropologia de Calvino e a Liberdade 179

3.2 A Eclesiologia de Calvino e a Liberdade dela decorrente 185


3.2.1 Fontes 185
3.2.2 Conceito de Igreja 187
3.2.3 A Relação entre a Igreja e o Estado 190
3.2.4 Os Sacramentos 191
3.2.5 A Igreja Visível e a Invisível 195
3.2.6 Eclesiologia e Missiologia Calvinista 197
3.2.7 A Eclesiologia e a Liberdade Cristã 199

3.3 A Cristologia de Calvino e a Liberdade cristã dela 206


decorrente
3.3.1 Fontes 206
3.3.2 Cristologia Calvinista e Tradição 207
3.3.3 A Obra de Cristo 217
3.3.4 A Cristologia Calvinista e a Liberdade 224
3.4 A Soteriologia de Calvino e a Liberdade Cristã dela 227
decorrente
3.4.1 Lei e Evangelho 228
3.4.2 Soteriologia e Cristologia 230
10

3.4.3 Soteriologia e Espírito Santo 234


3.4.4 A Fé, a Graça e a Santificação 235
3.4.5 A Soteriologia Calvinista e a e a Liberdade 238

Conclusão 252

QUARTO CAPÍTULO

4 O Reino de Deus e a Liberdade Cristã 253


4.1 Jesus Cristo e a Chegada do Reino de Deus 253
4.1.1 O Reino de Deus no Novo Testamento 255
4.1.2 O Testemunho Apostólico do Reino de Deus nos 258
Evangelhos
4.1.3 Implicações Teológicas da Concepção Bíblica de Reino 263
de Deus

4.2 Jesus Cristo e a Formação do Espaço de Liberdade 264


4.2.1 Jesus Cristo e a Mensagem da Liberdade 265
4.2.2 Aspectos Fundantes da Igreja Neotestamentária 268

4.3 O Espírito Santo como Agente Capacitador da Missão 271

4.4 A Liberdade Cristã na Teologia de Paulo 278


4.4.1 Paulo: sua Missão e o Processo de Evangelização 283
Inculturada
4.4.2 Paulo e sua Concepção de Evangelho 288

Conclusão 290

QUINTO CAPÍTULO

5 A Ação Querigmática da Igreja e a Liberdade Cristã 291


5.1 O Querigma Libertário: Libertação da Igreja diante dos 293
Desafios da Pós-Moderniadade
5.1.1 O Espírito Santo e o Anúncio do Querigma Libertário 297
5.1.2 Igreja: Promotora de Liberdade e de Esperança 301

5.2 A Cristologia Calvinista sob o Querigma Libertário 304


diante dos Desafios da Pós-Modernidade
5.2.1 A Atualização da Cristologia Calvinista: Aplicação na 305
Cristologia Eclesial
5.2.2 Unicidade e Universalidade Salvíficas em Jesus Cristo 308

5.3 O Querigma Libertário: Libertação do Ser Humano 311


diante dos Desafios da Pós-Modernidade
5.3.1 O Homem como Ser Alienado de Deus 312
11

5.3.2 O Homem como Nova Criação de Deus na Sociedade 316

5.4 A Soteriologia Calvinista: sob o Paradigma do 323


Querigma Libertário diante dos Desafios da Pós-
Modernidade
5.4.1 A Soteriologia e os Desafios da Pós-modernidade 323
5.4.2 Em Busca de uma Salvação Integral e Integrada 334

5.5 Implicações Éticas dos Desafios da Pós-Modernidade 337


5.5.1 A Ética da Vida de Serviço 338
5.5.2 Desafio de Construção de uma Sociedade Humanizada 344

5.6 Impactos de uma Teologia Libertária na Sociedade 349


5.6.1 Impacto na Política 350
5.6.2 Impacto na Cultura 354
5.6.3 Impacto na Economia 357

Conclusão 365

6 Conclusão 366

Referências Bibliográficas 379


12

Abreviações

Documentos

AG = Ad Gentes
DV = Dei Verbum
DA = Diálogo e Anúncio
GS = Gaudium et Spes
LG = Lúmen Gentium
NA = Nostra Aetate
OC = Opera Calvini
CR = Corpus Reformatorum

Livros e artigos de Calvino

Institutas = CALVINO, João. As Institutas ou Tratado


da Religião Cristã. Livro I. São Paulo: Casa
Editora Presbiteriana,1985.

Institutas = CALVINO, João. As Institutas ou Tratado


da Religião Cristã. Livro II. São Paulo: Casa
Editora Presbiteriana, 1985.

Institutas = CALVINO, João. As Institutas ou Tratado


da Religião Cristã. Livro III. São Paulo: Casa
Editora Presbiteriana, 1989.

Institutas = CALVINO, João. As Institutas ou Tratado


da Religião Cristã. Livro IV. São Paulo: Casa
Editora Presbiteriana, 1989.

Institution = CALVIN, Jean. Institution de la Religion


Chrestienne. Oeuvres Complètes. Tome
Premier. Société les Belles Lettres. Paris.
1936.
Institution = CALVIN, Jean. Institution de la Religion
Chrestienne. Oeuvres Complètes. Tome
Second. Société les Belles Lettres. Paris. 1936.
Institution = CALVIN, Jean. Institution de la Religion
Chrestienne. Oeuvres Complètes. Tome
Troisième. Société les Belles Lettres. Paris.
1936.
13

Institution = CALVIN, Jean. Institution de la Religion


Chrestienne. Oeuvres Complètes. Tome
Quatrième. Société les Belles Lettres. Paris.
1936.
Romanos = CALVINO, João. Comentário aos Romanos.
São Paulo. Ed. Paracletos, 1997.

Efésios = CALVINO, João. Comentário aos Efésios.


São Paulo. Ed. Paracletos, 1998.

Gálatas = CALVINO, João. Comentário aos Gálatas.


São Paulo. Ed. Paracletos, 1998.

Pastorais = CALVINO, João. Comentário Cartas


Pastorais. São Paulo. Ed. Paracletos, 1998.

Hebreus = CALVINO, João. Comentário Hebreus. São


Paulo. Ed. Paracletos, 1997.

Comentário de I Coríntios = CALVINO, João. Comentário I Coríntios.


São Paulo. Ed. Paracletos, 1996.

Comentário de II Coríntios = CALVINO, João. Comentário II Coríntios.


São Paulo. Ed. Paracletos, 1995.

Comentário de Salmos = CALVINO, João. O livro dos Salmos: Vol.1:


Salmos de 1 – 30. São Paulo: Ed. Paracletos,
1999.

Comentário de Salmos = CALVINO, João. O livro dos Salmos: Vol.1:


Salmos de 31 – 68. São Paulo. Ed. Paracletos,
1999.

Comentário de Salmos = CALVINO, João. O livro dos Salmos 82.3.


Vol. 3, São Paulo: Parácletos, 2002, 703p.

A Verdadeira Vida Cristã = CALVINO, João. A Verdadeira Vida Cristã.


São Paulo. Novo Século, 2000.

Resposta ao Cardeal Sadoleto = CALVINO, João. Respuesta al cardenal


Sadoleto. Barcelona: Fundación Editorial de
Literatura Reformada. 2000.

Breve Instruccion Cristiana = CALVINO, João. Breve Instruccion


Cristiana. Barcelona: Associación Cultural de
Estudos de La Literatura Reformada, 1966.

Comentário aos Sinóticos = CALVINO, João. Commentary on a


Harmony of the Evangelists Matthew, Mark,
and Luke. Vol. III (Grand Rapids: Baker,
1979).
14

Comentário às Pastorais = CALVINO, João. Commentary on the


Epistles to Timothy, Titus, and Philemon.
(Grand Rapids: Baker, 1979).

Tratados e cartas = CALVIN, John. Selected Works of John


Calvin: Tracts and Letters. Organizado e
traduzido por Henry Beveridge. Grand Rapids:
Baker, 1983.

Commentary of Psalms = CALVINO, João. Commentary on the Book


of Psalms. Edimburgo. Edição da Calvin
Translation Society, 1978.

Comentário de Daniel = CALVINO, João. Daniel: Vol.1: Capítulos 1


– 6. São Paulo: Ed. Paracletos , 2000.

Reforma da Igreja = CALVINO, João. The necessity of reforming


the church. Dallas: Protestant Heritage Press,
1995.
15

Introdução

Pensar teologicamente sobre a liberdade e, especificamente, sobre a


Liberdade Cristã em Calvino, nosso labor temático, traz diretamente a implicação
de uma resposta ao mundo contemporâneo. Certamente que tal tema há de ter
como locus central a cristologia e a eclesiologia e, conseqüentemente, implicações
decorrentes do anúncio das Boas Novas, tais como testemunho; serviço /
alteridade; justiça social; presença relevante na sociedade e suas relações com o
Estado; ética como agente de transformação histórica; e proclamação inculturada
da fé, com suas influências do humanismo cristão reformado no mundo atual.
Carece-nos, porém, ser impossível falar de liberdade cristã sem tocar no humano,
pois a liberdade, oferecida por Jesus Cristo, é exatamente para Ele. A liberdade
cristã, no dizer do próprio Calvino, é liberdade que plenifica o homem, que
humaniza o desumanizado, e que gera relações saudáveis em todas as dimensões
da existência humana. Para o reformador, a liberdade que Jesus Cristo oferece e é
operada pelo Espírito Santo, é vista como elemento fundamental de toda obra da
justificação, da gratuidade da salvação. Encontraremos em Calvino preciosas
pistas, em sua teologia e práxis, elementos capazes de contribuir para a mudança
do vital humano, motivo pelo qual de sua atualidade e relevância.
Encontramos, na verdade, na sociedade moderna uma mudança radical de
paradigma, ou seja, na qual Deus era o centro, porém, agora, o homem governa. A
fé não mais se assenta soberanamente sobre o trono da História, mas é substituída
pela razão humana. Se na sociedade tradicional valia o que passava pela tradição,
na sociedade moderna não há qualquer validade fora da razão. A razão humana é a
nova cosmovisão. O homem passa a ser o centro e, por ser assim, passa a ser o
construtor do seu mundo, do seu próprio futuro, de própria sociedade, inclusive de
sua própria salvação.
Olhando nosso tempo, chamado pós-moderno, constatamos que uma de suas
grandes marcas é a pluralidade – uma sociedade altamente pluralista. Por isso
mesmo, carregada de superficialidade e vacuidade. Quantidades enormes de
opções para um mesmo produto são colocadas à mostra, como num grande
supermercado, tendo sempre, diante de nós, oportunidade de escolher o que mais
nos agrada.
16

Os meios de comunicação de massa, que alteraram e alteram a visão de


mundo de todas as pessoas, emitem informações diversificadas de ângulos
totalmente diferentes e com diversas alternativas sobre os mais variados temas da
existência, fazendo surgir, no homem, a consciência de que há realmente
alternativas para tudo e de que é ele quem determina, livremente, o que deseja. A
ênfase de suas escolhas repousa, agora, tão somente sobre a vida do indivíduo,
marcada pelo individualismo.
Tudo isso tem repercussões na vida moral, na qual valores tidos como
absolutos são relativizados, na vida, inclusive, de nossas Comunidades. Logo,
num mundo destituído de absolutos e em tempos de tantas opções, a moralidade
virou produto absolutamente descartável.
Neste mundo dessacralizado, de onde Deus foi banido e no qual a última e
única palavra é a do homem e no qual pesam as aparências de vitalidade
espiritual, projetadas pelas lideranças institucionais, observa-se as marcas de uma
tirania e de um farisaísmo espirituais, vincados pelo legalismo, pelo
conservadorismo carnal e pela paranóia, esta sustentada por aqueles que usurpam
a autoridade da Palavra e do Evangelho da graça, do dom gratuito – e esta
autoridade só a estes pertence.
Uma pergunta, no entanto, impõe-se fazer: como fica a religião nessa
sociedade? Ela não é mais uma abóbada sagrada que apresenta e garante
estruturas de significação uniforme e válida para toda uma sociedade. Não é mais
a única produtora de sentido. Há centenas de janelas de opções, pretendendo o
mesmo valor. Na verdade, não há mais hegemonia para nenhum setor, inclusive o
religioso. Nasce uma religiosidade extremamente antropocentralizada. Esta é a
grande mudança de paradigma.
Nesse novo mundo, Deus tem sérios problemas de habitação, pois o homem,
por ter alcançado sua maioridade, já não mais precisa de Deus e O lança cada vez
mais para a margem da existência, com sérias conseqüências éticas para o próprio
homem, envolvido, agora, pelas religiões de consumo. A secularização alcançou
seu auge nas últimas décadas do século XX. Hoje, aderir a um determinado grupo
religioso significa sentir-se parte integrante do primeiro mundo, significa
pertencer à contemporaneidade.
17

Ao lançar-se ao labor da investigação sobre o tema da Liberdade Cristã em


Calvino – uma resposta ao mundo contemporâneo – nosso objetivo é verificar que
a teologia do autor, nos aspectos elencados, fornece, ainda hoje, uma contribuição
relevante para o estabelecimento de uma proposta de vida e missão eclesiais à
altura do nosso tempo, a partir do Evangelho libertador de Jesus Cristo, num
contexto religioso altamente plural, com desafios ao diálogo inter-religioso e de
uma sociedade cada vez mais pluralizada e pós-moderna, sem, contudo, perder o
conteúdo da mensagem e a identidade cristã.
Portanto, nossa hipótese é verificar em que o seu conceito de liberdade e seu
pensamento teológico nas dimensões antropológica, cristológica, soteriológica e
eclesiológica contribuem para a liberdade cristã hoje, a partir do contexto da
Reforma. Outra hipótese é que, ao trazer à tona, parte da teologia de Calvino,
pertinente ao tema da tese, tal estudo nos ofereça chaves teológicas de
interpretação seguras da realidade social, antropológica e religiosa atual, sendo
uma preciosa resposta cristã e protestante ao nosso tempo. Sem contar as
possibilidades de uma ética cristã capaz de promover uma influência ainda mais
positiva no cenário histórico em que vivemos.
Portanto, Calvino ao desenvolver o tema da liberdade cristã, trata-o numa
perspectiva profunda, seja do ponto de vista bíblico-teológico, seja do ponto de
vista de sua relevância para a atualidade. Em sua obra magna, a Instituição da
Religião Cristã, ele trata da liberdade cristã numa tríplice perspectiva, tendo como
paradigma a própria Lei Moral.
Em função de nosso tema de pesquisa constar elementos que podemos
chamar de objeto formal – a Liberdade Cristã – que, fundamentalmente, passa
pela experiência salvífica em Cristo Jesus e de objeto material, - A Liberdade
Cristã em Calvino, uma resposta ao mundo contemporâneo – utilizamos como
método de pesquisa o hermenêutico-analítico, que significa uma investigação e
uma exposição do pensamento de Calvino nos elementos elencados em torno da
temática proposta, adotando um esquema de trabalho que julgamos pertinente,
atual e relevante, a fim de mostrar a importância do tema a partir do autor no
contexto da sociedade moderna e pós-moderna.
18

Nossa tese conta com cinco capítulos. No primeiro, buscamos uma leitura
da modernidade e da pós-modernidade em suas dimensões sociocultural,
econômica, antropológica e religiosa, procurando uma definição para cada um dos
dois paradigmas. Percorrer esses caminhos é fundamental para uma melhor
compreensão de tempo, o que facilitará, conseqüentemente, numa análise mais
aprofundada de todo o pluralismo religioso que grassa em nossa cultura e numa
verificação de onde e como a proposta do Evangelho se encontra. Entretanto, o
faremos de forma resumida, visto que toda esta temática é amplamente conhecida.
Apontaremos referência bibliográfica para posterior consulta.
O segundo capítulo tem como proposta contemplar o pano de fundo
histórico do período preparatório à Reforma do Século XVI e o Movimento
propriamente dito, que foi muito além das fronteiras religiosas, tendo repercussões
na vida política, social, econômica, cultural, bem como fornecedor de caminhos
para a segunda geração de reformadores, que foi o caso de João Calvino.
Já o terceiro é dedicado especificamente à vida, à obra e ao pensamento de
João Calvino, com ênfase na temática da liberdade, olhando o seu conceito de
liberdade e seu pensamento teológico nas dimensões antropológica, cristológica,
soteriológica e eclesiológica e a liberdade decorrente desses paradigmas
teológicos, a partir do contexto da Reforma. Segue-se uma exposição, em linhas
gerais, do desenvolvimento do seu pensamento.
Na visão de Calvino, o pressuposto do exarado no parágrafo anterior é Jesus
Cristo, a encarnação do Verbo, que trouxe a chegada do Reino de Deus, reino da
liberdade que chega ao homem pela iniciativa de Deus, em forma de dom. Em
resposta a esse Dom gratuito de Deus, o homem que o aceita responde com fé e
confiança no Deus da vida, seguindo o Mestre e vivendo as verdades do
Evangelho.
19

No quarto capítulo nosso olhar volta-se para uma análise do Reino de Deus
e a liberdade cristã, a partir dos evangelhos, tendo Jesus Cristo como seu principal
interlocutor, na Sua grande missão de anunciar o Reino de Deus, promovendo o
anúncio da liberdade, que vem acompanhado de suas atitudes – sinais da atuação
deste Reino: Jesus demonstra total liberdade em relação à Torá. Por força do tema,
a teologia do apóstolo Paulo será contemplada especificamente na carta aos
Gálatas, conceituando, também, o mesmo tema e verificando suas implicações
éticas para a vivência cristã.
Portanto, a pergunta que fazemos é a seguinte: A proposta das Boas Novas
tem chegado ao coração aflito deste homem atual, de tal forma que toda a sua vida
seja radicalmente transformada por Jesus Cristo, provocando verdadeira liberdade,
que resulta numa práxis do Reino de Deus?
No quinto e último capítulo, temos a grande tarefa de estabelecer as diversas
conexões com os capítulos anteriores, verificar a relevância de sua teologia e
atualizá-la ao nosso tempo, através de uma presença eclesial significativa e por
meio de uma ação querigmática integral, no anúncio de uma antiga proposta de
libertação que gera a verdadeira liberdade a um mundo novo com todos os seus
desafios. Tal anúncio terá que passar por uma evangelização inculturada, capaz de
restaurar o ethos do ser humano, desafiando-o a uma vivência significativa e
libertadora.
Na verdade, atualizar o pensamento de Calvino significa a elaboração de
uma proposta de vivência cristã à luz da liberdade cristã e de seu humanismo
cristão, com todas as suas implicações querigmáticas e éticas, como ser integral e
integrado na cultura do seu tempo.
20

Por estes e outros motivos, creio que o tema seja de suma importância para
o atual cenário cristão, de modo geral e em particular, em nosso contexto mais
latino-americano, qual seja no sentido de resgatar uma proposta de vivência ética
profundamente cristã e de atualidade marcante. O pano de fundo da relevância do
tema dar-se-á pelo fato de que a ação querigmática de muitas Igrejas têm imposto
um jugo sobre as pessoas do tipo farisaico, trazendo sérias implicações na conduta
ética e, pior, expondo, muitas vezes, o cristianismo ao ridículo. Nossa intenção é,
portanto, mostrar que a liberdade cristã é a grande proposta e oferta de Deus ao
homem, de abrangência integral, centrada e esgotada em Jesus Cristo, o libertador
por excelência.
Cremos, portanto, que ao refletirmos sobre a obra de João Calvino a partir
de nosso locus central, que é a liberdade cristã, estaremos não apenas
estabelecendo diálogo com nossos interlocutores, mas também estaremos abrindo
importantes e fecundas janelas para nossa tarefa de reflexão teológica.
21

Primeiro Capítulo

1
Uma Abordagem Sociocultural, Econômica, Antropológica
e Religiosa do Nosso Tempo

O grande desafio imposto pela atualidade não é apenas refletir sobre fatos,
mas necessariamente responder a estes, conforme afirma Deleuze: “Não existe
sequer um acontecimento, um fenômeno, uma palavra, nem um pensamento cujo
sentido não seja múltiplo”.1 Este desafio não apresenta exceção em relação à
teologia, uma vez que seu eixo central trata, fundamentalmente, da relação de
Deus com o homem e de sua resposta a Ele, que resulta em sua verdadeira
liberdade, levando “a sério a absoluta primazia do Deus que nos criou e continua
nos criando por amor, única e exclusivamente por amor”.2 Por isto, a compreensão
teológica, historicamente dogmática, unívoca e exclusivista quanto ao seu sentido
nos temas fundamentais – Trindade, soteriologia, sacramentos – está
necessariamente diante da multiplicidade de sentidos que marca o nosso tempo.
Constatado esse fato, há uma crise no campo teológico, que afeta suas mais
variadas dimensões.
Portanto, a reflexão teológica, consciente do mundo que a cerca, busca
responder aos seus interlocutores, de forma a oferecer uma visão compreensível,
dando a estes um sentido à vida humana. Não podemos viver apenas sob o forte
impacto da cultura moderna e pós-moderna sobre a Fé, mas colocar tal cultura sob
o impacto da Fé. E mais. É preciso olhar a incidência do fenômeno da
modernidade e, sobretudo, da pós-modernidade, sobre a Igreja Evangélica
Brasileira.3 Em outras palavras, impõe-se o seguinte questionamento: Os modelos
teológicos – conseqüentemente eclesiásticos - têm apresentado toda a riqueza da
salvação cristã de forma relevante, significativa e atraente aos homens e mulheres
que vivem e pensam segundo as culturas moderna e pós-moderna?

1
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia.Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976. p. 3.
2
QUEIRUGA, A. Torres. Fim do Cristianismo pré-moderno. São Paulo: Paulus, 2003. p. 17.
3
Sou ministro protestante da Igreja Presbiteriana do Brasil de origem Reformada, o que implica
um olhar não apenas descritivo, mais também crítico-analítico sobre a mudança epocal que
assistimos e a relação da religião com seus interlocutores.
22

Dentro dessa nova cosmovisão chamada modernidade, a fé cristã tem sido


tremendamente desafiada a uma espécie de nova modelagem, rompendo-se com o
passado, que inclui todos os meios culturais, a fim de que, com instrumentos
culturais modernos, tenhamos condições de compreender, traduzir, inculturar e
tentar realizar a experiência cristã através do evangelho. Em outras palavras, o que
se impõe com o novo paradigma da modernidade, do ponto de vista da fé cristã, é
“compreender as relações de Deus com o mundo”.4 É fundamental que
estabeleçamos diálogo com a sociedade moderna e pós-moderna, numa relação de
troca, onde haja abertura para falar, ouvir, compreender, apreender, propor,
mudar, deixar-se mudar, inculturar-se etc.
Para tanto, a análise da sociedade moderna e pós-moderna torna-se
fundamental para que compreendamos e vivamos como Comunidade que anuncia
o Reino, que proclama o evangelho libertador de Jesus Cristo. Ainda mais. Tal
análise possibilita encontrar fenômenos muito amplos, com múltiplas
abordagens.5 No caso, o propósito da pesquisa é, num primeiro momento, definir
o que seja modernidade e lançar um olhar descritivo, fenomenológico, sobre
alguns paradigmas6 desse tempo, focando as perspectivas sociocultural,
econômica, antropológica e religiosa.
Em cada uma delas, há implicações sérias que incidem diretamente sobre a
teologia e o modus vivendi da Fé Cristã, de tal maneira que tais paradigmas
alteraram e alteram a experiência cristã, muitas vezes em suas bases.7

4
QUEIRUGA, Andrés Torres. Um Deus para hoje. São Paulo: Ed. Paulus, 1998. p. 13.
5
Note-se, pois, que a História da modernidade e pós-modernidade é também a história dos seus
enigmas e das suas antinomias. São enigmas e antinomias com os quais se defronta o “indivíduo”
como sujeito do conhecimento e sujeito de emancipação, que desafiam o pesquisador a buscar
esclarecimentos em questões atravessadas pelas configurações e movimentos da história. Refletem
desta maneira HABERMAS, Jürgen, em O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1990. p. 23; BERMAN, Marshall. Tudo Que é Sólido Desmancha no
Ar (A Aventura da Modernidade). São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 123; ROSSI, Pablo,
Paragone degli Ingegni Moderni e Postmoderni, Il Mulino, Bolonha, 1989. p. 34; HARVEY,
David, A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. p. 17; CHESNEAUX, Jean.
Modernidade-Mundo (Brave Modern World). Petrópolis: Editora Vozes, 1995. p. 36.
6
Por paradigmas pretendemos afirmar um conjunto de axiomas que filtram nossa visão do mundo,
como se fossem grandes marcas ou características que resumem, sintetizam e expressam as mais
variadas verdades observáveis. Quando analisamos os fatos numa perspectiva histórica
vislumbramos, então, várias mudanças que caracterizam a ruptura entre um período histórico e
outro, mesmo quando as dimensões ou paradigmas analisados são os mesmos, mas os seus
conteúdos são alterados e influenciados pela própria evolução histórica, social, econômica,
humana, religiosa etc.
7
JASPERS, Karl. Introdução ao Pensamento Filosófico. São Paulo: Cultrix, 1971. p. 30).
23

1.1
O Fenômeno da Modernidade

A primeira constatação que fazemos é que, na modernidade, o cristianismo


de tipo tradicionalista fechado, fundamentalista, legalista, mimético, com suas
diversas variantes, torna-se provinciano, aldeótico, anacrônico e irrelevante frente
ao mundo em constante evolução e mudança, complexo e repleto de desafios e
necessidades, clamando por respostas e soluções e caminhos mais seguros. José
Comblin não apenas falou da tensão entre a modernidade e o cristianismo, como
também explicitou de forma simples e eloqüente, alguns dos principais
pressupostos da cultura moderna:

O discurso moderno tem três temas principais: a


razão, felicidade e a liberdade. Na modernidade tudo gira
ao redor desses três temas. Pode-se dizer: os três são
bíblicos e cristãos. Pois é. Contudo, os três foram e são
apresentados como tipicamente modernos, alheios à
tradição cristã, até opostos a ela. Nesse mal-entendido
está todo o drama da modernidade face ao cristianismo.8

Para responder coerentemente esta importante questão, faz-se necessário


entrar nos meandros da cultura contemporânea, penetrar, na verdade, no fulcro das
grandes questões, de forma a esclarecer suas constantes, o que não é tarefa fácil.
Dentre as várias abordagens que temos, a que considera a modernidade e a
pós-modernidade como desconstrução dos projetos modernos é a utilizada neste
trabalho, já que a modernidade é comumente identificada como o veículo capaz de
explicar, de modo pleno, todos os fenômenos pela razão, sendo “o procedimento
matemático [...] o ritual do pensamento”.9 Já a pós-modernidade é marcada pela
multiplicidade de explicações e “verdades”.10

8
COMBLIN, José. A força da palavra. Petrópolis: Vozes. 1986. p. 205.
9
ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento.Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1985. p. 254.
10
Esta compreensão, compartilhada por ONCKEN, Wilhelm. Vol. XVIII, p. 483; VIOTTI,
Frederico Romanini de Abranches. Origem e fundamento da Mística Pós-moderna. Parte II,
cap. 2; VEITH, Gene Edward Jr. Tempos Pós-modernos, op. cit., p. 22 passim; GRENZ, Stanley.
Pós-Modernismo, op. cit., p. 17; SIEPIERSKI, P., Teologia e Pós-Modernidade, Teologia Sob
Limite. p. 145; TRASFERETTI, José & GONÇALVES, Paulo S. L. (org.), Teologia na Pós-
Modernidade, op. cit., p. 165.
24

Com base nesta subdivisão, os tempos atuais serão compreendidos diante do


seguinte programa: primeiro, a formação da modernidade e a gestação da
sociedade pós-moderna. Serão enfocadas, no período moderno e pós-moderno, a
sociedade e a cultura, a economia (basicamente as teorias econômicas
prevalecentes), será feita uma leitura antropológica (enfocando a cosmovisão), e a
religiosidade (focalizando seus aspectos salvíficos e suas derivantes).11
O objetivo final é ter uma perspectiva breve, mas profunda da cultura (numa
dimensão culturalista) moderna e pós-moderna, fornecendo bases para a análise
do foco central da tese e a possibilidade de esta servir os tempos atuais com uma
contribuição significativa, relevante e fomentadora de mudanças a partir do
interior da própria cultura, pela via de uma presença eclesiástica geradora de uma
verdadeira e saudável consciência moral, com todas as suas implicações práticas
decorrentes.

1.1.1
Uma Definição da Modernidade

O termo “moderno” tem uma história bem antiga. No entanto, o que Habermas
chama de “projeto da modernidade” consolidou-se somente durante o século XVIII.
Esse projeto equivalia a um extraordinário esforço intelectual dos pensadores
iluministas para desenvolver, universalmente, a ciência objetiva, a moralidade, a lei e a
arte autônoma. Em outras palavras, a modernidade nasceu como conseqüência natural
da inserção do Iluminismo na sociedade. Em seu discurso, apresentava-se como rival e
sucessora do Cristianismo.12
Os Guinnes traz uma definição interessante sobre a modernidade:

11
Como dissemos na introdução, por falta de espaço, não falaremos sobre a sociedade pré-
moderna como pano de fundo à sociedade moderna, inclusive porque há ampla bibliografia
disponível sobre o tema. Somente à guisa de pano de fundo, quando pensamos numa sociedade
medieval, ou pré-moderna, é necessário constatar que a família era a base da organização social,
que havia uma economia de subsistência firmada na agricultura feudal e que a concentração
populacional habitava nas zonas rurais. A família patriarcal era o foco das relações sociais, sendo
os vínculos familiares - o grau de parentesco - as grandes pontes sociais, interligando os indivíduos
e organizando-os em uma sociedade homogênea.
12
Gouvêa afirma que “o iluminismo do século XVIII representou o estabelecimento definitivo do
neopaganismo como ideal intelectual por excelência da modernidade”. GOUVÊA, Ricardo
Quadros. Novos Tempos Velhas Crenças: Crítica do Neo-Paganismo sob uma Ótica Cristã em
FIDES REFORMATA 3/1 (Janeiro/junho 1998), p. 7.
25

Modernidade é uma terminologia que define um


sistema oriundo das forças da modernização e
desenvolvimento, centrado, sobretudo na premissa que
toda causa de cima para baixo vinda de Deus ou do
sobrenatural foi substituída definitivamente por causas
de baixo para cima, frutos dos desígnios e produtividade
humana.13

O historiador alemão Wilhelm Oncken (1838-1905) ressalta o seguinte:

A passagem da Idade Média para a Moderna se


realiza de modo tão paulatino e imperceptível que não se
pode fixar exatamente este período da história, menos
ainda assinalar um fato determinado como ponto
divisório entre as duas idades.14

As mudanças começam a surgir principalmente a partir do século XIV,


concentrando-se na forma de pensar e de agir da sociedade medieval. Plínio
Corrêa de Oliveira, pensador católico, diz:

No século XIV começa a observar-se na Europa


cristã, uma transformação de mentalidade que ao longo
do século XV cresce cada vez mais em nitidez. (...). Este
novo estado de alma continha um desejo possante, se
bem que mais ou menos inconfessado, de uma ordem de
coisas fundamentalmente diversa da que chegara a seu
apogeu nos séculos XII e XIII.15

Podemos afirmar ainda que no centro da sociedade medieval estivesse a


religião, que atendia à demanda de explicar e legitimar as necessidades e
condições desta sociedade. Sem dúvida alguma que o grande elemento
mobilizador e agregador no período da Idade Média foi a Igreja. Na verdade, o
mundo era visto a partir das lentes da Igreja.

13
GUINNES, Os & SEEL, John. No God but God. Chicago: Moody Press,. 1992. p. 160. Os
Guinness é um escritor autônomo. PhD. em teologia pela Universidade de Oxford, Inglaterra.
Nasceu na China, onde seus pais eram missionários, e trabalhou durante vários anos junto com o
doutor Francis Schaeffer no "L'
Abri Fellowship" na Suíça.
14
ONCKEN, Wilhelm. Vol. XVIII, p. 483. Citado por VIOTTI, Frederico Romanini de
Abranches. Origem e fundamento da Mística Pós-moderna. Parte II, cap. 2. Cf. JUNG, Mo
Sung. Teologia & Economia. Repensando a teologia da libertação e utopias. Petrópolis: Vozes,
1995. WEBER, Max. Economia y sociedad. México: Fondo de Cultura Econômica. 1984. p. 306.
GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991. p. 103.
COSTA, H. M. Pereira. Raízes da Teologia Contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
15
OLIVEIRA, Plínio Corrêa de. Revolução e Contra-Revolução. Parte I, cap. 3, 5, A-B. Ver
também: LINDSAY, Tomas M.. La Reforma y Su Desarrollo Social. Barcelona: CLIE. (s.d.).
HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. pp. 19- 51.
26

Na verdade, ela oferecia uma salvação meramente escatológica, expressando


um amor aos seus fiéis apenas declarativo, exercendo assim, o domínio sobre
todos através de certas práticas completamente contrárias à Palavra de Deus.16
Paul Tillich observou que durante a Idade Média tornou-se evidente um
grave sentimento de vazio moral, uma forte consciência de culpa, que conduzia,
de alguma forma, os fiéis a buscarem a salvação tão proclamada e sonhada, mas
nunca obtida, concretiva em sua experiência de fé.17
As palavras do pensador Rubem Alves são esclarecedoras:

[...] a Idade Média tinha uma magnífica visão do


universo. Seres que se organizavam estruturalmente,
numa hierarquia que subia do mais baixo nível, em
prateleiras espaciais de densidades ontológicas cada vez
maior, num crescendo constante, até o ápice do
Universo, onde todas as contradições, toda
intranqüilidade histórica, toda transitoriedade do tempo
se resolviam e consumavam no Summum Bonum.18

Podemos finalizar essa ponte de passagem para a modernidade citando as


palavras de Milton Greco:

O paradigma medieval é um castelo de certezas


alicerçadas na fé em Deus e na Igreja. O mundo visível é
literalmente subordinado ao invisível onde se
manifestam, de forma absoluta, os desígnios do Criador,
apenas perceptíveis aos intérpretes autorizados da terra
[...].19

16
HAGGLUND, Bengt. História da Teologia. Porto Alegre: Casa Publicadora Concórdia, 1973,
p. 136. Ver BURKE, Peter. História Social da Linguagem. p. 30. Cf. GOFF, Jacques Le.
Mercadores e Banqueiros da Idade Média, 1991. p. 78 passim. Cf. DELUMEAU, Jean. A
Confissão e o Perdão. As dificuldades da Confissão nos Séculos XIII a XVIII. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 21.
17
TILLICH, Paul. A Coragem de Ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. pp. 44,45.
18
ALVES Rubens. Deus morreu! Viva Deus. In: Vários, Liberdade e Fé. Tempo e Presença,
1972. p. 19.
19
GRECO, Milton. Os paradigmas fundamentados na certeza, em: MEDINA, Cremilda (org.),
A crise dos paradigmas: Anais do 1o Seminário transdisciplinar. São Paulo: ECA/USP, 1991. p.
164. Vide também CAPRA, Frijof. O Ponto de Mutação: a ciência, a sociedade e a cultura
emergente. São Paulo: Cultrix, 1988. pp. 49-56.
27

Segundo Peter Drucker, a sociedade sofre, de tempos em tempos, mudanças


em sua estrutura social, política, religiosa, suas artes, suas instituições, tendo que
se reorganizar a fim de adequar-se a nova visão de mundo. 20 Ora, é a partir desse
processo que nasce uma mudança de época, um mundo novo, uma nova
sociedade, ainda que trazendo elementos ou marcas de tradição anterior.
Portanto, a modernidade produziu uma sociedade edênica que sucede à
sociedade medieval e à sociedade de transição (pré-moderna). Tudo impulsionado
pela confiança na ciência, tecnologia e no progresso, fruto do primado da razão,
desembocando em um antropocentrismo. A partir dessa mudança paradigmática,
do ponto de vista teológico, por exemplo, o ser humano passou a ser o agente
central – ativo - de promoção de sua salvação e Deus tornou-se agente passivo em
todo esse processo.21 O teólogo Andrés Torres Queiruga afirma que “a
modernidade não é um bloco monolítico, senão um processo por demais
complexo em que intervêm muitos elementos. E, obviamente, nem tudo o que nela
aconteceu ou acontece é verdadeiro ou aceitável”.22
O fenômeno da modernidade não pode ser visto apenas como expressão
daquilo que é positivo e otimista. Podemos ainda afirmar que a tarefa de criticar a
modernidade não é função só da teologia, mas de todo pensamento vivo e
libertador.23 É preciso olhá-lo também a partir dos seus limites e contradições do
progresso prometido, principalmente a iniludível contabilidade das “vítimas”
sacrificadas em prol da proposta de trazer o “céu” a terra. 24
Para compreender, portanto, a modernidade, é preciso entender que esta
nasceu nos escombros da Idade Média. O nome “modernidade” é a menção dada a
uma série de transformações ocorridas a partir da decadência do status quo
medieval.25 Sabemos que nenhuma época tem condições de compreender seus
sentidos definitivos, embora possa definir alguns de seus desafios.

20
DRUCKER, Peter. Sociedade Pós-Capitalista. São Paulo: Pioneira Editora, 1993. p. 78.
21
QUEIRUGA, Andrés Torres, p. 17.
22
Ibidem, pp. 21-22.
23
Ibidem, p. 22. O mesmo autor cita a grande obra A dialética do Iluminismo, para mostrar tal
verdade. Por outro lado basta que olhemos a questão da pós-modernidade para constatarmos a
afirmação de Queiruga.
24
DIAS, João S. Clá (org). Como Ruiu a Cristandade Medieval. São Paulo: Edições Brasil de
Amanhã, 1993. p. 12.
25
VEITH JR., Gene Edward. p. 22 passim.
28

Na verdade, houve uma grande mudança de mentalidade, que se deu, em


grande parte, pela degradação moral da Igreja. Senão vejamos esta afirmação:

O mau exemplo que irradiava do Papado frutificava em


todos os escalões da hierarquia [...]. Conduziam-se os papas do
período como príncipes italianos, cuidando de aumentar seus
territórios e com eles sua influência, enriquecer a família e
dotar os sobrinhos [...]. Bispos e abades dos monastérios
deviam seus cargos, pelo comum, às boas graças dos príncipes,
ou à corrupção [...]. A distribuição das rendas eclesiásticas não
era proporcional: o baixo clero, privado de instrução e direção,
apertava-se nas fímbrias da classe trabalhadora, conhecendo-lhe
as privações, partilhando-lhe o embrutecimento. A crise não
estava apenas nos costumes. Complicara-se o culto de
infindáveis práticas vazias, meramente rituais e exteriores.26

Sem dúvida alguma que o movimento renascentista foi uma forte e


contundente reação à Idade Média, desfazendo assim, com muitos dos seus
pressupostos. O centro do surgimento do Renascimento é a Itália.27 O biógrafo de
Calvino, Teodoro Beza, faz a seguinte afirmação sobre a passagem da Idade
Média para o Movimento Renascentista:

26
SANTOS, Pedro Ivo dos. Renascimento, Reforma e Guerra dos Trinta Anos. Rio de Janeiro.
JCM, s/d, p. 72.
27
O teólogo Hermisten Maia Pereira da Costa, em sua obra Raízes da Teologia Contemporânea,
abre uma excelente nota de rodapé, falando assim do surgimento da Renascença, que diz o
seguinte: “A Itália é, a um só tempo, o berço do Renascimento e do Capitalismo moderno”
(Fernando S. Lima. Renascimento: In: William Benton, org. Enciclopédia Barsa. Rio de
Janeiro/São Paulo. Encyclopaedia Britannica Editores. Vol. 12. 1967, p. 4. Vejam-se também:
Alfred Weber. História Sociológica da Cultura. p. 341ss; Leo Huberman. História da Riqueza
do Homem. p. 35; Henri Pirenne. História Econômica e Social da Idade Média. 6a Ed. São
Paulo. Mestre Jou. 1982. pp. 160ss; Peter Burke. O Renascimento Italiano: cultura e sociedade
na Itália. p. 9; Victor Civita (org.). História das Civilizações. São Paulo: Abril Cultural. Vol. III.
1973. p. 59; A. J. Saraiva. História da Cultura em Portugal. Vol. I. p. 26; Paul Johnson.
História dos Judeus. Rio de Janeiro: 2a Edição. Imago Editora, 1989. p. 246; T. M. Lindsay. La
Reforma em su Contexto Histórico. p. 62; Ernst Bloch. Entremundos en la Historia de la
Filosofia. p. 150; H. R. Trevor-Roper. Religião, Reforma e Transformação Social. Lisboa:
Editorial Presença/Martins Fontes. 1981, p. 15 passim. “O conceito de que o capitalismo industrial
em grande escala era ideologicamente impossível antes da Reforma é destruído pelo simples fato
de que já existia.” H. R. Trevor-Roper. Ibidem, p. 27. Ibidem, pp. 44-45.
29

A barbárie tinha sepultado completamente o


conhecimento das línguas em que estão escritos os
segredos de Deus e era preciso ou que Deus, lá do alto,
enviasse o dom de línguas aos homens por meios
miraculosos, como fez no princípio da Igreja primitiva
sobre os Apóstolos, ou então que, usando os meios
ordinários de aprendizagem de línguas, nos conduzisse a
poder ler no original o letreiro que puseram na cruz
sobre a cabeça do Senhor; e, além disso, os estudos de
ciências liberais despertaram espíritos que antes disso
estavam profundamente adormecidos.28

O Humanismo renascentista tinha por meta “a educação do Homem de


acordo com a verdadeira forma humana, com o seu autêntico ser”.29 Podemos
afirmar que o Humanismo era o lado filosófico do Renascimento. O Humanismo
Renascentista procura resgatar as fontes clássicas. “O Renascimento quis voltar às
fontes do pensamento e da beleza”.30 Sendo assim, de origem italiana, a
Renascença, segundo afirma Stanley J. Grenz,

[...] é uma palavra francesa cujo significado é


“renascimento” ou “reavivamento”, e designa um
período histórico que foi, em certo sentido, ambas as
coisas: houve um renascimento do espírito clássico
exemplificado nas antigas civilizações grega e romana,
mas houve também um reavivamento no aprendizado
depois da assim chamada “idade das trevas”.31

O grande Otto Maria Carpeaux em sua História da Literatura Ocidental tem


perfeita consciência das dificuldades de se estabelecer marcos precisos e absolutos
para os períodos históricos. Mais que isto, Carpeaux aponta para o fato decisivo
de que em cada época histórica, cada sociedade cria suas próprias referências e
fundamentos, isto é, que o discurso historiográfico é sempre o resultado de uma
motivação sociopolítico-cultural.

28
BEZA, Théodore. Histoire Ecclésiastique des Églises Réfomées du Royaume de France.
(1580). Apud Jean Delumeau. A Civilização do Renascimento. Vol. I, op. cit., p. 98.
29
JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes.
1989.p. 10. Cf. NUNES, Ruy Afonso da C. História da Educação no Renascimento. São Paulo:
EPU/EDUSO, 1980. p. 29.
30
DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento, op. cit., p. 85.
31
GRENZ, Stanley J., p. 94. Ver também WÖLFFLIN, H. Conceitos Fundamentais da História
da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 12.
30

Carpeaux, em página notável, discute a gênese da modernidade e as variadas


respostas que, ao longo do tempo, foram dadas ao tema. Ele afirma:

Já na exposição de Burckhardt aparece, como


primeiro homem moderno, Francesco Petrarca, que
nasceu em 1304: e começaram a celebrar, como pai da
arte moderna, o grande Giotto, que nasceu em 1267, dois
anos depois de Dante. Pouco faltou para o próprio Dante,
considerado então como o maior espírito da Idade
Média, ser nomeado instaurador da Renascença.32

Veja-se, então, o humanismo como momento decisivo da emergência da


modernidade. Com o avançar do século XV, e no XVI, esta centralidade do
humano, que se apresentou inicialmente no campo artístico, consolida-se e se
expande, ou seja, a descoberta das leis da perspectiva permite a definitiva fixação
do corpo e da natureza em suas reais proporções.
Assim, a pesquisa biomédica – as dissecações – permite que se passe a
conhecer tanto a anatomia, quanto a fisiologia humanas.33
Contudo, não se veja a emergência da modernidade como processo abrupto e
unívoco. Neste sentido existem renascenças medievais, e nestas a arte é o veículo
de difusão da ideologia nascente.34

32
CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Universal. Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro,
1963, Vol. I. p. 164.
33
ELIADE, Mircea. Nacimiento y Renacimiento: El significado de la iniciación en la cultura
humana. Traducción del inglés de Miguel Portillo. Barcelona: Editorial Kairós, 2001. p. 50. Cf.:
SCHAFER, Alphons, "Zur Initiation in Wagi-Tal", Anthropos, XXXIII (1938), 421 y ss.
34
As manifestações artísticas da renascença aglutinam as formas de expressão artística aos
conceitos filosóficos. Conforme diz Panofsky: "Assim fazendo, ligamos os motivos artísticos e as
combinações de motivos artísticos (composições) com assuntos e conceitos. [...] De fato, ao
falarmos do ' tema em oposição à forma' , referimo-nos, principalmente, à esfera dos temas
secundários ou convencionais, ou seja, ao mundo dos assuntos específicos ou conceitos
manifestados em imagens, estórias e alegorias em oposição ao campo dos temas primários ou
naturais manifestados nos motivos artísticos". (PANOFSKY, Erwin. Significado das artes
visuais. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1991. pp. 50-51).
31

Portanto, a transição da medievalidade para a modernidade se deu


basicamente de forma intrínseca às limitações desta configuração social. Um
movimento de transição, o Renascimento, foi financiado pelas duas estruturas
mais importantes do período: o clero e a nobreza.35 A expressão renascentista era
artística, mas cultivava em suas bases um triplo aspecto: a revalorização do ser
humano, a revalorização da natureza e o retorno às fontes clássicas.36 Estes três
aspectos são o gérmen de uma transformação social que alcançará os pilares do
sistema medieval: a religião como resposta última e exclusiva, a natureza como
elemento diminuto e subserviente diante da divindade, e a valorização exclusiva
de bens agrícolas sem qualquer tipo de manufatura.37
Delumeau destaca que nesse período surgiram as grandes escolas, algumas
que procuravam fornecer a melhor cultura possível,38 ensinando, inclusive, três
idiomas, que, segundo Herminsten visava a “formar o homo trilinguis”.39
Outro aspecto fundamental para o movimento Renascentista foi o
surgimento da imprensa. Havia uma avidez pelo conhecimento e a imprensa veio
atender tal demanda. Mais tarde ela seria grande instrumento na mão dos
reformadores, como veículo de difusão das idéias reformadas.40 Calcula-se que
num curto período de tempo, cerca de 50 anos após a descoberta da imprensa,
mais de 30 mil edições foram produzidas na Europa, com mais de 15 milhões de
exemplares.

35
WATT, Ian. Mitos do Individualismo Moderno. (Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson
Crusoe).Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. pp. 176-253.
36
FERNANDES, Florestan. Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1959; especialmente Parte I: “A Reconstrução da Realidade nas
Ciências Sociais”.
37
BERMAN, M. Tudo Que é Sólido Desmancha no Ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
p. 15.
38
DELUMEAU, Jean, p. 97.
39
COSTA, Hermisten Maia Pereira, p. 52.
40
Ibidem, p. 53. Cf. Lucien Febvre & Henry-Jean Martin. O Aparecimento do Livro. São Paulo:
Hucitec, 1992. pp. 273,374; Victor Straus. In: Encyclopaedia Britannica. Vol. 18, 1973, p. 542;
Hipólito Escolar. História del Livro. 2a edição corregida y ampliada. Salamanca/Madrid.
Fundación Germán Sánchez Ruipérez/Pirámide, 1988, p. 364; W. Stanford Reid. A Propagação
do Calvinismo no Século 16: In: W. S. Reid (org.). Calvino e Sua Influência no Mundo
Ocidental. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990. p. 39; Jacques Verger. Homens e Saber
na Idade Média. São Paulo: Ed. Universidade do Sagrado Coração, 1999. p. 124.
32

Nascia nesse período uma nova cosmovisão, na qual o homem passava a ser
o centro das atenções intelectuais e artísticas. Segundo lemos na História das
Sociedades,

O rígido teocentrismo medieval que centrava suas


atenções na relação Deus-homem, foi substituído pela
glorificação do Humano, pela preocupação da relação
homem-natureza.41

Após a Renascença, a gestação da modernidade foi longa. Portanto, a


modernidade surgiu em suas expressões: o humanismo, a Reforma Protestante, o
advento do racionalismo e a progressão deste,42 o fortalecimento dos Estados
Nacionais,43 o advento do liberalismo econômico e o colonialismo.44 Mas seu
alvorecer se deu no Iluminismo, após a Guerra dos Trinta Anos. A modernidade
constitui-se, por isto, como uma sociedade influenciada pelas idéias iluministas.45
A modernidade é fortemente marcada pelas descontinuidades em suas
instituições sociais, culturais e com o modus vivendi medieval. O que está por trás
desse processo de descontinuidade é o dinamismo da modernidade. A velocidade
da modernidade afeta diretamente práticas socioculturais e comportamentos pré-
existentes.46

41
AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. História das sociedades: das sociedades modernas às
sociedades atuais. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, (1989?). p. 78.
42
DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna.
Rio de Janeiro: Rocco, 1985. p. 39.
43
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de
Janeiro. Paz e Terra, 1985. p. 35: Ele afirma: “Desta acepção do Estado Nacional, porém, pode-se
também dar uma conotação axiologicamente negativa, desde que nos coloquemos do ponto de
vista do Estado e consideremos os fermentos de renovação de que é portadora a sociedade civil
como germes de desagregação.”
44
RUSSO, Jane A. Indivíduo e transcendência: algumas reflexões sobre as modernas religiões
do eu. Revista Paulista de Psicologia e Educação, v. 3, n. 1-2, pp. 9-33, 1997-b. p.19.
45
GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., p. 60.
46
Quando verificamos o dinamismo da modernidade, podemos sugerir a leitura da obra
Modernidade e Identidade, de Anthony Giddens. Ele fala sobre três elementos que explicam ou
marcam a modernidade. O primeiro ele chama de separação de tempo e espaço. O segundo
elemento ele chama de desencaixe das instituições sociais. Na verdade, trata-se de uma metáfora
para exprimir o movimento chamado de deslocamento. O último elemento é chamado por ele de
reflexidade, sendo uma das maiores influências sobre o dinamismo das instituições modernas - p.
21 passim - Cf. em As Conseqüências da Modernidade, do mesmo autor, p. 83 passim.
33

Esta nova ordem apresenta quatro dimensões que são consideradas aqui: a
dimensão sociocultural, a dimensão econômica, a dimensão antropológica e a
dimensão religiosa.

1.1.2
Dimensão Sociocultural

Definir o termo “cultura”, para traçar aspectos constitutivos e característicos


da cultura contemporânea é uma tarefa que deve levar em consideração a falta de
uniformidade de cada cultura em particular e das culturas quando confrontadas, o
que conduz a necessidade de uma base teórica para a análise da pós-modernidade.
A palavra cultura, de origem latina, deriva-se do verbo colere, que significa
cultivar, sugerindo assim uma idéia de cultivo, do processo de lavrar e
desenvolver a terra.47 De uma forma mais geral e abrangente, a cultura é entendida
como um conjunto de valores e leis que regem o comportamento humano,
possibilitando diferenciar as pessoas que possuem diferentes estilos de vida.
Diferentemente a esta, outra abordagem, um tanto mais filosófica, surge a
partir do século XVIII com a noção de oposição entre Natureza e Cultura, onde a
segunda passa a ser entendida como o mundo das produções de caráter artístico,
intelectual e religioso, aproximando-se do conceito mais genérico de civilização,
enquanto que a primeira é entendida como uma coisa operante e mecânica que
atua exercendo seu poder em vista de leis necessárias de causa e efeito.48

47
O primeiro, porém, a relacionar o termo ao cultivo de habilidades, qualidades e possibilidades
da alma humana é Cícero (Cf. CÍCERO. Tusculanae disputationes. p. 8, 11-13 passim).
48
SANTOS, José Luiz. O que é Cultura? São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 43.
34

O fato de não ser possível assumir tal definição é devido ao seu


etnocentrismo, seu sentido elitista ou absolutista, baseada na dicotomia cartesiana
e serva da concepção da época da inferioridade dos povos das colônias. Os
iluministas conceituaram cultura com o saber racional. Já os românticos,
ampliaram o seu conceito, afirmando que a cultura tem relação não só com o saber
racional, mas também mitológico, artístico etc. Hegel trabalhou o conceito de
objetividade e subjetividade à cultura.49 Nesse período, a antropologia cultural
conceituou cultura como uma dinâmica sociohistórica.50 O fulcro da conceituação
cultural abrange:

O desenvolvimento das capacidades do sujeito


humano, seu mundo de crenças e de valores, suas leis,
suas simbologias, todo o saber acumulado nas
bibliotecas e na memória viva do grupo social, os modos
de produção vigentes e os produtos materiais elaborados
pelo grupo.51

Representando a concepção cristã, o Concílio Vaticano II definiu cultura da


seguinte forma na encíclica Gaudium et Spes:

Pela palavra cultura, em sentido geral, indicam-se


todas as coisas com as quais o homem aperfeiçoa e
desenvolve as variadas qualidades da alma e do corpo;
procura submeter o seu poder pelo conhecimento e pelo
trabalho o próprio orbe terrestre; torna a vida social mais
humana, tanto na família como na comunidade civil,
pelo progresso dos costumes e das instituições: enfim,
exprime, comunica e conserva, em suas obras, no
decurso dos tempos, as grandes experiências espirituais e
as aspirações, para que sirvam ao proveito de muitos e
ainda de todo o gênero humano.52

49
PAREDES, Juan Antonio, op. cit., p. 72.
50
O principal teórico culturalista, Clifford Gertz, afirma ser a cultura: “[...] um padrão de
significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções
herdadas e expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens se comunicam,
perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida” (Cf. GEERTZ,
Clifford. A Interpretação das Culturas, 1989. p. 103).
51
PAREDES, Juan Antonio, op. cit., p. 73.
52
GS 53.
35

Segundo Batista Mondin há três aspectos numa cultura, ou seja, podemos


analisá-la do ponto de vista de sua origem, de sua forma e de sua finalidade.53
Partindo de sua origem,

A cultura é realização humana (a human


achivement). Distinguimo-la da natureza observando os
traços de intencionalidade e do esforço humanos. Assim,
por exemplo, um rio é natureza, já um canal é cultural
[...], a cultura é obra da mente e das mãos dos homens.54

Ao contrário do mundo medieval, bem como no mundo renascentista e


romântico, onde o eixo central era a natureza e o homem ficou como seu
apêndice, no mundo racionalista ou idealista o eixo central está no homem e não
na natureza. Dele, portanto, emerge a cultura moderna. Entretanto, ela não é
resultado apenas de indivíduos, mas de grupos. Sendo assim, traz em si a marca de
ser social. O próprio Niebuhr diz que “a cultura é hereditariedade social que o
homem recebe e transmite. Tudo o que é puramente privado não faz parte da
cultura”.55 Ela não é mecânica, exige esforço e construção.
Olhando a partir de sua forma, a cultura é múltipla, dinâmica e,
essencialmente, criativa e sensível. Ela está em constante mudança, pois segue os
caminhos do ser humano, enquanto ser social. Há uma dimensão de
multiformidade da cultura. Já do ponto de vista de sua finalidade, encontramos
várias posições: sua finalidade é religiosa, humanista, naturalista. Podemos, no
entanto, afirmar que não há contradição entre estes aspectos de sua finalidade.
Eles podem estar perfeitamente em harmonia entre si.56 Em outras palavras, a
cultura moderna e pós-moderna transformou toda compreensão medieval e
tradicional de espaço. O espaço agora é construído. No lugar do espaço sagrado,
ele é secularizado ou ressacralizado, numa dimensão privatizada.

53
MONDIN, Batista. O Homem, quem é ele? Elementos de Antropologia filosófica. São Paulo:
Paulus, p.179.
54
NIEBUHR, H. R. Christ and Culture. Nova York, 1956. p. 33.
55
Ibidem, p. 33.
56
Podemos citar o H. R. Niebuhr como um dos defensores dessa posição.
36

Esta fragmentação afeta diretamente o lugar ocupado pelo cristianismo. Ele


é deslocado do centro para o lado e somente ao lado de outros setores, e não mais
acima deles capaz de oferecer sentido. Ou, nas palavras do Prof. França Miranda,

Com a emancipação dos vários setores da cultura e


da sociedade (política, ciência, economia, arte, etc.)
fragmenta-se o universo simbólico unitário do passado
de cunho eminentemente cristão. Os diversos setores
socioculturais tornam-se autônomos, gozando de
inteligibilidade e normatividade próprias e apresentando
cada um deles sua interpretação da realidade, seu
universo simbólico respectivo, simplesmente ignorando
ou prescindindo dos princípios cristãos.57

No universo heliocêntrico, o homem começa a desenvolver sua percepção de


que o espaço lhe é algo externo, separado de sua realidade objetiva. Significa dizer que
o homem pode manipulá-lo, dominá-lo, através do seu conhecimento racional, livre
agora das amarras prescritas pela divindade. Kuhn elucida esta mudança paradigmática
ao afirmar que,

A civilização ocidental contemporânea é mais


dependente, tanto no que se refere à filosofia do dia-a-dia
como ao pão que comemos, de conceitos científicos do que
qualquer civilização passada [...]. Devemos também
compreender como a solução dada por um cientista a um
problema altamente técnico e aparentemente insignificante
pode, em dada altura, alterar fundamentalmente as atitudes
dos homens para com os problemas básicos da vida diária.58

Com a “divinização” do homem e do racionalismo, ficou este período


registrado na história como a “Idade da razão”. Na verdade, o Iluminismo pode
ser visto como a essência da modernidade. É interessante percebermos dois
movimentos: durante a Renascença o homem lançou um olhar para o passado, já
no Iluminismo ele projetou seu olhar para o futuro, para o período das luzes, para
a era de ouro, para o progresso, para o desenvolvimento, todos ideais da sociedade
moderna.

57
Cf. MIRANDA, Mário França, op. cit., p. 11.
58
KUHN, Thomas. A revolução copernicana. Lisboa / Rio de Janeiro: Edições 70, 1990. pp. 21-
23.
37

O resultado não poderia ser outro senão um esvaziamento do sentido


religioso, pois na linguagem de Libânio, a modernidade destronou a religião.59
Uma vez que a religião “é a força integradora das relações humanas, o Iluminismo
afetou todos os sistemas simbólicos religiosos, fundamentais como marco de
sentido à vida em todas as suas dimensões”.60 Em outra linguagem, o Iluminismo
na sua forma mais racionalista, veio a significar “a tentativa de julgar tudo à luz
da razão”.61
A modernidade tendo como pano de fundo o projeto científico, este por sua
vez vai assumir a razão e a experiência humanas como mediadoras de definição
entre a verdade e o erro. Ou seja, “a valorização da razão toma de início a forma
de valorização da ciência e, bem mais à frente, de valorização da tecnologia, como
seu produto”.62 A aliança entre razão e a experiência resultou na conclusão de que
a cultura tornou-se científica e depois tecnológica.

1.1.3
Dimensão Econômica

Tendo o progresso técnico-científico fincado definitivamente suas raízes na


cultura moderna, os laços com a sociedade tradicional - pré-moderna – foram
desfeitos, tendo a economia seu papel fundamental. Portanto, há claramente na
modernidade uma hegemonia da economia que, com a fragmentação dos variados
setores que formavam a sociedade, cada um torna-se fonte de sentido para o
homem. Em meio a essa pluralidade moderna, o homem vai buscar sentido no
poder econômico, pois é o setor que mais se destaca. Não poderia ser diferente,
uma vez que a sociedade, em suas mais diversas dimensões, vai estruturar-se a
partir do econômico.

59
LIBANIO, João Batista. A Religião no Inicio do Milênio. p. 123.
60
Ibidem.
61
BROWN, Colin. Filosofia & Fé Cristã. São Paulo. Ed. Vida Nova, 1999. p. 37.
62
ZAJDSZNAJDER, Luciano, op. cit., p. 32.
38

Uma das grandes características da influência do econômico é a sua


capacidade de produção, não mais artesanalmente, mas industrializadamente,
resultado da invenção da máquina. A revolução industrial tem, então, seu início.
Essa produção de massa gera consumo em massa.63 Com isso, os preços de tais
produtos caem e, conseqüentemente, começa a surgir um grande mercado de
consumo. Ou seja, todo processo de repetição do mundo medieval é deixado para
trás na medida em que a descoberta da ciência experimental torna-se uma
realidade, decorrendo daí que,

O método e o conhecimento experimental


medeiam o aparecimento de uma nova visão de mundo e
de homem. O mundo não é mais para ser contemplado e
imitado (mundo antigo e medieval), mas para ser
enfrentado e dominado pelo homem com o instrumental
propiciado pela ciência experimental. O homem, com
sua racionalidade matemática, constrói o mundo e o
transforma com sua racionalidade técnica. O homem
desprende-se do mundo, destaca-se nitidamente dele. E
com sua racionalidade o enfrenta, domina e transforma,
em proveito próprio.64

Segundo Jung Mo Sung, “o mercado deixou de ser um lugar de troca de


excedentes para se tornar o fim de toda produção e o articulador da nova
organização social”.65 Há uma completa e radical mudança na concepção
sociopolítico-religiosa, ou seja, a economia de mercado faz com que o poder
acompanhe a riqueza, não mais o contrário. Seguindo esse novo paradigma, o
mercado é deificado, nascendo, assim, a idolatria do mercado. Os indivíduos
perderam seu valor enquanto pessoas, tornando-se meros instrumentos de
produção, trazendo conseqüências lastimáveis às famílias, pois deixam de ser o
fundamento da sociedade. Weber chega a dizer que

63
Apenas como exemplo, podemos citar o fordismo, quando Henri Ford percebe a necessidade do
mercado e passa produzir seus carros em escala de produção, em 1914, nos EUA, para atender a
um mercado consumidor. Nessa linha de pensamento a mídia de massa busca uma verdadeira e
profunda aliança com a indústria a fim de gerar nas pessoas a necessidade de consumir. Para maior
aprofundamento desta questão. (Cf. HARVEY, David, op. cit., p. 115 passim).
64
RUBIO, Garcia Afonsio, op. cit., p. 20.
65
Ibidem, op. cit., p. 160.
39

[...] a comunidade de mercado, enquanto tal, é a


relação prática de vida mais impessoal na qual os
homens podem entrar [...]. Porque é especificamente
objetivo, orientado exclusivamente pelo interesse nos
bens de troca.66

Livre da influência religiosa, a sociedade econômica torna-se secularizada e,


portanto, sem qualquer valor ético sustentável, fruto de uma legitimação política
de “baixo para cima”, e não “de cima para baixo”.67 Nas palavras de Jung Mo
Sung, “a burguesia legitima ideologicamente a nova sociedade em nome do
progresso que realizaria a emancipação humana, a utopia moderna”.68 Nasce a
chamada “ética do mercado” que legitima os novos anseios e os meios utilizados
para concretização desses.69 É a ética do progresso e do lucro, onde os meios
justificam os fins, ainda que em detrimento da justiça social. Impõe-se um novo
desafio, uma nova ética que seja capaz de responder a tais problemas.
Para conhecermos a natureza de uma ética, basta verificarmos o conceito
que esta tem do ser humano. Significa dizer, então, que a ética de mercado vê o
ser humano vocacionado para o mercado. Trata-se de uma antropologia onde o
homem é altamente competitivo, buscando primeiro os seus interesses, de forma
egocêntrica. Sua natureza está voltada para o econômico. Jung Mo Sung diz que,

A natureza colocou o gênero humano sob o


domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer.
Somente a eles compete apontar o que devemos fazer,
bem como determinar o que na realidade faremos [...].
Todos os atos humanos passam a ser vistos como
conseqüências de decisões calculadas, racionais, nas
quais os indivíduos agem de modo muito parecido com
um contador, ponderando todos os lucros (prazer) a
serem obtidos com determinados atos, deduzindo todos
os custos (dor) a serem causados por estes atos e, depois,
escolhendo racionalmente o ato que maximizasse o
excesso de prazer sobre a dor.70

66
WEBER, Max. Economia y sociedad. México, Fondo de Cultura Económica, 1984. p. 306.
67
SUNG, Jung Mo, op. cit., p. 172.
68
Ibidem., p. 173.
69
Quanto à relação ética, produção e riqueza, cf. FONSECA, Eduardo Gianeti. Vícios Privados
Benefícios Públicos? A Ética na Riqueza das Nações. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
70
SUNG, Jung Mo, op. cit., p. 178.
40

1.1.4
Dimensão Antropológica

A modernidade é essencialmente caracterizada pela revolução na concepção


do próprio homem.71 Já não é mais a sociedade que outorga sentido ao homem,
mas este é que se afirma diante da coletividade. Ele quer marcar a todo custo sua
autonomia, sua independência, evitando qualquer tipo de interferência que lhe
venha de fora. O homem moderno é o sujeito da história. Ou seja, há uma clara
rejeição de toda heteronomia.72
Na verdade, o homem é a referência primeira e última de todas as suas
próprias decisões. Ele passa a ser a medida de todas as coisas. Juan Luis Segundo
afirma que “tudo na Idade Moderna pode resumir-se em uma ruptura com o
conceito medieval de homem”.73 Definitivamente a concretização dos sonhos
humanos vai habitar a geografia do progresso tecnológico.
Segundo o antropólogo francês Claude Reviére

Pertencer a uma cultura estudada não é nem uma


desvantagem nem uma necessidade para o antropólogo,
o importante é possuir a bagagem teórica e metodológica
que lhe permita uma distanciação científica [...].74

71
Na era moderna encontramos, segundo o filósofo Juvenal Arduini, fatores que colaboraram, de
alguma forma, para o antropocentrismo: “Descartes acentuou a autonomia racional ao instaurar o
‘Cogito’ como ponto de partida metodológico [...]; Kant instala o antropocentrismo
epistemológico, ao situar o homem como um constituinte do conhecimento. Nietzsche busca a
primazia da vida sobre a ‘moral’, e projeta a vontade de poder encarnada no super-homem [...];
Darwin formula a originalização autônoma do homem, através do evolucionismo proposto em
‘Origem das Espécies” [...]; Freud, Adler, Jung e outros patenteiam o imenso e intricado
dinamismo do inconsciente [...]. O marxismo suscitou a autonomia histórica do homem com o
significado transformador do trabalho [...], e para que o homem pudesse reapropriar-se de sua
essência, Marx reivindicou o cancelamento da religião que ele entendia como alienante e
espoliativa do ser humano. O existencialismo vinha desocultar e densificar as condições concretas
da existência do homem, situado no mundo entre os limites do tempo e a pulsão da liberdade [...];
o estruturalismo procurou apreender o movimento do homem dentro de um sistema de
representações, que o envolviam como estrutura consciente ou inconsciente, como mediação na
captura da realidade, a qual facilmente se dissolve na teia do discurso”. Cf. Juvenal Arduini.
Destinação Antropológica. São Paulo: Paulinas. 1989. pp. 10,11. Ver HOEKEMA, Anthony.
Criados à Imagem de Deus. São Paulo. Cultura Cristã. 1999, pp. 11-15. Nessas páginas
encontramos mais detalhes sobre as principais correntes filosóficas e religiosas que produzem
determinados conceitos antropológicos.
72
AGOSTINI, Frei Nilo. Ética Cristã e Desafios Atuais. São Paulo: Ed. Vozes, p. 97. A ética
heterônoma é aquela que afirma que a obrigação é imposta de fora (ETEROS), ela é extra-
indivíduo.
73
SEGUNDO, Juan Luis. El dogma que libera: fé, revelación y magisterio dogmático. Santander,
Sal Térrea, 1989. p. 295.
74
REVIËRE, Claude. Introdução à Antropologia. Lisboa: Edições 70, 2000. p. 13.
41

Agnes Heller diz o seguinte sobre o conceito de deificação do homem:

A liberdade, a igualdade e a fraternidade, juntas


tornaram-se uma categoria antropológica, com o que a
humanidade despertou pela primeira vez, como
humanidade, para a consciência de si própria. Do mesmo
modo, a liberdade, o trabalho, a multilateralidade, a
ausência de limites representaram juntos a essência do
homem, a sua ‘natureza’, sendo portanto declarado que o
homem era capaz de tudo.75

Ao contrário da sociedade pré-moderna, o indivíduo moderno constrói sua


identidade em função do poder econômico. Ou seja, vive-se em função do ter,
onde sua identidade e seu valor são resultados do lugar onde habita, dos bens que
possui e pela sua capacidade de se colocar dentro do competitivo mercado
econômico. Seu projeto de vida está ancorado nos bens finitos, fruto de um
mercado altamente consumista.
Com uma sociedade fragmentada, setorizada, sem referenciais globais,
sejam religiosos ou não, o homem moderno alimenta-se de seu famigerado
individualismo. Como bem descreve Lipovetsky:

Sem dúvida o direito de o indivíduo ser


absolutamente ele próprio, de fruir o máximo a vida, é
inseparável de uma sociedade que erigiu o indivíduo
livre um valor principal [...]. Salta aos olhos a lógica
individualista: o direito à liberdade, em teoria ilimitada
[...]. Viver livre e sem coação, escolher sem restrições o
seu modo de existência: não há outro fato social e
cultural mais significativo quanto ao nosso tempo; não
há aspiração nem desejo mais legítimo aos olhos dos
nossos contemporâneos.76

75
HELLER, Agnes. O homem do renascimento. Lisboa: Ed. Presença, 1982. p. 361.
76
LIPOVETSKY, G. A Era do Vazio: Ensaio sobre o Individualismo Contemporâneo, 1989.
pp. 9-10.
42

Nesse novo mundo de opções o homem vai ocupar o espaço da livre e


absoluta expressão, onde o que importa é a imagem e não os conteúdos. Acontece
aqui uma revolução paradigmática, ou seja, essa era imagética não só relativiza,
mas torna todas as coisas superficiais, inclusive as relações humanas. E mais. A
imagem torna-se um produto, altamente mercantilizado, como veremos mais
adiante. Com sutileza rara, mais uma vez Lipovetsky diz que,

A expressão a todo custo, o primado do ato de


comunicação sobre a natureza do que é comunicado [...],
a comunicação sem finalidade nem público, o destinador
torna-se seu principal destinatário [...], comunicar por
comunicar, exprimir-se sem outro objetivo além de se
77
exprimir e ser registrado por um micropúblico.

Os ideais iluministas têm como centro e principal vertente a fé na razão.


Não é mera crença nos poderes da razão humana, mas uma concepção muito mais
profunda: para os iluministas, toda a população deveria ser iluminada (ou
esclarecida) para que a sociedade vivesse melhor.78
Outro elemento que marca a modernidade, decorrente do iluminismo, é a
aceitação da experiência dos sentidos e da razão como meios de obtenção de um
conhecimento exato e objetivo. O uso da razão gera, para muitos dos pensadores
da modernidade, o progresso e a libertação social. Baudelaire escreveu sobre isto,
dizendo que “modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da
arte, da qual a outra metade é o eterno e o imutável”.79
A ação moral é redimensionada, assumindo o homem a responsabilidade no uso
da razão, ou seja, cabe ao homem a tarefa de proceder ao exame inflexível de qualquer
pressuposto.80

77
Ibidem., op. cit., p. 16.
78
O Iluminismo foi uma revolução intelectual que ocorreu na Europa nos séculos XVII e XVIII,
sendo também o apogeu dos ideais renascentistas difundidas no século XIV. Graças ao
Iluminismo, a religião e as ciências separaram-se, causando mudanças na maneira de pensar, agir e
encarar o mundo. A partir do Iluminismo, os homens tentaram encontrar explicações científicas,
para, por exemplo, os fenômenos da natureza, originando grandes avanços científicos.
79
BAUDELAIRE, C.. The Painter of Modern Life (In: SIEPIERSKI, P., op. cit., p. 145).
80
Kant: "O homem deve sair do estado de natureza, no qual cada um segue os caprichos da própria
fantasia, e unir-se com todos os demais [...] submetendo-se a uma constrição externa publicamente
legal [...]: vale dizer que cada um deve, antes de qualquer outra coisa, ingressar num estado civil, e
esta depende do homem usar a razão responsavelmente"[...].In: BOBBIO, Norberto, op. cit., pp.
45-6.
43

Deste modo, a questão de base da cultura ocidental assume uma arquitetura


conceitual, praticamente finalizada, fazendo do sujeito a fonte original de doação de
sentido ao mundo e a si mesmo. Desse modo é possível defender-se de que à
dessacralização do mundo, ocorrida no universo individualista pós-feudal, corresponde
uma espécie de “sacralização do eu”, uma espécie de “culto secular” do eu, alçado à
condição de sede das significações fundamentais do ser humano.
No entanto, esta concepção de sujeito uno, autônomo, dono de sua razão, revela-
se problemática, quando se trata da análise da interioridade, da também moderna
dimensão psicológica individual. O sujeito psicológico é dividido, sua autonomia é
apenas ilusória, sua vida racional e consciente subentende uma desconhecida dimensão
inconsciente e irracional. Produz-se um paradoxo, onde o eu reina, apresenta-se
sacralizado, mas não é dono de si.

1.1.5
Dimensão Religiosa

O Iluminismo produziu o que chamamos de deísmo81, sistema religioso que


afirma que o homem, dotado da razão, vive de forma autônoma, prescindindo da
ação pessoal de Deus no palco da história, pois ele faz parte de uma complexa
máquina – a natureza – que funciona de forma autônoma, num sistema de causa e
efeito, com suas próprias leis.
No auge da modernidade vive-se, do ponto de vista religioso, uma
escatologia imanente, ou seja, o futuro começava a partir de então no presente,
chamado de progresso técnico-científico, que anunciava o “céu” na terra. A “Terra
Prometida” era chegada.

81
Deísmo – Deísmo é o termo aplicado ao pensamento dos livres-pensadores ingleses dos séculos
XVII e XVIII que procuraram compatibilizar a crença em Deus e o Racionalismo do Iluminismo.
O deísmo nega ou a possibilidade ou o fato de qualquer revelação supernatural, e mantém que a
razão é tanto a fonte quanto à base de todo conhecimento e convicção religiosos. In HODGE,
Charles. Teologia Sistemática, op. cit., p. 26.
44

“O período moderno define-se através da razão cada vez mais liberada da


religião e através do humanismo, e nas ênfases atribuídas à ciência e à política”.82
Ainda nessa linha imanentista da modernidade, Jung Mo Sung afirma que,

A contínua postergação da Parusia e a frustração


da tentativa de antecipar a vinda do Senhor por
aperfeiçoamento ético e pregação religiosa abriram
espaço para uma antecipação ativa no mundo real através
83
da transformação da natureza e da sociedade.

Cremos que, dito de outra forma, a modernidade provocou a secularização


do conceito medieval de vida, desaparecendo, portanto, a expectativa da parusia,
que produzia a esperança de um tempo potencialmente infinito, surgindo então
uma nova perspectiva, a intervenção do homem na dimensão do tempo infinito.
Assim, para compreendermos a modernidade é fundamental a consciência do
tempo infinito, pois tal mudança afeta praticamente todas as dimensões da
sociedade.84
Na linguagem de Herrero, em seu artigo sobre filosofia da religião e crise da
fé, o que houve foi um claro processo de imamentização da religião, de um lado, e
a completa autonomia da dimensão social, do outro.85
A teologia na modernidade se arvora em instância competente na interpretação e
explicação das verdades de fé com linguagem altamente técnica que escapa da
intelecção e experiência da maioria das pessoas. Um duplo efeito contraditório se
segue. Ou uma rejeição compacta, sem aduzir razões, porque não se é capaz de fazê-lo;
ou, uma aceitação, também ela sem razões, invocando a autoridade do teólogo ou da
instância teológica.86
O fenômeno da secularização pode ser visto como instrumento de
provocação. Isso porque a secularização é hoje o problema central da sociologia
da religião, definindo-se como o processo através do qual as idéias e as
instituições religiosas estão perdendo seu significado social. As idéias são menos
significativas e as instituições mais marginalizadas.

82
ZAJDSZNAJDER, Luciano, op. cit., 2002, p. 25.
83
SUNG, Mo Jung, op. cit., p. 166.
84
Ibidem, pp. 167-168.
85
HERRERO, X. Filosofia da religião e crise da fé. In Síntese Nova Fase 13, 1985. pp. 13-39.
86
Id., Desafios da Pós-Modernidade à Teologia Fundamental, In: (TRASFERETTI, José &
GONÇALVES, Paulo S. L. (org.), Teologia na Pós-Modernidade), p.165.
45

Paradoxalmente, em meio à efervescência religiosa há uma espécie de


derretimento da fé, o que pode ser chamado de crise de plausibilidade da
mensagem e da experiência cristãs.87 Esta corrente torna o sagrado obscurecido,
gerando uma completa mudança de valores. Ou seja, seria a perda da
transcendência. A razão em detrimento da alma. Parece-nos que a religião tem
perdido seu significado original. É evidente, portanto, que uma sociedade
pluralista contribui também para reforçar a indiferença religiosa, ou sua
fragmentação.88
A secularização provoca o fim dos monopólios das tradições religiosas e,
assim, ipso facto, conduz a uma situação de pluralismo e ao mundo privado.
Como temos dito, a noção de espaço foi tremendamente alterada com a cultura
moderna e pós-moderna, com sérias conseqüências religiosas, ou seja, agora o
espaço religioso é construído e, paradoxalmente, secularizado ou “ressacralizado
de maneira privatizada. Em vez do espaço fixo e estendido, ele é móvel e
fragmentado”.89

Peter Berger afirma que:

Durante a maior parte da história da humanidade,


os estabelecimentos religiosos existiram como
monopólios na sociedade, monopólios de legitimação
última da vida individual e coletiva. As instituições
religiosas eram, de fato, instituições propriamente ditas,
isto é, agências reguladoras do pensamento e da ação.90

Diante disso, a religião não é mais determinante e não pode mais ser
imposta, mas “tem que ser posta no mercado”91, ficando os conteúdos religiosos
constantemente sujeitos à “moda” do dia. Dada as muitas faces da secularização, a
influência secularizadora das camadas sociais será variada de acordo com o
consumo de bens religiosos. No entanto, na medida em que a secularização é uma
tendência global, os conteúdos religiosos tendem, de um modo geral, a se
modificar numa direção secularizante.

87
AMORESE, Rubem Martins. ICABODE: Da Mente de Cristo à Consciência Moderna, p. 48.
88
VALADIER, Paul. Catolicismo e Sociedade Moderna. São Paulo: Loyola, p. 64.
89
LIBANIO, João Batista, op. cit., p. 29.
90
BERGER, Peter. O Dossel Sagrado. São Paulo: Ed. Vozes. 1985, pp. 146-147.
91
Ibidem, p. 156.
46

A secularização procura invalidar a experiência com o transcendente, como


fala Cláudio de Oliveira Ribeiro:

A Igreja cede em sua própria existência, aliena-se


e adquire outra natureza, que é própria do mundo,
portanto, seculariza-se. Secularizar é o processo pelo
qual, no final, a Igreja será somente uma parte do mundo
entre tantas outras. Neste processo, ela é um estreito
apêndice que o mundo pode até mesmo considerar
necessário para sua complementação, mas não terá
importância prática alguma em sua vida. Secularização é
o processo pelo qual o ‘sal perde o seu sabor.92

Assim sendo, podemos definir o indivíduo “secularizado” como aquele que


tem sua vida estabelecida nos valores deste século, sem qualquer interferência de
valores e crenças religiosas ou influência transcendental. Isso implicaria em ser
ateu em outras épocas. No entanto, é importante notar que no contexto
contemporâneo “ser secularizado” não implica necessariamente em não ter
religião ou não buscar uma relação com o transcendente.
No contexto contemporâneo o indivíduo é visto como um ser integral e que
necessita também da relação espiritual visando seu bem-estar pleno.
Conseqüentemente, a religião é respeitada desde que se reconheça como uma
prestadora de serviços religiosos para o respectivo departamento da vida humana.
O que não podemos fazer é olhar a secularização apenas como um fenômeno
negativo.
Como muito bem se expressou o missiólogo Ricardo Agreste,

[...] a modernidade traz consigo a secularização, a


qual, sem tirar o templo da praça da matriz, desloca sua
influência para a periferia da sociedade humana. A
Igreja, assim como toda forma de religiosidade no
mundo moderno, é vista como um departamento da vida
humana, mas não como centro de referência de valores,
costumes e propósitos. O centro de referência agora é o
homem que, como ser social, busca seu desenvolvimento
e bem estar.93

92
RIBEIRO, Cláudio de Oliveira. A Provisoriedade da Igreja. Uma contribuição da
Eclesiologia de Karl Barth ao protestantismo Brasileiro. Dissertação apresentada ao
Departamento de Teologia da PUC-Rio, em maio de 1994, pp. 136-137.
93
AGRESTE, Ricardo. Cultura Contemporânea, op. cit., p. 5.
47

Em outras palavras, a partir do momento que não se reconhece mais a


transcendência e a influência de Deus na história humana, pelo menos no discurso
e no comportamento humanos, está formada a secularização. A partir desse
momento temos, então, grandes desafios à fé cristã e à religião em geral. Temos
assim sinais claros de uma nova modelagem cultural, a pós-modernidade.

1.2
O Fenômeno da Pós-Modernidade

Sabemos que a modernidade construiu um ambicioso e revolucionário


projeto cultural, que buscou transformar a face da terra pela fé na ciência e na
técnica aplicadas às forças produtivas, nas relações liberais de mercado como
capazes de implementar um estado justo e próspero, bem como na positividade do
progresso e na sua constante renovação e superação. Segundo Luis Carlos
Friedman,

[...] entre as mais poderosas forças que fizeram


mover os homens modernos estava a crença de que
através da razão eles poderiam atuar sobre a natureza e a
sociedade na direção de uma vida satisfatória para
todos.94

No entanto, o que se observou é que, ao invés dos princípios ou pressupostos


modernos coexistirem harmoniosamente, sinergicamente, eles se sobrepuseram
uns aos outros, levando o processo a um desequilíbrio.95 Assim, os vários
princípios, interagindo entre si, não foram capazes de cumprir com as propostas
modernas que visavam, entre outros objetivos, a prosperidade social a partir do
desenvolvimento da técnica, da ciência aplicada e do livre mercado. Se por um
lado a ciência e a técnica avançaram, talvez além do esperado, a contrapartida de
prosperidade social e cultural não se concretizou.96

94
FRIDMAN, Luis Carlos. Vertigens Pós-Modernas. Configurações Institucionais
Contemporâneas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 09.
95
Por exemplo, no período do capitalismo liberal, houve um desenvolvimento sem precedentes do
princípio do mercado, atrofiando o princípio da comunidade e pressionando o estado a uma
resignificação de seu papel.
96
ANDERSON, Perry. As Origens da Pós-Modernidade. Trad. Marcus Penchel. Rio: Zahar,
1999. pp. 9-10. Ver também: SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 2004. p. 21.
48

Como fenômeno urbano, uma vez que a maioria da população mundial vive
nos grandes centros urbanos, a pós-modernidade é controlada pelas grandes
metrópolis industriais, tendo a mídia como seu maior e mais eficaz instrumento de
comunicação de manipulação, gerando, conseqüentemente, uma sociedade
altamente consumidora, sobretudo de imagens. Nas palavras de Zygmunt
Bauman, vivemos a “modernidade líquida”.97
Tal como na modernidade, nossa intenção inicial é procurar uma definição
da pós-modernidade, promovendo um exercício descritivo, fenomenológico, sobre
alguns paradigmas desse tempo, de igual forma focando as perspectivas
sociocultural, econômica, antropológica e religiosa.
Veremos, então, que em cada uma dessas perspectivas, há profundas e
relevantes implicações que, de alguma forma, incidem diretamente sobre a
teologia e o modus vivendi da Fé Cristã, proporcionando alterações não apenas na
cosmovisão teológica, mas alterando sua hermenêutica e, conseqüentemente, sua
práxis, de tal maneira que tais paradigmas alteraram e alteram a experiência cristã,
muitas vezes em suas bases.98

1.2.1
Uma Definição da Pós-modernidade

Caracterizar ou definir a sociedade pós-moderna implica em perceber um


movimento de ruptura e continuidade, fluxo e refluxo, ou um projeto inacabado da
modernidade.99 A falência social da modernidade, por sua vez, teve seus
portadores.100

97
Ver algumas boas obras sobre o tema da pós-modernidade: Zygmunt Bauman. Modernidade
Líquida, e também Cf. Amor Líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Ed. Zahar, 2004. Cf. Comunidade. A busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Ed.
Zahar, 2003. Cf. O Mal-estar da Pós-modernidade. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1998.
98
Ao contrário das concepções religiosas da comunidade em sua práxis, a realidade é
compreendida na pós-modernidade de forma inerentemente complexa, visto que em qualquer
teoria elaborada para entender a sociedade é apenas uma visão entre inúmeras outras possíveis,
sendo que todas estarão sempre submetidas ao improvável, ao imprevisível, pois como ensinava o
filósofo alemão Karl Jaspers, “tudo é transitório, só este é permanente” (In: JASPERS, Karl.
Introdução ao Pensamento Filosófico. São Paulo: Cultrix, 1971).
99
HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade.
100
Os “portadores” são a “fluidez, heterogeneidade, personalidade e fugacidade das construções
simbólicas e das identidades individuais e simbólicas” (DOMINGUES, José Maurício. Sociologia
e Modernidade: para entender a sociedade contemporânea, p. 21), elementos que favoreceram
a implantação cultural do pensamento pós-kantiano.
49

O paradigma da pós-modernidade instala, portanto, uma série de crises, que


altera vários campos da sociedade, ou pelo menos faz-nos refletir sobre que
direção a sociedade caminha e sobre que bases. Por exemplo, as instituições
tradicionais têm sido reavaliadas.101 Como veremos mais adiante, com a forte
urbanização e a industrialização, as pessoas foram deslocadas, as famílias
fragmentadas e, consequentemente, os elos que forneciam estrutura ao tecido
social se desfizeram.102
Se a Revolução Industrial foi o agente que levou o pensamento iluminista a
se transformar em uma realidade na sociedade moderna, a urbanização e o
advento da mídia de massa foram os dois principais agentes que levaram o
pensamento pós-kantiano a se transformar em uma realidade cultural na sociedade
pós-moderna.103 Por meio destes dois fatores, a “Crítica da Razão Pura”, de Kant,
tornou-se bem mais do que uma crítica filosófica, mas um estilo de vida.
Assim, a pós-modernidade pode ser vista como a ruptura com as
metanarrativas. O conceito de totalidade é desfeito, não sendo mais a forma de ler
e explicar o mundo. Na verdade, ele deixa de ser o universal metafísico da
unidade, constância, regularidade, para tornar-se a diversidade, a fragmentaridade,
o efêmero, ou, na linguagem Foucault, a descontinuidade.104 Não sendo mais a
totalidade, a razão global, o contexto, ganha lugar o intertexto, o entrecruzamento
de vários mundos e cosmovisões.105

101
Segundo Giddens, a tradição consiste numa criação da modernidade (In: GIDDENS, Anthony.
Mundo em Descontrole: o que a globalização está fazendo de nós, 2003. p. 50. Esta concepção
cedeu lugar a um “sujeito fragmentado”, em que a tradição não faz mais parte de suas principais
preocupações. (In: HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro:
DP & A Editora, 2004. p. 47.
102
Afirma ZAJDSNAJDER: “Os argumentos e as operações da Desconstrução foram postos frente
a pretensões discurtivas. Afirmo, porém, que a desconstrução é um pensar-agir. Portanto, ocorre
uma desconstrução de natureza prática, institucional – aqueles em que a vida se dá no mundo
moderno: o indivíduo, a família, as organizações de negócios e do ócio, e o público comum.” (In:
Ibid., p. 43 passim).
103
GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., p. 62.
104
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 378.
105
SALINAS, Daniel & ESCOBAR, Samuel. Pós-modernidade. Novos desafios à fé cristã.
1999, p.24.
50

Segundo Lyotard, a pós-modernidade pode ser caracterizada por uma


sociedade sem fundamentos antropológicos, do tipo newtoniano, como por
exemplo o estruturalismo ou teoria dos sistemas, e cada vez mais ancorada no
pragmatismo “das partículas de linguagem”.106 Nesse sentido, afirmamos que o
conhecimento científico torna-se uma espécie de discurso relativo.107
Foi através da falência da razão, como centro do universo moderno, que
Lyotard formulou suas teses em A Condição Pós-Moderna, pois

[...] a falência das grandes narrativas da


modernidade, que explicavam e ordenavam o presente e
apontavam para bonanças no futuro, mostrou a agonia
das grandes produções de sentido que associavam
progresso, revolução e auto-realização.108

Por isso que Lyotard contempla a pós-modernidade como uma cultura


vazada de parcialidade, superficialidade e provisoriedade. Princípios e fundações
já não são mais representações definidas, pois desaparece o modelo, o padrão, e
situa-se o plural, o múltiplo.
Na verdade, a modernidade modificou profundamente a face do mundo
através de seus avanços materiais, tecnológicos, científicos, culturais e religiosos,
a pós-modernidade, da mesma forma, tem produzido mudanças profundas na
estrutura social e urbana, nos conceitos estéticos e culturais, na configuração do
humano como novo sujeito, no conceito de linguagem, tendo a mídia como seu
grande agente transformador, sem falar nas transformações religiosas, tendo como
nosso foco de reflexão as questões eclesiais, soteriológicas, querigmáticas e éticas.

106
LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Rio de Janeiro: José Olympio Editora.
2004, p. 16.
107
“Por ora, contentemo-nos com saber que o pós contém um des – um princípio esvaziador
diluidor. O pos-modernismo desenche, desfaz princípios, regras, valores, práticas, realidades.” (In:
SANTOS, Jair Ferreira, op. cit., p. 18).
108
FRIDMAN, Luis Carlos, op. cit., p. 43.
51

1.2.2
Dimensão Sociocultural

Os pressupostos do Iluminismo influenciaram estruturalmente a construção


da modernidade. No entanto, o Iluminismo, enquanto fenômeno filosófico, foi
tremendamente questionado e abalado desde o final do século XVIII, quando Kant
lançou a Crítica da Razão Pura (1781).109 O teólogo e filósofo protestante
Ricardo Gouvêa, analisando a obra de Kant, afirma que “o racionalismo – traço
fundamental da modernidade – começou a agonizar quando Kant pôs um fim na
epistemologia de homens como Descartes e Locke”.110 O próprio Kant disse que
“até mesmo o nosso conhecimento empírico é construído através do que
recebemos por impressões da nossa própria capacidade de adquirir
conhecimento”.111
A pós-modernidade, como fenômeno cultural, surge no momento em que
acontece um tremendo esvaziamento de significado religioso-tradicional. Ou seja,
a religião herdada já não respondia mais às necessidades do novo homem. Houve
uma insatisfação ou vazio existencial. Começando pela estética e alcançando
diversas áreas, a pós-modernidade tornou-se parte efetiva da experiência cultural,
filosófica e política. Lamentavelmente toda a proposta do período da razão não foi
suficiente para “evitar que duas Guerras Mundiais destruíssem a Europa e
abalassem o otimismo modernista”.112 É sempre tarefa difícil precisar data para
esses movimentos socioculturais. No entanto, tem-se afirmado que, com “as
mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde
1959, quando, por convenção se encerra o modernismo (1900-1950).”113 Podemos
afirmar que Jacques Derrida, Michel Foucault e Richard Rorty são grandes vultos
do pensamento pós-moderno.114

109
A obra de Kant pode ser pesquisada nas referências: a) KANT, Immanuel. Critique of Pure
Reason. Garden City: Doubleday, 1966. b) KANT, Immanuel. Crítica de la Razon Pura. Buenos
Aires: Losada, 1966. Disponível em: <http://www.arts.cuhk.edu.hk/Philosophy/Kant/cpr/00toc.htm#cpr-
toc-A>.
110
GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., p. 61.
111
KANT, Immanuel, loc. cit.
112
CÉSAR, Clinton Lenz, op. cit., p. 21.
113
SANTOS, Jair Ferreira, op. cit., p. 8.
114
Pensam assim: GRENZ, Stanley. Pós-MODERNISMO: um guia para entender a filosofia do
nosso tempo, 1997. Capítulo VI; SALINAS, Daniel & ESCOBAR, Samuel, op. cit., Capítulo II; e
VEITH JR, Gene Edward, op. cit., p. 7.
52

O desenvolvimento técnico-científico na pós-modernidade, impulsionado


pela terceira revolução industrial, chamada também de Terceira Onda, tendo as
ciências da informática e da comunicação sua grande âncora, alterou
completamente o nosso modus vivendi e nossa compreensão de espaço.115 Quando
falamos do poder da mídia, percebemos claramente que esta deixou sua função de
meio para ocupar o papel de ator principal, exercendo assim influência em
praticamente todos os setores da sociedade, desde a política até a formação da
imagem do ser pós-moderno.
A pós-modernidade confere um novo sentido à linguagem. Nas águas da
lingüística e da filosofia, Jacques Derrida, Michel Foucault, Richard Rorty e
Stanley Fish, por exemplo, são significativos representantes da
“desconstrução”.116 A grande característica do pós-moderno é exatamente a
maneira como se passa a entender a leitura. Toda forma de expressão e
organização de mundo é texto. Todo meio e modo de representação é linguagem.
A linguagem, para muitos, tornou-se a lente através da qual se pode
conhecer, bem como parte das ciências humanas vai afirmar que a mente humana
é incapaz de aceder à realidade. Uma paisagem, uma pintura, um espaço vivido,
são texto e intertexto, formas de linguagem. Tudo libera a linguagem do horizonte
estrito da razão e a aproxima do símbolo e do semiológico. A cultura é
caracterizada como processo de leitura, de linguagem, tendo o homem que
formular novos signos com suas representações.117
Gilles Lipovetsky faz uma definição bastante elucidativa, que nos ajuda a
perceber as novas faces da sociedade pós-moderna:

115
PUDDEFOOT, J. God and The Mind Machine. Computers, Artificial Intelligence and the
Human Soul. Londres: SPCK, 1996.
116
Ibidem, p. 27.
117
LYOTARD, Jean-François, op. cit., p. 15 passim. O autor trabalha a idéia de jogos de
linguagem como metodologia de aferição da verdade.
53

A sociedade pós-moderna é a sociedade em que


reina a indiferença de massa, em que domina o
sentimento de saciedade e de estagnação, em que a
autonomia privada é óbvia, em que o novo é acolhido do
mesmo modo que o antigo, em que a inovação se
banalizou, em que o futuro deixou de ser assimilado a
um progresso inelutável. A sociedade moderna era
conquistadora, crente no futuro, na ciência e na técnica:
institui-se em ruptura com as hierarquias de sangue e a
soberania sacralizada, com as tradições e os
particularismos, em nome do universal, da razão e da
revolução. Esse tempo torna-se frágil diante de nossos
olhos... A confiança e fé no futuro dissolvem-se, no
amanhã radioso da revolução e do progresso já ninguém
acredita, doravante o que se quer é viver já, aqui e agora,
ser-se jovem em vez de forjar o homem novo...; já
nenhuma ideologia política é capaz de inflamar
multidões, a sociedade pós-moderna já não tem ídolos
nem tabus, já não possui qualquer imagem gloriosa de si
própria ou projeto histórico mobilizador.118

O teólogo Ricardo Gondim traz também uma preciosa contribuição quanto à


tentativa de definição da pós-modernidade, citando inclusive o grande historiador
Arnold Tonybee:

118
LIPOVETSKY, op. cit., p. 11. Creio que para ulteriores consultas, podemos citar aqui mais
algumas obras importantes sobre a pós-modernidade, sobretudo, com destaque para uma de maiores
marcas, a pluralização: LIBÂNIO, João Batista, (In: CALIMAN, Cleto. A Sedução do Sagrado: o
fenômeno religioso na virada do milênio), p. 63. Cf. COMBLIN, José. O Cristianismo no limiar
do terceiro século (In: Ibidem, p. 148. AZEVEDO, Marcello S.J. Entroncamentos e
Entrechoques. Vivendo a Fé em um Mundo Plural, 1991. p. 115 passim. CAPRA, Fritjof. O
Ponto de Mutação. A Ciência, a Sociedade e a Cultura Emergente. São Paulo: Ed. Cultrix. Em todo
o livro o autor procura mostrar, de forma lúcida e extraordinariamente competente, a questão das
mudanças de paradigmas que foram ocorrendo ao longo dos séculos, razão pela qual temos hoje
uma nova visão de mundo. LËVY, Pierre. O Que é Virtual?. São Paulo: Editora 34, 1996, pp. 54-
55. SANTAELLA, Lucia. Corpo e Comunicação: sintomas da cultura, 2004, p. 63. Id., Os Tempos
Hipermodernos. São Paulo: Barcarolla. 2004, p. 19. KUMAR, Krishan. Da Sociedade Pós-
Industrial à Pós-Moderna: Novas Teorias Sobre o Mundo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor. 1997, p. 90. Id., Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós,
2003. p. 50.
54

Um dos primeiros acadêmicos a usar a expressão pós-


modernidade foi sir Arnold Tonybee. Em 1940, envolvido
na pesquisa sobre a ascensão e queda das grandes
civilizações, descobriu que antes de se desintregarem, elas
sofriam o que ele chamou de “ruptura da alma”. Antes de
serem esmagadas por outras civilizações, cometiam uma
espécie de suicídio. Tonybee percebeu alguns sintomas que
anunciavam a desintegração das sociedades. Primeiro, um
senso de abandono, uma espécie de acomodação que aceita,
sem relutar, um fatalismo cínico. Desaparece o idealismo.
Depois há um fluxo, as sociedades se abandonam ao vento
das circunstâncias, aos modismos. Acabam-se as
mobilizações. Cresce a culpa, pelo abandono moral. O
último estágio é a promiscuidade (não só no sentido sexual)
como aceitação de tudo, um ecletismo e uma tolerância
acrítica da ética. Assim, no fim da Segunda Guerra Mundial,
ele concluiu que em poucos anos a Modernidade entraria em
colapso. Hoje, ela se contorce em convulsão. O progresso do
conhecimento humano não levou a nada. A ciência ao
mesmo tempo em que oferece melhores condições de vida,
arrasa o ecossistema, e os sistemas ideológicos ruíram em
1989 com a queda do Muro de Berlim. Esse fracasso
comunista solidificou a suspeita de que a Modernidade
realmente findava.119

1.2.3
Dimensão Econômica

A pós-modernidade exerce uma espécie de compressão sobre a dimensão de


tempo e de espaço, resultando na força de um capitalismo cada vez mais
globalizado, sem raízes geográficas. O capitalismo não tem qualquer dificuldade
na dinâmica das mudanças espaciais. Trata-se, na verdade, de um “capital-
peregrino”, instantâneo, volátil, visto que ocupa o espaço virtual.120 Como
conseqüência, países ficam completamente vulneráveis às migrações econômicas,
sobretudo países com economias mais frágeis.

119
GONDIM, Ricardo. Fim de Milênio: Os Perigos e Desafios da Pós-modernidade na Igreja, op. cit.,
p. 23. Ver também: PARSONS, Talcot. O Sistema da Sociedade Moderna. São Paulo: Pioneira,
1974. Capítulo VI.
120
FRIDMAN, Luis Carlos, p. 19.
55

Na verdade, isso traz conseqüências sociais devastadoras, uma vez que


eventos locais são determinados ou modelados por acontecimentos absolutamente
distantes. Dito de outra maneira, tal sistema, à semelhança da modernidade, cria
seus excluídos, os sobrantes, os considerados “refugos globais”, visto que ficam
de fora da cadeia produtiva e, portanto, consumidora. “Os novos apartheids
sociais são constituídos em nome da paz e das ilhas de tranqüilidade”.121
Como vimos na dimensão sociocultural, o poder da mídia é que processa
todo o desenvolvimento capitalista, criando uma sociedade imagética. Tal poder
transforma tudo em mercadoria, o saber, experiências, objeto, conduzindo assim
as pessoas ao consumismo, fruto das necessidades criadas, antes não existentes,
dos desejos suscitados pelos fortes e onipresentes meios de comunicação, ou seja,
“a propaganda e a mídia são fundamentais na criação das novas necessidades, com
ênfase nos aspectos simbólicos que promovem a ‘estetização’ da economia”.122
Há uma falsificação das relações, dos sonhos, dos ideais, do próprio mundo, onde
o homem não passa de mero espectador, elemento passivo pelo poder da
imagem.123
A cultura de imagem cria uma sociedade do espetáculo, onde os desejos das
pessoas são imiscuídos nos modelos imagéticos da comunicação de massa.
Debord faz a seguinte declaração:

[...] quanto mais ele (homem) contempla, menos


vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens
dominantes da necessidade, menos compreende sua
própria existência e seu próprio desejo [...]. É por isso
que o espectador não se sente em casa em lugar algum,
pois o espetáculo está em toda parte.124

É interessante e importante perceber como a questão econômica exerce forte


influência sobre o social, o cultural, o religioso e o humano. A pós-modernidade é
regida pelo poder econômico, pelo neoliberalismo, com suas leis de mercado, que,
ao contrário do otimismo liberal, conseqüentemente da modernidade, proclama
que o sujeito do processo histórico não é o homem, mas sim o mercado.125

121
Ibidem, p. 20.
122
Ibidem, p. 30.
123
Cf. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto. 1997, p. 23.
124
Ibidem, p. 24.
125
HINKELAMMERT, F. Sacrificios humanos y sociedad occidental: Lucifer y la Bestia, San
José (Costa Rica): DEI, 1991. p.34.
56

Então, no nascedouro da pós-modernidade descobre-se que o ser humano


está destinado ao consumismo, mesmo que seja de forma diferente da
modernidade. Tal consumismo abrange cada vez mais objetos, informações,
imagens, desportos, viagens, formação, relações, música, academias, médicos,
religião etc.
Nesse sentido, a visão do homem é completamente diminuída, cabendo-nos
apenas proteger o mercado, deixando que ele siga seu curso, pois a “liberdade
humana” está em seu sucesso. Decorre daí a necessidade de projetar esperança
para o ser humano. O neoliberalismo é o “caminho” para tal, exigindo, portanto,
fé no mercado. Ou seja, o mercado exige devoção e humildade, pois não há
dignidade humana fora dele. Logo, fora do mercado não há salvação.126
Milton Friedman, grande teórico do neoliberalismo, diz o seguinte:

De fato, uma objeção importante levantada contra


a economia livre consiste precisamente no fato de que
ela desempenha essa tarefa muito bem. Ela dá às pessoas
o que elas querem e não o que um grupo particular acha
que devemos querer. Subjacente à maior parte dos
argumentos contra o mercado livre está a ausência da
crença (fé) na liberdade como tal.127

Quando se fala em fé no mercado, trata-se, na verdade, de um argumento


tautológico, onde a razão cedeu à fé, no centro dessa “ciência” econômica.128 A
“terra prometida” é oferecida ao ser humano, na medida em que ele compreende e
aceita definitivamente a vitória do neoliberalismo, que atua sem qualquer
intervenção do Estado, que mesmo à custa de muito sacrifício, o homem chegará à
“terra prometida”, que nada mais é do que a vida numa economia de livre
mercado. O “deus” do socialismo morreu, mas o “deus” do mercado livre está
ativo e age eficientemente. Jung Mo Sung afirma que toda essa esperança, a partir
das teorias neoliberais, “é uma esperança religiosa”.129 Ele ainda diz que,

126
A Revista Internacional de Teologia Concilium publicou um número dedicado a este tema: Fora
do mercado não há salvação?, Petrópolis: Vozes, n.270, 1997/2.
127
FRIDMAN, Milton, op. cit., p.27.
128
Id., Deus numa economia sem coração, p. 58. O autor afirma que, na verdade, os especialistas
neoliberais não estão fazendo economia, quando falam de fé no mercado, mas sim teologia.
129
Ibidem, p. 62.
57

[...] é a esperança de que os nossos problemas


sociais e econômicos sejam resolvidos pela intervenção
mágica do mercado, sem nenhuma intervenção
consciente dos sujeitos históricos humanos. Caberia a
nós, seres humanos, a única missão de combater o
Estado para que o mercado possa cumprir livremente o
seu papel de nos conduzir a uma nova sociedade.130

Como afirma Enrique Dussel, caracterizando o fetiche e seu processo de


fetichização do mercado, “o sistema fetichizado exige sacrifícios (...), o ‘deus’
fetiche exige vítimas cultuais”.131 Num mundo regido pelo mercado, o valor
humano não está em sua história, seus valores intrínsecos, seu ethos constitutivo,
mas sim, no seu poder de compra e de acumular bens. Ou seja, a lógica do
mercado fundamenta-se na eficiência quantitativa, na performance. Perde-se a
qualidade de vida a partir do ser, e “se ganha” a partir do ter.
No entanto, no fulcro desse paradigma consumista, encontramos padrões
elevadíssimos de consumo que utilizam os recursos naturais de maneira
insuportável, de forma insustentável. Não há uma consciência ecológica
integradora da natureza, mas uma forte consciência predatória, fruto dos interesses
empresariais e, porque não dizer, nacionais.132

1.2.4
Dimensão Antropológica

Lyotard considerou a chegada da pós-modernidade ligada ao surgimento de


uma sociedade pós-industrial, na qual o conhecimento tornara-se a principal força
econômica da produção, tratando a pós-modernidade como uma mudança geral na
condição humana.

130
Ibidem.
131
DUSSEL, Enrique. Para uma ética da libertação latino-americana, vol. V (Uma filosofia da
religião antifetichista). São Paulo: Loyola-Unimep, 1981. p. 54.
132
ZAJDSZNAJDER, Luciano, op. cit., p. 38.
58

Em seu livro A Condição Pós-moderna, Lyotard anunciou o eclipse de todas


as narrativas grandiosas. Aquela cuja morte ele procurava garantir acima de tudo
era, claro, a do socialismo clássico, mas também incluiu a redenção cristã, o
progresso iluminista, o espírito hegeliano, a unidade romântica, o racismo nazista
e o equilíbrio econômico.133
Uma face da pós-modernidade afirma o antropocentrismo, na qual o homem
traz dentro de si todas as potencialidades para resolver todos os seus problemas.
Na verdade, quando o homem pensa e age dessa forma, afasta-se cada vez mais de
sua própria dignidade, pois se distancia cada vez mais da imagem de Deus em sua
existência.134 Concluímos, então, que o homem pós-moderno vive uma das mais
graves crises existenciais que diz respeito às questões fundantes do seu próprio
ethos135 estruturador, ou seja, as relações humanas, em seus diversos setores:
sociais, culturais, econômicos e religiosos.
Nas palavras do Frei Nilo, “a crise de hoje, antes de ser uma crise de
paradigmas, revela-se uma crise que nos desestabiliza em nossa base mais
profunda, o ethos”.136 Em outras palavras, vive-se, na pós-modernidade, a crise do
humano em seu sentido mais profundo. Se na modernidade o homem era visto
como sujeito da história, na pós-modernidade ele é visto como objeto do mercado.
Inversamente ao modelo moderno que apresentava um homem triunfalista e
antropocêntrico, na pós-modernidade desenvolve-se uma visão altamente
pessimista do ser humano:

133
THOMÉ, Nilson. Considerações sobre modernidade, pós-modernidade e globalização nos
fundamentos históricos da educação no contestado. O autor é professor de História de Santa
Catarina e de História do Contestado na Universidade do Contestado, de Caçador (SC). Técnico
em Magistério, Licenciado em História, Especialista em História do Brasil, Mestre em Educação, e
Doutorando em Educação (História, Filosofia e Educação) na FE/Unicamp. Historiador e Diretor
do Museu Histórico e Antropológico da Região do Contestado, de Caçador (SC).
134
COSTA, Hermisten Maia Pereira, op. cit., pp. 68,69.
135
Ethos – Em grego, significa a toca do animal ou a casa humana; conjunto de princípios que
regem, transculturalmente, o comportamento humano para que seja realmente humano no sentido
de ser consciente, livre e responsável; o ethos constrói pessoal e socialmente o habitat humano. In:
BOFF, Leonardo. Saber Cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra. p.195.
136
AGOSTINI, Nilo, op. cit., p. 20.
59

Os poderosos sistemas filosóficos do passado que


têm alicerçado fortes ideologias de dominação, cedem
lugar a um tipo de pensamento “débil”, inseguro,
aproximativo, conjetural e tolerante com outros tipos de
137
pensamento também contingentes e aproximativos.

Há, na verdade, uma fé antropocentralizada e, conseqüentemente, uma fé em


todo projeto individualista. Resultado desse processo individualista, o homem
pós-moderno torna-se cada vez menos ideológico, para tornar-se cada vez mais
pragmático, utilitarista.
Como resultado direto do individualismo na pós-modernidade, há um
acentuado deslocamento da objetividade humana para a sua subjetividade. São as
imagens de subjetividade. Tais imagens são hoje heteróclitas, descentradas,
multiformes, instáveis, subversivas. O que assistimos, através da indústria de
imagens, é que o fundamento do “eu” mais profundo, são “as imagens do corpo, o
corpo deificado, fetichizado, modelizado como ideal a ser atingido em
consonância com o cumprimento da promessa de uma felicidade sem máculas”.138
Isso significa que a identidade do ser humano está deteriorada pela imagem do
corpo glorificado.
A cultura midiática sonha os nossos sonhos e nós somos sonhados pelos
ícones dessa cultura. Na verdade, as revistas, os cartazes, a publicidade em geral,
sonham quem devemos ser. E essa força subliminar exerce um poder tão forte
sobre os indivíduos que, mesmo conscientes de tal força, o inconsciente é afetado.
O vírus da imagem tem contaminado o homem de tal maneira que, essa olimpíada
rumo à juventude e à perfeição, “é hoje uma maratona que alcança jovens e idosos
de diversas classes sociais, mas estes não conseguem ver o pódio, porque se trata
de uma corrida infinita”.139 O resultado não poderia ser outro, senão o vazio
existencial.

137
Cf. RUBIO, Garcia Afonsio, op. cit., Sobre o pensamento “débil”, cf. G. Vattimo – P. A.
Rovatti (org.), El pensiero debole. Milão: Feltrinelli, 1992.
138
SANTAELLA, Lucia. Corpo e Comunicação. Sintoma da cultura. São Paulo, Paulus. 2004,
pp. 125-126.
139
SANT’ANNA, Dense Bernuzzi. Corpos de passagem. Ensayos sobre a subjetividade
contemporânea. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. pp. 66-70.
60

1.2.5
Dimensão Religiosa

Uma das principais conseqüências da forma de pensar pós-moderna – e por


que não dizer pós-kantiana – foi a substituição do objetivismo racional pelo
subjetivismo relativo.
Na pós-modernidade, em lugar dos fundamentos e das metanarrativas, agora se
postula o conhecimento “contextual”, “pragmático”, “funcional” e “relativista”. Dessa
perspectiva, é fácil compreender por que os pós-modernos optam pelo pluralismo e o
relativismo, em que a verdade se torna “aquilo que é vantajoso crer”.
A pós-modernidade questionou radicalmente a grande narrativa, seja do
Iluminismo, seja da revelação, seja da ciência. Para os pós-modernos, cabe valorizar as
narrativas menores como meio didático-pedagógico de transmissão da fé. As
metanarrativas são rejeitadas pelo pós-modernismo por serem autoritárias, pois impõem
o seu próprio significado de forma fascista.140 Nas palavras de Alexander, “se alguém
está convencido de que a sua posição é a correta, tem inevitavelmente a tentação de
controlar ou destruir os que não estejam de acordo”.141 Mas o que esta abordagem tem
a ver com o cristianismo e com a teologia? Conforme Middletone e Walsh,

[...] o problema, do ponto de vista pós-moderno, é que


as Escrituras, em que os cristãos afirmam basear a sua fé,
constituem uma metanarrativa com pretensões universais. O
cristianismo está inegavelmente enraizado numa
metanarrativa que pretende contar a verdadeira história do
mundo, desde a criação até o fim, da origem à
142
consumação.

Para os mesmos autores, a hipótese pós-moderna das metanarrativas tem sentido


e baseia-se na observação histórica, pois a história bíblica tem sido freqüentemente
usada para oprimir e excluir aqueles que são considerados infiéis ou hereges.

140
SALINAS, Daniel & ESCOBAR, Samuel, op. cit. p. 31.
141
ALEXANDER, John F. The Secular Squeeze, p. 163.
142
MIDDLETON, J. R. & WALSH, B. J. Truth is Stranger Than It Used to Be, p. 76.
61

Na pós-modernidade, a hermenêutica bíblica ganha novos contornos, na qual


o leitor passa a ocupar o papel de sujeito. É a partir dele que a experiência da
revelação acontece. Desse modo, a leitura da Bíblia não tem mais que se resignar
à aceitação passiva, liberalista e extrínseca de saber o que for que o revelador
disse; agora se pode perguntar, ademais, como foi revelado ao revelador, pois só
assim pode, na verdade, apropriar-se o significado vivo da revelação.143 Trata-se
de uma nova hermenêutica. Dito de outra forma, seria a superação do positivismo
da revelação. Juan Luis Segundo denominou tal processo de “aprender a
aprender”144, ou seja, tornar todo processo de aprendizagem através da
experiência, sendo, na verdade, fruto da nova fenomenologia do pensamento
atual.145
Cremos que a tarefa da teologia, hoje, é a de “manter viva e atuante a
experiência da revelação”.146 Queiruga afirma que “é preciso retraduzir o conjunto
da teologia dentro do novo mundo, criado a partir da ruptura da Modernidade”.147
O que não podemos é perder a essência do que a teologia carrega e,
conseqüentemente, a identidade do cristianismo. A teologia precisa responder aos
mais diversos interlocutores do nosso tempo. Sem jogar fora os nossos elementos
fundantes, provindos da tradição, somos desafiados, então, a atualizá-los, pois não
há respostas prontas ou pré-fabricadas pela teologia para todas as questões da vida
atual.
Falando de outra maneira, podemos perguntar: como a cultura pós-moderna
consegue, hoje, descobrir valor significativo na Revelação? Podemos responder
dizendo que o papel da teologia (Revelação Sistematizada) é questionar a cultura
na qual está inserida, de forma profética, querigmática e escatológica. Se, por um
lado, a cultura pós-moderna questiona a fé, por outro, o desafio da fé é tornar-se
questionadora da cultura, jamais perdendo sua vocação, seu conteúdo e sua
identidade.

143
QUEIRUGA, Andrés Torres, op. cit., p. 51.
144
SEGUNDO, Juan Luis, op. cit., (Cf. na Ed. Espanhola: pp. 134, 176, 210, 242, 347, 373 e 375).
145
QUEIRUGA, Andrés Torres, op. cit. p. 51.
146
Ibidem, p. 62.
147
Ibidem, p. 62.
62

Há uma palavra muito elucidativa de Queiruga com relação ao fato de que a


Igreja – Católica ou Protestante148 - não tem mais o monopólio do conhecimento
absoluto de todas as coisas e em todas as áreas. Ele afirma:

A Igreja não renuncia assim à sua própria


identidade. Ela reconhece, em vez disso, que não lhe
compete o monopólio de tudo, mas sim, de maneira mais
simples e modesta, sua contribuição específica. Ela
permanece sendo “mestra em humanidade” (Paulo VI),
mas apenas em seu campo próprio, à medida que
reconhece serem os demais também mestres no campo
deles. Em nosso mundo irreversivelmente plural, se a
Igreja quer, de verdade, evangelizar, precisa, por sua vez,
deixar-se “evangelizar” por aqueles valores que, ínsitos
na criação, são hoje descobertos por outros meios. Ela é,
pois, mestra enquanto também é discípula. A isso
aludem a categoria teológica da “profecia externa” e a
convocação conciliar para que se escutem os “sinais dos
tempos.”149

Portanto, a grande questão, na pós-modernidade, quanto à dimensão


religiosa é que a Igreja – Católica ou Protestante - perdeu seu espaço de
monopólio sagrado, tendo que conviver com as múltiplas expressões religiosas.
Vivemos o tempo do desenvolvimento técnico-científico com forte ênfase na
experiência existencial, principalmente do tipo psicologizada e sentimentalizada,
determinando não só a qualidade, mas também a natureza do espaço agora
ocupado por essa nova cultura. Segundo Libânio, “há uma desmaterialização do
espaço no mundo urbano”.150 A cultura moderna e, mais acentuadamente, a pós-
moderna, são pluriespaciais, sendo totalmente definidas pelos interesses e
escolhas dos indivíduos. Acontece uma fragmentação dos espaços tradicionais,
151
como Igreja, família etc.

148
Grifo nosso, acrescendo a Igreja Protestante, pois concordo com o autor.
149
Ibidem, pp. 58,59.
150
LIBANIO, João Batista. As Lógicas da Cidade. O impacto sobre a fé e sob o impacto da fé,
p. 32.
151
FERNANDES, Ruben César. Os Vários Sistemas Religiosos em Face do Impacto da
Modernidade. Maria Clara L. Bingemer (Org.). O Impacto da Modernidade sobre a Religião.
São Paulo: Ed. Loyola., pp. 253-272. (Todo o artigo trata dessa questão).
63

Verifica-se uma deificação do mercado com sua mistificação sisífica das


promessas de “felicidade e realização pessoal”, baseadas na acumulação.152 A
religião foi satelizada e pulverizada,153 o que provocou uma completa mudança de
eixo, ou seja, um deslocamento da “instituição religiosa”, como produtora de
sentido, esquemas e parâmetros para o fiel, para o sujeito da experiência religiosa.
O indivíduo é que cria seu sistema próprio. Há, como vimos, na dimensão
antropológica, uma nova caracterização do sujeito, com implicações sérias em sua
identidade. Surge, então, a crise da plausibilidade religiosa, sobretudo das
instituições religiosas, tidas por tradicionais.154
Disso decorrem duas verdades: a primeira é que o centro das atenções, na
pós-modernidade, é o homem e a segunda é que a fé, em grande parte, vive sob as
influências do poder econômico. Ela tornou-se mais um produto a ser
comercializado, consumido, buscando satisfazer sempre as necessidades do
“cliente”. A subjetividade da cultura pós-moderna, regida pelo poder econômico,
relativiza os valores cristãos, pois importa cada um com a sua fé, seja qual for.
O religioso pós-moderno carrega em si uma abertura, quase que absoluta,
para as mais diversas formas de experimentar e viver a realidade do Absoluto. O
grande perigo dessa prática religiosa é tornar-se esotérica, sincrética,
descomprometida, cósmica e meramente naturalista. Portanto, cabe aqui mais uma
palavra do teólogo João Batista Libânio sobre o pano de fundo do fenômeno
religioso atual, sobretudo, no que podemos chamar de volta ao sagrado:

152
Este conceito é puramente baseado na Teologia da Prosperidade, corrente teológica que
preconiza que, pela morte de Jesus Cristo, todo crente tem o direito de reivindicar e tomar posse de
toda sorte de bênçãos, não podendo aceitar nenhum tipo de enfermidade; a prosperidade material é
o fundamento dessa teologia. Citamos, a título de informação, alguns teólogos protestantes que
têm abordado o assunto: Ricardo Gondim. O Evangelho da Nova Era. São Paulo: Abba. 1993.
Alen B. Pieratt. O Evangelho da Prosperidade: Análise e Resposta. São Paulo: Vida Nova. 1993.
Paulo Romeiro. Super Crentes. O Evangelho segundo Kenneth Hagin. Valnice Milhomens e
os Profetas da Prosperidade. Kenneth Hagin é americano e é o precursor de tal vertente
teológica, com farta literatura sobre o assunto.
153
STOTT, John R.W. O Cristão em uma Sociedade não Cristã. Rio de Janeiro: Ed. VINDE,
pp. 71-74.
154
SOLONCA, Paulo. Inovando uma Igreja Tradicional. J. Scott Horrece (Editor), p. 119
passim.
64

O surto do sagrado é uma outra face da secularização


da sociedade moderna e pós-moderna e não sua negação [...].
Prossegue na linha da individualização, da subjetivação, da
privatização da religião na modernidade [...] as experiências
religiosas vinculadas a uma Instituição, no caso do mundo
ocidental, ao Cristianismo, quer na sua forma católica, quer
protestante, perdem plausibilidade. Já não são as Igrejas ou
religiões institucionais que criam necessariamente o espaço
da experiência religiosa. Antes, pelo contrário, elas perdem
força e deixam o sagrado solto, entregue às vivências
pessoais, individuais em processo crescente de privatização
155
e individualização.

Nessa volta ao sagrado, vive-se uma espécie de doping religioso-tecnicista,


com matizes totalmente pós-modernas que recebem ainda uma forte influência
oriental a qual, diga-se de passagem, bem acolhida e depurada, inspira-nos por
demais. Entretanto, não é o que temos assistido. O ocidente vive uma
“orientalização religiosa”, assim como o oriente vive uma “ocidentalização
econômica”. Nessa perspectiva religiosa, o que ganha grandeza e valor é o fato de
que cada pessoa tem a plena liberdade de construir sua própria espiritualidade. O
importante é o que funciona. Vive-se um grande mercado ou shopping religioso
com suas múltiplas opções ou, numa outra imagem, não importa se a
espiritualidade é do tipo à la carte ou bufê. A satisfação tem mais valor do que o
conteúdo. É certo que opções de escolha sempre existiram, mas nunca com tanta
intensidade. A sociedade tradicional, assim, deixa de existir e dá lugar a uma
espécie de sociedade-supermercado, na qual valores tidos como absolutos são
relativizados.156
Outro aspecto igualmente sério desse contexto é que a religiosidade pós-
moderna tornou-se individualista, perdendo muito de sua dimensão
comunitária.157

155
Ibidem, In: CALIMAN Cleto (org.). A Sedução do Sagrado. O Fenômeno Religioso na
Virada do Milênio, p. 56.
156
MIRANDA, Mário de França. A Salvação Cristã na Modernidade. Maria Clara L. Bingemer
(Org.). O Impacto da Modernidade sobre a Religião. São Paulo: Ed. Loyola. 1992. Cf.
HARMS-WIEBE, Raymond Peter. Estrutura Criativa no contexto Metropolitano: Passos de
um Processo de Transformação. J. Scott Horrell (Editor). São Paulo: Ed. Vida Nova, p. 29 passim.
157
CARVALHO, José Jorge. Características do Fenômeno Religioso na Sociedade
Contemporânea. Maria Clara L. Bingemer (Org.). O Impacto da Modernidade sobre a
Religião. São Paulo: Ed. Loyola, p. 133 passim.
65

Toda essa “clientela” carece de um sentimento de pertença, de valor


comunitário, de integração, de solidariedade e de afetividade. Alberto Antoniazzi
classifica os períodos religiosos dos últimos séculos da seguinte forma:

1) uma primeira etapa da modernidade (séc. XVII-


XVIII) em que as Igrejas Cristãs, inclusive e em
primeiro lugar a Igreja Católica, são religiões de estado e
do Estado absolutista que impõe aos fiéis a religião do
rei (legalismo); 2) uma segunda etapa da modernidade,
que ocupa boa parte dos séculos XIX e XX (mas já inicia
na Revolução Francesa) - esta etapa é marcada,
sobretudo pelo confronto entre ideologias totalitárias
(fascismo, comunismo, mas também – embora
concedendo espaço às Igrejas na esfera da vida privada –
liberalismo), que tendem a marginalizar ou suprimir a
religião na sociedade; 3) uma terceira etapa, atual, em
que a religião estaria, por assim dizer, “solta”, não mais
presa ao Estado, nem condicionada pelo antagonismo
com ele, mas como que flutuante sobre as ondas da
sociedade, à deriva, “livre” de tomar seus rumos.158

Seguindo o mesmo rastro do fenômeno religioso atual, que traz grandes


desafios à reflexão teológica e exige dela respostas urgentes, a busca do sagrado
se perde em meio às ofertas de se experimentar as mais variadas realidades
religiosas a partir de uma perspectiva absurdamente consumista. A dimensão
transcendental desaparece. Na verdade, paradoxalmente, o atual sagrado promove
e concretiza uma profunda indiferença à realidade do próprio sagrado. Maria
Clara L. Bingemer diz que
No Brasil, hoje, assim como em muitas outras
partes do mundo ocidental moderno que se consideravam
libertas da opressão e do “ópio” da religião, explode de
novo, com intensa força, a sedução do Sagrado e do
Divino, des-reprimido e incontrolável. É o fenômeno das
chamadas “seitas” ou grupos religiosos alternativos,
novos movimentos religiosos que povoam o campo
religioso com novas e desconcertantes formas de
expressão, assustando e intrigando as Igrejas históricas
159
tradicionais, as Ciências Sociais e os bem-pensantes.

158
ANTONIAZZI, Alberto. O Sagrado e as Religiões no limiar do Terceiro Milênio. In:
CALIMAN, Cleto (org.). A Sedução do Sagrado. O Fenômeno Religioso na Virada do
Milênio. pp. 11-12.
159
BINGEMER, Maria Clara L. A Sedução do Sagrado. In: CALIMAN Cleto (org.). A Sedução
do Sagrado. O Fenômeno Religioso na Virada do Milênio, p. 79.
66

1.3
Pluralismo Religioso e Questões Crísticas

Numa sociedade de cultura pós-moderna, a teologia como “discurso” ou “estudo”


tende a perder significado e importância. A teologia se vê ameaçada com as mudanças
que incidem sobre ela e sobre a Igreja cristã. O dogma fundamental da modernidade,
que estabelecia o sujeito e a razão crítica como fontes de interpretação, conhecimento e
aceitação das verdades, acaba ruindo por excesso dessa mesma razão moderna. 160 Ela
sofisticou-se de tal maneira que foge do controle da razão normal das pessoas, deixando
em seu lugar a aceitação ou rejeição subjetiva, arbitrária. Quando se extrema a
racionalidade, cai-se na irracionalidade, pois, não sendo capaz de acompanhá-la, não
nos resta senão aceitá-la ou rejeitá-la também sem razão.
A teologia na pós-modernidade se arvora em instância competente na
interpretação e na explicação das verdades de fé com linguagem altamente técnica que
escapa da intelecção e experiência da maioria das pessoas. Um duplo efeito
contraditório se segue: ou uma rejeição compacta, sem aduzir razões, porque não se é
capaz de fazê-lo; ou uma aceitação, também ela sem razões, invocando a autoridade do
teólogo ou da instância teológica.161 Os desafios à teologia são vários.
O teólogo Hans Küng, ao analisar a teologia no paradigma pós-moderno, traz
uma série de esclarecimentos pertinentes. Ele escreve:

Somente uma teologia que se move no horizonte atual


da experiência, uma teologia rigorosamente científica e aberta
ao mundo e ao presente, pode justificar seu lugar na
universidade ao lado de outras ciências. Somente pode ser
verdadeiramente uma teologia que abandona decididamente a
mentalidade confessionalista de gueto, ainda bastante
difundida, e é capaz de unir uma ampla tolerância do extra-
eclesial, do religioso e do simplesmente humano com a
reflexão sobre o especificamente cristão.162

160
HORKHEIMER, M. La Crítica de La Razón Instrumental. Buenos Aires, SUR, 1973. p. 144.
161
LIBÂNIO, João Batista. Desafios da Pós-Modernidade à Teologia Fundamental: In:
TRASFERETTI, José & GONÇALVES, Paulo S. L. (org.). Teologia na Pós-Modernidade, p.
165.
162
KÜNG, Hans. Teología para la potmodernidad, p. 162.
67

Nessa nova configuração do religioso163 dentro de uma cultura altamente


pluralizada, vale afirmar que o pluralismo religioso164 é fruto direto do fenômeno
da globalização, uma vez que os meios de comunicação produzem, por um lado,
uma virtual aproximação e, por outro lado, uma real aproximação entre os mais
variados povos e, conseqüentemente, grupos religiosos.165 A globalização gera
uma relação crescente de interdependência entre diferentes partes do planeta,
numa troca sociocultural-religiosa.166
No cenário pós-moderno, nenhuma religião tem o direito de se achar a
correta e a verdadeira e as demais falsas, nem inferior. Significa afirmar que todas
têm o mesmo direito à verdade, resultado direto do pluralismo religioso, que
carrega em si mesmo a negação coerente de que nenhuma religião pode
apresentar-se absoluta.167 Nesse sentido, não só o conteúdo teológico, mas
também a práxis da Igreja, são tremendamente afetados por tal fenômeno.168
As grandes verdades do cristianismo estão sendo questionadas, tais como o
conceito de Revelação, de verdade e de moralidade e a experiência salvífica com a
pessoa de Jesus Cristo, para citar alguns. Cristo tem sérias dificuldades de
existência. Na verdade, ele sobrevive. Contrariando o Evangelho de João, Jesus
Cristo não é mais “a verdade, o caminho e a vida”, é simplesmente mais um
colocado ao lado de muitos outros.169

163
CASSIRER, Ernst (1972). Linguagem e Mito, 1998. p. 52.
164
Cf. LATOUCHE, S. En finir, une fois pour toutes, avec le développement, Le Monde
Diplomatique, 2001.
165
LACEY, H. Valores e atividade científica. São Paulo: Discurso Editorial. 1998, p. 32.
166
MIRANDA, Mário de França, op. cit., pp. 12,38. ROTA, G. Unicitá di Gesú Cristo e pluralità
delle religioni: per una teologia cristiana delle eligioni. Teologia 20 (2001), pp. 256-275. Para
compreender melhor o problema do pluralismo religioso e suas causas, cf. pp. 258-261. Cf.
EICHER, P. Pluralismo. In: Dicionários de Conceptos Teológicos. Vol. II. Barcelona: Herder,
1990, p. 237 passim; Cf. Também LIBÂNIO, J. B. As Lógicas da cidade. 2001, p. 113 passim.
Encontramos, nesses autores, uma compreensão clara do fenômeno da pluralidade.
167
MOTA, R. M. C. Notas para a leitura de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
Recife: Pimes Comunicações, nº 10, Universidade Federal de Pernambuco, 1975. p. 89.
168
GEFFRÉ, Claude. "Le pluralisme religieux et I' indifférentisme, ou le vrai défi de la théologie
chrétienne", Revue théologique de Louvain 31 (2000) 5.
169
O teólogo Marcelo Azevedo faz uma distinção entre pluralidade e pluralismo, afirmando:
“Pluralidade e pluralismo não são a mesma coisa. A primeira é da ordem factual e, portanto, da
constatação estática. O segundo é da ordem epistemológica e axiológica, portanto, do modo de ver
a realidade dos fatos e de aquilatar a projeção e o alcance dessa percepção dinâmica na própria
realidade plural”. AZEVEDO, Marcelo. Prólogo de TEIXEIRA, F. Diálogo de Pássaros, p. 11.
Cf. Id., Verdade cristã e pluralismo religioso. Rio de Janeiro: 2003, pp. 1,2.
68

A teologia deixa de ser objetiva e vai habitar a geografia da subjetividade,


do relativo, incluindo todos os seus conteúdos, inclusive e, sobretudo, a questão
cristológica, elemento fundante e estruturador da fé cristã. Ela sai de uma
estrutura monoblocular para uma rede pluralizada. Fala-se de teologias.170
Nossa cultura vive fortemente marcada por um pragmatismo, por uma
funcionalidade absurdamente emocional, incluindo o próprio religioso.171 Tal
pragmatismo tem provocado uma sociedade com a “cultura de consumo”, na qual
tudo se torna um bem de consumo, inclusive a religião. Nesta cultura, vale
usufruir e “curtir” sem se prender, pois, consumir é, sobretudo, conhecer sem
conhecer, no qual as escolhas são feitas pelos rótulos, pelas imagens.
Portanto, pluralismo religioso pode ser definido como a doutrina que ensina
que a salvação ou qualquer coisa que se entenda por salvação é alcançada pelas
pessoas através de uma quantidade enorme de condições e de meios, em várias
religiões.172 Faz-se necessário afirmar que a teologia das religiões tem como
interesse central os aspectos histórico-salvíficos, atingindo todas as religiões.173
Hoje já há, inclusive, uma mudança de expressão, passando de “teologia das
religiões” para “teologia do pluralismo religioso”. Todas as religiões possuem os
mesmos valores soteriológico, moral e espiritual.
Ao lado do pluralismo, há um parente próximo chamado relativismo. Todo
conhecimento é relativo. Tudo é relativo ao momento e à pessoa. Nesse sentido,
podemos dizer que todo ponto de vista é a vista de um ponto. Não há verdade
fechada. Ora, diante de tal constatação, o Cristianismo se vê pressionado em seus
pilares fundantes da fé cristã, que passam, portanto, pelos seus dogmas teologais.
No nosso caso específico, afeta a revelação de Deus através da qual o seu projeto
salvífico acontece única e definitivamente no mistério de Jesus Cristo, ou seja, há
um axioma fundamental do Cristianismo: Jesus é a revelação máxima da graça de
Deus, decisiva e definitiva, sendo, portanto, o único e universal salvador.174

170
BERMAN, Morris. El Reencantamiento del Mundo. Santiago. Cuatro Vientos, 1987, p. 41.
171
MIRANDA, Mário de França, op. cit p. 106. Não podemos deixar de falar que, mesmo com
todo esse pragmatismo pós-moderno, o sentimental, o afetivo, têm predominado em nossa cultura.
Agora é: “sinto, logo existo”.
172
IANNI, Octávio. Teorias da Globalização. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1999, p. 86.
173
BOUBLIK, V. Teologia delle religione. Roma: Studium, 1973, p. 41. Citado por DUPUIS.
Rumo a uma teologia, p. 17. Cf. CANTONE, C. Religião. In: LATOURELLE, R. e
FISICHELLA, R. (ed.) Dizionário di teologia Fondamentale, 1990, p. 919 passim.
174
D’COSTA, G. Theology of Religions Pluralism: The Challenge of Other Religions. Oxford,
basil Blackwell, 1986, p. 4.
69

Eis o grande desafio à fé cristã: como viver, conviver e expressar a fé cristã


num mundo altamente pluralizado, relativizado e subjetivado e tendo que
estabelecer diálogo com as demais tradições religiosas, sem que com isso não se
perca a própria identidade cristã?
A teóloga Andreatta afirma que “o problema nuclear a ser resolvido pela
teologia cristã das religiões é a questão da singularidade e universalidade salvífica
de Jesus Cristo em conexão com a vontade salvífica universal de Deus e sua
correlação com a diversidade religiosa”.175 Percebemos, então, que toda discussão
sobre o pluralismo religioso obrigatoriamente passa pela questão cristológica e
pela dimensão soteriológica.176 Toda fé implica em um conteúdo teológico
específico, ou seja, confessional.

1.3.1
Paradigmas Teológicos Diante do Diálogo Inter-Religioso como Pano
de Fundo à Questão Crística

O Concílio Vaticano II foi decisivo na questão do Diálogo Inter-Religioso,


abrindo caminho para uma atitude mais aberta e positiva frente às demais
religiões. Bem sabemos que houve muito esforço pré-conciliar.177

175
ANDREATTA, Cleusa Maria. Experiência salvífica cristã e pluralismo religioso em E.
Schillebeeckx. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro. PUC-Rio. 2003, p. 25.
176
DUPUIS, J., op. cit., p. 484.
177
É no documento Lumen Gentium (número 16-17) que o Concílio mais desenvolve a questão
das relações religiosas. Também no Decreto Ad Gentes (número 3, 9, 11) e ainda na Declaração
Nostra Aeate. Temos também a Constituição Dei Verbum, com uma concepção mais ampla de
revelação; e, finalmente, a Declaração Dignitatis Humanae, que aborda sobre a liberdade religiosa.
Reconhecemos a existência de uma farta bibliografia que trata da relação do cristianismo com as
religiões não cristãs antes do teólogo K. Rahner e do Concílio em questão. Apenas para citar dois
exemplos de como a questão do DIR já tinha uma ampla sistematização teológica antes de Rahner
e o Vat II, fazemos referência a Ernst Troelstsch e Arnold Toynbee. O primeiro, considerado o pai
do relativismo histórico, defende que nenhuma manifestação histórica é absoluta; e isto inclui a
religião como instância histórica. Esta afirmação de Troelstsch deve ser lida dentro do contexto da
reformulação do seu pensamento. Anteriormente a esta reformulação, ele afirmara a normatividade
salvífica do cristianismo, repensa e constata que nenhuma religião pode arrogar para si o status de
melhor que outra. Cf. E. TROESLSTSCH, Gesamanelte Werke, Tübingen, vol. 2, 1923; Die
Absolutheit des Christentums und die Religionsgeschichte, Tübingen, 1929; M. PYE, Ernst
Troesltsch and the End of the problem about Otherr Religions, in: J.P. Clayton (edt.), Ernst
Troelstsch and the future of Theology. Cambridge: University Press, 1976, pp. 172-195. Dentro
de uma perspectiva mais histórica, Arnold Toynbeen, historiador inglês, defende a construção de
uma religião unitária, pois, na sua percepção, a única maneira de salvar o mundo de sua
autodestruição seria as religiões abandonarem sua vivência autocentrada e se abrirem umas para as
outras. Cf. A. TOYNBEE. A study of history. N. York: Oxford University, vol. 7, 1954. An
historian's Approach to religion. N. York: Oxford University press, 1956; What Should be the
christian approach to the contemporary Non-christian Faiths?: In: Christianity among the
religions of the world., N. York, Scribner's, 1957, pp. 83-112.
70

No entanto, K. Rahner é quem elabora a primeira fase da Igreja Romana


com as demais religiões, do ponto de vista teológico, em sua tese acerca do
Cristianismo Anônimo.178
A partir dessa abertura, surge uma nova fase de relacionamento com os não-
cristãos bem como para os futuros desdobramentos ocorridos, tanto na reflexão
teológica quanto na práxis religiosa. No entanto, o Vaticano II, mesmo
reconhecendo valores positivos em outras religiões, não emite juízo de valor
teológico, de forma bem definida, sobre a mediação salvífica das outras religiões,
bem como não esclarece em definitivo o significado do pluralismo religioso como
fenômeno pós-moderno.179
Como pano de fundo, para uma melhor compreensão das questões teológicas
envolvidas no pluralismo religioso, afirmamos que a Encarnação é a proclamação
por meio da qual a Fé Cristã atesta que, no momento querido por Deus-Pai, seu
Filho assume a condição humana, isto é, assume a carne humana, entra
definitivamente na história.

178
PEDREIRA, Eduardo Rosa. A Questão do Diálogo Inter-Religioso. Dissertação. Rio de
Janeiro. PUC-Rio. 1994, p. 35. Cf. com sua nota de rodapé 70, que diz: Uma grande maioria de
teólogos vai concordar que a percepção rahneriana de um cristianismo de índole anônima de fato
abre as janelas do pensar católico para a entrada de novos ares. No entanto, desde os primeiros
momentos de sua formulação até épocas mais recentes, a tese de Rahner tem sido criticada e até
mesmo rejeitada com certa veemência. As críticas a esta tese rahneriana vão desde a clássica
discussão entre Rahner e Van Baltassar, discussão esta muito bem analisada por G. VANS, The
Faith needs for salvation. In: Talking with unbelievers, pp. 41-46, até observações mais recentes,
como a de Hans Küng, que fala desta tese como sendo um meio de "conquista pelo abraço", H.
KÜNG. Para uma teologia ecumênica das religiões, In: Cocilium 208 (1),1996, p. 125. É digna
de nota, ainda, a crítica levantada pelo cardeal Joseph Ratzinger de que a tese do cristianismo
anônimo, que influenciou decisivamente o otimismo salvífico do Vat II, além de provocar um
enfraquecimento no impulso missionário da igreja, seria um atalho cômodo e confortável para os
que não querem assumir a responsabilidade da explicitar o ser cristão. Cf. J. RATZINGER. O
Novo Povo De Deus. op. cit. p. 324; Rapporto sulla Fede, Roma, Poline, 1985, p. 25 passim. Ao
que Rahner responde com igual veemência: "Seria estúpido pensar que a expressão cristianismo
anônimo esvazia a importância das missões, da proclamação da palavra Divina, do batismo. Quem
quer interpretar assim nossa advertência, não somente a tem mal interpretado na sua totalidade,
como nem sequer leu sua explicação com suficiente atenção." Cf. K. RAHNER. Los cristianios
anonimos, In: Escritos Teologicos. op. cit., p. 542.
179
MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 13. Para uma apreciação da doutrina do Concílio
sobre as religiões não-cristãs. Cf. DUPUIS, op. cit. p. 232 passim. Cf. GEFFRÉ, C. Le pluralieme
religieux e l’indiferentisme. In: Revue Théologique de Louvais 31 (2000), p. 15.
71

A história cristã mostra que a doutrina da encarnação foi e é elemento


estruturador e fundante da cristologia ortodoxa.180 Várias hipóteses foram
levantadas até que se chegou a uma definição dogmática.181 Como diz Carl E.
Braaten:

A verdade da encarnação é que Deus assumiu uma


realidade verdadeiramente humana, de modo que, em
Jesus Cristo, ele está em ambos os lados do limite que
separa o Criador da criação. A confissão de que Jesus,
em sua pessoa, é verdadeiramente Deus significa que a
palavra decisiva e final de Deus para o mundo foi
comunicada uma vez por todas em sua Palavra feita
182
carne.

O outro ponto teológico fundamental e caro ao cristianismo é a afirmação de


que há um único Deus. A fé cristã proclama a unicidade de Deus. Esse único Deus
é uno em sua essência, como em todas as suas perfeições: ciência, providência,
soberania, amor, vontade e trino nas pessoas. A dogmática cristã crê em Deus Pai,
que, desde toda a eternidade, gera o Filho; crê no Filho que é eternamente gerado
do Pai; crê no Espírito Santo, pessoa incriada, que procede do Pai e do Filho como
amor eterno de ambos.183

180
HODGE, Archibald Alexander. Esboços de Teologia. São Paulo. PES. 2001, pp. 525-530.
181
NOLL, Mark A. Momentos Decisivos na História do Cristianismo. São Paulo: Ed. Cultura
Cristã. 2000, pp. 51-64. O autor trata com muita propriedade a formulação do dogma cristológico.
182
BRAATEN Carl E. & JENSON, Robert W. Dogmática Cristã. Vol. I. São Leopoldo-RS.
1990, p. 512. Ele afirma categoricamente que a encarnação foi um acontecimento real da história.
O dogma da encarnação não foi um mito. Cf. GREEN, Michael. The Truth of God Incarnate,
Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans, 1997, sendo uma reação clara e rápida a John Hick. The Myth
of God Incarnate. Philadelphia: Westminster, 1997.
183
Não há como negar que todos os credos têm inicio com uma declaração de fé: “Creio em Deus
[...]”. Significa afirmar que “Deus é”. Cf. GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática, 2000, p. 165
passim, incluindo uma boa bibliografia sobre o tema. Segundo Jurgen Werbick, “Na doutrina da
Trindade, se tematiza a economia salvífica como auto-revelação de Deus, tematiza-se como Deus é
quando Ele se revela como ele mesmo e se comunica a si mesmo no Filho – em sua vida em favor
dos seres humanos e em sua relação com o Pai – através do Espírito – no crente e na comunidade”.
In.: SCHNEIDER, Theodor (org.). Manual de Dogmática. Vol. II, 2002, p. 430.
72

Michael Amaladoss e muitos outros teólogos que têm discutido a questão do


Diálogo Inter-Religioso (DIR), falam de paradigmas ou modelos teológicos que o
cristianismo tem assumido desde as primeiras sementes de toda esta complexa
temática da teologia das religiões até o atual estado da questão frente às religiões
não-cristãs, na modernidade e na pós-modernidade. Na verdade, estes modelos ou
paradigmas produzem dois movimentos: o primeiro passa-se de um paradigma
eclesiocêntrico para o cristocêntrico e o segundo, do cristocêntrico para o
teocêntrico.
Assim, diante da solicitação de Diálogo Inter-Religioso, como nosso tempo
nos impõe, apresentamos, aqui, ainda que laconicamente, três modelos teológicos
que fomentam o diálogo religioso com as religiões não-cristãs e, sobretudo, na
perspectiva crística. Vejamos tais paradigmas:

1.3.2
O Paradigma Exclusivista

Historicamente, a posição exclusivista encontra suas primeiras raízes no


axioma Extra Ecclesiam Nulla Salus - Fora da Igreja não há salvação -, que foi
formulado por Orígenes (254 D.C.) e aplicado por Cipriano (258 D.C.).184 Este
axioma emerge a partir de um habitat político e sociológico muito favorável ao
nascimento desse tipo de exclusivismo: o cristianismo sai da posição de
perseguido e torna-se religião lícita no Império romano e, logo depois, se torna
religião oficial do império, ou seja, do Estado, no século IV.
Com isso, a Igreja tornou-se mais segura e, para manter sua segurança, tem
de legitimar a ideologia e o poder debaixo do qual agora descansava segura, após
longos séculos de dolorosa perseguição.185

184
KNITTER, P., op. cit., p. 121.
185
AMALADOSS, M. The Pluralism of Religions and the Significance of Christ (O pluralismo
religioso e o significado de Cristo. pp. 402,403. Cf. DUPUIS, Jacques. O Cristianismo e as
religiões. Do desencontro ao encontro, 2004, p. 19 passim.
73

O resultado foi, nas palavras de Dupuis, “uma avaliação negativa das outras
religiões”.186 A Igreja assumiu a posição de único recipitáculo ou “arca da
salvação”.187 Tal Igreja prevaleceu desde o século V até o século XVI, afirmando
o exclusivismo eclesiológico.
Mario de França Miranda, teólogo especialista no debate do diálogo inter-
religioso, o que inclui a questão cristológica e soteriológica, afirma que “falar da
salvação cristã é uma tarefa complexa e difícil, pois essa realidade implica a
pessoa mesma de Deus, como seu realizador e seu conteúdo fundamental”.188
Esta percepção teológica, no mundo católico, prevaleceu até o presente
século, quando Rahner e o Vaticano II trouxeram uma postura efetivamente mais
inclusivista. Tal posição afirma, em outras palavras, que ninguém será salvo, a
não ser que confesse fé explícita em Jesus Cristo como Senhor e Salvador e que as
outras religiões não possuem poder de mediação salvífica. Além do que, é preciso
pertencer à Igreja.189 Há claramente uma perspectiva reducionista que subjaz a
todo este pensamento e atitude exclusivistas. Por outro lado, o seu pressuposto
teológico é que o exclusivismo traz, como seus fundamentos teológicos, um
universo eclesiocêntrico e uma cristologia exclusivista. Tal posição não tem sido
mais aceita no meio teológico católico.190

186
DUPUIS, Jacques, op. cit., p. 23.
187
DUQUOC, C. O Cristianismo e a pretensão à universalidade, Concilium 155 (5), 1980, pp.
52-79.
188
MIRANDA, Mario de França, op. cit p. 15.
189
Para quem desejar um estudo mais detalhado sobre a história do surgimento e desenvolvimento
deste axioma veja-se DUPUIS, op. cit. pp. 123-155.
190
Cf. MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 157. TEIXEIRA, F. Teologia das Religiões, pp.
39,40; DUPUIS, op. cit. pp. 179-181. No entanto, mesmo com toda rejeição por parte do
Magistério e da teologia mais atual, não podemos deixar de dizer que tal paradigma ainda encontra
eco em alguns setores teológicos, seja católico ou protestante. Cf. DUPUIS, op. cit. p. 159.
74

1.3.3
O Paradigma Inclusivista

Alguns autores admitem que outras religiões podem mediar a salvação em


Jesus Cristo, mesmo que não tenham consciência cristã. A afirmação “fora da
Igreja não há salvação” ganha novos contornos. Portanto, os que se salvam são
uma espécie de “cristãos anônimos”. Destaca-se, dentro deste modelo teológico,
Karl Rahner. Este modelo aceita que pode haver graça e revelação em outras
religiões de modo que podem mediar a salvação em Jesus Cristo, mesmo que os
outros que crêem não tenham consciência do fato. São os chamados de cristãos
anônimos.191
Do ponto de vista da história, diz o teólogo Eduardo Rosa Pedreira que,

[...] o inclusivismo surge de uma preciosa e


necessária correção histórica. Cinqüenta anos antes do
descobrimento da América, o Concílio Ecumênico de
Florença (1442) estabelecia a doutrina de que "fora da
Igreja não há salvação". Quinhentos anos depois, Rahner
e o Concílio Vaticano II corrigem esta rota, “restituindo”
àqueles que vivem fora da Igreja a possibilidade real de
salvação. Feita esta correção, a teologia católica das
religiões avança de um modelo exclusivista para um
modelo inclusivista.192

Segundo Hans Küng, Cristo não é a causa constitutiva da salvação. Por esta
razão, as outras religiões podem ser consideradas caminhos independentes de
salvação.193 Hans Küng não aceita a tese de Rahner, que é o fundamento do
paradigma inclusivista, mas mesmo assim não rompe totalmente com tal
modelo.194 O inclusivismo de Rahner e do Vaticano II só admitiam a possibilidade
de salvação fora da Igreja e do cristianismo se tal salvação fosse a de Cristo: "A
salvação querida por Deus é salvação de Cristo".195

191
AMALADOSS, M. op cit. pp. 402,403.
192
PEDREIRA, E. Rosa. DIR – Diálogo Inter Religioso, op. cit., pp. 87-90.
193
KÜNG, Hans. Christianity and World Religions: Dialogue with Islam, in: L. SWIDLLER.
(edts) Toward a universal theology of religion. pp. 231-249.
194
Para uma melhor análise desta posição, cf. H. KÜNG, Christianity and World Religions:
Dialogue with Islam, In: L. SWIDLLER (edts) Toward a universal theology of religion, op. cit.
pp. 231-249; Ser cristão. op. cit., pp. 72-95, Para uma teologia ecumênica das religiões, In:
Concilium 203 (1), 1986, pp. 124-131; P. KNITTER, No other name, op. cit. pp. 130-135.
195
KNITTER, Paul, op. cit., p. 131.
75

Tal postulado faz de Cristo a causa constitutiva da salvação e faz, daqueles


que se salvam fora da Igreja e do cristianismo, cristãos anônimos.
Hans Küng afirma que Cristo é a causa normativa da salvação e, por isto,
torna-se o catalisador crítico e a plenitude de toda salvação. Küng vai afirmar que
no centro do específico cristão deve residir a certeza de que Jesus é a "suprema e
decisiva instância e critério último para o relacionamento humano com Deus, com
o próximo e com a sociedade: em forma bíblica abreviada, como Jesus Cristo".196
No entanto, no que diz respeito ao valor salvífico das religiões não cristãs, Küng,
por um lado, o admite, mas, por outro, frisa que só o cristianismo possui a
"absoluta validade". Em outras palavras, esta posição ainda é a mais aceita pela
Igreja Católica. Para Küng a proposição de um cristianismo anônimo é,

[...] apenas uma nova interpretação do antigo dogma:


Igreja agora não se refere mais, como em Florença, à Santa
Igreja romana, mas propriamente, interpretada corretamente,
no fundo: a todos os homens de boa vontade que, sem
exceção, fazem parte da Igreja de algum modo. Mas não se
está introduzindo aqui, elegantemente, pela porta dos
fundos, na Santa Igreja Romana o gênero humano inteiro
que tenha boa vontade [...] de modo que não resta fora
nenhum elemento que disponha de boa vontade, queira ou
não? Fora da Igreja não há salvação _ a fórmula está certa
como nunca, porque todos se encontram dentro, de antemão:
como cristãos, não formais, mas anônimos, ou _ como se
deveria exprimir para salvar a lógica _ como católicos
romanos anônimos.197

O pressuposto teológico deste paradigma passa do eclesiocêntrico para


tornar-se cristocêntrico (no caso de Rahner) e teocêntrico (no caso de Küng), e,
onde antes a cristologia era exclusivista, torna-se inclusivista em Rahner e
normativa em Küng. O paradigma inclusivista possui uma perspectiva de
profundo acolhimento ou absorção, pois ela "pretende incluir como próprio, tudo
o que existe de verdade em qualquer lugar, dentro de qualquer tradição. A atitude
inclusivista tende a reinterpretar tudo dentro de uma mesma lógica, tornando todas
as coisas assimiláveis e reduzindo as diferenças a aspectos de uma única
198
verdade".

196
KÚNG, Hans, op. cit., p. 103.
197
Ibidem, p. 79.
198
STEIL, C. A. O diálogo inter-religioso numa perspectiva antropológica, In:
F.C.L.TEIXEIRA, O Diálogo, op. cit., p. 27.
76

Ora, por mais que este paradigma traga aspectos extremamente positivos e
libertadores nas relações religiosas, não podemos esquecer que o cristocentrismo
sustenta o caráter absoluto de Jesus Cristo, tornando-se ao cristianismo um
obstáculo às relações inter-religiosas.

1.3.4
O Paradigma Pluralista

Na busca de uma solução para o diálogo inter-religioso, encontrou-se no


aprofundamento reflexivo uma alternativa teológica mais simples e, ao mesmo
tempo, mais complexa e radical; como já dissemos, passa-se de um
cristocentrismo para um teocentrismo, que, quer queiramos ou não, implica numa
rejeição teologal da centralidade de Jesus Cristo, como único mediador salvífico.
Ou seja, “para salvar um pluralismo salvífico era necessário romper o vínculo
salvífico de Jesus Cristo com Deus como único e exclusivo, era preciso separar
Cristo-logia de Teo-logia”.199
Significa afirmar que todas as religiões são iguais e possuem valor
soteriológico em seus pressupostos. Ou seja, são vários caminhos, Cristo é só
mais um caminho, posto que Deus está acima de Cristo, Ele é o centro. As
principais raízes históricas do paradigma pluralista são a influência da cultura
moderna e pós-moderna e a teologia liberal do século XIX. França afirma que no
desafio da proclamação de Jesus Cristo como Senhor e Salvador nos dias atuais,
“só será significativa e pertinente, impactante e atraente, quando for realmente
entendida pela atual sociedade”200, visto que no cenário de uma sociedade
altamente pluralista, com suas múltiplas fontes de sentido, a relevância da tradição
perdeu seu espaço nessa nova geografia religiosa.
O pluralismo pós-moderno não só traz a possibilidade do diálogo, mas
impõe sua necessidade. Não há mais espaço para entrincheiramento e
isolacionismo, pois o diálogo é necessidade, fruto de uma cultura caracterizada
pela pluralidade.

199
MIRANDA, Mário de França. O encontro das religiões, op. cit., p. 20.
200
Ibidem, p. 15.
77

Com este pressuposto, o pluralismo cruza uma linha até então não
ultrapassada por nenhum modelo anterior aqui analisado. Deus, e não Jesus, seria,
na percepção pluralista, o meio e o fim da salvação. Jesus continua sendo o
caminho salvífico para os cristãos, mas não pode ser para os não cristãos que
encontram, nas suas próprias tradições religiosas, a mediação salvífica. Assim, o
cristão pode dizer que Jesus é o Cristo, mas não pode mais afirmar que o Cristo é
só Jesus.201
Em outras palavras, dentro do paradigma pluralista fala-se em cristologia
não-normativa, ou seja, Jesus só é norma para os cristãos. O pressuposto teológico
deste paradigma vai aderir a uma nova e radical visão das religiões não cristãs, ou
seja, elas passam a alcançar não legitimidade salvífica, mas autonomia, tornando
assim caminhos autênticos e independentes de salvação, sem necessitar de
mediação ou referência cristã.202
Diz Michael Amaladoss que o pluralismo produziu uma "revolução
Copérnica na teologia",203 na qual o centro em volta do qual giram todas as
religiões seja deslocado de Jesus para Deus e para a salvação. Tal perspectiva
desenvolve uma posição de igualdade ou equiparação, onde toda verdade deixa de
ser monopólio de uma única religião, para se tornar bem comum de todas as
religiões que contribuem para salvação e para a promoção do Reino de Deus.204
Segundo Amaladoss, tal posição não leva as religiões a sério.205

201
Esta é a linha particularmente desenvolvida por R. Pannikar, que se serve da antiga cristologia
do Logos, na qual se insiste na distinção do Cristo universal (Logos) e o Jesus histórico. Cf. R.
PANNIKAR, The Unknow Christ of Hiduism. Maryknoll, NY: Orbis Book, 1981.
202
Podemos afirmar que o paradigma pluralista possui várias perspectivas teocentristas, ou seja,
temos o teocentrismo chamado normativo e o teocentrismo chamado não normativo. O
teocentrismo normativo está aberta para reconhecer outras mediações salvíficas, mas argumenta
que Jesus Cristo é aquele que melhor revela a ação salvífica de Deus na história. No entanto, há
mais uma rachadura na doutrina cristológica, pois Cristo não é mais agente constitutivo da
salvação, o que significa dizer, em outras palavras, que o ser humano não ficaria sem salvação,
apenas sem sua revelação mais profunda. Já o teocentrismo não normativo significa afirmar que
Jesus Cristo não tem nem valor normativo e, muito menos, constitutivo para a ação salvífica.
Dentro dessa linha de pensamento teológico temos John Hick, seu maior expoente. Cf. HICK,
John. A metáfora do Deus encarnado. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000; Problems of Religions
Pluralism. London: Macmillan, 1985; An Interpretation of Religion: Human Responses to the
Transcendent. London: Macmilliam, 1989. Para que deseja uma reflexão crítica sobre a posição de
Hick, cf. DUPUIS, op. cit. pp. 261-263; D’COSTA, G. Taking other religions seriously: some
ironies in the current debate on a christian theology of religions. The Thomist 54 (1990), pp. 519-
529. Ainda podemos citar KNITTER, P. No Other Name? A critical Survey of Christian Attitudes
toward the Worlds Religions. New York, 1985.
203
AMALADOS, M. S.J., Faith Meets Faith, Vidajyot. 1985, p. 109.
204
PEDREIRA, Eduardo Rosa, op. cit., pp. 91-95.
205
Ibidem, p. 404.
78

O resultado não poderia ser outro senão um relativismo e subjetivismo


próprios da cultura pós-moderna, pois as religiões buscam "integrar em si
elementos do cristianismo, sem contudo se deixar propriamente evangelizar; e
outras, neste mesmo confronto, vêem algumas de suas características serem
assimiladas pelo próprio cristianismo.”206 No dizer do especialista no assunto,
Mário de França Miranda, vivemos uma espécie de derretimento e subjetivação da
fé,207 com conseqüências incalculáveis para a identidade religiosa.
Amaladoss erra ao distinguir e separar Cristo de Jesus; diz que “Jesus é o
Cristo, mas Cristo é mais que Jesus”.208 Já que o pano de fundo é a universalidade
da salvação na pessoa de Jesus Cristo, ele conclui que a ação cósmica de Cristo
não pode ser limitada à forma encarnada chamada Jesus209, daí afirmar que o
Cristo cósmico atinge as outras religiões.
Tais colocações de Amaladoss equivalem a dizer que Cristo atingiria outras
religiões e comunicaria elementos novos. Se o que Amaladoss afirma estivesse
correto, então, em Jesus Cristo, a revelação cristã não teria sido plena, como de
fato o foi210, ou seja, se todas as religiões juntas revelam mais de Deus, então
Jesus não é a plenitude da revelação. Se o logos é mais do que Jesus, então o
cristianismo é só parte da verdade.
Amaladoss ao separar Cristo de Jesus não está mais falando do mistério
cristão, pois o mistério de Jesus Cristo é a Encarnação do Verbo, que assume a
natureza humana. No dizer do Concílio de Calcedônia, uma só pessoa divina em
duas naturezas, humana e divina. É a união hipostática. Quem responde melhor a
esta questão é Schillebeeckx. Ele procura mostrar que após as sucessivas Alianças
de Amor de Deus por seu povo, chegamos à Aliança definitiva. Essa história
começa com a criação (Gn 1,1-2,4a.), enriquece-se com o chamado de Abraão
(Gn 12.1,2), até culminar no acontecimento definitivo: Jesus Cristo (Lc 22.20),
imagem do Pai (Jo 14.9-11). Assim, a revelação de Deus é plena em Jesus Cristo,
de forma que fora desta não há outra revelação.211

206
MIRANDA, Mário de França, op. cit., (59): 1991. pp. 215.
207
Ibidem, pp. 207-210.
208
M. AMALADOSS, The Pluralism of Religions and the Significance of Christi, In: Vidyajyoti
Journal of Theological Reflexion, 8 (1989), p. 409.
209
Cf. L. cit.
210
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, Constituição Dogmática “Lumen Gentium”, In:
Sacrossanto Ecumênico Concílio Vaticano II, Petrópolis, 1987, n. 9.
211
SCHILLEBEECKX, Edward. Universalité unique d’une figure religieuse historique, Laval
Théologique et Philosophique, 50 (1994), pp. 266-267.
79

Schillebeeckx valoriza o Mistério da Encarnação, que é a entrada do Eterno


no temporal. O Verbo assumiu realmente a condição humana, é Verdadeiro Deus
e Verdadeiro Homem. Ora, “os atos históricos do homem Jesus são pessoalmente
os atos do Filho Eterno de Deus, um ato de Deus eterno em forma de
manifestação humana”.212 Chamamos atenção porque em Jesus, o fato da
Encarnação de Deus assume, na manifestação humana, um fato histórico.213
Portanto, Schillebeeckx não abre mão da universalidade e unicidade
salvífica de Jesus. Jesus Cristo é a plenitude da revelação de Deus. Fora de Jesus
Cristo não há como perceber quem de fato é Deus e em que situação se encontra a
raça humana. Só em Jesus Cristo o homem percebe sua condição de pecador e a
necessidade de salvação, e se torna apto a entender a oferta salvífica de Deus. A
revelação geral tornou-se limitada. Jesus Cristo é a causa normativa e constitutiva
da salvação.214
Como bem disse o teólogo França Miranda, a questão central da fé cristã
proclama que em Jesus Cristo temos a revelação definitiva de Deus e a salvação
para toda a humanidade. Relativizar isso significa fragmentar o cristianismo, para
não dizer destruí-lo, tirando-lhe toda identidade.215 O grande desafio é integrar
sem perder a identidade cristã.
Por isso perguntamos: Quais as implicações teológicas diante do fenômeno
do pluralismo religioso? Como responder eclesial e cristologicamente a toda essa
efervescência religiosa, com variantes que vão do misticismo esotérico até as
crendices populares? Como anunciar o evangelho libertador de Jesus Cristo numa
cultura graçada pelo neopaganismo? Que atitudes éticas impõem-se nesse tempo
himbricado de relativização e dissolução dos valores fundantes do vital humano?
Eis o que tentaremos mostrar nas próximas páginas e, certamente, em maior
profundidade, no último capítulo.

212
SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo Sacramento do encontro com Deus. Petrópolis, 1968, p.
59.
213
Id., História Humana: Revelação de Deus. São Paulo: Paulus. 1994, p. 213.
214
Cf. RATIZINGER, J. Kommentar zu den “Bekanntmachungen” en Lexikon für Theologie und
Kirche – Das Zweite Vatikanische Konzil, Freburg 1966, tomo I, p. 355-356. Ver também:
RATZINGER, J. A colegialidade dos bispos. Desenvolvimento teológico, In: G. BARAÚNA
(ed), A Igreja do Concílio Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1965. pp. 763-788.
215
MIRANDA, Mário de França. op. cit. p. 128.
80

1.4
Implicações Teológicas e Exigências Éticas

A teologia plural é obrigada a ver-se como ecumênica, dialógica, diacrônica,


a serviço não só da autoridade, mas também de todo o povo de Deus. Isso é
positivo e libertador, mas também desafiador.
Diante desse fenômeno da pluralidade religiosa, estando a Igreja inserida na
realidade temporal ela não pode esquivar-se do diálogo com o “diferente”.216 Ou
seja, a Igreja precisa manter com as outras tradições religiosas o diálogo inter-
religioso. O diálogo é preciso e necessário; pois sendo o homem aberto ao
transcendente, encontrará na sua própria estrutura a razão de ser desse diálogo e,
mais ainda, além do aspecto antropológico a razão fundamental do diálogo é
teológica217, que parte da unidade da própria Santíssima Trindade218. Mas
também, além do diálogo, a Igreja, para realizar seu papel recebido do Mestre (Mc
16.15), deve empenhar-se em anunciar o Mistério da salvação realizado por Deus
em Jesus Cristo, com a força do Espírito Santo219.
No cristianismo, todos que dele fazem parte, precisam ter consciência de
que a obra salvadora é iniciativa de Deus e que Jesus é a definitiva salvação
trazida para todos; e que nele se encerra toda a verdade da revelação última de
Deus.
A grande pergunta que fica é, como o cristianismo deverá portar-se frente a
tantas religiões, uma vez que se vê rodeado de uma variedade de opções
oferecidas? E ainda, por que Deus teria permitido a existência de outras religiões?
Qual o sentido e lugar das outras religiões na única economia da salvação?220.

216
CONGAR, Yves. Église et Papauté. Paris: Ed. du Cerf, 1994. pp. 21-22.
217
MIRANDA, Mário França, op. cit., pp.106-107.
218
Cf. Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso – CNBB, Diálogo e Anúncio,
Petrópolis, 1991, n. 38.
219
Cf. Diálogo e Anúncio, nº 10.
220
Vários autores procuram respostas a essas perguntas e conseqüentemente encontramos variadas
posições acerca do tema. Há autores que situam a problemática na impossibilidade de se falar de
Deus, pois Deus é transcendente e impossível ao homem; há autores que dizem que só o
cristianismo pode falar algo; há autores que afirmam que todas as religiões são caminhos legítimos
para chegar a Deus, todas salvam; há autores que acham que as outras religiões são caminhos até
chegar ao cristianismo, logo que tenham chegado ali não servem para mais nada; e há autores que
afirmam que a presença do Espírito Santo nessas religiões possibilita a essas pessoas a captarem a
ação de Deus. Por isso essas religiões não devem ser desprezadas. Com isso não querem dizer que
tais religiões sejam “novas” revelações de Deus, mas que podem ter alcançado percepções que o
cristianismo não alcançou.
81

Para possibilitar o diálogo, devemos logo nos distanciar do pensamento de


que os outros não têm nada a nos dizer. O documento DA é categórico ao mostrar
que para realizar o diálogo, de um lado, não se deve abrir mão da verdade de
Cristo e, de outro, “os cristãos não se devem esquecer que Deus também se
manifestou aos seguidores de outras tradições religiosas”221. Por isso, o
documento indaga que tipo de garantia possuímos de termos captado toda verdade
de Cristo? “Devemos estar dispostos a aprender e a receber dos outros”.222
O diálogo religioso não significa abrir mão do que cremos, mas anunciar,
dar algo e estar aberto a receber algo, pois cada religião, dentro de sua cultura,
poderá ter captado algo que nosso horizonte cultural não nos permitiu alcançar.
Por isso devemos afirmar que elas podem nos dar novas perspectivas; com isso a
verdade cristã se explicita e se torna mais rica.223
Há que ver em que ponto a teologia tem a ver com ética. Parece-me que a relação
é indissolúvel. O papel da ética à luz da teologia, esta como fruto da exegese bíblica e
da teologia bíblica, portanto, não é mimetizada e tão pouco fechada em si mesma, é
questionar profética e escatologicamente a cultura pós-moderna. A ética cristã, fruto da
Revelação, carrega o desafio da interpelação à conversão, às mudanças nas estruturas
sociais e culturais bem como em todo processo histórico desarmonizado com a Fé
Cristã. Por que a cultura moderna e pós-moderna, com todo o seu alto desenvolvimento
tecnocientífico, necessita da ética para manter-se no seu correto caminho de produzir
benefícios a toda a humanidade? Para os pós-modernos, o argumento é que cada vez
que uma pessoa ou um grupo qualquer diz possuir a “verdade” (especialmente a
verdade religiosa), o resultado é uma repressão.

221
DA, n. 48.
222
Ibidem. 49.
223
HUIZING, Peter e WALF, Knut. Estruturas Centrais da Igreja em Concilium / 147 –
1979/7, pp. 3-5.
82

A pós-modernidade, conseqüentemente, desafia toda a ética judaico-cristã que


dominou o ocidente durante séculos.224 Isso acontece porque o pluralismo de idéias
desemboca no pluralismo de éticas. Alguns autores cristãos, críticos da pós-
modernidade, asseveram que esse pluralismo de idéias conduz a uma rejeição da
diferenciação entre “o bom” e “o mau”. No entanto, a pós-modernidade, como crítica à
cultura moderna, tem sido apenas o veículo atual de transmissão dessa tendência, pois
no passado, outros sistemas, como o existencialismo e o secularismo, também
propagaram éticas semelhantes.
Esse pluralismo de éticas tem dado lugar, por exemplo, à defesa da reivindicação
de qualquer opção ou prática sexual. Propõe-se a aceitar qualquer opção sexual, já que a
aceitação exclusiva da heterossexualidade pertence à ética judaico-cristã que hoje
estaria superada. De acordo com Velasco, autores como Rorty, Lyotard e Vattimo
optam pela tolerância, justiça e a vida “fruitiva”, respectivamente, como aspirações
supremas na vida humana.225
Vattimo, por exemplo, faz severas críticas à posição que a Igreja Católica
mantém a respeito do casamento e da heterossexualidade, quando discorre sobre a
questão moral.226 E, dessa forma, alguns teólogos pós-modernos têm permitido o
desenvolvimento da moral específica de cada grupo. Essa mudança tem sido encarada
como necessária em áreas como a sexualidade, que por terem sido reprimidas ou
oprimidas pela moral moderna, hoje tendem a rejeitar até mesmo aquilo que poderia ser
considerado uma moral básica.227
Por isso que, do ponto de vista antropológico-soteriológico, a liberdade humana é
finita e a pessoa precisa reconhecer toda a ação salvífica de Deus em Jesus Cristo,
percebendo que a salvação não é mera realização dos próprios intentos pessoais e
comunitários, ou a projeção de seus sonhos, desejos, muito menos a concretização dos
mesmos, mas sim uma ação permanente de Deus, que busca salvar a integralidade do
ser humano, situando-o no horizonte mesmo da redenção.228

224
IANNI, Octávio, op. cit., p. 125.
225
VELASCO, Juan Martín. Ser Cristiano en Una Cultura Posmoderna, p. 53.
226
VATTIMO, Gianni. Creer que se Cree, pp. 86-92.
227
SIEPIERSKI, P., Protestantismo e Pós-Modernidade. (In: MARASCHIN, Jaci. Teologia Sob
Limite), p.145.
83

Na cultura pós-moderna o religioso se expressa com um forte predomínio da


experiência sobre a razão e sobre a própria explicação da fé. Cada vez mais se enfatiza
a experiência e cada vez menos a teologia como discurso ou como explicação racional
da fé. Como assevera Mardones: “A fé se mede mais pela ortopráxis do que pela
ortodoxia, pela prática correta e vivência de fé do que por sua expressão adequada”.229
Lamentavelmente, a teologia, especialmente a protestante, minimiza a experiência do
indivíduo, considerando-a de um valor quase nulo, para privilegiar o discurso da
Palavra de Deus.
A teologia católica, por outro lado, também minimiza a experiência do indivíduo
ao supervalorizar os dogmas da Igreja. Ora, não podemos supervalorizar os dogmas,
como se bastasse aceitá-los como tal, em detrimentos da experiência da fé, que vivência
exatamente tais verdades. Por outro lado, não podemos supervalorizar a experiência,
que tem sido o caso da cultura pós-moderna, em detrimento das verdades fundantes não
apenas da fé, mas de toda a existência humana. Quando absolutizamos a experiência,
tudo o mais se torna relativo, pois o que vale como verdade é o que sinto. 230
Um caminho viável sugere partir das experiências significativas das pessoas,
explicitando-as para elas mesmas. E, de dentro delas, mostrar como a revelação vem
responder concretamente a elas. A racionalidade se faz por meio da credibilidade e da
inteligibilidade dos sinais da revelação. Volta-se a um caminho antigo em sua
formalidade e atual na escolha e explicitação dos sinais. Se a apologética antiga se
baseava grandemente nos milagres de Jesus, narrados nos evangelhos, para mostrar a
credibilidade de sua pessoa e mensagem, hoje esses sinais devem ser encontrados no
cotidiano das pessoas.231 E a partir disso se faz uma dupla pergunta hermenêutica:
como tais sinais permitem entender a revelação bíblico-cristã? Em que esta revelação
ilumina tais sinais?

228
MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 63.
229
MARDONES, José Maria, op. cit., p. 70.
230
ROUTHIER, G. “Église locale” ou “Église Particuilière”: querelle sémantique ou option
théologique, in Studia Canônica 25 (1991), pp. 287-334.
84

É preciso, também, pensar na “reconstrução” de uma teologia interdisciplinar e


contextual. Na atualidade, todo estudo no campo social deve ser visto de forma
interdisciplinar. Já não é mais possível e suficiente uma visão unívoca do fenômeno
humano. Ao se falar de teologia, precisamos encarar a tarefa a partir de óticas múltiplas,
dando valor aos pontos de vista de outras ciências sociais. Falar de reconstrução, de
contextualidade e de óticas múltiplas, implica fazer perguntas ao cristianismo que
cremos, professamos e defendemos.
É bem verdade que a pós-modernidade apresenta alguns perigos à teologia, mas
acima de tudo, grandes desafios. Seria irônico e trágico se a teologia se tornasse uma
dos últimos defensores da modernidade já quase moribunda. Para sobreviver num
tempo como esse, é assaz fundamental que a teologia se lance à tarefa de decifrar as
implicações da pós-modernidade para ela e para a Igreja Cristã.232 Possivelmente, a
saída para o teólogo seria não lutar apenas pela sobrevivência de uma teologia
argumentativa, apologética, mas também buscar espaço para uma teologia narrativa.
Ao que tudo indica, parece que não sobrará importante espaço para uma teologia
argumentativa na pós-modernidade, constituindo, então, num grande desafio à fé cristã.
A fé cristã tem diante de si a tarefa hercúlea de promover a verdadeira
liberdade através de uma vivência que desfaça as categorias da ideologia pós-
moderna, carregada pelo individualismo, que é a ideologia da anti-solidariedade e
antialteridade. João Batista Libânio afirma, portanto, que,

[...] esse surto religioso carece de tônus crítico-


social. Por isso, não questiona nem afeta o sistema
vigente. Antes, favorece-o, ao desempenhar papel
terapêutico, tranqüilizando e harmonizando as pessoas
por dentro. As angústias, que o modelo vigente produz
por seu corte materialista, consumista, sem valores
transcendentes, sem ética, competitivo, são aliviadas
pelas formas religiosas oferecidas. Elas devolvem ânimo
às pessoas para que superem a decepção e ceticismo, tão
presentes na pós-modernidade. Além disso, a
efervescência do sagrado alimenta-se dos recursos da
mídia. Ela potencializa o impacto das expressões
religiosas além de estender-lhes a influência.233

231
MACPHERSON, C. B. The Political Theory of Possessive Individualism. Oxford: University
Press, 1990.
232
Para listagem destes desafios, ver: DONATO VALENTINI. La Cattolicità della Chiesa
Locale, In: ASSOCIAZIONE TEOLOGICA ITALIANA, L’Ecclesiologia Contemporanea,
Padova, Ed. Messaggero, 1994. pp. 69- 89.
233
LIBÂNIO, João Batista, op. cit., In: CALIMAN Cleto (org.). A Sedução do Sagrado. O
Fenômeno Religioso na Virada do Milênio. p. 63.
85

Outra questão séria, e que traz implicações éticas profundas, é a violência


associada a religião. Guerras e ataques terroristas são promovidos por motivações
religiosas, aliadas aos interesses econômico, político e sociocultural. Portanto, os
principais desafios da relação entre as religiões têm seu foco na convivência, no
diálogo, superação de todo tipo de violência, superação de todo tipo de injustiça e na
construção de uma sociedade marcada pela paz e pela alteridade.234

234
KUNG, Hans. Projeto de ética mundial. Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência
humana. São Paulo. Ed. Paulinas, 1992, p. 108. Ele afirma: “Não haverá paz no mundo sem uma
paz entre as religiões”.
86

Conclusão

Nossa intenção nesse primeiro capítulo foi promover uma leitura descritiva
da modernidade e da pós-modernidade em suas dimensões sociocultural,
econômica, antropológica e religiosa, onde buscamos certa definição para cada
um dos dois paradigmas. Percorrer esses caminhos tornou-se imprescindível para
uma melhor compreensão de nosso tempo, visto que abriu-nos o horizonte da
percepção, mesmo limitadamente, do caldo religioso pluralista que permeia a
nossa cultura e, certamente, possibilitou-nos verificar aonde e como a proposta do
Evangelho tem chegado aos corações dos homens e mulheres, marcados pela
desesperança e por uma sociedade repleta de sinais de morte e, ainda mais,
configurada por um niilismo existencial que assola diversas áreas da
existencialidade humana.
Falar sobre a liberdade cristã na modernidade e na pós-modernidade sem
perceber a cosmovisão atual bem como desse novo ethos promotor dessa cultura e
do próprio vital humano, seria absolutamente inconcebível e sem relevância para a
contemporaneidade. Levantar tais questões é de suma importância para aferir a
presença do Evangelho, através do anúncio da salvação em Jesus Cristo, no
desafio de apresentá-lo no contexto da diversidade crística, bem como a presença
da Igreja como agente de transformação histórica, sinal do Reino de Deus e
promotora de libertação, no serviço de resgate do vital humano pela ação
libertadora e libertária do Evangelho.
Por isso, como protestante escolhemos a senda do labor teológico em
Calvino, que trata tão bem da temática escolhida. Assim, cumprem-nos lançar um
olhar sobre o contexto do século XVI, verificar as condições e as causas que
produziram o movimento conhecido como a Reforma do Século XVI, tendo João
Calvino como um de seus principais protagonistas.
87

Segundo Capítulo

2
A Reforma Protestante do Século XVI: um Caminho para a
Liberdade Cristã

Há de se afirmar, e de forma categórica, que o tema central de toda a


Reforma Protestante do Século XVI é o da liberdade. Diante de tal constatação,
torna-se imperativo conhecer um pouco sobre a Reforma, como movimento
fundamentalmente religioso235, mas com profundas conseqüências sociais,
institucionais, políticas, econômicas, culturais.
E, mais particularmente, pesquisar sobre João Calvino, um dos maiores
reformadores, contemplando seu contexto histórico, sua vida, obra, sua influência
no seu tempo e em nossos dias, a partir, sobretudo, de sua teologia, mapeando
suas afirmações antropológicas, cristológicas, soteriológicas e eclesiológicas, o
que faremos no terceiro capítulo, fato que certamente resultará na aferição de um
resgate do Evangelho primitivo, bem como da teologia dos grandes Pais da
Igreja.236

235
Em concordância com tal afirmação, citamos o teólogo Hermisten Maia P. da Costa, que
corrobora com tal declaração, em seu artigo A Reforma Protestante, em O Pensamento de João
Calvino. São Paulo: Ed. Mackenzie. 2000, p. 14. Em nota número 7 há outras contribuições dignas
de serem citadas para ulterior pesquisa: BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de
Calvino. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana. 1990, pp. 43,67; SCHAFF, David S. Nossa
Crença e a de Nossos Pais. São Paulo: Imprensa Metodista. 1964, p. 66; Fernández-Armesto &
Derek Wilson. Reforma: O Cristianismo e o Mundo 1500-2000. Rio de Janeiro: Record, 1997, p.
11; GEORGE, Thimothy. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Vida Nova. 1994, p. 20; O
filósofo católico Battista Mondin disse: “A Reforma Protestante foi um acontecimento
essencialmente religioso, mas causou, ao mesmo tempo, profundas transformações políticas,
sociais, econômicas e culturais”. (B. Mondin. Curso de Filosofia. São Paulo: Paulinas. 1981, Vol.
II, p. 27). Em outro lugar afirma: “Como dissemos no início do capítulo, a Reforma Protestante foi
antes e acima de tudo um acontecimento religioso. Em conseqüência disso, ela deve ser estudada e
julgada segundo critérios religiosos, mais precisamente, segundo os critérios da fé cristã, cujo
espírito original a Reforma se propunha restabelecer”. (Ibidem, p. 41). O antigo professor de
História Eclesiástica da Universidade de Yale, Roland H. Bainton (1894?), diz que “A Reforma foi
acima de tudo um reavivamento da religião”. (Roland H. Bainton. The Reformation of the
Sixteenth Century. Boston: Beacon Press. 1985 - edição ampliada), p. 31.
236
COSTA, Hermisten Maia P. da. A Reforma Protestante, em O Pensamento de João Calvino.
São Paulo: Ed. Mackenzie. 2000, p. 14. Na verdade, a Reforma Protestante é resultado de uma
série de eventos que antecederam tal movimento, dos quais falaremos neste capítulo. Cf.
PEREIRA, Eduardo Carlos. O Problema Religioso na América Latina. São Paulo: Empresa
Editora Brasileira. 1920, p. 16. Ver também LÉONARD, Émile G. O Protestantismo Brasileiro.
Rio de Janeiro / São Paulo: JUERP/ASTE. 1981, pp. 27,28.
88

Ao buscar o genuíno evangelho de Jesus Cristo, Calvino trazia de volta o


tema da liberdade, tão desejada e essencial à vida humana. Na verdade, o que a
Reforma fez foi interpretar – traduzir - o evento Cristo, sob a perspectiva da
liberdade. Mas é em Calvino que a liberdade recebe uma conceituação ética.
Nosso propósito, neste capítulo, é lançar um olhar histórico-analítico sobre o
período da Reforma Protestante do Século XVI, verificando seu pano de fundo, de
forma bastante lacônica, especificamente suas bases e condições políticas,
econômicas, culturais, sociais e religiosas, com seus principais pré-reformadores,
seus lugares mais importantes como palco desse movimento que mudou os rumos
da história ocidental, praticamente em todas as suas dimensões. Cremos que assim
abriremos caminho para uma análise mais específica sobre os temas que
pretendemos destacar em nossa pesquisa, a partir do reformador João Calvino, na
perspectiva da liberdade cristã, no capítulo posterior.

2.1
As bases da Reforma Protestante do Século XVI

O século XVI pode ser considerado como o século maduro para a


implementação do movimento conhecido como a Reforma Protestante. Maduro
porque os séculos anteriores pavimentaram e fertilizaram os acontecimentos que
estavam por acontecer nesse período da História. A Reforma foi um movimento
fruto de uma grave crise espiritual que se abatia sobre a Igreja de então.237 O
povo, de modo geral, não encontrava satisfação e realização em sua práxis
religiosa. Reinava um vazio espiritual.

237
DOWNS, Robert B. Fundamentos do Pensamento Moderno. Rio Janeiro: Ed. Renes. 1969,
p. 20. Cf. também Giacomo Martina. História da Igreja. De Lutero a nossos dias. O período da
Reforma. São Paulo. Loyola. Vol I. 1997, pp. 51,52. O mesmo autor afirma que católicos e
protestantes modernos procuram atenuar as crises espirituais e morais que se abatiam sobre a
Igreja do século XVI. Cf. p. 53. L. Febvre, grande pesquisador francês, em estudo lançado em
1929, concordando com a tese supracitada dos católicos e protestantes, vai afirmar que, na
verdade, o século XVI desejava livrar-se da superstição medieval e da aridez escolástica,
buscando, portanto, uma nova experiência religiosa, livre de toda hipocrisia, que trouxesse a tão
ansiada paz interior. A meu ver L. Febvre fala da mesma necessidade existente na Igreja daquele
século, usando palavras diferentes. Cf. Giacomo Martina, op. cit., p. 54.
89

Por isso que, em primeiro lugar238, como já dissemos acima, a Reforma teve
uma perspectiva essencialmente religiosa239, desejada por cristãos católicos
piedosos240, o que significa um movimento interior, nascido dentro da própria
Igreja em crise, com forte desejo de transformar a Igreja, e não, necessariamente,
criar uma nova Igreja. Na verdade, se olharmos um pouco a história passada da
Igreja verificaremos muita insatisfação, que se manifestava de muitas e variadas
formas.241 Podemos ainda afirmar que a Reforma foi uma das maiores revoluções
religiosas do mundo moderno num tempo em que o mundo vivia dominado pela
própria religião.
Sendo assim, o alcance da Reforma estendeu-se na cultura e na vida política
e social da Europa como um todo e, certamente, no Ocidente. Dois católicos,
Abbagnano e Visalberghi declaram que “contribuição fundamental à formação da
mentalidade moderna foi a Reforma de Lutero e Calvino”.242

2.1.1
O pano de fundo do reformador João Calvino

Os pré-reformadores situavam-se dentro de uma cosmovisão ainda


medieval. Viviam num mundo em profunda inquietação e, conseqüentemente, em
transição. O final do período medieval foi uma fase de muita efervescência. Esta
ebulição de idéias, fatos históricos, movimentos sociais, políticos, religiosos e
econômicos constituiu o pano de fundo da transformação que a modernidade
imprimiu no modo de vida. Duzentos anos foram suficientes para preparar o
mundo para mudanças radicais que foram manifestadas mais claramente na
modernidade.243

238
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., pp. 47,48.
239
BIÉLER, André, op. cit. pp. 43,67. Cf. também em David S. Schaff. Nossa Crença e a de
Nossos Pais. São Paulo: Imprensa Metodista. 1964, p. 66; Fernández-Armesto & Derek Wilson.
Reforma: o Cristianismo e o Mundo 1500-2000. Rio de Janeiro: Ed. Record. 1997, p. 11.
240
LÉONARD, Émile G., op. cit., pp. 27-28. Cf. também Felipe Fernández-Armesto & Derek
Wilson, op. cit., pp. 10-11.
241
Uma das formas era um tipo de religiosidade repleta de misticismos, que ainda tem expressões
em nossos dias, na prática cristã de modo geral. Por exemplo, Lutero recebeu grande influência de
Agostinho (354-430), Mestre Eckhart (c. 1260 – 1327). Ver TILLICH, Paul em História do
Pensamento Cristão. São Paulo: ASTE. 2000, p. 188.
242
ABBAGNANO, N. & VISALBERGHI. A. História de la Pedagogía. Novena reimpresión.
México: Fondo de Cultura Econômica. 1990, p. 253. Ver também: WARFIELD, B. B. Calvino e o
Calvinismo (New York, 1931), p. 10.
243
GIDDENS, Anthony. Sociología. Madri: Alianza Editorial. 1992, p. 90.
90

Foram muitos os aspectos que contribuíram para as transformações


religiosas, que estão abalizadas nas dimensões vivenciais que interferiram na
cosmovisão da época. Podemos classificar, pelo menos, mais seis fatores que
contribuíram nesse sentido, que se seguem aos já citados: a instabilidade política,
o fim das cruzadas, o crescimento populacional, o declínio da agricultura e a peste
bubônica.244
Toda a crise encontrou na fragilidade da Igreja Medieval combustível para a
emergência de movimentos reformadores. A sólida política eclesiástica medieval,
embasada no direito canônico, na importância da figura unificadora do Papa e na
disseminação ideológica da Igreja dentro das diretrizes do colegiado, foi abalada
por distúrbios de natureza interna. O chamado cativeiro babilônico, que foi a
existência de um Papa na cidade de Avignon, foi o primeiro sinal mais claro do
desgaste político-ideológico da Igreja Medieval. Mais tarde, o Grande Cisma, com
a coexistência de dois Papas, um em Roma e outro em Avignon, ocasionando a
descentralização do poder da Igreja, facilitou o surgimento de surtos reformadores
e oposicionistas, que eram do interesse das monarquias estabelecidas e dos
burgueses detentores do capital outrora volátil devido à evasão de importantes
divisas à Igreja de Roma.245

244
GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados. Vol. V. São Paulo: Vida Nova. 1986, p.
11. Gonzalez aponta três destes aspectos: instabilidade política, fim das cruzadas e decadência da
agricultura. Sobre isto, afirma Vale: “A relação do eclesiástico com o poder secular tem o status de
maior tema na história medieval européia, mas, durante um período da Idade Média, a
secularização tem importância especial. O controle que o papado detinha sobre o poder secular
passou a falhar. Em 1500, o poder secular exercia uma grande influência em toda a Igreja no Norte
da Europa, processo que se iniciou desde 1200. Na Alemanha, influências dos príncipes e
aristocratas foram importantes; na França, o poder da monarquia estava acima do eclesiástico e os
privilégios dos clérigos foram cerceados [...].” (VALE, Malcolm, The Civilization of Courts and
Cities in the North, In: HOLMES, George, Yhe Oxford History of Medieval Europe, Oxford:
Oxford University Press, 1992, p. 276). Esta decadência do poder eclesiástico ocorreu
concomitante à “[...] crise da Idade Média [...] conseqüência das devastações e pandemias, guerra,
deterioração climática e depressão econômica [...]”. Ver: CANTOR, Norman F., The Civilization
of the Middle Ages, New York: Harper Perennial, p. 529. Ver também: GONZALEZ, Justo L. A
Era dos Sonhos Frustrados. Vol. V, op. cit., 11. Ver também: AQUINO, Ruben. História das
Sociedades. Rio de Janeiro: Ed. Ao Livro Técnico. 1978, pp. 420,421. Sobre a crise econômica
que se abateu sobre a Europa, Cf. BRAUDEL, Fernand. Civilização Material e Capitalismo. São
Paulo: Ed. Martins Fontes. 1995, p. 62.
245
“Novo período de declínio e desmoralização do papado ocorreu no século XIV e início do
século XV.” Primeiro, os papas residiram na cidade de Avinhão, ao sul da França, por mais de
setenta anos (1305-1378), colocando-se sob a influência dos reis franceses. Esse período ficou
conhecido como "o cativeiro babilônico da Igreja". Em seguida, por outros quarenta anos (1378-
1417), houve dois e finalmente três papas simultâneos (em Roma, Avinhão e Pisa), no que ficou
conhecido como "o grande cisma". MATOS, Alderi S., O Papado: Origem e Evolução Histórica.
Disponível em http://www.thirdmill.org/files/portuguese. Acesso em 12 de maio de 2004.
91

Do ponto de vista do desenvolvimento teológico, este encontrou o seu auge


na escolástica.246 E no desenvolvimento da escolástica, percebe-se o princípio da
ruptura da unidade teológica medieval, marcada, preponderantemente, antes deste
movimento, pela alegorização e repetição dos discursos dos Pais da Igreja, com
poucas contribuições substanciais em comparação com outros períodos
históricos.247
A teologia, exclusivamente neoplatônica e continuísta, cedeu espaço ao
neoplatonismo e aristotelismo devido à contribuição bizantina.248 O pensamento
de Aristóteles, apresentado sob as releituras de Averróis e Maimônides, foi
utilizado pelos teólogos da Igreja, que se familiarizaram com o aristotelismo
árabe-judeu, formando a posteriori seus próprios sistemas filosóficos.249 Dessa
forma, a lógica e a física de Aristóteles finalmente deixaram sua condição de
marginal e adentraram o contexto de fé cristã, auxiliando-a na demonstração da
existência de Deus.250
Esta transformação teológico-ideológica, advinda da influência árabe à
Europa cristã, interferiu na cosmovisão e no desenvolvimento do pensamento
teológico ao modificar a cosmologia e a epistemologia.251 A primeira se dividiu
em uma física predominantemente aristotélica e uma metafísica neoplatônica. Já a
epistemologia apresentou, como alicerce para o edifício teológico, um
neoplatonismo com forte ênfase na experiência, por um lado, ou o aristotelismo
observativo e construtivista, fundamentado na lógica, por outro lado.252

246
GOFF, Jacques Le. Intelectuales en la Edad Media. Cambridge, Mass.: Blackwell, 1993, pp.
24-35.
247
VELASCO, Juan Martín, Ser Cristiano en Una Cultura Posmoderna, p.53.
248
SIEPIERSKI, P., Protestantismo e Pós-Modernidade. (In: MARASCHIN, Jaci, Teologia Sob
Limite), p. 145.
249
HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade, op. cit., p. 190.
250
MARDONES, José Maria, op. cit., p. 70.
251
LIBÂNIO, João Batista. Desafios da Pós-Modernidade à Teologia Fundamental, (In:
TRASFERETTI, José & GONÇALVES, Paulo S. L. (org.), Teologia na Pós-Modernidade, op. cit.,
p.165.
252
TILLICH, Paul. Teologia Sistemática, op. cit., p. 33.
92

A herança do neoplatonismo foi mantida, porém modificada no que diz


respeito ao conteúdo original dos autores helenísticos. Continuava cumprindo
muito bem seu papel de reafirmar os propósitos filosóficos da Igreja, mantendo o
antigo conceito de compreensão das expressões Divinas, feitas exclusivamente
através da fé. A tensão entre este antigo conceito basilar e a cosmologia e
epistemologia aristotélica foi marcante em todo o período da Escolástica.253
O problema fundamental da filosofia medieval estava na relação entre o
conhecimento e a fé, onde a fé detinha a supremacia sobre a razão. A segunda
questão importante e decorrente desta estava na relação entre o universal e o
particular. A expressão do aristotelismo e do neoplatonismo da escolástica se fez
através da distinção, a partir deste, entre nominalistas e realistas.254
Portanto, realismo, realismo moderado e nominalismo são as três fortes
correntes epistemológicas surgidas na escolástica. Ao discutir o fundamento
epistemológico da teologia cristã, elas iam ao encontro do cerne de todo o edifício
teológico, estabelecendo a base a partir da qual se construiria toda a teologia de
então.255
O esplendor da escolástica se deu devido ao desenvolvimento da vida social,
do crescimento das cidades, do comércio, do agravamento das contradições e
tensões entre o poder secular e o papado e ao surgimento de heresias que se
propagaram entre as massas, ocasionando insurreições. Acabou se desenvolvendo
também devido à ampla esfera de publicações filosóficas e científicas e à
divulgação das obras de Aristóteles. O principal escolástico foi Tomás de Aquino,
(1225- 1274), italiano, pertencente à ordem dos dominicanos. Sua teoria tinha por
objetivo rechaçar o averroísmo, reafirmando que a fé e a razão não são apenas
distintas, mas também formam um todo necessário para se conhecer a Deus.256

253
Cf. GELDER, Craig van. Postmodernism as an emerging worldview. In: Calvin theological journal.
N. 26, 1991.
254
DELISLE, L. "Traités Divers sur les Propriétés des Choses", Histoire Littéraire de France,
Paris, 1888, vol. 1, pp. 334-88.
255
COSTA, Wladimir. El Continente Prodigioso: Mitos e Imaginario Medieval en la Conquista
Americana, Caracas: Universidade Central de Venezuela / Edição da Biblioteca Central, 1992. Cf.
FREIDMAN, John B., The Monstrous Races in Medieval Art and Thought, Cambridge,
Massachusetts/ London, England: Harvard University Press, 1981. p. 37. Ver também: BOBBIO,
Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo:
Universidade Estadual Paulista, 1995. p. 129.
256
ESCOBAR, Valenzuela, G. Ética. Introducción a su problemática y su historia. 3ª. edición.
McGraw-Hill. México. 1992, pp. 190-193.
93

Os resultados da reflexão baseada na razão e a mesma fundamentada na fé,


chegam aos mesmos resultados.257 Utiliza o idealismo de Aristóteles, afirmando
que a matéria não pode existir dissociada de sua forma, e que a forma pode existir
separada da matéria. Ou seja: nada pode existir de forma independente daquilo
que foi pré-determinado por Deus, um ser puramente espiritual.258
Tomás de Aquino foi partidário do realismo moderado, afirmando não ser
possível uma correlação plena entre as idéias e a realidade. O geral, para Aquino,
é produto do intelecto, porém existe por si mesmo na mente de Deus, e a mente é
uma aptidão mais elevada que a vontade. É na mente que se situa o
conhecimento.259
A importante transição para a releitura de Tomás de Aquino, que influenciou
todo o período dos pré-reformadores, foi Duns Escoto (1265- 1308), pois
afirmava ser Deus o objeto da teologia; e a filosofia consiste em ontologia pura e
simplesmente. Por isto, o conhecimento de Deus mediante a filosofia só pode ser
limitado e o ser humano não pode ter nenhum conhecimento das substâncias
imateriais, como Deus e os anjos. Deus é a forma pura, e as demais coisas são
materiais.260
A missão do conhecimento é conhecer a singularidade, pois esta é o que
realmente existe.261 O conhecimento do mundo começa com a experimentação.
Todas as ciências têm por fonte de saber o singular, porém todas tratam também
dos universais. A ciência, neste aspecto, serve para distinguir conceitos, e não
coisas.262 Portanto, Ockham é dualista, pois afirma que o experimento é fonte de
saber e, por outro lado, diz que os símbolos são meios de conhecimento.263 A
medida que a ciência se fortalecia, a escolástica cedia espaço para esta.

257
BALTASAR, Castro Cossío. Ética Filosófica. México: Ed. Diana, 1987, pp. 39-41
258
FRANKI, Victor. El Augustinismo Franciscano del Siglo XIII como Raiz de la Fisica
Matematica Moderna, Bolivar, n. 16, Bogotá, pp. 23-42.
259
FABRO, Cornelio, C.P.S. Participation et Causalité selon S. Thomas d’Aquin, Pub.Univ. de
Louvain, 1961. p. 121.
260
GOMIDE, F. M. Exemplos do Jugo de Aristóteles na Filosofia e na Ciência, Reflexão
(PUCCAMP), n. 64-65. 1996, pp. 154-185.
261
CASSIRER, Ernst. Filosofia de la Ilustración. Cidade do México: Fondo de Cultura. 1943, p.
12.
262
HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa: Ed. Dom Quixote.
1990, p. 111.
263
DI PASQUALE, Giovanni. História da ciência e da tecnologia: da pré-história ao
renascimento. Lisboa: Edições ASA, 2002. p. 53.
94

Os pré-reformadores estavam embebecidos pelos pensamentos da


escolástica, pricipalmente pela nova cosmovisão teológica de Aquino, gestada e
concebida a partir de um duplo foco: da revelação e da reflexão autônoma, sob a
síntese da fé cristã e do pensamento aristotélico.264 Este aspecto gerou um impasse
teológico, no sentido de que a teologia estava fadada à morte, suprimida pela
abrangência da teodicéia.265 Este impasse não foi bem resolvido com as
formulações de Duns Escoto e Guilherme de Ockham e permanecia gerando
problemas.266
Dentro desse espectro, os pré-reformadores seguiram, em grande parte, as
tendências teológicas do seu tempo. O principal fator diferenciador está atrelado a
uma volta a Agostinho, com transformações importantes na cosmovisão
eclesiológica da época, chocando-se, assim, com as estruturas da Igreja neste
período.267 Foi validada a contestação da Igreja a partir da construção de uma
teologia fundada na racionalidade, e não mais nas inúmeras afirmações dos Pais
da Igreja.268 A ruptura foi buscada a partir do dado epistemológico, não pelo dado
fideístico.269
Uma influência decisiva no pensamento dos pré-reformadores foi a mística.
Esta consiste na crença da capacidade do ser humano de levar a cabo a sua
comunicação direta com Deus. E esta comunicação, contato ou experiência é
situada acima dos dogmas e da teologia.270
O primeiro místico medieval que constituiu grande influência foi Bernardo
de Clairvaux (1091- 1153), que ensinava que o êxtase místico se alcança mediante
a cooperação entre o livre arbítrio e a graça de Deus.271

264
LIBANIO, J. Batista. Introdução à Teologia, op. cit., p. 131. Cf. DREHER, M.. op. cit., p. 88.
265
BARTHES, R. “L’ancienne rhétorique Aide-mémoire”. En Communication, 16: 172-229.
266
FLORESCU, V. La thétorique et la néothétorique. Gènese, Évolution, Perspectives. Bucarest:
Editura Academiei. 1982, p. 43.
267
VIVES, J. L. De ratione dicendi. En J. L. Vives, Opera Omnia. Edição de G. Mayans.
Valencia: Monfort. VOL. II, pp. 1782-1785.
268
GARIN, E. Medioevo y Renacimiento. Madrid: Taurus. 1981, p. 28.
269
MURPHY James J. La Retórica en la Edad Media. Historia de la teoría de la retórica desde
San Agustín hasta el Renacimiento (1974), México, FCE, p. 134.
270
ECO, Umberto. Arte e Beleza na Estética Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989. p. 176.
271
GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes. 1998, p. 45.
95

Em meio a esse turbilhão de mudanças, o misticismo religioso alemão


nasceu fortalecido pela grande ênfase que a escolástica dava à razão, em
detrimento da emoção, preenchendo a lacuna que não foi atendida pelo
movimento pré-reformador.272 Conseqüentemente, é a expressão dos nominalistas
que se volta para o misticismo como forma de conhecer a Deus.273 Historicamente
podemos identificar dois tipos de misticismo; o misticismo cristocêntrico,
centrado na pessoa e na influência de Cristo entre os místicos, e o misticismo
neoplatônico, de tendência mais filosófica e especulativa.274 O misticismo se
desenvolveu principalmente na Alemanha, nas margens do Reno.
Nesse sentido, constatamos que a devoção moderna nasceu no meio da
burguesia, entre os necessitados de expressividade espiritual, num período regido
pela força do pensamento escolástico, que havia, de certa forma, deixado de lado
o espaço para a piedade medieval. Com a escolástica perdendo sua força, a
devoção moderna ganhou terreno.275 Estas três forças, a tensão entre o
nominalismo e o realismo tomista e o misticismo, são fundamentais para
compreender o surgimento e pensamento dos pré-reformadores.

2.2
Os Pré-reformadores

Os pré-reformadores são pensadores cristãos de transição. A necessidade de


mudanças profundas na Igreja vinha sendo anunciada, já que a Igreja estava em
situação de profundo desprestígio. Para o surgimento dos pré-reformadores, o
cenário social, político, econômico e eclesiástico da época contribuiu para
manifestações de insatisfação com a Igreja da época e, muitas vezes, com o apoio
do Estado, para divulgar suas posições teológicas, com conseqüências diretas na
vida eclesial e social.

272
CAIRNS, E.., op. cit., p. 202.
273
LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva. 1984, p. 27.
274
GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados, op. cit., p. 123.
275
DREHER, Martin. Vol. III. op. cit., p. 120.
96

Na verdade, o que aconteceu foi a união da piedade à práxis, ocasionando o


exercício da crítica, filha da liberdade. Fruto direto dos místicos alemães e da
nova devoção moderna, receberam como herança a busca pela piedade e a
devoção. Já dos humanistas, herdaram a busca às origens na patrística,
principalmente Santo Agostinho.
Assim, no século XV, em 1437, o rei Afonso V de Aragão chamava a
atenção para o fato de que a Igreja provocava muitos escândalos, evidenciando
assim, uma clara necessidade de se estabelecer mudanças.276 As críticas à Igreja
Católica, que foram formuladas nos séculos XIV e XV, partiam de muitas
direções, já que os abusos de parte do clero, somados à medievalidade das suas
estruturas e pensamentos, clamavam por mudanças estruturais e espirituais.
A causa da Reforma é tão complexa, que a não-menção aos pré-
reformadores torna impossível compreender satisfatoriamente o período. As
necessidades religiosas do período exigiram dos movimentos respostas que foram
sendo dadas através de rupturas mais ou menos impactantes ou profundas,
conforme o contexto e o nível de apoio das classes burguesas emergentes. Nesta
direção, não é apenas a decadência moral da Igreja Romana a causa da Reforma,
mas também foi uma transformação profunda da sociedade, culminando na
emergência de novos movimentos.277
A simultaneidade dos problemas que ocasionaram o ocaso da era medieval
são responsáveis diretos para o crescimento da sensação de crise e insatisfação. O
crescimento das cidades provocou a ascensão de classes que se viam limitadas
pela influência massiva da Igreja em todos os negócios públicos e/ou privados.
Crises sucessivas, já mencionadas, acabaram por abrir a possibilidade de
transições e, neste contexto transitório, os pré-reformadores surgem como figuras
contestatórias.
Porém, especificamente os movimentos apresentam diferenças
significativas. Por isso, torna-se imprescindível um olhar histórico-analítico sobre
alguns dos principais pré-reformadores, que contribuíram para a pavimentação da
estrada pela qual a Reforma Protestante trilharia com seus caminhantes.

276
FREITAS, Gustavo. 900 textos e documentos de História. Lisboa: Plátano, sd, vol. II. p. 156.
277
DELUMEAU, Jean. Nascimento e Afirmação da Reforma. São Paulo: Editora Pioneira,
1989, p 59.
97

2.2.1
John Wycliff e os Lolardos

É impossível falar de alguns pré-reformadores sem iniciar com John


Wycliff. Ele nasceu em 1320, em North Riding of Yorkshire.278 Formou-se no
Balliol College, de Oxford, e foi ordenado sacerdote em data desconhecida, sendo
indício da sua ordenação sua atividade na Igreja de Westbury-on-Trim, além de
pertencer à Cúria Romana, em 1361.279 Não apenas graduou-se na universidade de
Oxford, mas também se tornou brilhante professor de Filosofia e Tologia nesta
instituição. Tanto seu período na Igreja de Westbury-on-Trim, quanto em
Lutterworth, são indícios da sua participação na simonia da qual usufruíam os
grandes prelados, por obter vantagens econômicas através do serviço à Igreja.280
Quando retornou à Inglaterra, Wycliff passou a apresentar fortes críticas à
Igreja. Na medida em que aprofundava seus estudos escriturísticos, suas críticas
tornaram-se mais contundentes, sobretudo a partir do Grande Cisma de 1378. Em
1376, leu para seus alunos o tratado Do Domínio Civil, escrito por suas mãos. Sua
repercussão foi tão grande, que os parlamentares ingleses se inspiraram nele para
produzir os 140 artigos de uma lei para corrigir os abusos eclesiásticos. Neste e
em outros tratados, Wycliff denunciava as incoerências da Igreja quando se
envolvia na aquisição de bens temporais. Tais posturas de Wycliff, logicamente
contrárias à Igreja, fizeram com que ele fosse convocado pelo bispo de
Canterburry, a fim de que se apresentasse ao bispo de Londres, em 1377.281 Ele
foi acompanhado por Lord Percy e mais quatro doutores, que defenderam Wycliff
antes mesmo de qualquer pronunciamento seu, o que provocou o final da reunião.

278
CERNI, Ricardo, op. cit., p. 19. Escolhemos este autor por fornecer uma biografia mais
completa e exata. Outros autores, quanto ao ano, fornecem outras indicações, como Cairns, E. E.,
O Cristianismo através dos séculos, p. 204, aponta o ano de 1328; Dreher, M., A Igreja no
Mundo Medieval, defende o ano de 1324. A Enciclopédia Barsa, p. 506, Vol. XVI, aponta o ano
de 1330.
279
CERNI, Ricardo, op. cit., p. 19.
280
Simonia é alusivo à compra e venda de cargos eclesiásticos. O nome deriva de Simão, o
mágico, personagem bíblico que pretendia comprar o dom de Deus (At 8:9-13). Ver GONZALEZ,
Justo L., op. cit., pp. 55,85.
281
GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados, op. cit., p. 83.
98

Em maio de 1377, Gregório XI condena 18 teses do livro Do Domínio Civil.


Mesmo assim, Wycliff não foi preso, mas protegido. Alguns meses depois,
quando consultado sobre a legalidade da proibição de emitir dinheiro para Roma,
ele expressou sua posição favorável a tal decisão. Uma vez tomando posição em
favor do governo do rei contra o papado, Wycliff afirmava, em outras palavras,
que os bens temporais eram nocivos à lgreja e que, portanto, os príncipes tinham o
direito de se apossar dos mesmos, quando os clérigos não os utilizam
devidamente. Ou seja, o ideal seria que o Estado secularizasse todas as
propriedades da Igreja e se encarregasse diretamente do sustento do clero.282
Wycliff reprovou duramente a eleição de Clemente VII, no lugar de Urbano
VI, o que resultou no cisma do Ocidente, declarando que a Igreja poderia
sobreviver sem a figura do Papa.283 Tais idéias encontravam eco na corte e entre
os nobres. No entanto, os nobres perceberam, nas doutrinas de Wycliff, o
princípio de que seus súditos tinham que ser atendidos em suas necessidades.284
No compasso crescente de suas novas idéias, Wycliff, em 1380, escreveu um
ataque formal contra as doutrinas da eucaristia, inclusive a transubstanciação,
tratado este chamado Trialogus.285 Rejeitava a real presença de Cristo na
eucaristia. Para ele, todo cristão só receberia espiritualmente o corpo e o sangue
de Cristo.

282
MOTA, Carlos Guilherme. A Revolução Religiosa: Lutero e a Reforma em Lutero e a
Reforma. 480 anos depois das 95 teses, uma avaliação dos seus aspectos teológicos, filosóficos,
políticos, sociais e econômicos. São Paulo: Ed. Mackenzie. 2000, pp. 41,42. Wycliff demonstrou
muita força através de suas idéias, que buscavam não apenas uma reforma na Igreja, mas também
que tais reformas alcançassem a vida social, política e econômica do povo. De certa forma, ele
antecipou as críticas sociais e políticas que, mais tarde, foram feitas por Shakespeare, Morus e
Hobbes (Cf. p. 41). Na verdade, muitos setores da sociedade, tais como os burgueses, camponeses,
inclusive a chamada pequena nobreza, exigiam uma reforma eclesiástica, sobretudo, que a Igreja
vendesse suas terras. Houve uma intensificação do sentimento anticlerical (Cf. p. 42).
283
CERNI, Ricardo. Historia del Protestantismo, op. cit., p. 22 e Enciclopédia Barsa, op. cit..
284
GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados, op. cit., p. 86. Os cristãos na lnglaterra
sempre tenderam a se isolar do resto da Igreja, vivendo certo separatismo, talvez por sua posição
geográfica singular, o que facilitava às idéias de Wycliff.
285
Wycliff abre, através da sua obra, uma discussão intensa sobre as doutrinas que substituiriam a
concepção católico-romana de sacramento. As doutrinas que surgiram em decorrência a esta crítica
foram contrapostas, por ser o sacramento uma questão teológica fundamental. Isto motivou crises
entre os Reformadores. Um exemplo foram as diferenças entre Zwinglio e Lutero a respeito do
sacramento da Santa Ceia, que se mostraram insuperáveis no decorrer da segunda metade da
década de 1520. Ver: LIENHARD, M. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. São Leopoldo:
Sinodal, 1998. Original em francês, pp. 183-189.
99

Na verdade, ele afirmava ser impossível que os elementos tenham deixado


de ser pão e vinho. Esta questão era analisada por ele segundo o conceito da
encarnação: da mesma forma que a negação da encarnação de Deus constitui a
heresia do docetismo, a doutrina da transubstanciação negava a presença espiritual
de Cristo nos elementos. Portanto, da mesma forma que na encarnação a alma
encontra o corpo, Cristo está presente de forma espiritual nos elementos
sacramentais, segundo Wycliff.286
As Escrituras deveriam ser a única norma de fé. Elaborou também uma
tradução das Escrituras para o inglês, diretamente da Vulgata, colocando a Bíblia
ao alcance do povo. Mandava sacerdotes pobres e leigos de dois em dois para
anunciar as Boas Novas. A Igreja de então passou a chamá-los de lolardos.287
Defendia que a predicatio verbi (pregação da Palavra) era de fundamental
importância e que podia ser realizada não apenas pelos clérigos, mas também
pelos leigos, desde que fossem membros da Igreja invisível, podendo ser esta
pregação realizada na língua nacional.288
Santo Agostinho e Tomás de Aquino influenciaram bastante o pensamento
de Wycliff, que formula, a partir destes, suas doutrinas sobre a revelação e a
Igreja. Quanto à relação entre razão e revelação, concebe o pensamento de que
“ambas – revelação e razão - levam a mesma verdade universal”.289 A partir do
pensamento de Agostinho, Wycliff adotou a doutrina da predestinação, sendo a
Igreja o espaço dos predestinados. Ainda no lastro de Agostinho, classificou a
Igreja entre a comunidade visível, formada de todos os que a ela aderem por meio
do batismo e da comunidade invisível, formada por todos aqueles salvos, que só
Deus os conhecia. Com isso, a Igreja Visível fica marcada pela percepção clara de
que nem todos que dela fazem parte são verdadeiramente salvos.

286
GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados, op. cit., p. 366.
287
BOSTICK, Curtis V. The Antichrist and the Lollards. Leiden: Brill, 1998. p. 23. Como
resultado do corpo de doutrinas de Wycliff, como já mencionamos acima, surgiu o grupo chamado
Lolardo. Eram, inicialmente, discípulos de Wycliff, pessoas do círculo acadêmico e de posição
social elevada. A origem do termo lolardo se origina da língua holandesa e significa
murmuradores ou lollium, joio. Eles disseminavam seus pensamentos entre o povo, recebendo
maior aceitação das classes mais pobres. Tornaram-se pregadores leigos, anunciando e apontando
os desvios da Igreja, bem como do clero, incluindo desvios de ordem moral, o culto às imagens e a
doutrina da transubstanciação. Cf. Bostick, Curtis V. The Antichrist and the Lollards. Leiden:
Brill, 1998. p. 123.
288
TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: Ed. ASTE, 2000, p. 191.
289
Ibidem, p. 363.
100

Segundo Tillich, esta doutrina constituía uma grave denúncia à Igreja


Romana, pois que questionava, de forma direta, os membros do clero através
daquilo que representavam e aquilo que viviam, sendo, portanto, desconsiderada a
autoridade destes quando demonstram que não estão a serviço dos interesses do
Reino de Deus, porque, na verdade, dEle não faziam parte.290
Nas palavras de Jean-Jacques Chevalier, quando Wycliff abordava as
doutrinas sobre o senhorio, elas “ressuscitam em favor do rei as doutrinas de
Gregório Magno”.291 Tal afirmação se prende ao fato de que, assim como
Gregório, Wycliff ensina que o rei é vigário de Deus e, portanto, representante da
realeza de Cristo. A Igreja deve ser independente do governo secular e, por sua
vez, o governo também deve ser independente da Igreja. Ou seja, o papel do
governo secular é servir a sociedade, buscando seu bem estar, pois foi instituído
por Deus para tal propósito. Sendo assim, uma vez que o Estado não exerce sua
função, não deve ser considerado legítimo.292
João Wycliff foi um dos exemplos de pensadores que, mesmo em face da
predominância da visão do quádruplo sentido da Escritura (histórico, alegórico,
tropológico e anagógico),293 defendeu e usou aquilo que poderia ser descrito como
uma hermenêutica histórico-gramatical incipiente.

290
TILLICH, Paul, op. cit., p. 189.
291
CHEVALIER, Jean-Jacques. História do Pensamento Político, Tomo I, p. 251.
292
GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustados, op. cit., p. 364.
293
Sob influência de João Cassiano (360-435) que ensinou em uma célebre quadra: “Littera gesta
docet, Quid credas allegoria, Moralis quid agas, Quo tendas anagogia.” Que poderia ser
traduzido como: “A letra nos mostra o que aconteceu; a alegoria, no que devemos crer; a moral
(sentido tropológico), como devemos viver; a anagogia, para onde estamos indo.”
101

2.2.2
John Huss e os Hussitas

John Huss foi adepto dos pensamentos de Wycliff. O tcheco nasceu, em


1373, em Hussinek, uma pequena aldeia da Boêmia.294 Logo cedo, aos dezesseis
anos, ingressou na Universidade de Praga, alcançando grande notoriedade.
Tornou-se professor, em 1398, sendo também ordenado e logo assumindo o posto
de pregador da Capela dos Santos Inocentes de Belém, em Praga.295 Ele
ministrava os cultos em língua boêmia e introduziu reformas litúrgicas conforme
sua teologia.296
Neste tempo, pregava contra os abusos da Igreja, sem apresentar variação na
ortodoxia comumente aceita. Mas afirmava “que os fiéis deveriam ser
considerados iguais nas atividades religiosas, contra os dogmas da Igreja”.297 Não
podemos deixar de afirmar que o solo da Boêmia estava preparado para a
fermentação de suas idéias, pois, além de vestígios de antigos pensamentos
religiosos (cátaros, valdenses), a decadência moral e a ignorância do povo eram
notáveis.
Mesmo com um corpo de doutrinas um tanto quanto eqüidistante da Igreja,
seu posicionamento alcançou os círculos acadêmicos em contundentes e acirradas
disputas. Por meio de Jerônimo de Praga, um de seus discípulos, teve acesso às
obras de Wycliff, que influenciaram grandemente seu pensamento, embora com
posicionamento diferente de Wycliff quanto ao sacramento eucarístico. Ao
defender algumas teses de Wycliff, Huss foi excomungado, mas não parou de
pregar.298 Roma o convocou a fim de que desse explicações acerca de seus
pensamentos. Não comparecendo, foi novamente excomungado, dessa vez pelo
cardeal Collona, em 1411, em nome do Papa.

294
A maioria dos autores consultados concorda com este ano. Apenas Justo Gonzalez apresenta
uma data indefinida. Martin Dreher defende o ano de 1369 e P. Kubricht defende o ano de 1372.
Veja: CERNI, R., op. cit., p. 24; DERHER, Martin. Vol. III. op. cit., p. 119; GONZALEZ, Justo.,
op. cit., p. 95; KUBRICHT, P., Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, p. 280.
295
GONZALEZ, Justo L. Historia del Pensamiento Cristiano, p. 367.
296
Doutrinas estas influenciadas por Wycliff, e aplicadas na Reforma da Igreja Boêmia e postas a
serviço da dissolução da dependência ou dominação dos alemães na Boêmia. Ver: CANTOR,
Norman F., The Civilization of the Middle Ages, New York: Harper Perennial, p. 500. Ver
também: GONZALEZ, Justo L.. op. cit., p. 368.
297
MOTA, Carlos Guilherme., op. cit., p. 42.
298
CERNI, Ricardo. op. cit., p. 26.
102

O sucessor de Alexandre V foi João XXIII, como papa pisano, que publicou
uma bula fornecendo indulgências para quem lutasse contra Ladislau de Nápoles,
protetor de Gregório XII. Huss se posicionou contra a Bula, o que gerou grandes
conflitos em Praga. O rei, que apoiava o Papa pisano, proibiu as críticas à venda
de indulgências, sendo, posteriormente, esta ordem revogada devido a um acordo
entre o papa e Sigismundo, sucessor de Venceslau.299 Pela terceira vez, Huss foi
excomungado, agora em 1412, pois não obedecera à nova ordem do Papa de se
apresentar em Roma. Houve, então, um interdito a qualquer cidade que porventura
viesse a acolher Huss. Diante de tal decreto, Huss foge para o interior da Boêmia,
mas não desiste de pregar.300 O pregador retirou-se, então, para o castelo de um
nobre seu amigo, para onde o povo se pôs a peregrinar em massa. O hussismo, em
pouco tempo, alcançou influxo predominante na Boêmia. A apostasia de quase um
povo inteiro abalou o sentimento cristão ocidental.
O imperador Sigismundo, da Alemanha, irmão do rei Venceslau, da Boêmia,
convidou Huss a comparecer no Concílio de Constança e, de fato, ele se
apresentou, com um salvo-conduto, em novembro de 1414. Huss, porém, só
encontrou adversidade e rejeição. O Concílio e as autoridades trataram-no como
herege, prendendo-o. Sigismundo inicialmente protestou, mas, posteriormente,
revogou sua decisão por não querer ser identificado como um herege.301 Só
restava uma opção para Huss, retratar-se diante do Concílio. Considerado herege
por permanecer irredutível, sua morte foi decretada, em 6 de julho de 1415.302
Suas maiores contribuições, no campo teológico, foram os seus
posicionamentos apresentados em suas pregações. Huss defendia uma fé
cristocêntrica, enfatizava a responsabilidade individual, acreditava no perdão de
pecados somente através de Jesus Cristo, aguardava um juízo escatológico, era
contrário à veneração do Papa e deu importantes contribuições litúrgicas,
inserindo, na capela de Belém, uma liturgia de cunho nacional.

299
LÁSZLÓ, Barta, “A spanyolországi hungarica-kutatás története (Historiografia de
investigações de temas húngaros na Espanha)”. Levéltári Szemle (Cadernos Arquivados). 1989.
No2; ANDERLE, Adam, A fekete legenda “Magyarországon”. (A Lenda Negra na Hungria).
Világtörténet. Budapest, 1985. No 3, pp. 4-16; do mesmo autor: En contacto. Historia de las
relaciones húngaro-españolas. Sevilha: Ed. Hungexpo, 1992, p. 28.
300
GONZALEZ, Justo L, op. cit., p. 99.
301
GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados, op. cit., p. 100.
302
CERNI, Ricardo. Historia del Protestantismo, op. cit., p. 27 e KUBRICHT, P., op. cit., p. 281.
Cf. MOTA, Carlos Guilherme. A Revolução Religiosa: Lutero e a Reforma, op. cit., 42.
103

A execução de Huss foi recebida, na Boêmia, como uma ofensa à nação. A


reação hussista-nacionalista foi violenta e os sacerdotes não hussistas foram, em
grande número, expulsos. A rainha Sofia e as damas nobres tomaram aberto
partido por Huss como herói e mártir nacional. Quase toda a nobreza da Boêmia e
da Morávia enviaram um protesto para Constança, afirmando que Huss fora
virtuoso e ortodoxo e que os boatos de uma heresia boêmia eram invenção do
inferno. Ao mesmo tempo, formou-se uma Liga em defesa da liberdade de
pregação, para a proteção contra a autoridade episcopal e a excomunhão injusta.
Introduziu-se a praxe do cálice dos leigos (comunhão sob as duas espécies)303
como símbolo da facção hussista.304 Esta dominou a Boêmia quase totalmente
durante vários anos. Em 1419, o rei Venceslau restabeleceu os sacerdotes
expulsos, o que provocou violenta revolução, na qual foram assassinados sete
conselheiros reais, vindo o rei Venceslau a morrer do coração em conseqüência
deste golpe.305

2.2.3
Jerônimo Savonarola

Jerônimo Savonarola viveu no século XV, mas esteve à frente de seu tempo.
Nasceu em 1452, em Ferrara.306 Recebeu educação rígida pelo avô. Segundo
Ricardo Cerni, Savonarola ouviu um sermão, em 1474, em Faenza, que o
impactou tremendamente, mudando definitivamente a direção de sua história. Em
seguida, entrou para o convento de São Domingo, onde recebeu sua formação
religiosa.

303
KÜNG, Hans, Veracidade: o futuro da Igreja, p. 100.
304
Alguns destes, não concordando com possíveis acordos, fundaram a Unitas Fratrum, que
chegou a ser muito numerosa na Boêmia e Moravia. Com o advento da Reforma Luterana, eles
estabeleceram relações com os protestantes. Os austríacos passaram a perseguí-los e a organização
foi praticamente destruída, sendo João Amós Comênio um representante do remanescente, que
ainda lutava pela instauração da ordem, o que ocorreu com o remanescente da ordem, os chamados
“morávios”. Cf. RAMPAZO, L. Antropologia, religiões e valores cristãos, p. 114.
305
É importante afirmar que o movimento reformador dos Hussitas nasceu devido à confluência de
várias condições. A primeira foi a crise econômica e política durante o reinado de Venceslau IV
(1378-1419), que sucedeu a Carlos IV. Esta crise foi exacerbada pelos problemas registrados na
Europa desse tempo (Grande Cisma, críticas à Igreja).
306
GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados, op. cit., p. 157.
104

Sua erudição bíblica era incomparável no seu tempo, assim como sua
tremenda capacidade oratória. Enfrentou duramente a autoridade papal,
desafiando a Igreja a uma reforma espiritual e, conseqüentemente, moral. Sua
proeminência não se deu pela proximidade teológica com Wycliff e Huss, nem
por algum legado, transmitido através de um movimento que fosse importante
para a Reforma Protestante, que viria um século depois.307
Dada sua extraordinária capacidade intelectual, foi mandado a Florença,
porém, seus sermões não agradaram tanto os florentinos. Foi, então, para Bologna,
obtendo a função de mestre de estudos. Um humanista, chamado Pico de la
Mirandola, admirador de Savonarola, o indicou para Lourenço de Médicis. Ali
começou a expor as Escrituras no Convento de São Marcos, e suas conferências
começaram a atrair multidões. Em 1491, foi convidado para pregar em Santa
Maria das Flores, mas sua pregação não agradou os principais da cidade, uma vez
que sua mensagem possuía uma forte ênfase profética, denunciando,
peremptoriamente, o abuso dos impostos e a grande corrupção da cidade.
Savonarola fez da vida, no convento, um "exemplo de santidade e serviço”.308
Os excessos morais e hábitos pagãos foram totalmente eliminados. Livros,
jóias, perucas e luxos foram queimados na cidade, com a intenção de eliminar a
vaidade. Savonarola estava em seu apogeu em Florença, porém a situação era
instável, uma vez que a economia da cidade enfrentava graves problemas.
Entretanto, as mãos habilidosas de Savonarola sustentavam a situação
provisoriamente.
Negando submissão à Santa Aliança, Savonarola foi excomungado pelo
papa e proibido de pregar. Savonarola declarou inválida a excomunhão, mas
parou, momentaneamente, de pregar. Após seu retorno, usou, além de sua voz, a
imprensa para discursar contra a imoralidade da Igreja. Alexandre VI tentou
convencê-lo, oferecendo-lhe o cargo de cardeal, que foi recusado. Savonarola
começou, então, a perder prestígio em Florença.

307
CAIRNS, E. O Cristianismo Através dos Séculos, op. cit., p. 207.
308
GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados, op. cit., p. 159.
105

Portanto, como vimos, a grande influência dos pré-reformadores incentivou


o nascimento de vários grupos que continuaram a desenvolver suas idéias
reformistas. Entre esses grupos, destacamos os lolardos, que foram decisivos na
Reforma Inglesa. Já na Reforma Alemã, temos os Morávios, surgidos dentre os
Irmãos Unidos,309 que tiveram também importância fundamental. Como dissemos
acima, a estrada estava pavimentada para a deflagração da Reforma Protestante do
Século XVI.

2.3
A Reforma Protestante

A história narra que a Igreja ocidental dos séculos XV e XVI estava


demasiadamente cansada das demandas da Idade Média, como se já não
conseguisse mais responder aos seus novos interlocutores.310 Havia uma clara e
evidente necessidade de se promover uma reforma na Igreja e na sociedade, em
suas mais variadas áreas. O historiador Alister McGrath diz o seguinte:

A Igreja ocidental parecia estar exaurida pelas


demandas da Idade Média, que tinha visto o poder
político da Igreja e, especialmente, do papado, alcançar
níveis jamais conhecidos anteriormente. As engrenagens
administrativa, legal, financeira e diplomática da Igreja
estavam bem lubrificadas e trabalhando com eficiência.
Certamente, é verdade que os papas da Renascença
exerceram sua autoridade durante um período de
decadência moral, de conspiração financeira e de poder
político tremendamente mal-sucedido, que severamente
desafiava a credibilidade da Igreja como guia moral e
espiritual. Ainda assim, como instituição, a Igreja na
Europa ocidental dava claros sinais de solidez e
permanência. Entretanto, havia os sinais de exaustão, de
decadência.311

309
The Church Order of the Unitas Fratrum, I.1.
310
WALLACE, Ronald. Calvino, Genebra e a Reforma. Um estudo sobre Calvino como um
Reformador Social, Clérigo, Pastor e Teólogo. São Paulo: Cultura Cristã. 2003, p. 97.
311
MCGRATH, Alister. A Vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã. 2004, p. 19.
106

Sem dúvida alguma que uma das mais graves crises, no período que
antecedeu a Reforma, foi de cunho eminentemente religioso. Havia um vazio
espiritual sem precedentes na história do cristianismo. A Igreja não estava
atendendo às demandas espirituais do povo. As conseqüências eram desastrosas
na vida das pessoas. Pairava, no coração do povo, uma total insegurança quanto à
salvação. A fé, ensinada pela Igreja, não supria tal carência.
O teólogo Paul Tillich (1886-1965) faz o seguinte comentário, analisando tal
período:

Sob tais condições, jamais alguém poderia saber se


seria salvo, pois jamais se pode fazer o suficiente;
ninguém podia receber doses suficientes do tipo mágico
da graça, nem realizar número suficiente de méritos e de
obras de ascese. Como resultado desse estado de coisas,
havia muita ansiedade no final da Idade Média.312

Na verdade, era como se a Igreja houvesse perdido seu senso de direção,


envolvendo-se cada vez mais em questões meramente seculares, através da
sedução do poder, prazeres e riquezas materiais, expressando, assim, certo nível
de entupimento em suas artérias eclesiásticas.313 Sua prática não era mais tão
verossímil quanto seu discurso.
Portanto, a Reforma Protestante carregava em si o embrião das grandes
transformações, não apenas religiosas, mas culturais, sociais, políticas,
econômicas etc. O teólogo Hermisten diz que “era impossível alguém abraçar a
Reforma apenas no campo da religião e continuar, em tudo o mais, a ser um
homem de uma ética medieval, com a sua perspectiva da realidade e prática
intocáveis. A Reforma, em sua própria constituição, era extremamente
revolucionária”.314

312
TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: ASTE. 1988, p. 210. O holandês
Huizinga afirma que, no apagar da Idade Média, existia um tremendo espírito de melancolia no
coração do povo. Cf. Johan Huizinga. O Declínio da Idade Média. São Paulo: Verbo/EDUSP.
1978, p. 31. Cf. André Biéler. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. São Paulo: Casa
Editora Presbiteriana. 1990, pp. 43,67; Ver André Biéler. A Força Oculta dos Protestantes. São
Paulo: Ed. Cultura Cristã. 1999, pp. 49-51; David Schaff. Nossa Crença e a de Nossos Pais. São
Paulo: 2a edição. Imprensa Metodista. 1964, p. 66; Ver Felipe Fernández-Armesto & Derek
Wilson. Reforma: O Cristianismo e o Mundo 1500-2000. Rio de Janeiro: Ed. Record. 1997, p. 11.
313
MCGRATH, Alister, op. cit., p. 20.
314
COSTA, Hermisten Maia Pereira, op. cit., p. 77. Timothy George afirma que “a Reforma
ocupou, e deve continuar a ocupar, um legítimo e significativo lugar na história das idéias”.
GEORGE, Timothy. A Teologia dos Reformadores. São Paulo: Ed. Vida Nova. 1994, p. 50.
107

Há dois grandes pensadores católicos que corroboram com tal pensamento,


quando declaram que a “contribuição fundamental à formação da mentalidade
moderna foi a reforma religiosa de Lutero e Calvino”.315
A Europa do século XVI era bem diferente dos nossos dias. Por exemplo,
“as fronteiras nacionais eram vagas e foram definidas por limites mais tangíveis e
relevantes de língua, cultura e classe”.316 A Europa ocidental317 foi
tremendamente abalada pela ação da Reforma, especialmente na França, a partir,
sobretudo, de Calvino, tendo Genebra como celeiro irradiador da nova
cosmovisão da Igreja, que alcançou quase todas as dimensões da sociedade de
então e que, até hoje, tem forte influência em todo mundo. Na verdade, Genebra
“tornou-se símbolo de subversão política e religiosa”.318

2.4
Calvino: sua Vida e Obra

Nosso foco de interesse está em conhecer aquele que foi um dos maiores
reformadores do Século XVI, João Calvino319, homem de traços fortes, acometido
de muitas enfermidades, de um raro vigor intelectual, que, embora tentasse buscar
uma vida mais tranqüila, esteve, pela força da providência divina, sempre no
centro das grandes questões do seu tempo, de seu país e, particularmente,
Genebra, cidade do coração e palco da práxis de seu conhecimento, especialmente
sua teologia, tornando-a referência social, política, econômica e religiosa.

315
ABBAGNANO, N. & VISALBERGHI, A. História de la Pedagogía. Novena reimpresión.
México: Fondo de Cultura Económica. 1990, p. 253.
316
MCGRATH, Alister, op. cit., p. 18.
317
COSTA, Hermisten Maia P., op. cit., p. 15.
318
MCGRATH, Alister, op. cit., p. 18.
319
FERREIRA, Wilson Castro. Calvino: vida, influência e teologia. São Paulo: LPC. 1985, p. 36.
108

Diante disso, faz-se necessário contemplar sua história e seu tempo, suas
obras, a partir de seus primeiros biógrafos e de outros mais recentes, ainda que
brevemente, seu corpo teológico nas áreas da antropologia, cristologia,
soteriologia, ressaltando seus resultados na vida humana, imagem e semelhança
de Deus, tornando-o livre para viver a verdadeira liberdade do Evangelho de Jesus
Cristo, com todas as suas implicações ético-sociais, bem como sua eclesiologia,
geradora e formadora de uma comunidade capaz de exercitar o acolhimento, a
solidariedade, a alteridade, a justiça, numa verdadeira práxis libertadora, com
fortes conseqüências na vida social, cultural, política e religiosa do seu tempo.
E ainda mais, com fortes influências para nossos dias, desde que saibamos
ler Calvino à luz do seu tempo, retirando a moldura na qual estava inserido e,
como desafio ético-teológico, atualizar sua teologia nas áreas referidas, a fim de
que sua contribuição passada sirva-nos para vivermos a verdadeira liberdade do
Evangelho de Jesus Cristo, de igual forma, com seus desafios ético-sociais. Em
outras palavras, o que queremos dizer é que Calvino ainda pode e deve ser
ouvido.320
Sobre a pessoa de João Calvino, sabe-se mais do que sobre Ulrico
Zwínglio.321 Isto é compreensível, já que Calvino teve muito mais impacto, na
história, e suas influências foram mais duradouras e se estenderam para lugares
que Zwínglio não influenciou decisivamente.322

320
SILVESTRE, Armando Araújo. Calvino e a Resistência ao Estado. São Paulo: Ed.
Mackenzie. 2003, p. 19.
321
Cf. Boni (Org.), pp. 229-275 (obras de Calvino); cf. Também Nijenhuis, 1981, Bouwsma, 1989
e Lessa, s.d. Ulrich Zwinglio é o verdadeiro introdutor da Reforma, na Suíça, fazendo-a de forma
paralela a Lutero, nos cantões suíços. É um reformador em conflito com Lutero, por causa da sua
doutrina sacramental. Cf. KAHLER, W., Zwinglf und Luther. Ihr Streit um das Abendmahl, 2
vols., Leipzig 1924 e Gütersloh 1953.
322
“A influência do calvinismo por mais de um século, depois da morte do reformador de
Genebra, foi a força mais poderosa da Europa no desenvolvimento da liberdade civil. O que o
mundo moderno deve ao Calvinismo é quase incalculável”, citado por Hyma, The Life of John
Calvin, pp. 96, 97. "As diferenças entre Zwinglio e Lutero a respeito do sacramento da Santa Ceia
mostraram-se insuperáveis no decorrer da segunda metade da década de 1520, o que restringiu sua
influência.” Ver: HULDRICH, Peter Johann, Huldrych Zwinglio (1484 - 1531), o reformador de
Zurique – um esboço biográfico, Acta Scientiarum, Maringá, 23 (1): pp. 141-147, 2001. Mas há
vínculos entre o calvinismo e o zwinglianismo. Enquanto Zwingli estabeleceu os primeiros
fundamentos religiosos, seu trabalho foi continuado e aperfeiçoado pelo seu sucessor, em Zurique,
Henrique Bullinger (1504 - 1575), e por João Calvino, em Genebra, os quais uniram os dois
caminhos religiosos de Zurique e Genebra à salvação, ou seja, o Zwinglianismo e o Calvinismo, e
estabeleceram a base comum da confissão calvinista na Suíça: a Confessio Helvetica (prior), de
1536, o Consensus Tigurinus, de 1549 e, afinal, a Confessio Helvetica (posterior,) de 1566. Cf.
Locher, p. J 91-94. LOCHER, G.; ZWINGLI, W. Und die schweizerische Reformation (e a
Reforma na Suíça) ihrer Göttinen: Vandenhoek & Ruprecht ,1982. (Die Kirche in ihrer
Geschichte, v.3).
109

Ao mesmo tempo, o que ocorre é que geralmente se encontram conotações


negativas de Calvino.323 Ele chega a ser chamado de Déspota de Genebra, pois
havia sido demasiado rigoroso, a ponto de estar disposto a sacrificar todos os que
não concordavam com seu pensamento, como aconteceu com Miguel Servetus. A
doutrina da dupla-predestinação, segundo a qual Deus elegeu uns para a salvação
e outros para o inferno, também soa estranha aos ouvidos modernos.324 Em 1936,
em pleno auge do regime nazista, o literato Stefan Zweig escreveu um ensaio com
este título: “Uma Consciência Contra a Violência: Castellion contra Calvino”.325
Com habilidades literárias, o que Zweig dizia contra Calvino se aplicava
indiretamente a Hitler. Isto também contribuiu, nas últimas décadas, para
depreciar a imagem de Calvino entre os acadêmicos.
Seguramente, algumas características de Calvino sempre serão estranhas ao
homem moderno. Calvino foi um asceta que dedicou sua vida à Reforma,
procedendo, muitas vezes, de maneira restrita. Porém é preciso entender que a
imagem distorcida de Calvino se deve, também, às grandes lutas confessionais
que duraram até o século XX.326 Sobretudo no século XVII, que foi marcado por
conflitos e lutas interconfessionais, justamente entre os cristãos luteranos e
reformados: ambos os grupos difamavam, imputavam e, freqüentemente,
apresentavam seus assuntos de forma ríspida e animosa. De todas as partes,
ocorreram exageros, inclusive por parte dos reformados. Neste contexto,
cristalizou-se em toda a Alemanha, – devido a muitas publicações da corrente
mais influente, que era a luterana – a imagem de Calvino, que dominou durante
séculos.

323
“Para muitos, Calvino aparecia como a personificação de tudo o que era antiliberal, antiartístico
e anti-humano”. Doumergue, Kunst en Genoel in het Werk van Calvijn, 3 conferências.
Wageningen, 1904, p. 9.
324
Calvino, em sua definição de predestinação, diz que é “o eterno decreto de Deus, por meio do
qual determinou o que quer fazer de cada um dos homens. Porque Ele não criou todos com a
mesma condição, mas que ordena uns para a vida eterna, e a outros para a condenação perpétua”
(Institución III. 21.5, pp. 728-729).
325
Cf. ZWEIG, Stefn. Castélio Contra Calvino. Lisboa: Civilização Editora, 1977.
326
BOUWSMA, W. J. John Calvin: a sixteenth-century portrait. Oxford: (s.n.), 1989. p. 65.
110

2.4.1
João Calvino: sua Infância e seus Anos de Estudos (1509-1535)

João Calvino nasceu, em 10 de julho de 1509, em Noyon, no norte da França


(a uns 100 quilômetros de Paris),327 e recebeu o nome de “Jean Cauvin”.328 Era
filho de Gerard Cauvin e Jeanne de La Franc,329 casal distinto e ilustre, bem
relacionado religiosa, social e politicamente. A família era de origem normanda.
Seu pai era secretário do bispo na catedral da cidade, sendo um leigo que
trabalhava entre os clérigos, ocupando um cargo elevado entre eles.330
Van Halsema faz o seguinte comentário sobre a infância de Calvino:

Durante quatorze anos, o menino João morou em


Noyon, na província francesa de Picardy. A cidade era
antiga naquela época. Era sede do bispado. Noyon estava
sobrecarregada de padres, monges, cônegos, capelães e
de toda espécie de empregados eclesiásticos. A catedral
era o centro da vida citadina. Foi nesse pequeno mundo
amuralhado, de santuários e relíquias, de procissões e
festas, de círios, sinos e imagens, que cresceu Calvino.331

Por volta da idade de 12 anos, João Calvino recebeu as primeiras prebendas,


ou seja, uma parte dos seus ganhos por trabalhar numa das paróquias da cidade (a
paróquia de Gésine).332

327
A Noyon das primeiras décadas do século XVI era repleta de Igrejas e conventos, uma cidade
episcopal, onde a sociedade respirava o sagrado. Não é por acaso que levava esse nome, Noyon, a
“santa”. LESSA, Vicente Temudo. Calvino (1509-1564), sua vida e sua obra. São Paulo: Casa
Editora Presbiteriana. pp. 19,24.
328
Há uma infinidade de biógrafos sobre Calvino. Queremos citar algumas obras de alguns: Seu
sucessor: Théodore Bèze, l’histoire de la vie et mort de Calvin. Genève: (s.n.), 1565; Life of John
Calvin, In: Tracts and tratises of John Calvin. Michigan: Eerdmans, 1958; Du droit des
magistrats. Genève: R. M. Kingdon, 1970; Correspondence de Théodore de Bèze, In: AUBERT,
Hyppolyte; DUFOUR, Alain; NICOLLE, Béatrice. Genève: Droz, v.20, n. 318, 1998. COTTRET,
Bernard. Calvin biographie. Paris: Jean-Claude Lattès, 1995; Traducteurs et Divulgateurs
Clandestins de la Réforme dans l’Angleterre Henricienne, 1520-1535. Revue d’Histoire
Moderne et Contemporaine, Bris, n. 28, p. 472, 1981.
329
Sua mãe distinguia-se por uma profunda piedade, tendo uma influência marcante sobre
Calvino, quando Calvino ainda era muito pequeno, com cerca de seis anos. Ver: GEORGE,
Timothy. Theology of the Reformers. Nashville: Bradman. 1988, p. 168.
330
O pai de Calvino secretariava o bispo Charles de Hangest (1501-1525), mas também exercia a
função de procurador-fiscal do condado bispo. Ver LESSA, Vicente Temudo, op. cit., pp. 19,25.
331
VAN HALSEMA, T.B. João Calvino Era Assim. São Paulo: Vida Evangélica S/C. 1968, p.12.
332
Os benefícios eclesiásticos que Calvino recebia era fruto direto da interferência de seu pai,
prática comum em seu tempo. Ver: GONZALEZ, Justo L. A Era dos Reformadores, op. cit., p.
108. Cf. FERREIRA, Wilson Castro. Calvino: vida, influência e teologia, op. cit., pp. 32,33;
LESSA, Vicente Temudo. Calvino (1509-1564), sua vida e sua obra, op. cit., pp. 27,28;
GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Ed. Vida Nova. 1994, pp. 168,169.
Cf. GEORGE T. Teologia dos Reformadore. São Paulo: Vida Nova. 1994, p. 168.
111

Até 1523, Calvino assistiu aulas numa escola de sua cidade natal. Com 14
anos, foi enviado ao Collège de la Marche, um famoso internato em Paris, cujo
professor de latim e diretor era Mathurin Cordier.333 Cordier era conhecido como
o fundador de uma nova pedagogia, que Calvino aprendeu, somente por pouco
tempo, na classe de latim, mas venerou durante toda a sua vida.334 Daí eclodir no
estudante picardo um profundo amor pela Renascença e os estudos
humanísticos.335
Depois de um breve tempo, Calvino mudou – por razões desconhecidas –
para outro internato: o Colégio de Mantaigu. Este era um baluarte da ortodoxia
católica romana e provocava medo em seus alunos. Bem sabemos que as
universidades de Paris recebiam, na sua maioria, alunos de famílias burguesas
emergentes ou aristocráticas.336 No século XVI, as universidades francesas
passavam por um período de declínio, fruto, em parte, do fim da Idade Média,
principalmente como centros de treinamento profissional.337 A princípio, seu pai
pretendia que ele estudasse teologia em Paris. Provavelmente a grande motivação
teria sido a possibilidade de o filho continuar o progresso eclesiástico que Gérard
Cauvin havia conquistado na diocese de Noyon. Na verdade, havia possibilidade
real de crescimento eclesiástico para a família de Calvino, inclusive pela própria
influência, alcançada por seu pai.338 É bom esclarecer que tal interesse e prática
faziam parte do seu tempo. Alister, Ganoczy e Lessa dizem o seguinte sobre a
formação inicial do jovem Calvino:

333
Naquele tempo, a peste tomou conta da Noyon. Era o momento ideal para Calvino iniciar seus
estudos em Paris. Sobre isto, ver: MCGRATH, Alister, op. cit., p. 38. Ver. BIÉLER, A. O
Pensamento Econômico e Social de Calvino, op.cit., p.114. Mathurin Cordier fora um dos
maiores professores de latim de seu tempo. Cf. GEORGE T. Teologia dos Reformadores, op. cit.,
p. 169.
334
GONZALEZ, Justo L., op. cit., p. 109. A ida de Calvino a este colégio atendia aos desejos do
pai de Calvino, que desejava fazê-lo um clérigo. Dada a notabilidade de Cordier, anos depois
haveria de lecionar na Academia de Genebra, e ao interesse de Calvino, este foi um período de
profunda dedicação aos estudos, traço que o acompanhou em toda a sua vida de Calvino.
Aproveitou ao máximo a sabedoria e experiência do seu preceptor. Cordier foi capaz de influenciar
tremendamente a mente, já brilhante, de Calvino, ao colocá-lo em contato direto com o
Humanismo.
335
MARTINA, Giacomo, op. cit., p. 146. Foi ali que passou a conhecer os bons autores clássicos,
desenvolvendo sua habilidade de pensar e sua capacidade de falar e escrever em latim. Cícero foi
seu grande referencial clássico. Ver também: LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 34.
336
VERGER, J. Le rôle social de l’université d’Avignon au Xme siècle. BHR 33 (1971), pp. 489-
504.
337
GOFF, Jacques Le. “La conception française de l’université à l’époque de la Renaissance”, pp.
94-100.
338
Ibidem, p. 49.
112

Em 1526, após concluir seus estudos humanistas,


Calvino vai estudar humanidades, ou filosofia, curso
preparatório para os demais. O costume atual de estudar
teologia, logo que se entra na universidade, era
desconhecido no século XVI, em Paris.339 Estudar
filosofia, durante quatro ou cinco anos era condição
natural à época para alguém cursar teologia.340 Após a
saída de Calvino de Montaigu, em 1528, o espanhol
Inácio de Loyola toma assento aos pés dos mesmos
preceptores.341

Segundo Karl Reuter, Calvino, como aluno de John Mair (ou Major) em
Paris, foi tremendamente influenciado por este professor escocês.342 Mair abriu os
horizontes teológicos de Calvino, colocando-o diante de uma nova concepção
antipelagiana, bem como de uma nova visão agostiniana. Já Wendel diz que Mair
colocou Calvino diante das obras Four Books of the Sentences, de Pedro
Lombardo, teólogo de muita influência no seu tempo, ensinando-o a lê-las com as
lentes de William de Ockham.343
Calvino fez amigos, entre eles estavam alguns simpatizantes e, inclusive,
seguidores da Reforma. Calvino não se pronunciou no tocante a esta, já que a
polêmica luterana contra Zwínglio parecia a ele demasiadamente forte. Nem
sequer sabemos com certeza se Calvino, há este tempo, conhecia os escritos de
Lutero. Em todo caso, não aderiu à Reforma, permanecendo fiel à doutrina
católico-romana. É possível caracterizar o Calvino deste tempo como um
humanista católico, que desejava uma renovação das ciências, mas não por uma
Reforma no sentido luterano.

339
Ibidem, p. 41.
340
GANOCZY. The Young Calvin, p. 174. Quanto ao suposto desejo de seu pai de que estudasse
teologia, podemos verificar as memórias posteriores de Calvino: OC 31.22. Cf. o comentário de
Bèze, “son coeur tendit entièrement à la Théologie” (OC 21.29).
341
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 39. No ano seguinte, Calvino foi estudar no Collége de
Montaigu, de orientação escolástica, onde estudou gramática, filosofia e teologia. Ali teve contato
com o pensamento de vultos como Tomás de Aquino, Agostinho e Jerônimo. Estudaram, também,
nessa famosa escola, Erasmo de Roterdã e Rabelais.
342
REUTER, Grundverstandnis der Theologie Calvins, pp. 20,21,28. Para uma visão resumida, cf.
MCGRATH, A. E. Reformation Thought, (New York/Oxford, 1988), pp. 63,64. No entanto, esta
tese é superficialmente modificada em um estudo mais recente de Reuter, Vom Scholaren bis zum
jungen reformator. Sua tese anterior é aceita plenamente por McDonnel, John Calvin, pp. 7-13.
343
WENDEL, Calvin, p. 19. O fato de não encontrarmos referências explícitas aos teólogos
Gregório de Rimini, John Mair e William de Ockham, por exemplo, nas Institutas de 1536, não
quer dizer que Calvino não tenha recebido influência de tais escritores.
113

Gerard Cauvin decide, então, mandar, Calvino, em 1528, para Orleans, a fim
de que ele estudasse Direito, o caminho mais seguro para a fama e a fortuna.
Orleans era a requisitada e concorrida Universidade. Estudou com o mestre e
jurista Pierre de l’Étoile, conhecido como “o príncipe dos advogados
franceses”.344 Tornou-se Licencié en lois (Bacharel em Direito). Destacou-se por
sua inteligência e brilhantismo. Foi monitor da disciplina em várias ocasiões, nas
quais, certa feita, por seu notável crescimento, o grande mestre Pierre de l’Étoile o
convidou para ministrar uma aula em seu lugar. O resultado foi maravilhoso,
provocando a admiração de todos.345 Foi-lhe oferecido o título de doutor em
Direito, o que não sabemos se Calvino aceitou.346 O historiador católico
Florimond de Raemond oferece um belo testemunho sobre a vida de Calvino
como estudante de Direito. Dizia ele:

Distinguia-se por um espírito ativo e uma grande


memória, por uma grande destreza e vivacidade em
recolher as lições e discursos que seus mestres proferiam
e que depois confiava à escrita, com facilidade
maravilhosa e beleza de linguagem, deixando sobressair
muitos conceitos e transportes de um belo espírito.347

Calvino foi bastante influenciado pela filosofia natural aristotélica, mesmo


rejeitando, posteriormente, o escolasticismo medieval. Por exemplo, em suas
obras, a partir de 1550, há embates freqüentes sobre toda a cosmologia
aristoteliana.348 Quando pensamos nos estudiosos dialéticos, Goulet afirma:

É inútil falar em horas de estudo, no que se refere


aos dialéticos. O dia não é longo o suficiente! Há
constantes discussões, vigorosas defesas de sofismos,
aos domingos e feriados; recitais três vezes por semana e
críticas e debates aos sábados.349

344
A frase é de Teodoro Beza: OC 21.121-2. Sobre a discussão da controvertida data da mudança
para Orleans, ver Parker, John Calvin, pp. 189-191.
345
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 51.
346
Parece que Beza dá a entender que Calvino recebeu tal título. Entretanto, deixa muito claro em
sua narrativa. (Teodoro Beza. Life of the John Calvin: em Tracts and Treatises on the
Reformation of the Church. Vol. I, Ixi; Teodoro Beza. “Life of John Calvin”. John Calvin
Collection, CD-ROM (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 05. Cf. SCHAFF, Phillip. History of
the Christian Church. Vol. VIII, p. 306; Cf. LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 51;
FERREIRA, Wilson Castro, op. cit. pp. 45,46.
347
WYLIE, J. A. History of protestantism. Vol. II, p. 156.
348
KAISER, “Calvin’s Understanding of Aristotelian Natural Philosophy”.
349
Quicherat, Historie de Sainte-Barbe, Vol. I, p. 330.
114

Em 1529, Calvino deixa Orleans e vai para Bourges, buscando aperfeiçoar


seus estudos em Direito, fruto da presença do grande jurista, o italiano André
Alciati, conhecedor profundo do direito romano, que fora convidado por
Francisco I.350 Ele era “um jurista de primeira linha, teórico da soberania do
príncipe”.351 Em Bourges, encontrava-se o luterano Melchior Wolmar, sendo que,
provavelmente, estivera em Orleans primeiro. Ali, Calvino foi introduzido ao
estudo do grego, aprofundando ainda mais seu conhecimento do NT.352 Quando
escreveu seu comentário sobre a 2a carta aos Coríntios, dedicou-a a Melchior
Wolmar, em 1546.353 Sucessor e um dos primeiros biógrafos de Calvino,
Theodoro Beza, foi conhecido pelo reformador em Bourges, quando ainda
contava apenas dez anos.
Ficam evidentes que os ensinamentos jurídicos que Calvino adquiriu,
exerceram forte influência sobre sua vida. Timoth George afirma que tal
conhecimento o preparou para futuros trabalhos, que exerceria em Genebra, onde
pôde promover uma ampla reforma nas instituições desta cidade. Ainda mais. Os
estudos jurídicos abriram-lhe a visão para a antiguidade clássica, bem como os
estudos dos textos antigos, nas línguas originais.354
Calvino tornou-se um competente estudioso das Escrituras, bem como da
história e do pensamento dos Pais da Igreja e ainda dos grandes clássicos gregos.
No início, sempre por conta própria. Há um forte comentário sobre tal fato, nas
palavras do pensador e comentarista bíblico Martin Dreher:

350
Francisco I, Rei da França, sucessor de Luís XII, iniciou seu reinado no dia 1 de janeiro de
1515. Inicialmente parecia moderado com a causa protestante, posteriormente tornou-se
perseguidor do protestantismo. Ver: BIELÉR, André, O Pensamento Econômico e Social de
Calvino, p. 104.
351
LADURIE, Emmanuel Le Roy. O Mendigo e o Professor: A Saga da Família Platter no Século
XVI. Rio de Janeiro. Ed. Rocco. Vol. I, 1999, p. 325. In: COSTA, Hermisten Maia Pereira, op.
cit., p. 02.
352
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 51.
353
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 52.
354
GEORGE, Timoth. Theology of the Reformers. Nashville: Broadman. 1988, p. 171.
115

Nenhum teólogo influenciou tão profundamente o


protestantismo pós Lutero quanto Calvino. [...]
Curiosamente, o criador da dogmática das Igrejas
reformadas jamais estudou Teologia. Em Paris, tinha
estudado Lógica, Dialética, Metafísica, elementos que,
em muito, o auxiliaram em seu estudo teológico
autodidata. O fato de não ter estudado Teologia, nos
moldes tradicionais, possibilitou-lhe um encontro com a
Bíblia, com a Patrística e com textos de teólogos do
protestantismo emergente, que não estavam
condicionados pela escolástica. Quem lhe preparou o
caminho para esse encontro foram os humanistas
cristãos, amplamente combatidos pela ortodoxia
parisiense.355

Após a morte de seu pai, Calvino ficou desobrigado do estudo do Direito e


passou a estudar Literatura Clássica, sua verdadeira paixão. O rei Francisco I
fundou, em Paris, uma universidade com orientação humanista, na qual Calvino se
matriculou. Em Paris, agora pela segunda vez, residiu no Colégio Fotet. “Em Paris
devotou-se ao estudo das línguas originais das Escrituras e se absorveu ainda em
estudos teológicos”.356 Em 1532, publica o seu primeiro livro, uma edição do livro
de Sêneca intitulado "Sobre a Clemência", completada com um aparato textual e
um longo comentário.357 Editado com seus recursos pessoais e, segundo McNeill,
“o principal monumento dos conhecimentos humanísticos do jovem Calvino”.358
Ele apoiou grandemente o famoso humanista Guillaume Budé (1467-1540), que,
juntamente com Erasmo (1469-1536) e Juan Luis Vives (1492-1540), formavam o
“triunvirato do humanismo europeu”.359
A pergunta que fazemos, a essa altura, é: quando Calvino se converteu à
Reforma? Calvino endossou a Reforma de uma forma inicialmente discreta. Ele
próprio revela que viveu uma conversio subita.

355
DREHER, Martin. A Crise e a Renovação da Igreja no Período da Reforma. Coleção
História da Igreja. Vol. III. São Leopoldo: Sinodal, 2004, pp. 94-95.
356
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 55.
357
WALLACE, Ronald, op. cit., p. 12. Cf. SILVESTRE, A. A. Calvino e a Resistência ao
Estado. São Paulo: Ed. Mackenzie. 2003, p. 83.
358
MCNEILL, John T. The History and Character of Calvinism. N. Y. 1954, p. 104. Cf.
BIERMA, L. D. A Relevância da Teologia de Calvino para o Século 21 In Fides Reformata, VIII.2
(2003), p. 11.
359
FRAILE, Guillermo. Historia de la Filosofia. Madrid: La Editorial Catolica, S. A,. Vol. III.
1966, p. 62.
116

Eu estava tão profundamente entregue à


superstição papista que dificilmente poderia ser liberto
de tanta convicção. Porém, de repente, Deus mudou meu
coração dócil e suavemente por uma conversão súbita,
pois, apesar da minha idade, eu estava bastante
endurecido frente a este assunto. Sem dúvida, quando
tive algum conhecimento da piedade verdadeira,
imediatamente me invadiu um tremendo anelo de tirar
proveito disto. Não deixei os diversos estudos
completamente, porém, cada vez mais, os deixei de lado.
Grande foi minha surpresa quando, antes do término do
ano, todos os que sentiam o anelo pela doutrina pura
estavam reunidos em torno de mim para aprender, ainda
que eu mesmo fosse quase que um principiante.360

O médico Nicolas Cop, reitor da Universidade de Paris, na qual estava


matriculado Calvino, inaugurou, em novembro de 1533, o semestre universitário
com um discurso em uma Igreja parisiense. Na sua pregação sobre as bem-
aventuranças do sermão do monte, Cop se professa reformado. Os franciscanos,
em cuja Igreja a conferência se deu, acusaram Cop de heresia361 e, depois de
algumas semanas, ele vai até Basiléia, sua cidade natal. Os investigadores acabam
suspeitando de Calvino e da sua participação na formulação do discurso. Se de
fato Calvino compartilhou com as idéias de Cop, sua adesão à Reforma se deu no
outono de 1533.362

360
Reply to Cardeal Sadoleto’s Letters, C. Tr., Vol. I, p. 62. Para uma discussão completa dessa
questão cf. F. Busser, Calvin’s Urteil uber sich selbst, Zurich, 1950, pp. 26ss; também John T.
McNeill, History and Character of Calvinism, N. Y. 1954, pp. 109ss. Cf. Danièle Fischer.
Nouvelles réflexions sur la conversion de Calvin. Études Théologiques et Religieuses, n. 58, 1983.
Cf. Alexandre Ganoczy. Le jeune Calvin. Genèse et évolution de sa vocation réformatrice.
Wiesbader: F. Steiner, 1966. Cf. O Millet. Calvin et la dynamique de la parôle. Étude de
rhétorique réformée. Paris: Champion, 1992. Significa afirmar que Calvino converteu-se entre
Paris e Orleans, período em que prosseguiu seus estudos literários (Paris) e concluiria sua
formação em Direito (Orleans)
361
“A Sorbona e o Parlamento reuniram-se para ouvir o caso e o confiado reitor saiu da
universidade acompanhado de seu séquito para responder perante o Parlamento” In: LESSA,
Vicente Temudo, p. 58.
362
Avisado de que encontraria a morte, fugiu imediatamente para Basiléia. Calvino foi acusado de
ter escrito o tal discurso. De igual forma teve que fugir de Paris, escondendo-se, por semanas
seguidas, nos arredores de Paris, próximo de Nantes. Logo que pôde, seguiu caminho para
Angoulême, terra de Margarida de Navarra. Ali permaneceu por vários meses, até o final de 1533,
na residência de Du Tillet, onde pôde dedicar-se intensamente aos estudos, pois privava de uma
vasta biblioteca do seu hospedeiro. Ver: FERREIRA, Wilson Castro, op. cit., pp. 62-65. Ver
também MCGRATH, Alister. A vida de João Calvino, op. cit., pp. 83-85.
117

Em outubro de 1534, a cidade de Paris entrou em turbulência devido ao


chamado caso das afirmações. Estas foram afirmações contra a missa, e os
luteranos foram acusados de serem autores de uma conspiração contra a ordem
pública e a religião. Calvino já havia causado rumores por confessar publicamente
sua fé evangélica e por fazer proselitismo. Por causa disto, Calvino teve que sair
da cidade e buscar um lugar tranqüilo para seguir com seus estudos. Queria redigir
um catecismo para ser lido pelos franceses. Por isto, passou as primeiras semanas
do ano de 1535 na cidade de Basiléia.

2.4.2
A Primeira Estada de Calvino em Genebra (1536-1541)

Assim, Calvino, ao chegar a Basiléia, adota o pseudônimo de Lucianus, um


anagrama latino do seu nome, Calvinus.363
Diferentemente de Lutero, em 1536, Calvino não estava preocupado, neste
tempo, com as discussões acirradas com o escolasticismo medieval ou qualquer
tipo de mudança no programa teológico das universidades. Quando lança as
Institutas, sua preocupação era lutar contra os inimigos da indiferença e da
ignorância, apresentando, de forma sistematizada, os pontos fundamentais da
Reforma.364 É preciso dizer que, no início da Reforma, a maior preocupação de
Lutero era o embate com a Igreja sobre a doutrina da justificação somente pela fé,
ou como o homem entrava em comunhão com Deus. Mas a Reforma, vivida mais
ao Sul, buscava discutir as mudanças necessárias tanto na Igreja quanto na
sociedade, segundo as Escrituras.
Nas Institutas de 1536, Calvino tem como preocupação principal criticar as
formas eclesiológicas da Igreja Católica, provenientes dos grandes teólogos
medievais, sobretudo Graciano e Pedro Lombardo. O que ele queria era questionar
e desacreditar as eclesiologias em sua fons et origo.365 O escolasticismo não
produzia ecos ressonantes em Estrasburgo ou Genebra, naqueles dias de Calvino.

363
Temos nesse período a primeira e segunda estadas de Calvino em Genebra (1536-1541).
364
MCGRATH, Alister, op. cit., p. 55.
365
MCGRATH, Alister, op. cit., p. 56. Quando Calvino cita a obra Four Books of the Sentences,
de Pedro Lombardo, nas Institutas de 1536, são retiradas do quarto livro, que trata exatamente da
doutrina da Igreja e dos Sacramentos. Cf. p. 56.
118

Em abril de 1536, depois da publicação da sua obra Institutio, Calvino


viajou a Paris para ver seus irmãos. Lá se encontrou, pela primeira vez, com
Miguel Serveto, que acabara de editar, em Hagenau, Alsácia, sua obra contra o
dogma da Trindade. Seguiu, posteriormente, para Estrasburgo, onde esperou se
encontrar com Bucer e seus correligionários. Não pôde tomar o caminho mais
curto, porque o rei da França, Francisco I, e o imperador, Carlos V, estavam em
guerra. Por isto, Calvino tomou o caminho mais seguro, passando por Lyon e
Genebra. Em Genebra, encontrou-se com Guilherme Farel. Calvino descreve
Farel da seguinte maneira:

O caminho mais curto à Estrasburgo. Para onde


queria ir, estava fechado devido à guerra. Por isto
pensava estar aqui (Genebra) somente de passagem,
passando lá apenas uma noite. Aqui, pouco antes, o
papado havia sido abolido por um homem reto que
mencionei antes (Farel), e pelo mestre Pierre Viret.
Porém as coisas não evoluíam como deveriam, e entre os
cidadãos existiam dissidências e partidarismos. Neste
momento, fui descoberto por um homem (Tillet), que me
apresentou aos outros. Em conseqüência, Farel, que
estava iluminado pelo sonho de fomentar o evangelho,
fez muitíssimos esforços para deter minha partida e,
quando afirmei que eu queria manter-me livre para meus
estudos privados, e quando viu que seus argumentos não
davam em nada, passou a maldizer-me: “Que Deus
amaldiçoe seus estudos e tranqüilidade por estar diante
de uma emergência tão grande e não apoiar a Reforma.”
Estas palavras me perturbaram e assustaram
profundamente, tanto que renunciei a minha viagem
planejada. Consciente dos meus temores e timidez, não
queria por nada ser obrigado a assumir um cargo
determinado.366

366
João Calvino, Prólogo ao Comentário dos Salmos.
119

A Reforma havia sido introduzida em Genebra em 1535.367 Genebra lutou


“contra a tirania de um duque e de um bispo até derrotá-los.”368 O duque
chamava-se Charles III, de Savoy369, e o bispo, Pierre de La Baume.370
Farel foi a pessoa que inseriu Genebra na Reforma. Havia feito muitas
mudanças, porém a Reforma foi imposta pelo Conselho da cidade também por
buscar maior independência em relação aos bispos.371

367
Oferecemos, aqui, alguns autores de renome que podem ajudar no conhecimento maior sobre a
Genebra daquele período: Monter, E. W. Studies in Genevan Governement, 1964c, e Calvin’s
Geneva, 1967; Kingdon, R. M. Geneva in the coming of the wars of religion in France, 1956.
Estas obras podem ser auxiliadas ainda com Annales Calviniani, dada a sua imensa riqueza de
informações e dados cronológicos, bem como documentos sobre os registros do Conselho de
Genebra (Registres du Conseil), e ainda por Bergier, J. F. e Kingdon, R. M. (eds). Registres de la
Compagnie des Pasteurs de Genève. Vols. 1 e 2, Genebra, 1962-1964. Verificando estudos mais
antigos, temos, ainda, Doumergue: Jean Calvin, les hommes et les choses de son temp, Vols. 5 e
6, 1889-1927, contendo uma fabulosa e inesgotável fonte de citações.
368
SILVESTRE, Armando Araújo. Calvino e a Resistência ao Estado. São Paulo: Ed.
Mackenzie. 2003, p. 20.
369
“O duque de Savoy reuniu mais de 500 mercenários para atacar Genebra, cercando-a no final
de 1535. A cidade apelou para Berna. Como não houve resposta, apelou para o rei Francisco I, da
França. O rei francês enviou pequena força de cavalaria, que chegou a Genebra desfalcada pelo
inverno nos Alpes e pelos ataques das tropas de Savoy”. No entanto, Berna, percebendo as
dificuldades de Genebra, mandou aproximadamente 6 mil soldados para libertar Genebra, isso em
fevereiro de 1536.
370
Em 1539, o bispo Pierre de La Baume tornou-se cardeal, em 1544, arcebispo de Besançon,
conforme Monter (1964b, p. 130). A cidade de Genebra não ofereceria mais espaço para regimes
totalitários ou teocráticos. Tal constatação serve-nos para sustentar a tese de que Calvino não foi
um tirano. Quando Calvino e Farel estiveram na cidade juntos, foram banidos, pois talvez
tentassem impor algum tipo de liderança religiosa mais forte. Mesmo quando convidado para
retornar, jamais recebeu da cidade poderes absolutos. Na verdade, ele não exerceu domínio sobre
Genebra. Calvino jamais pode ser classificado de tirano, pois sua luta foi estabelecida na ruptura
com as mazelas da Igreja de então, bem como contra qualquer domínio político-eclesiástico. Ora,
como supor um Calvino tirano, sendo ele forte defensor de uma prática cristã que implicava em
resistência à própria tirania? Cf. SILVESTRE, Armando Araújo, p. 20.
371
Guilherme Farel, percebendo que Genebra estava aberta aos ideais da Reforma, buscou
influenciar o Conselho municipal no sentido de aderir à Reforma. A resposta foi positiva, pois, em
19 de maio de 1536, o Pequeno Conselho resolveu convocar um grande conselho geral para
perguntar se o povo queria viver de acordo com a nova fé Reformada. “Por fim, ao cabo de
algumas semanas, Genebra assumiu definitivamente a sua divisa: pos tenebras lux – após as trevas,
a luz.” In: SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 24. Logo depois, a cidade votou
favoravelmente “pela conclusão da primeira fase da Reforma na cidade, jurando viver, de agora
em diante, de acordo com a lei do Evangelho e com a Palavra de Deus”. MCGRATH, Alister, op.
cit., p. 115. Conforme SILVESTRE, Armando Araújo, “o motor adotado pela cidade, Pos
Tenebras Lux, mais parecia uma afirmação profética que uma realidade presente nessa primeira
estada de Calvino”, op. cit., p. 96.
120

Assim, Genebra, agora, possuía status de cidade-estado, onde o magistrado


estava acima do bispo e do duque. Nesse sentido temos que admitir que a Reforma
foi introduzida, na cidade, como conseqüência da reforma civil. O Conselho
Geral, adotando a Reforma deliberou medidas que haveriam de influenciar
Genebra nas suas mais diversas áreas, como por exemplo, social, econômica,
política e religiosa.372 A influência fora tal que Genebra tornou-se cidade-refúgio
para aqueles que fugiam das perseguições religiosas. Alister diz o seguinte:

A declaração dos cidadãos de Genebra pode dar a


aparência de haver criado uma Igreja Reformada. Na
verdade, ela fez pouco mais do que criar uma perspectiva
reformadora vazia, sem substância, dentro da qual as
intenções tinham precedência sobre as ações. Rejeitar o
catolicismo era uma coisa; construir uma nova ordem e
um novo governo eclesial era outra bem diferente. Sem
uma ideologia religiosa definida, nenhum passo positivo
nessa direção poderia ser dado.373

Faltava, portanto, estabelecer conteúdo à Reforma iniciada. O partido


católico romano seguia com muita influência e Farel estava sobrecarregado. Nesse
ínterim, Calvino viajava da França para Estrasburgo, em 1536374, e de passagem
por Genebra, foi então que Farel o persuadiu fortemente a permanecer na
cidade.375 Calvino não estava muito disposto a enfrentar os grandes desafios da
cidade, sobretudo por parte daqueles que se opunham às idéias reformadas.376

372
Resoluções do Conselho, R. C., de 18.3.1539, in: Opera Calvini, p. 245,21.
373
MCGRATH, Alister, op. cit., p. 116.
374
Segundo Alister, naquele mesmo ano, o exército de Berna havia conquistado Lausanne e
alimentava o desejo de conquistar novos territórios. A luta pelo estabelecimento do domínio
religioso de determinada cidade dava-se por meio de debates teológicos. Queriam que toda a
Lausanne aderisse à posição de Berna. Por questões lingüísticas, o Conselho de Berna convidou
Farel e Viret para apresentar suas idéias sobre a Reforma. Foi convidado e lá se encontrou (Cf.
MCGRATH, Alister, op. cit., p. 117). Dez artigos foram apresentados, conhecidos como Les
conclusions qui doibvent estre disputées a Lausanne nouvelle province de Berne, no dia primeiro
de outubro de 1536 (A escrita em francês é de sua época). A certa altura do debate, Calvino
solicitou a palavra e interveio, e passou a discorrer com tamanho conhecimento, citando fluente e
literalmente os grandes Pais da Igreja, que a todos impressionou. O reformador saiu do debate com
a fama de grande orador e grande apologista da fé reformada. O resultado foi tal que, no final
daquele ano, Calvino já tinha sido designado pastor de Genebra. No entanto, “Calvino era pouco
mais do que um simples servidor civil, vivendo na cidade sob licença. Era o Conselho municipal, e
não Calvino, Farel ou Viret – que controlava os assuntos religiosos de nova república” (Cf.
MCGRATH, Alister, op. cit., p. 119). Na verdade, os pastores ficavam sempre à mercê das
decisões e possiveis mudanças por parte do Conselho.
375
MARTINA, Giacomo, op. cit., p. 147. Cf. SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 91.
Calvino mesmo relata o encontro com Farel: “Mestre Guillaume Farel me reteve, em Genebra, não
através de conselhos e exortação, mas por uma adjuração espantosa, como se Deus, mesmo do
alto, estendesse sua mão sobre mim para me deter.” (Cf. Cottrett, 1995, p. 393).
376
GONZALEZ, Justo L., op. cit., p. 113.
121

Calvino desconhecia as sutilezas da administração pública, fosse na área da


política urbana, fosse na área econômica. É neste contexto que Calvino se
estabelece em Genebra. Passa a desempenhar a tarefa de “leitor da Santa Escritura
na Igreja de Genebra”,377 e passa a pregar e apoiar a formação da Igreja
genebrina.378
Tornou-se apenas, no primeiro momento, um professor e conferencista ou
expositor das Escrituras. Em pouco tempo, Calvino deixa de ser apenas lecteur e
assume também a posição de prédicateur e de pasteur, vendo as grandes e
urgentes necessidades de organização da Igreja de Genebra. “Ainda em 1536, ele
publicou sua pequena Confissão de Fé para as Igrejas reformadas.”379
Calvino, mesmo sem tanta experiência, trabalhou, nesse período,
objetivando tornar o cidadão genebrês um verdadeiro cristão, cuja experiência de
fé fosse externada na prática cristã.
Em 1537, Calvino envia uma proposta para a reorganização da Igreja ao
Conselho da cidade.380 Aqui é possível observar uma característica básica da
teologia de Calvino: sua prioridade é sempre a forma pela qual a Igreja se
apresenta. Não adere ao conceito anabatista, que considera a Igreja como uma
comunidade exclusiva dos eleitos.

377
MARTINA, Giacomo, op. cit., p. 147.
378
Philip Hughes nos conta que não foi muito antes que Calvino foi compelido “pelas
circunstâncias da controvérsia na cidade [...] a adicionar aos seus compromissos de ensino a
responsabilidade da pregação pública”. Philip E. Hughes, ed., introdução ao The Register of the
Company of Pastors of Geneva in the Time of Calvin (Grand Rapids, MI, William B. Eerdmans
Publishing Co.), p. 5.
379
SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 95.
380
Ele imediatamente obteve o consentimento do Senado em Genebra para uma forma de política
eclesiástica que fosse derivada da Palavra de Deus, e da qual não deveria ser permitido que nem
ministros nem pessoas se apartassem. A Church Order of the Protestant Reformed Churches (A
Ordem das Igrejas Protestantes Reformadas), que é essencialmente a Ordem da Igreja de
Dordrecht (1618-1619).
122

A Igreja é mais bem explicada como a comunidade dos fiéis que se


comprometem livremente com ela. Calvino e Farel redigiram uma confissão em
francês (Confissão de Fé) que teve que ser afirmada por todos os habitantes de
Genebra, para determinar quem quisesse professar o Evangelho e quem preferisse
pertencer ao reinado do Papa, ao invés do reinado de Cristo. Calvino introduziu
mais mudanças: os salmos passaram a ser cantados nos cultos, a catequese foi
introduzida, foi redigido um catecismo mais curto que as Institutas e muito
parecido com o Catecismo Menor, de Lutero. Porém, as propostas reformatórias
de Calvino não foram aceitas facilmente no Conselho, só sendo aprovadas após
muita indecisão deste. O conflito se instalou de forma mais intensa quando os
cidadãos de Genebra foram incitados a fazer a confissão preparada por Calvino.
Muitos não queriam fazer e as tensões entre Católicos e Reformados aumentaram,
fazendo da obrigação da confissão de fé um fracasso.381 Calvino, porém,
continuou a insistir na obrigatoriedade desta confissão.
A resistência a Calvino foi estabelecida e, em 1538, os partidos de oposição
de tendência católico-romana ganharam terreno. Soma-se a isto a inquietação,
causada pelos anabatistas. Acusações graves foram feitas contra Calvino e Farel.
Entre elas, a afirmação de que Calvino teria aderido à seita dos arianos. Esta
acusação foi levada a Berna (com a qual Genebra estabeleceu um tratado de
cooperação mútua), onde as atitudes de Calvino foram vistas como suspeitas. Não
houve maiores conseqüências, porém a posição de Calvino, em Genebra,
debilitou-se devido às acusações. Nas eleições de 1538, a oposição vence e o novo
Conselho proíbe que Calvino e Farel preguem no Domingo da Ressurreição.
Calvino e Farel desobedecem e pregam, sendo destituídos de seus cargos. Dentro
de três dias tiveram que abandonar a cidade.382

381
Sobre este período específico, afirma Calvino: “Fosse eu narrar os inúmeros conflitos por meio
dos quais o Senhor tem me exercitado, desde aquele tempo, e as quantas provações com as quais
Ele tem me testado, daria uma longa história”. Calvin, prefácio, p. XLIV.
382
“João Calvino e Farel tiveram muitos adversários e opositores em Genebra [...].Finalmente a
oposição venceu as eleições. E no dia 23 de abril de 1538, Calvino e Farel foram banidos de Gene-
bra.” In.: Gonzales, Justo, A Era dos Reformadores, p. 56.
123

Ao sair de Genebra, Calvino procurou seguir à Basiléia para prosseguir seus


estudos, e Farel foi chamado para ir à Neuchâtel no mesmo ano. Os amigos de
Calvino o acusaram de ser demasiadamente obstinado, o que ele admitiu. Decidiu,
por causa disto, não assumir uma vida pública, optando por uma vida discreta e
pelo serviço como acadêmico.383 Durante algum tempo, recusou o convite da
cidade de Estrasburgo, de ocupar-se lá e cuidar pastoralmente dos refugiados
franceses daquela cidade. Por fim, Calvino aceita o convite feito por insistência de
Martin Bucer e Wolfgang Capito.384

383
Calvino pode colocar em prática muitas de suas idéias sobre a dinâmica eclesial (Ver.
WALLACE, Ronald, op. cit., p. 43). Adquiriu grande experiência na administração eclesiástica,
bem como na área da “organização e disciplina eclesial e civil” (Ver. MCGRATH, Alister, op.
cit., p. 124). Na então recém-fundada Academia de Johann Sturm, ele pode exercer a docência. Foi
um período profícuo de produção literária. Mesmo enfrentando sérios problemas financeiros,
motivo pelo qual teve que se desfazer de boa parte de sua biblioteca, foi capaz de lançar nova
edição das Institutas, em agosto de 1539, sendo complementada em sua versão francesa, em 1541.
O grande comentário aos Romanos foi preparado nesse período, escrito em 1539, dedicado a
Simão Grynaeus, professor de Calvino em hebraico, reformador em Basiléia. “A Igreja e a
comunidade Reformadas, que haviam existido apenas em sua mente, na Genebra de 1538, eram
agora realidades concretas. A teoria abstrata e o sonho foram substituídos pela experiência prática
e concreta” (MCGRATH, Alister, op. cit., p. 124). De fato a vida transcorria muito bem. Alcançou
a cidadania strasbourgeois e, em agosto de 1540, contraiu núpcias com Idelete, uma jovem
senhora, viúva de um anabatista. Casou-se em 14 de agosto de 1540. No entanto, seu casamento
durou apenas nove anos, pois sua esposa morreu, vítima de tuberculose. Tiveram apenas um filho,
que também morreu ainda muito criança. Cf. SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 102.
Calvino havia adquirido experiência, conhecimento e alto prestígio.
384
SCHAFF, Philip Schaff, History of the Christian Church, Vol. VIII, p. 299.
124

Em 1538, Estrasburgo se tornou um dos principais centros do protestantismo


alemão. Bucer e Capito se mantiveram teologicamente independentes, ainda que
tivessem aderido, em 1536, à Reforma de Wittenberg. Bucer é considerado o líder
mais imprescindível nas negociações do partido evangélico. Portanto, Calvino
tornou-se pastor de uma comunidade de refugiados franceses e assumiu um
modelo eclesiástico adotado em Estrasburgo.385 Adotou a ordem de culto de
Bucer, introduzindo somente algumas mudanças.386 Além disto, Calvino assumiu
uma cadeira de exegese na faculdade da cidade, que havia sido fundada
recentemente. Ali trabalhou numa nova edição de sua obra Institutio, que foi
publicada em 1539.
O tempo de Calvino em Estrasburgo foi considerável para compreender sua
mente, já que a cada semana ele dava conferências, pregava quatro sermões,
elaborava seus livros, viajava várias vezes para participar dos diálogos sobre a
religião. Ali foi o lugar em que Calvino conheceu Melanchton; nasceu entre os
dois uma profunda amizade.

385
Segundo o biógrafo Courvoisier, Estrasburgo é a cidade onde Calvino se torna verdadeiramente
Calvino. O seu sistema de pensamento é aqui consubstanciado em algo de mais marcadamente
original. A sua obra Institutio é aqui re-editada (1539). É agora três vezes maior do que a primeira
edição. Em outubro de 1539, Pierre Caroli chega a Estrasburgo. Caroli está, agora, entre o
catolicismo e o protestantismo. Ele acusa Calvino de o terem confundido na sua fé. Calvino é
convocado a se submeter a um ritual tal como ele foi escrito por Caroli, para provar a sua fé. Uma
humilhação para Calvino. Calvino sofre uma crise nervosa. Neste outono de 1539, Calvino escreve
também um comentário à carta de Paulo aos Romanos. Este tema é particularemente querido do
protestantismo. Porque ali se encontra a justificação, através da fé, como a base de sustentação do
movimento protestante. Pois somente a fé salva e justifica. Ver: SILVA, Jouberto Heringer.
Música na Liturgia de Calvino em Genebra, Fides Reformata, São Paulo: Centro Presbiteriano
de Pós-Graduação Andrew Jumper, vol. VII, nº 2, jul/dez, 2002, p. 91.
386
Até Bucer se tornar o reformador de Estrasburgo, a influência de Lutero era muito forte na
liturgia reformada, sendo que Bucer trouxe a influência de Zwínglio à cidade, fazendo de sua
liturgia uma síntese do pensamento de culto de Lutero e Zwínglio. A liturgia de Martin Bucer era
mais simples que as missas romanas. Ele retirou muitos responsos, inseriu salmos metrificados e
hinos, excluiu o Kyries e o Glória in excelsis, inseriu orações de gratidão, permitiu que o pregador
selecionasse o texto de seus sermões e fez com que o culto tivesse se tornado menos estético e
mais racional. Ver: WEBBER, Robert E., Worship Old and New, Grand Rapids: Zondervan
Publishing House, 1984, p. 77-78. Como diz Charles Baird, Calvino “voltou-se para a autoridade e
inspiração da lei e do testemunho de Deus.” BAIRD, Charles W., A Liturgia Reformada, Santa
Bárbara D’Oeste: SOCEP, 2001, p.21. Calvino, em seus intentos reformadores na liturgia,
procurou retornar a um culto evangélico e livre das distorções que a história trouxe. Ver: WHITE,
James F., Protestant Worship, Tradition in Transition, Lousville: John Knox Press, 1989, p. 63.
125

Foi assim que o companheiro mais próximo de Lutero se tornou amigo de


Calvino.387 Durante toda a sua vida, Calvino demonstrou um grande respeito a
Lutero (e este também dirige palavras gentis a respeito de Calvino), porém, nos
últimos dias de vida de Lutero, Calvino apresenta mais dificuldades em relação à
rudeza dele.388
Enquanto desenvolvia seu ministério em Estrasburgo, os líderes procuraram
direcionar Calvino para o casamento. Ele mesmo parecia não se identificar com a
idéia, sendo reticente a esta. Calvino acabou, por fim, casando-se com Idalette de
Bure, viúva de um anabatista a quem ele mesmo havia convertido. Em 1540, Farel
veio de Neuchâtel para celebrar seu casamento.389
Enquanto isto, em Genebra, as coisas não evoluíam bem. Depois da partida
de Calvino e Farel, a vida eclesiástica estava desorganizada. Alguns amigos de
Calvino procuraram desabilitar os sucessores do Reformador. Calvino interveio,
exigindo o reconhecimento dos novos pastores. As coisas se acalmaram, porém a
situação segue incerta. Berna procura controlar Genebra.390 Os sucessores de
Calvino também foram expulsos da cidade e cresceu, na cidade, o temor de um
conflito armado. Os Reformados procuram convencer uma parte dos seus
adversários que a ordem só poderia ser reestabelecida pelo retorno de Calvino o
mais rápido possível.

387
LINDBERG, Carter, As Reformas da Europa, p. 234. Calvino continuou seus esforços pela
unidade com Bucer e Melanchton, porém a relação entre eles não mudou por isto. H. Koffijberg,
De Internationale Strekking van het Calvinisme, (Amsterdam, 1916), pp. 15-21.
388
“A Reforma de Lutero, que foi complementada por Calvino e Zwínglio, modifica
completamente a concepção religiosa de então." Ela começa por rejeitar os intermediários e aspira
ir até Deus e o Cristo diretamente, sem passar pela cristandade. A fé é o ponto fundamental do
Luteranismo e de toda a Reforma, a base de toda a religião reformada. “Nessa experiência do
Cristo finalmente puro, finalmente a sós, estaria a fé." Haveria assim uma fé pura, puramente
inspirada pelo Espírito. “A fé liberada de todas as contaminações dos interesses históricos e
paixões da cristandade”. DREHER, Martin, p. 15. DREHER, Martin, “Introdução”. In: LUTERO,
Martinho. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Editoras Sinodal e Concórdia.
389
Idelette de Bure (? - 29 de Março de 1549) foi a mulher de João Calvino, com quem se casou
em Estrasburgo. Seu primeiro marido, Jean Stordeur, tinha falecido de peste bubônica. Tinha dois
filhos e teve, com Calvino, pelo menos três, todos mortos na infância. Ver: Bouwsma, William J.
John Calvin – A Sixteenth Century Portrait (Oxford, UK: Ox-ford University Press, 1988), p.
45; Cairns, Earle E., O Cristianismo Através dos Séculos, op. cit., p. 278; Ferreira, Wilson C.,
Calvino: Vida, Influência e Teologia (Campinas, LPC, 1985), p. 21.
390
Em 1526, os genebrinos firmaram uma aliança com os "cantões" de Berna e de Friburgo. Sendo
assim, estavam mais fortalecidos para lutar contra o duque Carlos III, de Sabóia, que, em janeiro
de 1531, concede independência política ao "cantão" genebrino e provoca assim a perda do poder
temporal do bispo. Nos anos de 1526 e 1527, a cidade tinha sido atraída para a órbita da Suíça e,
em 1533, Berna promovera ativamente a causa da Reforma Protestante em Genebra. Desde aí a
influência da cidade protestante foi sentida e as decisões de Berna passaram a ser respeitadas em
Genebra, que contava com sua ajuda militar. Ver: VAN HALSEMA, Thea B., João Calvino Era
Assim, p. 81.
126

Em 20 de outubro de 1540, uma delegação viajou até Estrasburgo para pedir


a João Calvino o seu retorno a Genebra. Calvino recusou o convite feito e então
Farel apoiou os mensageiros e interveio; e Bucer, pelo contrário, desejou a
permanência de Calvino em Estrasburgo.391
O esforço para convencer Calvino dura meio ano, até que se decide a passar
algumas semanas em Genebra. Finalmente, em 13 de setembro de 1541, Calvino
chega a Genebra para passar estes dias, mas acaba permanecendo na cidade até o
fim da sua vida.392 Durante seu período na cidade, esta se tornou um refúgio para
as pessoas advindas de todas as partes.393

391
KEE, Christianity: A Social and Cultural History, 378.
392
Calvino morre, em 27/05/1564, em Genebra. No seu funeral, não houve cerimônia religiosa e
ninguém sabe, até hoje, onde está enterrado seu corpo. Schlesinger & Porto, Geografia Universal
das Religiões, 1988:709.
393
Genebra chegou a abrigar mais de 6 mil refugiados vindos da França, Itália, Inglaterra,
Espanha e Holanda. (Ver Philip Schaff, History of the Christian Church, VIII, 802; Ricardo
Cerni, Historia del Protestantismo, 2ª ed. corrigida (Edimburgo: El Estandarte de la Verdad,
1995), 63), aumentando este número com os estudantes que para lá se dirigiram com a fundação
da Academia de Genebra (1559). Lembremo-nos que a população de Genebra era de 9 a 13 mil
habitantes [9 mil segundo Reid (W.S. Reid, A Propagação do Calvinismo no Século XVI: em
W. Stanford Reid ed., Calvino e sua Influência no Mundo Ocidental, 52; 12 mil conforme
McNeill (J.T. McNeill, Los Forjadores del Cristianismo, Vol. II, 211); 13 mil de acordo com
Nichols (Robert H. Nichols, História da Igreja Cristã (São Paulo: Casa Editora
Presbiteriana,1978), 164). Schaff apresenta dados mais específicos relativos a cada período:
aproximadamente 12 mil habitantes no início do século XVI, aumentando para mais de 13 mil em
1543, tendo um surto de crescimento de 1543 a 1550, quando a população saltou para 20 mil
(Philip Schaff, History of the Christian Church, VIII, 802. Ver também Tomas M. Lindsay, La
Reforma y su Desarrollo Social (Barcelona, CLIE, - 1986 -, 117). Afora isso, Calvino exerceu
poderosa influência através da palavra falada e escrita; a sua Instituição - contrariamente à De
Clementia - tornara-se um sucesso editorial desde o seu lançamento em 1536. Wendel nos diz que
a primeira edição da Instituição esgotou-se em menos de um ano (François Wendel, Calvin (Nova
York: Harper & Row, 1963), 113; Justo L. Gonzalez, A Era dos Reformadores, 111). (Ver
também, Timothy George, Teologia dos Reformadores, 177-178). Ladurie, analisando a saga da
família Platter, diz que o ponto mais alto da tipografia de Platter – Lasius - que publicou a
primeira edição da Instituição, em latim (1536) -, foi com a obra de Calvino, a qual “projetara
Thomas”. (Ver Emmanuel Le Roy Ladurie, O Mendigo e o Professor: A Saga da Família Platter
no Século XVI, Vol. 1, 152, 153, 166).
127

2.4.3
A Segunda Estada de Calvino em Genebra

Calvino estava seguro de que Deus o havia chamado para a tarefa de


reformar a Igreja daqueles dias. Sua primeira resposta a esse chamado foi dedicar-
se à obra com seu saber e sua admirável inteligência. Mais tarde, olhou claramente
que Deus o queria em Genebra, ainda que seu espírito desejasse a solidão e o
repouso. Depois de seu regresso do exílio em Estrasburgo, onde sua alma
encontrou a consternação frente à possibilidade de assumir os desejos de seu ego,
acabou mais uma vez consentindo em assumir a tarefa para a qual foi estimulado e
constantemente convidado pelos seus amigos: o pastorado entre os refugiados
ingleses. Ao consentir com o juízo dos seus amigos, concluiu: “Esta é a vontade
de Deus”.394
Quando Calvino volta a Genebra, sua primeira pregação consiste na
continuação do último tema que ele pregou: age como se nunca tivesse saído da
cidade e retoma a pregação de 1538. Volta com muito mais prestígio e força
política, que utiliza para a reorganização da Igreja.
Segundo Calvino, o consistório devia ter o poder de citar, interrogar,
sancionar – e até excomungar – os membros da comunidade que considerava
haver cometido infrações contra a doutrina ou a moral. O conselho da cidade
rechaçou esta idéia porque teme a implementação de tribunais paralelos à sua
jurisdição oficial. Depois de algumas reticências, Calvino procurou se impor,
primeiro fazendo concessões até que, em 1555, ele conseguiu o que desejava.395
Calvino enfrentou, também, muitas disputas doutrinárias. Era um homem
ortodoxo em suas convicções teologais. Às vezes, era muito intransigente, não
podemos negar. Enfrentou muitos embates teológicos com Castellion, Bolsec,
Monnet e Jaques Gruet.396

394
Doumergue, Calvijn als Mensch en Hervormer, Trad. Helena C. Pos, (Amsterdam, 1931), pp.
10-15.
395
Os conflitos entre Calvino e o Conselho de Genebra foram vários. Foram travados devido à
questão do direito da excomunhão, da conformação da vida religiosa aos princípios reformadores,
à questão da ceia e sua celebração, à questão do sustento dos pastores de Genebra e o trato com os
Libertinos, que desejavam toda sorte de liberdade e poucas obrigações. Ver: BIELÉR, André, op.
cit., pp. 192-193.
396
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., pp. 171-178.
128

Dentre as muitas lutas, debates e processos que o reformador enfrentou, o


mais sério e controvertido foi o caso com o espanhol Miguel Serveto397, uma
lamentável mancha vermelha em sua folha de trabalho, em Genebra, segundo
muitos historiadores. Ultimamente, tem-se escrito demasiadamente sobre o
assunto, ora a favor do reformador, ora condenando-o. O próprio Calvino, Beza,
Bolsec, Castellion, entre os mais próximos do acontecimento, também escreveram
sobre o episódio.398
“A crítica impiedosa não admite atenuantes, olhando como subterfúgios
todos os argumentos invocados na defesa do austero reformador”.399 No entanto,
mesmo admitindo que tal experiência de Calvino tenha arranhado sua reputação,
não podemos deixar de afirmar que, no seu tempo e, em Genebra, ainda faltava
um conceito ético-religioso formal acerca da tolerância.400

397
SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 54, em uma nota de rodapé traz o seguinte resumo
sobre a vida de Serveto: Michel Servet ou Miguel Servetus (1511-1553): “foi um jovem físico
espanhol e brilhante estudioso. Descobriu que a doutrina Nicena da Trindade usava termos não-
bíblicos e, após estudar a Bíblia e os padres antinicenos, formulou outro ponto de vista, rico em
teologia eucarística e batismal. Publicou seus pontos de vista em 1531 (De trinitatis erroribus libri
VI) e novamente, em 1553, (Cristianismi restitutio), o que ocasionou sua execução, como herege,
em Genebra. Ele considerava o Espírito uma força e não uma pessoa. Negou a eterna geração do
Verbo etc. Era também geógrafo e anatomista e criou que a Bíblia deveria ser estudada em seu
contexto histórico. Sua maior contribuição científica foi a descoberta da circulação do sangue nas
vias respiratórias. De 1541 a 1553, manteve correspondência secreta com Calvino, que reprovava
seu antitrinitarianismo. Um amigo de Calvino denunciou Servet à Inquisição Católica e ele foi
preso. Escapou para Genebra, possivelmente contando com o apoio de anticalvinistas. Calvino
exigiu seu arrestamento e, como ele não negava sua heresia, o Petit Conseil autorizou sua
execução na fogueira em Champel, no dia 27 de outubro de 1553 (Cf. Westminster dictionary of
Church history, p. 763; Oxford Dictionary, p. 1263).
398
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 179. Lessa ainda afirma que os historiadores Philip
Schaff, Wylie, Hagenbach, além de outros, podem ser consultados com proveito. Podemos citar
ainda Augusto Dide, pastor, que se tornou livre pensador e escreveu uma apologia de Serveto,
contendo um forte ataque a Calvino. Entretanto, um dos principais historiadores que escreveram
sobre o assunto chama-se Henry Tollin, pastor da Igreja francesa, em Magdeburgo. Michelet,
Voltaire e Rousseau foram contundentes contra Calvino. (Ver o escritor Valentine Zuber,
professor de l’École Pratique des Hautes Études. Vol. I. 2004, p. 656).
399
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 180.
400
SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., pp. 53,54.
129

A polêmica sobre Miguel Servetus é a mais importante que se levanta sobre


o ministério de Calvino, em Genebra, no que diz respeito à compreensão de sua
ética e da sua concepção prática de liberdade. Algumas publicações afirmam que
Calvino, apoiado pelo Conselho da cidade, aprovou a morte de um adversário
incômodo e que teria demonstrado, neste ato, sua crueldade e rigidez.401 Seria
muito simplista pensar assim e por isto mesmo analisaremos este conflito com
mais detalhes.
Miguel Servetus nasceu em Aragão, em 1511. Em 1531, na Basiléia e em
Estrasburgo, enfrentou os Reformadores acerca da pergunta se a Palavra de Deus
se escreve através de mãos humanas. Também teve conflitos com as autoridades
por discordar das perseguições às pessoas tidas por hereges. Publicou, ao mesmo
tempo, escritos contra a doutrina tradicional da Trindade. Nestes, afirma que a
Trindade é uma incompreensão, já que a Escritura apresenta um Deus criador, e o
Filho e o Espírito Santo seriam meras expressões da ação divina, porém não
seriam Deus (monarquianismo).
Os escritos de Servetus criaram muitos conflitos e o Conselho de
Estrasburgo proibiu sua venda. Servetus foi até Paris estudar Medicina e foi, nesta
época, que chamou a atenção de Calvino. Depois que trabalhou um tempo como
corretor em Lyon, assumiu o cargo de médico do arcebispo de Vienne, na
província francesa La Dauphine. Neste tempo, Servetus descobriu a circulação de
sangue nos pulmões, assunto que o faz conhecido na história da medicina.

401
“Outro grande problema que Calvino teve de enfrentar, nesta época, foi o caso de Miguel de
Serveto. Este apareceu, em Genebra, afirmando que as Escrituras Sagradas nada falavam sobre o
Dogma da Trindade. Serveto insistia, ainda, que Jesus não era o Filho de Deus, que não passava
de um homem. Em Genebra, essa pregação representava um grande perigo para a Igreja
florescente; logo o Conselho da Igreja tomou as providências de prendê-lo. Uma vez preso, ele
foi levado a julgamento, pois as leis da época o exigiam; mas é bom deixar claro que o poder de
sentenciar Serveto não estava nas mãos de Calvino, e, sim, do Conselho de Genebra, o Pequeno
Conselho. Contudo, o grande reformador nada fez para impedir a condenação de Miguel de
Serveto. Este, depois de um processo sumário, foi condenado e, em 27 de outubro de 1553, com
seus livros amarrados entre os braços, inclusive suas Restitutas, livro onde expunha sua teologia
divergente, Serveto foi queimado na colina de Champel. Esse episódio tem sido utilizado pelos
inimigos de Calvino para denegrir a sua obra. Entretanto, é bom lembrar que a condenação
daqueles que a Igreja considerava hereges era uma prática da época iniciada, implantada e
validada pela Igreja Católica Romana, que não só a aprovava, como a utilizava sistematicamente
na condenação de protestantes e das mulheres acusadas de bruxarias.” GOMES, Antonio Máspoli
de Araújo. O Pensamento de João Calvino e a Ética Protestante de Max Weber, Aproximações e
Contrastes, p. 4.
130

O que não podemos esquecer é que, sob a pena inquisitorial de Vienne,


Serveto já tinha sido condenado às chamas, em 17 de junho de 1551, antes da
tomada de decisão de Genebra, que ocorreu, em 27 de outubro de 1553. Lessa
afirma que “as atas do processo de Vienne foram publicadas pelo abade
D’Artignny, em 1749; e as do processo de Genebra por A Rilliet, em 1844”.402
Outro fato importante, que temos que levar em consideração, é a tentativa de
julgar Calvino à luz do nosso tempo, esquecendo-nos que o contexto no qual
Calvino vivia ainda estava enebriado de práticas medievais.403 Também os que
tentam condená-lo são, via de regra, antitrinitários, livres pensadores e céticos.
Lessa faz a seguinte diferença entre os dois, ao afirmar que:

Calvino era o construtor, o sistematizador das


doutrinas da Reforma, o campeão da ortodoxia, o
continuador de Agostinho e de Paulo, o novo Atanásio,
na questão trinitária, o baluarte da fé. Serveto supunha-se
um reformador de vistas mais largas, propondo o seu
Christianismi Restitutio.404

Calvino foi o homem que deu à Reforma todo um caráter acentuadamente


positivo, organizando, de fato, um sistema de doutrinas, fruto de genialidade.405
Sua relevância não está em sua originalidade, mas em sua capacidade de
sistematizar as doutrinas cardeais da fé cristã, tendo como ponto de partida as
Escrituras Sagradas e o conceito sobre a soberania de Deus.406 Significa dizer que
o protestantismo não veio a se tornar um mero negativismo da vida humana. Ao
contrário, foi uma grande afirmação do primitivo cristianismo.407

402
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 180.
403
GOUVÊA, Ricardo Quadros. A Importância de João Calvino na Teologia e no Pensamento
Cristão. Em O Pensamento de João Calvino. São Paulo: Ed. Mackenzie. 2000, p. 117.
404
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 181.
405
MARTINA, Giacomo, op. cit., p. 149.
406
GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., pp. 115,116.
407
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 182.
131

Depois de condenações em outros lugares, as Igrejas e os magistrados civis


condenaram Serveto e lançaram sobre o reformador de Genebra grande prestígio e
respeito. Agora só faltava a palavra de Genebra. O Conselho, então, no fatídico,
dia 26 de outubro de 1553, lançou a sentença final – Serveto condenado às
chamas. Lessa afirma que “Calvino e seus amigos pleitearam pela mitigação do
suplício – a espada em lugar da fogueira – mas nada obtiveram”.408 Interessante
notar que a essa altura, Guilherme Farel foi destacado para acompanhá-lo até
Champel, o lugar do cumprimento da sentença. Farel tentou persuadi-lo de seus
erros a fim de que pedisse o perdão de Deus. Farel ainda conseguiu um encontro
entre Serveto e Calvino, que foi acompanhado de dois membros do Conselho.
Seguiu-se o pedido de desculpas pelas ofensas pessoais, por parte de Serveto, que
ouviu de Calvino não guardar nenhum ressentimento. O reformador procurou
mostrar-lhe que, desde o primeiro encontro entre os dois, em 1534, tentou
dissuadi-lo de seus graves erros teológicos. No dia seguinte, deu-se o ato final de
morte.
De alguma forma, tal desfecho serviu para manchar o brilho do grande e
forte reformador. Calvino ainda lançou sua defesa, que trazia o apoio dos pastores
de Genebra, sobre o título, em latim, de fidelis expositio errorum Michoelis
Serveti et brevis eorundem refutatio ou, em francês, de declaration pour
maintenir la vraye foy. Lamentavelmente, temos que admitir que nem Calvino e o
seu tempo nada podiam fazer de melhor. Protestantes ainda repetiam os horrores
da Inquisição. Apesar disso, Calvino ainda é considerado um dos grandes arautos
da liberdade moderna.409 Lessa diz ainda que “a responsabilidade de Calvino é
somente moral pela sua acusação veemente contra os erros teológicos do seu
opositor. Não lhe cabe nenhuma responsabilidade judicial”.410
Caminhando para o fim da referência a esse triste episódio, podemos admitir
lições para o cristianismo em geral e, sendo assim, citar as palavras do moderno
autor C. H. Irwin, em sua obra John Calvin – The man and his work, que pode
ajudar-nos um pouco:

408
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 206.
409
GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., p. 118. Gouvêa afirma: “Calvino era um homem de
sentimos profundos e de grande misericórdia. Suas cartas o provam; sua perseverança em Genebra
o prova [...]”.
410
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 201.
132

Dizer, pois, que Calvino queimou Serveto é, pelo


menos, exprimir meia verdade. Calvino não foi o único
autor. Era um entre muitos. Como representante da
opinião protestante, agiu em capacidade pública. Que
Serveto merecia a morte era a opinião geral da época, e
não um fato peculiar a Calvino. Coleridge afirma que a
morte de Serveto não era culpa especialmente de
Calvino, mas o opróbrio comum do Cristianismo
europeu. Quanto à fogueira propriamente, Calvino fez
oposição, advogando o cutelo como um gênero de morte
mais rápido e mais misericordioso.411

Por fim, não podemos deixar de registrar a iniciativa do Protestantismo


moderno de erguer um monumento expiatório em Genebra, exatamente “trezentos
e cinqüenta anos depois do holocausto de Champel”,412 em que “numa das faces
do monumento, vem o registro do nascimento e morte de Miguel Serveto”.413 Do
outro lado, lemos a seguinte inscrição:

Filhos respeitosos e reconhecidos de Calvino,


nosso grande reformador, condenando, porém, um erro
que foi o do seu século, e firmemente ligados à liberdade
de consciência conforme os verdadeiros princípios da
Reforma e do Evangelho, elevamos este monumento
expiatório aos XXVII de outubro de MCMIII.414

Este é o espírito do cristianismo, poder dizer peccavimus. De Genebra, a


influência de Calvino chegou a Holanda, Inglaterra, Alemanha, Suécia,
Dinamarca, França, sua pátria, sem falar em outros países.415

411
IRWIN, C. H. John Calvin – The man and his work. Indianápolis, 1976, p. 169.
412
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 212.
413
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 212.
414
LESSA, Vicente Temudo, op. cit. p. 212.
415
GONZALEZ, Justo L., op. cit., p. 119.
133

Em 1559, sob a influência do próprio Calvino, foi organizado em Genebra o


primeiro Sínodo, tornando a Igreja organizada institucionalmente como Federação
de Igrejas. Eram onze Igrejas federadas. Estavam lançadas as bases do sistema
calvinista da reforma francesa. Houve uma Confissão de Fé, com quarenta artigos,
versando sobre todas as principais doutrinas. Também foi elaborada uma
Confissão sobre a disciplina eclesiástica, com quarenta artigos. Tudo tem seu
início na Igreja local, sendo que o Consistório regulamentava o culto. Depois vem
o que era chamado de Colóquio, ou seja, várias Igrejas, cada uma representada
pelo pastor e um presbítero. Seguindo a gradação, vinha o Sínodo Provincial,
formado por vários Colóquios. Finalmente, havia o Sínodo Nacional, que atendia
às grandes questões eclesiásticas, doutrinárias e teológicas. Todos possuíam seus
representantes. Essa estrutura serviu de base para o presbiterianismo. Tal sistema
era democrático-representativo. O resultado foi a multiplicação de Igrejas pelo
país. De 1555 a 1563, cerca de trezentas novas Igrejas reformadas foram
organizadas.
Face ao tamanho crescimento, começaram a surgir os massacres, sendo o
primeiro em Vassy. Somente com a ascensão de Henrique IV, de Navarra, e com a
promulgação do Edito de Nantes, que a liberdade e a tolerância religiosa foram
permitidos. No entanto, aos poucos, as liberdades foram sendo restringidas.
Primeiro foi Luiz XIII, em 1629, no edito de Nimes. Depois Luiz XIV, em 1685,
terminou por revogar o pouco que restava de liberdade e tolerância. Deu-se, então,
um grande processo de emigração dos protestantes do reino com muita perda para
a nação. Luiz XV, em 1724, promulgou dezoito artigos duríssimos contra os
protestantes. Aprouve à Providência, através de Luiz XVI, estabelecer, em 1787, o
Edito de Versailles, reconhecendo o protestantismo como religião legítima.416

416
LESSA, Vicente Temudo, op. cit. p. 243.
134

2.4.4
Os Últimos Anos de Calvino

A coroação dos trabalhos árduos de Calvino, após a organização da cidade e


do arrefecimento das disputas doutrinárias, foi a criação da academia de Genebra,
inaugurada no dia 5 de junho de 1559.417 Teodoro Beza foi o seu primeiro reitor.
Mais tarde, veio a se tornar uma universidade. Seu início teve três cátedras: grego,
hebraico e filosofia. Esta academia se transformou em uma escola de formação de
muitos teólogos que se converteram à Reforma e se transformaram, depois, em
grandes reformadores em seus países. Não é possível subestimar a importância
desta instituição.418 Por exemplo: John Knox, da Escócia, é um dos estudantes em
Genebra e com ele muitos de outros países.419 A academia é o ponto culminante
da obra de Calvino: aqui, a interpretação bíblica – a motivação calvinista central –
ganha um espaço e manifesta singular organização.420
No mesmo ano, foi publicada a versão final das Institutas. A esta altura, este
consistia num manual importante, composto de quatro volumes e 24 capítulos,
pertencente ao grupo de grandes obras dogmáticas da teologia evangélica.421

417
GONZALEZ, Justo L., op. cit., p. 117.
418
Cf. O excelente artigo de W. Stanford Reid, “Calvino e a Fundação da Academia de Genebra,”
Westminster Theol. Jour., XVIII (1955), pp. 1-35.
419
Carlos Barro falando sobre a visão missionária de Calvino e seus ideais para com a
Universidade de Genebra disse (BARRO, 1998, p.44): “A Idéia de Calvino era de que, quando
propriamente treinados, os estudantes poderiam voltar a seus próprios países e espalhar o
evangelho como missionários. Nesse sentido, ele procurou tornar Genebra um centro missionário
para espalhar a Reforma e os seus ensinos por toda a Europa e outras partes do mundo”. BARRO,
Antônio Carlos. In Revista Fides Reformata. N° 1 Volume III: São Paulo (SP): Seminário
Presbiteriano Revendo José Manoel da Conceição, janeiro a junho de 1998, pp. 38-49.
420
A “Academia de Genebra” foi fundada em 05/06/1559. A necessidade de pastores e obreiros
era gritante! O próprio Calvino, numa de suas cartas, desabafa essa triste realidade, dizendo que
“em todas as partes da França, os irmãos estão implorando a nossa assistência”. Antônio Carlos
Barros, A Consciência Missionária de Calvino. In: Fides Reformata, vol. III, no. 1, 1998, p. 43
421
Quando João Calvino começou a escrever a primeira edição das Institutas da Religião Cristã,
em 1535, com a idade de 27 anos, sua intenção era servir grandemente aos interesses protestantes,
mas sua influência deve ter excedido em muito a sua expectativa. Provou ser o trabalho mais
influente da Reforma Protestante. Os protestantes de outros países viram, em Calvino, e em sua
obra, um pilar de grande força para a obra iniciada, pois que era um teólogo do mais alto grau,
enquanto que os romanistas temeram sua caneta como um dos inimigos mais fortes. Certo escritor
católico teve que dizer o seguinte a respeito das Institutas: "É o Alcorão, o Talmud da heresia, a
causa principal de nossa queda [...] o arsenal comum do qual os oponentes da velha Igreja
obtiveram emprestado as armas mais agudas. Nenhum escrito da era da reforma é mais temido
pelos católicos romanos, e mais zelosa e hostilmente combatido, que as "Institutas" de João
Calvino".
135

Devido ao excesso de trabalho durante toda a sua vida, Calvino, que havia
passado por muitas enfermidades, ficou debilitado.422 Em 2 de fevereiro de 1564,
enunciou sua última conferência na academia e, em 6 de fevereiro, pregou o seu
último sermão.423 Em 27 de maio de 1564, Calvino morreu em Genebra. Um dia
depois, foi sepultado sem nenhuma pretensão, como ele mesmo havia pedido.424
Por isto, ninguém, nos dias atuais, sabe com precisão onde estão os restos do
reformador.
Foram vinte e cinco anos de extensa dedicação à causa do Evangelho. De
1536 a 1538, encorajado por Farel e convidado insistentemente pelo Conselho da
cidade, passou ali mais vinte e três anos, de 1541 até 27 de maio de 1564, dia em
que o Eterno e Soberano Senhor o chamou à sua presença.

422
OC 9.891-4. As notas 130 e 131 do artigo João Calvino: O Humanismo Subordinado ao Deus
da Palavra – a propósito dos 490 anos de seu nascimento. In: Fides Reformata 4/2 (1999) de
Hermisten Maia Pereira da Costa, são dignas de registro: No dia 08/02/1564, escreveria a médicos
de Montpellier, agradecendo os remédios e a gentil atenção. Nesta carta, ele descreve suas
enfermidades: artrite, pedras nos rins, hemorróides (que o impediam de cavalgar), febre, nefrite,
indigestão, cólicas, úlceras, emissão de sangue por via urinária. (Ver João Calvino. To the
Physicians of Montpellier, “Letters”, John Calvin Collection, CD-ROM (Albany, OR: Ages
Sofware, 1998), número 665. Teodoro Beza. “Life of John Calvin”, John Calvin Collection, CD-
ROM (Albany, OR: Ages Sofware, 1998), 50 e 52. Ver também Philip Schaff. History of the
Christian Church. Vol. VIII, 820,821. Os últimos momentos de Calvino foram testemunhados
por seus pares, que afirmam: “Estes são os eventos principais na vida e morte de Calvino que eu
mesmo testemunhei durante os últimos dezesseis anos. Eu penso que estou qualificado para
declarar que nele foi exibido diante de todos os homens um dos mais belos e ilustres exemplos de
vida piedosa e morte triunfante de um verdadeiro cristão; que será fácil pela malevolência
caluniar, como será difícil devido a sua exaltada virtude imitar”. [Teodoro Beza, “Life of John
Calvin”, John Calvin Collection, CD-ROM (Albany, OR: Ages Software, 1998), 65. Outra
tradução: Teodoro Beza, Life of John Calvin: em Tracts and Treatises on the Reformation of the
Church, Vol. I, cxxxviii. Cf. Philip Schaff, History of the Christian Church, Vol. VIII, 272].
423
Philip Hughes nos conta que não foi muito antes que Calvino foi compelido “pelas
circunstâncias da controvérsia na cidade [...] a adicionar aos seus compromissos de ensino a
responsabilidade da pregação pública”. Philip E. Hugh es, ed., introdução ao The Register of the
Company of Pastors of Geneva in the Time of Calvin (Grand Rapids, MI, William B. Eerdmans
Publishing Co.), p. 5.
424
Calvino compreendia que a glória deveria ser tributada apenas a Deus, e que por melhor que
fosse o ser humano, não era digno de honrarias. Pensa assim porque entende que “a condição do
homem com relação a Deus é de total depravação, havendo uma tremenda “discrepância entre a
nossa sordidez e a suprema pureza de Deus.” Institutas, livro II, p. 230.
136

O grande e amável amigo Farel lhe faz a última visita, já aos setenta e cinco
anos. Seu biógrafo Theodoro Beza ali esteve até o momento final. Realizou
grande esforço para falar suas últimas palavras aos pastores de Genebra, palavras
de despedida.425 Em seu Discours d’adieu aux ministres, Calvino afirmou que
tinha sido apenas um “pobre e tímido acadêmico”,426 vocacionado por Deus para
o serviço do seu Reino.427
Logo depois de sua morte, Beza escreveu:

Assim esta luz esplêndida da Reforma foi levada


de nós com o pôr-do-sol. Durante aquela noite, e no dia
seguinte, houve grande lamentação por toda a cidade;
para a República a tristeza da perda de um de seus
cidadãos mais sábios; a Igreja lamentou a morte de seu
pastor fiel; a Academia se entristeceu por se ver privada
de um professor incomparável, e todos se afligiram pela
perda daquele que foi, sob Deus, o pai e confortador de
todos.428

425
OC 9.891-4. As notas 130 e 131 do artigo João Calvino: O Humanismo Subordinado ao Deus
da Palavra – a propósito dos 490 anos de seu nascimento. In: Fides Reformata 4/2 (1999) de
Hermisten Maia Pereira da Costa, são dignas de registro: No dia 08/02/1564, escreveria a médicos
de Montpellier, agradecendo os remédios e a gentil atenção. Nesta carta ele descreve suas
enfermidades: artrite, pedras nos rins, hemorróides (que o impediam de cavalgar), febre, nefrite,
indigestão, cólicas, úlceras, emissão de sangue por via urinária. (Ver João Calvino. To the
Physicians of Montpellier, “Letters”, John Calvin Collection, CD-ROM (Albany, OR: Ages
Sofware, 1998), número 665. Teodoro Beza. “Life of John Calvin”, John Calvin Collection, CD-
ROM (Albany, OR: Ages Sofware, 1998), pp. 50,52. Ver também Philip Schaff. History of the
Christian Church. Vol. VIII, pp. 820,821.
426
MCGRATH, Alister, op. cit., p. 223.
427
OC 9.892: “[…] un pauvre escholier timide comme ie suis, et comme ie l’ay tousiors esté […]”.
428
BEZA, Theodoro. Life of John Calvin: em Tracts and Treatises on the Reformation of the
Church, CXXXIV e, em outra tradução: Teodoro Beza, Life of John Calvin, p. 63, em John
Calvin Collection (The AGES Digital Library, 1998). Cf. J. T. McNeill. The History and
Character of Calvinism, p. 227. Ver também Hermisten Maia Pereira da Costa. João Calvino: O
Humanismo Subordinado ao Deus da Palavra – a propósito dos 490 anos de seu nascimento. In:
Fides Reformata 4/2 (1999), p. 14.
137

O agora cidadão genebrino não soube o significado da palavra descanso.


1564 foi o ano do “nascimento de Shakespeare e de Galileu, e da morte de
Miguel Ângelo”.429 Genebra perdia o sábio cidadão, a Igreja o seu pastor fiel, a
Academia seu mestre, a Europa o semeador da liberdade. Homem de cuja teologia
enaltecia o soberano Deus e expunha as fraquezas humanas ante a maravilhosa
graça de Jesus Cristo. Seus parcos bens foram deixados, por testamento, para seu
irmão Antonio Calvino e seus sobrinhos, deixando ainda uma pequena quantia ao
caixa dos estudantes necessitados e outra para os carentes estrangeiros.430
Calvino despertava, e ainda desperta, mais respeito e admiração do que
propriamente afeto e carinho. Segundo Silvestre, “Calvino merece um retrato en
mouvement, no qual não é ditador nem fundamentalista.”431 Doumergue o
classifica como um dos homens mais prodigiosos e ativos de todos os tempos, que
trabalhava incessantemente em favor da vida.432
O grande historiador Schaff diz que,

Aqueles que julgam de seu caráter e conduta, diz


ele, pelo caso de Serveto, e de sua teologia pelo
Decretum horriblile – vêem as manchas do sol, mas não
o próprio sol. Levando em conta todas as suas falhas,
deve ser julgado como um dos maiores e melhores
homens que Deus fez aparecer na história do
Cristianismo.433

Ricardo Gouvêa, comentando sobre a genialidade e a luta do reformador


pela dignidade humana diante de Deus, de si e do seu semelhante, diz que
“Calvino foi um patrono dos direitos humanos”.434 Um monumento foi erguido
em sua homenagem, nas comemorações dos 300 anos da Reforma de Genebra, em
1835, que dizia, entre outras coisas: “Alquebrado no corpo, poderoso no espírito,
vencedor pela fé, o Reformador da Igreja, o Pastor e Protetor de Genebra.”435

429
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 262.
430
GONZALEZ, Justo L. A Era dos Reformadores. Vol. VI. São Paulo. Ed. Vida Nova, p. 117.
431
SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 80
432
Há muitas obras de Doumergue, das quais podemos citar: Jean Calvin, les hommes et les choses
de son temp (1889-1927); La Genève calviniste e The Christian Institutes of Calvin and the
Confession of Faith of la Rochele (1896).
433
SCHAFF, Phillip. The Swiss Reformation, op. cit., p. 834.
434
GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., pp. 118.
138

O teólogo Hermisten Maia Pereira da Costa, em seu artigo João Calvino: O


Humanismo Subordinado ao Deus da Palavra – a propósito dos 490 anos de seu
nascimento, cita um dos grandes historiadores franceses, o católico Ernest Renan
(1823-1892), que, em seus Études d’Histoire Religieuse, faz o seguinte
comentário acerca de Calvino:

Era Calvino um daqueles homens absolutos que


parecem ter sido vazados de um só jato num molde, e
que se estudam por meio de um simples olhar. Uma
carta, um gesto é bastante para se formar dele um juízo
[...]. Não dava importância a riquezas, nem a títulos, nem
a honras; indiferente às pompas, modesto no viver,
aparentemente humilde, tudo sacrificava ao desejo de
tornar os outros iguais a si. Excetuando Inácio de
Loyola, não conheço outro homem que pudesse rivalizar
com ele nestes raros predicados. É surpreendente como
um homem, cuja vida e cujos escritos atraem tão pouco
as nossas simpatias, tornasse-se o centro de um tão
grande movimento e que suas palavras tão ásperas, sua
elocução tão severa, pudessem ter uma tão espantosa
influência sobre os espíritos de seus contemporâneos.
Como se pode explicar, por exemplo, que uma das
mulheres mais distintas de seu tempo, Renata de França,
que, no seu palácio de Ferrara, via-se cercada dos mais
brilhantes talentos da Europa, se deixasse cativar por
aquele severo doutrinador, enveredando-se, por sua
influência, numa senda que tão espilhosa lhe deveria ter
sido?
Semelhantes vitórias só podem ser alcançadas por
aqueles que trabalham com sincera convicção. Sem
manifestar aquele ardente desejo de procurar o bem dos
outros, que foi o que assegurou a Lutero o bom êxito de
seus trabalhos, sem possuir o encanto, a perigosa, posto
que lânguida doçura de S. Francisco de Sales, Calvino
saiu vitorioso, numa época e num país em que tudo
anunciava uma reação contra o cristianismo, e isso
simplesmente por ser o maior cristão do seu século.436

435
SCHAFF, Philip. History of the Christian Church. Vol. VIII, 825. In: Hermisten Maia Pereira
da Costa. João Calvino: O Humanismo Subordinado ao Deus da Palavra – a propósito dos 490
anos de seu nascimento. In: Fides Reformata 4/2 (1999), p. 15.
436
RENAN, Ernest. Études d’Histoire Religieuse. (Paris, 1880). 7a edição, p. 342. Apud Phillip
Schaff. History of the Christian Church. Vol. VIII, pp. 279,280. In: COSTA, Hermisten Maia
Pereira, In: Fides Reformata 4/2 (1999), p. 01.
139

2.4.5
Beza, o Sucessor e Biógrafo de Calvino

Depois da morte de Calvino, Teodoro Beza foi eleito seu sucessor como
moderador dos pastores de Genebra. Beza nasceu, em 1519, na Borgonha. Seu pai
era o governador Real em Vezelay, sua mãe era conhecida pela sua generosidade
e seu tio, Nicholas, estava no parlamento Francês. Nicholas o convidou para
estudar em Paris e, antes de se dirigir para lá, estudou aos pés de Melchoir
Wolmar, na Alemanha e, posteriormente, em Bourges, tendo concluído seu curso
de Direito em Orleans, em 1539.437
Após sua graduação, seguiu para Paris, sendo-lhe prometida a sucessão no
escritório de seu tio Nicholas, onde recebia 700 coroas douradas que eram mais do
que suficientes para o seu sustento. Depois de 2 anos em Paris, ele adoeceu
mortalmente, quando, então, veio a perceber suas necessidades espirituais, o que
resultou na sua conversão. Antes de se recuperar totalmente, tomou os seus
pertences e se dirigiu para Genebra, pois, havendo renunciado à fé católico-
romana, era o local mais seguro de se estabelecer. Por causa de sua conversão,
foram tomadas todas as suas regalias, inclusive o sustento conseguido pela sua
família, mas mesmo assim, ele estava disposto a abandonar tudo e aprender mais
sobre a fé protestante.
Originalmente professor jurista, passou dez anos lecionando Grego na
academia de Lausanne, na Suíça. Em 1558, foi para Genebra. Um ano depois,
tornou-se diretor da academia da cidade.438
Calvino, que se encontrava em Genebra, e que já o conhecia desde os
tempos em que estudou com Wolmar, o recebeu de braços abertos. Em 1558,
ocupou a primeira cadeira de Grego na Academia de Genebra. Já em seus
primeiros anos em Genebra, Beza tornou-se consultor teológico da Igreja
francesa, dialogando com as autoridades políticas dos hunguenotes no contexto
das guerras da religião.

437
CARTER, Lindberg. As Reformas na Europa, p. 325.
438
Em 1558, Beza aceitou uma oferta de Calvino para lecionar na recém fundada academia em
Genebra. Ver: Gonzalez, Justo L., Dicionário Ilustrado dos Intérpretes da Fé, p. 110.
140

Após a morte de Calvino, assumiu a cadeira de Teologia como sucessor de


Calvino. Beza foi o responsável por solidificar, através da academia de Genebra,
os princípios Reformados na cidade, além de proporcionar a expansão das idéias
reformadas na Europa, especialmente nos Países Baixos.
Depois de 1564, Beza manteve estreito contato com as comunidades
francesas. Ao participar do concílio, ele foi eleito presidente do sínodo de La
Rochelle. Beza é considerado o sucessor de Calvino, em Genebra, porém não
apresenta literal continuidade com o pensamento ou metodologia do seu
antecessor: suas raízes estão na filosofia aristotélica e, por isso, ele trata de
sistematizar as teses particulares da sua obra teológica (principalmente a doutrina
da predestinação e a compreensão acerca da eucaristia).
Outra característica do seu trabalho é a ênfase no NT e sua dedicação à
ciência bíblica. Sua edição do NT, contendo o texto que ele mesmo descobriu, foi
reimpressa mais de 150 vezes até 1965.
A influência de Beza nos estudos da Escritura, faz-se através de um viés
acadêmico, e não propriamente pastoral ou apologético,439 o que influenciou uma
geração inteira de estudantes e foi o princípio do fortalecimento das concepções
reformadas em Genebra. Porém, doutrinas como a da inspiratio verbi,440 da
infalibilidade e inerrância441 e da lectio continuae regulatoris442 foram as bases
das rupturas socinianas443 e, conseqüente, arrefecimento da fé reformada na
França.

439
Ao contrário de Calvino, que era um expositor da Escritura, e que comentava os textos
objetivando a pregação, Beza inseriu o estudo acadêmico do Antigo Testamento e do Novo
testamento, sendo precursor da teologa bíblica moderna. Ver: MURDOCH, Ralph, Interesting of
Scriptures Studies?, New York: New Harper, 1998. p.57.
440
A concepção do “ditado verbal da Escritura” não é um legado de Calvino, mas dos seus
sucessores, sob a influência de Beza. Jean Astruc e Pierre Bordieu, ao apresentarem suas críticas a
Calvino neste ponto, estão na realidade apontando desvios no calvinismo, e a literalidade foi
defendida por autores calvinistas como Turrentino e W. Ames, como sendo um princípio extraído
de Calvino. Ver: COURTHIAL, Pierre, Idade de Ouro do Calvinismo na França (Em: Calvino e
Sua Influência no Mundo Ocidental), pp. 88-110.
441
As doutrinas mencionadas foram adotadas por Calvino, mas o foco de Calvino, posto na ação
do Espírito, foi substituído pela idéia nominalista de que a Escritura por si mesma pode culminar
em ensino da “correta e santa doutrina”. Institutas, livro I, 10,2.
442
A “lectio continua”, adotada por Calvino no seu ministério, em Genebra, foi confirmada por
Beza, que, ao contrário de Calvino, não aceitava a adoção de qualquer lecionário, inclusive aqueles
adotados em cidades como Berna e Zurich. Ver: CARTER, Lindberg, As Reformas na Europa, p.
318.
443
O socianismo é um movimento fundado sob a influência de Socianus, precursor do Iluminismo.
O socianismo adota o pelagianismo, ou seja, a razão, que não está totalmente corrompida, pode
compreender as verdades sobre Deus, e operar a salvação. Ver: GONZALES, Justo L., Dicionário
Ilustrado dos Intérpretes da Fé, p. 589.
141

Além da tradução da Bíblia, Beza contribuiu de forma grandiosa para o


progresso da fé protestante com a publicação de sua Confissão de Fé, que
inicialmente fora produzida no intuito de conquistar seu pai à fé. Tal confissão foi
utilizada em larga escala, na época, para promover o conhecimento evangélico aos
seus compatriotas, sendo editada e dedicada a Wolmar. Esta confissão foi
considerada a maior das contribuições de Beza para a fé protestante, sendo
respeitada tanto pelos amigos como pelos inimigos, como uma obra de grande
relevância, principalmente nas questões relacionadas ao sacramento da Ceia.
Teodoro Beza morreu aos 86 anos, em 13 de outubro de 1605. Ele não foi
enterrado ao lado de Calvino, porque os seus opositores tinham ameaçado roubar
o seu corpo. O efeito de seus trabalhos foi de grande significado. Embora não
tenha sido reconhecido por ter desenvolvido algum pensamento novo, seus
trabalhos são tidos como de grande valia, ainda hoje, por manifestarem esta tônica
de desenvolvimento e simplificação da fé calvinista, porém com um tônus na
doutrina da Graça Irresistível.

2.4.6
As Obras de João Calvino

Segundo seu primeiro biógrafo, Theodoro Beza, Calvino nasceu para


escrever.444 Sempre esteve às voltas com a pena, fazendo dela uma arma poderosa,
capaz de enfrentar as mais acirradas lutas dos grandes resistentes à Reforma e as
mais absurdas heresias, bem como sistematizar a riqueza da teologia e influenciar
sua cidade, seu país e a Europa do seu tempo, o Ocidente e até mesmo o mundo.
Dominou como poucos as duas línguas que utilizou o latim e o francês, podendo
ser considerado um grande clássico. Não há nenhuma dúvida de que Calvino
revelou, em seus escritos, a grande influência recebida de Santo Agostinho e
Bernardo.445

444
FERREIRA, Wilson Castro, op. cit., p. 140.
445
Ver LANE, A. N.: “Calvin’s Use of the Fathers and the Medievals”, in Calvin Theological
Journal, 16, 1981, pp. 14 9-205; e “Calvin’s Sources of St Bernard”, in Archiv für
Reformationsgeschichte, 67, 1967, pp. 253ss.
142

O reformador assume as Escrituras como o ponto de partida de sua teologia.


Para Calvino, o AT e NT falam do mesmo Deus. Por isto, não é possível
estabelecer uma diferença essencial entre as partes da Bíblia. Assim, as profecias
do AT são realidades no NT. No AT, se vislumbra o Evangelho. O NT apresenta
luz própria. As similaridades são numerosas, sem negar as diferenças. Porque é a
mesma aliança de Deus com os homens que se manifesta em toda a Bíblia. Por
esta razão, a Lei tem sua serventia para que o ser humano reconheça seus pecados
(como em Lutero); e seu objetivo fundamental está em orientar a vida do crente
segundo os mandamentos de Deus.446 É certo que com os mandamentos se
reconhece a pecaminosidade humana, porém este fato não suspende o seu
verdadeiro sentido, que é mostrar a maravilhosa vontade de Deus.447
No entanto, mesmo com tamanha inteligência, conseguia alcançar os
intelectuais e os humildes do povo. Como bem testemunhou Warfield:

O que vemos em Calvino fundamentalmente é o


homem de letras, como santo: ele nunca visava, para si,
nada, ele nunca desejava, para si, em toda a sua vida, ele
nunca aderiu inteiramente a qualquer outra vocação. Ele
era por natureza, por dons, por educação – por inata
predileção, por qualidades adquiridas igualmente – um
homem de letras. E ele fervorosamente – podemos dizer
– aproximadamente, como tal, desejou dedicar-se a
Deus.448

446
Afirma Calvino: "A terceira aplicação da Lei é a mais importante porque se refere a seu
objetivo final: se realiza em todos os fiéis, em cujos corações o Espírito de Deus domina. Eles têm
a Lei escrita, incluída e esculpida em seus corações pelo dedo de Deus, o que significa que são
orientados pelo Espírito a terem uma disposição mental interior que os leva a, de bom grado, se
submeterem. Sem dúvida, é possível tirar um duplo proveito da Lei. Primeiro: é o melhor
instrumento que nos ensina dia a dia qual é a vontade de Deus que buscamos cumprir, pois nos
afirma tal conhecimento. Por mais que um servo anele de todo o coração cumprir as expectativas
do seu amo, sempre tenderá a necessidade de explorar e observar a particularidade de seu patrão.
O mesmo vale para os fiéis. Nada pode se libertar desta necessidade, porque nada há de mais
profundo ou sábio que o puro conhecimento da vontade de Deus, através da educação diária na
Lei. Segundo: não necessitamos somente que alguém ensine, mas que também admoeste. Este é
outro proveito que o servo tem através da Lei. Sua observação constante reforça nossa obediência
e salva do perigoso caminho do pecado e da desobediência. Os santos necessitam sem dúvida de
ajuda e estímulo, porque ainda que seu espírito deseje buscar a justiça de Deus, as debilidades da
carne pesam sobre eles, e não vão por caminhos com a necessária e alegre disposição.” Parágrafo
citado das Institutas II, 7,12.
447
“Pela lei Deus exige o que lhe é devido, todavia não concede nenhum poder para cumpri-la.
Entretanto, por meio do Evangelho os homens são regenerados e reconciliados com Deus através
da graciosa remissão de seus pecados, de modo que ele é o ministério da justiça e da vida.”
Segundo Coríntios, (2 Co 3.7), p. 70.
448
WARFIELD. Calvin and Augustine, Baker Book House Distributer Grand Rapids, 1956, p. 5.
143

Sem dúvida, além de ser um profundo conhecedor da teologia, Calvino


também foi comentarista da Escritura, fazendo seus comentários a partir das
línguas originais.449 Warfield afirma que a importância dos comentários bíblicos
de Calvino é porque são análogos à sua teologia, uma vez que a sua teologia
consiste numa exposição coerente com a própria Bíblia. Ele também afirma que,

[...] é um marco da época em que a história da


doutrina da Trindade, por exemplo, era compreendida
mais comumente com elementos de subordinacionismo,
mas a aplicação da Escritura por Calvino contribuiu para
esclarecer mais adequadamente a doutrina quanto à
profundidade da co-igualdade das Pessoas.450

Embora já tenhamos citado e comentado, ainda que laconicamente, sobre


algumas das obras de Calvino, ele, na verdade, escreveu aproximadamente 96
obras. Sua influência, através de suas penas e postulados doutrinários,
fundamentados nas Escrituras e nos grandes pais da Igreja, estendeu-se por muitos
países. Apesar de sua frágil saúde, com inúmeros afazeres, exercendo diferentes
ofícios, tais como pastor, professor, estadista etc., sua obra é, de fato, espantosa,
em qualidades literária e teológica, clareza e profundidade.
Em quase todas as obras, ele a dedicava a reis, príncipes de várias nações,
nobres, amigos pessoais. Phillip Schaff diz que “ele (Calvino) foi o habilidoso
exegeta entre os reformadores e seus comentários estão entre os melhores do
passado e do presente”.451 Karl Barth diz ainda o seguinte: “[...] eu poderia feliz e
proveitosamente assentar-me e passar o resto de minha vida somente com
Calvino”.452

449
Por entender ser a Bíblia o registro inerrante da Palavra de Deus, e que não é possível conhecer
a Deus sem a Palavra, Calvino se lança a comentar a Escritura e o faz segundo um programa que
consiste em preservar “a unidade que se processa à par da Palavra do Senhor” (Institutas, livro IV,
2.5).
450
Ainda que este juízo seja verdadeiro, não obstante, isto não quer dizer que Calvino não tenha
sido influenciado por Lutero através de Bucer, sendo estas concepções calvinistas avivadas através
da leitura de Agostinho. Ainda que Calvino seja crítico da prolixidade de Agostinho, ele cita este
com mais freqüência que todos os outros Pais da Igreja. Calvino, em sua leitura teológica,
apresenta-se mais dependente das Escrituras que outros teólogos Reformados da época, e a
claridade e incisão do seu pensamento, bem como as aplicações práticas para a vida total e de
fervor e afeto são decorrentes desta leitura da Escritura. Por isto, Calvino é chamado teólogo do
coração (Warfield, op. cit., p. 23).
451
SCHAFF, Phillip. History of the Christian Church. Vol. VIII, p. 261.
452
BARTH, Karl. Revolutionary Theology in the Making, p. 101. Apud Timothy George, op. cit.
p. 163.
144

Segundo Ricardo Gouvêa, Calvino foi um dos maiores exegetas do seu


tempo e ainda hoje permanece praticamente insuperável.453 De seus estudos
resultou um novo paradigma hermenêutico para o protestantismo subseqüente,
através da aplicação do método histórico-gramatical ou, como é chamado
também, histórico-análitico. Sempre priorizando as Escrituras, colocando-as sobre
a autoridade da Igreja como instituição e defendendo o princípio do livre exame,
buscava colocar a Palavra ao alcance de todos: intelectuais e gente simples do seu
tempo.
Lessa, sobre a capacidade literária de Calvino, afirma:

Suas Institutas, seus judiciosos e opulentos


Comentários, os sermões, tratados e escritos diversos,
fazem ver nele o homem bem diferente daquele que é
retratado pelos adversários ou por aqueles que o
conhecem apenas de modo perfunctório, eivados ainda
de sombrio preconceito, derivado da leitura de
periódicos e de livros tendenciosos.454

Aos 22 anos, em 1529, escrevia sua primeira obra, De Clementia, um


comentário sobre Sêneca, de cunho eminentemente humanístico, com farta citação
dos clássicos, sobretudo, Cícero.455

453
GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., pp. 116.
454
LESSA, Vicente Temudo, op. cit. p. 248.
455
DURANT, Will. A reforma: história da civilização européia de Wyclif a Calvino: 1300-
1564. p. 384. Cf. SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 83. A primeira obra de Calvino era
uma clara consciência que o reformador tinha acerca da necessidade de tolerância, de liberdade,
pois, na obra, conclama o rei Francisco I, da França, a usar de clemência para com os
reformadores. Desde muito cedo Calvino abraçara o humanismo, que trazia, em seu conteúdo, a
valorização do homem.
145

Em 1534, escreveu uma obra apologética, chamada Psychopannychia –


sobre o sono da alma -, cujo propósito era combater as heresias dos anabatistas,
que diziam que a alma dos mortos permanecia em estado de sono até o dia do
juízo final. Teve sempre que enfrentar os erros dos anabatistas. Nesse mesmo tom
apologético, escreveu Adversus fanaticam et furiosam sectam Libertinorum qui se
spirituales vocant (1545), contra o partido dos Libertinos. Ainda escreveu
Resposta ao Cardeal Sadoleto (1539); Sobre o Livre Arbítrio, contra Pighius
(1543); O Culto das Relíquias (1543); Exortação a Carlos V sobre a necessidade
de uma reforma na Igreja (1543) e Contra o Concílio de Trento (1547).456
Sem dúvida de que a Instituição da Religião Cristã, ou Institutas, é a obra-
prima de Calvino. Escrita, como já dissemos, a partir dos dogmas do Credo
Apostólico.457 A primeira edição, em 1536, consistia em seis capítulos, a partir
dos quais a obra foi evoluindo, ganhando corpo e densidade bíblico-teológica no
decorrer dos anos, até sua última edição. É, na verdade, o grande clássico sobre
teologia sistemática, ao qual, segundo alguns, apenas Cidade de Deus, de Santo
Agostinho, e a Summa Teológica, de Tomás de Aquino podem ser comparadas, no
que diz respeito à história da teologia.458
Sem dúvida que a teologia de Calvino tem muitos matizes e é muito
detalhada.459 As Institutas (cuja versão final é datada de 1559) são a primeira
dogmática evangélica extensa. A renovação reformatória se apresenta como um
contraponto à tradição escolástica e dialoga permanentemente com os escritos do
AT e NT.460

456
Apenas como informação histórica, nesse mesmo ano de 1534, no dia 15 de agosto, em
Montmartre, Inácio de Loyola instituiu a ordem dos jesuítas. Ano também importante pelo fato de
que Paulo III excomungou Henrique VIII e estabeleceu, na Itália, a Inquisição.
457
LESSA, Vicente Temudo, op. cit. pp. 73-77.
458
GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., p. 116.
459
“Calvino não está vinculado, como Lutero, a algum ramo da Igreja Cristã; está associado mais
apropriadamente a um grande sistema de pensamento. E esse sistema é tão extenso, tão penetrante,
e tão poligonal que, desde um ponto de vista, é um corpo sólido de doutrinas abarcando todas as
grandes verdades da religião e da vida.” Calvin Memorial Addresses (Savannah, 1909), p. 37.
460
O primeiro princípio do calvinismo é o reconhecimento da Escritura como a Palavra de Deus.
Este foi o princípio formal da Reforma Protestante, estabelecida em todos os credos calvinistas, e o
fim de toda contradição em todos os escritos próprios de Calvino. A Escritura não é somente o
guia autoritativo para o caminho da salvação, mas também dota o homem de uma interpretação
autoritativa da realidade como um todo, mais particularmente a existência do homem. O calvinista
busca olhar todas as coisas à luz da eternidade (sub species aeternitatis). Ver: La Historia y
Carácter del Calvinismo (New York, 1954), p. 433.
146

As Institutas demonstram os dois pólos complementares através dos quais o


pensamento calvinista se apresenta. Por um lado, enfatiza a glória, majestade e
onipotência de Deus.461 Por outro lado (e igual em importância ao primeiro), trata
da salvação do ser humano. Aqui Calvino se mostra como discípulo
(independente) de Lutero. Ambos os conceitos estão bem unidos. Na encarnação e
na salvação, manifesta-se a glória de Deus.462 Quanto à epistemologia, Calvino
trata da questão do conhecimento de Deus e conhecimento de si mesmo.463

461
Por soberania o calvinista entende o absoluto direito de Deus em governar o mundo e fazer o
que deseja. É o criador, “Pois dele, por meio dele e para ele são todas as coisas.” Juan Calvino,
Institución (Libro I, Cap. 16, pár. 1-9; Libro III, Cap. 21, 22, 23).
462
Porém os dois temas se interligam. Sobre isto, afirma Calvino: “Agora, foi-nos da máxima
importância que fosse tanto verdadeiro Deus quanto verdadeiro homem aquele que nos houvesse
de ser mediador. Se da necessidade disso se indaga, não houve, de fato, uma necessidade simples,
ou, como dizem geralmente, absoluta. Procedeu, antes do decreto celeste, de que dependia a
salvação dos homens. Mas o Pai clementíssimo decretou o que nos era melhor.” Institutas, livro II,
p. 230.
463
"Toda nossa sabedoria – se é que merece este nome, se é verdadeira e confiável – compreende
no fundo das coisas: o conhecimento de Deus e de nós mesmos. Estes dois, sem dúvida, estão
vinculados de múltiplas maneiras, e por isto não é tão fácil constatar qual é superior, ou originário.
Primeiro, nenhum homem pode contemplar-se sem contemplar a Deus com todos seus sentidos, o
Deus em que vivemos, e nos movemos, e somos (Atos 17.28). Porque todos os dons que
constituem os bens aparentemente não os temos a partir de nós mesmos. Inclusive em nossa
existência como humanos consiste em ter nossa essência no Deus único. E segundo, estes dons
mostram a nós como caem as gotas do céu e nos guiam como o riacho na fonte. Porque justamente
nossa pobreza se reconhece mais claramente na riqueza inimaginável de todos os dons que
procedem de Deus. Especialmente a decadência miserável em que caímos, porque o primeiro
homem perdeu a fé, o que nos obriga a levantar os olhos. Precisamos e devemos implorar a Deus
que nos dê o que nos falta, porém, ao mesmo tempo. devemos aprender a ser humildes [...].
Sentimos nossa ignorância, vaidade, pobreza, debilidade, nossa maldade e depravação, e assim
chegamos a compreender que somente em Deus se achará a verdadeira luz da sabedoria, a
verdadeira força e virtude, uma riqueza imensa de todos os bens e a verdadeira justiça. É
justamente nossa miséria que nos faz contemplar os dons de Deus, e somente quando somos
confrontados com isto é que vemos nossos defeitos, e procuramos seriamente alcançar o Senhor.
Porque (naturalmente) cada homem prefere confiar em si mesmo e geralmente não se conhece por
isto, pois se conforma com suas habilidades e não quer saber da sua miséria. Quem se conhece,
não somente tem a motivação de buscar a Deus, mas de certa maneira é levado por suas mãos à
sua sabedoria e santidade, porque ninguém pode conhecer a si mesmo sem antes haver conhecido
o rosto de Deus, e nesta contemplação passa a olhar a si. Porque uma enorme soberba é inata em
nós, e sempre achamos que somos impecáveis, sábios e santos, a não ser que nos enfrentemos com
provas palpáveis de nossa injustiça, mácula, estupidez e impureza, e nos convençamos desta
maneiras. Porém, isto não ocorrerá se somente olharmos para nós mesmos e não para o Senhor,
porque ele é o único parâmetro que nos permite nos autojulgarmos. Por natureza, tendemos à
hipocrisia e, por isso, qualquer aparência de justiça nos satisfaz tanto, porém, no fundo, somente
poderia nos satisfazer a verdadeira justiça.” Institutas, livro I, 1, 1 e 2.
147

Os quatro grandes volumes podem ser assim distribuídos: No primeiro livro


temos a Doutrina do conhecimento de Deus como Criador e Sustentador de todas
as coisas; o duplo conhecimento de Deus; a doutrina das Escrituras Sagradas; a
doutrina da Santíssima Trindade; a obra da Criação e a doutrina da Providência.
No segundo livro, encontramos o Conhecimento de Deus como Redentor; a
doutrina da Queda e o pecado humano; a doutrina acerca da Lei; o AT e o NT; o
Dogma Cristológico, tendo Jesus Cristo como Mediador e sua Pessoa como
Profeta, Sacerdote e Rei e a obra da Redenção. O terceiro livro aborda a forma
pela qual alcançamos a Graça de Cristo, seus Benefícios e seus feitos; a doutrina
da Fé e da Regeneração; a doutrina do Arrependimento; a Vida Cristã em Cristo;
o dogma da justificação; a doutrina da predestinação e a doutrina da Ressurreição
Final. O último livro trata dos meios externos pelos quais somos chamados por
Deus para vivermos uma nova vida na expressão comunitária da Fé; fala da
doutrina da Igreja; a doutrina dos Sacramentos e termina sobre o governo civil.
Quanto aos livros sagrados, tornou-se um dos mais competentes
comentaristas bíblicos, escrevendo sobre quase todos os livros das Escrituras.
Quanto ao NT, faltaram apenas 2 e 3 João e Apocalipse. O primeiro deles foi o
comentário aos Romanos, em 1539, ainda em Estrasburgo, que foi dedicado a
Simão Grynaeus, seu professor de hebraico e grande reformador em Basiléia. Já
relativamente ao AT, escreveu sobre o Pentateuco, Profetas Menores, Salmos,
Isaías, Jeremias, Daniel, Homilias sobre Jó e 1o Samuel. Ainda comentou o
profeta Ezequiel até o 20o capítulo, onde não teve mais forças físicas para
continuar. Seu último comentário foi sobre o livro de Josué, já nos derradeiros
dias de sua existência.
148

Podemos, ainda, classificar suas obras pelos sermões e homilias catalogados.


Através deles, Calvino demonstra um abençoado e rico ministério, embora seja
uma literatura pouco explorada.464 Neles encontramos um pastor altamente
preparado, conhecedor profundo das línguas originais, cuidadoso exegeta, um
expositor primoroso das Escrituras, com rara beleza e pureza doutrinal.
Encontramos neles, também, um homem completamente ligado aos problemas do
seu tempo e dos seus dias. Neles encontramos também grandes e profundas
exortações morais aos seus interlocutores.465 Por anos se utilizou do púlpito da
Igreja Saint Pierre para vociferar com firmeza e unção a Palavra de Deus.466 Na
verdade, diz Wilson Castro:

[...] verifica-se, nos sermões de Calvino, uma


combinação admirável do teólogo, exegeta e pastor, pois
que as suas mensagens, calcadas na boa doutrina, têm
sempre uma aplicação prática às necessidades de seus
ouvintes,467.

Temos também as poderosas, delicadas, amigáveis e, muitas vezes,


misericordiosas, cartas de Calvino. Através delas, descobrimos um Calvino cada
vez mais tolerante, misericordioso, atento às questões de seu tempo,
comprometido com uma ética libertadora, através do Evangelho de Cristo. Foram
mais de 2 mil cartas. Na verdade, nelas encontramos a expressão do coração de
um grande homem. Nelas viajavam mais do que teologia, belos e lógicos
discursos, consolo e encorajamento aos perseguidos, desafios aos nobres,
príncipes e reis, viajavam também parte de seu coração, de sua alma, enfim, de
sua existência.

464
FERREIRA, Wilson Castro, op. cit., p. 162.
465
SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 125.
466
Ver John Kromminga. This is my heart – Devotional Readings from Writings of John Calvin.
Zondervan P. House. Grand Rapids MI, 1958. Nixon Leroy. John Calvin’s Teachings and Their
Implications for the theory of Reformed Protestant Christian Education. Thesis, New York
Univ., 1962. James Mckinnon. Calvin and Reformation. Longmans Green and CO., New York,
1936.
467
FERREIRA, Wilson Castro, op. cit., p. 162. Cf. SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 130.
149

Elas são espelho da alma de quem as escreve,


quando nasce uma necessidade existencial e se inserem
em nossa vida sem intenção literária estereotipada, mas
em atendimento a um dever de comunicação de algo a
alguém.468

Em outras palavras, as cartas de Calvino revelam a necessidade cada vez


mais premente de atender aos problemas mais agudos da época, vividos por seus
amigos. Elas revelam, também, um teólogo tremendamente contextualizado,
sensível às correntes políticas, sociais, espirituais e ético-morais de seu tempo.
Elas também confirmam o alcance internacional de seu ministério, sua teologia e
de sua espetacular influência.469 Descrevendo a beleza e o árduo trabalho de
recolher muitas cartas do reformador, Wilson Castro Ferreira afirma que:

Coube, afinal, ao Dr. Jules Bonnet a pesada tarefa


da busca e reunião das muitas cartas encontradas em
vários lugares da Europa, tarefa essa que lhe custou 5
anos de incansável labor e que acabaram integrando
quatro grossos volumes das epístolas de João Calvino.470

Não podemos deixar de afirmar que a publicação de suas cartas serviu como
instrumento apologético, pois revelavam um Calvino completamente diferente
daquele que seus opositores descreviam.471
Calvino também introduziu a concepção de que a obra de Cristo manifesta a
realidade de seu tríplice ofício como Profeta, Sacerdote e Rei.472 Ou seja, da
mesma forma que sua concepção dos múnus que dirigia a Igreja e o estado, os
ofícios exercidos por Cristo são identificados a partir de suas ações (ou pelo
menos de como Calvino as entendia).

468
FERREIRA, Wilson Castro, op. cit., p. 151.
469
Quando reunidas, suas cartas formam nada mais nada menos do que 13 volumes da Ioannis
Calvini Opera Omnia, e 4 volumes da coleção Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters,
organizado por Henry Beveridge e Jules Bonnet e tradução de David Constable. Grande Rapids:
Baker, 1983.
470
FERREIRA, Wilson Castro, op. cit., p. 153.
471
FERREIRA, Wilson Castro, op. cit., p. 154.
472
O ministério mediador de Jesus Cristo é colocado em termos de “ofício” e se desdobra na
triplicidade destes. Calvino assim os denomina: Múnus profético, múnus sacerdotal e múnus real.
Institutas, Vol II, p. 260.
150

A pneumatologia de Calvino é também entendida consoante a obra do


Espírito, que age na Igreja e através da Igreja. E a epifania do Espírito se dá na
dinâmica da vida comunitária, na qual os crentes são convocados, guiados e
animados pelo Espírito.473
Entre os reformadores, Calvino foi o que apresentou uma pneumatologia
mais extensa, e inserida nos principais ramos da sua teologia. Na dimensão
soteriológica, a ação do Espírito opera a conversão cristã.474 Na eucarística, o
Espírito eleva o espírito do crente estabelecendo comunhão com o Cristo.475
Uma notável citação expressa muito bem o entendimento que Calvino tem
da predestinação e a sua impressão no tocante às demandas em torno desta. Para
Calvino, a predestinação não pode ser plenamente compreendida através de
esquemas lógicos, mas prioritariamente através da aceitação da Escritura. Calvino
responde àqueles que sepultariam toda menção da predestinação que

473
No comentário do Salmo 73:23, Calvino declara o papel do Espírito na preservação dos eleitos.
Ele diz “a razão de não sucumbirmos, mesmo entre os severos conflitos, nada mais é porque
recebemos o cuidado do Espírito Santo. Realmente, Ele nem sempre põe sobre nós o seu poder de
um modo evidente e notável (pois Ele nos aperfeiçoa em nossa fraqueza), mas é suficiente que Ele
nos socorra, ainda que sejamos ignorantes e inconscientes disto: de que Ele nos sustente quando
nos humilhamos, e ainda nos levante quando caímos” (John Calvin, in loci, The Works of John
Calvin. In: Ages Digital Library).
474
Ao comentar Efésios 1:14 Calvino interpreta que “o Espírito, pois, é o penhor de nossa herança,
ou seja: a vida eterna; para a redenção, ou seja: até ao dia em que a redenção se plenifique.
Enquanto vivemos neste mundo, necessitamos de um penhor, porque combatemos em esperança;
mas quando a possessão mesma se manifestar, então cessará a necessidade e o uso do penhor”
(Efésios, p. 37).
475
Afirma Calvino: “Se o sangue de animais era um símbolo genuíno de purificação, no sentido
em que ele agia de uma forma sacramental, quanto mais o sangue de Cristo, que é a própria
verdade, não só dará testemunho da purificação por meio de um rito externo, mas também aquele
que realmente penetrará nas consciências humanas.” O autor mostra claramente como a morte de
Cristo deve ser avaliada não pelo prisma de seu ato externo, mas pelo poder do Espírito. Cristo
sofreu como homem, no entanto, a fim de que sua morte pudesse efetuar nossa salvação, sua
eficácia flui do poder do Espírito. O sacrifício que produziu a expiação externa foi muito mais que
uma obra meramente humana. O texto diz que o Espírito é eterno, para que saibamos que a
reconciliação que ele efetua é eterna. Hebreus, pp. 231-232.
151

[...] a Escritura é a escola do Espírito Santo, no


qual não se há de deixar por coisa alguma necessária e
útil de conhecer, nem tampouco se ensina mais que o que
é preciso saber. Por isto, é preciso guardar-se de ensinar
mais do que é preciso saber e também impedir que os
fiéis queiram saber tudo quanto na Palavra de Deus está
escrito sobre a predestinação, a fim de que não pareça
que queremos defraudá-los ou privá-los do bem e do
benefício que Deus deseja comunicar, ou acusar o
Espírito Santo de haver manifestado coisas que tinham
sido preferível manter secretas. Permitamos, pois, ao
cristão que abra seus olhos e seu entendimento a todo
raciocínio e as Palavras de Deus quando forem ditas, de
tal forma que o cristão mantenha a sobriedade e
prudência, de tal forma que, quando for percebido que
Deus fechou sua boca sagrada, cesse também e não leve
adiante sua curiosidade fazendo novas perguntas. Tal é o
limite da sobriedade que temos que guardar: que ao
aprender, sigamos a Deus, deixando de falar primeiro,
mas ouvindo Deus falar, sem desejarmos saber mais,
nem passar adiante do ensino do Senhor.476

Esta citação contradiz de uma vez o argumento de que Calvino era um


teólogo especulativo e comprova seu profundo interesse em escutar a voz de Deus
falando nas Escrituras. O mesmo pensamento é poderosamente expresso por
Calvino ao advertir aqueles que são demasiadamente curiosos, aqueles que não
deixariam nenhum dos “segredos Divinos sem esquadrinhar ou sem explorar”.477
A estes admoesta a não exceder os limites da Palavra, pois a sabedoria humana
não deve entrar em labirintos proibidos, dos quais é impossível escapar. “E nós
não teremos vergonha de ignorar algo, se nele há uma ignorância douta.”478

476
Institutas, livro III, cap. 21, 3.
477
Institutas, livro I, 2, 3.
478
Institutas, livro III, cap. 21, 2.
152

Finalizando, encontramos o que podemos chamar de escritos litúrgicos e


eclesiásticos, como afirma Lessa.479 Temos as Ordenanças da Igreja de Genebra
(1537); Ordenanças Eclesiásticas, concluídas para implementação das reformas
da Igreja em Genebra, quando chamado para voltar à cidade, em 1541. Elas
faziam parte dos seus escritos litúrgicos e catequéticos, pois entendia que uma das
formas eficazes de recuperar a vida espiritual e, conseqüentemente, moral do povo
era instruindo-o da melhor forma possível. Escreveu um Saltério, uma pequena
confissão de fé e um catecismo, a fim de complementar sua obra A Forma das
Orações (1542). Escreveu também Fórmula do juramento prescrita aos ministros
(1542); Ordem do casamento (1545); Visitação de Igrejas (1546); Ordem do
Batismo (1551); Ordenanças Eclesiásticas e Leis Acadêmicas (1561).480
O teólogo Ricardo Gouveia estabelece uma verdadeira síntese do
pensamento de João Calvino, a partir de suas obras, onde através de certas áreas
de sua caminhada teológica, percebe-se sua estrutura filosófica. Vejamos:

Alguns dos principais fundamentos filosóficos que


estão presentes em estado germinal ou latente nas obras
de Calvino mostram que seu pensamento é
pressuposicional e antitético ante o pensamento apóstata,
a heteronomia revelacional associada a pressupostos
escriturísticos, a antropologia ptomática que inclui a da
infinita diferença qualitativa entre o Criador e suas
criaturas, dos efeitos noéticos do pecado e do sensus
divinitatis, a escatologia palingenética que determina os
rumos do pensamento sóciopolítico reformado.481

479
LESSA, Vicente Temudo, op. cit. p. 153.
480
Ainda poderíamos citar outras inúmeras pequenas obras ou tratados, como eram chamados.
Mas cremos ser suficiente para visualizarmos o quanto Calvino dedicou sua vida aos estudos e à
magnífica tarefa de escrever.
481
GOUVEIA, Ricardo Quadros. A Importância de João Calvino na Teologia e no Pensamento
Cristão. In LEMBO, C. et al. O Pensamento de João Calvino. São Paulo: Mackenzie, Vol. 2,
p.121; Segue um pequeno esclarecimento com respeito aos termos e conceitos filosóficos
utilizados: pressuposicional – que parte de premissas não declaradas de um raciocínio e utilizadas
no decorrer do mesmo raciocínio, mas que não foram previamente enunciadas, não havendo, pois,
um compromisso definitivo em relação a ela; antitético – pressupõe um conflito de conhecimentos
aparentemente dogmáticos, sem que se atribua a nenhum deles um direito predominante ao
assentimento; heteronomia revelacional – lei de Deus ou estabelecida fora do homem, cujo
conhecimento lhe é revelado; efeitos noéticos – derivados do estudo das leis do pensamento, que
são os quatro princípios: identidade, contradição, terceiro excluído e razão suficiente; sensus
divinitatis – senso comum da presença e existência da divindade gravado na mente humana;
palingenética – segundo os estóicos, renascimento do mundo depois do término de um ciclo de
vida. Esse termo foi usado freqüentemente neste sentido ou sentido análogo e às vezes também em
sentidos restritos ou particulares: para designar o renascimento da alma, ou, em sentido retórico,
para indicar qualquer renovação radical.
153

Ainda sobre a importância do corpo doutrinário de Calvino, o historiador


Timothy George declara o seguinte:

A grande realização de Calvino foi tomar os


conceitos clássicos da Reforma (sola gratia, sola fides,
sola scriptura) e lhes dar uma exposição clara e
sistemática, que nem Lutero nem Zwínglio jamais
fizeram, adaptando-os ao contexto civil de Genebra.
Dessa cidade, tais conceitos assumiram vida própria e
desenvolveram-se numa nova teologia internacional
[...].482

482
GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores, op. cit., p. 166.
154

Conclusão

Quando lançamos um olhar histórico sobre o período pré-reformado,


constatamos que a Reforma Protestante não aconteceu de repente, mas foi
resultado de uma série de acontecimentos políticos, econômicos, sociais e,
essencialmente, religiosos. Na verdade, houve uma fermentação que culminou
com tal evento. O que fizemos foi destacar alguns dos principais eventos e pré-
reformadores, como pano de fundo, preparando o caminho para a apresentação,
em seguida, do reformador francês, evidenciando uma biografia detalhada, seu
ardor como reformador e suas obras.
Diante do exposto, nosso maior interesse, a partir desse momento, é levantar
o pensamento do reformador francês, nas áreas antropológica, cristológica,
soteriológica e eclesiológica, a fim de que, posto isso, respondamos a seguinte
pergunta: em que tais paradigmas teológicos oferecem elementos para
fundamentar a temática da liberdade cristã, num contexto moderno e pós-
moderno? Eis nossa próxima caminhada.
155

Terceiro Capítulo
3
Calvino e a Liberdade Cristã: A Práxis Libertadora do
Calvinismo em Genebra

Calvino foi um teólogo humanista,483 pregando, ensinando e escrevendo


uma teologia bíblica que expressava o valor do homem diante do seu Criador, mas
que, em função do seu distanciamento de Deus, causado pelo pecado, tornou-se
dependente da iniciativa salvífica de Deus em Cristo Jesus, único redentor do ser
humano. Esta era e é a situação do homem em estado de ruptura com Deus.

483
Podemos classificar o período dos grandes filósofos e da Idade Média como pré-modernos, o
que já foi visto, no capítulo primeiro, sob a ótica de alguns paradigmas. Entretanto, este tempo foi
marcado por um humanismo que existe apenas como pressuposto, como abstração, como
idealização, em que o homem é pensado e representado como pura idealidade, submetido a
exigências universais. Assim, se a cultura clássica – grega e romana – é matriz de certo sentido de
humanismo, este tem aí, como principal característica, a idealização do humano. Isto é
particularmente forte no referente à representação do corpo humano. O corpo humano que os
gregos esculpiram é a realização da beleza e da perfeição: as formas harmônicas, as proporções
exatas, a exatidão nascida não da realidade fenomênica do corpo, mas do corpo ideal – a aspiração
da construção da beleza, da areté – o corpo mais saudável e belo, o corpo como reprodução do
divino. Assim, na cultura clássica, não há lugar para o corpo que padece, que trabalha, que é
deformado pela ação das contingências. Exemplo disto é a maneira como Platão enxerga o homem
que trabalha: tendo visto, certa vez, um ferreiro que era anão e corcunda, ele concluiu que essas
deformidades físicas eram inerentes ao exercício daquele ofício, denotando o lugar absolutamente
aviltado que o trabalho e seu sujeito ocupam no mundo platônico. Representa-se o corpo, é certo,
mas aqueles volumes, aquelas formas são projeções ideais, são manifestações do máximo da
beleza e da grandeza de corpos que, na pedra, reproduzem as formas inefáveis dos deuses. Nesse
sentido, estamos longe dos corpos reais, que também são feitos de imperfeições, de desvios,
cobertos pelas cicatrizes do trabalho e da doença. Durante toda a Idade Média, sobretudo pela
influência bizantina, os corpos serão representados ideologicamente. Não há lugar, aí, para o
realismo, para a reprodução do mundo, material e social, tal como ele é – as formas, as figuras, os
corpos devem reproduzir, no espaço da representação, a absoluta hierarquia cósmica, a supremacia
do sagrado, em que o alto, o superior, o acima é sempre ocupado pelo sagrado em sua glória
eterna. É esta a fundamentação conceitual tanto da arte bizantina, quanto da tradição gótica. O
Cristo Pantocrator, talvez a mais exemplar tradição do espírito bizantino, e as catedrais góticas e
suas miríades de torres, vitrais, arcos ogivais, estátuas, apontando para o alto, são a escolástica em
vidro e pedra. Nesse mundo, tal como no mundo clássico, o homem real está oculto, sua imagem
ou foi idealizada, como sublimação da beleza e da força, ou foi reduzida a um estereótipo como se
fez nos mosaicos, ícones e vitrais bizantino-góticos. Já como marco do período moderno, o
movimento humanista teve seu início na Itália, no século XIV (Ver “Humanismo” em N.
Abbagnano, Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 493); “Humanismo”, em
José Ferrater Mora, Diccionario de Filosofia, 5a Edição (Buenos Aires: Editorial Sudamericana,
1965, Vol. I, p. 876). Seu esplendor se deu nos séculos XV e XVI (Ver “Humanismo”, em José
Ferrater Mora, Diccionario de Filosofia, Vol. I, p. 876. O pressuposto do Humanismo
Renascentista formulava que o homem era o centro de todas as coisas, em face de sua grandeza e
capacidade, vendo-o sempre como centro de tudo, nunca como meio. Francis A. Schaeffer (1912-
1984) aborda, com propriedade, o antropocentrismo do humanismo, declarando que o
“Humanismo é a colocação do homem como centro de todas as coisas, fazendo-o a medida de
todas as coisas.” (Cf. Francis Schaeffer em Manifesto Cristão. Brasília: Editora Refúgio. 1985, p.
27).
156

A graça salvadora ou graça especial provoca no homem uma nova vida,


através da regeneração, operada pela ação do Espírito Santo, resultando numa
nova consciência de vida. O Evangelho de Jesus Cristo traz verdadeira liberdade
ao homem. Inserido na realidade do Reino de Deus, o homem, agora, responde à
graça salvadora de Jesus Cristo, numa nova relação com Deus, consigo mesmo,
com o outro e com a própria criação.
Assim, desenvolve sua nova vida na Comunidade da Fé – a Igreja – onde
cresce no conhecimento das Escrituras, no exercício da comunhão, com todas as
implicações da alteridade e, conseqüentemente, é remetido à sociedade a fim de
que, na práxis da liberdade cristã, o Reino de Deus alcance os poderosos, os
pobres, os oprimidos e os opressores.484

484
No entanto, o humanismo de Calvino não contemplava o homem como o centro de todas as
coisas. Seu conceito humanístico partia das Sagradas Escrituras. Ele sempre foi um homem
interessado pelo ser humano. Sua primeira obra, um comentário de Sêneca, chamada De Clementia
(1532), é tida por McNeill como “o principal monumento dos conhecimentos humanísticos do
jovem Calvino.” (Cf. MCNEILL, John T. The History and Character of Calvinism, p. 104).
Boisset diz que o livro de Calvino era “sólido trabalho de um humanista muito jovem e já
brilhante.” (Cf. Jean Boisset. História do Protestantismo. São Paulo: Difusão Européia do Livro.
1971, p. 57). O que precisamos reforçar é que o humanismo de Calvino não pode ser visto do
ponto de vista secular. Sua expressão maior sobre sua visão humanística está em sua obra prima, A
Instituição da Religião Cristã, onde ele revela a grandeza do ser humano como criação de Deus, a
quem deve adorar e glorificar. Conquanto possuidor da imagem de Deus, este homem está
marcado pelo pecado adâmico, desfalecido em si mesmo de toda capacidade de voltar-se para
Deus, dependendo, portanto, de sua maravilhosa graça e misericórdia, na pessoa de Jesus Cristo,
expressão plena e completa da revelação de Deus ao homem. (Cf. SILVESTRE, Armando Araújo,
op. cit., p. 84). Nessa linha de pensamento, podemos ainda afirmar que Calvino rejeitou a
autoridade papal absoluta e a hierarquia romana em assuntos religiosos (Cf. Institutas, livro III,
cap. 9, e livro II, cap. 2). De igual modo, rechaçou o conceito da autonomia da razão humana
como ponto de referência final do conhecimento. Portanto, é um erro atroz afirmar ter sido Calvino
um humanista no sentido lato do termo, não obstante ele ter sido criado num ambiente acadêmico
humanista e ter experimentado sua fascinante influência. Podemos ainda afirmar que o humanismo
era filho do Renascimento. Substituiu a meta medieval teocêntrica pelo ideal pagão de que a alma
e o corpo eram o centro da reflexão, com ênfase na vida humana. Foi mais um movimento
estético-filológico do que propriamente filosófico. O homem era tido por medida de todas as
coisas. A forma foi glorificada em contraste com a essência ou conteúdo. O humanismo também
carecia de seriedade ética. Isto fica explícito na observação sobre seu maior representante, Erasmo
de Roterdã. Calvino utilizou argumentações e ferramentas humanistas, bem como apreciava suas
técnicas, principalmente no tocante à educação, porém não é considerado um humanista
propriamente dito, já que o teocentrismo continuou sendo o fundamento da sua teologia. Este
teocentrismo de Calvino consiste no ponto focal para compreender que ele não era humanista no
sentido literal. Para o reformador, o homem carece da graça salvadora de Deus em Jesus Cristo.
Ver: MCGREGOR, R. K., A Soberania Banida: redenção para a Cultura Pós-Moderna (São
Paulo: Cultura Cristã, 1998, p. 15). Além disto, o calvinismo consiste numa “filosofia
compreensiva que abrangia toda a vida” (DOUGLAS, J. D.: A Contribuição do Calvinismo na
Escócia: em W. Stanford Reis, ed., Calvino e Sua Influência na Vida Ocidental, p. 290).
157

Portanto, analisando seu pensamento sobre os paradigmas antropológico,


cristológico, soteriológico e eclesiológico, extraindo de tudo isso o elemento
essencial de nossa tese - a liberdade cristã - como proposta de vida oferecida por
Deus aos homens de todos os tempos, através de Jesus Cristo, o Evangelho
Encarnado. Verificaremos, também, a partir desse levantamento, os desafios cada
vez mais urgentes sobre a necessidade de uma proclamação do evangelho
significativa, relevante e capaz de estabelecer diálogo com seus interlocutores
atuais, bem como estabelecer uma sociedade mais justa e mais igualitária, na qual
os valores do Reino de Deus sejam vistos e vividos e o Seu nome glorificado.
Sendo assim, cremos que, uma vez tais princípios vividos por sua Igreja, foi
o de promover, de igual forma, libertação e liberdade na práxis cristã, através do
anúncio genuíno do Evangelho, provocando a desinstalação de uma religiosidade
pós-moderna árida, superficial, pragmática, com fortes evidências
fundamentalistas aqui e alhures, vencida pelas leis de mercado, que regem as
relações humanas, tornando-as vazias de sentido existencial. E ainda mais. Na
práxis do Evangelho libertador de Jesus Cristo, homens e mulheres não estarão
alienados do seu tempo, ao contrário, com os corações cheios de esperança
escatológica, serão agentes de transformação histórica, em que através da
semeadura das Boas Novas, frutos ético-sociais germinarão para glória do Pai. Eis
a responsabilidade e o desafio da liberdade obtida pela maravilhosa graça de Deus
em Cristo Jesus.

3.1
A Antropologia de Calvino e a Liberdade Cristã dela decorrente

A questão antropológica é fundamental para a elucidação das questões


teológicas, pois o conhecimento de Deus e o conhecimento sobre o ser humano
apresentam uma correlação. É assim que pensa Paul Tillich, quando afirma ser o
conhecimento de Deus correlato àquele das questões imanentes ao ser humano.485

485
TILLICH, Paul, Teologia Sistemática, p. 60.
158

Esta questão remonta também a Ludwig Feuerbach, quando este afirma que
o ser humano tem consciência do infinito, porque tem consciência da infinitude da
sua própria essência;486 e que este, na busca desta infinitude, a projeta a um ser
absoluto: Deus. Feuerbach afirma:

O ser absoluto, o Deus do homem é a sua própria


essência. O poder do objeto sobre ele é, portanto, o poder
da sua própria essência. Assim, é o poder do objeto do
sentimento, o poder do sentimento; o poder do objeto da
razão o poder da própria razão; o poder do objeto da
vontade, o poder da vontade.487

Não obstante o caráter imanentista da relação com a Divindade estar


presente na concepção de Feuerbach, é verdade que a relação com o Divino tem
por pressupostos elementos imanentes, fazendo com que grande parte da
compreensão do Ente seja uma projeção daquilo que o humano tem, é ou deseja
ser. A relação entre o ser humano e o Divino tem, por parte do humano,
instrumentos imanentes e uma eterna busca de transcendência. Porém, esta idéia
despoja o elemento relacional, que faz com que a compreensão do mundo seja
amplificada. Martin Buber afirma que “encontros não se ordenam de modo a
formar um mundo, mas cada um te garante o vínculo com o mundo”.488 O ser
humano encontra a si e o seu sentido último quando encontra o Ser, e o entende
como uma presença, e não como se este fosse projeção de si mesmo. A cultura
humana, quando entendida como uma das expressões da sua natureza religiosa,
como forma da religião, adequa-se a concepção de que não é possível banir Deus
do mundo, nem entendê-lo como expressão da “prioridade axiológica do coração
sobre os fatos brutos da realidade”.489 A religião é mais que isto: é expressão
antropológica da necessidade da “fonte eterna de força, do eterno toque que nos
aguarda, da voz eterna que ressoa em nós, nada mais”.490

486
FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p. 44.
487
Ibidem, p. 47.
488
BUBER, Martin, Eu e Tu, p. 36.
489
ALVES, Rubem, O Que é Religião, p. 19.
490
BUBER, Martin, op. cit., p. 129.
159

Conhecer-se é conhecer a Deus, o que não exclui a busca da Transcendência


e do Transcendente. Deus não pode ser tomado como símbolo poético, pois fazer
isto é manifestar certo tipo de ateísmo.491

3.1.1
A Relação Entre o Conhecimento de Deus e o Conhecimento de Si
Mesmo em Calvino

É assim que Calvino assume relação entre o conhecimento de Deus e o


conhecimento de si mesmo. Para Calvino, os conhecimentos são correlatos, não
formando uma dicotomia, mas uma unidade que expressa a identidade da
revelação. Nessa linha de pensamento, o homem jamais conhecerá a Deus sem se
conhecer a si mesmo e vice-versa. Na verdade, conhecendo a nós mesmos,
conheceremos a Deus. Há uma vinculação estreita entre esses dois pressupostos.
Esse conhecimento mútuo sustentará, na verdade, a essência da liberdade humana.
Desde a criação, tal liberdade é responsável, firmada numa relação de amor, a
partir da aliança estabelecida por Deus, pois o sujeito só é formado a partir da
liberdade e da responsabilidade. Calvino mesmo diz que

[...] ninguém se pode (sequer a si próprio) mirar


sem, de pronto, o pensamento volver à contemplação de
Deus em Quem vive e se move (At 17.28), porquanto,
longe de obscuro é que os dotes com que somos
prodigamente investidos, de modo algum de nós provêm.
Mais até, nem é o nosso próprio existir, na verdade, outra
(cousa) senão subsistência no Deus único.492

491
“No nível mais elevado da negação do teísmo, o nome de Deus é usado como um símbolo
poético ou prático, expressando um estado emocional profundo ou uma elevada idéia ética.” Ver:
TILLICH, Paul, The Courage To Be, p. 181.
492
Institutas, vol I, cap. 1, seção 1. André Biéler também corrobora com o pensamento do
reformador, ao afirmar que a liberdade humana fundamenta-se em sua relação com Deus e na
consciência de sua submissão ao Criador. Ele diz: “O que o podia manter nesse estado em que
tinha sido investido era que, em humildade, curvasse-se sempre diante da majestade de Deus,
magnificando-o com ações de graças, e que não buscasse sua glória em si próprio, mas, vendo que
tudo lhe provinha do Alto, tivesse suas vistas sempre voltadas para o Alto para, destarte, glorificar
a Deus, a Quem lhe cabia o louvor; a imagem de Deus compreende, em si, o conhecimento
d’Aquele que é soberano bem; ser homem é [...] ser e permanecer unido com o seu Criador; o
homem foi investido mestre e senhor, na terra, com a condição de que estivesse sempre sujeito a
Deus. Para tanto, Deus sujeitou o homem a que não comesse da árvore do bem e do mal [...] a fim
de que não desejasse mais do que lhe era conveniente e não se constituísse, a si mesmo, juiz e
árbitro do bem e do mal, sacudindo de sobre si o jugo de Deus e se fiando em seu próprio senso.”
Cf. BIÉLER, André. op. cit., p. 263.
160

A revelação é para o ser humano. Sem a iluminação do Espírito, o ser


humano não entende a revelação. Porém, sem assumir sua humanidade, não é
possível ao indivíduo compreender a Divindade. Idolatria consiste na projeção de
si mesmo como se fosse Deus, ou a atribuição de divindade àquilo que é inferior
ontologicamente à humanidade. A verdadeira religião consiste na identificação
deste elemento imanente da revelação: a correlação entre o conhecimento de Deus
e o conhecimento de si mesmo.
Por causa destes elementos, a antropologia de Calvino é fundamental para
que a sua idéia de liberdade se desvende. A liberdade tem início quando é
assumido o compromisso, por parte do fiel, de imergir no conhecimento de si
mesmo, encontrando, em si, as evidências da própria ação de Deus. Ver-se como
criatura, como alguém mantido e preservado pela ação soberana de Deus, e ver, na
própria essência, a imagem de Deus são algumas indicações da importância da
antropologia para a libertação.
Por essas razões, relevantes para a compreensão teológica, falar de questões
antropológicas é formular mais uma vez a pergunta primaz: o que é o homem? As
respostas divergem e apontam para pressuposições que tornam possíveis a
reflexão teológica ou que fazem desta subserviente às questões antropológicas,
sendo apenas reflexo das múltiplas manifestações de busca de superação. As
implicações não se concentram às esferas religiosas, mas abrangem, também, todo
o ethos humano e social.493
Diante das questões evocadas, percebe-se que a investigação em torno da
antropologia de Calvino parte da compreensão sobre o ser humano e a serventia
desta compreensão para a cosmovisão calvinista. Investigar esta concepção
consiste em investigar as pressuposições de Calvino, a descrição da sua
antropologia teológica e a implicação desta em seu contexto.

493
Lyotard afirma que o saber pós-moderno “não é somente o instrumento dos poderes. Ele aguça
nossa sensibilidade para as diferenças e reforça nossa capacidade de suportar o incomensurável.”
(LYOTARD, Jean-François, op. cit., p. 17). Por ser um instrumento relacional, o saber concentra
em si, na sociedade pós-moderna, a capacidade de prover a sobrevivência dos modelos de mundo
(cosmovisões), possibilitando a relação. Então as compreensões geram caminhos relacionais. O
mundo de hoje é aquele que abandonou o projeto de “adiamento da satisfação” (BAUMAN,
Zygmunt, Modernidade Líquida, p. 181) para a adoção de mentalidades que possibilitam a “ética
da comunicação (Habermas, Apel), uma ética das redescrições (Rorty); uma ética da continuidade
(Gadamer)” (Ver: PECORARO, Rossano, Niilismo e (Pós) Modernidade, p. 107.
161

3.1.2
Fontes

Em primeiro lugar, é necessário tratar das fontes do pensamento


antropológico de Calvino. As fontes seculares da antropologia calvinista são,
basicamente, duas: o humanismo e o direito.
Calvino, como humanista, assumiu o projeto de valorização da cultura. Para
ele, a educação e as ciências devem ser apropriadas como manifestações do favor
divino. Soma-se a estes a valorização do ser humano através do cuidado com este.
Originalmente, Calvino participou do movimento humanista, porém com
cautela, não participou de agitações religiosas e do fomento de levantes populares.
Ou seja: no que concernia às instituições eclesiásticas, Calvino se mostra
conservador. Calvino assumiu um tom aristocrático em seu humanismo, sendo
hostil àquilo que chamou de turba destituída de razão e discernimento.494
Na prática da cidade de Genebra, a posteriori, a educação foi apropriada,
por Calvino, da propagação do ideal humanista da adoção de um método de
ensino e da proliferação do conhecimento a partir deste. Seguindo a Marthurin
Cordier, Calvino assumiu seu método de ensino (discendi rationem)495 e fundou
uma universidade, onde tratou de educar ministros e mestres. As ciências naturais
também foram defendidas por Calvino, que afirmava serem estes dons de Deus
para uso da humanidade, sendo o Espírito Santo a fonte da verdadeira ciência.
Opunha-se, porém, à astrologia e ao humanismo que não levava em consideração
a doutrina evangélica. E Calvino pensava que as artes e ciências deveriam estar
presas à religião (non debere distrahi a religione scientia).496

494
OC, Tomo V, p. 16. Senecae Libri de Clementia Cum Commentario.
495
KNUDSEN, Robert D., O Calvinismo como uma Força Cultural, p. 13.
496
OC, 39, p. 516.
162

Do direito, Calvino desenvolveu sua capacidade de tratar de questões


práticas. Calvino remodelou as instituições genebrinas a partir daquilo que
aprendeu, na sua formação, em Bourges. O cuidado com as pessoas, portanto, é
uma manifestação da prática de Calvino, que demonstra, além da sua capacidade
de praticar o bem social (princípio do direito), sua idéia sobre o ser humano e sua
natureza – Calvino também assumiu a idéia da justiça distributiva, em que cada
indivíduo recebe aquilo que necessita e, para isto, quem tem posses a mais, deve
se sujeitar a dividi-las com quem não tem – e o poder instituído deve garantir o
cumprimento deste preceito.497
Em seu ímpeto de executar suas idéias, Calvino estabeleceu um hospital em
Genebra, e diáconos que cuidavam dos enfermos. Nele, eram acolhidas pessoas
vindas de vários lugares, proporcionando-lhes condições para elas se instalarem e
terem assistência médica e educação e, assim, assumirem um ofício. Entendia ser
fundamental o cultivo da piedade e da vida religiosa, sendo os refugiados da
cidade e os demais cidadãos instigados a viver esta vida piedosa – e a piedade
passa necessariamente pela solidariedade.
Percebe-se, de maneira implícita na práxis de Calvino, a sua concepção
antropológica, a qual assume o projeto humanista de valorização do ser humano.
Mas, para entender esta práxis, é preciso perceber que Calvino também endossa as
matizes teológicas que influenciaram seu pensamento: o agostinianismo, o
nominalismo e o luteranismo.
Agostinho entende ser o homem formado de duas partes: corpo e alma.498
Para ele, a alma é imortal, proveniente de Deus e, por isso, retorna para Deus após
a morte.499 Outra característica do ser humano é a racionalidade, que o separa dos
outros seres viventes. A posse da alma racional constitui o privilégio do ser
humano em relação ao restante da criação. Mas, como criação, o ser humano se
deteriora, sofrendo mutações até o final do processo de deterioração.500

497
OC, IV, 20, 3. Para Calvino, é necessária a intervenção do Estado para que “os homens
respirem, comam, bebam e se mantenham aquecidos.”
498
“Assim, não duvidas destes dois pontos: possuis um corpo e uma alma. Mas estás em dúvida se
não existe outra coisa que seria, para o homem, um complemento de perfeição.” (AGOSTINHO,
Santo. A Vida Feliz, II. 7).
499
“Portanto, a Alma é imortal: creia em seus raciocínios, creia na verdade; ela clama que habita
em você e que é imortal e que sua sede não lhe pode ser tirada pela morte corporal. Afasta-se da
sua sombra; volta-te para ti mesmo; não sofrerás destruição alguma a não ser esquecendo-se de
que é algo que não pode perecer.” (AGOSTINHO, Santo. Solilóquios, II, 29, 33).
500
“Se eles (seres criados) se deterioram é porque não possuem o bem na plenitude”
(AGOSTINHO, Santo. A Verdadeira Religião, III, 19, 37).
163

Do agostinianismo, Calvino extrai a idéia de que o ser humano, por si, não
pode se salvar, pois é totalmente depravado – o que explica o fato deste, mesmo
sendo imagem de Deus, deteriorar-se como o restante da criação. Para Agostinho,
o ser humano, após a queda, não conserva, em si, absolutamente nada que não
esteja corrompido. A partir disto, a salvação só pode ser ato de Deus, através da
graça. Essa visão sobre o ser humano e sua total incapacidade para a salvação
também se manifesta em outras esferas. É como afirma Agostinho:

A primeira deformidade da alma racional é a


vontade de executar o que a suma e íntima Verdade lhe
proíbe [...] a defectibilidade da alma vem de seus atos e
da pena que padece pelas dificuldades – conseqüência
dessa defectibilidade. Todo mal se reduz a isso. Ora, o
agir ou padecer não são substâncias. Portanto, a
substância não é um mal. Assim, não é da mesma
natureza da alma, o vício. É, sim, contra a sua natureza.
O vício nada mais é que pecado e a pena de pecado.501

Uma das tríades agostinianas é “memória, vontade e intelecto”. As três estão


decaídas após a transgressão de Adão. O pecado original atinge o ser humano de
forma holística, porém, estas três dimensões, que abrangem a maneira como o ser
humano compreende o mundo, faz dele incapaz de conhecer, por si, algo sobre a
salvação. A ação de Deus, no campo da vontade, é tirar o ser humano da única
condição, que é desejar o pecado, para a condição de desejar resistir ao mal,
exercendo a bondade pela ação de Deus. Esta restauração da capacidade de fazer o
bem alcança também o intelecto, por si incapaz de apreender com a razão as
verdades e conhecimentos de Deus. E a memória, que não conseguia reter, em si,
as lembranças dos atos graciosos de Deus, é renovada.
A segunda influência, na antropologia de Calvino, foi o nominalismo
filosófico. A Reforma Protestante, devido à sua ligação estreita com o
Renascimento, esteve ancorada filosoficamente, entre outros, no nominalismo,
preponderantemente defendido por Guilherme de Ockham. O nominalismo foi
uma espécie de ruptura da hegemonia da síntese escolástica proposta por Tomás
de Aquino.

501
AGOSTINHO, Santo. A Verdadeira Religião, III, 11, 22; 20,38-39.
164

Valorizando o particular em detrimento do universal, esta filosofia


recuperou a noção clássica de indivíduo, o que foi central para a Reforma, uma
vez que Lutero e Calvino desfrutaram de ambientes acadêmicos nominalistas nas
suas respectivas formações intelectuais.
A partir do pressuposto nominalista, entende-se a sacramentalidade ligada
não mais à superestrutura eclesiástica, mas nos indivíduos diante de Deus (coram
Deo). A particularização da religião torna evidente e explícita a atualização do
princípio, presente no Evangelho, e, proferido pelo próprio Jesus na confrontação
com o judaísmo: “o sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem
por causa do sábado” (Marcos 2.27). Funda-se, assim, o conceito protestante de
indivíduo.
O nominalismo, endossado por Calvino, traz a responsabilidade sobre o
cristão por assumir, em si, a vivência cristã e manifestar, pela sua vida em
relacionamento (e não interior), a sua vocação. A partir disto, o paradigma não é o
temor da morte e do inferno, mas a noção de vocação para o serviço. Neste
serviço, é manifesta a identidade do ser humano restaurado. Por isto, a
antropologia calvinista é fortemente influenciada pela concepção nominalista,
porque vê, no ser humano, potencial para expressar, pela vida, sua salvação, ainda
que esta expressão não seja o elemento salvífico, mas a expressão do mesmo.
Calvino também foi influenciado, em sua antropologia, por Lutero. Para
Lutero, a pergunta que emerge da realidade da queda é a seguinte: ainda há algum
ponto de contato entre Deus e o ser humano?
A resposta da teologia escolástica é que este ponto de contato existe, e o
ponto de contato é explicado pela sindérese: a vontade natural latente no ser
humano, ou seja, um desejo inato pelo transcendente, pelo próprio Deus, mesmo
estando a humanidade corrompida pelo pecado.
A doutrina escolástica entende que, mesmo em seu distanciamento de Deus,
arde, no ser humano, uma centelha pelo Divino, uma centelha da sindérese. Ela
possui uma relação íntima com a consciência. Lutero, a partir desta doutrina,
discorre e apresenta sua antropologia, marcada por pelo menos quatro concepções
distintas:
165

Em primeiro lugar, ele afirma que há, no ser humano, o exercício de tal
faculdade. Isto é, há fragmentos da imago Dei no ser humano, provenientes do seu
estado antes da queda.502 Portanto, tal doutrina faz permanecer, visivelmente, a
relação de continuidade “entre o ser humano caído e o criador.”503
Em segundo lugar, Lutero afirma a dificuldade em revelar tal continuidade
na prática.504 Seria como se faltassem os atos equivalentes, ou seja, atuações que
correspondam à sindérese. A problemática não está entre Deus e o homem quanto
ao alvo, mas sim, em como atingi-lo. Em outras palavras, a questão de fundo
trata-se dos meios para alcançar o fim.505
Diante de tal conflito, mesmo admitindo que a vontade original, para o bem,
esteja na natureza constitutiva do homem, este não consegue efetivá-la. Dito de
outra forma, admitir que a vontade e a razão sejam mecanismos de compreensão,
ainda que palidamente, da vontade de Deus, tornam-se inúteis para tal, até porque
elas resistem à vontade de Deus, conseqüência do pecado.506
Lutero diz, então, em terceiro lugar, que a sindérese mostra-se inoperante na
prática.507 Ora, impossibilitada de se concretizar, questiona-se seu caráter de
realidade, pois, numa dimensão fenomenológica, ela “contradiz a coisa
hipostasiada em si.”508 Há uma redução da sindérese à simples postulação.509
Diante disso, Lutero conclui que “a natureza é ressuscitável.”510
Em outras palavras, a manifestação da graça de Deus acha seu ponto de
contato no homem impossibilitado de concretizar o bem. A graça exerce a função
de restauradora do homem. Este é o aspecto ou função positiva da sindérese para
Lutero, segundo Loewenich.511 Somente pela força vivificadora da graça é que a
razão e a vontade do homem são revigoradas e restauradas.512

502
FRANCO, Wislanildo Oliveira. Consciência: Obediência, Liberdade e Responsabilidade.
STPRJ. Rio de Janeiro. 2001, p. 35.
503
LOEWENICH, Walter Von. A Teologia da Cruz de Lutero. São Leopoldo-RS: Sinodal. 1987,
p. 49. Ver ainda MOTA, Carlos Guilherme. A revolução religiosa: Lutero e a Reforma, em
Lutero e a Reforma. 480 anos depois das 95 teses, uma avaliação dos seus aspectos teológicos,
filosóficos, políticos, sociais e econômicos. São Paulo: Ed. Mackenzie. 2000, p. 46.
504
FRANCO, Wislanildo Oliveira, op. cit., p. 35.
505
FRANCO, Wislanildo Oliveira, op. cit., p. 35.
506
LOEWENICH, Walter Von. A Teologia da Cruz de Lutero, op. cit., p. 50.
507
Ibidem, op. cit., p. 36.
508
Ibidem, p. 36.
509
LOEWENICH, Walter Von, op. cit., p. 50.
510
Ibidem, p. 50.
511
Ibidem, p. 50.
512
FRANCO, Wislanildo Oliveira, op. cit., p. 37.
166

Por último, Lutero desenvolve, em seu pensamento, a tese de que, se, por um
lado, “a sindérese é condição para a efetividade da graça,”513 por outro, pode
constituir-se em obstáculo para a mesma. Toda vez em que o homem orgulha-se
de sua própria e pretensa capacidade de praticar o bem, por si mesmo, lança-se em
uma perdição ainda maior. Cabe ao homem viver na dinâmica da sindérese-graça-
boa vontade”.514
A partir de sua Teologia da Cruz, Lutero não aceita a sindérese como
instrumento divino regulador, norteador, orientador da vida humana, visto que,
pela cruz, as obras ficam todas destruídas. Depreende-se, daí, uma tensão
dialética, pois a vontade natural, na busca do bem, choca-se com a vontade de
Deus. Então, segundo a Teologia da Cruz, o homem é visto como alguém
absolutamente impotente ou indiferente à vontade de Deus, mas uma vez tomado
pela graça, há encontro e experiência com o Cristo Ressuscitado.515 Há uma
predisposição no homem, visto ter sido criado para o exercício da relação Eu-Tu.
No entanto, tal predisposição é dádiva e acusação, ou seja, a graça desconstrói,
numa radical demolição, e gera total reconstrução e restauração das bases
constitutivas do ser humano.516
Em outras palavras, “a consciência precisa ser vista à luz da fé.”517 Cristo
deve reinar na consciência. Significa dizer que a Lei deve ser expurgada da
consciência pela força da graça de Deus em Cristo e, pela fé, “ser mantida fora
dela.”518 Ou seja, segundo Carl E. Braaten, toda vez que o homem busca viver na
insistência da autonomia, achando-se capaz de viver a partir de si mesmo,
conforme concepção moderna e pós-moderna, está fadado ao distanciamento de
Deus.519 A consciência humana foi feita para o bem, mas, destituída de sua
essência pelo pecado, tornou-se insaciável e arbitrária, conduzindo,
inevitavelmente, à morte. Longe da graça de Deus e entregue a si mesma, ela, a
consciência, é “imprevisível e enganosa com respeito à liberdade e à
emancipação.”520

513
Ibidem, p. 37.
514
LOEWENICH, Walter Von, op. cit., p. 51.
515
LOEWENICH, Walter Von, op. cit., p. 53.
516
Ibidem, p. 53.
517
FRANCO, Wislanildo Oliveira, op. cit., p. 39.
518
Ibidem, p. 39.
519
BRAATEN, Carl E. (Editor). Dogmática Cristã. São Leopoldo-RS: Sinodal. 1990, p. 424.
520
Ibidem, p. 424.
167

3.1.3
A Imago Dei

Calvino desenvolve esta concepção de Lutero. Para Calvino, todo ser


humano foi criado a imagem e semelhança de Deus. Há, no ser humano, a imago
Dei, o que o torna capaz de estabelecer comunhão com o Criador, com o próximo
e com a criação. E, como conseqüência, estabelece relação consigo mesmo. A
imagem de Deus, no homem, fica evidente pela beleza de sua criação. Calvino
percebe o homem como a coroa de toda a criação, ao afirmar que:

Por conseguinte, com esta expressão (imagem de


Deus) indica-se a integridade de que Adão foi dotado
quando o seu intelecto era límpido, as suas emoções
estavam subordinadas à razão, todos os seus sentidos
eram regulados devidamente e quando ele
verdadeiramente atribuía toda a sua excelência aos
admiráveis dons do seu Criador. E conquanto a sede
primária da imagem divina estivesse na mente e no
coração, ou na alma e em suas faculdades, não havia
parte nenhuma, mesmo no corpo, em que não fulgissem
alguns raios de glória.521

Ele agrega ao conceito de imagem de Deus a concepção Agostiniana de total


depravação e de pecado original, entendendo ser o ser humano alguém incapaz de,
por si, obter a salvação. Para Calvino, de fato o homem tem a imagem de Deus,
porém está, em si, obnubilada pelo pecado, sendo impossível contemplar esta
imagem original a partir do atual estado da humanidade.
Para Calvino, a imago Dei residia originalmente em duas dimensões, ambas
no elemento não-físico: na dimensão metafísica (alma) e na dimensão ética.522
Na dimensão metafísica, o ser humano é a imagem de Deus por ser
espiritual, moral, racional e imortal. Nesta dimensão, a imagem de Deus se
mantém, mas está de tal maneira maculada que praticamente não pode ser
percebida, ainda que a sua existência exija que aquele que traz em si esta imagem,
por causa desta, seja preservado em sua dignidade.

521
Institutas, livro I, cap. 15, seção 3.
522
Institutas, livro I, 15, 3-5.
168

Na dimensão ética, a santidade, a justiça e os conhecimentos originais


manifestam a imagem de Deus. Após a queda, esta imagem foi fragmentada,
ofuscada do ser humano, só podendo ser restaurada através da graça de Deus em
Cristo.523
A dignidade do ser humano, como criatura e imagem de Deus, é mantida
através da preservação da vida e do suprimento de suas necessidades. Calvino não
via, na pobreza, um infortúnio, nem a manifestação da reprovação de Deus, mas a
possibilidade da expressão, por parte dos ricos, da solidariedade através da
distribuição dos seus recursos. Calvino faz a seguinte pergunta retórica: “Por que
é, então, que Deus permite a existência da pobreza aqui embaixo, a não ser porque
ele deseja dar-nos ocasião para praticarmos o bem?”524 A resposta é: para que
todos sejam solidários e tenham o privilégio de ser instrumento para a preservação
do próximo.
Calvino mesmo afirma que o homem deve ser contemplado como imagem
de Deus, devendo, portanto, ser respeitado e amado.525 O reformador mesmo
afirma que “a imagem de Deus nele é digna de dispormos a nós mesmos e nossas
posses a ele”.526
Em primeiro lugar, Calvino repudia qualquer capacidade de, por si, assumir
a consciência de Deus, devido ao estado após a queda. Os meios para o ser
humano obter acesso à graça são provenientes do próprio Deus. A ação do
Espírito, através da oração e da Palavra, torna eficiente aquilo que restou da
imagem de Deus no homem e na mulher. Como Lutero, Calvino pensa que para
nada serve esta imagem por si, exceto para a condenação, exceto na sua
concepção de dignidade humana: sendo ou não eleito, é obrigação a conservação
do ser humano por ser ele a imagem de Deus. A dignidade ontológica não é pelo
que há de exclusivo no ser humano, mas naquilo que o identifica a Deus: a sua
natureza metafísica e a sua ética.
A falta de solidariedade ou a indignidade do ser humano é um atentado
contra Deus para Calvino – e manifesta a não-regeneração. Esta falta de
solidariedade tem por motivação aquilo que, no ser humano, distorce a sua
identidade com Deus: sua tendência para o mal.

523
Institutas, livro I, 15, 4.
524
OC, Sermão 95 sobre o Deuteronômio, 5, 11-15 (30 de outubro de 1555).
525
CALVINO, João. Verdadeira Vida Cristã, pp. 37,38.
169

Devido a esta tendência, somente pela ação poderosa e redentiva do Espírito


Santo, através da obra redentora de Jesus Cristo na Cruz, o homem é regenerado,
tendo sua imago Dei restaurada, retemporada, regenerada. O reformador afirma
que “somente pela iluminação do Espírito Santo se pode conhecer a Deus, e as
coisas de Deus”.527 Assim, fruto dessa ação gratuita de Deus em Jesus Cristo, pela
ação do Espírito, o homem entra novamente em comunhão com Deus e estabelece
uma nova relação com o seu próximo. A comunhão do novo homem com Deus
não pode desconsiderar sua relação com o próximo, visto ser este portador da
imagem de Deus. Calvino diz,

[...] topando com um homem necessitado, não tens


o direito de recusar-lhe ajuda. Dizem, “ele é um
estrangeiro”, mas o Senhor conferiu-lhe um sinal com o
qual estás familiarizado [...]. Dizem mais é desprezível,
um “traste”, mas o Senhor revela-o como sendo um
daqueles aos quais conferiu a beleza de Sua imagem.
Objetam que não lhe ficaste devendo nenhuma
retribuição, mas Deus, de algum modo, colocou-o em
seu próprio lugar para que reconheças nele os múltiplos e
grandes benefícios com os quais Deus relacionou-te com
Ele mesmo. Argúem ainda que aquele homem não
merece nenhum serviço teu, mas a imagem de Deus que
o recomenda a ti torna-o digno do dom de ti mesmo a ele
e de todos os teus haveres.528

Fica-nos claro que o fundamento da ética social de Calvino reside aqui. Ou


seja, nosso próximo carrega a imagem de Deus. Qualquer tipo de desprezo,
manipulação, abuso, importa cometer grande violência contra a pessoa de Deus,
visto que se manifesta em todo ser humano, mesmo apesar do seu estado de
ruptura com Deus, de seu pecado. Há uma co-responsabilidade mútua entre os
seres humanos e, principalmente, entre o nascido de novo, o cristão, em relação ao
outro. Temos, aqui, toda uma dimensão rica da alteridade, que trataremos no seu
devido tempo.

526
CALVINO, João. Verdadeira Vida Cristã, p. 38.
527
Institutas, livro II, cap. 1, seção 8.
528
Institutas, livro III, cap. VII, p. 6.
170

Assim, cabe afirmar que a ética bíblica e reformada está longe da moral
naturalista, bem como das concepções profanas ou seculares de ética. Na verdade,
“a moral é considerada um auxílio conferido ao homem, permitindo-lhe realizar
sua vocação humana o mais completamente possível”.529 Diante do exposto até
aqui, afirmamos que a Reforma Protestante, a partir de Calvino, assume uma nova
visão antropológica, afirmando o valor do ser humano em sua profunda dignidade
como criação à imagem de Deus, numa concepção bíblico-teológica, na qual o
centro de todas as coisas não é o homem, mas Deus que se revela nas
Escrituras.530 Sem dúvida alguma que a Reforma valoriza muitos pressupostos
renascentistas, principalmente o esforço em retratar a dignidade do ser humano e
exaltar as suas virtudes. Além disto, com Erasmo de Roterdã e sua busca dos
primeiros textos bíblicos, submetendo-os a rigorosos estudos filológicos, indica-se
a origem da idéia da razão humana como autônoma e capaz para compreender a
revelação. Neste movimento, a Escritura é posta no centro da discussão, ainda que
analisada autonomamente. Esta é uma manifestação da nova antropologia daquele
tempo. Ora, a concepção calvinista provocou inevitavelmente uma ruptura com a
visão antropológica da Renascença, por afirmar justamente a total incapacidade
humana de, por si, compreender a Deus. Nisto há consenso com Lutero: ambos
chegam ao mesmo resultado, por caminhos distintos.

529
BIÉLER, André. O pensamento econômico e social de Calvino, op. cit., p. 293.
530
GEORGE, Timothe. A Teologia dos Reformadores. São Paulo: Ed. Vida Nova, op. cit., p.
312. O historiador francês Boisset afirma que “a preocupação do humanista, em suma, é afirmar e
demonstrar a grandeza do homem; a do reformador, segundo a expressão de Calvino, é dar
testemunho da ‘honra de Deus’.” Jean Boisset. História do Protestantismo. São Paulo. Difusão
Européia do Livro. 1971, p. 17 apud COSTA, Hermisten Maia Pereira. Raízes da Teologia
Contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã. 2004, p. 79 (ver nota 42).
171

3.1.4
O Sensus Divinitatis e a Semen Religionis

Calvino ainda pensa, em sua antropologia, que há no homem e na mulher


um sensus divinitatis ou semen religionis, dado pelo próprio Deus.531 Na verdade,
“Deus dotou os seres humanos de um senso ou pressentimento inato sobre sua
existência. É como se algo sobre Deus tivesse sido gravado no coração de cada
ser humano.”532 Sobre o sensus divinitatis, o reformador declara o seguinte:

Que existe na mente humana, e, na verdade, por


natural disposição, certo senso de divindade, damos
como além de controvérsia. Ora, para que ninguém se
refugiasse no pretexto de ignorância, Deus mesmo
infundiu, em todos, certa noção de Sua divina realidade
[...] nação nenhuma há tão bárbara, povo nenhum tão
selvagem, em que não esteja profundamente arraigada
esta convicção: Deus existe! E (mesmo aqueles) que em
outros aspectos da vida parecem muito pouco diferir dos
seres brutos, ainda assim retêm sempre certa semente de
religião.533

O senso de divindade é a explicação para o fenômeno religioso. Calvino


entende que, seja uma religiosidade idolátrica, seja uma religiosidade autêntica,
todas as expressões manifestam a necessidade que o ser humano tem de assumir
um Deus para si. Para Calvino, isto demonstra que não existe verdadeiro ateísmo.
E a explicação para alguns optarem pela religião idolátrica, que não é nada mais
que a projeção de seu egoísmo e/ou da sua corrupção e estado vexatório, é que os
homens e as mulheres distantes da graça estão sujeitos à corrupção e a decaírem a
um estado deplorável. A religião verdadeira é assumida por aquele que, uma vez
sendo eleito, tem em si a sua capacidade de juízo restaurada. A ação do Espírito
neste garante a compreensão da vontade de Deus.

531
Institutas, livro I, p. 67. A dignidade do homem está em ter sido criado à imagem de Deus. Ver
também: Francis A Schaeffer. A Morte da Razão. São Paulo: ABU / FIEL. 1974, p. 20 passim.
Hermisten M. P. Costa. O Homem como Imagem de Deus. Revista Popular. São Paulo. 4º
trimestre / 1989, lição 13, pp. 50-55. Cabe muito bem aqui a colocação do filósofo católico Émile
Bréhier (1876-1952): “A Reforma opõe-se tanto à teologia escolástica quanto ao humanismo.
Nega a teologia escolástica, porque nega, com Ockham, que nossas faculdades racionais possam
conduzir-nos da natureza ao seio de Deus. Renega o humanismo, menos por seus erros do que por
seus perigos, posto que as forças naturais não podem comunicar qualquer sentido religioso.” (É.
Bréhier. História da Filosofia. São Paulo: Mestre Jou. 1977-1978, I/3, p. 209).
532
MCGRATH, Alister, op. cit, p. 179. Cf. Institutas, livro I, p. 113.
533
Institutas, livro I, cap. 3, seção 1.
172

Para o reformador, o ser humano, ainda que tenha se sujeitado à um estado


decaído, supera as demais criaturas, estando, na verdade, no ponto máximo da
criação.534 O reformador afirma:

Dentre todas as obras de Deus, é ele (o homem) a


expressão mais nobre e sumamente admirável de Sua
justiça, e sabedoria, e bondade de Deus [...]. Deus não
pode ser clara e plenamente conhecido de nós, a não ser
que se acresça correlato conhecimento de nós (mesmos).
Esse conhecimento é duplo: o conhecimento de Deus e o
de nós mesmos, no estado original, cuja natureza é
íntegra, quando criados.535

Ele tinha plena consciência de que a alma humana tem um anelo pelo
sagrado, intrinsecamente ligado ao seu coração.536 Sendo assim, os homens,
segundo Calvino, são “espelhos da glória divina.”537 Corroborando com a visão
de Calvino, Herman Bavinck afirma que:

O mundo inteiro é uma revelação de Deus, um


espelho das suas virtudes e perfeições; cada criatura é, ao
seu próprio modo e em sua própria medida, uma
personificação de um pensamento divino. Mas, dentre
todas as criaturas, somente o homem é a imagem de
Deus, a mais elevada e mais rica revelação de Deus e,
portanto, cabeça e coroa de toda a criação.538

Quando refletimos sobre a temática da liberdade do homem, encontramos,


no relato da criação, uma de suas maiores fundamentações. Mais uma vez, ouvir
Calvino faz-se necessário:

534
OC, tomo IX, p. 791. Cf. Institutas, livro I, cap. 15, seção 22.
535
Institutas, livro I, cap. 15, seção 1.
536
CALVIN, Jean. Institution de la Religion chrestienne. Société les belles lettres. Paris. 1936.
Vol. I, pp. 41ss.
537
Instituição, livro I, pp. 205,206.
538
BAVINCK, Herman. Dogmatiek. 2.566.
173

Foi o homem criado por Deus com esta condição,


que tivesse domínio sobre a terra, colhesse os seus frutos
e, dia a dia, pela experiência, aprendesse que o mundo
lhe está sujeito. O homem é o lugar-tenente de Deus,539 e
quando o sol brilha, por que é, senão para nos iluminar?
A lua e as estrelas não são, elas também, ordenadas para
nosso serviço? E, no entanto, são criaturas tão nobres
quanto nada mais, de tal sorte que os pagãos as têm
adorado, pensando que nelas algo da divindade estaria
encerrado. Depois, quando abaixarmos os olhos,
veremos os bens que Deus nos tem propiciado; e quando
nutre Ele aos animais, é em consideração aos homens
que o faz. Quando, pois, Deus nos tem aquinhoado, a fim
de nos fazer possuir tantas benesses, além de que nos
criou à sua imagem e semelhança, não está aí um bem
inestimável?540

Na concepção calvinista, estabelecer qualquer antropologia que não tenha


estes dois pressupostos, isto é, a compreensão de que o homem é criatura de Deus
e, como tal, absolutamente dependente do seu Criador; e que, como homem, está
ontologicamente ligado a Deus, pois foi criado como ser de relação é, no mínimo,
construir uma antropologia deficitária. Vejamos esta afirmação:

Ser criatura e ser pessoa são aspectos do ser


humano que devem ser mantidos juntos e em tensão.
Quando a teologia acentua o aspecto criatura e subordina
o aspecto da pessoalidade, vem à tona um determinismo
inflexível e o homem é desumanizado [...]. Quando o ser
pessoa é enfatizado à exclusão do ser criatura, o homem
é deificado e a soberania de Deus é comprometida. O
Senhor é abandonado nos bastidores, como se o homem
tivesse o poder de vetar os planos e os propósitos de
Deus.541

539
CALVIN, John. Commentary on Gênesis, vol. 1, about Gn 1.26 and 2.19 Disponível em:
<http://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom01.htm> Acesso em : 30 ago. 2005.
540
CALVINO João. Sermão XLIII sobre a Epístola aos Efésios 6.1-4 Apud BIÉLER, André, op.
cit., p. 263.
541
BRINSMEAD, Robert D. Man as Creature and Person. Verdict. 1978, pp. 21,22.
174

O reformador francês, muito embora não estivesse tomado pelo espírito


dominante da Idade Média, no que diz respeito às crises espirituais, ao profundo
sentimento de culpa e às práticas de autoflagelo, pode expressar sua visão do
homem do seu tempo. Assim ele afirma:

Incontáveis são os males que cercam a vida


humana, males que outras tantas mortes ameaçam. Para
que não saiamos de nós mesmos: como seja o corpo
receptáculo de mil enfermidades e dentro de si, na
verdade, contenha inclusas e fomente as causas das
doenças, o homem não pode a si próprio mover, sem que
leve consigo muitas formas de sua própria destruição e,
de certo modo, a vida arraste entrelaçada com a morte.
Que outra cousa, pois, hajas de dizer, quando nem se
esfria, nem sua, sem perigo? Agora, para onde quer que
te voltes, as cousas todas que a teu derredor estão não
somente não se mostram dignas de confiança, mas até se
afiguram abertamente ameaçadoras e parecem intentar
morte pronta. Embarca em um navio: um passo dista da
morte. Monta um cavalo: no tropeçar de uma pata a tua
vida periclita. Anda pelas ruas de uma cidade: quantas
são as telhas nos telhados, a tantos perigos estás exposto.
Se um instrumento cortante está em tua mão ou de um
amigo, manifesto é o detrimento. A quantos animais
ferozes vês, armados estão-te à destruição. Ou que te
procures encerrar em bem cercado jardim, onde nada,
senão amenidade se mostre, aí, não raro se esconderá
uma serpente. Tua casa, a incêndio constantemente
sujeita, ameaça-te pobreza durante o dia, durante a noite,
até mesmo sufocação. A tua terra de plantio, como esteja
exposta ao granizo, à geada, à seca e a outros flagelos,
esterilidade se anuncia e, dela a resultar, a fome. Deixo
de referir envenenamentos, emboscadas, assaltos, a
violência manifesta, da parte nos assedia em casa, parte
nos acompanha ao largo. Em meio a estas dificuldades,
não se deve o homem, porventura, sentir assaz miserável,
como quem na vida apenas semivivo, sustenha
debilmente o sôfrego e lânguido alento, não menos que
se tivesse uma espada perpetuamente a impender-lhe
sobre o pescoço? 542

542
Institutas, livro I, 17.10.
175

3.1.5
A Soberania de Deus e o livre-arbítrio

Um dos grandes pilares de todo arcabouço teológico de Calvino é a questão


da soberania de Deus. Toda elaboração doutrinária de Calvino tangencia, de
alguma forma, a doutrina da soberania de Deus. A expressão mais tangível de Sua
soberania está na manifestação de sua providência, através da qual não apenas
criou todas as coisas, mas também governa, dirige e sustenta toda a criação,
incluindo, conseqüentemente, o homem. Deus rege e sustenta todas as coisas e as
conduz para um fim proveitoso, que a de glorificar o seu próprio nome.543 Ele
mesmo diz:

Aprendam, portanto, de início, os leitores, que se


designa Providência não [aquela] mediante a qual,
passivo, Deus observa do céu [as cousas] que se passam
no mundo; ao contrário, [aquela] pela qual, como que a
suster o leme, governa a todos os eventos. Destarte, às
mãos, não menos que aos olhos, diz [Lhes] respeito.544

O próprio reformador afirma que o mundo foi criado por causa do ser
humano, estando este debaixo da soberania do Criador, mas exercendo sua
liberdade de forma responsável, por carregar em si a imagem de Deus, ou seja,
sendo ele um ser moral. Entretanto, a queda afetou diretamente a sua liberdade,
mas não o torna moralmente livre de responsabilidade. Significa dizer que há uma
tensão dialética entre a soberania de Deus e a liberdade do homem. Agostinho faz
a seguinte afirmação, citado por Calvino:

Porque não conhecemos tudo que, na melhor


disposição [possível], Deus opera em relação a nós, em
só boa vontade agimos nós, segundo a Lei; contudo,
segundo a Lei, em outras [cousas sobre nós] se age, pois
que Sua providência é uma Lei imutável.545

Calvino entende o governo e a natureza do Reino de Deus como sendo


espiritual e eterno. Por isso o cidadão do Reino está sob o domínio espiritual e
eterno de Deus, na pessoa de Jesus Cristo. Assim ele se expressa:

543
Institutas, livro I, p. 215.
544
Institutas, livro I, p. 217.
545
Institutas, livro I, p. 229.
176

Venho ao Reino, acerca do qual em vão se fazem


considerações, a não ser que haja leitores que tenham
sido antes advertidos de que lhes é espiritual a natureza,
porquanto daí se colige a quê valha e que nos confira, e
toda a sua força e eternidade. [...]. Mas, esta [eternidade
é] também dúplice, ou se deve estatuir sob dois pontos
de vista, pois uma diz respeito a todo o corpo da Igreja, a
outra é própria de cada um de [seus] membros.546

Portanto, a soberania de Deus é atestada na experiência da vida cristã como


no fato de que é Ele quem sustenta nossas esperanças, pois todo bem provém dele
mesmo. A dinâmica filosófica da oração cristã, por exemplo, passa por esse vetor,
ou seja, tornamo-nos humildes e dependentes diante de Deus. Ele é quem controla
o universo. Não está no homem nenhuma capacidade de satisfação de suas
próprias carências e necessidades espirituais.
Tendo como pressuposto a soberania universal de Deus, salvífica e
soteriologicamente, o homem só é salvo pela ação de Deus, por sua livre
intervenção, pelo seu sim salvífico.
Quando tratamos da soberania de Deus e a liberdade humana pode-se pensar
em uma contradição, mas, na verdade, trata-se de uma aparente contradição entre
duas verdades. Ou seja, o antinômio entre a soberania de Deus e a
responsabilidade do homem. Podemos dizer, então, que Deus como Rei ordena e
dirige todas as coisas, mas como Juiz, todo ser humano é responsável por suas
ações. Por exemplo, as reações do homem diante da voz do Evangelho que lhe
chegou ao coração são de sua responsabilidade, caso as Boas Novas sejam
rejeitadas. O homem é um ser moral, dotado pelo próprio Deus de liberdade, que
só existe na prática da responsabilidade.
Portanto, não devemos ir nem além e nem aquém acerca destas duas
grandiosas verdades bíblicas e teológicas. Em nosso tema particular, qualquer
ação meramente humana em sua busca pela salvação significa intrometer-se na
ação soberana do Espírito Santo na vida do indivíduo, convencendo-o de sua
miséria espiritual e carente da graça salvadora de Deus em Jesus Cristo e,
também, uma negação de seu estado de afastamento de Deus, de sua ruptura com
o Criador.

546
Institutas, livro II, cap. 15, seção 3.
177

Assim, a providência de Deus, dentre outros aspectos, tem a ver com o


contínuo ato divino de relacionar-se com sua criação, explicitando sua
pessoalidade, poder, graça e misericórdia, especialmente para com o homem que,
no mau uso de sua liberdade, trouxe castigo para si e para toda a humanidade, na
pessoa de Adão.
Portanto, sobre a idéia de livre-arbítrio, é necessário retomar a questão
sobre a queda do gênero humano e suas conseqüências. A queda do ser humano
trouxe o pecado, e a natureza essencial da imagem de Deus, em sua vida,
expressa-se, agora, não mais na direção do verdadeiro Deus nem na direção do
próximo, mas, ao contrário, volta-se para si mesmo, em profunda atitude de
egoísmo, tornando-se amor de si mesmo.547 Sendo assim, a razão e a vontade do
homem encontram-se completamente pervertidos pelo pecado original de Adão,
transmitido a seus descendentes.548 Pelo pecado que infeccionou a natureza
humana, feito um vírus que procura destruir o brilho e o esplendor da glória de
Deus em sua obra prima, já não a temos mais perfeita na vida do homem, visto
que a essência do pecado é a auto-suficiência, a independência do Criador, achar-
se absolutamente autônomo. Diante da realidade da queda, em toda a sua
extensão, verifica-se o estado de miséria em que ficou o homem e, sem dúvida,
torna-se evidente a bondade e a misericórdia de Deus.549

547
Bettenson traz o seguinte comentário sobre a questão da Queda e suas conseqüências: “[...]
Assim se vê que o Pecado Original é uma depravação hereditária e uma corrupção de nossa
natureza, difundida em todas as partes da alma [...] pelo que, os que definiram o Pecado Original
como ausência da justiça original com que deveríamos ser revestidos, sem dúvida incluíram – por
implicação – toda a realidade, mas não exprimiram plenamente a energia positiva desse pecado.
Com efeito, a nossa natureza não está simplesmente privada do bem, mas é tão fecunda em toda
espécie de mal que não pode estar inativa. Os que o chamaram concupiscência usaram um termo
que erra muito o alvo se acrescentam – coisa que muitos não concedem – que tudo o que há no
homem, do intelecto à vontade, da alma à carne, está inteiramente manchado e repleto de
concupiscência. Ou para dizê-lo brevemente: todo o homem em si nada mais é que
concupiscência.” BETTENSON, H. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 1998, p.
264.
548
Institutas, livro 2, cap. 1, seções 7 e 8.
549
Institutas, livro 2, cap. 1, seção 3.
178

Segundo o reformador, o homem tornou-se espiritualmente incapaz de


procurar o seu Criador por si mesmo e completamente incompetente para alterar
seu estado e sua condição de pecado. O pecado alcançou todas as áreas da
existência humana. O que aconteceu foi que Adão perdera seu estado de dignidade
e integridade originais. Na verdade, a natureza original do homem fora tremenda e
profundamente afetada, permanecendo, ainda que enfraquecida, a sua razão ou
entendimento.
Portanto, qualquer ação do homem que vise a conquista de sua salvação
torna-se inócua. “As faculdades e dons humanos foram radicalmente
prejudicados”,550 segundo McGrath. Calvino avança em sua consideração sobre as
conseqüências do pecado ao declarar que

[...] a Escritura atesta com freqüência que o


homem é escravo do pecado; o que quer dizer que seu
espírito é tão estranho à justiça de Deus, que não
concebe, deseja, nem empreende coisa alguma que não
seja má, perversa, iníqua e impura; pois o coração,
completamente cheio do veneno do pecado, não pode
produzir senão os frutos do pecado. Não pensemos,
entretanto, que o homem peca como que impelido por
uma necessidade incontrolável, pois peca com o
consentimento de sua própria vontade continuamente e
segundo sua inclinação. Mas, visto que, por causa da
corrupção de seu coração, odeia profundamente a justiça
de Deus; e, por outro lado, atrai para si toda sorte de
maldade, por isso afirmamos que não tem o livre poder
de eleger o bem ou o mal – que é o que chamamos livre-
arbítrio.551

A liberdade humana ou o livre arbítrio não foi totalmente destruído, mas


tornou-se fraco e impotente para dizer “não” aos engodos do pecado. Calvino diz
que “não fomos privados do livre arbítrio, mas de um arbítrio são.”552 Quanto a
uma explicitação do livre arbítrio e das questões relacionadas à liberdade do
homem, Calvino faz uso dos conceitos agostinianos:

550
MCGRATH, Alister, op. cit, p. 183.
551
Breve Instrucción Cristiana, p. 13. Cf. Institutas, livro I, cap 2, seção 8.
552
Institutas, livro II, pp. 9, 53, 54.
179

Agostinho, que não hesita em dize (-lo) servo. (É


verdade que,) em certo lugar, esbraveja contra os que
negam o livre arbítrio. A precípua razão (de assim agir)
declara (-a), porém, quando diz: “Somente não ouse
alguém assim negar o arbítrio da vontade que queira
(dessa forma,) excusar o pecado.” Confessa, entretanto,
firmemente, em outro lugar, que, sem o Espírito, a
vontade do homem não é livre, uma vez que há sido
sujeita a desejos que (a) acorrentam e (a) dominam. De
igual modo, vencida a vontade pela depravação em que
caiu, começou a natureza (humana) a carecer de
liberdade.553

3.1.6
A Antropologia de Calvino e a Liberdade

A teologia de Calvino era profundamente prática. Os homens e mulheres,


alcançados pela graça libertadora de Cristo, não podem viver interessados apenas
em sua própria salvação, pois tal atitude reflete egoísmo. A expressão da
verdadeira fé não está apenas na dinâmica da espiritualidade individual, mas
também acha seu espaço no exercício de uma ética solidária, com expressões da
alteridade, comunitária e social.
Uma objeção à perspectiva calvinista é que este apresenta uma perspectiva
dicotomizada do ser humano, tal qual Agostinho. Porém, o ser humano precisa ser
visto como um ser integral, a fim de que rompamos com todo e qualquer
dualismo. A perspectiva dualista do ser humano tende a lançar luz apenas sobre
determinado aspecto da realidade humana. Estabelece-se, portanto, uma tensão
antropológica. Ou seja, antropologias idealísticas, por exemplo, acentuam a
dimensão da alma ou da razão, ocultando, ou até mesmo, negando a estrutura
material do homem.554 Na outra ponta, as antropologias materialistas dogmatizam
a dimensão física do homem, negando-lhe a sua realidade espiritual.555 Nesse
sentido, temos que estabelecer uma distinção clara sobre tais antropologias. E, no
nosso caso, verificar os descompassos entre tais antropologias e a antropologia
cristã, que é o nosso foco de interesse. Lembrando sempre que as concepções
antropológicas não-cristãs, vez por outra, afetam e distorcem a visão escriturística
sobre as verdades do humano.

553
Institutas, livro II, cap 2, seção 8.
554
HOEKEMA, Anthony, op. cit., p. 14.
555
Ibidem, p. 14.
180

Logo, o ser humano possui uma realidade extremamente mais profunda e


mais complexa do que possamos imaginar. Ultrapassa o conhecimento que temos
do universo natural. Por isso é chamado de multidimensional, como afirma o
filósofo Juvenal Arduini.556 O ser humano possui, em si mesmo, uma
multidimensionalidade. Significa afirmar, então, que o homem não pode ser visto
apenas sob um determinado ponto, visto que uma dimensão do homem não reflete
sua totalidade.
“O homem apresenta dimensão somática, psíquica, racional, individual,
social, econômica, política, sapiencial, erótica, estética, histórica, técnica, ética”
557
, afirma o filósofo supracitado. Essas facetas não são excludentes. Ao contrário,
são complementares. Impõe-se, portanto, fugir de todo reducionismo de análise do
ser humano, pois agindo assim, corre-se o risco de praticar deformação do
humano, “hipertrofiando-lhe uma dimensão e atrofiando-lhe as demais”.558 Na
verdade, o grande desafio que temos na compreensão do homem é olharmos suas
múltiplas facetas antropológicas, exercendo um esforço conjuntivo, jamais
disjuntivo.
O ser humano existe enquanto exerce a capacidade de autocompreensão e de
auto-expressão, e não apenas enquanto exerce a capacidade de refletir sobre o
cosmos. A antropologia ganhou maior expressão na modernidade, visto que
passou a ser o elemento principal na formação sociocultural. Na essência do ser
humano, está a sede pela busca de sentido, que por sua vez provoca o
questionamento, gerando a coragem da interrogação e a beleza da resposta.
“Transforma dúvidas em certezas, e fratura certezas hereditárias para espalhar
dúvidas inéditas”.559

556
ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica. São Paulo: Paulinas. 1989, p. 9.
557
Ibidem, p. 09.
558
Ibidem. Tal afirmação não significa que não possamos analisar determinadas partes do ser
humano. O que não podemos é proceder assim ocultando as demais. Entretanto, devemos
compreender, paradoxalmente, que cada dimensão analisada há de possuir caráter de totalidade.
“Uma dimensão não contém a totalidade do ser humano, mas lhe marca a totalidade do ser”. Cf. p.
10.
559
Ibidem, p. 12.
181

Na busca de sentido, o homem expressa sua consciência, seja moral,


psicológica, religiosa ou antropológica, que é o nosso caso. Pela consciência, o
homem consegue superar seus próprios limites. É possível, pelo exercício da
consciência, sonhar ser o que não se é, por condição natural e limitada, intrínseca
ao próprio ser humano, alvejado pelo pecado. A consciência é caminho da
liberdade, pois não permite ao homem dormir o sono da inércia. Na verdade, tanto
para o homem quanto para um povo, “o maior desastre é o funeral da
consciência”.560 Significa dizer, categoricamente, que a consciência é geradora e
formadora de identidade, pessoal e social. Portanto, “ser uma pessoa significa ter
alguma forma de independência – não absoluta, mas relativa”.561
Ser uma pessoa é mais do que ser uma criatura. Logo, a consciência traz ao
homem a capacidade de se perceber, de se saber homem. Ernst Bloch afirma que a
consciência “é o grande espaço reservado à vida aberta”.562 A consciência navega
os rios que deságuam nas águas profundas do sentido. Por isso, o ser humano,
conquanto criatura, não vive apenas, conduzido por uma força extrínseca a ele.
Há, no homem, a capacidade da autodireção e da autodeterminação.563 Temos,
aqui, um paradoxo da antropologia cristã, isto é, o homem como criatura, é
dependente do seu Criador, Deus; mas como pessoa, possui liberdade, elemento
constitutivo da estrutura humana.

560
ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica, op. cit., p. 15.
561
HOEKEMA, Anthony. Criados à Imagem de Deus, op. cit., p. 17.
562
BLOCH, Ernst. Le Principe Espérance. Gallimard. Paris. 1976, p. 237.
563
HOEKEMA, Anthony. Criados à Imagem de Deus, op. cit., p. 17. Leonard Verduin afirma
que o ser humano é uma “criatura de opção”. Cf. VERDUIN, Leonard. Somewhat less than God.
Grand Rapids. Eerdmans, 1970. Ele trabalha bastante tal idéia no capítulo cinco.
182

O ser humano encontra, nas vias da comunicabilidade da linguagem, seu


grande veículo de expressão. Na verdade, a linguagem possui a capacidade de
revelar a dinâmica existencial do homem. Afirma Dilthey que “é somente na
linguagem que a intimidade do homem mostra sua expressão completa, exaustiva
e objetivamente inteligível”.564 É através da linguagem que as profundezas do ser
humano são reveladas, tornando-se uma espécie de “epifania antropológica”.565
Ela é manifestação dos mistérios humanos. Ela é sinal de abertura, de relações, de
alteridade, de solidariedade, de solicitude, instrumento de ensino e aprendizagem,
iluminação do próprio do ser. Na sua maioria, as grandes dores do ser humano,
não importa qual seja a área, ganham agudeza ainda maior, pela falta de
comunicabilidade, pela incapacidade do homem de expressar seus conflitos ou
pela simples ausência de coragem em explicitá-los. É exatamente aí que nascem
os grandes monstros, que devoram a existência, provocando imensos e profundos
traumatismos na vida do homem. Exteriorizar seu mundo interior significa abrir
caminhos para a cura e alamedas para a liberdade.566 A liberdade é a
expressividade do ser, antes preso e acorrentado pelo silêncio e ocultamento. A
liberdade de ser, de se compreender, de se aceitar e de perceber a realidade ao seu
redor, tem seu ponto de partida na antropologia da linguagem.
Em outras palavras, a identidade do ser humano é construída na densidade
de sua comunicabilidade. Ainda citando o filósofo Juvenal Arduini, constatamos o
valor e o poder da linguagem, pois o verbo caracteriza o ser:

Por isso, o desrespeito à palavra emitida é


interpretado como ofensa à própria pessoa. Recusar a
palavra é recusar o homem que profere. Adulterar a
palavra de alguém é violar-lhe a dignidade.567

564
DILTHEY. Le Monde de l’Esprit. T. I, p. 321.
565
ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica, op. cit., p. 116.
566
Ora, a linguagem é amplamente utilizada pelas ciências médicas, incluindo a psicologia e a
psicanálise, para tratamento das doenças físicas e psicossomáticas.
567
ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica, op. cit., p. 17.
183

A linguagem é ontológica, pois colabora efetivamente para a constituição do


homem e do próprio tecido social. “A linguagem é o fundamento da
intersubjetividade, e cada pessoa tem de se apoiar sobre ela antes de poder
objetivar a primeira manifestação vital”568, diz Habermas. Gadamer ainda afirma
que “é na ordem da linguagem que a consciência inserida no devenir histórico
exerce sua ação”.569 Isso significa que a linguagem se concretiza na práxis e que
esta pereniza aquela.
Temos, portanto, na linguagem diversas formas de manifestação. “Pode ser
verbal, física, emocional, lúdica, ética, religiosa, política, econômica, técnica,
jurídica, estética, individual e coletiva”.570 No entanto, a linguagem corporal
possui uma força exponencial do ponto de vista antropológico, visto que o corpo
expressa os mais variados significados. A expressividade do corpo é altamente
diversificada. Tal asseveração é confirmada pelas palavras de Merleau-Ponty.571
Assim, desfazendo qualquer tipo de dualismo, o corpo é expressão do ser humano.
Por isso Merleau-Ponty diz: “Je suis donc mon corps” (eu sou, então, meu
corpo).572
Vejamos o que diz o filósofo Arduini:

O corpo diz fenomenologicamente todo o meu ser.


É nele que se manifestam a consciência, o pensamento, a
intenção profunda, a liberdade, o projeto de vida, a
necessidade e aspiração, o acolhimento e a recusa, a dor e
o júbilo, o amor e a crueldade, a súplica e a prepotência.
O corpo é palavra somática.573

Esta atribuição de valor ao ser humano holístico e a importância à sua


linguagem, como expressão do seu ser, são as contribuições que podem ser dadas
ao pensamento de Calvino. Porém, sua valorização do ser humano e exigência da
dependência de Deus é fundamento para uma concepção libertária: homens e
mulheres precisam depender do transcendente para assumir integralmente sua
humanidade, porém precisam assumir suas responsabilidades para transcender.

568
HARBEMAS, Jurgen. Cannaissance et intérét. Gallimard. Paris. 1976, p. 191.
569
GADAMER, H. G.. L’Art de Comprendre. Aubier. Paris. 1982, p. 37.
570
ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica, op. cit., p. 18.
571
Merleau-Ponty afirma: “le corps exprime l’existence totale, non qu’il en soit un
accompagnement extérieur, mais parce qu’elle se réalise en lui”. Phénomenologie de la
Perception. Gallimard. Paris. 1945, p. 193.
572
MERLEAU-PONTY, M.. Phénomenologie de la Perception, op. cit., p. 231.
573
ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica, op. cit., p. 19.
184

Esta é a principal contribuição da teologia calvinista para a construção de


uma reflexão que sirva à ação, à práxis libertária.
Apesar das suas categorias estarem inseridas num contexto distante, mudado
pela reflexão antropológico-filosófica a qual rejeita a figura da transcendência que
não parte do ser humano em sua imanência, Calvino é uma fonte importante para
a revalidação da concepção de que os projetos autônomos do ser humano são
fadados ao fracasso. A autonomia da razão leva à dependência em relação ao
transitório. A autonomia da dimensão corporal é negada pela óbvia limitação do
mesmo. Transcender começa por assumir a integralidade do ser humano, e
assumir que homens e mulheres, quando integrais, mostram-se dependentes do
Ser, da relação com Deus. Esta é uma questão antológica, explícita nas múltiplas
expressões do fenômeno religioso.
Calvino, ao reafirmar o senso religioso, exterioriza algo que pode ser
percebido historicamente: mesmo diante do desencantamento do mundo, foram
atribuídas marcas religiosas àquilo que outrora era profano. A relação do ser
humano com as suas construções culturais sempre manifesta um teor religioso. A
religiosidade é tão inerente ao ser, que até a negação do Transcendente, do
Totalmente Outro exige elencar substitutos para o papel que outrora este assumia.
A liberdade passa a ser tema fundamental em Calvino. Mas não a liberdade
como eliminação de vínculos, mas como fortalecimento destes, abandono de
outros e assunção do senso de responsabilidade com o próximo. A liberdade da
graça é liberdade em Deus, e não de Deus. É a capacidade de negar a própria
natureza pecaminosa, a própria vontade pervertida e decaída, para assumir algo
que só pode ser feito quando se experimenta a libertação plena: a vontade de
Deus.
185

3.2
A Eclesiologia de Calvino e a Liberdade Cristã dela decorrente

Quando ocorreu a Reforma Protestante, a Igreja Católica Romana foi


questionada. Entre as críticas feitas pelos seus opositores, está aquela que tange
sua eclesiologia. Porém, estas críticas geralmente não apresentavam modelos
eclesiológicos que substituíssem aqueles que pretensamente estavam equivocados.
Tratar da eclesiologia reformada, portanto, consiste em ir além das críticas
feitas à eclesiologia católica romana. É importante perceber quais os modelos
eclesiológicos propostos. E para identificar as questões que apontam para a
liberdade, é necessário analisar a introdução destas eclesiologias, na prática das
comunidades, e os resultados obtidos.
Entre os modelos eclesiológicos, surgidos no período da Reforma, o modelo
genebrino, estabelecido por Calvino, a partir das influências de Lutero e de Martin
Bucer, é o apresentado aqui, a fim de que configurem uma concepção promotora
da liberdade cristã. Estes dados são abordados na dimensão da práxis, mas
também da teoria que a fundamenta, de maneira a se entender a relação entre
ambas e onde estas não apresentam continuidade.

3.2.1
Fontes

Em primeiro lugar, a eclesiologia Calvinista é encontrada em duas obras


principais: na obra Institutas da Religião Cristã, livro IV; e nas Ordenanças
Eclesiásticas, escritas por Calvino para a regência da Igreja Reformada em
Genebra. Estas são as principais fontes da eclesiologia, que também têm, como
evidências, as cartas, os comentários e os opúsculos, produzidos por João Calvino,
que tangenciam o tema. Este tema está vinculado à antropologia, à cristologia e à
soteriologia, já que a Igreja é mãe e lugar de plenificação dos mesmos; à
cristologia, já que a Igreja é vista por Calvino como o “corpo místico de Cristo”;
e à soteriologia, já que a Igreja é “mãe dos fiéis”, dos eleitos, e lugar obrigatório
dos mesmos.
186

A maior testemunha desta vinculação é que a obra principal de Calvino


sobre a Igreja também trata das outras temáticas elencadas: As Institutas da
Religião Cristã. No IV livro das Institutas, o reformador afirma ser a Igreja o
instrumento externo de Deus, através do qual convoca os homens e as mulheres à
santa comunhão com o Cristo ressuscitado, bem como os faz permanecer nela,
Corpo de Cristo. Calvino não apenas possuía experiência para descrever sobre a
Igreja e sua organização, mas também foi capaz de desenvolver uma análise
teórica sobre sua natureza, seu modus vivendi, pela via dos ministérios e seus
sacramentos.574 Ou seja, a teologia eclesiológica de Calvino desembocava numa
via teológico-sociológica. Na verdade, sua eclesiologia contribuiu, e muito, para o
tema da liberdade e da democracia, sendo influente nas sociedades da Europa
Ocidental, atingidas pelas concepções calvinistas, preponderantemente a Holanda,
a Suíça, a França e a Inglaterra.
Entre os vários assuntos relacionados à Igreja no livro IV das Institutas está
a apresentação da Igreja como organismo vivo.575 Calvino, a partir dos dados
sedimentados na crítica humanística e luterana à eclesiologia católico-romana, e a
partir da sua experiência prática como pastor em Genebra e Estrasburgo, apresenta
uma teologia em que estão imbricadas as concepções teóricas da Igreja e a sua
epifania no mundo.

574
Institutas, livro IV, pp. 133-136. Calvino procura evitar ao máximo abstrações generalizadas.
Se atentarmos bem para as Institutas, perceberemos, na verdade, um grande manual prático sobre a
nova sociedade que Deus está formando a partir e por meio de Jesus Cristo, pela ação poderosa do
Espírito Santo, capaz de se tornar instrumento de transformação histórica. Ou seja, Calvino
trabalha praticamente todas as perspectivas da Igreja, o que modernamente podemos chamar de
um projeto prático sobre plantação, crescimento, organização e disciplina da Igreja. Cf.
MCGRATH, Alister, op. cit, pp. 197,198. McGrath diz que “as Institutas começam com uma
vigorosa análise teológica e terminam com a aplicação dessa análise às realidades do dia-a-dia do
ser humano”. Há algo muito interessante nessa afirmação, pois um dos grandes propósitos e
desafios de nossa pesquisa é a atualização da visão teológica e eclesiológica, na perspectiva da
liberdade cristã, com todas as suas implicações éticas.
575
Talvez seja necessário estabelecer a diferenciação entre estes dois conceitos, que não são
originais em Calvino. A Igreja visível é uma organização de origem divina, através da qual Deus
concretiza o crescimento ou a santificação do seu povo. Calvino cita uma máxima de Cipriano de
Cartago a fim de confirmar tal doutrina: “Você não pode ter Deus como Pai, a menos que tenha a
Igreja como mãe”. Cf. Institutas, livro IV, pp. 4,5. Por um lado, Calvino afirma que a Igreja
visível significa a comunidade dos cristãos, na verdade, um grupo concreto e histórico, a
comunidade dos fiéis (Institutas, livro IV, pp. 09,10). Ela é formada ou composta por todos, salvos
e não salvos. Como Igreja Invisível significa a comunhão dos santos, a Assembléia dos Salvos, é
conhecida apenas por Deus.
187

Calvino apresenta concepções teológicas sobre a natureza da Igreja e as


relaciona com a visão de múltiplos ministérios e sacramentos.576 Esta imbricação
proporciona o evitar das especulações e abstrações destituídas de caráter prático.
Podemos, inclusive afirmar, em termos mais contemporâneos, que as Institutas
são um manual prático sobre plantação, organização, crescimento e disciplina da
Igreja. Ou seja, as Institutas têm, nos seus primeiros volumes, uma profundidade
teológica exponencial, e culmina, no quarto volume, sobre a aplicação de toda a
sua análise “às realidades do dia-a-dia do ser humano”.577 Sua teologia é exposta
agora, de forma prática, na medida em que o novo homem, em Cristo, está
inserido no contexto da Igreja e, como tal, precisa viver intensamente a
experiência da fé no meio onde está inserido, promovendo as transformações
necessárias, na sociedade, através do evangelho libertador de Jesus Cristo.

3.2.2
Conceito de Igreja

Para Calvino, a Igreja é sinal concreto do Reino de Deus onde, através do


cumprimento da sua missão, realiza o Reino na vida de homens e mulheres,
anunciando e vivendo a radicalidade do Evangelho libertador de Jesus Cristo. A
Igreja é chamada a ser vanguarda da promoção da justiça social. Em um de seus
sermões, ele diz:

Devemos reconhecer que Deus almejou tornar-nos


membros de seu corpo. Quando nos encontramos uns aos
outros dessa maneira, cada um concluirá: vejo meu
próximo necessitado de meu auxílio e se eu estivesse em
tal desamparo, gostaria de ser socorrido: logo, devo fazer
exatamente isto.578

576
Institutas, livro IV, p. 9.
577
MCGRATH, Alister, op. cit., pp. 197,198.
578
CALVINO, João. Sermão sobre I Timóteo 6.17-19.
188

A Igreja vive um duplo desafio, ambas ligadas a sua essência: desenvolver


uma espiritualidade na relação com Deus e desenvolver uma espiritualidade na
relação com o próximo, transformado em práxis na sociedade e em
responsabilidade social na concretização da justiça do Reino. Não agir dessa
forma significa, segundo Calvino, uma prática incoerente com a própria natureza
da Igreja. Ouçamos a voz do reformador:

Reconheço que devoção para com Deus vem antes


de amor de nossos irmãos; portanto, observar a primeira
parte (tábua) da lei é mais precioso diante de Deus, do
que a observância da segunda. Mas já que Deus é
invisível, nossa devoção não pode ser vista pelos outros
homens. É verdade que as cerimônias religiosas foram
estabelecidas para fornecer evidência de devoção. Mas a
observância delas pelos homens não era prova da
fidelidade deles. Ocorre com freqüência que ninguém é
mais diligente e zeloso, em particular dessas cerimônias,
do que os hipócritas. Portanto, Deus quis pôr à prova
nosso amor por Ele, exortando-nos a nos amar uns aos
outros como irmãos. Por esse motivo diz-se que o amor é
a perfeição da lei (não apenas nessa passagem, mas
também em Romanos 13.8), não pode ser melhor do que
a adoração de Deus, mas por ser a convincente evidência
dela. Tenho dito que não podemos ver Deus. Ele,
portanto, apresenta-se a Si mesmo em nossos irmãos, e,
na pessoa deles, exige o que Lhe devemos.
Assim, o amor ao irmão desabrocha a partir do
temor e do amor a Deus. Ora, não é para surpreender,
pois, que nosso amor pelo irmão, sendo o sinal do amor
de Deus, ainda que seja parte da lei, representa a
totalidade da lei e inclui o culto a Deus. Com certeza está
errado separar o amor a Deus do amor ao homem.579

A eclesiologia reformada, exposta por Calvino, tem, por princípio, a


luterana. Nesta, a Igreja é vista como justa e pecadora. A Igreja é entendida como
o resultado de uma severa tensão entre a tendência a pecar e a consciência do
dever em viver segundo a vontade de Deus. Os crentes, nesta concepção, são
simul justus et peccator. A Igreja se torna, para Lutero, a comunhão dos santos, a
reunião dos crentes que vivem sob esta tensão.

579
Gálatas, (5.13,14), pp. 55,56.
189

A Confissão de Augsburgo afirma que a Igreja é a reunião de todos os


crentes, onde o Evangelho é pregado com pureza e os sacramentos são
administrados segundo o Evangelho. E esta confissão se mantém fiel ao preceito
de Lutero de que há apenas uma Igreja Cristã que deve permanecer para sempre.
Além disso, faz parte da eclesiologia luterana a doutrina do sacerdócio
universal de todos os crentes. Para Lutero, não existe a idéia de um sacerdócio
especial, mas de diferenças nos serviços. E a Igreja, neste aspecto, é a mãe de
todos os fiéis, aqueles que assumem seu sacerdócio, não obstante sua natureza
pecadora.
O Espírito é, para Lutero, o agente que faz dos crentes receptores dos meios
de graça: a ministração da Palavra de Deus e dos sacramentos. A Igreja é alvo da
ação do Espírito e responde a esta ação com o amor, sendo como um hospital para
enfermos incuráveis, em que os agentes de saúde também estão enfermos.
Para Calvino, a Igreja é vista como manifestação do pacto ou da aliança
entre Deus e o ser humano. Dentro desta visão pactual, a Igreja carrega marcas
distintivas, que possibilitam diferenciar aquela que, de fato, é manifestação deste
pacto e aquelas que não são autênticas.
Calvino concorda com Lutero que as marcas da verdadeira Igreja é a fiel
pregação da Palavra de Deus e a ministração dos sacramentos consoante a vontade
de Deus. Calvino procura estabelecer critérios que possam caracterizar a
autenticidade da Igreja. Ele afirma que “onde quer que vejamos a Palavra de
Deus, sendo pregada de forma plena e ouvida, e os sacramentos, ministrados
segundo o modelo de Cristo, não podemos duvidar de que exista uma Igreja.”580
Sem dúvida que o padrão da Igreja é estabelecido pela sua visão das Escrituras,
porém, sob a influência de Lutero.581
Soma-se a estes elementos comuns a importância da disciplina eclesiástica
na visão eclesiológica de Calvino. Portanto, distintamente de Lutero, Calvino
defende também ser fundamental para distinguir a verdadeira Igreja da falsa, a fé
correta e a correção na vida cristã.

580
Institutas, livro IV, p. 140.
581
Institutas, livro IV, pp. 133,134.
190

Além disso, na visão calvinista, a Igreja não é vista como universal apenas,
mas há uma distinção dentro da mesma. Para o teólogo, há uma Igreja visível,
formada por todos aqueles que vivem, aparentemente, pia e santamente a sua vida.
E existe uma Igreja invisível, formada pelos eleitos. Ele se apropria da concepção
agostiniana de que há pessoas, na Igreja, que não são cristãos autênticos, e há
cristãos autênticos fora da Igreja, para deixar claro que a eleição é supratemporal e
supra-espacial. Porém, Calvino afirma que aquele que é eleito invariavelmente
será parte da Igreja visível, e que o fato da Igreja invisível ser a verdadeira não
exclui a obrigação de fazer parte da imperfeita.

3.2.3
A Relação entre a Igreja e o Estado

A relação entre a Igreja e o Estado é distinta, na Igreja Calvinista, em


relação à luterana. Para os luteranos, existem dois reinos: um governado pela
Igreja, cuja autoridade está nas Escrituras, instrumento para compreensão da fé e
dos critérios da mesma; e o governo secular, autônomo, cujo governante foi
instituído por Deus e sua autoridade deve ser obedecida e respeitada, inclusive
pela Igreja.
Para Calvino, a relação entre a Igreja e o Estado deve ser integral. Para ele, a
Igreja é autônoma, devendo ser respeitada em suas decisões, sem interferências do
Estado. De igual forma, o governo secular não deve sofrer interferências da Igreja.
Porém, a Igreja deve ser a consciência do Estado: a relação entre a Igreja e o
Estado é integralizada através da colaboração mútua, da preservação mútua e do
apoio mútuo. Esta relação entre Igreja e Estado é uma inovação calvinista. O
paradigma da relação entre as instâncias de poder em Genebra alcançou, no
segundo período da sua permanência na cidade, alta qualificação. Havia uma
organização na cidade, e cada uma destas instituições criadas, manifestava a
defesa de valores da Reforma, a ponto da cidade parecer – não obstante não ser –
uma cidade teocrática. Esta imersão nos valores da Reforma mostra a eficiência
do elemento ideológico na configuração administrativa da cidade, e a eclesiologia
calvinista era o fundamento ideológico para esta configuração.
191

A Igreja visível, para Calvino, é, em primeiro lugar, uma comunidade


visível, que manifesta a graça de Deus através da pregação da Palavra (Palavra
que se ouve) e da ministração dos sacramentos (Palavra que se vê). A ministração
dos sacramentos constitui como que um drama cósmico, em que, pela apropriação
pública dos sacramentos, manifesta a vontade de Deus para o mundo. Além deste
drama sacramental, a comunidade de fé se manifesta ao mundo pelo
comportamento exemplar dos seus membros e pelas demais atividades da mesma,
incluindo os debates em torno de assuntos doutrinários, tão comuns naqueles
tempos de efervescência religiosa. Por isto, percebe-se que as fronteiras entre o
religioso e o profano foram em muito diminuídas, havendo um intercâmbio entre
ambos. Em Genebra, a dicotomia presente na época medieval, que vez ou outra se
manifestava, foi resolvida parcialmente – ora os membros da Igreja eram tolhidos
– e isso se fazia pela aplicação da disciplina; ora era assumida uma manifestação
secular – como os estudos humanísticos sobre autores clássicos.

3.2.4
Os Sacramentos

Particularmente importante para entender a eclesiologia calvinista é a


dimensão sacramental da mesma. Calvino afirma que os sacramentos, que são a
Palavra visível, também são um dos sinais da Igreja – notae ecclesiae.582 Calvino
faz duas definições de sacramento, afirmando ser “um símbolo exterior, através do
qual o Senhor sela, em nossa consciência, as suas promessas de boa vontade em
relação a nós, para sustentar a fraqueza de nossa fé”;583 e ainda “um sinal visível
de algo sagrado, ou a forma visível de uma graça invisível”584.

582
Institutas, livro IV, pp. 16-20.
583
Institutas, livro IV, p. 259.
584
Institutas, livro IV, p. 259.
192

No entanto, a primeira afirmação é de autoria do próprio Calvino, enquanto


que a segunda pertence a Agostinho.585 Para Calvino, os sacramentos são meios
externos necessários para a operação da fé. Ele afirma:

Porque pela nossa obtusidade e indolência, e eu


acrescento também a frivolidade de nosso espírito,
necessitam de meios externos, mercê dos quais seja em
nós operada a fé, e aí cresça, e avance passo a passo, não
se esqueceu Deus de prover a isso, a fim de nos assistir à
fraqueza. E para que a pregação do evangelho tivesse seu
curso, à sua Igreja propiciou, como em depósito, este
precioso tesouro; instituiu pastores e mestres pela boca
dos quais nos ensinasse (Ef 4.11); enfim, nada deixou
para trás de tudo o que próprio era para nutrir um santo
consentimento de fé e uma boa ordem entre nós.
Sobretudo, instituiu os sacramentos, que por experiência
sabemos serem meios mais do que úteis para nutrir e
firmarmos a fé.586

Os sacramentos são dois: o batismo e a Ceia do Senhor. O batismo consiste


no sacramento através do qual o ser humano aprende o que ele é, objetivamente, e
em que ele descobre sua natureza e essência. Como sinal da nova criação, o
batismo constitui o sacramento através do qual o crente recebe o selo indelével da
graça e que testemunha os símbolos do seu estado.

585
Tal período fora marcado por muita controvérsia sobre a doutrina dos sacramentos. Calvino
insistia em afirmar que o sacramento tem seu fundamento em “uma promessa e um mandamento
do Senhor”. Cf. Ibidem, livro IV, p. 423. O reformador recusou-se, então, a aceitar cinco dos sete
sacramentos da Igreja Católica Romana. Cf. Ibidem, livro IV, pp. 419,420. Houve ainda acirrada
controvérsia entre Lutero e Zwínglio no que diz respeito a natureza dos sacramentos. Cf. McGrath,
Reformation Thought (Oxford/Nova York, 1988), pp. 117-130. Calvino ocupava uma posição
intermediária entre Lutero e Zwínglio. Ele dizia, cristologicamente, que no sacramento eucarístico
há uma sutil separação entre o sinal e o significado, mas que não deveria existir distincto sed non
separatio, ou seja, deve haver distinção entre o sinal visível e o significado nele representado,
ainda que não devam ser separados. Cf. Ibidem, livro IV, pp. 380-382. Ver também MCGRATH,
Alister, op. cit, p. 200. Para o reformador, os benefícios da eucaristia – beneficia Christi – são
conquistados pelo próprio Cristo e são oferecidos aos cristãos, homens e mulheres que a Ele se
submetem pela prática da fé e da obediência. É pela fé que participamos de todos os benefícios
conquistados por Cristo na cruz, tais como a redenção, a justificação, a vida eterna etc,. No
entanto, precisamos estabelecer aqui outra distinção, pois quando Calvino usa o termo matéria ou
substância da eucaristia, nada tem a ver com o sentido aristotélico, visto que tal sentido
fundamenta ou embasa a teoria medieval da transubstanciação. Ver Institutas, livro IV, pp. 349-
358.
586
Institutas, livro IV, p. 351.
193

Pelo batismo, o ser humano toma conhecimento de que o pecado o fez


indigno, mas que, pelo favor imerecido de Deus, seus pecados são perdoados e ele
adquire, por Jesus Cristo, a condição de ser recriado. A ação do Espírito manifesta
a mortificação da carne e a destruição do velho ser humano, fazendo do batizado
parte da nova criação.587
O batismo é sinal e selo. O é da purgação, carta assinada e carimbada pela
qual Deus confirma que os pecados foram perdoados e esquecidos. O selo não
está na água, mas em Jesus Cristo, que, pelo seu sangue, garante o lavar dos
pecados.
O recebimento do sacramento do batismo mediante a fé garante a
manifestação da eficiência do sacrifício de Jesus na mortificação da carne do
batizando, já que se é sepultado com Cristo pelo batismo. O batismo exige,
portanto, uma nova vida em Deus, o Pai, em Cristo, sob os auspícios do
Espírito.588
Sobre isto, o reformador afirma:

O batismo, sem dúvida, nos promete que nosso


Faraó foi submerso e nossa carne mortificada, não,
entretanto, de tal forma que não mais nos moleste, mas
somente que não nos sobrepuje. Enquanto vivemos
enclausurados nesta prisão do nosso corpo, em nós
habitarão os restos e remanescentes do pecado; se,
porém, pela fé retemos a promessa que por Deus nos foi
dada no batismo, não dominarão eles e não reinarão.
Impõe-se-nos, então, saber e reter que fomos batizados na
mortificação de nossa carne, que começou em nós desde
o batismo e todos os dias perseguimos; perfeita, no
entanto, só será ela quando desta vida houvermos partido
para estar com o Senhor nosso.589

587
Institutas, livro IV, XV, 5.
588
BIELÉR, André, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 354.
589
Institutas, livro IV, XV, 11.
194

O outro sacramento apresentado por Calvino, é a Ceia do Senhor. Para este,


a questão central em sua doutrina sacramental continua a ser o fato de o
sacramento ser sinal e selo. Porém, no tocante à Ceia do Senhor, Calvino afirma
que a questão importante a ser respondida na Ceia é como ocorre a comunicação
da carne e sangue de Jesus no sacramento.590 Interpretar o significado da
expressão de Jesus “este é o meu corpo” é o desafio para a Igreja naquele
momento histórico.
Esta questão era alvo de disputas entre os reformados: em 1529, no chamado
Colóquio de Marburgo, Zwínglio e Lutero concordaram em quatorze pontos sobre
suas doutrinas referentes ao sacramento, porém não chegaram a um consenso.
Para Lutero, o pão e o vinho são literalmente a carne e o sangue de Jesus, mas não
transubstanciados, e sim consubstanciados (então em, por e sob o pão e o vinho).
Para Zwínglio, o pão e o vinho não são naturalmente unidos como corpo e
sangue de Cristo: o corpo e o sangue de Cristo não são ligados nem
materialmente, nem sensivelmente aos elementos, sendo eles apenas símbolos ou
sinais através dos quais se tem comunhão no corpo e sangue de Cristo.
A posição de Calvino está situada entre a luterana e a zwingliana. Para o
reformador, a idéia da consubstanciação não corresponde à verdade. Porém,
Calvino entendia que o corpo e o sangue de Cristo são dados na Ceia, conforme
pensavam os luteranos.
Para Calvino, o corpo de Cristo permanece no céu, retendo suas
propriedades humanas. Cristo não vem até a Igreja, quando esta se reúne para
participar do sacramento, mas o Espírito eleva os participantes do sacramento aos
céus e, de forma espiritual, participa dos benefícios do corpo e sangue de Jesus.
Há uma presença real de Jesus, na Ceia, mas esta presença real é celestial.
Para Calvino, quando os incrédulos participam da Ceia, eles não participam
dos benefícios da mesma, já que a condição para desfrutar do dom é a fé. E esta
fé possibilita participar do grande benefício do sacramento, que é a manifestação
visível das promessas através de um sinal. Afirma o reformador:

590
OC, IX, 31-32. Ele afirma: “[...] nenhum de nós nega que o corpo e o sangue de Cristo nos são
comunicados. Porém a questão é [...].”
195

Ora, uma vez que somos tão obtusos que não O


podemos receber em verdadeira confiança de coração,
quando nos é Ele apresentado por simples ensino e
pregação, o Pai de Misericórdia, não desdenhando
condescender com a nossa fraqueza, neste particular, quis
ajuntar, à Sua Palavra, um sinal visível pelo qual
representasse a substância de suas promessas, para nos
confirmar e nos fortalecer, livrando-nos de toda a dúvida
e incerteza.591

Pela Ceia, proclama-se a corrupção da sociedade dos homens pelo pecado, o


perdão concedido a ela através do sangue e corpo de Jesus, o reencontrar com a
nova vida em Deus e o exercício contínuo da mesma. Portanto, a Ceia é um
convite a toda sociedade humana para que, no encontro com o Cristo ressurreto,
esta seja regenerada.
Para Calvino, o sacramento do batismo precede ao da Ceia, sendo este
último o sacramento daqueles que “passaram da primeira infância”.592 Ela é
conferida e renovada para que aqueles que, estando em idade de fazê-lo, possam
discernir o corpo, provando e anunciando a morte do Senhor, e os benefícios da
mesma.
Tanto o batismo quanto a Ceia prefiguram o destino da pessoa e da
sociedade. Através do batismo, a Igreja anuncia aquilo pelo qual todo homem e
mulher devem passar para estar em paz com Deus e em comunhão verdadeira com
seu próximo. Pela Ceia, é anunciado o melhor destino para a sociedade, que é a
vida em harmonia em torno de Cristo.

3.2.5
A Igreja Visível e a Invisível

Calvino entende, por outro lado, ser a Igreja invisível o lugar em que os
eleitos, reunidos diante de Deus, formam o “corpo místico de Cristo”. A principal
distinção entre a Igreja visível e a invisível é escatológica: estas serão distinguidas
no juízo final.

591
OC, Trois Traités, V, p. 435.
592
Institutas, livro IV, XVI, 30.
196

Uma questão fundamental para Calvino, principalmente por ser uma das
marcas da verdadeira Igreja, é a questão da disciplina eclesiástica. Calvino propõe
uma comunidade cristã que vele por sua conduta e a de seus membros.593 Em
situações sérias, Calvino entende que é adequado perguntar se os infratores
realmente podem continuar pertencendo a comunidade. Neste ponto, Calvino
encontra sua justificativa em Mateus 18, onde o evangelho trata das faltas dos
membros da comunidade.594
A Igreja constitui, entre os seres humanos, uma nova sociedade, que aponta
para a sociedade secular a condição desta se plenificar e alcançar a dignidade.
Embora não sendo definitiva, a Igreja visível manifesta ao mundo o caminho para
sua redenção: assumir o senhorio de Cristo em suas ações pelo comportamento
ético e pelo recebimento dos dons de serviço. Afirma Calvino:

A comunhão dos santos [...] exprime muito bem a


qualidade da Igreja; como se fosse dito que os santos são
congregados à sociedade de Cristo sob tal condição, que
devam mutuamente comunicar entre si todos os dons que
lhes são conferidos por Deus. Contudo, nem por isso
impedida é a diversidade de graças.595

Por ser a Igreja, ainda que imperfeita na sua dimensão visível, o centro da
restauração da sociedade humana, a sua ação encontra repercussão em todos os
lugares em que ela está inserida. Por isto ela deve se ocupar em preservar sua vida
cúltica, e os membros, individualmente, devem honrá-la com seu procedimento, e
as fronteiras da Igreja devem se estender até os confins cumprindo, assim, sua
missão de paradigma da sociedade humana.

593
Para Calvino, os magistrados devem estar debaixo da jurisdição espiritual do consistório nas
questões espirituais – ou seja: o Estado é formado por cidadãos cristãos, sendo a vida pessoal
regida pela religião. Ver: A. Dakin, Calvinismo (Filadelfia, 1946), p. 162.
594
“Foi em meados de 1541 que Calvino regressou a Genebra. Uma de suas primeiras ações foi
redigir as Ordenanças Eclesiásticas, que foram aprovadas, pouco meses depois, pelo governo da
cidade, se bem que com algumas emendas. Segundo se estabelecia nelas, o governo da Igreja
ficava principalmente nas mãos do Consistório, que era formado pelo pastores e por doze leigos
que recebiam o nome de "anciãos". Visto que os pastores eram cinco e os leigos eram a maioria no
Consistório. Porém, apesar disso o impacto pessoal de Calvino era tal que quase sempre esse corpo
seguia suas orientações e seus desejos.” Gonzalez, Justo, A Era dos Reformadores, p. 174.
595
Institutas, livro IV, I, 3.
197

A manifestação parcial do reino de Cristo através da Igreja deve começar já,


sendo esperado pela Igreja e sociedade humana a manifestação do reino
escatológico.596

3.2.6
Eclesiologia e Missiologia Calvinista

Para o reformador, Jesus Cristo é a única e definitiva solução para todo ser
humano. Em Genebra, Calvino envida todos os esforços para proclamar a fé no
genuíno evangelho. Usou abundantemente a imprensa, na qual, onde em 1557
autorizou que seus sermões fossem publicados, o que aconteceu em diversas
línguas. O teólogo inglês John Stott corrobora com a posição de Calvino, quando
observa que “uma das melhores maneiras de compartilhar o evangelho com os
homens e as mulheres de hoje é apresentá-lo em termos de liberdade”.597A Igreja
de Genebra foi moldada pela proclamação de um pastor: Calvino. Através das
pregações, foram resolvidos uma a uma as questões necessárias para a
implantação da Reforma, em Genebra, como Calvino a idealizou. Após anos de
serviço religioso e manifestação das suas concepções pelo púlpito da principal
Igreja da cidade, havia, em Genebra uma identidade eclesial particular em suas
texturas, mas identificada com a Reforma Protestante nos seus valores basilares.
Isto deixava a porta aberta para a vinda de reformados de vários recantos da
Europa para Genebra, que se tornou cidade de refúgio para estes.

596
“De tal natureza é o Reino de Cristo, que cresce todos os dias e aumenta mais e mais;
entretanto, não é ainda perfeito, e não o será antes do final do dia do Juízo. Destarte, verdadeiros
são um e outro, a saber, que desde agora todas as coisas estão sujeitas a Cristo e, todavia, que esta
sujeição não será completa, até o dia da ressurreição, pois que será perfeito, então, o que não está
agora, senão apenas começando.” Pastorais, 2.10.
597
STOTT, John. Ouça o Espírito, ouça o mundo: como ser um cristão contemporâneo. São
Paulo: ABU, 1998, p. 50. Para Stott Jesus Cristo é retratado no Novo Testamento como o supremo
libertador do mundo.
198

Calvino possuía uma consciência missionária, pois, sabedor de que a Igreja


era e é sinal do Reino de Deus na História, o anúncio do evangelho libertador de
Jesus Cristo era a missão da Igreja e precisava alcançar as extremidades da terra.
Falando sobre a Grande Comissão, ele diz: "O Senhor ordena aos ministros do
evangelho que preguem em lugares distantes, com o propósito de espalhar a
salvação em cada parte do mundo."598
Há inúmeras evidências dessa posição de Calvino. Por exemplo, refletindo
sobre 1 Tm 2.4, ele declara: "Nenhuma nação da terra e nenhum segmento da
sociedade está excluído da salvação, porque Deus deseja oferecer o evangelho a
todos e sem nenhuma exceção."599 A universalidade da mensagem de Cristo
permite entender melhor que a concepção calvinista de eleição, não obstante
parecer restringir a ação evangelística, não surtiu este efeito, na teologia do
Reformador, pelo contrário, a ação missionária, por parte dos protestantes, teve
um impulso inicial a partir da pregação e estímulo de Calvino com seus alunos da
Academia de Genebra.
Para se compreender a perspectiva missionária de Calvino dentro da sua
visão eclesiológica, é importante ter por pressuposto que o ensino calvinista sobre
o método ordinário de “tornar coletiva a Igreja” é por meio da voz exterior dos
homens – a pregação da Palavra; “porque Deus mesmo pode trazer por sua secreta
influência, no entanto, ele ainda emprega a agência do homem e desperta, em nós,
uma ansiedade sobre a salvação um do outro”.600 Portanto, ao estimular o trânsito
de membros da Igreja genebrina e das outras nações que iam estudar em Genebra
pelo mundo não reformado, Calvino procurou, pela pregação destas pessoas,
despertar os eleitos e disseminar o ideal Reformado, não só na Europa, mas
também em todo o mundo conhecido.601

598
Comentário aos Sinóticos, p. 384.
599
Comentário às Pastorais, pp. 54-55.
600
Comentário em Isaías 2:3.
601
Por isto, Calvino afirma que Deus não irá mostrar “[...] apenas em um canto, o que a verdadeira
religião é, mas Ele enviará Sua voz aos limites extremos da terra”. (Ver: Comentário em Miquéas
4, 3). Para Calvino, o evangelho “não cai das nuvens como chuva”, no entanto, ele é “trazido pelas
mãos de homens que vão aonde Deus os mandou” (Comentário em Romanos 10,15). Calvino
ainda afirma ser uma “honra de constituir Seu Filho governador do mundo inteiro” (Comentário
nos Salmos 2,8).
199

3.2.7
A Eclesiologia e a Liberdade Cristã

Dentro destas idéias, proclamadas dominicalmente por Calvino, a


eclesiologia foi unida e relacionada às doutrinas (já difundidas por Lutero) de
liberdade cristã. O exercício para a compreensão da relação entre a doutrina
eclesiológica de Calvino e sua concepção de liberdade cristã passa, também, pela
compreensão do tema e da natureza da Igreja.
A Igreja deve, para manter sua condição, promover o correto ministério dos
sacramentos, a fiel pregação da Palavra e a aplicação da disciplina eclesiástica.
Estes três elementos sugerem, num primeiro momento, o tolher das liberdades
civis na cidade de Genebra.
De fato, não havia possibilidade, em Genebra, de assumir uma postura
eclesiástica que ferisse princípios basilares da doutrina cristã e reformada:
questões controversas sobre Trindade, temas soteriológicos e da ortopraxia eram
vistos com rigor, pois eram entendidos como distintivos. A tensão entre a
necessidade de promover a liberdade e a libertação das pessoas das doutrinas
escravizantes, da pobreza e de outras marcas do seu tempo, contrastavam com o
rigor doutrinário e a vigilância quanto à observância dos mesmos.
Neste aspecto, a liberdade é compreendida como realidade obtida pela
obediência: em primeiro lugar, é necessário ser da Igreja, e depois é que a
liberdade é possível. A liberdade tem, por ponto de partida, Deus e nada fora dEle
é possível. A Igreja se transforma, assim, no local que promove a liberdade à
medida que promove a submissão das pessoas a Deus.
A disciplina exercia um papel importante nesta manutenção da liberdade:
visava a promover a liberdade a partir da repressão à impiedade. Calvino entendia
que aqueles que agiam com impiedade, o faziam, porque eram escravos do
pecado, distintamente daqueles que agiam piedosamente, porque eram livres para
agir ou não assim. O ser humano “em Cristo” é aquele verdadeiramente livre para
obedecer a Deus, pois, ontologicamente, esta é a única possibilidade de liberdade.
200

Na prática, quando reunido, o consistório não agia na liberdade dos


indivíduos como cidadãos. Mas, quando membros da Igreja de Genebra, estes
deveriam se sujeitar ao código de conduta da mesma, sob pena de ter sua
liberdade individual cerceada – como se o estado de escravidão, que é ontológico,
fosse, pela ação disciplinar, retratado para o arrependimento do culpado e
conscientização do mesmo. Se isso não acontecesse, ele era julgado no tribunal e
condenado, algumas vezes à morte – como se estivesse dizendo que, por esta
atitude, não há possibilidade de vida para aqueles que transgridem o código de
ética da Igreja genebrina.
É claro que este sistema não era adequado, se analisado segundo o nível de
comprometimento religioso e de poder de cerceamento da Igreja nas atuais
sociedades ocidentais. Mas vê-se que a Igreja e suas autoridades eram vistas como
um dentre os poderes de cerceamento da liberdade individual – e era vista sob
uma perspectiva medieval.
Por outro lado, o sistema de gestão eclesiástica de Genebra promovia o
indivíduo através da assistência multifacetada: assistência médica, educação,
promoção de moradia etc. Esta conduta de promoção do indivíduo objetivava
promover a sua liberdade. As ações, em Genebra, objetivam tornar o indivíduo
capaz de gerir sua família e sua casa. Dentro desta perspectiva, o poder
eclesiástico era duo: promovia não só a coerção social, mas também a
reintegração do indivíduo através da ressocialização. Portanto, fica claro que há
certas tarefas que devem ser cumpridas em cada comunidade local. Algumas
pertenciam ao âmbito do governo e outras focavam dimensões diaconais.
A sociedade genebrina não era despótica e intolerante. Por esta razão,
tornou-se uma cidade de refúgio. Isto é a demonstração de que a liberdade era
entendida como coerência confessional, sendo esta tolerância estendida até o dia
em que ocorriam convulsões sociais.
201

Esse novo homem, reconciliado com Deus, através de Jesus Cristo, mediante
a fé, agora é inserido na vida do Cristo, vivendo em novidade de vida, como nova
criação de Deus.602 Por meio de Jesus Cristo, o homem recriado passa a fazer
parte do seu Corpo visível, a Comunidade da Fé, a Igreja, lugar a partir do qual
vai exercitar o seguimento de Cristo, no fiel cumprimento da missão que lhe foi
confiada.603 Mesmo vivendo a dialética de sua natureza, sua nova vida tem início,
benefícios, desafios e implicações desde agora, visto que, mesmo sendo nova
criatura, tirado do mundo, é imediatamente enviado ao mundo, a fim de que seja
agente de proclamação do espaço de libertação e de liberdade.604
Nas palavras do reformador, encontramos o seguinte:

Cristo veio para restaurar à sua integridade tudo


quanto havia sido corrompido por Adão [...] Cristo,
então (cujo mister é devolver-nos o que perdemos em
Adão), é-nos causa de vida, e Sua ressurreição é a
substância e o penhor da nossa ressurreição.605

É no espaço eclesial, em sua dimensão de mundaneidade, que o cristão


comprova e atesta sua justificação, visto que vive, agora, para glória de Deus,
demonstrando-a através de sua nova vida.606 “O objeto da regeneração [...] é
manifestar, na vida dos crentes, uma harmonia e concordância entre a justiça de
Deus e a obediência deles e, assim, confirmar a adoção que eles receberam como
filhos”607, diz o reformador. A ação regeneradora do Espírito Santo, no indivíduo,
é ato e processo608, restaurando a imagem de Deus em sua vida.609 As boas obras
são o resultado final na vida cristã, como resposta à justificação.610 As boas obras
hão de ser praticadas na ambiência da vida, na concretude da história humana,
sempre na direção do outro, do próximo, razão pela qual a liberdade cristã ganha
verdadeiro significado.

602
BIÉLER, André. op. cit., p. 279.
603
Ibidem, p. 280.
604
Ibidem, p. 282.
605
CALVINO, João. Comentários ao Novo Testamento, 1 Co 15.20.
606
Institutas, livro III, caps. 6 a 10.
607
Institutas, livro III, cap. 6, seção 1.
608
CR, 77:312.
609
CR,79:208.
610
Institutas, livro III, cap. 18.
202

Em outras palavras, implica afirmar que a nova vida em Cristo é,


essencialmente, uma vida social, tendo a Igreja como primeiro espaço e a
sociedade como extensão de tal espaço.611 A missão da Igreja de Cristo nasce
exatamente nesse contexto.612 A Igreja é, portanto, a continuação da missão de
Cristo, proclamando e vivendo o Evangelho.613
Na verdade, Calvino lutava por uma liberdade fundamentada no Evangelho
de Jesus Cristo, que trazia em si grandes e profundas implicações éticas no
seguimento de Jesus, mas que, ao mesmo tempo, tal Evangelho conduziria o
homem à verdadeira liberdade.
Mesmo tendo que considerar toda moldura sociocultural-religiosa de sua
época, Calvino não pode ser considerado, como em nossos dias, um
fundamentalista radical, nem um liberal, mas um homem à frente do seu tempo,
obcecado pela vivência de um cristianismo capaz de transformar integralmente o
ser humano, libertando-o completamente, a fim de que este – ser humano -
pudesse influenciar todos os setores da sociedade, desde a cultura até as questões
religiosas, conseqüentemente passando pela dimensão ética. E foi isso que
aconteceu. Genebra experimentava uma revolução religiosa, com seus templos
cheios e a fé cristã praticada pelas famílias. O ensino da Palavra de Deus era uma
tônica do reformador. “A cidade progrediu debaixo de seus conselhos”.614 Desde a
urbanização até as políticas públicas de saúde e trabalho, passando pela criação de
asilos, hospital e o combate à ociosidade, providenciando trabalho para todos.
Percebia-se, então, que as leis, vazadas pelo conteúdo do evangelho, ainda que
rígidas, resultaram em justiça social e elevado nível de vida moral. Genebra
tornou-se um verdadeiro refúgio para os perseguidos de toda parte.
A Igreja genebrina ainda assumia a posição de influência junto às outras
Igrejas Protestantes, espalhadas pela Europa. Calvino pessoalmente fez esforços
para reunir diferentes correntes evangélicas. Em 1549, procurou um consenso com
os zuriquenses no que tange à Santa Ceia (Consensus Tugurinus ou Consenso de
Zurich).

611
BIÉLER, André. op. cit., pp. 334-335.
612
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. op. cit., p. 600.
613
Ibidem, idem, p. 600.
614
LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 169.
203

É neste consenso que nasce, de fato, a concepção Reformada da


eucaristia.615 Ao vislumbrar a Igreja nesta perspectiva universal, o reformador
demonstra que, além dos guetos confessionais, está o interesse comum na
promoção do Evangelho, conseqüentemente, da liberdade proporcionada por este.
Quando o movimento faz concessões sem relevar pontos fundamentais da
confissão, esta flexibilização doutrinária prepara o diálogo inter-religioso,
incipiente manifesto nas missivas do reformador. Apenas uma mentalidade sujeita
às perspectivas de benefícios universais a partir das crenças teônomas, fazendo
dela uma teonomia flexível, e não restritiva, poderia operar influências em
culturas por vezes díspares, respeitando manifestações locais da fé e piedade. Este
exercício libertário é uma contribuição importante do calvinismo e explica a sua
propagação como força cultural.
Porém, cabe afirmar que as instituições eclesiásticas genebrinas não eram
perfeitas, em conexão com a imperfeição doutrinária do Reformador. O
sacramento da Ceia nunca pôde ser celebrado, como gostaria o reformador,
semanalmente. Por mais que isto fosse desejado, a sujeição da Igreja ao Estado
produziu o impedimento a isto. A instituição democrática impediu o exercício
livre do direito do pastor de celebrar o sacramento da Ceia com a periodicidade
que desejava.

615
Esta é a concepção reformada calvinista de sacramento: "Deus nos deixou um legado para nos
assegurarmos de sua constante benevolência. Por tal motivo, ele deu aos seus filhos o segundo
sacramento, através da mão do seu Filho Unigênito: a Santa Ceia em que Cristo dá testemunho de
que é o Pão da Vida, o pão pelo qual nossas almas são alimentadas até a verdadeira e ditosa
imortalidade. Primeiro: os símbolos de que este sacramento fala são o pão e o vinho: eles são o
alimento invisível que recebemos do corpo e do sangue de Jesus Cristo. Segundo: o único alimento
da nossa alma é Cristo, e por isto o Pai celestial nos dirige para que sejamos parte dEle, para que
sejamos consolados e possamos reunir nossas forças até que cheguemos à imortalidade celestial. O
mistério da união secreta de Cristo com os fiéis, sem dúvida, é incompreensível por natureza, por
isso é que Deus nos revela uma imagem ou representação do mistério em sinais visíveis, adaptados
maravilhosamente ao nosso baixo nível. De certo modo, dá-nos legados e indícios que nos dão a
mesma certeza como se o víssemos com nossos próprios olhos. Porque é uma parábola conhecida
que penetra nas mentes sensíveis: nossas almas são alimentadas por Cristo da mesma forma que o
pão e o vinho mantém a vida do corpo. Com isto fica claro qual o objetivo desta bênção secreta:
ela nos assegura que o corpo do Senhor foi sacrificado para nós, para que, agora, o conheçamos
como alimento celestial e para que este gozo seja vivenciado na força deste sacrifício único. E que
Seu sangue foi derramado por nós, de maneira que seja sempre nossa bebida. Por isto chama o
cálice de ‘aliança do meu sangue’ (Lucas 22.20; 1 Coríntios 11.25). Porque cada vez que nos dá de
beber Seu santo sangue, renova-se a aliança que confirmou com Ele, melhor dizendo: é como se
reforça a fé. As almas piedosas podem receber numerosos frutos de confiança e amor deste
sacramento, porque têm o testemunho de que somos um só corpo com Cristo, e que o todo que ele
é, podemos entender como sendo parte de nós.” Institutas, livro IV, 17, 1 e 2.
204

Além disto, percebe-se, em Genebra, uma cisão entre poder religioso e


secular que nem sempre operou eficientemente a promoção da liberdade. As
discordâncias doutrinárias, quando culminam no cerceamento da liberdade e até
no ceifar da vida, é a manifestação da intolerância. Mas cabe, aqui, o
questionamento de Max Weber: “Se o sistema eclesiológico genebrino tolhia
liberdades individuais, porque as pessoas se sujeitavam a ele?”616 A resposta dada
por Weber é adequada: “Porque havia consonância e concordância. Havia o
desejo, por parte dos grupos sociais, na promoção desta Reforma, já que o
paradigma anterior a esta era muito pior.”617
Ainda é necessário entender se a dicotomia entre Igreja visível e invisível é
manifestação de liberdade. Certamente ela apresenta uma distinção conceitual que
vai culminar numa distinção prática. A impossibilidade de identificação desta
Igreja, que é “corpo místico”, de forma última leva a religiosidade ao nível
meramente simbólico. Este nível simbólico impede a definição de lastros que
gerem segurança, o que permite a manifestação de outros sistemas eclesiológicos
com caráter mais imanente. Foi o caso do movimento anabatista, que, através da
prática do rebatismo de católicos, do anúncio escatológico e da estrita ética social
comunitarista, foi rechaçada por Calvino.
Em contraste a estes elementos, temos outros que corroboram com a idéia de
liberdade. A primeira concepção é a liberdade vocacional: não é mais pelo direito
consuetudinário, nem pela indicação por razões particulares, nem mais pela
formação que os ofícios são exercidos. O critério para assumir um ofício, em
Genebra, é a vocação. Qualquer pessoa, sentindo-se vocacionada, poderia se
inserir na vida pública através dos ofícios, fossem eclesiásticos, fossem seculares.
É um avanço apenas obtido no século XX pela maior parte das instituições e
Estados. Havia nisto um lugar privilegiado para a mulher, que podia exercer o
diaconato e exercer seu ofício livremente. Mesmo não havendo estímulo para a
vocação do ministério pastoral ordenado para as mulheres, não havia outro grupo
que valorizava demasiadamente a mulher como o grupo de Igrejas Reformadas. A
obra de educação religiosa e secular, o exercício da administração civil e religiosa
e o ministério ordenado tinha, na mulher, a sua possibilidade de expansão.

616
WEBER, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, p. 44.
617
Ibidem.
205

Um dos grandes elementos libertários na práxis calvinista é o exercício da


educação. O educador é visto como uma figura autoritativa, e esta autoridade está
ligada não meramente ao ofício, mas também ao exercício do mesmo, que
possibilitava a ascensão social dos membros da sociedade genebrina mais
privilegiadas. Havia, em Genebra, a disseminação do ensino, fazendo desta
localidade um dos principais centros educacionais da época, alcançando o respeito
dos nascentes Estados nacionais.
Porém, a concepção da Igreja como paradigma do mundo, manifestando a
este o favor de Deus e apontando o caminho para a solidariedade e verdadeira
devoção, é a maior contribuição eclesiológica de Calvino para a concepção de
liberdade. Quando são derrubadas as barreiras físicas e a Igreja é entendida como
o lugar em que, pela vida ou pela pregação, o Reino se manifesta, Calvino retoma
uma concepção neotestamentária de Igreja, em que esta não está circunscrita ao
seu corpo institucional ou à sua edificação física, mas esta é uma “maneira de ser
no mundo”. A partir da sua compreensão eclesiológica de Igreja como lugar de
restauração da sociedade, esta assume uma natureza dialogal. Os sacramentos
como modelos de posição diante de Deus – fé, e diante da sociedade – justiça –
constituem mais uma evidência da intercontextualidade e atualidade do
pensamento calvinista. Através desta dinâmica relacional, é possível perceber que
até a Igreja Visível, imperfeita, tem profundo valor. Rompe-se, aqui, o problema
da dicotomia entre Igreja visível e invisível como concepção meramente abstrata e
especulativa, e passa este conceito a ser uma condição inerente à própria natureza
transitória da Igreja. Calvino, em sua eclesiologia, oferece a possibilidade da
Igreja, pela ética do evangelho, ser não apenas a consciência do Estado, mas
também da sociedade como um todo.
206

3.3
A Cristologia de Calvino e a Liberdade Cristã dela decorrente

A cristologia de Calvino é o ponto de encontro entre a sua antropologia e a


sua eclesiologia. No pensamento do reformador, o ser humano decaído e
totalmente depravado encontra, em Cristo, sua redenção e seu modelo. A Igreja é
corpo místico de Cristo, sendo a manifestação terrena de seu governo. Pela
cristologia de Calvino, analisaremos a sua visão de liberdade e a sua perspectiva
sobre a liberdade manifesta em Jesus.
A importância da cristologia calvinista reside no fato de que ela apresenta
três elementos que manifestam sua eficiência como corpo de doutrinas que
produzem a liberdade. Em primeiro lugar, a cristologia calvinista está em
consonância com a tradição cristológica da Escritura e da tradição. Em segundo
lugar, esta cristologia apresenta implicações práticas para o exercício da vida
cristã individual ou comunitária. Em terceiro lugar, esta cristologia manifesta o
propósito redentivo que guiou a práxis religiosa em Genebra. Calvino era
promotor de uma cristologia conservadora, porém o seu entusiasmo estava
dirigido, concentrado e direcionado a uma causa: espalhar, entre todos, o
conhecimento de Deus e de Seu filho Jesus.
A observação sobre a cristologia passa pela visão calvinista de que Cristo
exerce uma função soteriológica: Ele é o Mediador. E além da mediação, é
possível perceber, em Sua manifestação, duas áreas importantes de análise: a
pessoa de Cristo e Sua obra que é, necessariamente, de redenção e/ou juízo.
Para a observação da cristologia calvinista, o primeiro passo é, porém, o
destacamento das fontes e sua classificação, de onde são extraídas as doutrinas
pelas quais se desenhará a perspectiva de liberdade no reformador.

3.3.1
Fontes

As fontes para a compreensão da cristologia de Calvino são diversas, já que


este é um tema caro para o teólogo.
207

Em primeiro lugar, as Institutas tratam, em seu segundo livro, sobre o


conhecimento de Deus como Redentor e inclui a queda, o pecado, a lei, o AT e o
NT e Cristo, o mediador – Sua pessoa e obra. Estas temáticas são encadeadas para
demonstrar a visão que o reformador tinha sobre Cristo: toda a história converge
para Ele, de tal maneira que todos os fatos que precederam à encarnação apontam
para a necessidade do Redentor. Vê-se o centro cristológico na teologia calvinista,
que entende que a humanidade, as sociedades humanas e as Escrituras apontam
para o necessário relacionamento com Cristo.
Em segundo lugar, os comentários de Calvino, principalmente os seus
comentários sobre os evangelhos e epístolas, revelam a importância do tema
cristológico, porém aqui de uma maneira aplicada à vida das comunidades, de
uma maneira não tão abundante como nas Institutas. A partir de sua visão sobre
quem é Jesus, Calvino propõe implicações do evento Cristo e da Sua pregação.
A terceira fonte são as cartas, que vez ou outra tratam de temáticas
cristológicas, mas de forma menos enfática e menos densa. Majoritariamente, a
questão é tratada num contexto em que outras temáticas também são.

3.3.2.
Cristologia Calvinista e Tradição

As concepções cristológicas cristãs são resultado da compreensão da Igreja


sobre o evento Cristo. Ao tentar entender a figura histórica de Jesus, Sua
profundidade, Sua natureza, origem e destino, a Igreja formulou, no decorrer dos
séculos, explicações, dogmas, doutrinas, assertivas. A partir do evento Cristo, a
Igreja elaborou suas reflexões e se colocou diante do mundo como Igreja Cristã.
Urge entender, em primeiro lugar, que as doutrinas cristológicas tradicionais
tiveram início com o próprio Cristo, mediante Seu ensino. Este foi interpretado
pela Igreja, que se apropriou dos Seus ensinos e assumiu o querigma, ou seja, a
proclamação dos mesmos. Esta proclamação está exposta nos escritos que a
Igreja, mais tarde, definiu serem canônicos, autoritativos para a fé.
208

A cristologia, nestes documentos, é uma cristologia complexa, ainda não


definida em muitas das suas nuances, lacunar em seus desenvolvimentos.618
Porém apresenta a maior parte das questões fundamentais, ainda que de maneira
incipiente.
O período dos chamados Pais da Igreja é fundamental, pois, mediante a
recepção desta tradição de origem apostólica presente no NT, os primeiros autores
cristãos refletiram sobre Cristo com o claro objetivo de divulgar a fé e torná-la
conhecida – mas também corrigir aspectos doutrinários que aviltavam a Pessoa e a
Obra de Cristo, principal preceptor da Igreja Cristã.
Neste ímpeto em preservar a doutrina dos aviltamentos ou subserviências
diante das filosofias e concepções com as mais distintas motivações e origens,
sedimentou-se uma cristologia que, não obstante não possa reconhecer muito mais
elementos imanentes e humanos em Jesus, afirma Sua glória e exaltação.
As decisões conciliares, nos Concílios da Igreja, ocorridos em diferentes
localidades (Nicéia, Constantinopla, Éfeso, Calcedônia),619 demonstram que a
questão cristológica teve, nestes momentos essenciais de solidificação da fé,
importância fundamental.

618
Estas deixam de fora, ou então tratam de forma assistemática, as questões posteriormente
tratadas pela Igreja. Este fato fica comprovado na elaboração, desde muito cedo, de credos: os
mais antigos são o Credo Apostólico e o Batismal. O Credo Apostólico se desenvolveu a partir das
afirmações antigas, usadas no Batismo. Quando os candidatos, em sua incorporação na Igreja,
eram levados diante da assembléia, confessavam sua fé em Deus, Pai e Criador; em Jesus, o Filho
de Deus e Senhor, que nasceu da Virgem Maria, morreu na Cruz e ressurgiu, o qual virá
novamente em glória para julgar todas as coisas e no Espírito Santo. O credo batismal é uma
expressão simples e direta da fé e é ainda usado, hoje em dia, na Liturgia Batismal e nos Ofícios
diários da Manhã e da Tarde.
619
Os concílios realizados pela Igreja, os chamados ecumênicos (universais), somam 21,
importantíssimos na sua História, tendo em vista as definições da doutrina. Os mais importantes
para as Igrejas Reformadas são os oito primeiros, a saber: Concílio de Nicéia I, que ocorre entre 29
de maio e 25 de julho de 325, sob a direção do Papa Silvestre I (314-335); o Concílio de
Constantinopla I, ocorrido entre maio e junho de 381, sob a direção do Papa Dâmaso I (366-384);
o Concílio de Éfeso, com data entre 22 de junho e 17 de julho de 431, sob a direção do Papa
Celestino I (422-432); o Concílio de Calcedônia, com duração entre 8 de outubro e 1 de novembro,
sob a direção do Papa Leão I, o Grande (440-461); o Concílio de Constantinopla II, ocorrido entre
5 de maio e 2 de julho de 553, sob a direção do Papa Virgílio (537-555); o Concílio de
Constantinopla III, ocorrido entre 7 de novembro de 680 a 16 de setembro de 681, sob a direção
dos Papas Agato (678-681) e Leão II (662-663); o Concílio de Nicéia II, ocorrido entre 24 de
setembro a 23 de outubro de 787, sob a direção do Papa Adriano I (772-795); e o Concílio de
Constantinopla IV, datado entre 5 de outubro de 869 e 28 de fevereiro de 870, sendo dirigido pelos
Papas Nicolau I (858-867) e Adriano II (867-872). Porém, para a cristologia de Calvino, é
fundamental o resultado dos seis primeiros concílios ecumênicos.
209

As teologias surgidas na Reforma, portanto, precisavam considerar todo este


desenvolvimento cristológico: o desenvolvimento escriturístico, o patrístico e,
especificamente neste, o conciliar – pelo menos dos Concílios ecumênicos, em
que os dados majoritários da tradição cristológica foram sedimentados.
Neste particular, Calvino, em sua cristologia, não tem como tema
fundamental o conhecimento à respeito da essência do ser de Jesus, mas sim a
compreensão do seu papel como Mediador dos seres humanos, especificamente
dos eleitos. O reformador afirma:

O que nós temos dito a respeito de Cristo está


referido com um objetivo: condenados, mortos e perdidos
e nós mesmos, nós precisamos de justificação, libertação,
vida e salvação nEle, segundo aquilo que a nós afirma
Pedro: “E não há outro nome debaixo dos céus dado entre
os homens pelo qual nós seremos salvos.”620

O conceito de revelação através de Cristo é um dos múltiplos exemplos de


que existe um componente relacional, pretendido através da cristologia.
Por não entender que a sua cristologia era propriamente sua, mas uma
exposição da sua compreensão a partir das Escrituras, Calvino afirma ser
necessário um Mediador que se acomode à finitude e limitação humanas, tanto de
entendimento quanto de aporte ontológico. É impossível o finito compreender o
infinito. O limitado, o ilimitado. Por isto, em sua relação com o ser humano, Jesus
se manifestou como homem, tornando possível assim a relação com a
humanidade. Este pensamento de Calvino está em perfeita consonância com a
tradição da Igreja. Percebe-se, aqui, a apropriação, na teologia calvinista, da
afirmação do símbolo de Calcedônia, na expressão dogmática o finito não é capaz
do infinito (finitum non capax infinitum est).
Calvino aplica a doutrina da dupla natureza de Cristo e da manutenção da
mesma, após a ressurreição, à doutrina da concepção sacramental ao afirmar que,
por estar nos céus, o Espírito, para que os crentes tenham comunhão verdadeira
com Cristo no sacramento, tem sua natureza soerguida, conduzida espiritualmente
para o lugar em que Cristo está. Portanto, percebe-se, aqui, os passos na
apropriação calvinista dos dados cristológicos traditivos: apropriação, atualização,
aplicação.
210

A questão das duas naturezas de Cristo, neste particular, é muito importante.


Calvino tinha uma perspectiva por demais ortodoxa das duas naturezas. Ao
contrário dos maniqueus e dos marcionitas,621 Calvino afirmava ter Jesus uma
natureza carnal e ter também a natureza divina.
Pensava assim contrariamente também aos arianos, monofisistas e
nestorianos, pois afirmava que Jesus procedia eternamente do Pai, sendo gerado,
não feito, e dotado após a encarnação de duas naturezas distintas e
indissolúveis.622 Calvino também reúne no livro II, capítulo 13, capítulos 1 e 2,
refutações às idéias de Menno Simons – marca evidente do caráter apologético da
sua reexposição da ortodoxia anteriormente exposta nas decisões dos concílios
ecumênicos.623

620
Institutas, livro II, 16, 1.
621
Calvino fala sobre os maniqueus em Institutas, livro II, 13. 1. Estes são ligados a Mani, persa
nascido no terceiro século, que combinou elementos do zoroastrismo com outras religiões persas e
o cristianismo. A principal característica dos maniqueus é seu dualismo: o universo está sob a
constante influência de duas forças: o bem e o mal. Quanto à Marcion, este viveu em Roma em
150, e é conhecido por ter rejeitado o Antigo Testamento e ter construído um cânon do Novo
Testamento com 10 epístolas paulinas e o evangelho de Lucas modificado: com a exclusão de
citações/referências veterotestamentárias. Ele rejeitou todas as alegorias (TERTULIANO,
Adversus Marcion, II, 19, 21, 22; IV, 15, 20; ORÍGENES, Commentaries in Matthew, XV, 3).
622
Calvino é contrário ao arianismo, ao monofisismo e ao nestorianismo, seguindo integralmente a
tradição calcedoniana. Segundo a definição do Concílio de Calcedônia, Cristo possui as duas
naturezas, a humana e a divina, sem que a união anule a diferença. Essa definição ataca o
monofisismo, que afirmava ter Cristo apenas uma natureza. A definição também é contrária ao
arianismo, principalmente no símbolo quando afirma: “[...] nascido do Pai, antes de todos os
séculos, segundo a Sua divindade [...]”. Também é contrária ao nestorianismo quando afirma
serem as duas naturezas distintas, mas unidas indissoluvelmente. Ver: ESPINOSA, Fernanda.
Antologia de textos históricos medievais, p.59.
623
Na primeira parte do capítulo 1, Calvino começa declarando que Jesus é verdadeiro homem,
refutando heresias antigas do Novo Testamento, como o dualismo gnóstico. Após isto, passa a
refutar seus contemporâneos. Destes, o principal é seu contemporâneo Menno Simons (1496-
1561), que tem tendências marcionitas. Calvino conhece as posições de Simons, que foram
publicadas, na Alemanha, em dialeto do norte, porém foram combatidas em panfletos publicados
por Martin Micron. As obras de Menno Simons sobre a encarnação (WENGER, J.C. (ed),
Complete Works of Menno Simons, traduzida do alemão por L. Verduin, com biografia escrita por
Harold Bender, p. 25) foram refutadas por John a Lasco, obra cujo título é Defensio verae...
doctrinae de Christi incarnatione, foi enviado para Calvino por Albert Hardenberg de Bremen em
1545. Menno argumentou contra seus opositores pelas obras The Incarnation of Our Lord (1554),
op. cit., pp. 783-943; Reply to Martin Micron (1556); Epistle to Martin Micron (1556).
211

Como no Concílio de Nicéia, ele afirma ser Cristo inteiramente Deus e


Homem. A disputa em Nicéia foi gerada a partir do pensamento de Ário,
presbítero de Alexandria, nascido em 250 e morto em 336, que explanou sobre a
doutrina trinitária num concílio em Alexandria, em 318. Nesta situação, ele
afirmou ser o Filho (Cristo) um ser criado. Teve início com isto uma grave
discussão cristológica sobre a eternidade, consubstancialidade e,
conseqüentemente, sobre a Trindade. Atanásio de Alexandria, nascido em 250 e
morto em 373, opôs-se às concepções arianas. Com a aquiescência de Alexandre,
bispo de Alexandria, a doutrina ariana foi refutada. Porém, a questão foi tratada
no Concílio Ecumênico de Nicéia. O consenso a que chegaram os membros do
Concílio foi que Jesus é consubstancial com o Pai (homoousias), e não
coessencial (homoiousias). O fato de muitos serem ainda tendentes ao credo que
tinha uma visão coessencial, esvaziou a aplicação prática da doutrina formulada, o
que culminou em múltiplos exílios sofridos por Atanásio.
No entanto, entre 325 e 337, a decisão ainda foi mantida satisfatoriamente,
porém com a aquiescência de Constantino, a partir de 337, o arianismo passou a
ser favorecido, mantendo-se, assim, até 361. A partir de 381, há um reavivamento
da compreensão nicena, principalmente com a aquiescência a ela dos três Pais
capadócios (Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa e Basílio de Cesaréia).
Houve a adição pneumatológica à discussão, sendo defendida que o Pai, o Filho e
o Espírito eram três pessoas (hypostases) em um único ser (essência ou
substância). Calvino defende a posição nicena e, nisso, assume a ortodoxia
católico romana do seu tempo. Subscreve as decisões deste Concílio em diversas
passagens das Institutas, nas quais ataca diretamente o pensamento ariano.624

624
Ário dizia que Cristo é Deus, mas murmurava que Ele foi criado no princípio. Ele dizia que
Cristo é um com o Pai, mas sussurrava secretamente nos ouvidos dos seus partidários que Ele era
unido com o Pai como qualquer outro crente, sem ter nenhum privilégio (Institutas, livro I, 13,5);
Ver também: Institutas, livro I, 13, 29; IV, 4; II, 14, 1; IV. 5. 6.
212

Também é significativo, para Calvino, o Concílio de Constantinopla,


ocorrido em 381. Este foi o segundo Concílio ecumênico, e Calvino conhece e
subscreve seu credo. Este Concílio ocorreu sob o reinado de Teodósio, sendo
neste reafirmada a decisão de Nicéia e adicionada a questão pneumatológica,
sendo resolvida a primeira grande e profunda questão cristológica universal da
Igreja.625 Porém, esta discussão, retomada por Calvino em oposição aos arianos do
seu tempo, particularmente Servetus, demonstra a fidelidade de Calvino à tradição
cristológica da Igreja.626
O reformador afirma que a Humanidade e a Divindade são integrais em
Jesus, insistindo na concordância com o Concílio de Calcedônia.627 Calvino
entendia não haver distinção constitutiva entre o corpo de Cristo e o do restante da
humanidade, sendo nisto opositor do apolinarianismo.628 E o reformador assume
até a posição final de Calcedônia sobre a pessoa de Cristo e subscrevendo
inclusive a doutrina da communicatio idiomatorum.

625
Antes da sua ocorrência, em 379, Teodósio tornou-se imperador e decretou ser o cristianismo a
religião oficial do Império Romano. O imperador favorecia a formulação nicena, principalmente
pela sua oposição ao paganismo e, conseqüentemente, ao esvaziamento cristológico implícito no
arianismo. Ao falar no Concílio, Teodósio defendeu a posição nicena.
626
“Calvino estabeleceu o intento de estudar durante a Escritura e publicou seu excelente
comentário sobre João. Nesta, nós conhecemos suas declarações e assertivas contra Servetus, que
pensava como aqueles a quem os antigos Pais da Igreja, pela sua experiência, combateram por
serem dois monstros: Paulo de Samósata e Ário de Alexandria, que comandaram deflagrações e
atearam fogo em todas as Igrejas do mundo cristão. Servetus foi justamente punido em Genebra,
não como um secretário, mas como um monstro, e sucumbiu devido à sua impiedade e blasfêmias
horríveis, com efeito, lançadas pelos seus discursos e escritos, num espaço de trinta anos, com os
quais ele infestou o céu e a terra.” Ver: BEZA, Theodore, The Life of John Calvin, p. 36.
627
No Concílio de Calcedônia foram combatidas concepções cristológicas já condenadas em
Nicéia, Constantinopla e Éfeso, e mais o eutiquianismo e o monofisismo. O eutiquianismo foi
apregoado por Eutiques, que afirmava a preponderância da natureza divina de Cristo, que absorveu
a natureza humana: ou seja, Cristo não é plenamente homem. Em 448, um Concílio local
condenou Eutiques. Em 449, Dióscoros, patriarca de Alexandria, foi até Éfeso defender o
pensamento eutiquiano. Em sua defesa, ele declarou a doutrina da única natureza de Cristo: a
divina (monofisismo). O papa Leo opôs-se a ambos (Eutiques e Dióscoros), porém o imperador
Teodósio II tolerava o pensamento eutiquiano e monofisista. Em 28 de Julho, Teodósio II falece,
sendo sucedido por Pulcheria, convocando o Concílio de Calcedônia. Neste Concílio, a definição
foi: “duas naturezas unidas em uma hypostasis (pessoa). Mani no Egito, a Síria e outras
localidades não aceitaram a decisão, constituindo esta a primeira divisão na tradição Cristã.
628
A concepção de Apolinário era definida na suguinte concepção teológica: “Christum corpus
assumpsisse sine anima, quod pro anima ei fuerit deitas illudque corpus consubstantiale fuisse
deitati, nec ex substantia Martin efformatum” – ou seja, que Cristo assume um corpo sem uma
alma, porque a Divindade fora posta nele no lugar da alma, e seu corpo era coessencial com a
Divindade, e não fora formada com a substância de Maria.” O apolinarianismo defende que, ao
assumir a alma humana (yuchv - aneu), a natureza divina assume a posse da inteligência e da
razão.
213

Portanto, a doutrina da comunicação ou comunhão das naturezas versa sobre


o intercâmbio das propriedades entre as naturezas humana e divina em Cristo. A
doutrina encontrou expressão inicial na controvérsia nestoriana (entre 428 e 452),
tendo já sido inadequadamente expressa por Tertuliano, Orígenes, Gregório de
Nissa, Epifânio e outros Pais da Igreja.629
Particularmente, no tocante à humanidade de Jesus, Calvino defendia que
esta cumpria o duplo propósito de satisfazer toda a justiça requerida do ser
humano e estabelecer o ponto de contato com o ser humano. Já a Divindade,
inescrutável como mistério e revelada como realidade atestada no ministério de
Jesus, manifesta a distância existente entre Cristo e o ser humano. Calvino afirma:

Não é sem razão que Paulo, quando inquirido a


mostrar Cristo no caráter de um Mediador,
expressamente fala dEle como um homem “porque há só
um Deus e um só Mediador entre Deus e os homens,
Jesus Cristo homem” (1 Timóteo 2.5). Ele poderia tê-lo
chamado Deus, ou poderia de fato haver omitido a
designação de “homem”, tanto quanto a de Deus; mas
porque o Espírito, que falou através dele conhece a nossa
debilidade, ele proveu-nos um medicamento muito
apropriado contra tal fraqueza, ao colocar o Filho de
Deus familiarmente entre nós como se ele fosse um de
nós. Portanto, que ninguém se perturbe quando e aonde
procurar o Mediador, ou de que forma possa se
aproximar dEle. O apóstolo, ao denominá-lo homem,
alerta-nos de que Ele está próximo, e perto mesmo de
nós, já que Ele é a nossa própria carne. Certamente que
sua intenção é a mesma, em Hebreus 4.15.630

629
HEFELE, C. J., ConciUengeschichte II (1856). 127 f.; Hefele-Leclercq II. 1. 231 f.; VVAA,
History of the Councils III. 8, 9. Cf. TERTULIANO, Of the Flesh of Christ v (CG II. 880; tr. ANF
III. 525); Calvino aprova e explana a doutrina, mas rejeita a maneira como Lutero advoga a
ubiqüidade de Cristo (Ver: Institutas, livro IV. 17. 29,30; e LUTERO, Werke WA XXV. 309.
Servetus é atacado continuamente por Calvino em suas doutrinas cristológicas, principalmente
naquilo que está na sua obra SERVETUS, De Trinitatis erroribus I. 15, fo. 20b; III. 12 até 761b.
630
Institutas, livro II, 15, 3.
214

Calvino se apropria da idéia de que Jesus não se tornou vero Deus, vero
homo pela confusão das naturezas, mas pela unidade da pessoa – e o faz contra os
monofisistas e contra os nestorianos. A partir do dado extraído da tradição cristã,
aceito universalmente, Calvino afirma quem pela constituição de Cristo infere-se
que é necessário que não haja confronto nem oposição entre a conduta e a
doutrina cristã confessada – elas podem se relacionar. E os cristãos são, por isto,
admoestados a viverem uma fé encarnada, ou a sua vida humana sob a perspectiva
da sua eleição. Toda a cristologia calvinista se atrela à uma questão prática.631
Para não incorrer neste risco, é preciso perceber e reassumir sempre que, em
tese, Calvino afirma ser Cristo verdadeiro homem e verdadeiro Deus, sendo
gerado do Pai antes de todas as eras. Em sua encarnação, a Divindade de Jesus
fica oculta sob o véu da Sua natureza carnal. Porém, esta Divindade se manifesta
nas obras de Jesus, e a encarnação não limita a pessoa de Jesus, já que o Filho de
Deus também tem uma existência fora da carne.632
Num outro desenvolvimento da cristologia tradicional, Calvino afirma que,
após o juízo escatológico, Jesus se despojará da Sua natureza humana. O
reformador afirma: “Então cessará Deus de ser cabeça de Cristo, porque a
Divindade de Cristo brilhará por si mesma, porém agora está, todavia, coberta
com um véu”.633 Através destas concepções, Calvino demonstra, inicialmente, o
desenvolvimento da cristologia tradicional, tratando de um campo pouco
explorado da mesma. E manifesta o desejo de, pela sua teologia, manter o máximo
possível a natureza divina unida à humana – atendendo à exigência calcedoniana –
, porém não se reduzindo a esta. Quando afirma que o limite da natureza divina é
a humana, e esta será sobrepujada por aquela, esta idéia, mais o conceito de que a
natureza divina age fora do corpo de Jesus (extracalvinisticum), demonstra que,
para Calvino, não é concebível algo finito ser portador e sacramento do Divino a
ponto de limitá-lo. Por esta sua concepção, Calvino foi acusado por Servetus de
nestoriano.634

631
Institutas, livro II, 16.5.
632
Institutas, livro II, 13, 4.
633
Institutas, livro II, 14, 3.
634
Ver SERVETUS, On the Errors of the Trinity, que apareceu ao público em 1531, mas que foi
escrita pelo autor 20 anos antes do seu lançamento (Cf. BAINTON, R.H., Hunted Heretic, p. 217).
Na obra SERVETUS, Christianismi restitutio (1553), ele fala contra o batismo (pp. 372-373). Ele
substitui o termo geralmente usado de sacramentos “símbolos” para a expressão “signos”. Em
1559, Calvino é atacado em suas opiniões por Servetus na obra SERVETUS, Christianismi
restitutio (1553), pp. 564-568, com referências detalhadas em Opera Serveti, V. 336-340.
215

Cabe aqui a inevitável reflexão se esta acusação condiz ou não, mediante o


reconhecimento por Calvino da unidade do ser de Cristo. Calvino assume a
doutrina cristológica da tradição, porém trata – como Nestório, diga-se de
passagem – de diferenciar as duas naturezas. Porém, distintamente de Nestório, a
resposta sobre as naturezas passa pelo conhecimento das lições bíblicas sobre a
natureza de Cristo.
Segundo Calvino, a Bíblia nos dá lições sobre a natureza de Cristo,
apresentando três tipos diferentes das passagens. As passagens que falam sobre
Cristo podem ser divididas em: 1) pessoais (idiomaticum); 2) genus; e 3) o genus
majestaticum.635 A partir de Romanos 1,3-4, Calvino entende ser bíblica a
doutrina das duas naturezas636 e, a partir das narrativas evangélicas, ele percebe a
manifestação de cada uma das naturezas. Neste exercício, Nestório estava em
consonância com as Escrituras, não obstante se manifestar contrário noutra parte
(sobre a unidade ontológica em Jesus). O árbitro final nas questões, inclusive da
tradição conciliar é, para o reformador, a Escritura. Esta visão de Calvino é parte
da sua resposta a Miguel de Serveto, que o acusou de nestorianismo e, nas
Institutas, livro II, capítulo XIV, recebe a resposta do reformador. Uma vez que
Calvino estabeleceu sua visão das duas naturezas de Cristo, e as aferiu nas
Escrituras, passou a aplicar esta doutrina à vida dos crentes da maneira apontada
acima, possibilitando, pela doutrina, a manifestação da liberdade ou estimulando a
ânsia pela obtenção da mesma.
Uma outra concepção calvinista é que Jesus desceu ao Hades. Esta doutrina,
presente no Credo Apostólico, foi interpretada por Calvino. Para o reformador, a
descida ao Hades foi a terrível experiência de angústia, de dor e de maldição,
equivalente às dores do inferno na alma de Jesus, enquanto o Seu corpo ainda
estava pendurado na cruz. Esta experiência, necessária para satisfazer a ira de
Deus contra o pecado, foi suportada por Jesus no lugar dos seres humanos.

635
MCGRATH, Alister, Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: uma introdução à teologia
cristã, p. 92.
636
Romanos, p. 34.
216

Na cruz, a dor da punição que o povo deveria assumir foi assumida pelo
redentor. Calvino defende esta doutrina contra Servetus637, já que este, escrevendo
a Calvino, "[...] observou que Cristo não desceu à sepultura ou ao lugar onde os
corpos dos mortos são colocados, mas na corte mais interior do inferno, onde as
almas são tornadas cativas."638 Estas idéias de Calvino foram transmitidas a
alguns segmentos da Igreja da Inglaterra, no período do rei Eduardo VI, através
dos ensinos do bispo anglicano John Hooper, que assim comentou a cláusula
descendit ad inferna do Credo Apostólico, por volta de 1549:

Eu creio também que enquanto ele estava sobre a


dita cruz, morrendo e entregando o seu espírito a Deus,
seu Pai, Ele desceu ao inferno; isto quer dizer que provou
verdadeiramente e sentiu a grande aflição e peso da
morte, e igualmente as dores e tormentos do inferno, o
que quer dizer a grande ira de Deus e o seu severo
julgamento sobre Si, até ter sido totalmente esquecido por
Deus [...]. Este é simplesmente o meu entendimento de
Cristo em sua descida ao inferno.639

Este último exemplo serve para demonstrar a importância de Calvino, na


divulgação das doutrinas e disseminação de concepções teológicas, naquele
momento histórico. Neste caso, é particularmente importante o fato de que, ao
assumir doutrinas tidas há séculos como ortodoxas, Calvino não rompe
definitivamente com a Igreja Católica Romana, mas se apropria da parcela dos
seus tesouros mais preciosos: os conceitos eclesiológicos. Esta é uma
particularidade da doutrina calvinista que faz dela uma doutrina radicada nos
fundamentos que mantiveram a confissão da Igreja até o seu tempo. Cabe, porém,
mencionar que as crises sucessivas pelas quais o corpo de doutrinas da tradição
eclesiástica conciliar passou interfere, também, no corpo de doutrinas calvinistas.
E o fato da doutrina calvinista ser encadeada faz com que o corpo de doutrinas
esteja comprometido, e torna obrigatória a atualização segundo conceitos
filosóficos e leituras assumidas hodiernamente e que eram desconhecidas de
Calvino.

637
Essas informações sobre Serveto são encontradas em sua obra Christianismi Restitutio (Vienne,
1553), 621-622 (citada por Friedman, Ibid., 227-228).
638
Institutas, livro II, 16, 8-12.
639
Later Writings of Bishop Hooper, Together with his Letters and Other Pieces, ed. Charles
Nevinson, Parker Society nº 21 (Cambridge: Cambridge University Press, 1852), 30.
217

Cabe também perceber que a afirmação destas doutrinas tradicionais, com


suas atualizações e aplicações, ainda padecem da análise particular de Calvino de
Jesus como Mediador e as implicações disto. Isso se vê pela análise da obra de
Cristo.

3.3.3
A Obra de Cristo

Para o reformador, mais importante que conhecer a essência de Cristo, é


conhecer com que propósito Ele foi enviado pelo Pai. Calvino explicou a obra de
Cristo em conexão com a sua idéia de ofícios, e o faz a partir da Escritura. Faz-se
necessário falar sobre o tríplice papel de Cristo – o munus triplex Christi640 – de
profeta, sacerdote e rei,641 no qual o elemento fundamental dessa conceituação
está no fato de que Jesus Cristo personifica, em Sua pessoa, as três grandes
funções do AT. Provavelmente Calvino extraiu esta doutrina de Martin Bucer, de
Estrasburgo, onde passou o período entre sua primeira e segunda jornada na
condução da Igreja de Genebra.642
Desta forma, a base pela qual a fé encontra uma base firme para a salvação
em Cristo, e para ter segurança em si, é o princípio que não pode ser desprezado:
os ofícios recebidos por Cristo, pelo Pai, consiste em três. Para ele foram dados os
ofícios de profeta, sacerdote e rei.643
Como profeta, Ele ofereceu perfeito testemunho da oferta da graça de Deus
ao homem. Ele foi ungido pelo Espírito para ser arauto e testemunha da graça de
Deus, fazendo-o através do seu ministério de ensino e pregação. Foi o mestre fiel,
que exerceu Seu ministério com autoridade e sabedoria divinas.

640
Sobre os três ofícios assumidos por Cristo, consultar JANSEN, J.F. Calvin’s Doctrine of the
Work of Christ. Nesta obra, Jansen apresenta as fontes que Calvino utilizou para a concepção da
sua doutrina (pp. 20-38). Ele afirma que o ofício profético de Cristo apresenta, em Calvino,
particular destaque. Nos trabalhos típicos de teologia Reformada, a estrutura de três ofícios é
mantida. Cf. HEPPE, R. D., pp. 452-487; HODGE, C., Systematic Theology, II. 459-609;
CUNNINGHAM, W., Historical Theology II, 238; MORRIS, E. D., Theology of the Westminster
Symbols, pp. 322-343; Confissão de Fé de Westminster, VIII; Catecismo Maior de Westminster,
43-45; Breve Catecismo de Westminster 24-26; TORRANCE, T. F., The School of Faith,
Introdução, pp. LXXVII-XCV, CIII.
641
Institutas, livro II, pp. 261,262.
642
Cf. Bucer: “Rex regum Christus est, summus sacerdos, et prophetarum caput.” Enarrationes in
Evangelia (1536), p. 607. Benoit sugere que Calvino extraiu esta doutrina de Bucer. (BENOIT,
Institution II. 267, note 8).
643
Institutas, livro II, 15,1.
218

Sobre o ofício de profeta, Calvino aplica a doutrina, afirmando a


necessidade dos crentes a aceitarem, e aceitar a doutrina é aceitar a Palavra de
Cristo. Calvino afirma:

Esta é uma grande verdade, porque não há lei que


impeça a simplicidade do evangelho. E a dignidade
profética, em Cristo, está em nós conhecermos o sumo de
Sua doutrina como Ele nos deu e aceitemos todas as
partes, tendo uma perfeita visão do seu conteúdo.644

Como rei, Ele inaugurou a chegada do Reino de Deus (Mc 1.14,15), de


perspectivas espirituais e não materiais, com dimensão escatológica.645 Na
qualidade de Rei, Cristo atua como o vice-regente do Pai no governo do mundo;
um dia, Sua vitória e senhorio se manifestarão plenamente. Enquanto não se
manifesta escatologicamente, o reinado de Jesus torna-se realidade sobre aqueles
que, tocados pela graça, pela ação do Espírito Santo, disponibilizam o coração
para crer em Jesus Cristo, recebendo-O como Senhor e Salvador. Cabe aqui dizer
que Calvino declara que o domínio do Reino de Deus, inaugurado por Jesus
Cristo, também se estende sobre os maus.646
A implicação direta do fato de Jesus Cristo ser rei é a certeza que os seus
devem ter do Seu cuidado, que está manifesto no fato dEle, após a ressurreição,
ter subido à destra do Pai. De lá, Ele rege e governa a vida dos que são Seus, que
não devem se preocupar, porque sempre estarão debaixo do seu cuidado. Calvino
afirma:

Por isto é necessário que nós passemos


pacientemente por esta vida pela miséria, frio, contenção,
reprovações e outras tribulações – contentes com uma
única coisa. Que o Rei nunca largará ou destituirá os
seus, mas providenciará sempre o que necessitamos,
nossas angústias tem fim, nós somos tomados de júbilo.
Tal é a natureza de sua lei, que Ele parte de todos nós e é
recebido pelo Pai. E, a partir disto, Ele ocupa os seus com
seu poder, adornos de Sua beleza e magnificência [...].647

644
Institutas, livro II, 15,2.
645
Institutas, livro II, pp. 262-265.
646
Institutas, livro II, pp. 265,266.
647
Institutas, livro II, 15, 4.
219

Como sacerdote, tornou-se Ele mesmo em oferta sacrificial, através de Sua


morte, a fim de realizar a redenção humana.648 Como sacrifício vivo oferecido a
Deus, agora todos podem apresentar-se diante do Criador como sacrifício vivo e
aceitável.649 Em seu ofício sacerdotal, Ele é Mediador puro e imaculado que
aplacou a ira de Deus e fez perfeita satisfação pelos pecados humanos.

Agora nós vamos falar brevemente sobre o


propósito e função do ofício sacerdotal de Cristo: como
um puro e resplandecente Mediador, Ele provê
santificação e reconciliação com Deus. Mas Deus
justamente bloqueia nosso acesso a si, e Deus, em Sua
capacidade de julgar, está irado conosco. Daqui, uma
expiação representa a expiação provida por Cristo como
sacerdote, que obtém para nós o favor de Deus e o acesso
a Ele.650

A implicação do ofício sacerdotal é a manifestação de confiança requerida


pelo crente que, diante de tal ato da misericórdia de Deus para si, deve devotar sua
vida a Deus e agir com confiança no mundo. Percebe-se que a concepção
calvinista de ofícios abre espaço para a vida destituída de temores inerentes à
relação com Deus, sendo estas concepções geradoras de confiança e devoção.
Além dos ofícios, a obra de Cristo é entendida sob o referencial de pietas
para Calvino. No primeiro Catecismo de Calvino (publicado em francês, em 1537,
e, em latim, em 1538), João Calvino definiu a palavra pietas, intraduzível em seu
sentido pleno, como um símbolo taquigráfico para a compreensão e prática da fé
cristã sob o paradigma crístico. Calvino afirma:

Verdadeira devoção não consiste no temor de


quem, de boa vontade, realmente foge do julgamento de
Deus, o qual, por não podermos fugir, gera pavor. A
verdadeira devoção consiste bastante em um sentimento
sincero de quem ama Deus como Pai, por isso, o teme e
o reverencia como Deus, abraça a sua retidão e evita
aquilo que o ofende. E quem não esteve dotado com esta
desafiante devoção acaba por se precipitar em toda sorte
de ofensas a Deus. Os piedosos buscam o conhecimento
do verdadeiro Deus e o concebem da mesma maneira
que Ele, de fato, mostra-se e declara ser.651

648
Institutas, livro II, pp. 267,268.
649
Institutas, livro II, cap. 15.
650
Institutas, livro II, 15, 5, 6.
651
Catecismo de Genebra. (Pittsburgh: Pittsburgh Theological Seminary, 1972), p. 2.
220

Calvino afirma, mais sucintamente, sobre piedade nas Institutas como


"aquela reverência unida com carinho a Deus, que o conhecimento dos benefícios
dEle induz."652 Ao lado de pietas, ele apresenta a religio, que é a "fé unida com
sério temor de Deus, de forma que este medo abraça a reverência e leva, com isto,
a adoração legítima como é prescrita na lei."653 Notam-se, nestas definições de
pietas e religio, várias outras condições básicas, que são: fé, medo, reverência,
amor, conhecimento.
O conceito ainda é tratado em muitas referências que se espalham pelos
comentários e outros escritos. No Comentário, Salmos (1l9:78f.), Ele ensinou que
pietas traz duas marcas nos crentes: (1) honra, pois a obediência faz o crente se
aproximar do Pai; (2) temor, ao executar o serviço requerido por Deus.654 Distinto
disto, é o medo do incrédulo, que não descansa na fé (fides), mas permanece em
incredulidade (diffidentia).655 O conhecimento também está inserido no conceito
de pietas. No Comentário de Jeremias (10:25), Calvino afirma que o
conhecimento de Deus (cognitio Dei) é o início de pietas. Ao chamar pelo nome
de Deus (invocatio), o fruto do conhecimento de Deus é evidência de pietas.656
Nas Institutas, Calvino falou que o primeiro passo para pietas é "saber que Deus é
um Pai para nós."657 Em outro lugar, afirmou que não há nenhuma piedade sem a
verdadeira instrução, como o termo discípulos indica.658 A "verdadeira religião e
adoração de Deus," ele disse, é aquilo que “surge a partir da fé, de forma que
ninguém que propriamente serve a Deus exceto aquele que foi educado na escola
do Senhor."659
Esta pietas, em suas manifestações, tem em Jesus seu paradigma, sendo um
conceito inicialmente cristológico. A compreensão do reformador parte da idéia
de que, se a natureza humana de Jesus é idêntica àquela que os seres humanos
carregam, uma vez resgatados, estes podem manifestar as obras crísticas em si,
manifestando, assim, seu compromisso com Deus. E Jesus passa a ser padrão
também de outras concepções que constituem exigências éticas.

652
Institutas, livro II, 1.2.1.
653
Institutas, livro II, 1.2.2.
654
OC, 32: 249; cf. Institutas, livro III. 2.26.
655
Institutas, livro III, 3.2.27.
656
OC, 38:96.
657
Institutas, livro II, 6.4.
658
Comentário Sobre Atos (Atos 18:22), em OC, 48:435.
659
Comentário sobre Salmos (sobre o Salmo 119:781.), em OC, 32:249.
221

Entre estas, há duas que tem particular destaque: devoção e amor (caritas).
Nas preleções, em Ezequiel (18,5), ele falou de pietas como a raiz da caritas.660
Pietas significa o medo ou reverência a Deus (Salmo 16,10). Esta referência à
nossa atitude reverente para com Deus e nossa atitude para com os outros é
desenvolvida, mais adiante, em um sermão sobre Deuteronômio 5,16. Na verdade,
o crente deve ser dotado de piedade sob o referencial de Jesus, que manifestou a
verdadeira piedade.
Calvino observa que Deus poderia resgatar os seres humanos de outra
maneira, mas quis fazê-lo através do seu Filho. Ele dá ênfase não tanto à justiça de
Deus, mas à Sua ira e amor, ambas ilustradas na obra de Cristo. Não somente a
morte de Cristo tem efeito redentor, mas toda a Sua vida, ensinos, milagres e Sua
contínua intercessão nos céus, à destra do Pai. A obra expiatória de Cristo tem
também um aspecto subjetivo, pelo qual somos chamados a uma vida de
obediência.
Para Calvino, toda relação entre Deus e o homem passa pelo paradigma da
encarnação. Na verdade, a questão central no pensamento teológico de Calvino
era cristológico. Jesus Cristo era central em sua teologia. Ou seja, o único
paradigma normativo sobre o qual se estabelece toda a relação de Deus com a
humanidade é a pessoa de Jesus Cristo. É na união, sem qualquer perspectiva de
fusão, “da divindade e da humanidade de Jesus Cristo”,661 que o homem é
chamado a se relacionar com o Criador. Nesse sentido, toda ética da relação, seja
com Deus, consigo mesmo, com o próximo e com a criação, passa,
indubitavelmente, pelo paradigma cristológico.
Através de sua encarnação, vida, ministério, morte e ressurreição é que o
homem encontra sua libertação, alcançando uma nova humanidade. Para Calvino,
o conhecimento de Deus focaliza-se única e exclusivamente em Jesus Cristo.662

660
OC, 40:426.
661
MCGRATH, Alister, op. cit., p. 175.
662
Institutas, livro I, pp. 83-88.
222

Como já discutimos no item anterior, sobre a antropologia de Calvino, a


imagem de Deus, no ser humano, tem seu ponto central no estabelecimento de
uma relação, em primeiro lugar, de Deus com o homem e, este, com o seu criador.
Tal relacionamento se estende ainda do homem consigo mesmo, com o seu
semelhante e com a criação. No entanto, na teologia bíblico-calvinista, após a
queda do homem, que gerou a ruptura deste com o seu Criador e todas as
deformidades decorrentes em sua natureza, como já vimos sobejamente, o
paradigma central para a restauração da imagem de Deus, no homem, é Jesus
Cristo, desde a encarnação, vida, morte, ressurreição, ascensão e parusia,
incluindo aí, certamente, Sua divindade e Sua humanidade, coexistindo na mesma
e única pessoa.
Portanto, Calvino enfatiza a distinção entre as duas pessoas – divina e
humana – em Jesus, mas não abre mão da unidade. Logo, toda relação de Deus
com o ser humano, o paradigma da encarnação não só lança luz, mas também
tangencia esse relacionamento. Portanto, Jesus Cristo é o centro – único mediador
– dessa nova relação do homem com Deus, como oferta do próprio Deus, sendo,
então, expressão absoluta do Seu amor ao homem, outorgando-lhe comunhão não
apenas com Ele, mas agora, na relação consigo mesmo, com o próximo e com
toda a criação. Digna de anotação é a percepção de que a ética da relação passa
indubitavelmente pelo paradigma cristológico, o que veremos no último capítulo.
A partir daí, Calvino vai tratar da questão daquilo que chamamos de
revelação especial de Deus, que se dá através das Escrituras. “O conhecimento de
Deus, o qual é claramente revelado na ordem do universo e em todas as criaturas,
é explicitado, de forma ainda mais clara e familiar, através da Palavra”.663 Dessa
forma, o homem toma conhecimento das intenções e ações redentoras de Deus na
história, tendo seu ápice no Logos Deus – Palavra – encarnado, incluindo sua
vida, morte e ressurreição.664 Ora, concluímos, então, que, para Calvino, o centro
da revelação é Jesus Cristo, através de quem nosso conhecimento de Deus agora é
mediado.665

663
Institutas, livro I, p. 111.
664
Institutas, livro I, pp. 84-86.
665
Institutas, livro I, p. 83.
223

“As Escrituras tornam-se, portanto, indispensáveis para o conhecimento de


Jesus Cristo como expressão redentora de Deus ao homem, mas certamente tal
conhecimento escriturístico só alcançará sua eficácia pela inspiração e iluminação
do Espírito Santo”, afirma Calvino.666 No entanto, para o reformador, as
Escrituras não são verba Dei, mas sim o verbum Dei.667 Logo, a criação estabelece
apenas pontos importantes de contato para o conhecimento de Deus, mas são
apenas parciais, opacos, difusos, incapazes. Só e exclusivamente através de Jesus
Cristo, Deus pode ser plenamente conhecido, e Jesus Cristo, através da revelação
escriturística. Para Calvino, as Escrituras do AT e do NT revelam a ação redentora
de Deus na pessoa de Jesus Cristo, sendo o último a expressão mais clarividente
do mesmo pacto da graça.
Na verdade, a compreensão de Calvino sobre o conhecimento de Deus e do
pecado do homem revela os elementos fundamentais de sua cristologia, tendo
Jesus Cristo como único, exclusivo e universal salvador e mediador entre o Pai e o
homem. Para tal, constata-se a primordial necessidade de que Jesus Cristo fosse
divino e humano.668 Deus veio até nós, posto que era e é impossível que nos
voltemos para Deus, face ao pecado que contaminou nossa natureza. Calvino
afirma:

O Filho de Deus tornou-se o Filho do Homem,


recebendo o que é nosso, de tal forma que transferiu para
nós o que era Seu, fazendo com que aquilo que por
natureza Lhe pertence se torne nosso, por meio da
graça.669

666
Institutas, livro I, pp. 88,89.
667
Significa dizer que as Escrituras representam o registro da Palavra, mas elas não são a própria
Palavra. Temos, aqui, um certo paralelo com a encarnação, no qual o divino e o humano
coexistem, sem qualquer comprometimento ou aniquilamento de um em relação ao outro. Ou seja,
as Escrituras evidenciam a palavra de Deus, plasmada na linguagem humana, sobre a qual repousa
toda a autoridade divina, face à sua própria origem que é inspirada pelo Espírito Santo.
668
Institutas, livro II, pp. 230,231.
669
Institutas, livro II, pp. 230, 231.
224

Calvino diz, então, que o ato original de desobediência do ser humano


precisava ser substituído por um ato de obediência humana, o que aconteceu
através de Jesus Cristo. Ou seja, através de sua obediência a Deus, como um
verdadeiro ser humano, sem pecado, Jesus Cristo ofereceu ao Pai um sacrifício
tal, cumprindo toda Escritura do AT, que redimiu todo o pecado, outorgando ao
homem, novamente, o caminho da liberdade, fruto da libertação alcançada na cruz
e na ressurreição.670 Por sua morte, Ele pagou a dívida do pecado; por sua
ressurreição, Ele libertou o homem dos grilhões da morte.
A partir deste procedimento de Jesus, que acaba por satisfazer a lei, os seres
humanos passam a ser salvos por Ele. Porém, num segundo plano, está a idéia de
que, à semelhança de Cristo, é necessário viver em obediência. A questão da
liberdade está necessariamente diante desta outra questão fundamental em
Calvino: a liberdade não pode ser livre, irrestrita e irresponsável, já que esta é
conseqüência do viver à semelhança da vida de Jesus.

3.3.4
A Cristologia Calvinista e a Liberdade

A cristologia calvinista apresenta, em primeiro lugar, a tensão entre a


sujeição e a liberdade em relação à tradição da Igreja. Calvino segue a tradição
eclesiástica, reafirmando, praticamente, todos os dogmas contidos nela,
manifestando ortodoxia e conhecimento teológico. Porém, Calvino não se
restringe a isto: ele atualiza os conceitos através da aplicação dos mesmos à vida.
Esta dimensão prática constitui o segredo para a proliferação da doutrina
calvinista na Europa, e a promoção da liberdade nos Estados em que se instalou.
A cristologia, por não ser meramente especulativa, mas ter uma forte marca
prática, constituiu uma maneira de conceder segurança e liberdade pelo avanço da
idéia de desapego e despreocupação com a ordem (ou desordem) vigente, diante
dos cuidados do Cristo exaltado. Porém, isto não significa alienação: justamente
para se inserir no mundo com ofícios que manifestem a glória de Deus é que os
calvinistas se tornam parte fundamental da sociedade para o estabelecimento de
uma ética social justa, consciente e dependente de Deus.

670
Institutas, livro II, p. 232.
225

Porém, Calvino apresenta diferenças, chegando até a oposições entre eleitos


e réprobos. Neste sentido, a opção de Calvino tem certo teor maniqueu, inclusive
em sua estrutura: ele opta pela oposição, e não pela complementação entre estes,
sendo os réprobos destituídos de relação com Cristo no sentido positivo de seus
ofícios. Esta oposição e reserva de todos os aspectos laudatórios na relação com
os réprobos manifesta o conjunto reificado de fenômenos, que interferiram na
concepção do reformador no tocante às outras esferas vivenciais, inclusive nas
que não são necessariamente religiosas.
Em Calvino, percebe-se, quando este trata dos réprobos, que há uma
tendência de inumanização, de afastamento do homem de si mesmo, a partir da
idéia de obediência com fundamento cristológico. E isto, associado com uma
concepção soteriológica determinista, acaba por perfazer o cerne da questão da
liberdade cristã numa perspectiva cristológica: esta liberdade envolve a
despersonalização do ser humano, já que ele deve se tornar à semelhança de Jesus,
que é Deus.671
Porém, cabe ressaltar que o ponto de partida de Calvino dentro da sua
cristologia é a humanidade de Jesus. Ele o faz em vista da necessidade do ser
humano de ser salvo e de ter o exemplo de Jesus para a sua conduta. A
soteriologia de Calvino e a cristologia se ligam de forma mais íntima nesse ponto.
E ambos manifestam particular relevância para a doutrina da liberdade cristã. O
ser humano pode assumir a sua humanidade, pois Cristo assumiu a humanidade e
a dignificou. O ser humano pode estar sujeito às adversidades porque, pelos
ofícios, Cristo garante provisão e cuidado ao crente.
O ser humano pode assumir sua vocação e seu ofício, porque poderá contar
com o Cristo exaltado, cuja ação está além do próprio corpo e alcança o
necessitado.
Neste escopo é que Calvino afirma ter Jesus três ofícios: profeta, sacerdote e
rei, nos quais se ligam o AT e o NT. E cada um deles adquire relevância
fundamental dentro da questão. As implicações de cada ofício são manifestações
de implicações de liberdade.

671
GABEL, J. Sociología de la alienació. Amorrortu, Buenos Aires, 1973, p. 183.
226

A implicação do ofício de profeta, exercido por Jesus, na doutrina da


liberdade cristã, foi a afirmação de que, no exercício deste ofício, Jesus expôs as
doutrinas da graça e cumpriu a lei para fornecê-la aos santos. A liberdade do
crente está em poder ouvir e aprender estas doutrinas sem a obrigação do
cumprimento da lei para obter a sua salvação.672
O tolher da liberdade de aprender começa a ser demolido nesta concepção
calvinista, pois a idéia de Calvino sobre Cristo, como profeta, constitui a garantia
de apreensão da vontade de Deus independente da nossa condição como
receptores. Porém não se deve entender ser o homem e a mulher passivos neste
processo, pois estes agem recebendo os benefícios da comunhão com Cristo.
A implicação direta do ofício de Jesus como Rei, na doutrina da liberdade
cristã, é que o Seu reino se estabelece, em primeiro lugar, entre os crentes. Desta
forma, a liberdade surge a partir da crença neste reino, a partir do dirimir de
“qualquer dúvida de que o Deus de promessas será, pelas mãos de seu Filho, o
regulador e o defensor eternal da Igreja."673 Ser protegido por Deus, através de
Jesus, possibilita ao crente inserir-se no mundo sem os medos das forças opostas a
Deus, cridas no período medieval. Não há necessidade de atos honoríficos e
autojustificatórios para obter a graça da proteção: basta estar em Cristo.674
A proteção em Cristo abrange todas as áreas da vida. Afirmar isto
corresponde a dizer que não é preciso temer qualquer coisa durante o exercício de
qualquer ação em qualquer condição. A certeza do cuidado e proteção, ou da
soberania de Deus em permitir o mal – que é controlado pela soberania divina – é
a garantia de liberdade no exercício da missão, da vocação, do ofício.
A implicação direta do ofício de sacerdote na doutrina de Calvino, para a
questão analisada da liberdade cristã, está vinculada ao fato de que Jesus é um
Mediador perfeito, sendo o caminho para chegar até à vontade de Deus, porém
não contra a própria vontade. O ímpeto de buscar a Jesus como sacerdote implica
a idéia dEle desejar fazer as pessoas que O buscam livres para encontrar a Deus,
sem mediação de sacerdotes ou outros mediadores humanos. O calvinismo
promove a democratização do acesso à divindade.675

672
CONNER, W. T., Doctrina Cristiana, p. 22.
673
Institutas, livro II, 13, p. 121.
674
CONNER, W. T., Doctrina Cristiana, op. cit., p. 72.
675
Institutas, livro III, 2, p. 25.
227

Esta democratização do acesso a Deus possibilita a emergência de uma


Igreja feita de pessoas autônomas, mas que se submetem por ato livre, e não por
coação, nem pelo tolhimento da liberdade. O cerceamento não é eficaz, quando a
dimensão vivencial interior é tratado e, mesmo assim, sob o leve fardo da
compreensão de ser Jesus sacerdote, Aquele que compreende fraquezas humanas,
porque se fez homem.
Por fim, a idéia de piedade exposta por Calvino leva o crente a entender ser
necessária a adoção de um padrão de conduta. A piedade não é íntima, mas é uma
postura do crente no mundo – isto o faz, para ser coerente, sujeitar-se aos valores
cristãos professados, pois eles são as fontes e as expressões da piedade cristã.
Nisto há o restringir da liberdade diante da necessidade de manutenção da
confissão religiosa. Calvino entende ser a piedade o veículo que possibilita a
liberdade por ser uma série de restrições sociais que impedem que os cristãos
sujeitem uns aos outros à escravidão. Percebe-se, portanto, que a restrição à
liberdade objetiva a solidificação desta. A liberdade calvinista é uma liberdade
calcada em valores expostos no escopo de sua doutrina.676

3.4
A Soteriologia de Calvino e a Liberdade Cristã dela decorrente

Finalmente, nosso propósito é abordar a questão soteriológica, evidenciando


a visão calvinista sobre único e universal paradigma salvífico, que é a ação de
Deus na história, promovendo a salvação do homem por meio de seu Filho, Jesus
Cristo. Buscaremos, a partir de sua visão soteriológica, em que tal paradigma
promove a liberdade na vida do homem.

676
Institutas, livro III, 2, p. 26.
228

3.4.1
Lei e Evangelho

A partir da queda, o ser homem foi marcado pelo pecado e,


conseqüentemente, pela ruptura com seu Criador. Mas, paradoxalmente, Calvino
percebe que toda a existência humana é tangenciada pela ação de Deus. Ao
homem foi permitido, desde então, conhecer o misterioso e maravilhoso plano
redentor de Deus, na pessoa de Jesus Cristo, seu unigênito Filho. O desenrolar
desse propósito divino aparece na própria consciência humana, o que conhecemos
como lei natural, e estendeu-se pelas alianças estabelecidas com Noé, os patriarcas
e o povo de Israel.677 Através das promessas promulgadas e, tendo a Lei, como
prefiguração da chegada do Messias.678 Sobre essa linha de pensamento, Calvino
afirma:

E a fim de ainda mais os confirmar, de todas as


formas, na longa expectação deste Messias, Deus lhes
outorgou Sua lei escrita, na qual se compreendiam
muitas cerimônias, purificações e sacrifícios, coisas que
não eram, senão figuras e sombras das grandes benesses
a virem por Cristo, que, só, lhes era o corpo e a verdade,
pois que a Lei não podia levar ninguém à perfeição, mas
somente indicava e, como um pedagogo, dirigia e
conduzia a Cristo, que (como diz São Paulo) lhes era o
fim e o cumprimento. Quando, porém, veio a plenitude
do tempo, e o termo pré-ordenado de Deus venceu,
apareceu este grande Messias tão prometido e tão
esperado e levou a cabo e cumpriu tudo o que era
necessário para nossa redenção e salvação. E foi Ele
dado não somente aos israelitas, mas a todos os homens,
de todas as raças e regiões, a fim de que a natureza
humana fosse por Ele reconciliada com Deus.679

677
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op.cit., p.272.
678
Ibidem, p.272.
679
CALVINO, João. Prefácio do Novo Testamento, em Obras Escolhidas, p. 190; OC, tomo IX,
p. 801. Apud BIÉLER, André, op. cit., p. 272.
229

A partir dessa citação de Calvino, constatamos que “Lei e Evangelho são


verdades que se harmonizam em toda a Escritura.”680 “Há uma linha de unidade e
continuidade entre AT e NT”, afirma o reformador.681 Na verdade, mesmo no AT,
a fé savífica está centralizada em Cristo, o mediador da nova aliança.682 Ou seja,
“os sacrifícios da Lei ensinavam claramente que a salvação seria pela expiação
completa do sacrifício de Cristo”.683 A ação de Deus, na História, sempre fora
soteriológica, mesmo na antiga dispensação. Vejamos as palavras do reformador:

Sem dúvida que, depois da queda do primeiro


homem, nenhum conhecimento de Deus valeu para a
salvação sem o Mediador, pois que Cristo, quando diz
que a vida eterna é esta: conhecer ao Pai (como) o único
Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a Quem Ele enviou (Jo
17.3), fala não apenas de Seu tempo, pelo contrário,
compreende a todos os séculos.684

A relação entre a Lei e o Evangelho, que Calvino estabelece, não é de


antagonismo, mas de convergência soteriológica,685 sendo, portanto, uma relação
de continuidade,686 na qual o foco maior é seu conteúdo salvífico na pessoa de
Jesus Cristo. Daí a fundamental importância do conhecimento da vontade de Deus
mediante a manifestação de sua graça. Para o reformador a lei possui abrangência
na vida humana, podendo afetar todas as áreas de sua existência. Significa dizer
que sua visão sobre a Lei ultrapassa a mera concepção dos Dez Mandamentos,
mas ele a vê como um modus vivendi integral dado por Deus ao homem.687 Na
verdade, toda a Palavra de Deus é fonte da verdade cristã, posto que “a Escritura é
a escola do Espírito Santo, na qual, já que nada que é necessário e útil ao
conhecimento é omitido, também nada é ensinado que não se precise saber.”688

680
ANDRADE, Eugênio. Liberdade Cristã, op. cit., p. 65.
681
As Institutas, livro II, cap. 10.
682
Institutas, livro II, cap. 6, seção 2 e 3.
683
FERREIRA, Castro., op.cit., p. 270.
684
Institutas, livro II, cap. 6, seção 1.
685
Institutas, livro II, cap. 7, seção 1.
686
GONZALEZ, J. L. Uma História do Pensamento Cristão, op. cit., p. 152.
687
Institutas, livro II, cap. 7, seção 1.
688
Institutas, livro IV, cap. 20, seção 3. “Para Calvino, o valor da Lei está diretamente ligado à sua
autenticidade. Ele declara, explicitamente, que Deus é o Legislador, ou o Autor da Lei. O
reformador francês atribui caráter divino às Escrituras; e o único motivo para isto é que ele as
concebe como Palavra de Deus. Ele compara a Lei a um espelho que revela os nossos pecados e a
justiça manifesta de Deus, cobrando toda a nossa consagração a Ele. Por este motivo, ela tem tanta
autoridade.” Cf. ANDRADE, Eugênio. Liberdade Cristã. 2005, p 24.
230

Calvino faz uso da Lei numa tríplice perspectiva, sendo a primeira delas
evidenciar a perfeita justiça de Deus, na qual o pecado e toda a miserável
condição humana são percebidos. Ou seja, a Lei desmascara toda e qualquer auto-
afirmação humana, pois, diante das exigências do Eterno, o homem percebe suas
limitações. A Lei de Deus, originalmente, não tem o propósito de que o homem
alcance a salvação pelo seu esforço, mas nos aponta a necessidade da graça e da
misericórdia de Deus.689
Na visão de Calvino, há uma segunda perspectiva da lei, que se traduz no
cerceamento da ação do perverso690, sem qualquer intenção soteriológica, mas
fundamental à ordem social.
Uma derradeira perspectiva da lei – tertium usus legis – é evidenciar a clara
vontade de Deus para aqueles que crêem.691 Sendo assim, o peso da lei ou sua
maldição, foi completamente abolido na pessoa de Jesus Cristo, mas o seu
conteúdo revelacional da vontade de Deus permanece. Aqui há um forte ataque
aos antinominalistas. “Na verdade, a lei não pode ser abolida, pois ela expressa a
vontade de Deus, que nunca muda. O que foi abolido, além da maldição da lei
moral, é a lei cerimonial.”692

3.4.2
Soteriologia e Cristologia

Em decorrência do colossal rompimento entre o homem e Deus,


ocasionando ao homem a perda de sua retidão, santidade e, conseqüentemente,
sua liberdade, fruto de seu pecado, este se tornou incapaz, a partir de seu novo
estado, de conhecer a vontade de Deus e conduzir sua vida com dignidade moral.
Com a perda de tantos diferenciais em relação ao restante da criação, o abismo
maior, na verdade, foi a perda de seu ethos mais intrínseco, que é sua estreita
relação com o Criador, com o Eterno.

689
Institutas, livro II, cap. 7, seções 6 a 9.
690
Institutas, livro II, cap. 7, seções 10 e 11.
691
Institutas, livro II, cap. 7, seção 12 e livro II, cap. 8, seções 6 e 7.
692
GONZALEZ, J. L. Uma História do Pensamento Cristão, op. cit., p. 150.
231

Tal fosso existencial, com repercussões morais, relacionais e espirituais, o


distanciou cada vez mais de Deus, de si mesmo, do próximo e da própria criação.
Somente por iniciativa de Deus, numa ação completamente extrínseca, é que o
homem poderia recuperar sua condição original.
Assim, segundo a perspectiva do reformador, “ainda que o homem esteja
corrompido, o Criador celestial, não obstante, sempre tem diante de Si o propósito
de Sua criação”.693 Significa afirmar que o Eterno Deus estabeleceu, em sua
soberana graça e misericórdia, um plano de restauração do homem. O que
equivale dizer que o estado pós-queda do homem não carrega em si a tragédia da
palavra final sobre a história humana. À semelhança do relato da criação, na qual
a terra era sem forma e vazia e o caos fazia parte daquele cenário, o Eterno Deus
haveria de intervir na história humana, a fim de transformar o trágico em
restauração. O pecado não venceria o propósito para o qual Deus criara o
homem.694
Portanto, a solução clara, inquestionável e absolutamente única para a
regeneração do homem e, conseqüentemente, sua libertação de toda forma de
pecado, encontra-se na pessoa de Jesus Cristo, pois “a grandeza da graça
adquirida por Ele é bem mais vasta que a magnitude da condenação em que o
gênero humano foi envolvido pelo primeiro homem”.695 Através do Filho, a
parede de separação existente entre o homem e Deus é destruída, e o milagre da
reconciliação com Deus alcança seu ápice na cruz do calvário, sendo Ele o
redentor e o libertador do homem e de toda a criação.696 Pela mediação de Jesus
Cristo, o homem é resgatado de sua trágica condição, colocado em relação de
comunhão com Deus, consigo mesmo, com o próximo e com a criação. Calvino
declara:

693
CALVIN, John. Commentary on Gênesis, vol 1, about Gn 9.3, disponível em 30 de agosto de
2005 em http://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom01.html.
694
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., p. 269.
695
CALVINO, João. Comentários ao Novo Testamento. Edição francesa de 1561. 4 Volumes.
Paris, 1854, comentário de Romanos 5.15.
696
Institutas, livro II, cap. 6, seções 1 a 4; cap. 16, seções 1 a 5; cap. 17, seções 1-6.
232

Uma vez que, na pessoa de Adão, haja perecido


todo o gênero humano, em verdade, nada nos
aproveitaria aquela excelência e nobreza de origem que
havemos rememorado, assim que, antes, ceda a maior
ignomínia, até que Deus, Que por obra Sua não
reconhece a homens poluídos e corrompidos pelo
pecado, Se mostre Redentor na pessoa de Seu Filho
Unigênito. Portanto, depois que decaímos da vida à
morte, inútil seria todo esse conhecimento de Deus
(como) o Criador, de que havemos dissertado, a não ser
que adviesse também a fé, pondo diante de nós em Cristo
a Deus (como) o Pai.697

A cristologia de Calvino tem como ênfase principal o conhecimento de


Cristo como o messias redentor. Em outras palavras, o pressuposto cristológico de
Calvino era a soteriologia crística, tendo Jesus Cristo como verdadeiro Deus e
verdadeiro homem.698 Portanto, sob a condição de ignorância diante de Deus, o
homem precisa receber, pela fé, o dom da regeneração e receber o gracioso
Evangelho de Jesus Cristo. Sobre tal verdade, Calvino afirma o seguinte:

[...] ignoramos as grandes benesses e promessas


que Jesus Cristo nos tem feito, a glória e a bem-
aventurança que nos há preparado, não sabemos o que
Deus nos há ordenado ou proibido, não podemos
discernir o bem do mal, a luz das trevas, o mandamento
de Deus das constituições dos homens. Mas, pelo
conhecimento do Evangelho nos fazemos filhos de Deus,
irmãos de Jesus Cristo, compatriotas dos santos,
cidadãos do Reino dos Céus, herdeiros de Deus com
Jesus Cristo, por Quem os pobres se tornam ricos, os
fracos fortes, os tolos sábios, os pecadores justificados,
os desolados consolados, os dubitantes seguros, os
servos livres.699

697
Institutas, livro II, cap. 6, seção 1.
698
Institutas, livro II, caps. 12, 13 e 14.
699
CALVINO, João. Prefácio do Novo Testamento In: Obras Escolhidas, p. 195. Cf. OC, tomo
IX, p. 807.
233

Numa perspectiva de satisfação, Calvino percebe a obra da redenção em


Jesus Cristo como aceitável diante de Deus, visto que, mediante sua completa e
cabal obediência sacrificial, Cristo mereceu ou obteve o perdão de nossos
pecados700, tendo, assim, a justiça e o amor de Deus satisfeitos. “Nessa cruz,
percebemos um triunfo mais do que magnífico triunfo que aos maus está oculto,
pois que nós aí reconhecemos que, apagados estando os pecados, foi o mundo
reconciliado a Deus, a maldição abolida, Satanás derribado”,701 diz Calvino. Logo,
encontramos, na obra redentora de Jesus Cristo, os aspectos da unicidade e
universalidade salvíficas, sendo Cristo o iniciador, sustentador e consumador da
nossa salvação, na qual o ser humano não exerce qualquer influência e, muito
menos, é digno de qualquer mérito. O reformador assim se expressa:

Que espécie de fundamento temos nós em Cristo?


Porventura, (um fundamento) que nos foi (apenas) o
início da salvação, para que de nós se seguisse a
complementação? E abriu (Ele) apenas o caminho pelo
qual houvéssemos [nós] próprios de avançar por nossos
próprios recursos? De modo algum, realmente. Como,
porém, estabeleceu (Paulo) pouco antes, foi-nos Ele dado
para justiça, quando (assim O) reconhecemos (I Co
1.30). Ninguém, portanto, está bem alicerçado em Cristo,
senão (aquele) que em (si) próprio tem integral justiça,
uma vez que o Apóstolo não diz haver (Cristo) sido
enviado para ajudar-nos a efetuar justiça, mas, ao
contrário, que (Ele) Próprio seja a justiça nossa (I Co
1.30), com efeito, que “havemos sido nEle eleitos desde
a eternidade, antes da formação do mundo”, (não) por
nenhum mérito nosso, “mas segundo o propósito do
beneplácito divino” (Ef 1.4,5); que, mediante Sua morte,
fomos nós redimidos da condenação da morte e livrados
da perdição (Cl 1.14) que nEle havemos sido pelo Pai
Celeste adotados por filhos e herdeiros (Rm 8.17; Gl 4.5-
7); que fomos a Este reconciliados através de Seu sangue
(Rm 5.9,10); que a Ele entregues à guarda, somos
eximidos do perigo de perecer e perder (-nos) (Jo 10.28);
que a Ele assim enxertados (Rm 11.19), já, de certo
modo, somos partícipes da vida eterna, ingressos no
Reino de Deus mediante esperança.702

700
Institutas, livro II, cap. 17, seção 4.
701
CALVINO, João. Comentários ao Novo Testamento sobre João 17.1 Apud BIÉLER, A., pp.
350-351.
702
Institutas, livro II, cap. 17, seção 4.
234

3.4.3
Soteriologia e o Espírito Santo

Verifica-se, então, o ato salvífico de Deus, em Cristo, como pura oferta de


Deus ao homem, que acolhe o dom da salvação pela fé, operada de forma eficaz
pelo poder do Espírito Santo. Esta é a única trilha para restauração da
humanidade.703 Calvino diz que, “como o Pai misericordioso nos oferece Seu
Filho mediante a Palavra do Evangelho, também nós, pela fé O abraçamos e O
reconhecemos como dado a nós”.704 Se por um lado o pecado prejudicava todas as
dimensões da vida humana, por outro, a nova vida ofertada ao mesmo, em Cristo,
Jesus reconstrói todo o seu ser.705 Para Calvino, a ação do Espírito Santo, na
regeneração do homem é absolutamente fundamental:

A isto se reduz a síntese (desta matéria): o Espírito


Santo é o elo pelo qual Cristo nos vincula efetivamente a
Si. [...] Porque, entretanto, é a fé a principal obra Sua, a
ela se referem, em grande parte, (as asserções) que, a
cada passo, ocorrem (nas Escrituras) para expressar-Lhe
o poder e a operação, porquanto somente através dela
(Ele) nos conduz à luz do Evangelho, como João Batista
ensina: aos crentes em Cristo foi dado o privilégio de
serem filhos de Deus, os quais não hão nascido da carne
e do sangue, mas de Deus (Jo 1.12,13), onde, opondo
Deus à carne e ao sangue, afirma ser um dom
sobrenatural que mediante a fé, recebam a Cristo, os
quais, de outra sorte, permaneceriam entregues à sua
incredulidade.706

Constata-se, portanto, a total dependência do homem diante de Deus, não


sendo este nem autônomo e, muito menos, auto-suficiente para conhecer a
Deus.707 Somente pela ação do Espírito Santo no coração do homem é que este
recebe todos os benefícios da obra redentora de Cristo.

703
Institutas, livro III, cap. 1, seção 34.
704
CALVINO, João. Catecismo de 1537, p. 33. Cf. OC, tomo XXII, p. 46.
705
Institutas, livro II, cap. 2, seção 9.
706
Institutas, livro III, cap. 1, seção 1 e 4.
707
Institutas, livro II, cap. 2, seção 18.
235

Por isso Paulo afirma que o Espírito é “o espírito de adoção” e também “a


garantia e selo” da nossa bendita herança.708 “Portanto, faz-se necessário uma
intervenção sobrenatural do Espírito Santo para que o homem, de novo, torne-se
verdadeiramente homem e recobre sua natureza autêntica.”709
Para tal, o Espírito Santo gera, no homem, fé e arrependimento, sem os
quais não há imersão do Reino de Deus. 710 Para Calvino, o arrependimento, para
a salvação, nasce da verdadeira fé em Cristo Jesus. Fé e arrependimento estão
intrinsecamente inseparáveis, como duas faces da mesma moeda. O reformador
entende o arrependimento como completa e radical conversão a Deus, na qual o
ser humano parte de onde obteve sua experiência salvífica em direção a Deus,
numa nova realidade de vida.711 Calvino faz a seguinte definição sobre fé:

Agora nós possuiremos uma definição certa da fé,


se nós a chamarmos de um conhecimento firme e certo
da benevolência de Deus em relação a nós, baseada sobre
a verdade da promessa livremente dada em Cristo, tanto
revelada às nossas mentes quanto selada em nossos
corações por meio do Espírito Santo.712

3.4.4
A Fé, a Graça e a Santificação

O grande teólogo von Allmen afirma que arrependimento e fé têm profundas


imbricações na realidade histórica do homem, ou seja, “o arrependimento implica
na grande mudança, no retorno, na inversão do homem, no seu abandono de sua
realeza e justiça próprias; a fé implica a aceitação e o reconhecimento da realeza
de Deus e de Sua justiça.”713 Portanto, para Calvino, “todo aquele que se encontre
em Jesus Cristo e, por meio da fé, participe como membro de Seu corpo, já está
seguro de sua salvação.”714

708
Institutas, livro III, cap. 1, seção 3.
709
BIÉLER, André. op. cit., p. 277.
710
VON ALLMEN, J. J. Vocabulário Bíblico. 2a. Edição. São Paulo: ASTE, 1972, p. 358. A
narrativa de Marcos 1.15 confirma tal fato.
711
Institutas, livro III, cap. 3, seção 5.
712
Institutas, livro III, cap. 2, seção 7.
713
VON ALLMEN, J. J. op. cit., p. 358.
714
ANDRADE, Eugênio, op. cit., p. 34.
236

Há, na fé, uma dimensão cognitiva, embora seja dom de Deus, jamais
conquista do ser humano.715 Assim, para Calvino, fé possui um conteúdo
específico – Jesus Cristo. A fé salvífica fundamenta-se nas Escrituras, na Palavra
de Deus e na consciência de Sua soberana vontade.716 Sua eficácia e realidade
acontecem somente nos corações receptíveis à oferta de Deus, isto é, aos crentes
verdadeiros.717 Em outras palavras, somente pela oferta do dom de Deus, em Jesus
Cristo, através da mensagem do Reino, que os homens podem alcançar a
verdadeira liberdade.718
A graça salvífica só pode ser obtida através da pessoa de Jesus Cristo,
mediante a fé, oferta de Deus ao homem, ou seja, “é mediante a fé que aquele que
crê toma posse desses benefícios”719 soteriológicos. Calvino, então, define a fé
como “um conhecimento estável e específico da vontade divina em relação a nós,
o qual, estando baseado na verdade da graciosa promessa em Cristo é, ao mesmo
tempo, revelado a nossas mentes e selado em nossos corações pelo Espírito
Santo”.720 A fé, como dom de Deus, volta-se para o conhecimento de Sua vontade,
bem como Sua obra aplicada ao coração do homem. Ele mesmo afirma que,

[...] nossa preocupação não é tanto a de descobrir


quem é Deus em Si mesmo, mas o que Ele deseja ser, em
relação a nós [...], acreditamos que a fé é um
conhecimento da vontade de Deus em relação a nós,
alcançado por intermédio de Sua Palavra.721

Ele demonstra, ainda, que o objeto da fé não é a Palavra de Deus


propriamente dita,722 mas a fé está fundamentalmente sustentada em Suas infinitas
promessas de misericórdia. Calvino cria firmemente que a fé de um ser humano se
faz evidente em suas obras.723

715
GONZALEZ, Justo. L. Uma História do Pensamento Cristão, op. cit., p. 156.
716
Institutas, livro III, cap. 2, seção 6.
717
Institutas, livro III, cap. 2, seção 12.
718
VON ALLMEN, J. J. op. cit., p. 358.
719
MCGRATH, Alister, op. cit., p. 191. Calvino trata da doutrina da redenção em suas Institutas,
no livro III.
720
Institutas, livro III, p. 14.
721
Institutas, livro III, ii.6
722
Institutas, livro III, pp. 12-14.
723
“Pelo poder de Deus, somos reduzidos a obedecer à justiça, voluntariamente continuamos
seguindo a graça, então, não me oponho, porque é assunto bem esclarecido que onde reina a graça
de Deus, há tal prontidão em obedecer” (Institución II, 3.11, p. 211).
237

Porém não vinculava a salvação a estas, já que elas apenas refletem a


eleição, mas não são provas incontestes desta. Além disto, enfatizava Calvino que
se regozijava naquilo que chamava de bendita segurança, dada por Deus, ao
predestinar pessoalmente cada um, e este conhecimento gera uma resposta por
parte do eleito, isto é, ele se dispõe a fazer a vontade de Deus. Vejamos suas
próprias palavras:

Uma vez que nem toda palavra, vinda de Deus


desperta o coração humano para a fé, devemos ir além,
na busca daquilo que há na Palavra, que está relacionado
à fé. A declaração de Deus a Adão: “você certamente
morrerá”, e a Caim: ‘a voz do sangue de seu irmão clama
a mim desde a terra.’ Estas declarações, contudo, estão
mais propensas a atrapalhar a fé, em lugar de consolidá-
la! Isso não significa negar que seja legítimo que a fé
aceite a existência da verdade divina quando quer, o que
quer e como quer que Deus possa falar; ao contrário,
significa questionar aquilo que a fé encontra na Palavra,
sobre a qual possa se apoiar e descansar.724

Tocados pelo evangelho da graça, o homem responde ao chamado de Deus,


pela ação do Espírito, sendo, portanto, justificado e santificado, desembocando,
necessariamente, em uma dinâmica vida cristã, vivendo, agora, para glória de
Deus.725

724
Institutas, livro III, p. 13 Na verdade, a fé está alicerçada na graciosa promessa de misericórdia
em relação aos homens e mulheres, de tal maneira que a fé e o evangelho de Jesus Cristo sejam
considerados como termos similares. Cf. Institutas, livro III, pp. 37,38.
725
McGrath diz que a doutrina da justificação, pela graça mediante a fé, é largamente considerada
como uma das principais doutrinas da Reforma, sendo, na verdade, a tese pela qual a Igreja se
sustenta ou se desmantela. Lutero foi quem mais defendeu tal doutrina, fazendo parte da primeira
geração dos reformadores. Cf. McGrath, Luther’s Theology of the Cross (Oxford/Nova York,
1985); idem, Iustitia Dei: A History of the Christian Doctrine of Justification (2 vols: Cambridge,
1986), vol. 2, pp. 3-20. Ver ainda MCGRATH, Alister, op. cit, p. 192.
238

3.4.5
A Soteriologia Calvinista e a Liberdade

Quando Calvino trata da liberdade cristã em seu comentário aos Romanos,


especialmente na perícope de Rm 2,14-16, ele afirma que nada nem nenhuma
nação pode estar contrária a tudo quanto é humano, que não esteja circunstanciado
por algumas leis. Em outras palavras, há fragmentos de justiça e retidão no
coração do ser humano, ainda que pecador, com a imagem de Deus em sua vida
manchada. No comentário de Calvino, os gentios possuem em seus corações,
certo senso de discriminação e juízo, resultando, daí, a consciência entre justiça e
injustiça, honestidade e desonestidade. Há, em sua consciência, tal
discernimento.726
Entretanto, Calvino também afirma que, embora os homens tenham
consciência de seu potencial para as boas obras, são afligidos em sua interioridade
quando praticam o mal. Por isso que há um aforismo pagão que diz que a boa
consciência é um grande teatro, e a má consciência é um dos grandes opressores,
atormentando o pecador com fúria feroz.727
Para Calvino, a doutrina da liberdade cristã está intrinsecamente atrelada à
doutrina da justificação, jamais podendo ser suprimida, pois, uma vez
acontecendo, há um sério comprometimento da verdade do Evangelho. Ou seja,
para o reformador, a liberdade cristã é parte e decorrência da doutrina da
justificação.728 O que jamais podemos prescindir é o fato de que a liberdade cristã
não nos absolve da obediência a Deus nem nos lança à licenciosidade. Não é
ausência de “moderação, ordem e discernimento das coisas”.729 Numa linguagem
mais literal de Calvino, a liberdade cristã, como apêndice da doutrina da
justificação, importa contemplar uma reflexão, ainda que resumida, sobre a
mesma, a fim de que nos sirva de pano de fundo para melhor compreensão da
liberdade cristã. Do ponto de vista da consciência, Calvino afirma que a liberdade
possui três estágios.730

726
Romanos, pp. 89-93.
727
Romanos, p. 91.
728
Institutas, livro III, p. 298.
729
Institutas, livro III, p. 298.
730
Institutas, livro III, pp. 298-313.
239

Em primeiro lugar, a liberdade cristã tem o propósito de libertar o homem do


jugo da Lei, trazendo à consciência cristã o fato de que a doutrina da justificação a
substitui. Dito de outra forma, a liberdade cristã, como resultado da justificação
pela graça mediante a fé é a libertação de todo e qualquer tipo de servidão da
Lei.731 Em outras palavras, a justificação pela graça mediante a fé exclui toda e
qualquer idéia de justiça legal. O que significa que o ser humano nada pode fazer.
Ele não tem condições para pagar sua salvação mediante a lei, pois já está de
posse da graça por meio de Jesus Cristo. Vejamos as próprias palavras do
reformador:

Neste gonzo, resolve-se quase todo o argumento


da epístola aos Gálatas. Ora, insulsos intérpretes serem
(os) que ensinam que nela Paulo está a pugnar apenas
liberação das cerimônias, das passagens dos arrazoados
se pode provar, quais são estas: “Que Cristo se haja feito
maldição por nós, para que nos redimisse da maldição da
Lei” (Gl 3.13); igualmente: “Estais firmes na liberdade
com que Cristo vos libertou e não vos enredilheis de
novo no jugo de servidão. Eis, eu, Paulo, digo, se vos
circuncidais, Cristo nada vos aproveitará. E (aquele) que
se circuncida, devedor é da Lei inteira. Cristo se vos há
feito supérfluo, quantos e quaisquer que sois justificados
pela Lei; da graça haveis decaído” (Gl 5, 1-4),
(passagens) nas quais, certamente, algo mais sublime se
contém que a (mera) liberação das cerimônias.732

Ao contrário da Lei, o Evangelho da graça anuncia uma nova vida em Jesus


Cristo, na qual o ser humano encontra verdadeira libertação, resultando em paz,
segurança e vida abundante. Calvino afirma:

731
Institutas, livro III, p. 299.
732
Institutas, livro III, p. 3.
240

A liberdade cristã, como eu, de fato, sinto, está


contida em três partes. A primeira, que as consciências
dos fiéis, enquanto (sic) confiança de sua justificação
diante de Deus, há de buscar-se e acima da Lei se alcem
e transladem, e esqueçam toda a justiça da Lei. Ora,
como já foi demonstrado em outro lugar, uma vez que a
Lei a ninguém deixa justo, ou somos excluídos de toda
esperança de justificação, ou dela nos importa ser
libertados, e, assim, por certo, que nenhuma
consideração de obras de todo se tenha. Ora, (aquele)
que pensa que para obter justiça deve trazer ao menos
um poucochinho de obras, não pode prefixar (-lhes) a
medida ou limite; pelo contrário, constituiu-se devedor
da Lei inteira. Portanto, alijada a menção da Lei e posta
de lado toda cogitação de obras, quando de justificação
se trata impõem-se abraçar a só misericórdia de Deus e,
o olhar desviado de nós, só a Cristo contemplar. Pois, aí
não se indaga como sejamos justos, mas, ao contrário,
como, embora injustos e indignos, sejamos tidos por
justos, cousa de que, se as consciências querem alcançar
alguma certeza, nenhum lugar devem dar à Lei.733

Diante dessa nova realidade, inaugurada por Jesus Cristo, no anúncio do


Reino de Deus, somos constrangidos a abandonar toda justiça da Lei, apegando-
nos unicamente à justiça de Deus. Calvino diz que

[...] uma vez que a Lei a ninguém deixa justo, ou


somos excluídos de toda esperança de justificação, ou
dela nos importa ser libertados, e, assim, por certo que,
nenhuma consideração de obra de todo se tenha.734

Significa dizer que, segundo o Evangelho, não há salvação, libertação, e,


conseqüentemente, liberdade, através dos méritos das obras, posto que devemos
fixar-nos única e exclusivamente nas misericórdias de Deus, deixando de olhar
para nós mesmos, e “só a Cristo contemplar”.735

733
Institutas, livro III, p. 299.
734
Institutas, livro III, p. 299.
735
Ibidem, p. 299. Tal posição, que, em primeiro lugar, tem seu fundamento nos evangelhos,
choca-se com o conceito de salvação pós-moderno, no qual a salvação, de modo geral, está
centrada no homem, e não na pessoa e obra redentora de Jesus Cristo. A unicidade e a
universalidade salvíficas de Cristo tornam-se um dos grandes desafios soteriológicos do nosso
tempo.
241

A questão se impõe da seguinte forma: o princípio não é como sejamos


justos, pelo contrário, como conscientes de nossa injustiça e indignidade diante de
Deus, somos por Ele “tidos por justos”,736 certeza que só podemos ter pela força
da fé, nunca pela força da Lei.737
Calvino demonstra enfática e claramente que o tema da libertação da
servidão da Lei é tratado na carta aos Gálatas, onde ali temos a visão paulina
sobre a liberdade cristã, o que veremos mais detalhadamente no terceiro capítulo
de nosso trabalho (Gl 3,13; 5,1-4).
Na verdade, Paulo trata na carta da libertação que ultrapassa os rituais
cerimoniais, visto que “as velhas sombras da Lei foram abolidas pela vinda de
Cristo”.738 Paulo está combatendo as falsas doutrinas que tentam reintroduzir no
seio das Igrejas, por judeus supostamente convertidos, insistindo na ação meritória
das obras da Lei diante de Deus.
Em segundo lugar, a liberdade cristã tem o propósito de libertar o homem da
obediência obrigatória à Lei, pois o Evangelho da graça promove livre e amorosa
obediência à Palavra de Deus. Tal obediência é resposta livre ao amor de Deus,
pois é a força do amor que provoca a decisão de obedecer.739 Calvino insiste no
fato de que, agora justificados em Cristo pela graça, mediante a fé, nossa
obediência a Deus se dá não mais pela força da Lei, mas pela força do amor, da
liberdade de amar, como resposta à ação primeira de Deus em nossa direção.740
Ou seja, não há mais obediência compulsória. Calvino diz:

736
Institutas, livro III, p. 299.
737
Institutas, livro III, p. 299.
738
Institutas, livro III, p. 299.
739
BULTMAN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento, op. cit., p. 418.
740
Institutas, livro III, pp. 300,301.
242

A segunda (função da liberdade cristã), que


depende dessa primeira, (é) que as consciências guardem
a Lei não como se coagidas pela necessidade da Lei,
mas, ao contrário, livres de jugo da própria Lei,
obedeçam espontaneamente à vontade de Deus. Pois,
visto que vivem em perpétuos terrores por quanto tempo
estão sob o domínio da Lei, jamais estarão dotados de
álacre prontidão para com a obediência a Deus, a menos
que antes brindadas com liberdade desta natureza. Mercê
de um exemplo, não só mais sucinta, mas ainda mais
perspicuamente, compreenderemos a que fim tendam
estas (cousas) preceito é da Lei que “amemos ao nosso
Deus de todo o coração, de toda a alma, de todas as
forças” (Dt 6.5).741

Tomado pela graça em Jesus Cristo, o cristão não obedece a Deus sob a
pressão da lei, ao contrário, sua obediência segue o caminho da gratuidade, da
voluntariedade, como homem liberto em Cristo Jesus. Nele, não há espaço para
qualquer tipo de obediência por obrigação. A graça exige amor, como resposta ao
amor de Deus. Daí surge a liberdade para servir a Deus e ao próximo. A liberdade
alcançada pela libertação, operada pela obra redentora de Cristo, acontece agora
no campo da reciprocidade amorosa, pelo estabelecimento da comunhão que se
rompera pelo pecado. Em Cristo, somos livres para amar. Amar a Deus, a nós
mesmos, ao próximo e à criação. Perspicuamente haveremos de compreender,
inclusive, o próprio princípio da Lei, que “amemos ao nosso Deus de todo o
coração, de toda a alma, de todas as forças” (Dt 6,5).742 Por isso que André Biéler
afirma:

741
Institutas, livro III, p. 300.
742
Institutas, livro III, p. 300.
243

A vida em Cristo é, então, a um tempo, libertação


e cumprimento da lei. Se não está mais sob o julgo da lei
moral, da qual está totalmente liberado, o cristão, longe
de rejeitá-la, ao contrário, obedece a ela livremente,
voluntariamente, e sem qualquer coerção, pois vive com
Jesus Cristo, que cumpre perfeita e integralmente esta
lei.743

Em outras palavras, a consciência cristã não precisa submeter-se ao jugo da


lei, de forma obrigatória e compulsória, como já dissemos acima. Sua obediência
nasce da consciência de sua relação gratuita com Deus, fruto de sua graça e da
consciência de que faz parte da aliança com o Senhor. Ou seja, sua obediência é
voluntária, em resposta ao amor de Deus. O desafio da liberdade cristã, na relação
com Deus, é buscar uma intimidade tal, que os desejos e egoísmos, ainda próprios
do ser humano, sejam desalojados do coração, e o caráter de Cristo esteja sendo
forjado em nós, nascendo daí um novo ethos do vital humano744 - segundo o
conceito de Nilo Agostini - visando ao exercício contínuo do amor a Deus.
Ao contrário da obediência servil, a liberdade cristã produz obediência filial.
Logo, relacional, prazerosa, não mais compulsória. Se a nossa relação com Deus
passa a ser paternal, Calvino afirma:

743
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. p. 294. Ver BULTMANN,
Rudolf. Teologia do Novo Testamento. p. 415. “Claro está que Cristo é o fim da lei na medida em
que a lei tinha a pretensão de ser o caminho da salvação ou na medida em que foi entendida pelo
ser humano como meio para estabelecer a justiça própria. Pois, na medida em que contém a
exigência de Deus, ela continua em vigor”. Cf. Robson da Costa de Souza. Vocação para
Liberdade. Uma Reflexão Teológica da Doutrina Cristã Acerca da Libertação. Trabalho
monográfico apresentado no Seminário Teológico Presbiteriano do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.
2004. Robson faz parte de um grupo pequeno de alunos que, encorajados por mim, como professor
de Ética, tem procurado desenvolver sua linha de pesquisa nessa área não apenas pertinente e
relevante, como também escassa no Brasil.
744
AGOSTINI, Nilo. Ética Cristã e Desafios Atuais, op. cit., pp. 16-32.
244

Os filhos, no entanto, que são tratados pelos pais


mais generosamente e em moldes mais consentâneos
com as pessoas livres, não vacilam em lhes oferecer
obras incompletas e feitas pela metade, até mesmo tendo
algo de imperfeição, confiados em que lhes haverá de ser
aceitável sua obediência e disposição de ânimo, ainda
que hajam feito menos exatamente o que os pais
queriam. Tais filhos nos importam ser, que confiemos,
com certeza, que nossos atos de obediência, por
insignificantes que sejam e por mais grosseiros e
imperfeitos, haverão de ter sido aprovados pelo Pai
Indulgentíssimo, como, aliás, nos confirma através do
profeta: “Poupá-los-ei como um pai costuma poupar ao
filho que o serve” (Ml 3.17), onde poupar se evidencia,
posto por ser indulgente ou fechar humanamente os
olhos para com as faltas, enquanto, ao mesmo tempo,
faça menção de serviço. Nem pouco necessária nos é esta
confiança, sem a qual tudo tentaremos em vão, por isso
que de nenhuma obra nossa Deus se considera servido, a
não ser aquela que, realmente, para seu serviço de nós se
faça. Como, porém, possa isto ser entre esses
sobressaltos, quando se duvida se, porventura, Deus seja
ofendido, ou seja, reverenciado pela nossa obra?745

A liberdade cristã só pode ser compreendida e vivida, por aqueles que


tiveram a experiência, pela fé, com o Cristo ressuscitado, posto que, na dinâmica
da vida cristã, a liberdade anima o indivíduo a praticar o bem, uma vez que não
está mais debaixo da Lei, mas sob a graça (Rm 6,12-14).746
Segundo o Evangelho, a fé em Jesus Cristo implica em obediência a Deus e
no próprio seguimento de Jesus Cristo, em sua humildade e amor. O pressuposto
teológico da obediência é a graça de Deus derramada nos corações dos homens.
Em seu livro Discipulado, Bonhoeffer assevera que

[...] o verdadeiro chamado de Jesus e a resposta em


forma de obediência total tem uma relevância
irrevogável. É somente a esta obediência que é dada a
promessa da comunhão com Jesus.747

745
Institutas, livro III, pp. 301,302.
746
Institutas, livro III, p. 302. Cf. ALLMEN, J. J. Von. Vocabulário bíblico, op. cit., p. 301. Ver
também: BURGE, G. M. “Obediência”. In: Ethic III, p. 37. PACKER, J. I. “Obediência”. In: O
Novo Dicionário da Bíblia. Vol. II, p. 1134.
747
BONHOEFFER, D. Discipulado, op. cit., p. 36.
245

Na relação entre obediência e Lei, Jesus Cristo é aquele que rompe com todo
tipo de casuísmos e legalismos, desafiando homens e mulheres a uma obediência
do coração, capaz de discernir a verdadeira exigência de Deus. A obediência
exigida por Jesus está fundada no amor, concretizada numa ética de atitude,
sendo, portanto, uma obediência reflexiva dos livres, e não submissão absoluta e
cega dos escravos. Com isso, entendemos a superação da Lei na imersão do
mistério da graça, através da experiência com o Cristo ressuscitado, promovendo,
no homem, uma nova consciência, capaz de julgar e agir segundo o Evangelho da
graça.748 Bultman traz uma contribuição significativa quando afirma:

A obediência radical existe somente quando um


homem dá seu assentimento íntimo àquilo que é pedido
dele [...]. Quando o homem inteiro está por trás daquilo
que faz; ou melhor, quando o homem inteiro está dentro
daquilo que faz, quando não está fazendo algo de modo
obediente, mas é essencialmente obediente.749

A liberdade de consciência, produzida pela libertação do Evangelho, conduz


o homem a viver e a agir segundo suas novas convicções, resultado de sua fé em
Cristo. Por isso que, para o apóstolo Paulo, a consciência livre em Cristo é o
espaço para sua reflexão e seu agir éticos. É o lugar da avaliação
comportamental.750 A consciência cristã torna-nos sensíveis de nós mesmos, do
mundo no qual habitamos, do outro com quem nos relacionamos e convivemos, o
que é fundamental em nosso devir. É a partir da percepção dessas realidades que
atestamos que, ainda segundo o apóstolo Paulo, a consciência fraca jamais pode
invalidar a verdadeira obediência à Palavra de Deus, visto que, nas questões
adiáforas, como também afirma Calvino, o parâmetro do agir cristão é a Lei do
amor ao próximo.

Só por isso Paulo deixa valer a forma de vida dos


“fracos” que não conseguem se livrar do seu passado e
não conseguem, ainda, tirar as conseqüências corretas da
confissão do único Deus e Senhor, portanto ainda não
enxergam na carne sacrificada aos ídolos, um alimento
como outro qualquer.751

748
SCHRAGE, Wolfgan. Ética do Novo Testamento. São Leopoldo-RS: Sinodal. 1994, p. 48
passim.
749
BURGE, G. M. “Obediência”. In: Ethic. Vol. III, pp. 37,38.
750
SCHRAGE, Wolfgan. Ética do Novo Testamento, op. cit., p. 199 passim.
246

Na verdade, tanto Paulo como Calvino falam que o agir cristão, na prática da
liberdade do amor, seja para com os mais fracos ou mais fortes, promove o
crescimento do homem, tornando-o mais adulto, maduro e responsável, em todas
as dimensões. Mais especificamente, na teologia de Calvino, a consciência não se
submete à Lei, posto que sua obediência é livre e voluntária a Deus. Ou seja, a
bondade de Deus reconhece nossa imperfeição, mas aceita nossas atitudes de
obediência.752 Ao comentar Romanos 13,5, ele afirma que:

Não devemos obedecer só porque não podemos


resistir aos que se acham amados e são mais poderosos
[...]. Ao contrário, devemos voluntariamente aprender a
submissão à qual nossa consciência se acha jungida pela
Palavra de Deus.753

Depreendemos desse comentário que, mesmo a consciência jungida pela


Palavra de Deus, o desafio à obediência não significa um comportamento
incoerente.
Em terceiro lugar, a liberdade cristã tem o propósito de libertar o homem de
tudo que não é proibido nem ordenado, ou seja, ele está livre do uso das coisas
indiferentes, como afirmamos agora pouco. O cristão está livre para agir, sempre
conforme sua consciência libertada pelo Evangelho de Jesus Cristo, sempre dentro
de cada contexto, agarrado aos valores do Evangelho. Em outras palavras, a
liberdade cristã confere à consciência o direito livre de usar as coisas chamadas
adiáforas (indiferentes). O cristão não vive a vida religiosa dominado por qualquer
circunstância que lhe esteja externa ou adiaphora,754 mesmo que a lei ensine a
perceber as verdadeiras obras, mas que não passam de obediência a Deus. Nas
palavras de Calvino podemos ver que,

751
Ibidem, p. 200.
752
Institutas, livro III, pp. 298 passim.
753
Romanos, p. 454.
754
LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Volume III. 1989, p. 89.
ADIÁFORO é uma linguagem usada na teologia luterana, que quer dizer “indiferente”. Pode ser
usado desde que não entre em conflito com a centralidade de Cristo. Isto é, referindo-se às
cerimônias religiosas, espiritualidade, qualquer costume ou prática que se arraste ao longo do
tempo, que não venha a obscurecer a luz de Jesus Cristo nos evangelhos.
247

[...] ora, porquanto o Senhor, ao ensinar a norma


da perfeita justiça, sujeitou-lhe todas as partes à sua
vontade, nisto se indica nada ser-lhe mais agradável que a
obediência. Isto é de se observar tanto mais
diligentemente quanto mais propensa é a intemperança da
mente humana a excogitar, vezes muitas, variadas
expressões cultuais, mercê das quais granjear-lhe as boas
graças. Pois em todos os tempos, esta irreligiosa
afectação de religião, por isso que é, de natureza, ínsita
na mente humana, se tem manifestado, e ainda hoje se
manifesta, porque os homens sempre se comprazem
efusivamente em engendrar forma de alcançar justiça à
parte da Palavra de Deus. Daí, entre as que se contam
comumente como boas obras, mais reduzido lugar têm os
preceitos da Lei, aquela incontável multidão de
(preceitos) humanos ocupando quase todo o espaço.755

Uma consciência livre pelo poder libertador do evangelho, pelo mover do


Espírito, por meio de quem chamamos Deus de Pai (Rm 8, 14-16), pois se trata do
Espírito do Senhor (Rm 8, 11), Ele, o Espírito, há de conduzir-nos a uma vida
com discernimento e leveza, diante das coisas sobre as quais não há regulamentos
tácitos e muito menos fechados.756 Quanto a isso Calvino, declara:

Com efeito, quando uma vez no laço se


enredilharam as consciências, entram em um longo e
inextricável labirinto de onde, ao depois, não fácil se
mostra a saída. Se alguém haja começado a duvidar se,
porventura, lhe seja lícito usar linho nos lençóis,
camisas, lenços, guardanapos, nem do cânhamo, ao
depois, estará seguro, finalmente, até de estopa incidirá
dúvida, pois consigo revolverá se possa, porventura,
jantar sem guardanapos, se, porventura [possa]
prescindir de lenços. Se a alguém houver parecido ilícito
alimento um pouco mais refinado, por fim nem pão
ordinário e iguarias comuns comerá tranqüilo diante de
Deus, enquanto à mente vem que pode sustentar o corpo
com víveres ainda mais baratos. Se em vinho mais suave
haja hesitado, a seguir, nem zurrapa beberá com boa paz
de consciência; por fim, nem ousará tocar em água mais
doce e mais limpa que outras. Finalmente, a tal ponto
virá, afinal, que, como se diz, julgue ilícito caminhar por
sobre uma palha atravessada no (caminho).757

755
Institutas, livro II, p. 05.
756
Institutas, livro III, p. 303.
757
Institutas, livro III, p. 303.
248

Para o reformador, a liberdade cristã é uma realidade espiritual, capaz de


pacificar a consciência do ser humano diante de Deus, seja “quanto à remissão dos
pecados”,758 seja por algum tipo de práticas imperfeitas pela realização de coisas
adiáforas. Ou seja, a liberdade cristã não favorece a prática de qualquer tipo de
ostentação e de luxo, como se fossem práticas de coisas indiferentes.759 Paulo diz:
“Todas as coisas são puras para os puros; todavia, para os impuros e descrentes,
nada é puro. Porque tanto a mente como a consciência deles estão corrompidas”
(Tt 1,15). Calvino argumenta dizendo que,

[...] certamente que marfim, e ouro, e riquezas, são


criações boas de Deus permitidas, de fato, destinadas
pela providência de Deus, aos usos dos homens. Nem foi
jamais proibido rir, ou fartar-se, ou adjungir novas
propriedades às antigas e ávitas, ou deleitar-se em um
concerto músico, ou beber vinho. Verdadeiro é isto,
certamente. Mas, onde está à mão abundante de coisas
para chafurdar-se em deleites, e neles engurgitar-se, a
mente e o coração inebriar de prazeres do momento e
estar sempre anelante por prazeres novos, estas coisas
muitíssimo distanciadas estão do legítimo uso dos dons
de Deus.760

A grande beleza e leveza da liberdade cristã, nesse particular, está tanto no


abster-se quanto no usar ou fazer. Isto é, quando a liberdade é estabelecida diante
de Deus, tendo o entendimento de que nada importa diante dEle, no que tange a
alimentação, vestuário, “é o suficiente, a consciência está liberada”.761
Cometemos erro quando não respeitamos a debilidade ou fraqueza dos irmãos
(Rm 14.1), afirma Calvino.762

758
Institutas, livro III, p. 305.
759
Institutas, livro III, p. 305.
760
Institutas, livro III, p. 305.
761
Ibidem, idem, p. 43.
762
Institutas, livro III, p. 307.
249

Segundo a teologia de Calvino, a partir do conhecimento da teologia


paulina, a liberdade cristã deve buscar sempre o bem do próximo, sua edificação.
“Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, mas nem
todas edificam. Ninguém busque o seu próprio interesse, e sim o de outrem” (I Co
10, 23,24). Contudo, é mister afirmar, diz o reformador genebrino, “que a
liberdade cristã, conquanto busque o amor ao próximo, não pode ela comprometer
a pureza da fé763, visto que a consciência não pode sujeitar-se a qualquer tipo de
preceitos humanos e, inclusive, suas imposições.”764
Para Calvino, há um grande desafio à liberdade cristã, que é trafegar entre a
dimensão espiritual, que chama de reino espiritual, e a dimensão temporal, que
chama de reino temporal, visto que o homem está sujeito aos dois reinos.765 Ou
seja, há um duplo regime no homem. O primeiro, que é espiritual, conduz a
consciência instruída pela Palavra “à piedade e ao culto de Deus”.766 O segundo,
chamado por Calvino de político, é aquele através do qual “o homem é educado
aos deveres de humanidade e civilidade, que se têm de observar entre os
homens”.767
Tais regimes podem ser chamados também de jurisdição espiritual e
jurisdição temporal. Ao meu ver, reside aqui um dos desafios da liberdade cristã,
qual seja, produzir, na vida cristã, um ser humano não alienado do seu tempo, mas
conectado com as realidades vigentes de sua época e pronto para responder aos
seus mais diversos interlocutores e, ao mesmo tempo, ser um indivíduo cristão
aberto ao transcendente, às questões últimas de sua alma. A dimensão espiritual
ocupa moradia na mente interior, no coração mesmo, já a dimensão temporal
ocupa a moradia exterior, através dos costumes e práticas externas.768 No entanto,
Calvino diz que:

763
Institutas, livro III, p. 309.
764
Institutas, livro III, p. 310.
765
Institutas, livro III, p. 311.
766
Institutas, livro III, p. 311.
767
Institutas, livro III, p. 311.
768
Institutas, livro III, p. 311.
250

Mas, estes dois reinos, como os havemos dividido,


devem ser sempre examinados separadamente, um a um,
e, enquanto se considera um, importa refocar-se e
abstrair-se a mente da cogitação do outro. Pois há no
homem como que dois mundos, aos quais podem presidir
não só reis distintos, mas também leis diversas. Com esta
distinção acontecerá que não tragamos, indevidamente, à
ordem política o que o Evangelho ensina a respeito da
liberdade espiritual, como se, no que tange ao regime
externo, menos sujeitos às leis humanas estivessem os
cristãos, porque libertada lhes há sido a consciência
diante de Deus, como se, por isso, eximidos estivessem
de toda servidão da carne pelo fato de que estão livres no
tocante ao espírito.769

A liberdade oferecida por Deus, na pessoa de Jesus Cristo, e operada na


ação do Espírito Santo no coração do homem, como já dissemos, torna a pessoa
justificada diante de Deus. A fé exerce papel preponderante nessa dinâmica da
justificação. A justificação possui alcance sobremodo abrangente, incluindo a
totalidade do homem e todas as suas obras, inclusive as injustas.770 Sobre isso,
Calvino destaca que,

[...] quando Paulo diz que a Escritura havia


previsto que pela fé haja Deus de justificar aos gentios
(Gl 3.8), que outra (cousa) devas entender (senão) que
Deus imputa a justiça pela fé? Igualmente, quando diz
que Deus justifica o ímpio que é de Cristo pela fé [Rm
3.26], qual pode ser o sentido, senão pelo benefício da
fé libertá-(los) da condenação que sua impiedade
merecia?.771

769
Institutas, livro III, p. 311.
770
Calvino diz que “[...] a sociedade de Cristo vale tanto que, por esta razão, somos não só
graciosamente recebidos como justos, mas também nossas próprias obras são havidas como justiça
e recompensadas de eterno galardão [...] Recebido à comunhão de Cristo [...] Apagada, destarte, a
culposidade das transgressões que impedia que produzissem os homens algo que fosse agradável a
Deus, sepultados também os vícios de imperfeições de que são tisnadas e maculadas todas as boas
obras, então estimadas por justas as boas obras que os fiéis praticam, ou, melhor, que a tanto
equivale, são imputadas para justiça.” Cf. CALVINO, João. Catecismo de 1537, pp. 46-47. Ver
também: OC, tomo XXII, pp. 51-52. Cf. Institutas, livro III, cap. 17, seção 7.
771
Institutas, livro III, cap. 11, seção 3.
251

Na visão de Calvino, a doutrina da justificação não diz respeito a qualquer


mérito humano. Ou seja, é na justiça de Cristo que Deus declara o homem
justificado. Em outras palavras, o homem é revestido pela justiça de Cristo, por
meio da fé, e inserido na vida de Cristo, Deus o declara justo. Aqui temos a
grande diferença entre justificação pela fé da justificação pelas obras. Assim,
Calvino e Lutero pensam concordemente. O reformador francês discorrendo sobre
a justificação pela fé, diz que:

Em contraposição, será justificado pela fé aquele


que, excluído da justiça das obras, apreende pela fé a
justiça de Cristo, revestido da qual aparece à vista de
Deus não como pecador, pelo contrário, como justo.
Destarte, interpretamos nós a justificação simplesmente
[como] a aceitação mercê da qual, recebidos à Sua graça,
Deus nos tem por justos. E a dizemos haver consistido na
remissão de pecados e na imputação da justiça de
Cristo.772

Em outras palavras, a função da fé é selar a união do homem a Deus, por


meio de Jesus Cristo. A justificação se dá exatamente nesse momento de união
com Cristo, diz Calvino. A genuína liberdade é resultado dessa santa vocação de
Deus, através da qual o homem é declarado justo e, capacitado pelo Espírito, vive
a plenitude dessa vocação.773 Qualquer outra posição diferente pode, com
facilidade, conduzir a todo tipo de orgulho.774
Percebe-se pela sua soteriologia que o objetivo final dos atos redentivos é
promover a liberdade do ser humano, livrando-o e restaurando-o na sua
capacidade de viver com integridade.

772
Institutas, livro III, cap. 11, seção 2.
773
CR, 74:23.
774
Institutas, livro III, cap. 12, seção 7.
252

Conclusão

Afirmamos desde o início deste capítulo, que a liberdade cristã é, na


verdade, a grande temática da Reforma. Tal afirmação tem como pressuposto a
genuína experiência com o Cristo ressurreto, através da justificação pela graça
mediante a fé. Percebeu-se em Calvino a fragmentação do ethos humano, fruto de
sua ruptura com o Criador. Mas mesmo em processo de ruptura, o homem carrega
em si elementos da imagem e semelhança de Deus, o que o reformador chama de
sensus divinitatis ou semem religionis. Ou seja, para Calvino, apesar do pecado
que afetou a constituição do vital humano, este é visto por Deus com dignidade e
a ele é oferecido o dom da salvação, em que o próprio Deus é quem o chama para
uma nova experiência de vida, que resultará na formação de um novo homem, de
uma nova comunidade – eklesia tou théou – a assembléia de Deus e,
conseqüentemente, na formação de uma nova sociedade. A Igreja de Cristo torna-
se assim sinal do Reino de Deus.
Na verdade, partimos para uma investigação acerca dos paradigmas
antropológico, eclesiológico, cristológico e soteriológico e constatamos o centro
de nossa tese, qual seja, a liberdade emergente de tais conceitos bíblico-teológicos
em Calvino, liberdade esta fundamental para o resgate do verdadeiro querigma,
cujo conteúdo é o anúncio das boas novas de libertação, tendo Jesus Cristo como
paradigma único e universal de salvação, mediação do Pai com os homens.
A Reforma Protestante é considerada uma volta às origens
neotestamentárias. Por isso que, em certo sentido, não há nenhum elemento
teológico novo, visto que se buscou, nas Escrituras, os elementos fundantes da
Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. Sendo assim, nossa próxima empreitada
trata-se, exatamente, de olhar os fundamentos da liberdade cristã a partir da
proclamação do Evangelho por meio de Jesus Cristo, este que aproxima o Reino
de Deus e outorga a libertação do homem, no encontro com o próprio Cristo,
consigo mesmo, com o próximo e com a criação. Verdadeiramente, a liberdade
emerge do encontro com o Cristo redivivo e com toda a sua mensagem libertária e
libertadora. Faz-se necessário, também, contemplar São Paulo, especialmente em
sua carta aos Gálatas, quanto à sua visão de liberdade. Eis o nosso próximo
desafio.
253

Quarto Capítulo

4
O Reino de Deus e a Liberdade Cristã

Nossa intenção, neste capítulo, é analisar a liberdade cristã dentro do


contexto da vocação de Deus na gratuidade de seu Filho, Jesus Cristo, quanto ao
estabelecimento do Reino nos corações sensíveis ao seu chamado; a formação da
Igreja na dinâmica do Espírito Santo, como espaço da práxis da liberdade; seu
comissionamento, dado pelo Senhor Jesus aos seus discípulos, a fim de que
dessem continuidade à Sua missão, vivendo e proclamando o Evangelho, que
convida à liberdade, e agindo, concretamente, na história,775 para promoção de
uma nova sociedade com sinais tangíveis do Reino do Pai. Faz-se necessário, por
força do próprio tema de nosso trabalho, verificar a teologia paulina sobre a
liberdade cristã, especialmente em sua carta aos gálatas.

4.1
Jesus Cristo e a Chegada do Reino de Deus

Como pano de fundo ao irrompimento do Reino de Deus na pessoa de Jesus


Cristo, podemos trazer algumas considerações breves sobre o contexto histórico.
Sendo assim, podemos afirmar que a Palestina é uma pequena região, marcada
pela pobreza, porém, era geopoliticamente estratégica, devido à confluência de
interesses políticos sírio-fenício-palestinos. Os elementos físicos, característicos
da região, era o deserto, o Rio Jordão e os oásis. E, geopoliticamente, era
caracterizada pelos interesses comerciais e políticos, contrastados com a
consciência religiosa dos judeus e sua compreensão de ser um povo liberto por
Deus.

775
Podemos afirmar que Deus inculturou-se na pessoa de Jesus Cristo, que exerceu seu ministério
no horizonte da história, buscando fazer do Reino do Pai um fermento lançado à massa, capaz de
provocar profundas e radicais mudanças. Por isso, entendemos “inculturação” na mesma
perspectiva do processo de Encarnação de Jesus Cristo (Cf. Jo 1, 1ss; Heb 1,1ss). O termo é novo
e, no dizer do Pontífice da Igreja Católica Romana, João Paulo II, “significa a íntima
transformação dos valores culturais autênticos, pela sua integração no cristianismo, e o
enraizamento do cristianismo na várias culturas”. Ou seja, pelo processo de inculturação, a Igreja
encarna o Evangelho nas diversas culturas e simultaneamente introduz os povos, com todo o seu
ethos cultural, nas suas próprias comunidades. Cf. REB 53 N. 212/DEZ. 93, p. 194.
254

A prática religiosa judaica fundamentava as relações sociopolíticas na


Palestina do tempo de Jesus. A concepção de ser Jerusalém a cidade escolhida por
Deus e ser a Palestina a terra prometida por Yahweh, constituíram os dois legados
que marcaram os episódios religiosos do AT e do NT.
O governo de Herodes, o Grande, durou entre 37 e 4 a.C.. Ele governou
sobre os territórios da Judéia, Samaria, Iduméia, Galiléia e Peréia. Herodes, o
Grande, teve o poder, delegado por Roma, de governar a Palestina, embora não
fosse judeu.776
Após a morte de Herodes, seu reino foi dividido entre seus filhos. Herodes
Arquelau herdou de Herodes, o Grande, a Judéia, a Samaria e a Iduméia, que
governou até o ano 4 d.C.; e Herodes Antipas governou as regiões da Galiléia e
Peréia, de 4 a.C. até 39 d.C. Este último é, dentre os soberanos herodianos, o mais
mencionado no NT.
Do ano 6 até 41 d.C, a Judéia, a Samaria e a Iduméia passaram a ser
administradas diretamente por procuradores romanos. Agripa, descendente de
Herodes, governou esta região entre 41 e 44 d.C.. Após este período, a
administração voltou às mãos dos procuradores romanos.
No tempo de Jesus, a Palestina está imersa numa crise de identidade. De
Alexandre, o Grande, e no decorrer dos trezentos anos que se seguiram, a
perseguição cultural contra os judeus foi constante. Houve uma forte emigração
de judeus que se conformaram com os costumes e hábitos mediterrâneos orientais
e egípcios – emigração esta chamada Diáspora.777
A configuração social da Palestina proporcionou a emergência de partidos e
movimentos de natureza religiosa e política. Na sociedade judaica, existiam duas
correntes religiosas que expressavam maior influência na religião judaica: os
saduceus e os fariseus. Junto a elas existiam movimentos de natureza messiânica
com posicionamento oposto ao status quo religioso ou civil: os sicários, os
zelotas, e os essênios.

776
KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judéia, São Paulo: Paulus,
1988, pp. 109-116.
777
“A expressão mais clara desse desenvolvimento é a concentração da posse da terra na mão de
poucos latifundiários. Ela determinava - talvez com uma exceção parcial na época hasmonéia - a
255

4.1.1
O Reino de Deus no Novo Testamento

Quando o período neotestamentário surge, as expectativas messiânicas


fazem parte do quotidiano dos principais grupos religiosos da época. Esta idéia é
assumida sob o enfoque imanente pela ideologia dos essênios, fariseus, saduceus e
zelotas.
A mensagem central de Jesus Cristo sempre girou em torno do Reino de
Deus, cujo propósito era o domínio de Deus sobre o coração do homem.778 A
pregação falava não só de um Reino sem qualquer dimensão temporal ou espacial,
mas também sobre a soberania de Deus sobre todas as coisas e sua ação redentora
na vida integral do ser humano. Não se tratava também de um novo Reino, mas
tão somente do advento, da chegada, do aparecimento, do desvelamento do Reino
sempre existente. Não era um Reino futuro, mas presente, inaugurado, chegado
“em” e “com” sua presença e mensagem.779 Biéler afirma que

“[...] por certo que a vinda do Reino de Deus já se


manifestou no drama de que a cruz do gólgota e a
ressurreição da Páscoa são os atos culminantes. A
criação toda recebeu aí, o penhor de sua reconciliação
com Deus e consigo mesma, representando o fim de sua
alienação.780

Logo, constata-se a perfeita vontade de Deus no centro da mensagem de


Jesus Cristo.781 Jesus Cristo é o único mediador dessa experiência salvífica.782 Em
Cristo, não há mais barreiras entre Deus e o homem, e sua soberana vontade é
executada pela ação do Espírito Santo.783

situação econômica da Palestina inclusive no período romano.” STEGEMANN, Ekkehard W. e


STEGEMANN, Wolfgang, p. 131.
778
GNILKA, J. Jesus de Nazaré – Mensagem e História. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes,
2000, p. 83.
779
GOPPELT, L., p. 86.
780
BIÉLER, André. op. cit., p. 350.
781
GARDNER, E. C., op. cit., pp. 86-89.
782
Institutas, livro II, cap. 12, seções 1 a 4.
783
BRUNNER, E. Teologia da Crise. São Paulo: Novo Século, 2000, p. 78.
256

Portanto, pertencer ao Reino784 significa viver sob o senhorio de Deus


através de Jesus Cristo.785 A realidade do Reino de Deus é maior do que qualquer
prática cristã, mas a verdadeira prática cristã é vivida por aqueles que fazem parte
do Reino. Jesus Cristo é aquele que traz a realidade do Reino à vida humana.
O especialista em NT, o exegeta Goppelt, declara que “a atividade de Jesus
gira em torno de um conceito fascinante. Tudo se relaciona com Ele e tudo
provém Dele. Esse centro é a basiléia tou theou, o reino de Deus”.786 Schmidt diz
que “o Reino de Deus é a totalidade da mensagem de Jesus Cristo e de seus
Apóstolos”.787
Na verdade, o Reino de Deus diz respeito aos que são inseridos em uma
nova aliança, pela própria vocação do Pai, como expressão de sua graça, através
de Jesus Cristo, vivendo agora sob o senhorio de Cristo.788 “O Reinado de Deus
deve exercer-se na história e o reino de Deus deve ser uma realidade dentro
dela”.789
O Reino de Deus, apresentado por Jesus Cristo, é dom gratuito de Deus, ou
seja, é o dom do amor, que tem sua iniciativa no próprio Deus. Como dom, o
Reino de Deus é recebido pelo homem através da abertura e da receptividade sem,
contudo, perder a dimensão de sua inabilidade quanto a sua auto-salvação.790
Sendo assim, o Reino é o poder dinâmico de Deus que se torna visível por meio
de sinais concretos que mostram que Jesus é o Messias.
O Reino, anunciado e vivido “em” e “por” Jesus, não tem como fundamento
a violência nem a força das armas, visto que a realeza de Jesus não estava
vinculada a este mundo. Ao contrário, a força de sua realeza está no fato de que
ele comunica liberdade e vida pela força do Espírito na vida interior do homem.791

784
Segundo Karl L. Schimidt, os termos “Reino de Deus”, “Reino de Cristo” e “Reino dos Céus”
mostram o mesmo sentido primário de “realeza divina” ou “autoridade régia”. Ver SCHIMIDT, K.
L. Rei e Rei. In: KITTEL, G. AIgreja no Novo Testamento. São Paulo: ASTE, 1965, pp. 91-97.
785
CROSSAN, J. Reino e Sabedoria. In:_______, Jesus Histórico: a vida de um camponês judeu
do Mediterrâneo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994. cap. 12, pp. 302-339.
786
GOPPELT, L., op. cit., p. 80.
787
SCHMIDT, K. L. Rei e Reino. In: KITTEL, G. op. cit., p. 96.
788
YODER, John Howard. A Política de Jesus. São Leopoldo – RS. Sinodal. 1988, pp. 19-27.
789
MATEOS, Juan. A Utopia de Jesus. São Paulo. Paulus. 1994, pp. 13,14.
790
AZEVEDO, Marcello S. J. op. cit., pp. 35,36.
791
BARRETO, J. O Evangelho de São João. Análise Linguística e Comentário Exegético. São
Paulo: Paulinas. 1989, pp. 741,742.
257

Portanto, a esperança cristã consiste muito mais que uma utopia da fé.
Consiste num processo em direção à verdade, desapegada ao desespero das
esperanças terrenas, capaz de produzir confiança no Deus que proporciona todo
bem e toda justiça. Na dimensão do Reino, a esperança do cristão ultrapassa as
fluidas expectativas desse mundo, pois ele foi criado e recriado em Jesus Cristo
para uma realidade supramundana.
Crossan declara o seguinte sobre o tema:

O Reino de Deus é povo sob governo divino - e


isto, como ideal, transcende e julga todo o governo
humano. O foco da discussão não está em reis, mas em
governantes; não no reino, mas no poder; não no lugar,
mas no processo. O Reino de Deus é o que o mundo
poderia ser se Deus estivesse direta e imediatamente à
sua frente. Mas mesmo dentro dessa compreensão da
expressão, é possível e necessário imaginar uma
tipologia quádrupla básica do Reino de Deus no uso
judaico da época de Jesus. Imaginem-se quatro
quadrantes ou tipos criados pela intersecção de dois
eixos. Um eixo é uma distinção de tempo, com o futuro
ou presente em cada extremidade. O outro eixo é uma
distinção de classe, baseada mais uma vez no modelo de
Lenski, com os Arrendatários ou elites de escribas em
uma extremidade, e os Camponeses ou pessoas comuns
na outra.792

O Reino de Deus torna-se uma realidade histórica na pessoa de Jesus Cristo.


Por isso que o propósito central do NT é mostrar que, com a vinda do Messias, um
novo tempo é instaurado e, através da pessoa de Jesus Cristo e de sua obra, o
Reino de Deus tornou-se uma realidade.793 Portanto, Reino de Deus e cristologia
estão inseparavelmente ligados, pois, segundo Leonardo Boff, “Jesus prega,
presencializa e inaugura este reino”.794 Na verdade, em Jesus se cumpre toda a
esperança messiânica.

792
CROSSAN, John Dominic. Jesus: Uma Biografia Revolucionária. São Paulo: Imago. 1995, p.
70. Cf. PADILLA, C. René. Missão Integral. Ensaios sobre o Reino e a Igreja. São Paulo:
Temática Publicações. 1992, p. 142. Cf. BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis –
Rio de Janeiro: Vozes. 1985. Ver John Howard Yoder. A Política de Jesus. São Leopoldo: Sinodal.
1988, pp. 9-18.
793
PADILLA, C. René. op. cit., p. 197.
794
BOFF, Leonardo, op. cit., p. 62. Gottfried afirma que “L. Boff indiscutivelmente merece
consentimento ao embasar o falar sobre o reino de Deus na cristologia. Reside aí uma das mais
valiosas contribuições de seu livro”. Cf. BRAKEMEIER, Gottfried, p. 18.
258

Em A Santíssima Trindade, Boff declara que “Ele é a total expressão do


Pai”.795 Boff ainda declara sobre a realidade do Reino de Deus que:

Reino de Deus é a revolução e a transfiguração


total, global e estrutural desta realidade, do homem e do
cosmos, purificados de todos os males e repletos da
realidade de Deus [...]. No Reino de Deus, a dor, a
cegueira, a fome, as tempestades, o pecado e a morte não
terão mais vez [...]. Cristo veio para sanar toda a
realidade em todas as suas dimensões, cósmica, humana
e social [...]. A intervenção de Deus já (foi) iniciada, mas
ainda não totalmente acabada [...]. A pregação do Reino
se realiza em dois tempos, no presente e no futuro.796

Não sem razão a pregação apostólica traz a mensagem do Reino. Esta


pregação ou testemunho apostólico se faz pelos evangelhos, pelas cartas paulinas,
pelas cartas gerais e pelos textos joaninos, que tratam do Reino de Deus sob
enfoques distintos, porém sob o fundamento da pregação ou anúncio feito por
Jesus.

4.1.2
O Testemunho Apostólico do Reino de Deus nos Evangelhos

Os evangelhos apresentam, como a chave para a compreensão do Evangelho


de Jesus, o significado dinâmico de Reino (basiléia). O Reino que ele proclama é
o poder de Deus em ação entre os homens por meio de sua pessoa e seu
ministério. Orígenes disse que Jesus Cristo era o autobasiléia, ou seja, o Reino em
pessoa.797

795
Id., A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. Petrópolis – Rio de Janeiro: Ed. Vozes.
2000, p. 129.
796
BOFF, Leonardo, op. cit., pp. 62,66,67,69,74.
797
Comentário de Mateus 14.7 de Orígenes.
259

Entre os evangelhos, é em Marcos que o termo Reino de Deus aparece


catorze vezes. O termo798 é enfatizado, começando no batismo de Jesus Cristo. O
próprio evangelista interpreta este batismo como sendo a evidência da chegada do
Messias. Temos em Marcos o anúncio do Reino de Deus, como dissemos acima, a
irrupção do tempo de Deus. Em Jesus Cristo, Deus concretiza o seu projeto de
estabelecimento de seu Reino na vida do ser humano. O Reino de Deus, que é
transcendente, aproxima-se dos homens pecadores, ainda que não pertença à
realidade imanente.
Na verdade, “o Reino de Deus é a totalidade da mensagem de Jesus Cristo e
de seus Apóstolos”799 afirma Schmidt. Goppelt declara que “a atividade de Jesus
gira em torno de um conceito fascinante. Tudo se relaciona com ele e tudo provém
dele. Esse centro é a basiléia tou theou, o reino de Deus”.800
Em Marcos, a história torna-se, na verdade, o palco onde o Deus eterno
inaugura e instala seu Reino e seus propósitos através do Messias801 prometido,
Jesus Cristo. O evangelho de Marcos é a primeira fonte preservada sob a forma
escrita entre os evangelhos, e encontramos nele a afirmação da messianidade de
Cristo.
Neste aspecto da messianidade, os zelotas e os essênios nutriam grandes
expectativas no advento do filho de Davi, e esta esperança era grandemente
difundida em Jerusalém (Mc 11.10). 802
Já o evangelho de Mateus apresenta o testemunho da messianidade de Jesus
através das suas citações de reflexão, do seu propósito apologético, da sua
compreensão histórico-salvífica e dos predicativos messiânicos. O conceito que
une todos estes testemunhos é o de Reino dos Céus.803

798
Aland, Kurt, Black, Matthew, Martini, Carlo M., Metzger, Bruce M., ad Wikgren, Allen, The
Greek New Testament, (Deutsche Bibelgesellschaft Stuttgart) 1983. Cf. ROLOFF, Jürgen, op. cit.,
pp. 31-38.
799
SCHMIDT, K.L. Rei e Reino. In: KITTEL, G. A Igreja no Novo Testamento. São Paulo.
ASTE. 1965, p. 96.
800
GOPPELT, Leonhard, op. cit., p. 80.
801
No tempo de Jesus Cristo as expectativas messiânicas eram as mais diversas possíveis. Os
vários grupos religiosos alimentavam esperanças messiânicas de acordo com suas crenças.
Denizete Scardelai em Movimentos Messiânicos no Tempo de Jesus – Jesus e outros Messias -,
esclarece bastante esse assunto. Ver pp. 109-204.
802
GETZ, Gene A. Igreja: Forma e Essência. O Corpo de Cristo pelos Ângulos das Escrituras, da
História e da Cultura. São Paulo: Vida Nova. 1994, pp. 53-55.
803
KÜMMEL, Werner Georg. Síntese Teológica do Novo Testamento: de acordo com as
testemunhas principais: Jesus, Paulo, João. São Leopoldo: Sinodal, 1983. p. 35.
260

O termo Reino dos Céus ocorre 31 vezes em Mateus. E é notável que não
apareça em nenhuma outra parte do NT. Em contraste, o termo Reino de Deus
ocorre 63 vezes no NT.804 A explicação mais corrente para Mateus preferir usar a
expressão Reino dos Céus, e não Reino de Deus, é que Mateus, ao escrever para
leitores especificamente judeus, introduziu o termo céus para não chocar seus
leitores ao mencionar o termo Deus. Porém, Mateus usa o termo Deus 50 vezes, o
que torna difícil crer ser esta a razão da troca.805
Quando é feita a comparação entre os evangelhos de Mateus e Lucas,
Mateus utiliza Reino dos Céus exatamente no mesmo contexto em que Lucas
utiliza Reino de Deus. Assim não paira nenhuma dúvida que são termos diferentes
que descrevem a mesma coisa. O Reino dos Céus e o Reino de Deus são
sinônimos.806
O Evangelho de Mateus trata deste Reino, o Reino dos Céus,
contextualizadamente, tendo como pano de fundo uma realidade social que tinha
por característica, segundo Andrew Overman, a hostilidade da liderança judaica
contra os cristãos, acrescida da sensação de ruína nacional, advinda da falência
das tentativas de vivenciar a vontade de Deus através das revoluções armadas e da
violência.807 Esta violência gerou as guerras judaicas, que culminaram na
desolação de Israel.
Dentro desta concepção, a comunidade que recebeu o evangelho de Mateus
estava sofrendo uma dupla afronta: a perseguição dos adeptos do judaísmo
formativo e a realidade social desprivilegiada e fragmentada, que gerou
desagregação e disputas internas na Igreja.808

804
CROSSAN, John Dominic, p. 70.
805
LADD, George Eldon, op. cit., p. 69.
806
JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento: a pregação de Jesus. São Paulo:
Paulinas, p. 152.
807
OVERMAN, Andrew. O Judaísmo Formativo. São Paulo: Loyola, 2002. p. 54.
808
MORACHO, Félix. Como Ler os Evangelhos: para entender o que Jesus fazia e dizia. São
Paulo: Paulus. 1994, p. 60. Cf. MANSON, T. W. O Ensino de Jesus. São Paulo: ASTE. 1965, p.
155. Ver Também: BROWN, Raymond. As Igrejas dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas. 1986, p.
189.
261

Já no evangelho de Lucas, há uma curiosa tensão entre as palavras de Jesus


que falam do Reino de Deus, como se tivesse irrompido já no momento presente,
e aquelas outras que parecem considerá-lo um acontecimento futuro. Como
conciliar, por exemplo, o “chegou a vocês o Reino de Deus” (Lc 11, 20) com a
petição “Pai, venha teu Reino” (Lc 11, 2)? O verbo phthanein, em aoristo
(ephthasen) só pode significar “tem chegado”; mas para quê pedir que venha o
que já chegou? E quanto às freqüentes exortações à vigilância e à paciência (Lc
12, 35-40), por que seria necessária a paciência se já chegou o que se espera?
Alguns propuseram explicações psicológicas para este fenômeno em Lucas.
Jesus sabia que o Reino, ainda que próximo, ainda não tinha chegado; mas seu
entusiasmo lhe fazia falar como se o Reino já estivesse presente. “Para ele – diz
Bousset – já não havia separação entre o presente e o futuro; pois o presente e o
futuro, o ideal e a realidade, estão conjugados”.809 Já para Feine, Lucas destaca
que Jesus teria oscilações de ânimo, e o mesmo via o Reino, já presente, como se
estivesse infinitamente afastado.810 Também foram propostas explicações
biográficas para isto. Essas afirmações contraditórias de Jesus corresponderiam a
diferentes momentos de sua vida. Segundo Wernle, quando Jesus começou sua
atividade, o Reino estava ainda longe e falava dele na perspectiva da esperança;
mas, conforme ia decorrendo o tempo, começou a apresentá-lo como uma
realidade presente.811 Já Weiss considera que são os anúncios do Reino como
realidade presente que correspondem ao começo da pregação de Jesus, e aqueles
que falam do Reino como realidade para o futuro são conseqüência da decepção
de Jesus, no decorrer do seu ministério.812

809
BOUSSET, Wilhelm. Jesu Predigt im Gegensatz zum Judentum, Göttingen, p. 63.
810
Cf. FEINE, P. Theologie des Neuen Testaments. 8ª ed. Leipzig, 1950, p. 73.
811
WERNLE, P. Jesus. Tubingen. 1916, pp. 237 passim.
812
WEISS, Johannes. Die Predigt Jesus vom Reiche Gottes. 2ª ed. Góttingen, 1900, pp. 100
passim.
262

Através da teologia dos escritos joaninos, vê-se que, por meio de Jesus
Cristo, uma nova imagem de Deus começou a ser mostrada e formada, ou seja,
Jesus revelou a graça, a misericórdia, a bondade, o amor e o perdão de Deus,
sendo, Ele mesmo, a concretização e a historificação desse Deus.813 Jesus Cristo
encarnado é a luz nas trevas do mundo, o Eterno Filho “que nos faz filhos,
abrindo-nos”814 o caminho para o mistério da Trindade. Ele mesmo disse:
“Aquele que crê em mim, não crê em mim, mas naquele que me enviou” (Jo 12.
44). Afirma ainda que “ninguém pode vir a mim, se não atrair o Pai que me
enviou” (Jo 6. 44). Sendo o próprio Deus, agora encarnado em Jesus, pôde afirmar
“eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim” (Jo
14. 6). Não há como escapar à constante afirmação de que, somente em Jesus
Cristo, Deus realiza a verdadeira libertação do homem a fim de que este possa
viver em liberdade.
O Reino da liberdade se concretiza definitivamente, ainda que não
plenamente, “em” e “por” Jesus Cristo. Nesse sentido, Bruno Forte afirma que,

[...] a Palavra Encarnada pede para ser


transcendida, não no sentido que possa ser eliminada ou
posta entre parêntesis, porque isto impediria todo acesso
às profundezas divinas, mas no sentido que ela é verdade
e vida justamente enquanto é caminho (Jo 14,6), limiar
que dá passagem para o Mistério eterno.815

A chegada do Reino irrompe o silêncio de Deus, pois segundo as palavras de


Bruno Forte, “Jesus é a Palavra que saiu do Silêncio”,816 ou seja, “o Verbo se fez
carne e veio habitar entre nós” (Jo 1, 14), o Eterno Filho de Deus saiu do Pai, por
amor ao próprio Pai e ao homem, abrindo caminho ao maravilhoso mistério da
Trindade. Bruno Forte ainda afirma que Deus está sempre em êxodo de si mesmo,
encontrando tempo para a humanidade e que, livre e graciosamente, estabeleceu
uma aliança com o homem, “abrindo caminho de seu povo rumo ao Reino
prometido, sempre maior que qualquer realização efetuada”.817

813
GREEN, Michael. Evangelização na Igreja Primitiva. São Paulo: Vida Nova. 2000, pp. 58-
61.
814
FORTE, Bruno. op. cit., p. 50.
815
Ibidem, p. 52.
816
Ibidem, p. 49.
817
Ibidem, p. 49.
263

Portanto, Deus é aquele que, além de comunicar-se na história através das


Escrituras e nos eventos históricos, construindo o que chamamos de história da
salvação, jamais esteve sob qualquer dominação humana. “Por isso a sua vinda é
‘revelação’: um des-velar-se que vela, um vir que rompe caminho, um mostrar-se
no retrair-se, que atrai”.818 Na verdade, há uma constante dialética no mistério
trinitário. Mas o seu momento epocal se dá em sua autocomunicação na pessoa
encarnada de seu bendito filho, Jesus Cristo. O Deus que se aproxima da realidade
histórica é o Deus da vinda, da promessa, do êxodo, que sai de si mesmo, é o
Deus do Reino.819

4.1.3
Implicações Teológicas da Concepção Bíblica de Reino de Deus

Alfonso Garcia Rubio, em seu livro O Encontro com Jesus Cristo Vivo, faz
algumas colocações muito claras acerca da realidade do Reino de Deus e da
relação desse Reino com Jesus Cristo:

A expressão “Reino dos céus” era bastante


utilizada no judaísmo. Este distinguia o Reinado de Deus
sobre Israel, no tempo presente, do Reinado sobre todos
os povos, no final dos tempos [...]. Havia uma notória
expectativa judaica quanto ao estabelecimento do Reino
de Deus no Antigo Testamento [...]. Por isso que, quando
Jesus anuncia o Reino, encontra ouvintes receptivos. A
pregação de Jesus sobre o Reino estava inserida numa
longa tradição de expectativa desse Reinado [...]. De
fato, o Reino constituía o centro de toda a vida de
Jesus.820

818
Ibidem, p. 49.
819
“Ele, então, liga o Reino de Deus a sua comunidade dos discípulos, sem perder da vista todo
Israel.” LOHFINK, Gerhard, Como Jesus Queria as Comunidades: a dimensão social da fé cristã.
São Paulo: Paulinas, 1987. p. 47.
820
RUBIO, Alfonso Garcia. O Encontro com Jesus Cristo Vivo. São Paulo: Paulinas. 2003, pp.
33,34. Cf. Mc 1,15; Mt 4,23; Lc 4,43; 8,1 etc. Cf. também L. Goppelt, vol. 1, pp. 101-104.
264

Como conseqüência da chegada do Reino através da encarnação do Messias,


o NT nos informa que a Igreja é a extensão do Reino ou a comunidade do Reino,
ou seja, “a comunidade que reconhece a Jesus como o Senhor do universo e por
meio da qual, numa antecipação do fim, o Reino se manifesta concretamente na
história”.821 Quando Jesus fala em Mateus 16,18 minha Igreja, há uma perfeita
harmonia entre sua missão e a comunidade messiânica que nascia a partir dele
mesmo. “Sua intenção de rodear-se de uma comunidade própria, sua, na qual as
promessas do pacto de Deus com Israel fossem cumpridas, tem verdadeiro início
no momento em que seus discípulos o reconhecem como o Messias”.822 É a partir
desse momento que Ele anuncia sua intenção.
A Igreja é a comunidade que nasce como desejo do novo entre as pessoas.823
Sendo assim, é óbvio que a Igreja nunca deve ser equiparada com o Reino. Como
descreve Ladd:

Se o conceito dinâmico do Reino estiver correto,


nunca deverá ser identificado com a Igreja (...). Na
terminologia bíblica, o Reino não se identifica com seus
sujeitos. Estes são o povo de Deus que ingressa no
Reino, vive sob seu mando e é governado por ele. A
Igreja é a comunidade do Reino, mas nunca o próprio
Reino (...). O Reino é o Reinado de Deus; a Igreja é uma
sociedade de pessoas.824

4.2
Jesus Cristo e a Formação do Espaço de Liberdade

Jesus é o paradigma maior da temática da liberdade. A liberdade é cristã,


porque sempre remonta a Jesus como inspirador da práxis libertária. A vida e
ministério de Jesus não são apenas inspiradores de uma atividade libertador-
libertária, mas consistem na própria encarnação da manifestação da liberdade
proveniente de Deus. O Cristo encarnado encarna o projeto de Deus de fazer
manifestar ao mundo sua vontade: a liberdade do ser humano e as manifestações
destas como respostas à sua ação.

821
PADILLA, C. René, op. cit. p. 200.
822
Ibidem, p. 200.
823
MEEKS, Wayne A. op. cit., pp. 120-148.
824
LADD, George E. A Theology of the New Testament. Grand Rapids: William B. Eerdmans.
1974, p. 111. Em português: Teologia do Novo Testamento. Rio de Janeiro: JUERP. 1985.
265

4.2.1
Jesus Cristo e a Mensagem da Liberdade

A base pela qual Jesus avança em sua proposta de libertação encontra-se


no judaísmo. Significa dizer que a missão de Jesus foi a encarnação da compaixão
de Deus que buscava e busca a libertação dos homens. O fundamento ou
referência neotestamentária sobre a liberdade é Jesus Cristo. Todos os escritores
neotestamentários que tratam sobre a temática da liberdade partem não de meras
abstrações teóricas, mas do paradigma histórico, Jesus Cristo. A novidade da
liberdade mostrou-se plena “em” e “por” Jesus Cristo. Dessa forma, Jesus Cristo
como manifestação da vocação de Deus no homem, exerce seu ministério a partir
da história de Israel.825 Ele assumiu o verdadeiro modelo messiânico, sendo o
libertador esperado, não com a força da espada, mas com a força de si mesmo, de
sua mensagem e do poder do Espírito Santo.
Segundo Marcello Azevedo, a missão de Jesus, como se depreende dos
evangelhos, gira em torno de dois eixos fundamentais e mutuamente relacionados:

O primeiro é a Revelação, que nos faz Jesus deste


Deus de sempre que se manifestou a Israel, Deus do qual
Jesus nos apresenta um perfil mais detalhado, novo e
original (diferente de todo conceito de que Deus existe).
Em relação a este Deus, Jesus vive e transmite uma
surpreendente experiência, filial e profunda (Mt 11,25-
27; Lc 10,20-22).
O segundo eixo da missão de Jesus é o
restabelecimento em nós da possibilidade de uma real e
profunda Comunhão. Ou seja, é a refontização de nossa
liberdade, para que ela se possa abrir plenamente a Deus
e aos nossos irmãos. Isso se chama processo de salvação,
de redenção, de libertação integral e de uma verdadeira
humanização [...]. Ele no-la confia ao enviar-nos a todas
as nações, para nelas fazer-lhes discípulos (Mt 28,18-
20). Somos por isso credenciados por Ele, pelo dom e
pela força de seu Espírito, no seio da comunidade que
Ele quis e que o acolhe na fé, comunidade que
chamamos Igreja.826

825
COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo. Paulus. 1998, p. 39.
826
AZEVEDO, Marcello S. J. pp. 34-36.
266

Por outro lado, devemos também compreender que a revelação de Deus, em


Jesus Cristo, não expressou a totalidade de Deus, mas que a Palavra encarnada
“abre acesso às sendas abissais do Silêncio, crise de toda presunçosa construção
ideológica fechada”.827 São João da Cruz diz que “uma palavra disse o Pai, que
foi seu Filho; e sempre no eterno silêncio e em silêncio ela há de ser ouvida pela
alma”.828 Diante de tais afirmações, colocamos em xeque todo tipo de
religiosidade moderna ou pós-moderna que nutra a pretensão da manipulação do
sagrado. Por isso que, sabiamente, Bruno Forte afirma o seguinte:

O Deus da vinda não é o Deus das respostas


prontas a todas as perguntas, nem o Deus das certezas
baratas, mas o Deus exigente que, amando e dando-se a
si mesmo, esconde-se e chama a sair de si mesmos em
um êxodo, sem retorno que conduza aos abismos do seu
Silêncio, último e primeiro.829

Assim, a liberdade cristã nasce concretamente da gratuidade que Deus faz


de si mesmo através de Jesus Cristo que, historicamente, acontece na sua vocação.
Significa dizer, em outras palavras, que a liberdade cristã chega até aos homens de
fora, pois é proveniente de um apelo, de um chamado. Portanto, a verdadeira
liberdade nasce no coração de Deus. A oferta de Deus ao homem está exatamente
no dom de participar de sua liberdade.
O Evangelho, vivido e anunciado por Jesus Cristo, é o evangelho que busca
o homem concreto, promovendo sua inteira libertação. Na força e na ação do
Espírito Santo “todo sistema tem que mudar”,830 abrindo caminho para a
libertação do homem, a fim de que pudesse viver a liberdade do evangelho. A
mensagem do evangelho é o núcleo central de todo chamamento para a liberdade
humana, ponto inicial para formação de uma nova humanidade e,
conseqüentemente, para uma nova sociedade.

827
FORTE, Bruno, p. 55.
828
CRUZ, São João. Ditos de Luz e Amor. Número 98. In: Obras completas. Petrópolis: Vozes.
2002, p. 102.
829
FORTE, Bruno, op. cit., 55.
830
COMBLIN, José, op. cit., p. 316.
267

Portanto, “liberdade é assumir a libertação do povo, sair de si próprio


movido pela compaixão, como Yahweh, e arriscar a vida no serviço ao
próximo”.831 Foi assim que Jesus viveu e agiu no cumprimento de seu ministério.
Saiu de si, encarnou-se, viveu a compaixão do Pai, sendo a própria compaixão do
Pai. “Veio para chamar, para comunicar a vocação a fim de que cada um dos
chamados conquistasse sua libertação”.832
Através da senda do amor ao Pai, da obediência incondicional à vocação do
Pai, da humilhação, do sofrimento, da doação, do amor-serviço, do próprio
esvaziamento, Jesus Cristo não apenas contrapôs-se ao primeiro Adão, no seu
estado de ruptura de Deus, mas também abre o novo caminho de volta à
comunhão com Deus, o caminho de volta para casa e ainda a exaltação que recebe
da parte do Pai. O clímax da existência histórica de Jesus foi a ressurreição, o
evento pascal, sendo o acontecimento que concretiza seu senhorio absoluto, o faz
único e universal mediador salvífico entre Deus e os homens, tornando real e
presente a experiência histórica da salvação e a sua futura e total plenificação.833
A mensagem de Jesus tem por objetivo final a formação de uma nova
sociedade, mas para que tal aconteça, é imprescindível a formação de um novo
homem. Jamais existirá uma sociedade nova sem a existência de um homem novo.
Enquanto isso não acontece, o homem continuará despersonalizado e a sociedade
destinada à falência. Nenhuma sociedade nova triunfará pela imposição da Lei,
visto ser incapaz de mudar o interior do homem. Jesus é e traz a mensagem de um
Deus libertador, e não dominador, que coloca o homem numa relação de graça,
tendo Deus como Pai e o homem como filho.
Assim, livre da imposição externa como meta de vida, o homem torna-se
livre para viver a liberdade do evangelho, no vínculo do amor, em sua relação
com Deus e com o próximo.834

831
Ibidem, p. 35.
832
Ibidem, p. 40. Cf. RIDDERBOS, Herman Nicolaas. El Pensamiento del Apostol Pablo. Grand
Rapids, Michigan: Libros Desafio, 2000, pp. 80-81.
833
Ver mais em WRIGHT, N. T. Christian Origins and the Question of God, vol. 2: The New
Testament and the People of God (London: SPCK; Minneapolis: Fortress, 1992), pp. 189-99.
834
GOPPELT, Leonhardt, op. cit., p. 366.
268

A mensagem de Jesus traz a semente da liberdade, sendo um chamado, um


convite à ruptura com todo tipo de sistema opressor e injusto, desafiando o
homem a criar novas relações humanas, resultado de sua nova relação com Deus.
Com isso, Jesus evidencia inexoravelmente que Deus, o seu Pai, era contrário à
opressão, à injustiça e à sujeição.835
O teólogo Bruno Forte, em sua obra A Essência do Cristianismo, trata com
maestria a questão da manifestação do Reino em três dimensões: o êxodo de Jesus
do Pai; o êxodo de Jesus de si; e o êxodo de Jesus para o Pai.836
A liberdade para a qual Jesus Cristo nos chamou é a liberdade para viver e
agir como construtores do Reino de Deus. Qualquer tipo de liberdade cuja práxis
caminhe apenas na direção de uma vida de contemplação, por exemplo, há de ser,
na verdade, uma liberdade negativa, visto que carece da outra dimensão, qual seja,
a liberdade para agir na história como discípulo de Jesus Cristo. “Ao fugir da
sociedade, tornava-se – o monge – incapaz de agir nela e sobre ela”.837 A vocação
de Deus, em Jesus Cristo, não apenas liberta o homem, resgatando-o de um
mundo opressor, mas a vocação de Deus o devolve ao mundo, a sociedade, para
ali promover a sua libertação também.

4.2.2
Aspectos Fundantes da Igreja Neotestamentária

Antes de qualquer afirmação acerca da Igreja, precisamos verificar, a partir


das Escrituras Sagradas, os seus fundamentos ou suas bases imutáveis, sobre as
quais nasce a Igreja neotestamentária. É sobre esses sólidos fundamentos que a
Igreja existe. Eles são inegociáveis. Há, no Evangelho de Jesus Cristo, segundo
narrou o evangelista Mateus, um texto que explicita o seu maior fundamento:
“Respondendo Simão Pedro, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt
16.16). Ou seja, o primeiro e maior fundamento da Igreja é cristológico. Sua base,
primeiramente, não é antropológica, mais sim Jesus Cristo.838

835
SCHELKLE, Karl Hermann, v. II, op. cit., p. 139.
836
FORTE, Bruno, op. cit., pp. 49, 57 e 68.
837
COMBLIN, José, op. cit., p. 307.
838
D’ARAÚJO, Caio Fábio Filho. Igreja: Evangelização, Serviço e Transformação Histórica. Rio
de Janeiro / São Paulo. VINDE / SEPAL. 1987, pp. 92,93.
269

Quanto à formação da Igreja, é preciso ressaltar que são as Escrituras que


nos fornecem as bases teológicas da Comunidade Cristã. A Igreja
neotestamentária é uma extensão do povo de Deus do AT, o povo de Israel. Sendo
assim, a Igreja é o novo povo de Deus (I Pe 2,9,10).839
A imagem mais profunda que temos no NT quanto à relação entre Jesus e a
Igreja é que ela é vista como o Corpo de Cristo. Tal imagem expressa a realidade
espiritual e funcional da Igreja (Ef 1,13; 4,7-16; Gl 3,28;).840
Assim, o primeiro elemento fundante da Igreja neotestamentária é o
cristológico. Senão vejamos a expressão tu és o Cristo, que é a fonte do
nascimento da Igreja. A sua base não é antropológica, conquanto seja uma
instituição com dimensões humanas, mas o Senhor Jesus. Ela é e será sempre
cristocêntrica.841 Portanto, podemos afirmar que a Igreja é uma instituição divino-
humana.842
O segundo elemento basilar da Igreja neotestamentária é o cumprimento da
promessa do Espírito Santo. A vida e o dinamismo da Igreja tornam-se realidade
na pessoa do Espírito. Quando os doze e os demais discípulos retornam para
Jerusalém, na obediência à palavra de Jesus, tem-se o cumprimento da promessa
do derramamento do Espírito Santo, numa experiência temporal e definitiva sobre
o novo Israel de Deus, que estava nascendo no exercício da fé no Cristo
ressuscitado e na dinâmica do Espírito, que trazia vida e força à nova Comunidade
da Fé.843 Por isso, afirmamos que a Igreja é pneumatológica, pois carrega em si o
dínamis do Espírito. Temos a seguinte declaração de Horrel:

839
COSTAS, Orlando E. Hacia una Teologia de la Evangelizacion. Buenos Aires – Argentina.:
Ed. La Aurora. 1973, p. 132. Cf. Deut 7, 7; Heb 13,13; I Pe 5,10,11.
840
Ibidem, pp. 133,134.
841
D’ARAÚJO, Caio Fábio Filho, p. 92.
842
Para muitos escritores, o Jesus pré-pascal não fundou a Igreja. Sendo assim, a Igreja só teria seu
início com a ressurreição de Jesus. Cf. ROLOFF, Jürgen, p. 62. Veja a afirmação de G.
Bornkamm: “A fundação da Igreja, portanto, não é obra já do Jesus terreno, mas do ressurreto”.
BORNKAMM, G. Jesus von Nazareth. 1956, p. 171. Encontramos ainda E. PETERSON.
Theologische Traktate. München. 1951, pp. 409-429; H. SCHLIER, Die Entscheidung für die
Heidenmission in der Urchristenheit, in: id., Die Zeit der Kirche, Freiburg, 1958, pp. 129-147; N.
A. DAHL, Das Volk Gottes, pp. 176, 278; H. von CAMPENHAUSEN, Kirchliches Amt und
geistliche Vollmacht, pp. 10-12. Sem dúvida que a páscoa é o ponto de partida para toda
cristologia explícita.
843
ROLOFF, Jürgen, pp. 65-74. Cf. BOFF, Leonardo, pp. 141-145.
270

O derramamento do Espírito Santo aconteceu


como cumprimento profético num contexto de oração. O
Espírito Santo [...] veio trazer vida e capacitação para
levar o testemunho de Jesus até os confins da terra,
redundando, assim, no estabelecimento de Igrejas
locais.844

A novidade do Evangelho chega ao coração do homem pela ação do Espírito


Santo, visto que é o Evangelho da liberdade. Por isso, Karl Barth afirma que é

[...] no mistério eterno do ser de Deus que se deve


buscar a razão pela qual ninguém pode ir ao Pai a não ser
por meio do Filho; porque o Espírito, mediante o qual o
Pai atrai a si os seres humanos, é, desde toda a
eternidade, também o Espírito do Filho e é por seu meio
que o Pai nos faz participantes da filiação divina em
Cristo.845

Outro elemento fundante da Igreja, tido como paradigma teológico de sua


ação querigmática, é a Palavra de Deus, a doutrina dos apóstolos. Perder a noção
de que as Escrituras são a Palavra de Deus é correr o risco de uma anunciação
evangélica superficial acerca do Jesus histórico e do Cristo da fé. Atos 2, 42 diz:
“E perseveravam na doutrina dos apóstolos [...]”. A fé no Cristo ressuscitado era
algo basilar para a vida da comunidade primitiva.846

844
HORREL, J. Scott (Org.). Ultrapassando Barreiras. Novas Opções para a Igreja Brasileira na
virada do século XXI. Armando Bispo Cruz. Os Dons Espirituais. Despertando o Potencial Divino
da Igreja Local. São Paulo: Ed. Vida Nova, 1989, pp. 94-96. Cf. PACKER, J. I.. Na Dinâmica do
Espírito. Uma Avaliação das Práticas e Doutrinas. São Paulo: Vida Nova. 1991, p. 62. Cf.
AGOSTINHO, Santo. De Trinitate. 5, 11, 12: Pl 42, 919.
845
BARTH, Karl. Die kirchiliche Dogmatik. I/2. Zürich: Evangelister Verlag. 1942, p. 273.
271

4.3
O Espírito Santo como Agente Capacitador da Missão

O homem, por meio de Jesus Cristo, recebe a oferta de Deus, a vocação no


novo nascimento, a real possibilidade de nascer da água e do Espírito, tendo sido
recriado para uma viva esperança. Recriado pela graça de Deus, o homem torna-se
habitação do Espírito Santo, cuja vida no homem o orienta e o ilumina para uma
nova vida.
O Espírito Santo, além de operar, no homem, a nova vida, realiza nele a
confiança de que, agora, é filho de Deus.847 O Espírito Santo foi dado ao homem
renovado como penhor e garantia da glória e o acompanha em toda a sua
trajetória. Como penhor e garantia (Ef 1, 13,14), Ele é convite permanente à
esperança na ressurreição. O Espírito do Senhor ou do Ressuscitado é a energia
que dinamiza o coração do cristão, potencializando alegria, esperança, capacidade
de testemunho e suficiência no processo de conformar-se com a pessoa de Jesus
Cristo e, ainda mais, sinal da eterna comunhão com Ele que, no éschaton, será
plena e definitiva. Discorrendo sobre o referido tema, Moltmann argumenta que,

[...] esperamos que o Espírito da nova criação


derrote a violência humana e o caos do universo; mais do
que isso: esperamos que a força do tempo e da morte
serão derrotadas também; finalmente, esperamos a eterna
consolação [...] esperamos alegria eterna na dança do
companheirismo com todas as criaturas e com o Deus
trino.848

846
RUBIO, Alfonso Garcia. O Encontro com Jesus Cristo Vivo. São Paulo: Paulinas, 1994, pp.
96-106. Cf. KITTEL, Gerhard. A Igreja no Novo Testamento. São Paulo: ASTE, 1965, pp. 17-
36.
847
“[...] a nova vida, que passa a existir com o nascimento a partir do Espírito de Deus, justamente
não é nenhum nascimento repetido, mas é o novo nascimento único e definitivo de uma vida
humana para a nova e eterna criação do céu e da terra, sendo o começo do cumprimento da
promessa de Deus: ‘Eis que faço novas todas as coisas’ (Ap 21: 5)” Ver: “[...] a nova vida, que
passa a existir com o nascimento a partir do Espírito de Deus, justamente não é nenhum
nascimento repetido, mas é o novo nascimento único e definitivo de uma vida humana para a nova
e eterna criação do céu e da terra, sendo o começo do cumprimento da promessa de Deus: ‘Eis que
faço novas todas as coisas’” (Ap 21: 5). MOLTMANN, Jürgen. A Fonte da Vida: O Espírito Santo
e a Teologia da Vida. São Paulo: Loyola, 2002. p. 31.
272

A I Guerra Mundial provocou uma das maiores crises no pensamento


moderno, visto que, praticamente, todas as propostas, anunciadas pelos quatro
cantos, de que a modernidade, sobretudo a partir do Iluminismo, trariam tempos
de prosperidade e de paz, ruíram ante os horrores da Guerra. Ou seja, os limites de
confiança no homem e nas pretensões da razão desabaram. A partir de então, o
século XX passou a ser considerado “o século da Igreja”849, dizia Dibelius.
Guardini afirma que houve a oportunidade para o que ele chamou de “despertar
da Igreja nas almas”.850 De fato foi um tempo marcado pela desilusão e pela
desesperança e com a II Guerra Mundial, o quadro ficou ainda pior.
A Igreja teve a oportunidade de se tornar a grande alternativa. Houve uma
grande crise de confiança, nas instituições, com suas ideologias. A Igreja passa a
ser vista não como mera instituição religiosa, mas como uma comunidade viva,
provocadora de esperança e de sentido de vida, através de sua missão
proclamadora das Boas Novas. O idealismo fascista morria e cumpria à Igreja ser
a comunidade real, que vivia a dinâmica da existencialidade humana concreta.
Nascia um novo senso de missão exatamente no seguimento de Jesus Cristo. Em
sua missão ela é o espaço da experiência comunitária, do exercício da comunhão,
fruto da oferta do dom de Deus na pessoa de Jesus Cristo. Por isso que Bruno
Forte afirma:

Contra a massificação obsessiva das ideologias, o


evangelho da Igreja sublinha a infinita dignidade de cada
pessoa em particular diante de Deus e diante da
humanidade, independentemente da sua história e de
suas posições. Contra o niilismo, ele proclama a real
possibilidade do encontro com o outro e a vitória sobre a
solidão, graças ao diálogo e à solidariedade, que são
gerados e mantidos pelo amor que procede de Deus.851

848
Cf. MOLTMANN, Jürgen. Deus na criação. Petrópolis: Vozes, 1993. O caminho de Jesus
Cristo. Petrópolis: Vozes, 1993. Teologia da Esperança. São Paulo: Herder, 1971.
849
DIBELIUS, O. Das Jahrhundert der Kirche. Berlin: Furche Verlag, 1926, p. 46.
850
GUARDINI, R. La Realtà della Chiesa. Brescia: Morcelliana, 1967, p. 21. O texto de onde
extraí a citação - intitulado O sentido da Igreja (Von Sinn der Kirche), - saiu em primeira edição
em 1922.
851
FORTE, Bruno, op. cit., pp. 133,134.
273

Na verdade, a Igreja é sempre chamada a viver a experiência trinitária em


sua dinâmica eclesial. Por isso que comunhão, graça e amor, uma vez
relacionados com o Pai, o Filho e o Espírito Santo, aplicados à vida da Igreja,
resultam na comunhão concreta pelo Espírito, na comunidade reunida pela graça
do Filho e na expressão do amor, requerido pelo Pai.852 Em outras palavras a
Igreja vive, na história, a experiência trinitária. O evangelista João é quem, de
maneira particular e peculiar, trata dessa comunhão trinitária que deve se
expressar na vida eclesial. É pela ação do Espírito que a Igreja dá testemunho do
Cristo ressuscitado.853
A Igreja é chamada a ser e a viver como ícone da Trindade. Ela é a Igreja
pneumática, portanto, carismática, no seu sentido mais bíblico e teológico. Daí o
comentário de Le Fort sobre a comunhão da Igreja:

A fórmula mais comum, mediante a qual João


exprime a realidade escatológica da Igreja é a simples
conjunção “como” (kathôs). Ela não apenas estabelece
um vínculo de semelhança entre Cristo e os seus
discípulos, mas indica, também, que aquilo que está em
Deus deve estar igualmente naqueles que lhe
pertencem.854

A presença do Espírito Santo, na vida da Igreja, exercerá a missão de ser a


memória de Jesus (Jo 14, 26). Ou seja, ele não só oferecerá testemunho constante
do Cristo ressuscitado, mas também capacitará a Igreja a dele testemunhar (Jo 16,
13). É o Espírito que ministrará a graça do perdão na vida eclesial (Jo 20, 22).
Bruno Forte afirma o seguinte:
Graças a esta continuidade da fé no tempo e no
espaço, a Igreja é una, santa, católica e apostólica, povo
de Deus, unido no Espírito santificador, na
universalidade e na plenitude da comunhão que se baseia
sobre o fundamento dos apóstolos e que vive da fé
transmitida pela tradição apostólica [...]. Aquele ao qual
compete atualizar a presença salvífica do Senhor Jesus,
através do ministério dos pastores protoparentes do Israel
escatológico, e através de toda a vida do povo da nova
aliança, é o Espírito Santo.855

852
Ibidem, p. 134.
853
Cf. Jo 15. 12; 13.34; 17.21,22; II Co 13.13; Jo 15.26s.
854
LE FORT, P. Les Structures de l`église Militante selon Saint Jean. Etude d`ecclésiologie
concrète appliquée au IV évangile et aux épîtres johanniques. Genève: Labor et Fides. 1970, p.
172.
855
FORTE, Bruno, op. cit., pp. 137,139.
274

Ainda na perspectiva trinitária, encontramos, à guisa da beleza poética e


teológica, a brilhante oração de Santo Agostinho:

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' ( " )
* +

,-./

A narrativa do livro dos Atos evidencia que o Espírito Santo não é só uma
força divina, impessoal, que atua de maneira continuada em Jesus e de forma
passageira nas demais pessoas. Pelo contrário, o Espírito tem uma realidade
extremamente pessoal, concreta e distinta.857 Portanto, é a partir da descida do
Espírito que a Igreja começa a espalhar a glória de Deus através de sua ação
querigmática por meio de sua vida pneumatológica.858 O Espírito Santo, como
pneuma, significa a força de Deus necessária para a realização de ações
específicas de Deus.
Portanto “O Espírito é o catalisador e a força guiadora da missão
expansiva da comunidade”.859 Este tema nos serve como a mais forte ligação
entre os Atos e os Evangelhos, entre a história de Jesus e a história da Igreja (Lc
24, 49; At 1, 4,5,8; 2, 33), pois o Espírito mantém a presença e as diretrizes de
Cristo ressurreto na Igreja como o impulso para o universalismo e o poder que
possibilita a intrepidez da comunidade860. Por ter o Espírito Santo uma
característica missionária, seu desejo é que a Igreja também tenha como finalidade
principal, a obra missionária.

856
AGOSTINHO, Santo. De Trinitate. 15, 28, 51: Pl 42, 1098.
857
BOFF, Jenura Clotilde. Espírito e Missão na obra de Lucas-Atos. Para uma Teologia do
Espírito. Dissertação de Pós-Doutorado, defendida pela Pontifícia Universitas Gregoriana. 1995,
p.80.
858
COSTAS, Orlando E., op. cit., pp. 134-136.
859
CARRIKER, Timóteo Charles, op. cit., p. 210.
860
Ibidem, p. 210.
275

A Igreja, portanto, é a comunidade na qual Jesus continua vivo, nesta terra,


operando sua missão libertadora através do Espírito Santo. É através do Espírito
que os discípulos recebem autoridade espiritual para continuarem a missão do
Senhor Jesus. Na verdade, a Igreja de Atos é a Comunidade Testemunha.861 É pela
ação poderosa do Espírito que os discípulos entenderam o último mandato de
Jesus: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome
do Pai e do Filho e do Espírito Santo [...]” (Mt 28, 19).862 Ora, nesta perspectiva,
após a ressurreição de Jesus, o evangelho de Lucas (24, 46-48) nos informa que o
mandato missionário é renovado e a pregação do Evangelho, por parte dos seus
seguidores, vai crescendo e ganhando espaço na sociedade. Tal pregação é
compreendida pela fé no Senhor Ressuscitado, que constitui a plenitude do
querigma da comunidade primitiva.863
Anunciar Jesus ressuscitado, no poder do Espírito Santo, significa anunciar a
plenitude do Reino de Deus. Fica claro, em Atos, capítulo primeiro, que há uma
conexão entre Jesus e a pessoa do Espírito, ou seja, Ele ensina pelo Espírito (At 1,
3); promete o batismo no Espírito Santo (At 1, 5); e é com o poder do Espírito que
os homens serão testemunhas do Ressuscitado até os confins do mundo (At 1,
8).864
Há outro aspecto relevante da ação do Espírito Santo como agente
capacitador da missão da Igreja que é o que podemos chamar do derramamento da
força-dom de Deus, ou seja, a capacidade de descer na dimensão vertical para o
mundo daqueles que não têm força (mulheres, os doze, samaritanos) ou que
perderam sua força (Paulo, “caído do cavalo”), e de se projetar na dimensão
horizontal, ou seja, para longe, destruindo barreiras, cercas e preconceitos,
vencendo as fronteiras da religião e da cultura, de raças e de nacionalidades. Isso,
porque o seu limite são “os confins do mundo”, gerando acolhimento,
hospitalidade e aceitação.865

861
ROBERTI, Carlos. O Espírito Santo na Obra de Lucas. Revista Estudos Bíblicos 45 - O
Espírito Santo - Formador de Comunidades. Rio de Janeiro.Vozes. 1991, p. 52.
862
D’ARAÚJO, Caio Fábio Filho. Igreja: Comunidade do Carisma. Rio de Janeiro. VINDE.
1994, pp. 30-32.
863
BOFF, Jenura Clotilde, op. cit., p. 79.
864
Ibidem, p. 80.
865
ROBERTI, Carlos, op. cit., p. 53.
276

Segundo Valdir Steuernagel, pensar o vento do Espírito Santo, numa


dimensão missionária, é extremamente relevante para a ação querigmática da
Igreja. Ele diz:

Missão, compreendida numa linguagem


pneumatológica, é um só ato com duas facetas. É,
primeiro, perceber o sopro do Espírito e a sua direção. E,
depois, é correr na direção em que o Espírito está
soprando. Quem já não viu uma pipa solta, dançando
pelo espaço e sendo levada de um lado para outro, na
direção em que o vento vai e para onde o vento quer?
[...] Missão é deixar-se levar pelo Espírito, como
acontece com a pipa levada pelo vento. Mas é também
perseguir a orientação do Espírito, assim como a
meninada persegue a pipa carregada pelo vento. Com a
diferença de que o Espírito tem direção certa, por ser
guiado por Deus na direção de quem está longe Dele.
Missão é, portanto, e simultaneamente, um ato de
interpretação e de obediência.866

A experiência de Pentecostes (At 2), por si só, alarga a missão para que seja
ouvida pelas várias populações da Diáspora. Não tenho dúvida de que o Espírito
inicia uma ação missionária inculturada naquele momento especial da Igreja
nascente. O Espírito é sumamente ecumênico, visto que ele fala e cada qual
867
entende na sua própria língua materna. Afirma Carlos Roberti:

As culturas são presença das “sementes do Verbo”.


Ele não massifica, não uniformiza, mas une deixando a
todos sua personalidade [...] inculturar o Evangelho é
deixar que a força do Espírito faça brotar e desenvolva
aquelas sementes no seu chão-cultura. É crer num só
Espírito sem necessariamente crer numa só lei [...]
grande desafio para a grande comunidade e para as
pequenas também.868

866
STEUERNAGEL, Valdir. Obediência Missionária e Prática Histórica. Em Busca de
Modelos. São Paulo: ABU. 1993, pp. 92-94.
867
ROBERTI, Carlos, op. cit., pp. 51-53.
868
Ibidem, p. 54.
277

A experiência de Filipe com o eunuco etíope é pela mediação do Espírito


(Atos 8, 29,30), e a aceitação última de Pedro, de Cornélio e sua família (Atos 10,
44-48; 11, 12-18) é confirmada pelo derramamento do Espírito sobre esta casa.
Observando um pouco mais adiante, verificamos a ratificação deste fenômeno
pela Igreja em Jerusalém, que, por sua vez, também é realizada pelo impulso do
Espírito (Atos 15, 28,8). O Apóstolo Paulo sempre foi guiado pelo poder do
Espírito (Atos 13, 2,4; 16,6-10; 19, 21; 20, 22; 21,11) em todas as suas direções e
no chamamento para a missão universal (9,15.16; 22,21; 26,16-18). O Espírito é
quem guia a caminhada da Igreja e de seus discípulos, no seu ministério, entre os
gentios (11.24; 13.2-4; 19.6).869
O verdadeiro significado do Pentecostes era que Deus, a partir daquele
momento, não se revelaria apenas por meio dos judeus. A Igreja do Senhor Jesus
seria o Seu instrumento. A Igreja ficaria tão cheia do poder do Espírito Santo, que
seria capaz de cruzar qualquer barreira racial, cultural ou lingüística e penetrar na
idiossincrasia de cada povo com o evangelho das boas novas. Seria uma Igreja
decidida a penetrar na própria vida de cada sociedade, com o evangelho sendo
pregado na língua materna de cada povo e de forma inculturada.
E o Espírito Santo, que é missionário inculturado, seria o grande agente
condutor desse plano, estabelecendo Igrejas em cada grupo étnico da terra.870
Sendo assim, o plano do Espírito Santo era transformar o mundo com o evangelho
de Jesus Cristo, usando a Igreja. O seu desejo é que cada Igreja compreenda a
necessidade de uma ação evangelizadora inculturada, na qual os preconceitos são
vencidos pela força do Evangelho.871

869
CARRIKER, Timóteo Charles, op. cit., p. 210
870
PATE, Larry, op. cit., pp. 23-24.
871
Ibidem, p. 26.
278

Percebe-se que o agir do Espírito Santo, na vida da Igreja e dos apóstolos,


no que tange à expansão das Boas Novas além das fronteiras culturais, étnicas,
sociais, raciais, promoveu uma inculturação da fé cristã, ainda que com
dificuldades e desafios.872 Os apóstolos foram percebendo que os gentios não
tinham a menor necessidade de tal prática e a mensagem cristã foi inculturada,
sendo traduzida e expressa a partir de determinados valores culturais, sem,
contudo, perder o seu conteúdo bíblico-teológico. Entretanto, muitos cristãos
faziam parte do movimento de classe social baixa, sobretudo aqueles que
moravam na Galiléia. Pode parecer paradoxal, mas o movimento cristão
conseguiu atingir os mais diversos segmentos da sociedade exatamente por ser um
movimento das ruas, das esquinas, e que vivia e crescia fora da institucionalização
da religião.873

4.4
A Liberdade Cristã na Teologia de Paulo

Paulo soube sintetizar a essência do evangelho: “Cristo nos libertou para


que vivêssemos em liberdade” (Gl 5, 1). “Foi para a liberdade que vocês foram
libertados” (Gl 5, 13). Como somente Deus é absolutamente livre, criou o homem
para viver em liberdade. Esta é, na verdade, a grande vocação do ser humano. A
vocação de Deus, em Jesus Cristo, a cada indivíduo é exatamente libertá-lo, a fim
de que possa viver o desafio da construção e a conquista da liberdade, sempre em
resposta à graça de Jesus Cristo, pela poderosa ação do Espírito Santo.

872
STEUERNAGEL, Valdir, op. cit., pp. 94-96.
873
Quando comparamos o ministério de Jesus Cristo, realizado na Galiléia com toda a
religiosidade vivida na Judéia, sobretudo aquela do templo, constatamos que Jesus não cabia
dentro desta religião do templo, visto ter Ele vivido na perspectiva de uma proposta nova, na qual
o seu lugar era nas ruas, vivendo e convivendo com o povo em geral, sem qualquer discriminação,
oferecendo vida e vida em abundância. Jesus era aquele que sentava à mesa com publicanos e
pecadores (Lc 5, 29-32). E é precisamente a partir dessa perspectiva que vai se estabelecendo uma
constante tensão entre a Sua vida e a religião dos escribas e fariseus. Cf. C. René Padilla, op. cit.,
pp. 47-49.
279

Podemos chamar Paulo de “O apóstolo da liberdade cristã”, sabendo que em


sua teologia não havia espaço para libertinagem nem anarquia. A liberdade de que
trata o apóstolo não é autonomia absoluta, mas liberdade promovida pelo
evangelho, que produz a consciência de que o novo homem, em Cristo, vive a
continuidade de Seu ministério como servo de todos.874 O Apóstolo Paulo
aparece, na história eclesiástica, como sendo o homem que, pela força do Espírito
Santo, conseguiu uma das maiores façanhas do cristianismo até os nossos dias,
qual seja, promover a passagem do cristianismo de uma cultura semítica para uma
cultura helenista.875
O interessante na vida de Paulo é que ele não viveu dentro de uma
instituição religiosa fechada, sem qualquer visão do todo. Não, ele veio para “fora
dos quadros preestabelecidos e trabalhou sempre fora dos quadros.”876 Isso deu
ao Apóstolo uma liberdade de ação sem precedentes na história do cristianismo.
Diante do grande desafio de realizar uma nova evangelização em nossos dias,
portanto, jamais podemos deixar de analisar o exemplo de Paulo, visto ser ele o
grande modelo, depois de Jesus Cristo, de evangelizador de culturas.877 Paulo foi
tremendamente inculturado no seu processo evangelizador. Vejamos um pouco de
sua caminhada.
O escopo aqui proposto é contar, ainda que de forma resumida, a história de
Paulo em sua caminhada antes do encontro com o Cristo ressuscitado, que, como
veremos, mudaria todo o rumo de sua vida.878 Portanto, “Paulo descende de uma
rígida família judaica da Diáspora."

874
COMBLIN, José, op. cit., pp. 43-54.
875
Id., Paulo - Apóstolo de Jesus Cristo. Rio de Janeiro. Vozes. 1993, p. 07.
876
Ibidem, p. 08.
877
MEEKS, Wayne A., op. cit., pp. 21-42. Conforme o autor descreve, Paulo era um homem da
pólis, da cidade. Portanto, é a partir da cidade que ele lança o seu programa de evangelização. Ele
sabia ser cristão na cidade grande. Sua missão de levar o evangelho aos gentios era uma missão
essencialmente urbana. Como veremos, era sempre a partir das cidades, com o seu ethos cultural
próprio, que Paulo buscava inserir o Evangelho.
878
BITTENCOURT, B. P. A Personalidade viva de Paulo. São Paulo. Publicação da Associação
Acadêmica “João Wesley” - Faculdade de Teologia Rudge Ramos. s/d, p. 23.
280

"A cidade de Tarso, onde nasceu entre os anos 5-10 (At 21,39;22,3; 26, 9-
11), era a capital da região e da província romana da Cilícia”.879 Tarso era um
grande centro comercial, possuindo uma linha divisória de duas culturas: a
civilização greco-romana do Ocidente e a civilização semítico-babilônica do
Oriente.880 Sua cidade natal era famosa pelas suas escolas de filosofia e pela
fabricação de “cilício”, uma espécie de tecido rústico feito de pêlo de cabra para
as tendas dos nômades.881
O ambiente em que Saulo nasceu e cresceu, portanto, era dominado pela
_
civilização grega em praticamente todas as dimensões a cultura helênica era
dominante na época.882 Josef Holzner diz:

Este mundo espiritual, moral, artístico e cultural


existia por toda a parte, e ninguém podia subtrair-se à
sua influência. O homem que havia de escrever:
“Examinai tudo e abraçai o que for bom” (I Tess 5,21),
com toda a certeza, examinou bem cedo todas as
doutrinas que se difundiam à sua volta.883

Saulo nasceu como cidadão romano, pois seu pai era cidadão romano. Ao
_
nascer, o menino recebeu o nome de Saulo, devido ao rei Saulo Paulo era,
provavelmente, seu cognome latino.884
Seus genitores eram judeus muito religiosos, pertencentes à seita dos
fariseus, ou, pelo menos, fortemente influenciados por esse grupo. Pertenciam à
tribo de Benjamim. Ele, Paulo, fazia questão de salientar sua pertença à nação de
Israel: “Fui circuncidado no oitavo dia, sou israelita da tribo de Benjamim,
hebreu, filho de hebreus” (Fl 3,5). “São hebreus? Eu também. São israelitas? Eu
também. São descendentes de Abraão? Eu também” (II Co 11,22). “Eu também
sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim” (Rm 11, 1).
Assim, “tanta insistência na pertença a Israel pode ser um sinal de que ele se
sentia atacado por esse lado e sentia a necessidade de se defender. Essa pertença
foi questionada, pelo menos a sinceridade da sua adesão ao judaísmo”.885

879
BORNKAMM, G. Paulo. Vida e Obra. Rio de Janeiro: Vozes. 1992, p. 31.
880
HOLZNER, Josef. Paulo de Tarso. São Paulo. Quadrante. 1994, p. 07.
881
Ibidem, p.10.
882
HOLZNER, Josef, op. cit., p. 8.
883
Ibidem, p. 15.
884
CHAMPLIN R. N. & J. M. Bentes. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. Vol. 5. São
Paulo. Candeia. 1991, pp. 120,121.
885
COMBLIN, José, op. cit., p. 13.
281

À guisa de informação, podemos observar duas fases na educação paulina: A


primeira ocorreu em Tarso e a segunda em Jerusalém. Quando examinamos suas
cartas, verificamos que ele foi bastante influenciado pela cultura grega.886 É bom
observar que a cultura helênica já se infiltrara profundamente no judaísmo
Palestino desde o início do século IV a.C.. Sendo assim, “os judeus da diáspora,
como Saulo, por exemplo, eram influenciados por esta cultura”.887 Por outro lado,
Paulo teve uma formação judaica, cuja tradição era milenar. “Ele aprende à
sombra do AT”.888 Desde muito cedo, Saulo começou a aprender a história do seu
povo.889 Segundo Atos 22, 3 ele diz: “Eu sou judeu, nasci em Tarso da Cilícia,
mas criei-me nesta cidade e aqui fui instruído aos pés de Gamaliel, segundo a
exatidão da lei de nossos antepassados, sendo zeloso para com Deus, assim como
todos vós o sois no dia de hoje”.
Digno de registro são as palavras de G. Bornkamm sobre a vida de Paulo:

[...] Paulo se transformou num apaixonado


entusiasta da Lei, como o demonstra precisamente a sua
opção e decisão pela corrente dos fariseus. Os Atos dos
Apóstolos estão certamente corretos quando afirmam
que ele recebeu a sua formação em Jerusalém, centro
espiritual do movimento. A este período, com certeza,
faz referência quando afirma que “progredia, no
judaísmo, mais do que muitos compatriotas da minha
idade, distinguindo-me, no zelo, pelas tradições
paternas” (Gl 1,14) e que era “irrepreensível quanto à
justiça que há na Lei” (Fl 3,6).890

886
Ibidem, pp. 16,17.
887
CARRIKER, Timóteo Charles, op. cit., p. 224.
888
HOLZNER, Josef, op. cit., p. 17.
889
Ibidem, p. 19.
890
BOMKAMM, G., op. cit., p. 40.
282

Digna de nota também é a percepção de que toda a influência judaico-


religiosa na formação de Saulo tenha, sem sombra de dúvida, contribuído para
uma mentalidade nacionalista e sem qualquer visão do outro e do novo.891 Daí,
lançar-se ele cegamente à perseguição dos judeus convertidos ao cristianismo. 892
Neste contexto, Saulo vive uma religiosidade do tipo intramuros, ou seja, o
judaísmo fechado que ele vivia não admitia qualquer outro tipo de religião.893 A
partir daí, houve uma espécie de inquisição, da qual ele foi nomeado inquisidor-
geral. Espiões, soldados do Templo, plenos poderes, tudo se encontrava à sua
disposição. 894
Ao lançar-se como perseguidor da Igreja, Saulo traz para si a palavra zelo.
Diz ele: “No zelo, perseguidor da Igreja” (Fl 3,6). “No zelo pelo judaísmo,
ultrapassava muitos dos companheiros de idade da minha nação, mostrando-me
extremamente zeloso das tradições paternas” (Gl 1,14). “Esse mesmo zelo
inflamava o coração dos ‘zelotes’, que se rebelaram contra os romanos e se
lançaram numa guerra santa contra o seu domínio”.895 “Perseguia ferrenhamente a
Igreja de Deus e procurava exterminá-la” (Gl 1,13). “Nem sou digno de ser
chamado apóstolo, pois persegui a Igreja de Deus” (I Co 15,9). “Chamou-me ao
ministério, a mim, que outrora era blasfemo, perseguidor e violento” (I Tm
1,12,13).

891
ASHERI, Michael. O Judaísmo vivo. As Tradições e as Leis dos Judeus Praticantes. Rio de
Janeiro. Imago. 1995, pp. 27-31.
892
Ibidem, p. 24. O referido autor comenta o seguinte: “A Lei judaica, contida no pentateuco, que,
na sua essência, é obra de Moisés, foi-se desenvolvendo mais tarde entre os Profetas e adquiriu
uma importância histórica mundial quando Esdras, no ano de 445 a.C., por ordem do rei dos
persas, a tornou obrigatória para os judeus que tinham regressado do cativeiro na Babilônia.
Privado de autonomia política e de qualquer política exterior, o povo judeu concentrou todas as
suas apaixonadas energias em si próprio. Os dois pólos em torno dos quais girava toda a vida
nacional de Israel passaram a ser a Lei, que regulava até os menores detalhes da vida humana,
tinha os olhos fixos no passado e estava vinculada à tradição e à esperança messiânica expressada
no anelo pelo estabelecimento definitivo do ‘reino de Deus’ e da soberania judaica sobre as nações
pagãs. Este foi o começo do que entendemos propriamente por judaísmo”.
893
É exatamente a partir daí que ele se lança contra os do “Caminho”. É perfeitamente aceitável o
argumento de que, até então, Saulo não tivesse qualquer visão inculturada quanto ao processo de
evangelização que ele colocaria em prática a partir de sua conversão. Sua formação judaico-
religiosa não fora suficiente para dar-lhe tal percepção quando de sua conversão. Por isso, seu
encontro com o Senhor Jesus possui muito mais brilho, visto não se tratar apenas de mudança de
vida, mas de visão.
894
ASHERI, Michael, p. 39.
895
HOLZNER, Josef, p. 40.
283

Atos diz mais acerca do ódio de Saulo:

Saulo, porém, só respirava ameaças e morte contra os


discípulos do Senhor. Apresentou-se ao Sumo Sacerdote
e lhe pediu cartas de recomendação para as sinagogas de
Damasco, com o fim de levar presos para Jerusalém
todos os homens e mulheres que achasse seguindo tal
doutrina.896

4.4.1
Paulo: sua Missão e o Processo de Evangelização Inculturada

Sem dúvida alguma, o paradigma do processo de evangelização do apóstolo


Paulo foi Jesus de Nazaré, Aquele que havia mudado toda a sua vida.897 Sua
motivação missionária, portanto, sempre foi a sua vocação. Ela era determinante,
pois desde o momento de sua conversão, Paulo sabia de sua missão entre os
gentios (Gl 1, 15 ss.).898
É preciso esclarecer que, no processo de inculturação da fé através da
missão paulina, não havia qualquer conceituação ou mesmo conhecimento sobre o
termo inculturação.899
Entretanto, percebemos com clareza que esta estratégia missionária estava
presente em toda a ação missionária de Paulo. Sem dúvida, um dos fatores
preponderantes do seu sucesso missionário foi evangelizar a partir das culturas
existentes.900

896
Cf. Gl 1, 13; I Cor 15,9; I Tm 1,12,13; At 9,1,2.
897
FOULKES, Ricardo B. Motivos Paulinos para La Evangelizacion. In.: Costas Orlando
Costas, op. cit., p. 71.
898
FOULKES, Ricardo B., op. cit., p. 68.
899
Por inculturação, entende-se o processo pelo qual a evangelização se faz a partir de dentro dos
elementos culturais pré-existentes. Significa tomar os valores culturais da cultura subjacente. Jesus
Cristo, por exemplo, agiu exatamente assim, ou seja, a partir de dentro de sua cultura, Ele iniciou
seu processo de evangelização, falando da chegada do Reino de Deus e pregando a sua desafiadora
mensagem. Podemos, ainda, afirmar que inculturação é o processo pelo qual a semente da Palavra
é lançada na terra da cultura, e a terra produz uma nova planta. Por isso, conforme o tipo da
terra/cultura, haverá um tipo de evangelização. No próximo capítulo deste trabalho (O Desafio de
Ser Igreja no Mundo Urbano) daremos outras definições sobre o termo inculturação. Ver as
seguintes obras: Culturas e Evangelização. Paulo Suess (Org.). São Paulo: Loyola;
Entroncamentos & entrechoques. Vivendo a Fé em um Mundo Plural. Marcello Azevedo S. J. São
Paulo: Loyola; Inculturação - Desafios de Hoje. Márcio Fabri dos Anjos (Org.). Rio de Janeiro:
Vozes; A Utopia Possível - Em Busca de um Cristianismo integral. Robinson Cavalcanti. MG:
Ultimato.
900
GREEN, Michael, pp. 240-242.
284

Podemos citar aqui, em linhas gerais, alguns episódios vividos por Paulo que
caracterizam muito bem essa questão de sua ação kerigmática “inculturada”. Por
exemplo, em Atos 16, 13, ele aparece de modo informal, realizando uma reunião
de oração à beira de um rio. Logo em seguida, ou seja, em Atos 16, 15, ele se
expressa de forma familiar, entrando na casa de Lídia, iniciando ali uma célula
cristã. Em Atos 16, 16-18, já o vemos intrépido, confrontando “demônios” em
nome de Jesus Cristo, causando grande impacto à comunidade. Em Atos 16, 24,
25, ele é capaz de cantar na prisão a ponto de incomodar tremendamente o
carcereiro, após um terremoto. Paulo era criativo.

Em Atenas sua estratégia era dinâmica, usava as


sinagogas para falar aos religiosos, usava praças para
pregar a quem interessasse, a quem estivesse passando
lá, e usava o teatro universitário e o Areópago, o lugar
dos grandes oradores, na dinamicidade da implantação
da Igreja de Jesus naquele lugar (At 17, 19-23).901

Observando Atos 18 e 19, 8,9, deparamo-nos com um homem lógico e


sistemático. Os verbos utilizados por Lucas para descrever as características da
evangelização e do ensino, empreendidos por ele são todos associados à
inteligência, à lógica, como por exemplo: “Ele persuadia (três vezes), discorria
sobre as Escrituras, ensinava com método na escola de Tirano. Paulo era um
homem aberto para o extraordinário, e Deus, através de suas mãos, realizava
coisas maravilhosas” (At 19,11).
Não pode haver dúvidas de que os primeiros missionários foram
influenciados pela importância estratégica de certas cidades, nas quais se tornaram
alvos prioritários no contexto mais amplo de pregar o evangelho a todo o mundo.
Paulo foi o exemplo mais explícito dessa estratégia. Ele escolheu lugares que
eram centros da administração romana, da civilização grega, da influência judaica,
e de importância comercial.902
Paulo escrevendo aos Gálatas, cerca de 20 ou 25 anos depois de sua
conversão, diz:

901
Id., Como Começar um Ministério Novo. São Paulo. Ed. Abba. 1995, pp. 30,31.
902
GREEN, Michael, p. 317.
285

Imediatamente parti para a Arábia, sem recorrer a


nenhum conselho humano, sem ir a Jerusalém ver os que
antes de mim eram apóstolos. Da Arábia voltei a
Damasco. Três anos depois, subi a Jerusalém para
conhecer Cefas e fiquei com ele quinze dias. Dos outros
apóstolos não vi mais nenhum, mas somente Tiago,
irmão do Senhor. Em seguida fui para as regiões da Síria
e da Cilícia. Ainda era pessoalmente desconhecido das
comunidades da Judéia. Elas só tinham ouvido dizer:
“Aquele que antes nos perseguia, agora prega a fé que
outrora combatia”. (Gl 1,16-23).
Paulo foi avistar-se com Pedro porque este era de
certo modo o representante dos Doze. Não foi para fazer
ato de submissão, mas para que houvesse como um
reconhecimento mútuo das missões. Paulo reconhecia a
qualidade de apóstolos de Pedro e dos Doze, e esperava
ser também reconhecido como apóstolo por eles.903

Atos nos informa que, quando voltou para Damasco, depois de um tempo
cuja duração não se sabe, Paulo passou imediatamente a pregar o evangelho. A
resposta dos judeus foi imediata, ou seja, quiseram matá-lo. Ele teve que fugir (At
9,25).904
Sem dúvida, o ponto de partida das missões cristãs foi a Igreja
neotestamentária. Temos as palavras do Senhor ressuscitado em Atos 1,8: “[...]
mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas
testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samaria, e até aos
confins da terra”.
Assim,

Os discípulos, assustados e inseguros, que haviam


fugido durante as horas de agonia do seu mestre na cruz,
haviam sido capacitados com o Espírito Santo no Dia de
Pentecostes, nascendo, assim, o movimento
missionário.905

903
COMBLIN, José, p. 32.
904
BITTENCOURT, B. P., p. 47.
905
TUCKER, Ruth A. p. 28.
286

O apóstolo Paulo, indiscutivelmente, fez jus ao título de maior missionário


da primeira Igreja. Nas palavras de Scott Latourette, “ele tem sido, ao mesmo
tempo, o protótipo, o modelo, e a inspiração de milhares de sucessores”.906 Paulo
tornou-se o evangelista mais ativo do cristianismo do primeiro século. Suas
viagens missionárias o levaram a diversas cidades através de todo o mundo
mediterrâneo, onde pôde implantar, eficazmente, a partir do conjunto cultural,
social, moral, econômico, espiritual etc., as Igrejas nativas de cada local. Em todo
o seu processo de evangelização, através de suas viagens missionárias, ele nunca
utilizou um modelo eclesial fechado, um pacote eclesiástico, ou uma estrutura
eclesiástica rígida. Ao contrário, as Comunidades iam nascendo a partir do seu
ethos cultural.907 Vejamos ainda o testemunho de José Comblin acerca de Paulo:

Paulo foi a irrupção do imprevisível na Igreja.


Ninguém tinha pensado nele. Ninguém o preparou.
Quando ele se tornou cristão, não souberam o que fazer
dele e o mandaram de volta para Tarso. No entanto,
quase toda a história cristã desde então teve a sua origem
nele, enquanto quase nada permaneceu das obras dos
Doze escolhidos por Jesus.908

Quando olhamos para o contexto do NT, percebemos que o apóstolo Paulo,


o grande missionário inculturado e plantador de Igrejas, pensava e agia
estrategicamente.909 Quando foi enviado, já tinha sido convertido havia pelo
menos doze anos e havia se tornado um dos líderes da Igreja de Antioquia, uma
das principais Igrejas daquela época e que se tornou o centro das missões.
Não se pode negar que Paulo se beneficiou do grande conhecimento que
adquirira do judaísmo, apreendido aos pés de Gamaliel. No entanto, percebemos
com muita clareza que seus planos e estratégias estavam sempre conduzidos pelo
vento do Espírito Santo. Por isso, “não eram planos superplanejados, inflexíveis e
devidamente executados, mas consistiam num agir inteligente, flexível sob a
orientação do Santo Espírito”.910

906
LATOURTTE, Kenneth Scott. The First Five Centuries. Vol. 1. A History of the Expansion
of Christianity. Grand Rapids: Zondervan. 1970, p. 80.
907
CARRIKER, Timóteo Charles, op. cit., p. 228.
908
COMBLIN, José, op. cit., p. 08.
909
MEEKS, Wayne A., op. cit., pp. 21-26.
910
VELLOSO, Ary. Iniciando Novas Igrejas. In.: HORREL, J. Scott, op. cit., p.111.
287

Penetrante e de grande ajuda, quando se trata de implantação de Igrejas, é a


observação que Roland Allen faz do ministério de Paulo:

Em pouco mais de dez anos, Paulo estabeleceu a


Igreja em quatro províncias do Império: a Galácia, a
Macedônia, a Acaia e a Ásia. Antes de 57 a.D., Paulo já
podia falar do seu trabalho ali como tendo sido
completado e podia planejar viagens extensivas para o
extremo ocidente sem a preocupação de que as Igrejas
que fundara pudessem perecer na sua ausência pela falta
de sua orientação e apoio. O trabalho do apóstolo
durante esses dez anos pode, portanto, ser tratado como
uma unidade. Seja qual for a assistência que ele tenha
recebido da pregação de outras pessoas, é inquestionável
que o estabelecimento das Igrejas nessas províncias
realmente foi o trabalho dele. Nas páginas do NT, ele, e
somente ele, destaca-se como fundador delas. E o
trabalho que ele realizou foi realmente completo.911

O apóstolo Paulo usou uma estratégia basicamente simples, ou seja, “ele só


tinha uma vida, e estava decidido a usá-la o máximo possível, tirando dela o
melhor proveito no serviço de Jesus Cristo”.912 Sua visão missionária possuía as
perspectivas pessoal, urbana, provincial e global.

911
ALLEN, Roland. Missionary Methods: St. Paul’s or Ours? (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1962). Apesar do autor afirmar que o ministério de Paulo durou pouco mais de dez anos, vale dizer
que seu ministério teve uma extensão de aproximadamente vinte anos.
288

4.4.2
Paulo e sua Concepção de Evangelho

Na concepção paulina o termo evangelho busca evidenciar o conteúdo e a


forma de sua própria missão. O Evangelho significa a proclamação da mensagem
e o seu próprio conteúdo. E o conteúdo central do Evangelho é Jesus Cristo.913 A
sensibilidade de Paulo não permite identificar o Evangelho com qualquer anúncio
que não se refira a Cristo.914 Para Paulo o Evangelho não é uma mera mensagem
discursiva. O Evangelho promove relação indispensável com a História e
comportamento dos homens e mulheres de Deus.915 O Evangelho anda par e passo
com o anúncio e transformação de vida (2 Co 6.4-10). De igual forma as
comunidades de fé devem viver.916
Paulo percebe o mesmo paradigma na teologia de Calvino. A compreensão
sobre a Lei e o Evangelho é o grande liame que produz o novo cidadão do Reino
de Deus vivendo na história dos homens. Cada discípulo é desafiado a viver de tal
maneira que glorifique a Deus.917 Para Calvino, há um princípio fundamental da
vida cristã, descrito da seguinte forma:

Os cristãos não pertencem a si mesmos, mas ao


Senhor. Isto os leva, inclusive, à autonegação, tanto em
relação a outros quanto em relação a Deus. Em relação a
outros, os cristãos negam a si mesmos perdoando e
sendo humildes, bem como servindo a outros em amor.
Em relação a Deus, autonegação significa sujeitar-se aos
Seus julgamentos, procurando não fazer outra coisa
senão a vontade divina, e carregando a cruz. O carregar
da cruz não é algo que acontece para alguns cristãos
desafortunados, mas é um sinal necessário da vida cristã.
A atitude cristã para com a cruz, entretanto, é muito
diferente da atitude estóica. O estóico busca o controle
de si mesmo e a firmeza; o cristão simplesmente confia
em Deus e admite a fraqueza. Assim, as provações
estóicas acumulam orgulho e pecado, enquanto que a
cruz cristã nos afasta da autoconfiança e nos leva para a
confiança em Deus.918

912
GREEN, Michael, op. cit., p. 318.
913
GOPPELT, L, op.cit., p. 355.
914
Ibidem, p. 356.
915
Ibidem, p. 359.
916
Ibidem, p. 360.
917
Institutas, livro III, cap. 10.
918
Institutas, livro III, cap. 8, seção 9.
289

Todo cristão alcançado pela graça de Deus em Cristo Jesus, torna-se liberto
do pecado e, por conseguinte, liberto da Lei. “Em Cristo, o problema religioso do
pecado é resolvido, e o homem restabelece sua comunhão com Deus. A
desobediência é transformada em obediência; a imagem de Deus no homem é
renovada e ele deixa a escravidão”.919 Assim, a nova vida é uma vida em
comunidade, a Igreja. E esta, é chamada e enviada para o cumprimento de sua
missão.920

919
FERREIRA, E. M., p. 33.
920
Resposta ao Cardeal Sadoleto, p. 32.
290

Conclusão

Verificamos, de forma muito prazerosa, a presença de Deus no palco da


História, através da encarnação de Jesus Cristo, que inaugurou a chegada do
Reino e trouxe definitivamente a mensagem da liberdade cristã, tendo os
evangelhos como nossa fonte primária e a carta de são Paulo aos Gálatas e,
fundamentalmente Jesus Cristo como seu principal interlocutor, como presença
real e histórica do Reino e o anúncio da liberdade, que vem acompanhado de suas
atitudes, que são sinais da atuação deste Reino.
Vimos que Jesus revoluciona todo o conceito acerca da lei, mesmo sendo o
cumprimento da mesma, demonstrou absoluta e total liberdade em relação a tudo
àquilo que oprimia o homem. Na verdade, para Jesus, a lei deveria estar a serviço
do homem, e não o contrário. Viu-se Jesus como a nova e única proposta de Deus
ao homem, a fim de humanizá-lo, tornando-o livre da força opressora do mal, do
pecado e de todo tipo de religiosismos. A expressão de Jesus Cristo “e
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8.32), tem, em sua própria
pessoa e existência, sua corroboração, pois, Ele fala a verdade e põe em ação a
verdade libertadora, que é a manifestação da liberdade absoluta com que Deus
partilha conosco sua vida, sua verdade e seu amor.
Finalmente, vimos que, na perspectiva paulina Deus, é absolutamente livre
e, portanto, criou o homem para viver em liberdade, sendo esta a Sua maior
vocação. A vocação de Deus possibilita ao homem, ao mesmo tempo, a conquista
e a construção da liberdade, sempre como acolhida e resposta à graça de Jesus
Cristo, pela poderosa ação do Espírito Santo.
Posto isso, nosso último desafio é articular as concepções teológicas de
Calvino, naquilo que empreendemos realizar, tendo o terceiro capítulo como
elemento escriturístico, basilar dentro da temática proposta, estabelecendo um
diálogo com os interlocutores modernos e pós-modernos, oferecendo alguns
caminhos de atualização da teologia calvinista, como viabilização de encontro,
vivência, práxis e anúncio do Evangelho que promove a liberdade do homem. Eis
o nosso próximo labor.
291

Quinto Capítulo

5
Ação Querigmática da Igreja e a Liberdade Cristã

Sociologicamente, a liberdade humana, nos tempos modernos, dá-se na


medida em que a população mundial pratica uma migração para os grandes
centros urbanos. O vetor da liberdade moderna passa, sem dúvida alguma, do
campo tradicional para a vida nas grandes cidades, marca irrefutável da
modernidade dos últimos 100 anos, pelo menos. Entretanto, precisamos entender
que a modernidade prometeu a liberdade pela via da produção de bens materiais,
onde “a abundância levaria à liberdade”,921 mas, lamentavelmente, a fartura não
foi capaz de trazer a tão esperada liberdade. Pelo contrário, fortaleceu e instigou
ainda mais o desejo de uma pequena minoria que, pelo poder do monopólio das
indústrias que produzem, reafirma a grande frustração da maioria. Na verdade, diz
Comblin, “a dominação não vem da escassez, e sim da má distribuição”.922 Ou
seja, intuímos e concluímos que a liberdade, na modernidade, não chega pelo
caminho da produção.
O caminho da verdadeira liberdade, proposta pelo Evangelho libertador,
vivida e anunciada por Jesus Cristo, trata-se da busca do outro. Mais uma vez
Jesus é o paradigma absoluto dessa via que ultrapassa todos os tempos e barreiras
culturais, ideologias religiosas, interesses econômicos. Esta é a resposta do
cristianismo. No caminho da autodoação, da entrega, do serviço ao outro, do
assumir o lugar do homem excluído e em atitude de ruptura constante com Deus, é
que Jesus chama e envia Seus discípulos a viverem e a proclamarem.

921
COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus. 1998, p. 309.
922
COMBLIN, José, op. cit., p. 309. A política também não foi capaz de produzir a liberdade, pois
viu-se atrelada e submissa aos caprichos do poder econômico.
292

Nosso foco de interesse, neste último capítulo, passa pelo desafio de


interpelar o pensamento estudado de Calvino, estabelecendo conexões com os
atuais interlocutores. Os paradigmas estudados em Calvino e tratados neste
trabalho servirão de nexos com a contemporaneidade, numa busca de atualização,
desafios e práxis do genuíno Evangelho de Jesus Cristo. À luz dos temas
923
elencados em Calvino, buscaremos uma proposta integral da vida cristã.
Quando pensamos numa Igreja exercendo sua vocação histórica de forma
relevante na sociedade e na expansão do Reino de Deus, temos que considerar a
possibilidade de uma atualização calvinista como proposta e resposta para o
mundo contemporâneo, a fim de que estabeleçamos diálogo com nossos
interlocutores.
A célebre frase Ecclesia reformata et semper reformanda est - A Igreja
reformada está sempre se reformando – expressão formulada após a Reforma e
vastamente utilizada no século XIX, precisa ser a tônica da Igreja na pós-
modernidade, frente a tantos e urgentes desafios, que exigem da Igreja uma
postura cada vez mais adequada aos novos tempos e, ao mesmo tempo, sem abrir
mão de seus pressupostos bíblico-teológicos. Especialmente com Calvino, na
chamada Segunda Reforma, era expressão comum e desejada. Há certo paradoxo
protestante, ou seja, a Reforma do Século XVI nasceu com a proposta de
contestação, de mudanças radicais nas bases da fé cristã, apresentando-se como
revolucionária e libertadora, como uma via alternativa, o que de fato aconteceu.
Porém, com o passar do tempo, sofre com o perigo, sempre iminente, de um
tradicionalismo rígido, extremamente conservador, paralisante, fechado,
descolado da realidade.

923
WURTH, G. Brillenllenburg. “Calvin and the Kingdom of God”, John Calvin:
Contemporary Prophet (editado por Jacob T. Hoogstra), p. 122. Cf. FERREIRA, Edijéce Martins.
A Ética de Calvino. Edição comemorativa do centenário do presbitério de Pernambuco. Recife:
1988, p. 13.
293

Portanto, cremos que se faz necessário e oportuno buscar uma constante


reforma e, em nosso caso, retornar aos fundamentos basilares da fé cristã,
encontrados nas Escrituras e nas grandes doutrinas exposadas não apenas pelos
reformadores, mas também pelos pais da Igreja e tantos outros homens de Deus, a
fim de não perdermos nossa identidade reformada e influenciarmos,
positivamente, sem imposição, a Igreja Evangélica Brasileira, tão sem rumo e sem
conhecimento bíblico e, conseqüentemente, sem firmeza doutrinária. Influenciar
também nossa sociedade, buscando transformações em todas as suas dimensões e
oportunando, ao homem, uma vida melhor, mais humana.
Nesse sentido, o princípio reformado autoriza-nos resgatar o pensamento de
Calvino e atualizá-lo diante das demandas atuais naquilo que houver, de fato,
necessidade. Significa, em outras palavras, retomar a proclamação genuína da
Palavra de Deus, visto que “a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual, já
que nada que é necessário e útil ao conhecimento é omitido, também nada é
ensinado que não se precise saber”.924 O cristianismo “é um poder
reconstrutivo.”925 Como falaremos mais adiante, numa sociedade repleta de
carência das Escrituras na vida social e individual, no meio de uma Igreja
Evangélica Brasileira, em muitos segmentos, beirando às raias do misticismo e do
relativismo escriturístico, retomar os princípios reformados parece-nos uma
necessidade urgentíssima.

5.1
O Querigma Libertário: Libertação da Igreja Diante dos Desafios da
Pós-Modernidade

O querigma da Igreja pós-moderna precisa trazer, mais do nunca, os sinais e


a presença plenos do Reino de Deus (Mc 1,15), que tem a ver com a realeza de
Deus, atuando nos corações dos homens e mulheres desse tempo, provocando
verdadeira liberdade interior e nas dimensões externas do ser humano e no meio
onde ele habita.

924
Institutas, vol. IV, XX, 3.
925
GUTHRIE, Shirley C. Sempre se Reformando. A Fé Reformada em um Mundo Pluralista.
São Paulo: Pendão Real. 2000, p. 7.
294

A ação da Igreja, na história, concretiza o Reino na medida em que o


anúncio do Evangelho libertador produz a plenitude salvífica futura, resultado da
salvação presente, como resposta à oferta graciosa de Deus.926 Paradoxalmente,
submeter-se ao senhorio desse novo reino é encontrar a verdadeira liberdade, pois
a graça de Deus nos convida a uma resposta de amor, de relação, de entrega,
jamais de totalitarismo. Na verdade, o domínio de Deus é de amor. Experimentar
a realidade do reino é fazer a própria experiência salvífica, é encontrar as sendas
da liberdade. A experiência de salvação oferecida por e em Jesus é integral,
permeando todas as dimensões do ser humano.
A práxis de Jesus expressa muito mais preocupação com o homem do que
com tradições e prescrições. Sua liberdade era sempre capaz de relativizar todo
tipo de religiosidade opressora de sua época, fundamentalmente resultado de sua
experiência com o Pai. Ou seja, Jesus Cristo revelou um Deus sem preocupações
em avaliar as ações meritórias do homem – religiosas – para com Ele, mas “um
927
Deus que aceita o homem como é, que o ama e perdoa sem impor condições”.
A beleza do ministério de Jesus como paradigma eclesiológico é a sua
capacidade em revelar, concretamente na história, o mistério de Deus de forma
compreensível e tangível aos homens e mulheres de seu tempo, sobretudo, os mais
simples e marginalizados. Ao demonstrar quem era Deus para Ele – Jesus -,
concretiza-se a relevância do Reino de Deus, pois sua intervenção no mundo não
acontece pela via de qualquer programa ético-moral, mas pela nova e graciosa
forma de relacionamento com Deus, ofertada ao homem. Eis o Evangelho
libertador, que não apenas perdoa e justifica o imperdoável, mas propicia uma
nova relação com o doador da liberdade, o Pai, por meio do Filho, pela ação do
Espírito Santo. Aí está a Trindade agindo na redenção do homem.

926
MIRANDA, Mário de França. Libertados para a Práxis da Justiça. A Teologia da Graça no
Atual Contexto Latino-Americano. São Paulo: Loyola, 2002, p. 26.
927
Ibidem, p. 28.
295

A presença da Igreja, no mundo, como continuação do ministério de Jesus


Cristo, firma-se pela sua práxis e anúncio do Reino de Deus, que carrega em si o
chamado à liberdade e a quem responde a vocação da graça, livra-se da escravidão
do pecado, das forças meritórias de qualquer religiosidade, da opressão do diabo,
de si mesmo e abre-se à nova vida, ofertada pelo único capaz de promover tal
libertação – a experiência com o Cristo de Nazaré. Ou seja, não existe salvação
928
sem a experiência da liberdade.
A Igreja é chamada por Deus, enviada por Jesus Cristo e capacitada pelo
Espírito Santo a viver historicamente a experiência trinitária, estando
fundamentalmente a serviço do ministério da reconciliação. À semelhança de
Jesus Cristo, a Igreja, comunitária e individualmente, exerce seu ministério de
contínuo êxodo, saindo de si mesma e caminhando na direção dos outros, dos
pobres, dos rejeitados, dos injustiçados, dos pecadores em geral. Ou seja, como
parte da natureza eclesial, ela vive voltada para fora de si mesma, jamais
endogenamente, fechada em si mesma.929
Se entendermos este fato, compreenderemos que a vida total da Igreja está
relacionada e envolvida no que Deus está fazendo no mundo.930 Por isso, a Igreja
vive para a sua missão.931 A missão da Igreja é a razão de ser da sua existência.
Não como uma de suas atividades, mas como a sua atividade específica, a sua
vocação especial, pois não há participação em Cristo sem participação na Sua
missão no mundo.932

928
Ibidem, p. 59.
929
CARRIKER, Timóteo Charles. Missão Integral. Uma Teologia Bíblica. São Paulo: SEPAL.
1992, p. 202.
930
CAVALCANTI, Robinson, op. cit., pp. 16-27.
931
FOX, H. Eddie & George E. Morris. Anunciemos o Senhor. A Evangelização na Virada do
Século. São Paulo: Imprensa Metodista. 1994, pp. 125-139.
932
PADILLA, C. René, op. cit., pp. 139-142. Cf. V.V.A.A. A Missão da Igreja no Mundo de
Hoje. Principais Palestras do Congresso Internacional de Evangelização Mundial Realizado em
Lausane, Suíça. Howard A. Snyder. A Igreja como Agente de Deus na Evangelização. São
Paulo: ABU. 1984, pp. 87-91. Ver também: CÉSAR, Élben Magalhães Lenz. Missões e
Tentações. In.: CARRIKER, Timóteo (Org.). Missões e a Igreja Brasileira. A Vocação
Missionária. Vol. 1. São Paulo: Mundo Cristão. 1993, pp. 41-43. Ver ainda: CARRIKER, Timóteo
Charles. Missões e a Igreja Brasileira. A Vocação Missionária. Vol. 01. São Paulo: Mundo
Cristão. 1993, pp. 1-10.
296

A Igreja precisa saber como ela deve ser e o que ela deve fazer.933 Ela
precisa, para realizar a obra de evangelização, sentir-se parte efetiva do
movimento do Espírito Santo de Deus, do contrário ela não faz missões. Assim,
evangelizar é participar com Deus no processo de redenção e salvação dos Seus
escolhidos. É participar da Missio Dei.934
Portanto, “sem a missão da Igreja a história nada mais é do que a história
humana, cujo progresso consiste, na melhor das hipóteses, na intensificação de
sua catástrofe. Mas se sabemos da vinda do Reino nos alegramos em proclamá-
lo”.935 Karl Barth descreve a missão da Igreja da seguinte maneira:

Entendida no sentido mais estrito da palavra - o


qual, contudo é o sentido real, original - “Missão”
significa “enviar”, enviar às nações com o propósito de
testificar o Evangelho, o qual representa a raiz da
existência e ao mesmo tempo a raiz também de toda a
tarefa do povo de Cristo. Na “Missão”, a Igreja se
descobre e se põe no seu caminho (Poreuthentes - Mt
28,19) e, para tanto, dá o passo necessário nas
profundezas do seu próprio ser, passo além de seu
próprio ser e além de seu próprio ambiente, para dentro
daquela humanidade que está aprisionada a tantas
crenças falsas, obstinadas e impotentes, e sujeita a tantos
deuses falsos de invenção e autoridade mais antigas e
mais recentes - para aquele mundo dos homens que ainda
são estranhos à Palavra de Deus, concernente à Sua
garantia de misericórdia que os inclui, à palavra que em
Jesus Cristo também lhes foi enviada [...].936

O conteúdo da evangelização é Jesus Cristo, Evangelho do Pai, que


anunciou com gestos e palavras que Deus é misericordioso para com todas as suas
criaturas, que ama o homem com um amor sem limites e que quis entrar na sua
história por meio de Jesus Cristo, morto por nós, para nos libertar do pecado e de
todas as suas conseqüências e para nos fazer participar de sua vida divina.937 Nas
palavras de Paulo VI, evangelizar é anunciar “o nome, a doutrina, a vida, as
promessas, o Reino, o mistério de Jesus de Nazaré, Filho de Deus”.938

933
Isso era algo que devia estar muito claro na mente e no coração da Igreja. Era uma nova
sociedade com uma nova mensagem. Cf. C. PADILLA, René, op. cit., pp. 24-37.
934
PATE, Larry. Missiologia: A Missão Transcultural da Igreja. São Paulo: Vida. 1987, pp. 4-26.
935
BLAUW, Johannes, op. cit., p. 110.
936
Ibidem., p. 117. Cf. “Relatório do Conselho Consultivo do Principal Tema da Segunda
Assembléia - Cristo, a Esperança do Mundo”, p. 18. In The Christian Hope and the Task of the
Church, Nova York: Harper Bros, 1954.
937
Cf. João Paulo II. Homilia em Veracruz. México: 7.5.90.
938
EN, 22.
297

Todo processo de evangelização inculturada passa pelo desafio de não


resumir a mensagem cristã em um discurso meramente tradicional, anacrônico,
muitas vezes, e, pior, centrado na autoridade da Igreja. A evangelização precisa
considerar o tempo no qual ela se dá. O caminho da evangelização tem que passar
pela consciência e sensibilidade de seus interlocutores. Todo processo de
evangelização não pode abandonar a racionalidade. Uma racionalidade capaz de
desmascarar a idolatrização da pós-modernidade.939
Aspecto importante da realidade da Igreja é o fato definitivo e total da obra
redentora de Jesus Cristo, ou seja, ato decisivo e básico da reconciliação de toda a
criação, que longe de enfraquecer o ímpeto missionário da Igreja, é a certeza que
constitui o fundamento legítimo para uma proclamação urgente e séria a todos os
homens.940 A missão da Igreja é parte integrante da obra final de Jesus Cristo e a
missão é cristã, na medida em que sua motivação reside na certeza de que a
salvação do homem foi realizada em Cristo e que nEle a nova humanidade foi
inaugurada.941

5.1.1
O Espírito Santo e o Anúncio do Querigma Libertário

Jamais poderemos considerar o Evangelho e seu anúncio como sendo algo a


atingir partes do ser humano. Ao contrário, a liberdade promovida pelo Evangelho
é profunda e integral. Profunda, porque o liberta de si mesmo, de seu egoísmo, de
sua auto-independência. Integral porque o liberta para a entrega radical a Cristo,
para o outro, para o amor-serviço, para um novo relacionamento com o Criador e
a criação, alterando seu ethos existencial. Esta liberdade profunda e integral é
operada pelo Espírito Santo, pois, no espaço da ação do Espírito, a liberdade se
concretiza (2 Cor 3,17).942

939
STEUERNAGEL, Valdir. Obediência Missionária e Prática Histórica. São Paulo: ABU.
1993, pp. 154-155.
940
STAGG, Frank. Atos - A Luta dos Cristãos por uma Igreja Livre e sem Fronteiras. Rio de
Janeiro: JUERP. 1994, pp. 44-55.
941
PADILLA, C. René, op. cit., pp. 202-206.
942
ARANA, Pedro. Bases Bíblicas da Missão Integral da Igreja. A Serviço do Reino. Um
Compêndio sobre a Missão Integral da Igreja. In.: STEUENAGEL, Valdir (Editor). Belo
Horizonte: Missão Editora. 1992, pp. 84-86.
298

A força do Espírito Santo é elemento fundante da Comunidade Cristã, da


Comunidade de Jerusalém e de qualquer Igreja, e nos é concedido pela adesão à
Palavra. A força do Espírito se revela na palavra, na koinonia, nos sinais e nos
prodígios realizados. Tais sinais eram realizados por Jesus. Hoje, são sinais do
Espírito do Senhor na Comunidade Cristã e na obra de evangelização.

A força – dynamis - do Espírito Santo, dada aos


discípulos, não é mediado por instituições, nem pela
capacidade das pessoas, mas é uma força gratuita
incontrolável, que dá ânimo e coragem frente ao poder
estabelecido e capacita as pessoas a enfrentar e a
transformar.943

O evento do Pentecostes foi a oportunidade que os homens tiveram de ver e


ouvir as maravilhas de Deus e de captar a mensagem universal do Evangelho. O
Pentecostes nada mais foi do que a ação do Espírito Santo em evangelizar,
inculturando o Evangelho em outras línguas (culturas).944 Ora, aqui está a grande
pista para o caminhar da Igreja hoje, ou seja, ela precisa, na dimensão do Espírito,
diversificar a mensagem do único Evangelho de Jesus Cristo, para que alcance os
mais diferentes povos, línguas e culturas. Ancorados pelo espírito de Pentecostes,
com a abundância do Espírito, a Igreja Evangélica Brasileira precisa redescobrir
sua vocação maior, ser diaconal na ação missionária, com uma práxis libertadora
do Evangelho, coerente com a realidade pós-moderna.945
A evangelização toma sentido e impulso fundamentados na obra que Cristo
realizou, ou seja, na sua entrada no processo histórico através de sua encarnação e
doação de vida ao homem perdido, que estava e está em processo de ruptura com
Deus.946 Isto significa resistir à tentação de não se constituir em valor mais
elevado daquilo que já foi feito por Jesus Cristo e que continua sendo feito
mediante o Espírito Santo.947

943
ROBERTI, Carlos. O Espírito Santo na Obra de Lucas. Revista Estudos Bíblicos 45 - O
Espírito Santo - Formador de Comunidades. Rio de Janeiro: Vozes, p. 57.
944
ROBERTI, Carlos, op. cit., p. 58.
945
RAMOS, Ariovaldo. Veja Sua Cidade Com Outros Olhos. Ação da Igreja na Cidade. São
Paulo: SEPAL. 1995, p. 25.
946
KIVENGERE, Festo. A Cruz e a Evangelização Mundial. A Missão da Igreja no Mundo de
Hoje. São Paulo: ABU. 1982, p. 231 passim. Todo o artigo é dedicado à fundamentação da
evangelização na obra redentora de Jesus Cristo na Cruz do calvário, que teve como objetivo
salvar e libertar os oprimidos e cativos. Portanto, a cruz não pode ser vista e analisada como sendo
um fim em si mesma. A cruz pela cruz não tem significado algum para a realidade existencial do
homem.
947
STOTT, John. A Cruz de Cristo. São Paulo: Vida. 1990, p. 149 passim.
299

O que se verifica, hoje, é uma preocupação muito positiva no que diz


respeito às Igrejas no Brasil demonstrando um impulso evangelizador bastante
acentuado e agressivo. Vivemos, hoje, a possibilidade real de comunicar as Boas
Novas de salvação, conduzindo homens e mulheres a viverem a verdade
libertadora de Jesus Cristo.948 Entretanto, não podemos deixar de dizer que,
muitas vezes, este impulso evangelizador tem sido manchado por uma exagerada
preocupação com os interesses econômicos em detrimento do seu serviço
vocacional.949 Harms-Wiebe afirma:

A nossa vivência do evangelho em Cristo nos


autoriza a comunicar as boas novas à sociedade (Jo. 17,
20-23). Tendo uma paixão por Deus e tendo sentido o
amor da comunidade, sentimos uma compaixão profunda
pelos que não conhecem a Deus (Rm 10, 14-15). Por
isso, cada membro do corpo é um sacerdote e tem como
função colocar pessoas em contato com Deus e
discipulá-las (1 Pe 2, 9-10; 3, 15-16; Mt 28, 16-20).
Como Igreja, servimos como liame entre Deus e a
humanidade (2 Co 5, 16-19). Pela maneira de ser,
refletimos a semelhança de Deus para o mundo e ao
mesmo tempo transformamos a sociedade.950

A natureza missionária da Igreja é redescoberta na dimensão do serviço aos


outros. Ela é Igreja quando acontece para os seres humanos, como possibilidade
de recebimento da verdade da ressurreição de Jesus Cristo. Ela acontece no
caminho da graça de Deus, manifestada em Cristo e sustentada pelo poder do
Espírito Santo, que funda, edifica e a faz crescer e viver. Conforme o Concílio
Vaticano II, a Igreja possui uma natureza intrinsecamente missionária, quando
afirma: “A Igreja que vive no tempo, é por sua natureza missionária, enquanto que
é da missão do Filho e da missão do Espírito Santo que essa, segundo o plano de
Deus Pai, deriva a sua origem”.951

948
Institutas, Edição Especial, pp. 105-107.
949
KIRK, Andrew. Igreja: Comunidade do Serviço. Rio de Janeiro: VINDE. 1989, p. 9 passim.
950
HARMS-WIEBE, Ray. Estrutura Criativa no Contexto Metropolitano - Passos de um processo
de Transformação. In.: HORRELL, J. Scott (org.). Ultrapassando Barreiras. São Paulo: Vida
Nova. 1995, p. 31.
951
AG, 2; cf. LG, 1. Vaticano II.
300

Portanto, sem a missão histórica da Igreja, a história nada mais é do que a


história humana, cujo progresso consiste, na melhor das hipóteses, na
intensificação de sua catástrofe.952 Mas, se sabemos da vinda do Reino, não
podemos nos alegrar com apenas a promessa sem deixar de, apaixonadamente,
proclamá-la.953 O Evangelho e sua mensagem não existem separadamente de seu
envolvimento histórico, isto é, eles se vivificam precisamente no confronto
missionário da Igreja com o mundo.954
A obra evangelizadora da Igreja, portanto, deverá aperceber-se lucidamente
das condições concretas do homem pós-moderno, contingenciado ao seu tempo e
espaço, inteirando-se competentemente do seu novo ethos cultural, que subjaz às
turbulências e ao dinamismo da história de cada povo.955 Sem que se perca essa
visão mais ampla, é necessário sentir e meditar em sua repercussão nas nossas
próprias fronteiras.
Jesus Cristo é o cumprimento do AT e o primogênito da nova criação, o fim
de um mundo, o começo de outro novo, “o ponto central da História.”956 Diante da
grandiosidade da obra que Cristo realizou, a proclamação do Evangelho é a forma
do Reino de Deus tornar-se realidade na História. No Espírito Santo, é o próprio
Cristo quem testifica, mas, ao mesmo tempo, são os discípulos que testificam e
modificam as estruturas através do anúncio do Evangelho.957 Blauw afirma que:

À luz deste novo começo, a proclamação do


Evangelho entre as nações deve ser entendida como a
concretização das expectativas escatológicas. O novo
mundo já existe, mas existe apenas para aquele que vê a
realidade do domínio de Cristo na proclamação do
Evangelho no mundo.958

952
BLAUW, Johannes. A Natureza Missionária da Igreja. São Paulo: ASTE. 1966, p.110.
953
LOEFFLER, Paul. Apostilas Sobre Evangelização Urbana. 1980.
954
HOUTART, François. A Igreja e o Mundo. Petrópolis: Vozes. 1965. Cf. HORRELL, J. Scott.
Ultrapassando Barreiras. Novas opções para a Igreja Brasileira na virada do século XXI.
São Paulo: Vida Nova, p. 9. Cf. RENÉ, Padilla C., op. cit., pp. 197-200.
955
AZEVEDO, Marcelo S.J. Entroncamento e Entrechoques. Vivendo a Fé em um Mundo
Plural. São Paulo: Loyola. 1991, p. 81 passim. O autor é Dr. em Missiologia e trabalha muito bem
a questão do processo de uma evangelização inculturada. É profundo conhecedor da nossa
realidade, sendo, sem dúvida, um referencial nesta questão do agir da Igreja nos grandes centros
urbanos e de como deve ser a articulação entre a Igreja e o ethos cultural do homem moderno e
urbano.
956
Esta é expressão de Jean Daniélou em Essai sur le mmystère de l’histore. 1954, p. 193.
957
CAVALCANTI, Robinson. Igreja: Agência de Transformação Histórica. Rio de Janeiro:
VINDE. 1987, p. 49 passim.
958
BLAUW, Johannes, op. cit. p. 106. Cf. CAVALCANTI, Robinson, op. cit., pp. 59-61. Cf.
V.V.A.A. Evangelização no Brasil. Documento preparado pelos participantes do Simpósio de
Evangelização, promovido pela ASTE, em São Paulo, em 1967.
301

A de se combater o perigo da domesticação de Deus que parece acompanhar


esses movimentos e se manifesta, sobretudo, na ação sobrenatural condicionada,
alardeada sem reserva por alguns grupos. Pode-se dizer que um deus do qual se
faz objeto de manipulação e que é contido nos limites do interesse de indivíduos e
grupos religiosos é precisamente o Deus de todas as religiões, mas não é o Pai de
Jesus Cristo, Sujeito da História e que conduz livremente todas as coisas rumo ao
seu cumprimento. De certo modo, tais movimentos vivem exatamente do
confinamento de Deus na esfera cada vez menos central e vital dos interesses
religiosos.959

5.1.2
Igreja: Promotora de Liberdade e de Esperança

Nesta sociedade pós-moderna, tendo como destaque algumas de suas


principais marcas, tais como a perda de valores éticos, a relativização de valores
tidos como absolutos, o consumismo, a desumana competitividade, o utilitarismo
como conseqüência do pragmatismo, o domínio do poder econômico e outros
mais, urge uma vivência eclesial saudável, capaz de promover relações mais
fraternais, mais afetivas, mais solidárias, na verdade, mais humanas. Diante da
Igreja está o desafio de resgatar o valor das relações humanas. O desafio da
convivência. Como já afirmamos, nessa crise aguda do vital humano, que está
completamente enfermo, necessitamos de uma liberdade equilibrada, onde haja
uma fé reflexiva aliada a uma fé afetiva, pela via da vivência do verdadeiro
Evangelho de Jesus Cristo.

959
KIVITZ, Ed René. Pequenos Grupos, uma Velha Novidade. In.: HORRELL, J. Scott (Editor).
Ultrapassando Barreiras. São Paulo: Vida Nova, p. 59 passim. Cf. HORRELL, Scott. A
Essência da Igreja. São Paulo: Vida Nova, pp. 10,11,27. Cf. com a obra: Evangelização e
Responsabilidade Social. Série Lausanne. São Paulo: ABU. Vol. 2, pp. 38-42. Esta obra faz parte
de uma série de dez volumes sobre o Congresso Mundial de Evangelização, ocorrida em
Lausanne, Suíça, em 1974.
302

Inserido numa sociedade movida pelo poder econômico e assumidamente


consumista, em que se valoriza mais o ter, a aparência, do que o ser, o conteúdo, o
homem é alimentado pela ilusão de que seu valor como pessoa está ancorado
apenas nessa cultura. Busca-se a todo custo o ter em detrimento do ser, tornando o
indivíduo altamente competitivo, encontrando sempre no outro um forte
adversário. Resultado: isolamento planejado e autodestruídor, com evidente
comportamento egoísta, sem a prática da bondade e da generosidade.
As relações assumem uma dimensão de descartabilidade jamais vista. O
utilitarismo e o pragmatismo tornam as pessoas descartáveis. Se associarmos a
incapacidade da pessoa de produzir, o mercado se encarrega de descartá-la.
Subjugado à cultura da descartabilidade, o homem vive o que podemos chamar de
doença do século, a depressão, com todos os seus sintomas de ansiedade, de
medo, estresse, insegurança. Vivemos a era dos tranqüilizantes. Fruto dessa
sociedade descartável, com relações e inter-relações superficiais, vamos encontrar
o núcleo familiar desintegrado, não ocupando mais o centro integrador e gerador
de caráter e da identidade do indivíduo.
O fato de haver menos técnicos e políticos competentes para transformar a
situação mediante aumento de produtividade e uma justa distribuição de renda,
certamente subtrai, cada vez mais, a esperança aos despojados e ameaça a paz
social. E a necessidade de que esses profissionais competentes retornem ao
cenário é, certamente, um estímulo à luta pelo progresso social. É nesse contexto
em que a Igreja Evangélica Brasileira apresenta-se um tanto confusa e, não raro,
dividida, como bem reflete sua maneira de interpretar e de proclamar o
Evangelho. Algumas vezes, ela se limita a denunciar a tendência iconoclasta que
acompanha a crise, já que esta pressupõe o desmoronamento de uma organização
social com a qual a Igreja está habituada, para não dizer identificada.
Nas palavras de Miranda, “a salvação de Cristo consistia em libertar a nossa
960
liberdade para o amor (a Deus e ao próximo)”. Ele ainda afirma que,

960
MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 102.
303

[...] no ponto em que chegamos, podemos


precisar mais esta afirmação: a salvação de Cristo
é a nossa liberdade, libertada na doação concreta
do amor fraterno; de fato, a graça só é realidade no
homem quando aceita, e esta aceitação se dá no
compromisso com o próximo; só no amor concreto
triunfa a ação salvífica de Deus e,
simultaneamente, liberta-se nossa liberdade.961

Sem dúvida, o Evangelho que nos foi confiado proclamar é Evangelho de


esperança, que corresponde às esperanças e aos anseios de todos os homens. Por
isso, a Igreja deverá saber ouvir e compreender o grito de esperança, que é
também um grito de desespero e de protesto, que explode do coração de muitos
filhos da família brasileira. Num sentido muito profundo e preciso, o Evangelho é
dirigido, fundamentalmente, aos pobres e constitui o anúncio da libertação dos
oprimidos e do estabelecimento de uma nova ordem de relações humanas mais
fraternas e mais justas.962 Não se pode negar o poder transformador do Evangelho
na vida dos homens e nas relações.
A evangelização que não salienta essas verdades bíblicas é uma
evangelização prejudicada e que não corresponde aos desafios daquele que se fez
carne e veio para trazer verdadeira e integral libertação e salvação. O povo de
Deus é constituído para viver Cristo nas relações. Nesta perspectiva, toda ética
cristã é ética social, ou seja, uma nova forma de viver com os homens e para os
homens nas complexas estruturas da sociedade moderna. A vida da Igreja do
Senhor Jesus é, portanto, uma vida de testemunho de sua fé em Deus, como
Senhor da História e, conseqüentemente, Senhor das transformações estruturais de
nossa terra.963
A esperança cristã, vista dentro da realidade do Reino de Deus, contém uma
dimensão social extremamente importante, que não pode ser dissociada de seu
cumprimento eterno. Jesus Cristo é, portanto, ao mesmo tempo, o julgamento e o
destino final de todas as aspirações humanas. Primar pela seriedade dessa verdade
talvez seja a mais difícil, mas também a mais promissora tarefa da Igreja, no que
tange à sua missão em nosso país.

961
Ibidem, p. 102.
962
PADILLA, C. René, op. cit., pp. 202,203.
963
CAVALCANTI, Robinson, op. cit., p. 55.
304

Seu resultado pode levar muitos homens a renovar sua confiança no


Evangelho e na Igreja que o prega, e possibilitará aos sofredores ver, sob nova luz,
o verdadeiro sentido de seu sofrimento e da luta por superá-lo. Ao mesmo tempo,
exigirá da Igreja que se propõe a anunciar a Boa Nova, disposição sacrificial para
aceitar o desconforto da incompreensão e da hostilidade, preço da fidelidade de
uma Igreja que quer ser obediente a Jesus Cristo e que quer ser livre no seu
serviço ao homem.964
Portanto, a Igreja é expressão histórica da graça salvífica de Deus em Cristo
Jesus e, sobretudo, nesse contexto pós-moderno, portadora da mensagem
libertadora e promotora dessa experiência salvífica pela mediação única de Jesus
965
Cristo. Nessa sociedade, marcada pelo pecado e repleta de sinais de opressão,
com a proclamação de uma cultura cada vez mais hedonista, consumista e niilista,
constitui-se em grande desafio um compromisso pela construção de uma
sociedade mais humana, em que o vital humano, alvejado pela graça libertadora,
conduza o homem ao verdadeiro sentido da vida. Cabe a Igreja e a cada cristão a
vivência e a proclamação dos valores do Reino.

5.2
A Cristologia Calvinista e o Querigma Libertário diante dos Desafios
da Pós-Modernidade

Toda a teologia calvinista possui uma centralidade cristocêntrica, tendo o


seu papel salvífico como único mediador entre Deus e o homem. A doutrina
cristológica não diz respeito apenas ao conhecimento que o homem precisa ter
acerca do salvador, mas também, segundo Calvino, Jesus Cristo é o Verbo eterno
de Deus, eternamente gerado do Pai, existindo antes da encarnação, “fora da
carne”,966 em sua linguagem.

964
KIRK, Andrew, op. cit., p. 27 passim.
965
Não queremos assumir, aqui, nenhuma forma reducionista de que, fora da Igreja, não há
salvação, mas evidenciar a vocação eclesial e de cada discípulo, individualmente, na tarefa
querigmática de anunciar as Boas Novas, que promovem a verdadeira liberdade humana.
966
Institutas, Vol. II, 13.4.
305

A cristologia, segundo Calvino, serve como poderoso instrumento de


combate às novas cristologias pós-modernas que afirmam que não houve morte
expiatória por parte de Cristo, apenas que, morrendo, deixou-nos sua vida como
paradigma a ser seguido.
No mundo altamente plural, verificamos a cristologia cativa de uma
soteriologia, ou de várias soteriologias, uma vez que a salvação encontra, nesse
ambiente, diversos caminhos salvíficos. Nesse sentido, Jesus Cristo é apenas mais
um caminho colocado ao lado de tantos outros. O paradigma central é o
soteriológico, e a cristologia cumpre a vontade de um teocentrismo, pois nesse
cenário, Deus está acima de Cristo. Jesus Cristo não encerra a revelação máxima e
especial de Deus, visto que há outras revelações de igual valor. Cristo está ao lado
de tantos outros, como mais um produto soteriológico no grande supermercado da
fé pós-moderna.
Portanto, nosso propósito é resgatar a cristologia bíblico-reformada na
perspectiva calvinista, evidenciar as questões fundamentais de e em Jesus Cristo e
evidenciar Sua permanente contemporaneidade e colocá-lO em diálogo com a
pós-modernidade.

5.2.1
A Atualização da Cristologia Calvinista: Aplicação na Cristologia
Eclesial

Não há dúvida do enorme desafio diante do contexto socioreligioso em


nosso país, sobretudo com o enraizamento da chamada teologia da prosperidade
nos setores pentencostal e, com muito maior ênfase, no movimento
neopentencostal. Enraizamento que, na prática, acompanha o nascedouro desse
setor evangélico. O ethos evangélico foi tremendamente afetado e alterado, na
qual tais Igrejas são movidas por uma teologia de mercado, causando sérios danos
à imagem da Igreja Evangélica Brasileira e nos trazendo uma crise de
plausibilidade.
306

Uma das conseqüências diretas trata-se do surgimento de uma massa de


evangélicos que, em sua relação com a Igreja e com Deus, estabeleceram uma
aliança de troca, ou seja, quanto mais a pessoa consome aquela religião – significa
dizer, seus produtos – mais obterá retorno espiritual e material da parte de Deus,
tudo segundo as promessas dos seus líderes. Na verdade, a teologia de mercado
transformou a fé num grande produto a ser comercializado, com toda a sua linha
de produção, e aqueles que deveriam ser verdadeiros discípulos de Jesus Cristo,
tornaram-se clientes potencialmente vocacionados para o consumo religioso.
Estabelecida esta conexão, significa afirmar que o poder econômico
capitulou o verdadeiro sentido da fé cristã. Os discípulos-clientes, consumidores
que são, não conseguem estabelecer relacionamento duradouro em suas Igrejas,
posto que as exigências sejam muitas, os resultados esperados não surgem e as
frustrações só fazem crescer. Resultado: os consumidores da fé tornam-se
967
migratórios, os chamados “nômades da fé”. Nessa movimentação transitória,
encontramos um significativo comentário:

No Brasil, como em outras partes do mundo, o fiel


já não é mais tão fiel assim à sua religião, ele transita em
diversas expressões religiosas. O perfil religioso do
homem e da mulher contemporâneos pode ser altamente
cambiante, favorecendo um aspecto religioso num
determinado momento, e outro logo depois [...]. A idéia
de ‘trânsito religioso’ admite o ‘passeio’ por diversas
religiões (mesmo, em alguns casos, havendo predileção
por uma ou outra) não demanda mudanças intestinais na
forma de vida dos transeuntes e dispensa ou atenua o
compromisso com uma instituição específica. Isso pode
ser mais bem verificado entre aqueles que, apesar de
admitirem uma pertença religiosa, transitam e se
apropriam dos mais variados aspectos simbólicos. Não
que isso não acontecesse anteriormente, mas estamos
falando de uma intensificação disso.968

Vencida pelo poder econômico, processo que se dá, fundamentalmente, pela


trilha midiática, muitas Igrejas ainda demonstram fôlego para continuar esse
caminho. Em Fast Food Gospel, Lourenço Stelio Rega traça um perfil bastante
elucidativo dos crentes migratórios:

967
ROMEIRO, Paulo. Decepcionados com a Graça. Esperanças e frustrações no Brasil
Neopentecostal. São Paul:. Mundo Cristão. 2005, p. 158.
968
SOUZA, Sandra Duarte. Trânsito religioso e construções simbólicas temporárias: Uma
bricolagem contínua. São Paulo. UMESP. 2001, pp. 164,165.
307

Vivemos numa sociedade do entretenimento, na


qual a diversão, o imediatismo e a superficialidade são
os fios condutores de uma espiritualidade fácil,
instantânea e medíocre. Tudo é movido por uma busca
ansiosa por qualificação imediata e sensações cada vez
mais intensas. A própria vida espiritual virou projeto de
entretenimento. No passado, buscava-se a salvação, a
vida em comunhão com os irmãos na fé; hoje, busca-se
um projeto de ‘boa vida’, em que Deus se transforma
num mero garçom e o Evangelho, em moeda de troca
para se alcançar o bem-estar [...]. O fast food gospel nos
leva a uma espiritualidade sem compromissos, a não ser,
apenas, com nossas paixões e impulsos, em que são
descartados atos significativos do Evangelho autêntico,
tais como compartilhamento e camaradagem entre os
irmãos. Somos levados por uma cultura de massa.
Estamos deixando de ser sal da terra e luz do mundo.969

Compete a Igreja atual, através de sua vivência e proclamação, expressar


uma das maiores verdades de sua própria existência, ou seja, Deus pela sua livre e
soberana vontade, resolveu entrar na história humana, sendo completamente auto-
suficiente e auto-existente e estabelecer uma relação pactual com o ser humano,
única e exclusivamente através de Jesus Cristo, o seu Filho. O texto bíblico diz:
“Havendo Deus, outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais,
pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho” (Hb 1.1,2). A partir
destas palavras, Calvino afirma o seguinte:

O que ele declarou com essas palavras foi que daí


por diante Deus não falaria mais como antes, por estes
ou por aqueles, e que não juntaria profecias a profecias,
nem revelações a revelações, mas que ele completou de
tal modo toda a perfeição dos seus ensinamentos em seu
Filho que devemos reconhecer que este é o derradeiro e
eterno testemunho que teremos dele.970

Não resta dúvida de que Jesus Cristo encerra a plenitude da revelação de


Deus, visto ser Ele a Palavra Viva que tabernaculou com o homem. Por mais
sábio que possa parecer o homem, como poderia superar a eterna sabedoria
divina? Por isso vocifera Calvino: “Digo de novo, pois, que é necessário que um
só Cristo fale e que todo o mundo se cale; que só Cristo seja obedecido e todos os
971
outros sejam abandonados. Porque ele fala como quem tem poder”.

969
REGA, Lourenço Stelio. Fast Food Gospel, Eclésia n. 45, p. 45.
970
Institutas. Edição Especial, p. 109.
971
Institutas. Edição Especial, p. 110.
308

5.2.2
Unicidade e Universalidade em Jesus Cristo

Na pós-modernidade, são muitos os desafios feitos ao cristianismo, muitos


dos quais envolvem diretamente duas questões: a cristológica e a soteriológica,
duas faces de uma mesma moeda.972 A grande pergunta de fundo é a seguinte:
podemos considerar Jesus de Nazaré o único paradigma de salvação para toda a
humanidade? É aqui que toda a questão cristológica vem à tona e,
conseqüentemente, encontra o seu maior obstáculo, como já vimos no primeiro
capítulo: fora de Jesus Cristo, não há salvação.973
Na pós-modernidade, nenhuma religião tem o direito de se achar a correta e
a verdadeira e as demais falsas, nem inferiores. Todas têm a mesma presunção de
verdade. A ação da Igreja é afetada pelo pluralismo religioso em sua abordagem e
em seu conteúdo teológico. A estrutura teológica corre o sério risco de ser
solapada; não há conceito de moralidade; não há contato com a pessoa de Jesus
Cristo. Na verdade, o que temos são experiências superficiais. Deus foi
transformado em algo absurdamente a ser consumido e portátil, de uso apenas
pessoal. Cristo não vive, sobrevive. Jesus Cristo não é mais a verdade, o caminho,
a vida, mas apenas mais um colocado ao lado de muitos outros.
No entanto, França de Miranda postula firmemente que a salvação só pode
ser encontrada em Deus através de Jesus Cristo, seu Filho, sendo ofertada aos
homens e mulheres pela poderosa e misteriosa ação do Espírito Santo.974

972
Na verdade, são dois grandes desafios teológicos diante do Diálogo Inter-Religioso.
973
No entanto, na cristologia de corte pluralista, a encarnação de Jesus deve ser interpretada não
como um fato histórico absoluto, mas como um mito da fé cristã, tendo, no teólogo John Hick, sua
maior expressão. Cf. Hick é um teólogo muito produtivo e sua obra é muito vasta. Para maior
aprofundamento do seu pensamento, citamos, aqui, apenas seus trabalhos relacionados à temática
do DIR. HICK, John. The Myth of God Incarnate, London: SCM Press, 1993; God Has Many
Names, London: Macmillian, 1980; Whatever Path Man Choose is Mine, In: J.HICK and B.
HEBBLETHWAITE. Christianity and Other Religions, Fortress. Philadelfia, 1980.
974
MIRANDA, M. F. O Cristianismo em face das religiões. São Paulo: Loyola. pp. 96-104.
309

Segundo Amaladoss é possível haver várias manifestações ou revelações


crísticas nas outras tradições religiosas. Ou seja, ele diz que Jesus é o Cristo, mas
Cristo não é só Jesus, citando Panikkar.975 “O Jesus humano limita a ação divina
do Cristo universal, que pode revelar-se, de outras formas, nas diferentes tradições
religiosas”, diz Amaladoss. Nessa linha de pensamento, ele ainda afirma que, da
mesma forma que Cristo é o caminho para os cristãos, assim também são Buda
para os budistas, e Krisna ou Rama para os hindus.
A meu ver, há um paradigma bem mais sério que Amaladoss parece
quebrar, que é o dogma de Calcedônia, de Jesus Cristo como Verdadeiro Deus e
Verdadeiro Homem. Para Ele, ser único e universal se dá exatamente no fato de
Jesus não poder conter a plenitude do Cristo. Ou seja, o Cristo está muito além do
Jesus de Nazaré.976
Já E. Schillebeeckx situa a unicidade de Jesus dentro da linha da eleição de
Israel, colocando Jesus Cristo como portador único e universal da salvação,
aceitando, portanto, o dogma de Calcedônia, de que Jesus Cristo é Vero Deus e
Vero Homem.977
No entanto, quanto à dimensão soteriológica, a teologia paulina diz: “Ele,
Jesus Cristo, é a ‘Imagem do Deus invisível’ (Col 1,15). ‘Além disso, o plano
divino de salvação é único e seu centro é Jesus Cristo’”.978 Na verdade, o
ministério do homem só se torna verdadeiramente claro no mistério do Verbo
encarnado.979 Ou seja, o primeiro Adão era figura daquele que haveria de vir,
Jesus Cristo. Ele “é o homem perfeito, que restituiu, aos filhos de Adão, a
semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado”.980 Já não temos
problemas com o fato de que o Espírito Santo opera e salva fora da Igreja, mas
sempre em Jesus Cristo.

975
Ibidem. op cit. p. 411.
976
GUTHRIE, Shirley C. Sempre se Reformando. A Fé Reformada em um Mundo Pluralista.
São Paulo : Pendão Real. 2000, pp. 34-41.
977
SCHILLEBEECKX, E. Universalité unique d’une figure religieuse historique nommée Jésus
de Nazareth. (universidade única de uma figura religiosa histórica chamado Jesus de Nazaré).
Artigo selecionado pelo professor da matéria para intercambiar com outros autores na elaboração
do trabalho. Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo, Sacramento do Encontro com Deus. Petrópolis.
Vozes. p. 10.
978
DA 28.
979
GS 22.
980
GS 22.
310

O senso religioso do homem é reorientado em Jesus, tendo agora seu foco


central e único no próprio Deus. Cristo, como representante de toda humanidade,
promoveu sua libertação e abriu caminho para a plena e verdadeira realização
religiosa do homem. A cruz, a ressurreição e a glorificação do Cristo são ápice de
toda obra redentora do Filho, mas seu início fora na Encarnação. Sem a
Encarnação não haveria salvação.981 Na verdade, a Encarnação encontra sua
culminância nos eventos finais da vida de Jesus, que o fizeram Senhor sobre todas
as coisas. Ele fez-se sinal do Pai e ao mesmo tempo oferta cúltica a Deus. Eis o
grande mistério da salvação: Jesus, o Servo de Deus, que viveu plena e
obedientemente Sua vocação, garantindo-nos a redenção, é glorificado junto ao
Pai, vive como Cristo e Senhor.
Dentro dessa dimensão, não podemos perder de vista que todo valor
soteriológico, em Jesus Cristo, reside na teologia da aliança ou teologia do pacto
que Deus estabeleceu com seu povo. A teologia do pacto concentra-se em um
grande pacto geral conhecido como pacto da graça. Alguns o tem denominado
pacto da redenção.982 Ele é definido por muitos como um pacto eterno entre os
membros da Trindade, incluindo os seguintes elementos: (1) o Pai escolheu um
povo para ser Seu; (2) o Filho foi designado, com seu consentimento, para pagar o
preço desse povo; e (3) o Espírito Santo foi designado, com seu consentimento,
para aplicar a obra do Filho ao seu povo escolhido. Ou seja, a Trindade
completamente envolvida em toda a extensão da obra redentora, não apenas do
homem, mas também de toda a criação.983
Creio que o grande desafio é integrar sem perder a identidade cristã.
Concordo, ainda que, em parte, com o teólogo acima quando este declara que o
cristianismo deve ter duas posturas adequadas diante da cultura religiosa pós-
moderna: em primeiro lugar, a mantença de que o cristianismo tem a revelação
definitiva de Deus em Jesus Cristo, mas que precisa aprender com as demais
tradições religiosas; em segundo lugar, a verificação em que as demais tradições
religiosas têm a oferecer ao cristianismo em termos de verdade salvífica.984

981
Institutas, Edição Especial, Vol. II, pp. 209-211.
982
Institutas, Edição Especial, Vol. II, pp. 172,173.
983
Institutas, Edição Especial, Vol. II, p. 170.
311

Caminho também na direção do postulado da Igreja Romana que diz que o


diálogo em nada substitui o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo. O documento
Diálogo e Anúncio afirma que a missão evangelizadora da Igreja se expressa
através da presença e testemunho, empenho pela promoção social e pela libertação
do ser humano, por uma vida litúrgica, incluindo oração e contemplação, diálogo
inter-religioso, anúncio e catequese.985

5.3
O Querigma Libertário: Libertação do Ser Humano diante dos
Desafios da Pós-Modernidade

A teologia como um todo e, especialmente, a reformada tem profundo


interesse com a questão antropológica, visto que fazer e refletir teologia significa
exatamente tratar sobre a revelação de Deus e suas relações com o universo e,
especificamente, com o homem. Deus deu ao Seu povo a Sua Palavra, a revelação
escriturada e enviou-nos a Palavra Encarnada, Jesus Cristo, que se tornou o centro
da vida e da mensagem cristãs. Portanto, o querigma libertário, vivido e anunciado
pela Igreja, carrega em si o poder de libertar o ser humano de todas as estruturas
que o oprimem, em todos os tempos, inclusive nesse tempo epocal chamado pós-
moderno.
Assim, nas próximas páginas, veremos o homem como ser alienado de
Deus, no contexto da pós-modernidade e, ato contínuo, alvo do Evangelho
libertador que é Jesus Cristo, este mesmo homem como nova criação de Deus,
agora tirado do mundo e devolvido ao mundo para viver a nova realidade do
Reino.

984
Ibidem. p. 123.
985
DA, pp. 5,6.
312

5.3.1
O Homem como Ser Alienado de Deus

Primeiramente queremos afirmar que, da condição de criatura íntima de


Deus, criado à sua imagem e semelhança, após a queda, o homem rompeu sua
relação com Deus, tornando-se um errante. Saiu da condição de aliado de Deus
para viver alienado de Deus e em constante rebeldia. No homem, residia o
resplendor da glória do Criador, bem como de toda a criação. Muitas qualidades
de Deus eram perfeitamente refletidas no homem.
Ao homem foi dada a função de administrador, de guardião da terra. Sujeito
a Deus e administrador da terra. Sua liberdade estava nessa tensão dialética, ou
seja, na dinâmica da absoluta sujeição a Deus pela via da graça e mordomo das
coisas criadas por Ele. “O homem foi investido mestre e senhor na terra com a
condição de que estivesse sempre sujeito a Deus”.986
Sabemos, pelas Escrituras, que o homem procedeu das mãos de Deus sem
mácula, marcado tão somente pela imagem e semelhança do Criador. No entanto,
sua natureza sofreu terrivelmente pela queda, que afetou todas as suas faculdades,
rompendo-lhe, sobretudo, sua capacidade de reconhecer o Criador e estabelecendo
uma ruptura abissal com Deus. Ao pecar, o primeiro homem destruiu os dons
sobrenaturais, como por exemplo “a fé, o amor de Deus, a caridade, o zelo pela
santidade e a retidão”.987 Não apenas sua saúde espiritual foi afetada, mas também
sua saúde física. A imagem de Deus, no homem, foi destruída, não aniquilada,
mas encontra-se num estado de fragmentação, estando ela enfraquecida, na
linguagem de Calvino.988
Calvino é bastante contundente em suas assertivas quanto ao estado do
homem, afirmando que “todas as partes da alma foram possuídas pelo pecado
depois que Adão desertou da fonte de justiça”.989 Ainda mais, “o homem todo está
inundado – como por um dilúvio – da cabeça aos pés, de modo que nenhuma de
suas partes está imune ao pecado e tudo o que dele procede deve ser atribuído ao
pecado”.990

986
BIÉLER, André. O Pensamento Social e Econômico de Calvino, op. cit., p. 264.
987
FERREIRA, Edijéce Martins. A Ética de Calvino. op. cit., p. 25.
988
Institutas, livro II, ii, 12.
989
Institutas, livro II, i, 9.
313

Assim, mesmo possuído de valor diante de Deus, salvificamente esta é a sua


triste situação. Ora, não podemos afirmar que Calvino tenha negado qualquer bem
no homem, apenas que a imagem de Deus, em sua existência, tornou-se
estilhaçada.991
Ao mesmo tempo em que Calvino traz severas afirmações sobre a realidade
do homem, ele afirma que o pecado não pertence à natureza original do ser
humano, não sendo um elemento intrínseco à constituição humana. Ele afirma que
o homem é pecador e está “sujeito à necessidade de pecar”,992 o que “não significa
que a substância do seu corpo e da sua alma é má, pois somos criaturas de
Deus”.993 Temos aqui, paradoxalmente, uma beleza teológica. Ou seja, o mal
precisa ser visto como algo ex depravatione, e não ex creatione; ex natura
corruptione, e não ex natura.994 As precisas palavras de Niebuhr são elucidativas,
pois afirma que a queda não tornou a natureza boa do homem em “má, como algo
que não devia existir, mas pervertida, torta e sem direção”.995 O pecado diz
respeito a uma esfera estritamente religiosa, ou seja, trata da relação do homem
com Deus, sendo uma terrível ofensa contra o Criador. Daí sua preferência pela
palavra desobediência, aproveitando-se, também, de Agostinho, quando trata do
pecado como orgulho, mas não abre mão de que “a desobediência foi o começo da
queda”.996
Entretanto, Calvino jamais classificou o pecado humano como apenas uma
deformação moral ou fruto de sua ignorância. Impõe-se, portanto, em nossos dias,
uma antropologia restaurativa, que não apenas denuncie o estado em que se
encontra o homem, revelando que o pecado diz respeito à vontade humana, mas
que aponte o caminho da redenção, da remissão, na pessoa de Jesus Cristo.997

990
Institutas, livro II, i, 9.
991
Institutas, livro II, i, 9.
992
Institutas, livro II, ii, 11.
993
Institutas, livro II, iii, 5.
994
WARFIELD, Benjamim Breckinridge. Calvin and Calvinism, p. 292.
995
NIEBUHR, H. Richard. Christ and Culture, p. 194.
996
Institutas, livro II, i, 4.
314

A alienação do homem de Deus se dá pela sua condição de pecador, não


sendo um pecado meramente moral, mas essencialmente espiritual, que é a
deliberada vontade de viver independente de Deus, desprezando-O. Após o
rompimento da aliança com Deus, o homem lançou sobre toda a sua descendência
a condição de pecadora, por natureza. Logo, todo ser humano está alienado de
Deus. No entanto, a condição atual do homem trata-se não de sua natureza
original. Por mais que esta tenha sido afetada pelo pecado, Calvino não o nega, ao
contrário, o reafirma, pois evidencia o acidente cometido, mas, ao mesmo tempo,
a graça restauradora. O próprio Calvino diz:

Esta perversão não é de sua natureza. Negamos


que seja ela de natureza, a fim de mostrar que é antes
uma qualidade sobrevinda ao homem e não uma
propriedade de substância, que nele haja sido arraigada
desde o princípio.998

Importante ressaltar que o pecado humano não suprime o homem de sua


responsabilidade, visto que é um ser moral. Antes da Queda, “o entendimento era
são e integral, a vontade livre para escolher o bem”.999 Sendo assim, o pecado
afeta todo o homem: inteligência, vontade, corpo e espírito, sem qualquer
dualismo.
Por outro lado, mesmo alvejado pelo pecado, o homem ainda reúne
condições de organizar-se socialmente pela via dos dons naturais. Nessa
dimensão, temos “a doutrina política, a maneira de bem governar a casa, as artes
mecânicas, a filosofia e todas as disciplinas que se chamam liberais”.1000 Nasce
daí a noção de Estado. Com os dons naturais, mesmo sendo dados por Deus,
continua o homem necessitado de uma ação especial de Deus. Do contrário,
caminha ele na direção da morte, alienação definitiva de Deus. “Agora, temos
horror à morte, primeiramente, porque é um aniquilamento no que concerne ao
corpo e, depois, porque a alma sente a maldição de Deus”.1001 O reformador faz o
seguinte comentário:

997
Institutas, livro II, ii, 27.
998
Institutas, livro II, cap. 1 § 11.
999
Institutas, livro II, cap. XV § 8.
1000
Institutas, livro II, cap. II § 13.
1001
Pentateuco, (Gn. 2.17).
315

Ainda que o homem esteja corrompido, contudo o


Criador celeste retém sempre diante de Si o fim de Sua
criação. Verdade é que, se apenas para os homens se
atenta, não são eles dignos de que Deus deles faça caso.
Mas, em razão do fato de que neles está gravada a
imagem de Deus, Deus considera o mal e a violência
feitos à pessoa deles como feitos a Si Próprio. Assim,
embora os homens nada tenham próprio para granjear a
graça de Deus, atenta Ele para Seus dons e benesses
neles subsistentes, para ser incitado a amá-los e ter-lhes
solicitude.1002

Embora condenado à morte, resultado de seu pecado, Deus manifesta a sua


graça salvadora, sendo, portanto, a antropologia bíblica e calvinista extremamente
realista, mas essencialmente esperançosa.
Na esteira no niilismo pós-moderno, em que a sociedade vive o ideal
consumista absoluto, encontramos, para tristeza do bom testemunho do
cristianismo, muitas vertentes evangélicas que sacrificam o conteúdo do
Evangelho em busca de poder. As forças do mercado afetam diretamente a ação
proclamadora do Evangelho. É exatamente nesse momento de perda de sentido
existencial que os cristãos são chamados, antes de tudo, a centralizar Cristo em
suas vidas, a fim de que sejam, de fato, vistos como discípulos do Cristo
ressurreto, único capaz de revelar o amor e a verdade de Deus, que salva e liberta
integralmente o ser humano. Somos desafiados a confrontar esse tipo de mercado
religioso que temos hoje. Constatando tal realidade, Comblin afirma que,

[...] atualmente, há um mercado religioso. Há


muita demanda religiosa e muitas religiões oferecem
métodos de terapias religiosas ou caminhos para a
felicidade. Daí a tentação de entrar nessa competição.
Quem quer fazer sucesso procura temas cristãos que
possam triunfar no mercado, satisfazendo a uma
demanda. Há uma tendência muito forte nesse sentido
por parte dos movimentos carismáticos e mesmo dos
movimentos nascidos na geração passada. Oferecem um
evangelho ‘ao gosto do consumidor’ – como dizia um
sacerdote missionário ancião que viveu muitos anos no
Brasil.1003

1002
Gênesis, (Gn 9.3).
1003
COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus. 1998, p. 10.
316

O Evangelho anunciado não pode ter a pretensão de suprir apenas as


carências e desejos superficiais do homem atual. É imperioso alcançar o ethos
1004
mais profundo do ser humano, que clama por uma verdadeira libertação.
Necessitamos urgentemente de cristãos alcançados por esse Evangelho, com uma
profunda vivência de libertação e transformação, a fim de que sejam eles
instrumentos de Deus na história, agindo como fermento “de uma nova sociedade
no mundo”.1005
Calvino possuía um grande conceito acerca do homem, como criatura de
Deus, a despeito de seu distanciamento do Criador, por conta do pecado. Embora
possa parecer aqui e acolá, Calvino nunca foi um nacionalista ou sectário. Para
ele, todos os homens traziam, em si, a imagem do Pai. Pensando assim, ele enviou
missionários protestantes em 1556 ao Brasil, ainda que com um grupo de
colonizadores.

5.3.2
O Homem como Nova Criação de Deus na Sociedade

A liberdade do homem consiste no cumprimento da vontade de Deus. A


liberdade por meio da dependência a Ele, entretanto, não lhe foi suficiente, posto
que deseje a autonomia sem submissão. No entanto, “ser homem é primária e
essencialmente viver para Deus, viver por Deus, viver com Deus, ser e
permanecer unido com seu Criador”.1006
Uma das grandes belezas do pensamento do reformador genebrino é o fato
de que, ao contrário do que dizem, sua teologia enaltece o valor do homem diante
de Deus, pela obra da redenção. Ele afirma: “A grandeza da graça adquirida por
Jesus Cristo é bem mais vasta que a magnitude da condenação em que o gênero
humano foi envolvido pelo primeiro homem”.1007

1004
SOLONCA, Paulo. Inovando uma Igreja Tradicional. In.: J. Scott Horrell (Editor).
Ultrapassando Barreiras. São Paulo: Vida Nova, p. 121.
1005
COMBLIN, José, op. cit., p. 11.
1006
BIÉLER, André. O Pensamento Social e Econômico de Calvino, op. cit., p. 263. Cf.
Institutas, livro II, cap. I § 5.
1007
Romanos, (Rm 5.15).
317

O homem por sua livre vontade fracassou, mas Deus jamais fracassou e, por
Sua misericórdia, buscou restabelecer a primeira condição humana. Lemos então
que era

[...] necessário que uma nova aliança fosse feita,


certa, segura e inviolável. E para estabelecê-la e
confirmá-la, necessidade havia de um mediador que
intercedesse e se interpusesse entre as duas partes para
fazê-las entrar em acordo, sem o que permaneceria
sempre o homem sob a ira e indignação de Deus e
nenhum meio havia de livrar-se de Sua maldição, miséria
e confusão em que se havia chafurdado. Era Nosso
Senhor e Salvador Jesus Cristo, verdadeiro e único
eterno filho de Deus, que devia ser enviado e dado aos
homens pelo Pai, para ser restaurador do mundo, de
outra sorte derruído, destruído e desolado, em quem
desde o principio do mundo tem sempre residido a
esperança de recobrar-se a perda sofrida em Adão.1008

Por isso, desde a Queda do primeiro Adão até a chegada do segundo Adão,
Deus revelou-se ao homem, dando-lhe condições de conhecê-lO, até que chegasse
a plenitude dos tempos. Mostrou-Se à humanidade através de homens escolhidos,
estabelecendo com estes um pacto, uma aliança, até que, com o povo de Israel,
pactuou-Se de modo particular.
Vejamos tal fato:

Fez Deus ouvir Sua voz de maneira especial a


determinado povo, ao qual, de Seu próprio bem querer e
de Sua graça liberal, elegeu dentre todos os povos da
terra. São os filhos de Israel, aos quais, por Sua Palavra,
mostrou claramente quem Ele era e, por Suas obras
maravilhosas, declarou que haveria de fazer, pois que os
retirou da sujeição [...]. Sustentou-os no deserto. Fê-los
possuidores da terra prometida; deu-lhes vitórias e
triunfos. E como se nada tivesse sido às demais nações,
quis ser expressamente chamado o Deus de Israel e ser
este constituído Seu povo [...]. E essa aliança foi
confirmada e passada sob instrumentos autênticos do
testamento e testemunho que lhes conferiu.1009

1008
OC, tomo IX, p. 797.
318

Numa sociedade cada vez mais antropologizada, onde a mediação salvífica


começa e termina no homem, faz-se necessário e urgente anunciar a salvação
como essencialmente ação de Deus. Sob o domínio do pecado, somente através do
dinamismo de Deus é que o homem encontra genuína salvação e,
conseqüentemente, libertação. Portanto, há uma imprescindível e absoluta ação de
Deus. A salvação do homem se dá pela ação Divina, pela sua graça. A ela o
homem responde numa relação de amor e compromisso, tornando-se verdadeiro
discípulo de Jesus Cristo. O pecado traz a conseqüência da escravidão (Rm 6, 15-
23; 7, 14-25), pois potencializa a prática do egoísmo, que aprisiona a liberdade “e
1010
a faz impotente para o amor”. Por isso o homem pecador torna-se servo do
pecado, pois nele perdeu a sua liberdade.
Uma das grandes conseqüências da salvação, realizada por Deus e
mediatizada por Jesus Cristo e atomizada pelo Espírito Santo, é a libertação da
liberdade humana, a sua salvação, sendo o primado da salvação de Deus, que o
tira de toda sorte de egoísmo e o remete à consciência de que a sua volta há um
mundo acontecendo e de que o exercício de olhar para o próximo torna-se uma
chave exegética de liberdade, na medida em que sua vida é canalizada para a
prática da justiça e da solidariedade. O homem não é livre para se achegar à
salvação, mas, justificado por Deus, encontra o caminho da liberdade
soteriológica e, assim, torna-se um colaborador de Deus na expansão do Reino,
que envolve o desmantelar das sutilezas do pecado, a prática da justiça, a vivência
do amor-solidariedade, resultado direto da mudança do seu ethos humano pelo
doce poder do Evangelho.
Uma das grandes belezas de Calvino que precisamos resgatar e atualizar é o
fato de que ele não vê o homem como sendo o fim da história, ao contrário,
embora tenha convicção, como já afirmamos, da pecaminosidade humana e que
nele ainda há a imagem de Deus, o homem pode ser restaurado em seu ethos
original, voltar à bem-aventurança. Há diversas menções sobre a bondade do
homem, fruto dos dons concedidos por Deus.

1009
OC, tomo IX, p. 795. Cf. Oeuvres Choises, op. cit., p. 186.
1010
MIRANDA, Mário de França. Libertados para a Práxis da Justiça. A Teologia da Graça no
Atual Contexto Latino-Americano. São Paulo: Loyola, 2002, p. 76.
319

Entretanto, somente através da redenção, realizada por Cristo Jesus, é que o


homem emerge das cinzas da desumanização, tendo uma nova atitude para com a
vida. Na verdade, através de Cristo, pela operação do Espírito Santo, Deus
restaura a vontade inclinada ao mal, a redireciona e realiza, em nós, o seu querer.
Ou seja, a imagem de Deus no homem é completamente restaurada em e através
de Cristo.1011
A visão antropológica de Calvino é tremendamente influenciada pelos ideais
do NT. No que diz respeito ao amor, ele afirma que o discípulo de Jesus Cristo
não deve praticar o amor próprio, que seria o amor egoísta, egocentralizado.
Chega a dizer que tal amor é uma “peste terrivelmente moral”.1012 Por isso que “é
muito claro que nós guardamos os mandamentos, não amando-nos a nós mesmos,
mas amando a Deus e ao próximo”.1013
Para o reformador genebrino, o amor dos discípulos deve ser primeiro a
Deus, ao próximo e, só depois, amor pessoal. E mais, nosso amor a Deus é
demonstrado no serviço ao próximo. Calvino ainda afirma que “vive a vida
melhor e mais santa quem vive e luta por si mesmo o menos que pode; e ninguém
vive pior e de modo mais pecaminoso do que quem vive e luta só por si, ou pensa
e busca apenas seus interesses”.1014 O reformador francês ainda declara o
seguinte:

Devem colocar-se no lugar daqueles que vêem


necessitar de sua assistência, e terem misericórdia do seu
infortúnio, como se eles mesmos o experimentassem, de
modo a se sentirem compelidos pelo sentimento de amor
e humanidade e ajudá-los, como se o fizessem a si
mesmos.1015

1011
FORTE, Bruno. A Essência do Cristianismo. Petrópolis: Vozes. 2003, p. 71.
1012
Institutas, livro II, vii, 4.
1013
Institutas, livro II, vii, 54.
1014
Institutas, livro II, vii, 54.
320

A vocação da Igreja é para sair de si mesma e caminhar na direção dos


homens e mulheres, carecentes da graça maravilhosa de Jesus Cristo, anunciando
a verdadeira mensagem do Evangelho, única capaz de ofertar sentido de vida,
num mundo sem sentido, vivendo o seu niilismo pós-moderno. Portanto, “a Igreja
não pode esquivar-se de apresentar todo o evangelho ao homem todo e a todo
homem”.1016 A Igreja é um resultado e ao mesmo tempo uma participante do
projeto de salvação de Deus. Assim, a missão da Igreja é, essencialmente, a sua
participação no processo redentivo que Deus está executando na História.1017
Segundo a Palavra de Deus, o homem precisa ser visto pela Igreja numa
perspectiva integral. O Evangelho, pregado pela Igreja Primitiva, era holístico, ou
seja, integral, cujo objetivo era alcançar o homem em todas as suas dimensões.1018
Esta é a razão pela qual precisamos entender que a ação querigmática da
Igreja implica falar do Libertador que liberta os cativos; implica falar de paz, mas
apontando sempre para o Príncipe da Paz.1019 Se não for assim, a Igreja estará
oferecendo algo sub-cristão. De igual forma, uma evangelização que não
considera o homem como ser responsável pelas suas ações, proclama um
Evangelho mutilado.1020 O Evangelho que Jesus pregou conclama as pessoas a
serem mais humanas, a se tornarem mais o que Deus deseja que elas sejam, não
somente na vida futura, mas aqui e agora. A tarefa precípua da Igreja, a
proclamação das Boas Novas só terá verdadeiro significado e resultado quando
realizado por cristãos que tiveram verdadeiramente um encontro pessoal com a
pessoa de Jesus Cristo. Portanto, se o alvo da Igreja é fazer novos discípulos,
somos desafiados a viver, em primeiro lugar, como verdadeiros discípulos.

1015
Institutas, livro II, iii, 7.
1016
Tal expressão é fruto do Congresso Internacional de Evangelização Mundial realizado em
Lausane, Suíça, em 1974. Posteriormente foi reafirmada em novo Congresso realizado em Manila,
nas Filipinas, em 1991. Cf. A Missão da Igreja no Mundo de Hoje. São Paulo: ABU / Visão
Mundial.
1017
NASSER, Antonio C. A Igreja Apaixonada por Missões. Uma Aplicação da Teoria do
Óbvio ao Relacionamento das Igrejas e Agências Missionárias. São Paulo: Abba. 1995, pp. 11-25.
1018
CAVALCANTI, Robinson, op. cit., pp. 42-45.
1019
CAVALCANTI, Robinson, op. cit., p. 44.
1020
Ibidem, pp. 87 passim.
321

Pelo Evangelho de Jesus Cristo, o homem encontra o dom de Deus, ofertado


em Cristo, que, recebido pela fé, o conduz à liberdade cristã – liberdade que é o
caminho que conduz à vida cristã. Por sua vez, o novo homem redimido assume
compromisso com a Palavra de Deus, que não o condiciona à reclusão espiritual,
ao contrário, numa ação de fluxo e refluxo, a Palavra que o liberta, o liberta para a
prática da Palavra, testemunhando o Cristo ressurreto, fundamentalmente na
demonstração de amor ao próximo.1021
Portanto, segundo Calvino, este novo homem, livre pela libertação alcançada
em Cristo, já não é mais prisioneiro de qualquer instituição ou sistema religioso,
que venha, porventura, descaracterizar o Evangelho a ponto de transformá-lo em
uma lei camuflada. Apreender e experimentar tal liberdade torna-se vital para o
homem, visto que sem este conhecimento, as superstições não terão fim.1022
Assim, na linguagem de Calvino, o mais importante é “que de nossa
liberdade se impõe usar, se à edificação do nosso próximo [isso] conduz; se, no
entanto, assim ao próximo não convenha, então, dela há de abster-se”.1023
Portanto, a liberdade outorgada àquele que nasceu de novo é “para que mais
pronto esteja para todos os deveres da caridade”.1024 A nova criação de Deus, em
Cristo Jesus, vive a liberdade na medida do seu comprometimento com o
próximo, na dinâmica do amor.
Na verdade, o Evangelho libertador promove o ser humano, restaurando o
seu ethos antropológico, alcançando todas as áreas de sua vida, fazendo-o
experimentar o verdadeiro amor, resultado de sua transformação interior e
exterior, dando-lhe, assim, condições de exercitar a liberdade sempre na direção
do amor e da responsabilidade. Nessa linha de pensamento, Croato afirma que:

Quando nos libertamos da lei, crescemos no amor.


O Homem Novo é livre de dentro (pelo amor que
desaloja o egoísmo), de fora (da lei-limitação e não
criativa) e para diante (da morte como limite
ontológico).1025

1021
LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Vol 2. op.cit. p. 435.
1022
Institutas, livro III, cap. 19, seção 7.
1023
Institutas, livro III, cap. 19, seção 12.
1024
Institutas, livro III, cap. 19, seção 12.
1025
CROATO, Severino. Êxodo: uma hermenêutica da liberdade. São Paulo: Paulinas, 1981, p.
169. Cf. FORTE, Bruno. A Essência do Cristianismo. Petrópolis: Vozes. 2003, p. 56.
322

Dessa forma, alcançado pela graça salvadora de Jesus Cristo, o homem,


livre do pecado e de suas amarras, vive, agora, na liberdade do amor e da justiça.
Na verdade, a salvação operada por Deus, em Cristo Jesus, desemboca numa
práxis comprometida com o Reino de Deus. O cenário onde a salvação se
desenvolve é o palco da existência humana. O Reino emerge em meio as
contradições da história humana, com suas marcas de amor e justiça. Sendo a
salvação do homem puro dom de Deus, tendo a mais clara iniciativa de Deus, por
meio de Jesus Cristo. Há, no homem, toda sorte de capacitação, operada pelo
Espírito Santo, a fim de que ele viva na perspectiva de Cristo, evidenciando o
Reino acontecido e acontecendo em sua vida e na história humana.1026
Toda ação do ser humano regenerado na direção do próximo torna-se
expressão concreta da ação salvífica de Deus em Cristo Jesus. Nesse sentido
podemos afirmar, mais uma vez, que a Igreja, na visão reformada, possui uma
dimensão sacramental, como sinal do Reino e de todo ministério de Jesus Cristo e
na medida em que mediatiza a graça de Deus no amor ao próximo. Visto que
Jesus Cristo foi mediação humana da salvação ofertada pelo Pai ao homem, somos
também a continuação do ministério de Cristo, como seu Corpo, entre os homens
e as mulheres que, desprovidos da graça de Deus, são apresentados ao dom
inefável, possibilitados, igualmente, a libertação da liberdade a fim de que vivam
a liberdade do Evangelho.

1026
MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 86.
323

5.4
A Soteriologia Calvinista sob o Paradigma do Querigma Libertário
diante dos Desafios da Pós-Modernidade

A soteriologia enfrenta sérios desafios no mundo pós-moderno, visto que


hoje a salvação não depende exclusivamente de Jesus Cristo, pois Deus, segundo
a atual concepção, há de salvar os homens independentemente de Jesus Cristo. A
ação salvífica de Deus acontece em todos os credos religiosos, mesmo que seja
fora do paradigma cristológico.1027 Portanto, a fé salvadora em Jesus Cristo já não
é mais o único caminho de salvação. Portanto, na perspectiva soteriológica,
veremos alguns desafios pós-modernos que precisam ser superados.

5.4.1
A Soteriologia e os Desafios da Pós-modernidade

Contra todo possível fracasso da modernidade e da pós-modernidade, não


podemos abrir mão de nossa maior utopia, ou seja, anunciar as Boas Novas
capazes de libertar total e integralmente o homem. Na falência das ideologias
modernas e pós-modernas, eis a grande oportunidade da Comunidade da Fé: viver
e proclamar a mensagem do Reino de Deus. Do contrário, praticaremos uma fé
imobilizadora e imobilizante.1028 Diante dos desafios da pós-modernidade, o
anúncio da mensagem tem sofrido muitos ataques em seu conteúdo, em que o
Evangelho acaba sendo relativizado, diluído demasiadamente.
O querigma anunciado pela força do Espírito Santo tem o poder de quebrar
todo tipo de pessimismo da cultura pós-moderna, sobretudo a frustração das
emoções, em que essas vias se tornaram novos caminhos até Cristo. Nessa
trajetória pós-moderna de profundas mudanças culturais, encontramos, com muita
freqüência, cristãos em busca de um Jesus alienado de nossa realidade histórica,
ou seja, um Jesus que satisfaça os desejos imediatos e superficiais do homem.
Busca-se um Jesus cada vez mais afetivo, uma espécie de objeto do desejo
religioso, capaz de exercer a dinâmica da retribuição, compensando todas as
necessidades e frustrações humanas.1029

1027
OKHOLM, Dennis. Four Views on Salvation in a Pluralistic World. Inter-varsity Press, 1997,
p. 12.
1028
SUNG, Jung Mo. Deus numa economia sem coração. São Paulo: Paulus. 1992, p. 122.
1029
COMBLIN, José, op. cit., p. 37.
324

A religião pós-moderna é tipo produto de consumo. Vive-se uma


religiosidade que descarta o transcendente, inclusive Deus.1030 Trata-se, na
verdade, de uma religião da emoção, que a tudo descarta, sempre em busca de
uma nova sensação, norteada, é claro, pela força do econômico.
Temos o desafio de assumir uma das maiores – senão a maior – verdade do
cristianismo, ou seja, Jesus Cristo como o Messias, que irrompeu a história e não
só revelou, mas demonstrou, em atos e palavras, os sinais concretos da presença
do Reino de Deus no palco da Humanidade. A experiência da ressurreição de
Jesus é o fundamento de toda esperança cristã. É uma esperança que se concretiza
na história, mas que só alcançará sua plenitude na parusia.1031
Diante desse tempo epocal, o cristianismo tem a tarefa de, mais do que
nunca, reafirmar o eixo central de sua história da salvação. Mas não só reafirmar.
É preciso encontrar os caminhos mais viáveis para anunciar tal declaração de fé.
Ou seja, o cristianismo como religião da cruz e da ressurreição através de Jesus
Cristo encerra definitivamente dois grandes mistérios de Deus na história: sua luta
e vitória contra o mal na realidade humana e, oferecido ao homem, que deve ser
acolhido pela fé no Cristo ressuscitado. Eis a tarefa principal de tornar o
cristianismo uma religião singular entre todas as outras.1032
Por sua vez, Gaudium et Spes afirma que “os homens nunca tiveram um
sentido de liberdade tão agudo como hoje.”1033 Há uma declaração tremenda de
um teólogo e filósofo russo, Nicolas Berdiaeff que diz:

A liberdade levou-me a Cristo e não conheço outro


caminho que possa levar a ele. Não sou o único que tenha
passado por essa experiência. Todos os que deixaram o
cristianismo-autoridade somente poderão voltar a um
cristianismo-liberdade.1034

1030
Cf. Revista Esprit (Paris), junho de 1997: Le temps des religions sans Dieu. Ver também
Gianni Vattimo, em Credere di credere, Garzanti, 1996.
1031
SUNG, Jung Mo. Deus numa economia sem coração. São Paulo: Paulus. 1992, pp. 123,124.
1032
QUEIRUGA, Andrés Torres. Fim do Cristianismo Pré-Moderno. São Paulo: Paulus. 2003,
pp. 125-127.
1033
GS 4d.
1034
BERDIAEFF, Nicolas. Esprit et Liberté. Paris: Desclée. 1984, p. 27.
325

Sabemos que o pluralismo pós-moderno é caracterizado pelo


desmantelamento das estruturas tradicionais, numa quebra de praticamente todos
os paradigmas do passado, numa total inversão de valores. Há muito que
comemorar na sociedade pós-moderna, com muitos aspectos libertadores, como
por exemplo, a questão do Diálogo Inter-Religioso. Entretanto, é preciso um olhar
crítico sobre tal fenômeno, como qualquer outro, a fim de que percebamos suas
luzes e suas sombras.
No entanto, há muitos perigos gerados pela civilização pós-moderna. Como
já afirmamos, um deles é que não há mais verdade, mas verdades, nas quais cada
pessoa busca adequar-se à verdade que lhe convém. Constatamos, com isso, uma
inconsistência constante por parte do ser humano e, no campo teológico, acontece
exatamente a mesma coisa.
Outra questão séria também comentada no primeiro capítulo, é a questão do
pragmatismo. Busca-se, em nossa sociedade, o que funciona e não
necessariamente o que funciona como fruto da pesquisa, mas apenas com aquilo
que é politicamente correto. Setores da religiosidade atual aderiram a esse tipo de
pragmatismo, pois o que se percebe não é a busca pela verdade do Evangelho,
mas simplesmente os resultados que as pessoas podem alcançar com tal prática
religiosa. O importante e válido é a performance em função dos métodos
aplicados. Veja um importante depoimento sobre a proposta pós-modernista:

Não mais verdade, mas realização — não mais


aquela pesquisa que conduz à descoberta de fatos
verificáveis, mas aquela espécie de pesquisa que
funciona melhor, onde o funcionamento melhor significa
produzir mais [...]. A universidade ou a instituição de
ensino não pode, nestas circunstâncias, estar preocupada
em transmitir conhecimento em si mesmo, mas ela deve
estar presa, sempre mais estreitamente ao princípio da
realização — de forma que a questão levantada pelo
professor, pelo estudante ou pelo governo, não deva ser
mais esta: Isto é verdadeiro? Mas funciona? Ou qual é o
proveito disso?1035

1035
CONNOR, Steven. Postmodernist Culture. Blackwell, 1989, pp. 32-33.
326

O problema do pragmatismo é a dogmatização da experiência, sobretudo


aquela que funciona. Com isso, as verdadeiras doutrinas da fé cristã vão perdendo
seu valor, pois o importante nesse cenário religioso, genuinamente utilitarista, são
as experiências, ainda que em detrimento da tradição cristã. Há uma relativização
de tais verdades em função do derretimento da fé. Sabemos de sua importância,
mas quando ela se torna paradigmática, eis o grande perigo, principalmente pelo
fato de que o ser humano, vivendo sob essa nova cultura, só consegue enxergar os
resultados finais ou os supostos benefícios.
Outro grande desafio a ser enfrentado pelo querigma libertador do
Evangelho é a prática de um sentimentalismo em detrimento de qualquer tipo de
racionalidade. A sociedade pós-moderna quis romper radicalmente com o
racionalismo do Iluminismo e caiu no extremo oposto, o sentimentalismo. A razão
já não é mais a medida de todas as coisas. O axioma agora é: se eu sinto, logo
existo. Decorre daí uma prática muito comum, ou seja, o que importa é que o
indivíduo sinta-se bem em tudo que realiza. Então, a oferta religiosa parte desse
pressuposto, ancorado na cultura consumista, que afirma que adquirimos para o
nosso bem estar.
Como conseqüência direta do sentimentalismo, num mundo marcado pelo
pluralismo, onde vivemos o reino das opções, com ofertas para todos os paladares,
encontramos o consumismo, tendo como uma de suas causas e conseqüências, ao
mesmo tempo, o superficialismo em que vive o homem. A sociedade é movida
também pelo poder do econômico que gera uma cultura altamente utilitarista.
Podemos atribuir essa dimensão da sociedade pós-moderna a ausência de verdade
objetiva. "O pós-modernismo encoraja uma mentalidade de consumismo,
fornecendo às pessoas o que elas gostam e querem."1036
Como não poderia deixar de ser, tal verdade tem afetado diretamente a
dimensão teológica e, por que não dizer, os estilos litúrgicos. A subjetividade
alcançou também a dimensão da fé cristã. Os estilos litúrgicos e os aspectos
teológicos tornaram-se produtos do grande supermercado religioso. Como não há
uma aderência verdadeira à fé cristã, os produtos religiosos precisam mudar
constantemente para atender as exigências dos novos consumidores, que cativos à
nova cultura, vivem numa busca constante de novas experiências.

1036
VEITH, Gene Edward. Postmodern Times. Crossway Books. 1994, p. 212.
327

Na verdade, muitos segmentos evangélicos têm relativizado o conteúdo do


Evangelho, prostituindo-se, criando com isso, uma eclesiologia deformada e um
Evangelho sem seu verdadeiro conteúdo bíblico.1037
Portanto, a doutrina da salvação é elemento intrínseco ao ser humano, desde
a sua queda. O termo grego soter significa salvação. Tal palavra vem de sotería,
cujo significado é salvação, livramento. Trata-se, portanto, da teologia da
salvação. Em outras palavras, a soteriologia designa a restauração do ser humano
como fruto da graça de Deus em sua vida e da nova vida que o homem estabelece
com Deus, por meio de Jesus Cristo, pela ação do Espírito Santo. Nessa
perspectiva, podemos afirmar que há duas dimensões da doutrina soteriológica, ou
seja, uma que trata de toda obra redentora de Jesus Cristo, conhecida como
soteriologia objetiva. A outra dimensão diz respeito à ação do Espírito Santo na
vida do ser humano, ou seja, seria a aplicação da obra redentora realizada por
Cristo, chamada de soteriologia subjetiva.1038
Embora tendo uma formação humanista, Calvino rejeitou duramente o
humanismo meramente da Renascença, que separado da doutrina bíblica,
transformava o homem no centro de todas as coisas, fazendo dele uma grande
apoteose, como separado, independente de Deus e auto-suficiente. O grande
símbolo do Renascimento pode ser o quadro de Miguel Ângelo, pintado no teto da
Capela Sixtina do Vaticano: O homem recém criado, saindo da mão do Criador,
para a sua independência!
Mesmo Calvino apreciando grandemente as realizações da cultura humana,
para ele as criações culturais do homem merecem correções quando ficam
distorcidas, pois o fim da cultura é também glorificar a Deus e realizar os
propósitos que Deus estabeleceu para o homem.1039

1037
COLSON, Charles. The Body: Being Light in Darkness (Dallas, Texas: Word, 1992), pp. 44-
47.
1038
Apenas para esclarecimento, a doutrina cristológica discute sobre a pessoa de Jesus Cristo,
enquanto a doutrina soteriológica versa sobre a ação redentora de Jesus Cristo.
328

Segundo Calvino, somente a obra redentora de Cristo Jesus é capaz de


promover verdadeira libertação da liberdade e do pecado. Ele ainda afirma que a
soteriologia trata-se da aplicação da obra redentora de Cristo, pelo movimento do
Espírito, na vida do ser humano, e que a obra redentora de Cristo começou
historicamente na encarnação, vida, obras, ensinos, milagres, morte expiatória.1040
A doutrina da justificação pela fé reforça, na verdade, a tese soteriológica de
que o homem, à parte de Jesus Cristo, permanece no pecado e que jamais
encontrará caminho de volta ao Pai. A justificação pela fé, ao mesmo tempo,
denuncia tal realidade humana e emerge deste fato, ou seja, a natureza do homem
está decaída e, na sua essência, corrompida pelo pecado original e que, por sua
própria vontade, nada pode realizar para alcançar o favor de Deus, muito menos
pela prática das boas obras, visto que são apenas sinais da fé e não promotoras da
fé. A salvação só pode ser alcançada pela graça mediante a fé.
A proclamação de tal verdade recoloca o homem no seu devido lugar, revela
a graça salvadora de Deus em Cristo Jesus e revaloriza a pessoa humana, que
salva pela graça, tem a imagem e semelhança de Deus restaurada em sua vida.
Num contexto de plena avalanche religiosa, com claros sinais de manipulação do
sagrado, a doutrina essencialmente bíblica, reformada e calvinista, ganha
importância significativa e urgente necessidade em proclamá-la.
Então, somente olhando para Cristo Jesus é que será percebida a verdadeira
natureza do homem. Calvino mesmo define o pecado da seguinte forma:

[...] uma depravação e corrupção hereditária de


nossa natureza, difundida em todas as partes da alma
que, em primeiro lugar, nos torna sujeitos à ira de Deus
e, depois, também produz em nós aquelas obras que a
Escritura chama de “obras da carne".1041

1039
Tradução-adaptação feita pelo Rev. Dr. Claude Emanuel Labrunie de artigo do Dr. Allan L.
Ferrir, publicado na revista Reformed World, de setembro de 1974, pp. 107-115.
1040
GEORGE, Timothy. A Teologia dos Reformadores. São Paulo: Vida Nova. (Original em
inglês: Theology of the Reformers (Nashville: Broadman, 1988), pp. 185-223.
1041
Institutas, Vol. II, 2.1.8.
329

Por isso que o homem necessita de uma consciência plena de sua


pecaminosidade a fim de que possa ouvir as boas novas de libertação do pecado
através de Jesus Cristo, o que se dá pela ação interior do Espírito Santo em sua
vida.1042
Do ponto de vista soteriológico, Calvino afirma que a relação entre Deus e o
homem tem como base o conhecimento que o homem tem do Criador, ou seja,
quando ele se conhece à luz do conhecimento que tem de Deus, na pessoa de
Jesus Cristo. O conhecimento acerca de Deus é obtido pelo homem através da
revelação escriturística, viabilizada pela iluminação do Santo Espírito. Sem
dúvida alguma que a liberdade do homem, alcançada pela redenção em Cristo
Jesus, atinge também sua relação com a cultura bem como suas realizações
culturais. Em outras palavras, a verdadeira humanidade acontece quando o
homem se relaciona com Deus através da redenção.1043
Como já discutimos anteriormente a questão da unicidade e universalidade
salvíficas em Jesus Cristo, no item da cristologia, pois soteriologia e cristologia
caminham juntas, entendemos que, além disso, a importância soteriológica de
Calvino para os nossos dias trata-se exatamente de combater todo tipo de
movimento religioso meramente humano, cuja força salvífica está centrada no
homem e não na força da graça.
Assim, desde a encarnação e com a chegada do Messias, a irrupção do Reino
de Deus, pela própria força do Evangelho de Jesus Cristo, o homem está
desautorizado a forjar e a aceitar qualquer tipo de novidades soteriológicas,
fabricadas pelo próprio homem. Vejamos as sábias asseverações do reformador de
Genebra quanto a esta verdade insofismável:

1042
GEORGE, Timothy. A Teologia dos Reformadores, op. cit., pp. 185-223.
330

Por isso, não sem motivo, o Pai, enviando-nos Seu


Filho como um privilégio singular, proclamou-O nosso
Mestre e Preceptor, ordenando-nos que a Ele ouçamos, e
a homem nenhum. Evidentemente, Ele nos recomendou
Cristo como Mestre e Senhor em poucas palavras,
quando disse: “a Ele ouvi” (Mt 17.5). Mas, nessas
poucas palavras, há mais força e mais importância do
que parece. Porque é como se, tirando-nos da doutrina de
todos os homens e declarando-a nula, Ele nos ligasse a
Seu Filho e nos mandasse receber e aprender dele toda a
doutrina da salvação, depender exclusivamente dEle, e
apegar-nos somente a Ele – em resumo, o que a palavra
comporta: obedecer unicamente a Cristo.1044 (grifo
nosso)

A dimensão soteriológica em Calvino destina-se a recolocar o ser humano


no seu devido lugar, como criatura de Deus, criação máxima de Deus, receptáculo
de sua imagem e semelhança. Mas destina-se, também, em evidenciar que o
homem não é um ser autônomo, senhor de seu próprio destino. Embora possuidor
de liberdade, Deus é o seu soberano Senhor. Não sem motivos, o reformador de
Genebra descreveu tal realidade em seus escritos, principalmente nas Institutas.
Um dos grandes desafios à Igreja Evangélica Brasileira é quebrar o
paradigma de uma fé de mercado, completamente vencida pelo poder econômico,
em muitos de seus segmentos. Trazer os consumidores da fé à condição de
verdadeiros discípulos de Jesus Cristo, pela via do discipulado – ensino –
fazendo-os conceber o verdadeiro conceito do Evangelho da graça, da fé, de Igreja
e, sobretudo, do próprio Deus, torna-se hoje um imperativo. Numa sociedade
enferma, adoecida, solitária, sem foco existencial, em que suas relações são
superficiais, necessitamos de uma Igreja menos realizadora e mais relacional, com
mais consciência de sua vocação como comunidade terapêutica.
A missão integral da Igreja na sociedade passa, fundamentalmente, pela
dimensão de sua ação koinônica. Importa proporcionar um ambiente eclesial onde
o homem tenha condições de se relacionar com Deus, consigo mesmo e com o
próximo de forma saudável e significativa. Por isso que, falando acerca do
conhecimento que o homem precisa ter si mesmo à luz do conhecimento de Deus,
o que é imprescindível, Calvino afirma o seguinte:

1043
Este parágrafo é uma tradução-adaptação feita pelo Rev. Dr. Claude Emanuel Labrunie, de
artigo do Dr. Allan L. Ferrir, publicado na revista Reformed World de setembro de 1974, pp. 107-
115.
1044
Institutas, Edição especial. Vol. I, pp. 109,110.
331

Ora, a verdade de Deus nos manda procurar outra


coisa, quanto à nossa estima própria. Manda-nos buscar
um conhecimento que nos afaste para longe de toda
presunção quanto à nossa virtude pessoal e nos despoje
de todo tipo de glória para nos levar à humildade. Essa é
a regra que devemos seguir, se desejamos conseguir o
objetivo do bem-sentir e do bem-fazer. Sei quanto é
agradável ao homem que o levem a reconhecer seus
talentos e suas qualidades elogiáveis, em vez de ser
levado a entender e a enxergar a sua pobreza, a sua
infâmia, a sua torpeza e a sua loucura. Porque não há, no
espírito humano, maior apetite que o de que lhe passem
1045
mel na boca, dizendo-lhe doces palavras e lisonjas.

Calvino não nega existir o que ele chama de “alguma semente de nobreza
em nossa natureza, a qual nos deve incitar a seguir a justiça e a honestidade”.1046
Entretanto, na medida em que busca um exame mais acurado de si mesmo, o
homem depara-se com a dura realidade de sua condição diante de Deus, vendo-se
“esvaziado de toda esperança”1047 soteriológica. Cabe ao homem perceber o
motivo para o qual foi criado e, certamente, dotado por Deus com dons e talentos
a fim de que viva para glorificar o seu Criador. Esta é uma parte essencial do
conhecimento que o ser humano deve ter de si mesmo.1048
Como conseqüência natural dessa avaliação, nascerá o desejo de servir a
Deus, pois como criatura recebeu a imagem e semelhança do seu Criador.

1045
CALVINO, João. As Instituas. Edição especial com notas para estudo e pesquisa. Vol. I. São
Paulo: Ed. Cultura Cristã. 2006, p. 8. A partir desta nota, será usado como Institutas, Edição
especial.
1046
Institutas, Edição especial. Vol. I, p. 83.
1047
Institutas, Edição especial. Vol. I, p. 82.
1048
“A luz desse fato aprendemos, também, que os que são responsáveis pelo presunçoso uso da
bondade divina se aproveitam dela para orgulhar-se da excelência que possuem, como se a
possuíssem por sua própria habilidade, ou como se a possuíssem por seu próprio mérito; enquanto
que sua origem deveria, antes, lembrá-los de que ela tem sido gratuitamente conferida aos que são,
ao contrário, criaturas vis e desprezíveis e totalmente indignas de receber algum bem da parte de
Deus. Qualquer qualidade estimável, pois, que porventura virmos em nós mesmos, que ela nos
332

A generosidade de Deus na vida do ser humano se verifica, também, no fato


de que este recebeu das mãos do Criador inúmeros bens espirituais e elevadíssima
preeminência.1049 Contudo, pela força do pecado, afastado da comunhão com
Deus, o homem perdeu tais bens, o que poderá reavê-los somente pelo caminho da
reconciliação com Deus, pela mediação de Jesus Cristo.1050
A necessidade de salvação impõe-se exatamente nesse ponto, visto que o
homem fora desprovido de qualquer capacidade de se voltar para Deus, tornando-
se completamente incapaz de promover sua própria salvação. Por isso Calvino faz
a seguinte declaração:

Ora, se não há dúvida nenhuma de que a graça de


Cristo é nossa por comunicação e que por ela temos vida,
segue-se paralelamente que, tendo uma e outra sido
perdidas em Adão, em Cristo as recuperamos, e como o
pecado e a morte foram gerados em nós por Adão, por
Cristo foram abolidos.1051

O grande mistério da graça salvadora de Deus em Cristo Jesus está na


consciência assumida pelo homem de que não há nele nenhum bem capaz de
promover-lhe a salvação ou o seu livramento espiritual, estando apenas rodeado
de miséria e de necessidade, privado, portanto, de verdadeira liberdade.1052 Ora, o
inclinar-se diante de Deus em humildade significa encontrar a própria grandeza do
homem, pois é voltado para Ele que encontrará o que lhe falta.

estimule a celebrarmos a soberana e imerecida bondade que a Deus aprouve conceder-nos”. In.:
CALVINO, João. O Livro de Salmos. São Paulo: Parakletos, 1999. Vol. I, (Sl 8.4, pp. 165,166).
1049
CALVINO, João. O Livro dos Salmos, Vol. I, (Sl 8.5), p. 167.
1050
“Quando de seu estado original decaiu Adão, não há a mínima dúvida de que, por esta
defecção, se haja alienado de Deus. Pelo que, embora concedamos não haja sido nele aniquilada e
apagada de todo a imagem de Deus, foi ela, todavia, corrompida a tal ponto que, o que quer que
resta, é horrenda deformidade” (Institutas, Vol. I, 15,4). “Pelo pecado estamos alienados de Deus”
(CALVINO, João. Efésios, (Ef. 1.9), p. 32); “Como a morte espiritual não é outra coisa senão o
estado de alienação em que a alma subsiste em relação a Deus, já nascemos todos mortos, bem
como vivemos mortos até que nos tornamos participantes da vida de Cristo.” (CALVINO, João,
Efésios, (Ef 2.1), p. 51). “Tão logo Adão alienou-se de Deus em conseqüência de seu pecado, foi
ele imediatamente despojado de todas as coisas boas que recebera”. CALVINO, João, Exposição
de Hebreus, (Hb 2.5), p. 57.) Todos os homens estão “totalmente alienados de Deus”. (CALVIN,
John. Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan, Baker Book House Company, 1981, Vol.
XVIII, (Jo 14.22), p. 97.
1051
Institutas, Edição especial. Vol. I, p. 86.
1052
Institutas, Edição especial. Vol. I, p. 90. “Os homens jamais encontrarão um antídoto para suas
misérias, enquanto, esquecendo-se de seus próprios méritos, diante do fato de que são os únicos a
enganar a si próprios, não aprenderem a recorrer à misericórdia gratuita de Deus.” (CALVINO,
João. O Livro dos Salmos, Vol. I, (Sl 6.4), pp. 128,129).
333

O arcabouço teológico da Reforma Protestante, especialmente a teologia


calvinista, nos aspectos elencados neste trabalho, uma vez atualizados e aplicados
no contexto da pós-modernidade, contribuirá para uma presença eclesial mais
relevante e significativa na sociedade. Significa dizer que se faz necessário e
urgente anunciar a justificação somente pela graça mediante a fé, denunciando,
pelo caminho do ensino, da compaixão, qualquer tipo de religião meramente
humana, antropocentralizada, pelagiana ou, a melhor das hipóteses,
semipelagiana. Todo homem liberto pela graça é liberto do pecado e também da
Lei, visto que, em Cristo, “o problema religioso do pecado é resolvido e o homem
restabelece sua comunhão com Deus”.1053 A liberdade humana só é alcançada pela
justificação e “Deus justifica perdoando”,1054 sendo, portanto, uma ação de Deus
no homem, uma ação heterônoma, salvificamente falando, vinda de fora,
extrínseca ao homem, pois sua fonte é Deus.
A religiosidade brasileira foi cooptada pela religião de mercado, facilitando
toda sorte de manipulação do sagrado. Somos uma sociedade religiosa, mas sem o
verdadeiro conhecimento de Deus, sem a experiência com o Cristo ressuscitado e,
conseqüentemente, sem vidas transformadas e transformadoras da sociedade. As
pessoas buscam uma salvação meramente terrena, de seus problemas financeiros,
emocionais, familiares, profissionais, afetivos, dicotomizando a existência, as
relações, a própria caminhada cristã, que é feita com lutas, muitas vezes, e jamais
com sua isenção. A fé tornou-se produto de consumo, quando deveria ser vista e
recebida como dom, oferta da graça de Deus.
Portanto, pensar na liberdade cristã no contexto de nossa sociedade significa
enfrentar dois desafios: o primeiro é interpelar o homem pós-moderno, à luz do
Evangelho, de sua real condição diante de Deus, pecador separado da graça
salvadora do Pai. Creio que o homem vive um antropocentrismo absurdo, em que
os seus movimentos religiosos são de baixo para cima, como diz Barth.1055

1053
FERREIRA, Edijéce Martins. A Ética de Calvino. op. cit., p. 33.
1054
Institutas, livro III, xi, 11.
1055
BARTH, Karl. Die Kirchliche Dogmatik. Zürich, 1950, I/2, p 135.
334

Em outras palavras, o homem vive sob a constante tentação de dominar todo


e qualquer processo de salvação. Atitude paradoxal, pois o homem vive marcado
pelo pecado, cuja força atinge sua mente e sua vontade. O segundo desafio é
denunciar que, como resultado da pecaminosidade humana, a sociedade com suas
instituições evidenciam, de igual forma, toda sorte de egoísmo, injustiça e a
própria desumanização do indivíduo. Portanto, a presença da Igreja precisa ser
profética, denunciatória, conflitiva.
A liberdade ofertada por Deus, como fruto da justificação, significa que “as
consciências dos crentes, em buscar a convicção da justificação perante Deus
deveriam ser levadas além e adiante da Lei, esquecendo toda a justiça
legalista”.1056 Ou seja, o paradigma de nossa liberdade é Cristo, não devendo o
homem viver mais sob qualquer jugo de escravidão. A lei moral continua com seu
valor, interpelando o homem a caminhar segundo o que é bom e correto, mas
perdeu seu valor como instrumento de opressão e condenação.
Segundo Calvino, compreender a sociedade passa, fundamentalmente, pela
compreensão bíblico-teológica da queda do homem, ou seja, seu processo de
ruptura com Deus e, conseqüentemente, consigo mesmo, com o outro, e com a
natureza.1057 É aqui que encontramos a chave hermenêutica para entender este
processo de enfermização do ser humano e, portanto, sua conseqüente via de
salvação – Jesus Cristo.

5.4.2
Em Busca de uma Salvação Integral e Integrada

Na linguagem de Agostini, o vital humano fora tremendamente afetado,


alterando completamente seu ethos e trazendo danosas conseqüências à vida
pessoal e em comunidade. A ruptura com Deus trouxe uma desintegração do ser
humano, pois a relação criatura-Criador deixou de existir em plenitude. “A
desobediência do primeiro homem trouxe como conseqüência, morte espiritual ou
separação de Deus, o que também inclui morte física, que por sua vez também
está relacionada com enfermidade, dor e perda da vida".1058

1056
Institutas, livro III, xix, 2.
1057
Institutas, livro III, viii, 51.
1058
ZANDRINO, Ricardo. Curar também é tarefa da Igreja. São Paulo: CPPC, 1986, p. 38.
335

Portanto, a chamada Ordo Salutis, ou Ordem da Salvação, significa a


descrição e a forma como se dá todo processo salvífico em Cristo Jesus na vida
dos homens e mulheres por Ele alcançados. Berkhoff afirma que “a soteriologia
reformada tem como ponto de partida a união estabelecida no pactum salutis entre
Cristo e aqueles que o Pai lhe deu, por meio do qual há uma imputação eterna da
justiça de Cristo aos que são seus”.1059 A justificação se dá pela fé em Cristo
Jesus. Na verdade, a Ordo Salutis tem seu início na regeneração e que, portanto,
toda a aplicação da obra redentora de Jesus Cristo é manifestação da graça de
Deus.
Na visão querigmática de Calvino, o evangelho libertador de Jesus Cristo
promove a salvação integral do ser humano, estabelecendo uma íntima conexão
entre salvação e cura, ou seja, a obra redentora de Deus em Cristo Jesus, resgata
todas as dimensões do ser humano. Traz ao homem a consciência de dependência
de Deus, em que o centro do universo deixa de ser ele mesmo e, doravante, vive
não mais para si, mass para o outro, para Deus mesmo. Na verdade, a salvação
ofertada por Deus pode e deve ser vista, também, como experiência de saúde,
como cura de suas enfermidades, morais, emocionais, espirituais, sociais etc.
Significativo é o conceito bíblico de shalom, por exemplo, que expressa não
apenas a idéia de paz, mas também de saúde, podendo chegar à renovação
espiritual e reabilitação social, num sentido ainda mais amplo. No grego,
podemos citar novamente a palavra soteria, que significa salvação, apontando
para a totalidade da pessoa ou também saúde, indicando que, na soteriologia de
Deus, não há espaço apenas para uma salvação espiritual, como se a mesma
possuísse somente uma dimensão, mas aponta para a totalidade do ser humano.
Lamentavelmente, em nossa cultura ocidental, é que encontramos esta
dicotomia entre saúde e salvação, visto que a nossa teologia aderiu ao dualismo
grego entre matéria e espírito. O verdadeiro evangelho não salva a pessoa apenas
para um futuro distante, desprezando sua vida aqui e agora, ao contrário, o
evangelho libertador de Jesus Cristo promove salvação integral do ser humano e o
devolve à sociedade, transformado, para agir como novo homem, promotor do
Reino de paz e de justiça.

1059
BERKHOF, Luis, op. cit., p. 496.
336

Portanto, a práxis soteriológica da Igreja deve ser no sentido de promover


não apenas salvação, mas também saúde. A salvação de Jesus Cristo implica
salvação do homem, do seu status quo e do seu modus vivendi, ou seja, as pessoas
são salvas de sua condição de ruptura de Deus, mas também transformadas, dia
após dia, de sua forma de vida.
A verdadeira liberdade cristã só alcança sentido plenamente, quando trilhada
pela senda da justificação. Significa dizer que tanto a justificação quanto a
liberdade cristãs possuem um caráter essencialmente prático, pois dizem respeito
diretamente à vida humana. A justificação como ação direta de Deus e a liberdade
restaurada, promovendo santificação, mudanças éticas e transformações sociais.
Os discípulos de Jesus Cristo “não deveriam ser enleados por nenhuma malha de
observações, em matérias das quais o Senhor os desejou livres”, visto que “estão
livres do poder dos homens”.1060
Encontramos, na teologia paulina, clara indicação de que, pela ação livre e
soberana do Espírito de Cristo, o homem torna-se livre da lei do pecado e da
morte, outorgando-lhe uma nova vida e alterando seu ethos constitutivo, ou seja,
modificando seu comportamento. Tudo isso faz parte do imperativo da conversão,
do encontro com o Cristo ressuscitado. Encontramos,s nas palavras de França de
Miranda, uma excelente síntese sobre o pensamento de Calvino no que diz
respeito ao resultado soteriológico. “Logo toda experiência autêntica de Deus
supõe seguimento de Cristo, docilidade a seu Espírito, abertura ao irmão,
compromisso da própria vida com o amor e a justiça”.1061
Sendo assim, na visão paulina, a salvação é vista como justificação, ou seja,
graça ofertada ao homem, não apenas escatologicamente, mas presente. A
justificação de Deus tem uma dimensão forense (declarar justo), sendo “uma não-
1062
imputação”. Trata-se de um veredicto de salvação, “maravilhosamente
1063
gratuito, pronunciado pelo Deus fiel à sua aliança”.

1060
Institutas, livro III, xix, 14.
1061
MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 142.
1062
Ibidem., p. 89.
337

Tal justificação ocorre somente pela fé, sem qualquer efetivação de obras
humanas (Rm 3,28; Gl 2,16; Ef 2,8-10). Isso significa dizer que não há qualquer
possibilidade por parte do homem em promover sua autojustificação.
“Naturalmente essa fé não é um assentimento intelectual a certas verdades
salvíficas, mas a fé-compromisso, a fé-doação, que se identifica como atitude
1064
profunda do homem com a esperança, a caridade, a metanóia”. Ou seja, a
justificação implica na dimensão forense e transformativa, na qual a justiça de
Cristo é imputada ao homem, mas também a ação regeneradora do Espírito Santo
1065
o faz nova criatura (II Co 5,17).

5.5
Implicações Éticas Diante dos Desafios da Pós-Modernidade

Quando pensamos sobre a liberdade cristã e suas implicações éticas, estamos


falando da forma como devemos ordenar a nossa caminhada, a vida mesmo. O
Evangelho que chegou até nós e provocou a quebra das cadeias que nos
aprisionavam, requer profundo amor pela justiça, pela retidão. Este é o primeiro
princípio estabelecido por Calvino no que diz respeito à verdadeira vida cristã. O
segundo tem a ver com o estabelecimento de certos parâmetros ou princípios de
conduta, a fim de que não nos percamos e vivamos sem direção e meta.1066
Sem dúvida alguma que a teologia reformada deixou-nos um legado muito
rico e, especialmente para os nossos dias, a ética ganha destaque. Tal constatação
se dá exatamente pelo fato de que a Igreja Evangélica Brasileira tem sofrido
demasiadamente nessa área. Notoriamente as últimas décadas têm revelado uma
crise ética em diversos setores da Igreja, seja por parte de líderes, seja por parte de
seus membros. Sexo, dinheiro e poder são os casos mais comuns. Mais tão sério
quanto essa questão é a falta de sensibilidade e a incapacidade de enfrentar os
gritantes e dantescos problemas sociais. Por isso veremos, aqui, dois aspectos
importantes sobre as implicações éticas e o anúncio da Igreja.

1063
Ibidem., p. 89.
1064
MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 89.
1065
Institutas, Edição Especial, p. 90.
1066
Institutas, Edição Especial, Vol. IV, pp. 177,178.
338

5.5.1
A Ética na Vida de Serviço

Discípulos de Jesus são aqueles que tiveram uma libertadora experiência


com Cristo, através do genuíno Evangelho. A estes, a Palavra do Evangelho
chega-lhes com interpelações a uma vida cristã autêntica, repleta de implicações
ético-sociais, a fim de que sejam vividas no tempo e no espaço onde atuam. Paulo
chama de vida cristã autêntica o despojar do velho homem e o revestir-se do novo
homem, alcançando, assim, o verdadeiro conhecimento de Cristo.1067 Calvino,
então, vai afirmar categórica e enfaticamente que, lamentavelmente, há cristãos
nominais, “não tendo nada de Cristo, exceto o título”.1068 Para o reformador, o
evangelho não é apenas uma questão de religião meramente moral, muito menos
um corpo doutrinário discursivo, mas fundamentalmente uma experiência com o
Cristo ressurreto, transformada em um novo estilo de vida. “Felizes, porém, são
aqueles que abraçaram o evangelho e firmemente permanecem nele! Porque ele –
o evangelho – fora de qualquer dúvida, é a verdade e a vida”.1069
Significa dizer, à luz das Escrituras e da visão ética de Calvino, que aqueles
que não vivem para glória de Deus envergonham-nO com seu estilo de vida. Ou
seja, o dom da fé possibilita-nos crer na Palavra e a potencializa em nosso
coração, tornando-a frutífera, sendo evidenciado “o seu poder em nossa vida”.1070
Diante de tais asseverações, constatamos a contemporaneidade das Escrituras e
das palavras de Calvino, pois o mundo pós-moderno carrega a marca da
superficialidade, inclusive na esfera religiosa. O cristianismo, estatisticamente
falando, têm mais cristãos nominais do que verdadeiramente evidenciando a
prática de sua fé. Daí, uma das primeiras implicações éticas do anúncio do
evangelho é que quem o anuncia o faz porque foi por ele liberto. Nesse sentido, as
palavras de Calvino são apropriadas:

1067
Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 181.
1068
Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 181.
1069
Efésios, (Ef. 1.13), pp. 35,36.
1070
Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 182.
339

Não exijo que a vida do cristão seja um evangelho


puro e perfeito, embora o devamos desejar e esforçar-nos
por esse ideal. Não exijo, pois, uma perfeição cristã de
tal maneira estrita e rigorosa que me leve a não
reconhecer como cristão quem não a tenha alcançado.
Porque, se fosse assim, todos os homens do mundo
seriam excluídos da Igreja, visto que não se encontra
nem um só que não esteja bem longe dela, por mais que
tenha progredido. E a maioria ainda não avançou nada ou
quase nada. Todavia, nem por isso os devemos
rejeitar.1071

Uma das conseqüências da teologia reformada é a construção de um perfil


ético tanto na pessoa, quanto na comunidade eclesial, gerando, portanto, uma ética
individual e social.1072 Segundo o pensamento calvinista, o homem alcançado pela
graça de Deus em Jesus Cristo, recebe uma nova vida repleta de contornos
comunitários. A Igreja é a nova sociedade no mundo, pois através dela Deus
realiza Seu propósito e cumpre Sua vontade soberana. No fiel cumprimento de sua
vocação ela proclama o Evangelho de salvação, faz novos discípulos e busca
transformar a sociedade na qual está presente, ou seja, “na comunidade cristã as
relações sociais naturais são-no na perspectiva da restauração”.1073 Haja vista o
que aconteceu na cidade de Genebra.1074
Uma das principais conseqüências da doutrina da imago Dei, restaurada na
vida do ser humano, está na perspectiva da ética. Na verdade, essa dimensão
expõe uma implicação teológica na pregação. Apesar de sua grandiosa visão de
uma humanidade restaurada, Calvino era um realista. Sabia que credos e
comportamentos não raro estão muito distanciados, assim como os princípios e as
práticas na comunidade cristã. Tratou, então, de orientar sua pregação no sentido
de aproximar as duas realidades, os dois pólos. Entre os ouvintes sentados na
congregação de Genebra, havia cristãos professos que estavam incluídos na
categoria de exploradores de seus próximos.

1071
Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 182. Tais palavras de Calvino são libertadoras e
evidenciam um homem consciente das limitações humanas, mesmo alcançado pela graça salvadora
de Jesus Cristo.
1072
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. São Paulo: Casa Editora
Presbiteriana. 1990, pp. 334-339.
1073
Ibidem, pp. 334-335.
1074
MATOS, Alderi Souza de. Resgatando Aspectos Essenciais da Fé Reformada. In.: Fides
Reformata III/1, 86.
340

Para Calvino, a riqueza implicava em perigos e sérias responsabilidades. “Os


que são ricos considerem que sua abundância não se destina a ser usada em
intemperança e excessos, mas em aliviar as necessidades dos irmãos”.1075 Calvino
fustigava publicamente aqueles que procuravam o controle monopolítico dos bens
de consumo básico. Por exemplo, aqueles que armazenavam trigo para provocar
escassez e assim alcançavam altos preços. Fulminava crentes desse tipo ao pregar.
“Tais pessoas sepultam a graça de Deus, como se estivessem em guerra aberta
contra Sua bondade e contra Sua solicitude para com todos”.1076 Em outra ocasião,
o reformador chamou os manipuladores do preço do trigo de “assassinos, bestas
selvagens, mordedores e devoradores dos pobres, sugadores de seu sangue”.1077
Outra questão preocupante sobre a qual Calvino emitiu sua opinião foi a taxa
de juros. Emprestar dinheiro a outrem para iniciativas produtivas era permitido.
Contudo, o limite era não cobrar mais do que 5% de juros. Mas não se deve cobrar
juros quando se empresta ao pobre. Na verdade, diante do desespero do pobre, o
certo é dar-lhe imediatamente o necessário. E também não se deve negligenciar a
responsabilidade da caridade a ponto de só ter disponibilidades para emprestar ao
comerciante que remunera o capital emprestado. Além disso, aquilo que as leis da
sociedade permitem, em termos de juros, se injusto, é inadmissível para o
cristão.1078
De acordo com Calvino, a fé cristã deveria permear todas as áreas da vida. O
dinheiro, a propriedade e o trabalho do homem destinam-se não a despojar o
próximo, mas a servi-lo. O enfoque que Calvino deu ao trabalho, conferiu-lhes
nova dignidade. Deixou de ser considerado como maldição causada pelo pecado:
é antes um meio para servir a Deus e ao próximo. O trabalho do homem provém
do trabalho e da vontade de Deus. Implica, de algum modo, em participação na
criatividade Divina. A arte, arquitetura, ciência e agricultura humanas são
possíveis mediante a operação dos poderes criativos de Deus.

1075
Comentário, 2 Coríntios 8.15.
1076
Sermão 96 sobre Deuteronômio 15.16.23. Os sermões de Calvino sobre o livro de
Deuteronômio são particularmente ricos em revelar o seu pensamento social.
1077
Comentário ao Evangelho de Mateus, 3.9-16.
1078
Este parágrafo é uma tradução-adaptação feita pelo Rev. Dr. Claude Emanuel Labrunie, de
artigo do Dr. Allan L. Ferrir, publicado na revista Reformed World ,de setembro de 1974, pp. 107-
115.
341

Há de se afirmar, também, que a ética cristã nos interpela a uma vida


sensível a bênção de Deus, na inteira dependência de sua provisão. Em seu
comentário na segunda carta aos Coríntios, o reformador faz a seguinte
observação:

Quando o Senhor nos abençoa, também nos


convida a seguirmos Seu exemplo e a sermos generosos
para com o nosso próximo. As riquezas do Espírito não
são para serem guardadas para nós mesmos, mas sempre
que alguém as recebe deve também passá-las a outrem.
Isto deve ter uma aplicação especial aos ministros da
Palavra, mas também tem uma aplicação geral a todos os
homens, a cada um em sua própria esfera.1079

O trabalho, além disso, é um dos meios pelos quais Deus em sua providência
cuida das necessidades da sua criatura. A sociedade que não der a um homem
condições de trabalhar, está a roubar-lhe um de seus direitos humanos
fundamentais. Mediante o trabalho humano, Deus atende às necessidades de um
homem e de sua família. Subtrair de alguém a possibilidade de trabalhar, declarou
Calvino, é equivalente a “cortar sua garganta”.1080
Não satisfeito com isso, Calvino afirma que o trabalho é um instrumento
para desincumbirmo-nos de nossas responsabilidades para com o nosso próximo.
O reformador, como já exposto, era um líder preocupado com a solidariedade da
vida humana. Os homens não constituem uma coleção de indivíduos; é uma
comunidade de gente mutuamente dependente. Para Calvino, a ética pessoal deve
ser ética social, e esta última tem a ver com meu próximo. Percebe-se, pois, que o
fim, o objetivo, a intenção com que o homem trabalha, é de importância decisiva.
O trabalho pode ser a expressão de um espírito egoísta e açambarcador, ou pode
ser um meio de expressar minha nova vida com Cristo, que requer não apenas
honrar a Deus, mas também amar meu próximo em quem, por mais distorcida que
seja, reflete-se a imagem de Deus. Mediante meu trabalho, eu me torno capaz de
expressar de maneira concreta meu amor por meu próximo.1081

1079
Coríntios, (2 Co 1.4), p. 17.
1080
Sermão em Deuteronômio 24.14-18.
342

Portanto, quando pensamos em implicações éticas no contexto da pós-


modernidade salta-nos aos olhos a necessidade, por exemplo, do ensino, da
educação, como meio de tornar os princípios e parâmetros éticos e morais
conhecidos de todos. Ou seja, a educação moral torna a pessoa consciente de que
ela é um sujeito moral e, alcançada pelo Evangelho libertador, torna-se livre como
sujeito moral, capaz de viver com liberdade e responsabilidade. Não sem motivos,
para Aristóteles e Kant, a ética era vista como ciência prática, um conhecimento
que conduz à práxis.1082 Ou seja, a ética como estudo crítico da moralidade, ela
questiona acerca dos fundamentos basilares que devem orientar a práxis humana,
nas suas relações pessoais, sociais, religiosas etc. O pano de fundo do pensamento
de Aristóteles e de Kant, neste campo em particular, diz respeito,
fundamentalmente, à ética vivida no contexto limitado da Polis ou do Estado
Democrático.1083
Segundo a teologia paulina, por exemplo, a liberdade para a qual Cristo nos
libertou diz respeito a dois aspectos: o primeiro declara que a salvação é graça de
Deus e não resultado de esforço humano; o segundo afirma que o propósito da
salvação operada em nós é para a nossa liberdade, ou seja, “esta liberdade é a
meta da ação libertadora de Cristo, implicando que o homem se encontra num
estado salvífico estável, possibilitado (Rm 8,2) e conservado pelo Espírito (II Co
1084
4,7)”. Miranda afirma que o resultado dessa liberdade ontológica viabiliza a
liberdade ética, na qual o agir do humano reflete o pressuposto da ação de Deus
em sua vida, potencializando o imperativo ético dos homens e mulheres que
1085
seguem a Jesus Cristo.

1081
Tradução-adaptação feita pelo Rev. Dr. Claude Emanuel Labrunie, de artigo do Dr. Allan L.
Ferrir, publicado na revista Reformed World de setembro de 1974, pp. 107-115.
1082
Para um maior aprofundamento da questão ética, sugere-se a leitura de duas obras
fundamentais para a filosofia prática ocidental, cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo:
Nova Cultural, 1987 e KANT, I. Crítica da Razão Prática / CRPr, (A 167-185). São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
1083
Ibidem, pp. 239,241.
1084
MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 98.
343

A ética desenvolve sua reflexão crítica acerca da moralidade sempre a partir


de determinadas condutas humanas. Por outro lado, a moral é compreendida como
a formação de determinado conjunto de normas e condutas conhecidas e
reconhecidas como próprias ao comportamento humano por um grupo social, num
determinado tempo e espaço. Seu objetivo último é oferecer segurança e
estabilidade às relações humanas e sociais. “Em cada cultura, a articulação do
ethos, da moral e da ética faz com que um determinado povo construa um modo
próprio de habitar um espaço e tempo, com regras e valores próprios”.1086
Por outro lado, ela carrega também o desafio da resposta, através da
reflexão, às perguntas vitais ao ser humano,1087 tais como: sobre que bases ético-
morais o indivíduo deve fundamentar sua conduta? Que tipo de relações o ser
humano deve estabelecer com a criação, com o próximo, consigo mesmo e com
Deus? Há gradação hierárquica no que diz respeito a valores que devem ser
priorizados e, portanto, seguidos? A verdadeira cidadania é caracterizada por
quais atitudes e comportamentos?1088
É aí que nasce a liberdade, resultado do sujeito moral. Poderíamos, então,
dizer que ética seria a liberdade responsável por escolher e construir a própria
história humana a partir do legado adquirido, de tal maneira que o faça para
tornar-se mais humano e contribuir para uma sociedade mais justa e mais
humanizada.1089
Há um grande desafio para a Igreja atual, pelos claros movimentos de
opostos, que é não pender nem para a intolerância e nem para o liberalismo, ora
tolhendo a liberdade responsável, ora favorecendo ao relativismo dogmático,
afetando diretamente a consciência das pessoas. A linha por onde se deve
caminhar é tênue, mas este também é um dos desafios. Calvino faz um comentário
pertinente sobre o assunto, utilizando-se de Santo Agostinho: “Queixava-se ele de
que a Igreja, que a misericórdia de Deus quis seja livre, estava a tal ponto
oprimida, que mais tolerável haja sido a condição dos judeus.”1090

1085
Ibidem, p. 98.
1086
AGOSTINI, Nilo. Ética e Evangelização, op. cit., p. 21.
1087
CORBISIER, R. Introdução à filosofia, tomo1, Rio de Janeiro: Ed.Civilização Brasileira,
1991, pp. 125-127.
1088
COTRIM, G. Fundamentos da Filosofia – História e Grandes Temas, op. cit., p. 264.
1089
COTRIM, G. op. cit., p. 265.
1090
Institutas, livro IV, cap. 10, seção 1, p. 173.
344

Na visão de Calvino, a Igreja deveria ser um centro de reprodução e


irradiação dessa nova concepção de liberdade, vivendo como comunidade
restaurada e renovada, a fim de que dela saísse o conceito de uma nova
sociedade.1091 Daí a necessidade de engajamento histórico. Em um de seus
sermões, Calvino faz o seguinte comentário:

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1

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34
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56
3

5.5.2
Desafio de Construção de uma Sociedade Humanizada

Em primeiro lugar, gostaria, aqui, de estabelecer um paradigma de conduta


para todos os cristãos – Jesus Cristo. Deus não apenas nos reconciliou através do
Filho, mas O constituiu nosso modelo de vida, pois viveu aqui como verdadeiro
homem, a quem, pois, devemos imitar, vivendo, assim, o Evangelho do Reino,
fazendo-nos capazes de nos humanizar e promover uma sociedade mais humana.
Para o reformador, Deus deu-nos Seu Filho como o Messias, o Salvador, mas
também como modelo ou imagem que “deve ser representada em nosso viver”.1093
Comentando Hebreus, ele diz o seguinte:

Tudo quanto os filósofos têm inquirido sobre o


summum bonum revela estupidez e tem sido infrutífero,
visto que se limita ao homem em seu ser intrínseco,
quando é necessário que busquemos felicidade fora de
nós mesmos. O supremo bem humano, portanto, se acha
simplesmente na união com Deus. Nós o alcançamos
quando levamos em conta a conformidade com sua
semelhança.1094

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1093
Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 179.
1094
Hebreus, (Hb 4.10), p. 105.
345

Sendo assim, o cristão é aquele que exerce sua fé não apenas na dimensão da
contemplação, mas também no contexto histórico no qual se encontra. Segundo
Calvino, o que Deus deseja para seus filhos, antes de qualquer coisa, é
integridade, caracterizada pela nobreza de coração, singeleza e sinceridade de
alma.1095 Somos, portanto, desafiados e encorajados pelo próprio Cristo a
prosseguir na caminhada cristã, perseguindo a maturidade e a estatura do segundo
Adão, Cristo. Para o cristão comprometido com as implicações do Evangelho,
haverá de perceber que o hoje superou o ontem. A ética cristã importa em que
sejamos melhores do que somos, pois com o nosso ethos restaurado seremos mais
humanos e melhores nas nossas relações interpessoais, com a criação e com o
próprio Deus. Na verdade, uma coerência entre ortodoxia e ortopraxia.
Vejamos as palavras do próprio Calvino:

Piedade para com Deus, confesso é mais


preeminente do que o amor devido aos irmãos; e assim a
observância da primeira tábua é mais valiosa à vista de
Deus do que a segunda. Mas como Deus pessoalmente é
invisível, assim piedade é algo oculto aos sentidos
humanos. E embora as cerimônias sejam destinadas a
testificar dela, todavia não são provas infalíveis. Às
vezes sucede de ninguém ser mais zeloso e sistemático
em observar as cerimônias do que os hipócritas. Deus,
portanto, quer fazer prova de nosso amor para com ele
através do amor devido ao nosso irmão, o qual ele nos
recomenda. Eis a razão por que não só aqui, mas também
em Romanos 13.8,10, o amor é chamado ao
cumprimento da lei, não porque seja ele superior ao culto
divino, mas porque ele é a prova deste. Deus, como já
disse, é invisível; mas Ele se nos representa nas pessoas
dos irmãos, e nessas pessoas requer o que é devido a Ele
mesmo. O amor para com os homens flui tão-somente do
temor e do amor de Deus. Portanto, não causaria
surpresa se por meio de sinédoque, o efeito de incluir em
si a causa da qual ele é o sinal. Seria, porém, errôneo
separar o amor a Deus do amor aos homens.1096

1095
Salmos, Vol. II (Sl 58.1), p. 517.
5 6/
D" .5E5F 5/E5/F
346

Segundo o pensamento calvinista, há três princípios com os quais o cristão


mantém contato, qual sejam: Deus, o próximo e o mundo. A ética cristã não
enxerga um mundo demonizado e a Igreja como único lugar sagrado, mas o vê
como espaço pertencente à vida, criado por Deus, sem separações e qualquer
forma dualista. Ao contrário, a ética cristã reformada reconhece Deus no mundo.
Assim, há um duplo benefício: primeiro a valorização do homem como imagem
de Deus e o segundo benefício é olhar o mundo como criação divina. Seria a
manifestação da graça comum, através da qual o mundo é mantido pelo Criador e
a “graça particular que opera a salvação”.1097
Assim, recupera-se o devido papel ou vocação do cristão e da Igreja na
sociedade. Louva-se a Deus na Igreja e o serve no mundo. A obra da redenção
possibilita ao homem verificar, inclusive, liberdade no mundo, visto que toda
maldição que pairava sobre ele é agora restringida pela graça, o que importa
descobrir suas potencialidades naturais e usá-las para glória de Deus.
Outro ponto fundamental da ética libertária de Calvino é o fato de que todas
as barreiras raciais, culturais e sociais são suprimidas pelo poder do Evangelho
libertador. Em Cristo, somos todos um, formando o Seu Corpo, inserido na
sociedade para agir na dinâmica do acolhimento e do amor-serviço.1098
Assim, a liberdade cristã, segundo Calvino, precisa atingir todas as
dimensões da vida humana, não podendo tornar-se veículo de agressão. A vida
cristã integra as dimensões espirituais, sociais, econômicas, políticas.1099 Para
Calvino, esta nova condição humana deve conduzi-lo à simplicidade e jamais
provocar os mais fracos. Ele afirma que “mui perniciosamente erram, porém,
porque de nenhum peso tem a fraqueza dos irmãos, [fraqueza] que assim convém
de nós suster-se que algo não admitamos inconsideradamente, com tropeço
deles.”1100 Na verdade, tal liberdade possui, inclusive, dimensões de renúncia, a
exemplo da postura paulina: “porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de
todos” (1 Co 9,19). No entanto, este paradoxo não pode conduzir o cristão a
nenhuma atitude de alienação.

1097
KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 38.
1098
Ibidem, p. 249.
1099
Institutas, livro III, cap. 19, seção 15.
1100
Institutas, livro III, cap. 19, seção 10.
347

Segundo a visão de Calvino uma das tarefas da Igreja na sociedade é tornar


as leis humanas o mais próximo das leis de Deus. Na verdade, seu desejo era criar
uma sociedade governada pelas leis de Deus, jamais confundindo o Estado como
representação do reino de Deus, muito menos criar qualquer tipo de teocracia.1101
Aos magistrados cabia a função de zelar pelo cumprimento das leis, a solução de
problemas de ordem geral e a preservação das mesmas. A Igreja era essencial na
vida da sociedade. “Não que lhes competisse ensinar na Igreja ou decidir sob o
conteúdo do ensino, mas lhes cabia supervisionar a vida da Igreja e punir os
blasfemadores e hereges”.1102 Fundamentalmente, nessa perspectiva, o papel da
Igreja é educativo.1103
O cristão é chamado, pelo evangelho que o atingiu, a construir uma nova
sociedade, mais humana, levando para todas as esferas da sociedade uma
consciência moral responsável. Cabe a Igreja ser fomentadora dessa liberdade e
promotora de esperança e de sentido de vida. A liberdade cristã é a liberdade da
responsabilidade, do compromisso, do engajamento, da inserção no mundo,
expressando a imagem de Deus recriada em nós. É, paradoxalmente, a liberdade
da submissão a Deus, da obediência a Deus.1104 Tudo isso é fruto de uma relação
essencialmente alicerçada no amor. Calvino diz:

Portanto, quem quer que seja dos homens que


agora se te depare que careça de tua ajuda, causa não
tens por que te furtes a assisti-lo. Dize que é [ele] um
estranho: o Senhor, no entanto, imprimiu-lhe um traço
que te deve ser de um membro da família, em razão de
que veda desprezes tua [própria] carne [Is 58.7]; dize que
é [ele] desprezível e sem valor: o Senhor, no entanto,
mostra ser ele [um] a quem dignou da honra de Sua
imagem; dize que de nenhum serviço seu estás em dívida
[para com ele]: Deus, no entanto, como que o
subestabelece em Seu lugar, [...]. No entanto, é a imagem
de Deus, pela qual se te recomenda [ele], a que te
ofereças [a ti próprio] e a tudo que tens.1105

1101
TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: ASTE, 2000, p. 269.
1102
Ibidem, p. 269.
1103
Ibidem, p. 269.
1104
Institutas, livro III, cap. 19, seção 14.
1105
Institutas, livro III, cap. 7, seção 6.
348

Nilo Agostini fala-nos, também, da grandeza dessa ética, que busca o resgate
da alteridade, sendo esta um dos grandes desafios na pós-modernidade. Alteridade
significa a dinâmica do saber ouvir para a práxis do saber servir.1106 O cristão
deve valorizar a sua vida, o seu tempo, o seu corpo, o seu trabalho como meio de
sobrevivência e de serviço em prol da coletividade.
O princípio escriturístico da liberdade cristã está no exercício de sair de si
mesmo e envidar todo esforço do nosso ser ao serviço de Deus, que, na verdade, é
a construção do Seu Reino através da sociedade provisória, a Igreja, segundo a
linguagem de Calvino. Tal serviço consiste não apenas a obediência à Palavra de
Deus e submissão ao Espírito Santo, mas também o desempenho dos dons
recebidos em benefício do próximo. Diferentemente dos filósofos que ensinam
que devemos seguir apenas a razão, como instrumento de governo da vida,
Calvino declara que “a filosofia cristã pretende que a razão ceda e se afaste, para
dar lugar ao Espírito Santo”.1107
Torna-se imperativo no contexto da pós-modernidade resgatar a consciência
ético-cristã acerca da vocação de cada servo de Deus, a fim de que não sejamos
absorvidos pela cultura atual, que valoriza desenfreadamente a busca constante
das opções oferecidas. Ao contrário, saibamos ordenar nossa conduta pela via da
vocação que Deus deu a cada um de nós. Portanto, é no exercício de nossa
vocação que encontraremos o caminho da liberdade.1108
Biéler, percebendo a importância do papel da Igreja na sociedade, declara
que as relações sociais naturais sofrem substancial transformação pela presença da
Comunidade Cristã, resultado da obra regeneradora na vida de cada cristão.
Vejamos suas próprias palavras:
A obra de regeneração realizada por Jesus Cristo,
manifesta-se no aparecimento de novas relações sociais
entre os homens. É na Igreja que a ordem primitiva da
sociedade, tal qual havia Deus estabelecido, tende a ser
restaurada.1109

1106
Ibidem, pp.42-44.
1107
Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 184.
1108
Institutas, Edição Especial, Vol. IV, pp. 224,225. Cf. CALVINO, João. A Verdadeira Vida
Cristã, op. cit., p. 77.
1109
BIÉLER, A. op. cit., pp. 335,336. “Tem-se, por muito tempo, debatido a questão de saber se a
ordem natural de que se percebem traços no mundo de hoje, após a Queda, era a ordem da criação,
ou se decorria ela de uma ordem estabelecida posteriormente, a ordem de conservação, que Deus
teria instituído após a Queda para manter a vida humana e impedir que o mundo se precipite no
caos a que o arrasta o poder destrutivo do pecado. De fato, porém, a ordem natural não pode ser
reconhecida agora senão a partir da ordem que Cristo restabelece entre os homens; não podemos
349

5.6
Impactos de uma Teologia Libertária na Sociedade

Para o reformador de Genebra, a restauração da sociedade tem seu início no


seio da Igreja, estendendo-se à sociedade, alcançando suas mais diferentes áreas
através de uma prática cristã autêntica, disciplinada e voltada para a glória de
Deus e expansão do seu Reino entre os homens dependentes da graça salvadora e
libertadora de Jesus Cristo.
A concepção reformada acerca da ação do ser humano no exercício de sua
cidadania é extremamente interessante pelo fato de que a visão calvinista
recuperou a idéia de santidade em toda atividade humana, considerando-a
legítima. O pano de fundo é o fato de que o homem restaurado realiza a vontade
de Deus através de todas as suas atividades, servindo ao Pai e ao próximo, uma
vez que Deus distribuiu uma diversidade de dons entre os homens, possibilitando
a multiplicidade de funções que beneficiam a todos.
Em resposta ao chamado de Deus ou à sua vocação, entende-se, por um
lado, que tudo que envolve a vida humana diz respeito à vocação universal de
Deus, através da qual a vontade soberana de Deus alcança todas as coisas e sua
providência se estende em cada detalhe da vida humana. Por outro lado,
compreende-se, também, que a resposta humana é viabilizada pelas chamadas
vocações particulares ou específicas. Segundo Kuyper, tudo que o homem realiza,
realiza dentro da cultura, servindo-se da cultura e servindo à cultura.1110 O serviço
do ser humano à sociedade tangia sua vocação universal e específica, incluindo
também seus bens, pois, segundo o pensamento reformado, todas as coisas são
espirituais.1111

saber, fora desta revelação, qual era a ordem social natural primitiva”. Quanto ao debate teológico
referente a esta questão, cf. CHENEVIÈRE, Marc. La pensée Politique de Calvin. Genève.
Editions Labor 1937, p. 91, e CONORD, Paul. Le Problème d’Une Sociologie Chrétienne. Paris,
1936, pp. 57-77.
1110
KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 80.
1111
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., p. 410.
350

5.6.1
Impacto na Política

A política era um assunto fundamental no período da Reforma, sendo o tema


a partir do qual brotavam outras questões fundamentais. Neste sentido, a
influência da Reforma foi católica – universal – em seu impacto sobre a vida de
toda a sociedade, ainda que majoritariamente a sociedade ocidental. Ainda que a
restauração da Igreja seja a meta principal, a glória da obra de Deus, em Cristo,
alcançou sua amplitude na direção de todas as esferas da vida humana.1112
O impacto das idéias de Calvino, na esfera política, inaugurou uma nova era,
pois suas concepções concederam à sociedade uma nova direção à compreensão
de nacionalidade, em muitos lugares, e ao cerceamento das idéias despóticas e
absolutistas.1113 Por exemplo, o estado grego havia sido totalitário e nele a religião
era obrigatoriamente um meio para um propósito específico, ou seja, a própria
glorificação do Estado.1114 Já na Idade Média, foi estabelecida a concepção de
Igreja-Estado, sendo a suprema autoridade conferida ao Papa, que delegava o
poder temporal ao governante terreno para o serviço da Igreja.
Calvino passou a olhar a Igreja e o Estado como entidades interdependentes,
cada uma delas recebendo sua própria autoridade do Deus soberano.1115 Nesta
concepção, o Estado nunca é secular, nem estão a Igreja e o Estado separados
totalmente, porém recebem sua autoridade do Deus soberano. A democracia atéia
e a soberania absolutista não têm por teórico Calvino. Para ele, era fundamental
salvaguardar a independência espiritual da Igreja contra as interferências
constantes do poder público. Igreja e Estado devem ser autônomos, cada qual
cuida dos assuntos pertinentes à sua natureza.1116

1112
Ao enfatizar a soberania e glória de Deus em sua obra, Calvino entendia ser ela “certa
orientação e ajuda, para saber que deva nela buscar a fim de não vaguear incerta, ao contrário,
alcance rota segura que lhe faculte atingir sempre o fim a que a convoca o Santo Espírito”. In.:
Institutas, livro I, p. 49. Ou seja: a vocação religiosa não se expressa apenas no espectro
eclesiástico, mas se manifesta em toda a vida, em todas as esferas vivenciais.
1113
Cf. DAVIES, A. Mervn. O pensamento da Liberdade Americana, (New York, 1955), que
afirma que “Ao vencer o Absolutismo emergente, quando este ameaçava devorar toda Europa, este
(i.e., o Calvinismo) tornou possível o surgimento de uma comunidade de homens debaixo da
soberania de Deus. Assim, pois, foram postos os fundamentos da nossa liberdade,” p. 24.
1114
CANTU, Cesare. História universal. São Paulo: Ed. das Américas, 1967-1968. p. 121.
1115
SABINE, George H. História das Teorias Políticas. Rio de Janeiro / Lisboa: Editora Fundo
de Cultura, 1964. pp. 189-190).
1116
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., p. 152.
351

Segundo Calvino, a Igreja e o Estado devem viver em paz e devem cooperar


juntos em sujeição à Palavra de Deus. Cada um há de ter sua própria jurisdição. O
Estado tem autoridade nos assuntos puramente civis e temporais; a Igreja, nos
assuntos espirituais. Calvino aboliu a cláusula da lei canônica do beneficio do
clero, colocando os associados ministeriais debaixo da autoridade e em obediência
aos magistrados em todos os assuntos civis. Os magistrados, muito importantes
para Calvino, deviam estar debaixo da jurisdição do consistório nas questões
espirituais.
É claro que Calvino pensava num Estado constituído exclusivamente por
cidadãos cristãos, porque entendia que a vida individual prospera quando tal fato
ocorre, pois é baseada na verdadeira religião. Além disto, Calvino sustentava que
a vida social e política são impossíveis quando estão dissociadas da verdadeira
moralidade, que é vinculada à verdadeira religião.1117
Os governantes não têm o direito de fazer leis sobre temas referentes à
adoração a Deus e sobre assuntos religiosos; suas responsabilidades não alcançam
tamanho grau. Para Calvino, as responsabilidades religiosas estão acima das leis
feitas pelos magistrados. Qualquer interferência dos magistrados nas questões
religiosas consistiria na diminuição e aviltamento da religião, conduzindo a Igreja
ao mesmo paganismo que era marcado, na antiguidade, pela interferência dos
filósofos. Por isto, é uma idéia absurda para os magistrados cristãos abandonar os
assuntos religiosos ou então fazer destes meramente assuntos humanos.1118
Calvino desejava que o governo mantivesse as formas públicas da religião entre
os cristãos e a conservação da humanidade entre os humanos. As autoridades
civis, sendo elas cristãs, devem guardar a verdadeira religião contida na lei de
Deus, de ser violada e contaminada pela blasfêmia pública.1119

1117
KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo. Ed. Cultura Cristã. 2002, pp. 85-92.
1118
Institutas, livro IV, seção 20, 9.
1119
Institutas, livro IV, seção 20, 3.
352

Em suas idéias sobre a ordem política, é determinante o princípio básico de


Calvino da soberania de Deus.1120 Estava fortemente oposto a toda forma de
absolutismo estatal, de autocracia e de monarquia absoluta. Os reis e os
presidentes deviam ter seu poder limitado por legisladores e pela lei
constitucional.1121 O Estado é liderado por todos aqueles que são submetidos à
aceitação do povo e são aceitos por eles para o desempenho do poder.1122
Assim, os cidadãos podem, em verdade, recusar a obediência ao governante
quando este ordenar qualquer coisa contrária à vontade de Deus, pois é preciso
obedecer a Deus antes de obedecer aos homens. Porém, fora deste caso específico,
os cidadãos não devem se rebelar contra as autoridades legalmente constituídas.
Os cidadãos devem ao governo honra, obediência, serviço militar e outros
serviços, além do pagamento de impostos e orações pelo bem dos governantes.
Quanto aos governantes injustos, estes são levantados por Deus para castigar
as iniqüidades do povo e por isto devem ser obedecidos. O único recurso em tais
casos é a oração, para que Deus julgue entre as nações e dê Sua justa retribuição e
para que não seja usurpado o direito das viúvas e dos pobres.1123
Aqui se evidencia outra vez o abrangente impacto da idéia da soberania de
Deus na teologia de Calvino. Não somente o governante está debaixo das
restrições advindas da soberania de Deus, mas também os cidadãos, que são
obrigados a cumprir suas responsabilidades e cumprir suas obrigações por causa
de Deus.1124

1120
Ver também DAVIES, A. Mervn, em O pensamento da Liberdade Americana, (New York,
1955), que afirma que “Ao vencer o Absolutismo emergente, quando este ameaçava devorar toda
Europa, este (i.e., o Calvinismo) tornou possível o surgimento de uma comunidade de homens
debaixo da soberania de Deus. Assim, foram postos os fundamentos da nossa liberdade,” p. 24.
1121
Para um tratamento mais detalhado do tema da graça comum e da cultura, Cf. BAVINCK, H.,
“Calvino e a Graça Comum,” Calvino e a Reforma, pp. 117- 30, donde Bavinck sustenta que
Calvino, apesar de “sua convicção da majestade e caráter espiritual da lei moral,” é mais generoso
em seu reconhecimento do que é verdadeiro e bom, onde quer que se encontre, do que qualquer
outro reformador.” p. 120.
1122
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. São Paulo: Casa Editora
Presbiteriana. 1990, p. 147.
1123
Institutas, livro IV, seção 20, 1732.
1124
VIGUERIE, Jean de. L’institution des enfants - L’éducation en France - XVIe - XVIIIe siècle.
Paris: Calmann-Lévy, 1978. 331p. Cf. Viguerie, 1978:42.
353

Em outras palavras, o que podemos asseverar sobre tal afirmação é que,


para o reformador genebrino, qualquer autoridade deve ser acatada na medida em
ela permanece fiel a Deus e obediente às Escrituras Sagradas. “Esse ensino de
Calvino, segundo Skinner, é o pressuposto fundamental da construção e
florescimento da democracia em alguns países da Europa Ocidental, tais como
França, Inglaterra e Escócia, só para citar alguns”.1125 Para Calvino, as
autoridades são ministros de Deus e como tais devem cumprir a sua vontade, pois
são provedores para toda a sociedade1126. Ele afirma:

Por que quanta é a integridade, prudência,


clemência, moderação e inocência que deve possuir
aquele que se reconhece como ministro da justiça
divina? Com que confiança buscarão realizar sua sede
de justiça sobre qualquer iniqüidade, sabendo que
julgam por delegação do trono do Deus vivo? Com que
atrevimento pronunciarão sentença injusta com sua boca
sabendo que esta foi consagrada para ser instrumento da
verdade de Deus?1127

Nessa mesma linha de pensamento, ele ainda faz a seguinte afirmação:

[...] se existirem magistrados do povo, não é parte


de minhas intenções proibi-los de agir em conformidade
com seu dever de resistir à licenciosidade e ao furor dos
reis; ao contrário, se eles forem coniventes com a
violência desenfreada e suas ofensas contra as pessoas
pobres em geral, direi que tal negligência constitui uma
infame traição de seu juramento. Eles estão traindo o
povo e lesando – o daquela liberdade cuja defesa sabem
1128
ter-lhes ordenada por Deus.

1125
GOMES, Antônio M. de Araújo. O Pensamento de João Calvino e a Ética Protestante de
Max Weber, Aproximações e Contrastes. São Paulo: FIDES REFORMATA 7/2 (2002), p. 6.
1126
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., pp. 446-450.
1127
CALVINO, Juan. Institución de la religion cristiana. Traducida y publicada por Cipriano de
Valera en 1597 por Luis de Usoz y Río en 1858. Nueva edicion revisada en 1967. Países Bajos:
Fundacion Editorial de Literatura Reformada, 1967. Livros I e II. p. 1.172.
1128
Ibidem, p. 1.193.
354

5.6.2
Impacto na Cultura

Embora a separação entre a Igreja e o Estado tenha se realizado em Genebra


durante a vida de Calvino, é possível dizer que se converteu em uma realidade
histórica devido aos seus labores em instituir a disciplina espiritual na Igreja. A
batalha pela jurisdição espiritual do Consistório, com o direito de excomungar, era
o ponto focal na disputa travada pelo poder eclesiástico, que foi uma batalha dura
e às vezes amarga, que Calvino pelejou com o conselho de Genebra. Isto, segundo
Warfield, foi um conflito “travado entre a Igreja e o Estado, que tinha por
propósito separar um do outro.”1129 E ainda que todos os filhos espirituais de
Calvino não tenham apreciado isto suficientemente, ele queria uma Igreja
autônoma em sua própria esfera espiritual.
Este juízo de Warfield se confirma pela pregação de que Calvino também
libertou toda a esfera da cultura da tutela da Igreja. Calvino rechaçou o esquema
da natureza e graça de Aquino, no qual o mundo está dividido em duas metades, a
superior e a inferior, dadas respectivamente ao domínio da fé e da razão.1130 Nesta
visão, a graça inclui a religião, a ética, a teologia e a Igreja; porém, a natureza está
no âmbito da cultura, incluindo todas as atividades naturais do ser humano.
Dando-se conta da inadequação em colocar ambas as esferas no mesmo patamar,
estas são colocadas em níveis de importância distintos, estando as atividades
naturais postas num âmbito inferior. Aquino e a Igreja colocaram toda a esfera da
cultura debaixo da tutela da Igreja, convertendo-se em serva da teologia.
Guilherme de Ockcam, o filósofo nominalista, opondo-se a este senhorio,
enfrenta antiteticamente os dois âmbitos, pondo um contra o outro. Ele, na
verdade, liberta a arte, a agricultura, o comércio e a indústria do poder papal, e
transfere tudo isto às mãos dos duques e reis.

1129
DAKIN, A, op. cit., p. 18.
1130
Calvino compreendeu os efeitos radicais da queda, inclusive o efeito noético do pecado, que
tornou a razão humana incapaz de chegar ao conhecimento da verdade por si mesma (Tt 1,15). E
uma vez que a queda é primordialmente uma tragédia ética, a desobediência é a característica de
tudo o que fazemos, dizemos ou pensamos. Mas Calvino também compreendeu o sentido radical
da redenção em Cristo, que restaura o homem palingeneticamente, em todos os aspectos do seu ser
Deus é o criador do cosmos e das leis que o regem, e não está sujeito às leis cósmicas, nem mesmo
às leis da lógica. Cf. Knudsen, Calvinistic Philosophy, 8-9.
355

Desta forma, converteu-se em pai de uma concepção da cultura controlada


pelo Estado, sendo o primeiro filósofo moderno a conceder abertura àquilo que se
transformou posteriormente na base filosófica do totalitarismo.1131
Agora, Calvino proclamou junto à Igreja e o Estado, uma terceira dimensão,
uma área da vida que teria existência e jurisdição separada. É chamada de
“adiáphora”, ou seja, as coisas referentes à mente, à consciência. O tribunal da
consciência é o lugar onde a moral prospera. E a mente é o local onde nenhum rei
ou soberano humano pode governar, exceto Deus, que conduz o cristão à
obediência.
Esta área não está restrita a uns poucos assuntos insignificantes de gosto e
opinião entre os indivíduos, mas inclui a música, a arquitetura, o conhecimento
técnico, as ciências, as festividades sociais e questões de todos os dias. Além de
apresentar, em suas doutrinas, as dimensões da Igreja e do Estado, Calvino
apresenta a liberdade cristã na dinâmica vivencial, da vida interior do ser humano,
sendo este responsável de prestar contas somente a Deus em sua consciência.1132
Portanto, esta doutrina da liberdade cristã se constitui uma das pedras
fundamentais da filosofia cultural de Calvino.1133
A liberdade cristã, como base da vocação cristã consiste, segundo Calvino,
no apêndice da doutrina da justificação, pois sem ela não pode haver “o correto
conhecimento de Cristo ou da verdade evangélica, ou da paz interna da
mente”.1134 Porém, quando se menciona esta doutrina, reações inapropriadas
ocorrem, segundo Calvino, devido às características das pessoas pois que,
“debaixo do pretexto da liberdade, abandonar toda obediência a Deus,
precipitando-se na mais desenfreada libertinagem; e alguns, supondo ser ela
subversiva a toda a moderação, estabelecem distinções morais.”1135

1131
DE LIBERA, Alain, A Filosofia Medieval, p. 430.
1132
Esta consciência é fruto da ação do Espírito. No comentário do Salmo 73:23, Calvino declara o
papel do Espírito na preservação dos eleitos. Ele diz “a razão de não sucumbirmos, mesmo entre
os severos conflitos, nada mais é que, recebemos o cuidado do Espírito Santo. Realmente, Ele nem
sempre põe sobre nós o Seu poder de um modo evidente e notável, (pois Ele nos aperfeiçoa em
nossa fraqueza), mas é suficiente que Ele nos socorra, ainda que sejamos ignorantes e
inconscientes disto, que Ele nos sustenta quando nos humilhamos, e ainda nos levanta quando
caímos” (John Calvin, in loci, The Works of John Calvin. In.: Ages Digital Library).
1133
Para Calvino, a liberdade espiritual do cristão não suprime os tribunais, as leis e os
governadores, e é perfeitamente consoante com o serviço civil (Ibid., IV, 20, 1).
1134
Institutas, livro III, p. 19.
1135
Institutas, livro III, capítulo 3.
356

Estas são as reações do mundano e do asceta. Calvino se opõe igualmente a


estes males, à mundaneidade e à fuga do mundo. Sem dúvida, isto o converte num
neutralista, não no sentido de que não assume uma posição definida, mas opondo-
se rigorosamente a estes dois extremos.
Está claro, na sua abordagem da essência da liberdade cristã, que esta é
espiritual. Consiste na liberdade em relação à escravidão da lei e a restauração da
obediência voluntária à vontade de Deus, fruto da oferta de sua graça, na pessoa
de Jesus Cristo, que insere o homem numa relação de aliança com Deus. Posto
que o ser humano esteja livre da lei, como instrumento de salvação ou
condenação, a resposta à graça de Deus é a obediência vinculada à nova adoração
ao Deus de toda graça e à alegria em servir.1136 A liberdade consiste num caminho
de fé, marcada pela virtude. Porém, as mentes ainda servas que se inclinam para
as luxúrias e demais obras reprováveis, não têm parte na liberdade que Deus
concede aos seus filhos.1137
Entretanto, se todo o esforço cultural é possível devido à liberdade, porém,
pode se converter em prejuízo, dependendo da fé de cada um, pois tudo o que
provém de fé consiste em um ato benéfico e positivo. E tudo o que não está
edificado sobre a fé consiste em pecado. Toda a cultura apóstata é egoísta, por ser
baseada nas concepções de que o ser humano pode ser salvo pelos próprios
méritos e acaba exaltando a glória humana que, para Calvino, não existe por si,
mas só pode ser dada por Deus. Porém, a doutrina da justificação pela graça
mediante a fé, com seu apêndice na liberdade cristã, faz o ser humano livre para
servir a Deus em seu chamado cultural.1138

1136
Cf. Institutas, op. cit., p. 230.
1137
A doutrina da expiação reflete isto, segundo Calvino: “Para um sacerdote, cuja função era
apaziguar a ira de Deus, socorrer os desventurados, restaurar os caídos, libertar os oprimidos, seu
primordial e extremo requisito era demonstrar misericórdia e criar em nós tal senso de comunhão.
Pois é muito raro que aqueles que sempre vivem afortunadamente simpatizem com os sofrimentos
alheios. O Filho de Deus não tinha necessidade de passar por alguma experiência a fim de
conhecer pessoalmente a emoção da misericórdia. Entretanto, Ee jamais nos teria persuadido de
sua bondade e prontidão em socorrer-nos não fosse Ee provado pelos nossos próprios infortúnios.
Fiel significa verdadeiro e justo. É o oposto de um impostor ou alguém que não cumpre o seu
dever. A experiência de nosso infortúnio faz de Cristo Alguém tão pleno de compaixão, que o
move a implorar o auxílio divino em nosso favor. Que mais podemos desejar? Para fazer expiação
por nossos pecados, Ele se vestiu de nossa natureza, para que pudéssemos ter, em nossa própria
carne, o preço de nossa reconciliação. Em uma palavra, para que pudesse nos levar consigo, para
dentro dos Santos dos Santos de Deus em virtude de nossa comum natureza.” Cf. Hebreus, op. cit.,
pp. 78-79.
1138
Enquanto Zwinglio estabeleceu os primeiros fundamentos religiosos, seu trabalho foi
continuado e aperfeiçoado pelo seu sucessor em Zurique Henrique Bullinger (1504 - 1575) e por
João Calvino, em Genebra, os quais uniram os dois caminhos religiosos de Zurique e Genebra à
357

Kuyper, em suas Conferências Stones, assinala este ponto quando recorda


que a liberdade do ser humano, após a mentalidade medieval, consistia em ganhar
a salvação pelas obras, e isto possibilitou a emergência do mundo moderno com
suas ciências, indústrias e inventos.1139 Porém, a ênfase de Calvino sobre o uso
apropriado dos bens deste mundo tornou possível o pensamento de que, aqueles
que são cristãos, são agentes culturais que têm domínio sobre a terra e devem
exercer este domínio de forma consciente para poder expressar em sua vida a
verdadeira vida em liberdade, usando-a para glória de Deus.1140
Calvino sustenta que a vocação de todo ser humano é concedida por Deus,
da qual se deriva uma consolação peculiar, ou seja, que “não há obra alguma tão
humilde e tão baixa que não resplandeça diante de Deus, e será muito preciosa em
sua presença.”1141 Com isso em mente, consideremos agora algumas das
contribuições de Calvino no campo da economia.

5.6.3
Impacto na Economia

Quando pensamos na influência da Igreja nas esferas da vida, o sistema


calvinista torna-se imprescindível para o nosso tempo, visto que, na sua
concepção, a vocação da Igreja possui uma dimensão integral. Não poderia ser
diferente sua visão acerca do mundo econômico, ou seja, para Calvino, o uso
cristão dos bens tem a ver com a forma como ordenamos a vida, visto que “se
temos que viver, também precisamos utilizar os recursos necessários à vida”.1142

salvação, ou seja, o Zwinglianismo e o Calvinismo, e estabeleceram a base comum da confissão


calvinista na Suíça: a Confessio Helvetica (prior,) de 1536, o Consensus Tigurinus, de 1549 e,
afinal, a Confessio Helvetica (posterior), de 1566. Nestas está presente a idéia da justificação que
encaminha o homem ao seu chamado cultural. Cf. Locher, p. J 91-94. LOCHER, G.; ZWINGLI,
W. Und die schweizerische Reformation [= Z. e a Reforma na Suíça] ihrer Göttinen: Vandenhoek
& Ruprecht, 1982. (Die Kirche in ihrer Geschichte, v. 3).
1139
KUYPER, Abraham. Calvinismo. As seis palestras dadas por Kuyper constituem a referida
obra traduzida para o português, pelo Dr. Ricardo Gouvêa.
1140
KUYPPER, Abraham. Calvinism: Six Stone Foundation Lectures, (Grand Rapids, 1943), pp.
117-130.
1141
Institutas, livro III, 10, 6.
1142
Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 218.
358

Nesse sentido, o reformador genebrino estabelece o princípio da mordomia


cristã, ou seja, cada cristão é um administrador dos recursos dados por Deus,
como frutos de sua misericórdia, a quem devemos prestar contas no devido tempo,
bem como ter a consciência de que o que temos não nos pertence, pois tudo
pertence a Deus.1143
Assim, do ponto de vista do mundo da economia, chama-se ciência da
economia porque ela estuda a satisfação das necessidades físicas, em busca do
bem-estar material do ser humano, tanto como indivíduo, quanto na dimensão da
sociedade.1144
Calvino tem muito a dizer em todos os seus comentários sobre este amplo
tema, já que os seus sermões estão repletos de referências sobre as necessidades
físicas do ser humano. O elemento particularmente notável acerca da pregação de
Calvino sobre questões econômicas é seu caráter existencial, ou seja, grande parte
do que diz está vinculado a situações concretas. Calvino, por exemplo, não
somente condena a mendicância, mas também admoesta os crentes a tratarem de
forma amorosa e bondosa aqueles que foram submetidos a tal situação
vexatória.1145
Três temas chamam nossa atenção quando se mede o impacto econômico
das idéias e práticas de Calvino em Genebra, principalmente no tocante às
questões referentes à renda, quando cruzadas às idéias primitivas de
comunismo.1146

1143
Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 223.
1144
“Pela gratuita misericórdia de Deus a vontade é convertida ao bem, e convertida, persevera
nEle. Que, quando a vontade do homem é guiada ao bem, e que, depois de ser encaminhada, seja
também constante nEle, tudo isto depende unicamente da vontade de Deus, e não de algum mérito
seu” (Institución, vol II.3.14, p. 213).
1145
Sermões, Deut. 15:1112; 26:16). Ver também P. A. Diepenhorst. Calvijn en de Economie,
(Wageningen, 1904). O que segue no texto é um extrato da dissertação do Dr. Diepenhorst, que
consultou as obras de Calvino no Corpus Reformatorum. Apesar das referências nos sermões e nos
comentários, a teoria de Calvino sobre este assunto é apresentada em seu Concílio.
1146
Calvino entende que o uso das benesses da criação é válido. Ele afirma: “Prescindamos, pois,
daquela inumana filosofía que não concede ao homem o uso das criaturas de Deus que é
estritamente necessário, e nos priva sem razão do lícito fruto da liberalidade divina, e que somente
pode ter aplicação despojando o homem de seus sentidos e reduzindo-o a um pedaço de madeira.”
(Institutas, livro III, 10, 3).
359

A proibição da existência de rendimentos foi um dos fatores mais


importantes da vida econômica da Idade Média. Esta proibição estava sustentada
pela Escritura.1147 Ainda no século dezesseis, essa era a opinião comum, da qual
não se desviaram nem reformadores e nem humanistas.
Portanto, em primeiro lugar, Calvino se tornou exceção à regra. Ainda que
tenha percebido os perigos que a prática da usura e da ilegalidade econômica
trariam para o seu tempo, ele proibiu que isto fosse impedimento para desenvolver
concepções bíblicas para a utilização de recursos financeiros.1148 A autoridade da
Palavra e a liberdade cristã foram o binômio a partir do qual Calvino estabeleceu
novos critérios para a vida econômica.
O que é ainda mais significativo é a afirmação de que Calvino defende o
lucro e a exploração dos recursos, a fim de torná-los ainda mais produtivos. Nesse
aspecto, Calvino refuta a idéia de Aristóteles de que o dinheiro é improdutivo e
assinala as inúmeras possibilidades quando utilizado na indústria, visando ao
bem-estar social. No entanto, enfatiza que os recursos financeiros devem servir ao
pobre, a quem devemos emprestar sem esperar devolução.1149 Em resumo,
Calvino distingue entre a caridade cristã e os negócios, o que abriu as portas para
grandes investimentos no comércio e na indústria.1150
Por isso, Calvino recebeu louvor, no tocante a esta marca da sua teologia,
por parte de muitos economistas.1151 Além dos economistas, sociólogos, como
Max Weber, seguido por R. H. Tawnee, dão crédito a ele por estabelecer os
fundamentos das modernas relações capitalistas.1152 Não há razão para negar ou
depreciar esta conexão, já que é inegável que o espírito do capitalismo está de fato
invariavelmente ligado aos preceitos calvinistas, com sua elevada consciência
ética e sua cautela contra o abuso da liberdade, responsável pelos excessos do
duro individualismo do século XIX, ainda que produzisse o fortalecimento do
conceito de liberdade religiosa, que culminou, também, no fortalecimento das
concepções de liberdade política.

1147
Cf. Lucas 6:35; Deut. 23:19; Salmo 15 etc.
1148
DIEPENHORST, P. A. Calvin en de Economie, (Wageningen, 1904), p. 123.
1149
Comentários, sobre Êxodo 22:25; Lev. 25:25-28; Deut. 23:19, 20.
1150
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., pp. 215-220.
1151
DIEPENHORST, P. A. op. cit., pp. 139, 153-71.
1152
A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (New York, 1931) 2 vols. A Religião e o
Surgimento do Capitalismo, Holland Memorial Lectures, 1922, (Penguin Books, Inc. New York).
360

A comunidade influenciada pelo calvinismo era marcada pelo senso de


cooperação mútua e pela busca do bem comum. Ainda que Calvino desse ênfase
ao indivíduo no sentido de apreciar e estimular a pessoalidade, ele falou menos
disto do que da vida comunitária da Igreja e do Estado.1153
Neste aspecto, Weber analisa não a teologia de Calvino propriamente, mas
os escritores puritanos como sua fonte, já que a idéia individualista e materialista
da obtenção da segurança da salvação por meio das boas obras não se encontra no
reformador de Genebra.1154 Um exemplo disso foi a resistência dos ministros de
Genebra, que inequivocamente se opuseram à proposição dos mercadores em
estabelecer um banco na cidade em 1580. Os ministros usaram o argumento de
que não queriam que Genebra se tornasse um lugar forte a partir da pobreza
alheia.
Em segundo lugar, é necessário considerar o conceito calvinista da vocação
para o comércio em particular. Os comerciantes, durante a Idade Média, eram
considerados uma classe estéril, enquanto a agricultura era exaltada e os
agricultores, tidos em maior estima.1155

1153
Calvijn Als Mensch En Hervormer, pp. 122-125.
1154
Calvino afirma que “é uma notável e brilhante prova de seu inestimável amor, que o Pai não
hesitou em entregar seu Filho para a nossa salvação.” Ver Romanos, p. 300. A implicação disto é
“porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas”. Para Calvino, não há lugar para
as boas obras naquilo que é fundamental para garantir a salvação, já que Cristo foi-nos dado como
meio revelador do amor de Deus (Jo 1:14; 3:16; Hb 1:3). A obra realizada por Cristo, foi realizada
em nosso favor, e em nosso lugar, como também uma dádiva graciosa para desfrutarmos (Rm
5:10). Se em Cristo, o Pai reconciliou-nos com Ele, afirmar a eficácia das boas obras seria perder
toda a obra do seu amado Filho. Calvino ainda afirma: “quando o cristão olha para si mesmo, ele
não vê motivo para ansiedade, na verdade, nenhum desespero; mas, visto que ele foi chamado à
comunhão com Cristo, então não pode pensar de si mesmo, no tocante à segurança da salvação, de
nenhuma outra forma senão como membro de Cristo, fazendo, assim, suas todas as bênçãos de
Cristo. Dessa forma, ele se assegurará da esperança da perseverança final (como é chamada) como
algo garantido, caso ele se considere um membro de Cristo, Aquele que jamais pode falhar.” (In:
comentário de 1 Coríntios, p. 40).
1155
Nisbet, em seu sugestivo livro “História de la idea de progreso", assinala a etimologia da
palavra progresso citando trecho do poeta latino Lucrécio, no qual o autor de "De Natura Rerum"
(Sobre a natureza das coisas) fala a respeito da evolução técnica e cultural: E a navegação, a
agricultura, a construção de paredes, a invenção das leis, e as armas, as estradas, os vestidos e toda
classe de invenções semelhantes, e também todas as que não proporcionavam senão gosto, a
canção, a pintura, e a escultura, foram inventadas à força de experiências, de necessidade e de
dedicação. E assim, pouco a pouco, avançando passo a passo ("pedetentim progredientes") (grifo
meu) as foram aprendendo e melhorando. Deste modo, o tempo, pouco a pouco, provoca os
descobrimentos das coisas, que a razão eleva à luz. Viram, pois como as coisas, umas após outras,
iam tornando-se mais claras em suas mentes, até que graças ao seu engenho chegaram ao mais alto
nível. In.: NISBET, Robert. História de la idea de progreso. Barcelona: GEDISA, 1981, p. 71).
Nesta citação, percebe-se que o progresso está vinculado ao desenvolvimento agrícola e da
proteção das terras.
361

Calvino não estima em demasiado uma, em detrimento da outra.1156 Sobre o


comércio, afirmou Calvino, que este não levou à queda de Tiro, mas apenas ao
deleite excessivo em relação às coisas mundanas. A Babilônia não foi condenada
pelo reformador por causa da sua prosperidade e luxo produzidos pelo comércio,
mas pela arrogância e orgulho.1157
Indubitavelmente, as idéias de Calvino sobre os limites e liberdades no
comércio refletiram na evolução das relações econômicas do seu tempo. Porém,
foi especialmente sua compreensão de que toda vocação é uma honraria concedida
por Deus, que consiste no fundamento da sua apreciação pelos comerciantes.1158
Desde que a Igreja havia glorificado o martírio e posto seus olhos em
direção às realidades celestes, o trabalho havia sido depreciado, apontado como
tendo uma natureza inferior, mundana.
A perfeição cristã há de ser buscada dentro da vocação cristã, jamais fora
dela. Calvino não rechaça totalmente a concepção de perfeição cristã, mas afirma
que a busca desta acaba tornando as pessoas facilmente inclinadas às
superstições.1159 Isso ocorre quando fazemos uma obra, crendo ser ela necessária
ou imprescindível para a salvação.

1156
Cf. Comentários sobre Oséias 12:8; Gen 47:19-23; João 2:16b; Isa. 23:2.
1157
Comentários sobre Isaías 47.
1158
Um exemplo: Babilônia não foi condenada pela prosperidade e luxo produzidos pelo comércio,
mas pela arrogância e orgulho. Cf. Comentário sobre Isaías, p. 47.
1159
Calvino entende que a perfeição não pode ser alcançada por méritos humanos, já que Jesus é o
único que é perfeito e apresenta perfeitamente Sua vida em nosso favor. Ele afirma: “Para um
sacerdote, cuja função era apaziguar a ira de Deus, socorrer os desventurados, restaurar os caídos,
libertar os oprimidos, seu primordial e extremo requisito era demonstrar misericórdia e criar em
nós tal senso de comunhão. Pois é muito raro que aqueles que sempre vivem afortunadamente
simpatizem com os sofrimentos alheios. O Filho de Deus não tinha necessidade de passar por
alguma experiência a fim de conhecer pessoalmente a emoção da misericórdia. Entretanto, Ele
jamais nos teria persuadido de sua bondade e prontidão em socorrer-nos, não fosse Ele provado
pelos nossos próprios infortúnios. Fiel significa verdadeiro e justo. É o oposto de um impostor ou
alguém que não cumpre o seu dever. A experiência de nosso infortúnio faz de Cristo Alguém tão
pleno de compaixão, que O move a implorar o auxílio divino em nosso favor. Que mais podemos
desejar? Para fazer expiação por nossos pecados, Ele se vestiu de nossa natureza, para que
pudéssemos ter, em nossa própria carne, o preço de nossa reconciliação. Em uma palavra, para que
pudesse nos levar consigo, para dentro dos Santos dos Santos de Deus em virtude de nossa comum
natureza.” João CALVINO – Exposição de Hebreus, 1997, pp. 78-79.
362

Calvino rechaçou a cruel e inumana filosofia dos estóicos no que defendia e


apreciava os prazeres sensuais e mentais ordinários da vida. Para ele, pecado não
residia na matéria, senão que tem seu assento no coração. O mal não está no
mundo formado de cores, sons, alimentos, bebidas ou vestes, concedidas pela
bondade de Deus, mas está no abuso e exagero, na libertinagem desenfreada. A
santidade não se alcança por se evitar certos benefícios e prazeres ou por rechaçar
os dons de Deus, mas por aceitá-los pela fé e usá-los para a sua glória e para a
edificação da Igreja.1160
Finalmente, é apropriada uma palavra a respeito da atitude de Calvino
concernente ao comunismo. Naturalmente, não é possível usar este termo segundo
a concepção desenvolvida por parte dos teóricos socialistas e comunistas do
século XIX. Nos dias de Calvino, é possível encontrar uma comunidade de bens
apoiada por alguns anabatistas e pelos libertinos. Os primeiros negavam a graça
comum e a autoridade final da Palavra.1161
Para concluir estes comentários acerca da influência de Calvino no campo
da economia, é necessário observar que Calvino estava profundamente interessado
na justiça social.1162 Quando se afirma que ele tenha introduzido o socialismo em
Genebra, esta afirmação se baseia no fato de que ele

1160
Cf. Sermões sobre Deut. 11:15; 12:15; 22:5; ver também comentários sobre I Sm. 25:26-43;
Amós 6:4; Tiago 5:5; Isa. 3:16; e muito mais sobre este mesmo tema nas Institutas, op. cit., vol.
III, 19, 9, 10; III, 10.
1161
Os anabatistas surgiram nos cantões suíços como conseqüência importante do debate, de onde
surgiram conflitos entre Zwínglio e os seus partidários radicais, como Conrado Grebel (1498 -
1526), que não somente defendeu uma separação clara da Reforma e da autoridade secular, mas
também realizou, em janeiro de 1525, o primeiro batismo de um adulto no cantão de Zurique e
iniciou, dessa maneira, o movimento dos anabatistas suíços. A partir desses dois debates
religiosos, uma multiplicidade de reformas referindo-se a todas as áreas do Estado e da sociedade
foi realizada na cidade. O próprio Zwinglio defendeu a sua posição em diversos escritos novos,
entre eles a sua obra principal de 1525 com o título De vera et falsa religione [...] commentarius
[Comentário sobre a verdadeira e a falsa religião].In: Zwingli: Schriften. Vol. 3, pp. 31-452. para
os anabatistas, também conhecidos como representantes da reforma radical, a disciplina tinha um
caráter quase sacramental e radicalizaram, à semelhança dos puritanos ingleses, a teologia luterana
do sacerdócio universal de todos os crentes, que rompia com toda hierarquia clerical, a favor do
livre-exame da Escritura e da liberdade da consciência. (HILL, C. Intelectuals Origens Of English
Revolution: Revised Edition). A versão brasileira, publicada pela Companhia das Letras, é baseada
na antiga edição inglesa. Nessa nova edição revisada, Hill destaca a influência de Tyndale na
formação intelectual da revolução inglesa, citando como fonte deste novo entendimento sua
biografia escrita por David Daniell. Hill entende que Tyndale lançou bases para a contestação
política puritana durante o reinado de Charles I. Cf. HILL, C. O Eleito de Deus. Companhia das
Letras). Soma-se a estas características a idéia de que os cristãos não estavam sujeitos à obediência
ao governo civil, tese esta combatida por Calvino (Institutas, livro IV, xx, 5).
1162
Calvino sempre se mostrou preocupado com a situação do próximo, sobretudo os
desprivilegiados e os pobres. Sobre isto, afirma Wallace: “Do púlpito, ele muitas vezes saía de seu
estilo para incitar a consciência de seus ouvintes sobre seu dever para com os desprovidos
financeiramente ao seu redor. Quando ele pregava sobre a proibição do Antigo Testamento de
363

[...] emprestou o talento de sua mente e


conhecimento legal para uma codificação das leis da
cidade, e para o melhor ajuste de seus impostos [...]. A
saúde da cidade era a melhor por sua ajuda na construção
de hospedarias e hospitais. Interessou-se nos métodos de
calefação e de proteção contra os incêndios; graças a ele
foi reavivada a indústria de tecelagem.1163

Doumergue afirma que “ao reabilitar o trabalho artesanal e ao prescrever a


educação para todos, Calvino diminui, em grande medida, as distinções de classe
na sociedade.”1164 Sem dúvida, ainda que possamos reconhecer que Calvino não
estava oposto à legislação social, seria um abuso falar de seus esforços para
estimular a empresa e a iniciativa privada, significando literalmente o socialismo.
Calvino não era um coletivista em nenhum sentido da palavra.1165
Finalizando este ponto, encontramos nas palavras de Biéler uma excelente
afirmação contra qualquer tentativa de atribuir a Calvino a responsabilidade
primeira de ser ele o pai do capitalismo. Vejamos:

Pelo fato de que outorgava à fé o campo inteiro da


atividade humana, que o cristão deve submeter ao
senhorio de Cristo, conferiu Calvino,
incontestavelmente, ao trabalho, ao labor econômico e ao
dinheiro, um lugar que não tinham até então e que devia
permitir aos calvinistas aí engajar todas as virtualidades
humanas e sociais.1166

despojar o devedor pobre de um penhor insuportável por seu débito, ele falava em voz alta que
pode ser ouvida hoje como um reclamo de que nenhuma sociedade deve privar qualquer homem
da oportunidade de trabalhar para seu sustento.” In.: WALLACE, Ronald. Calvin, Geneva and the
reformation. Grand Rapids: Baker Book House Company, 1990, p. 123.
1163
TAYLOR, Henry Osborn. Pensamento e Expressão no Século Dezesseis. (New York, 1920),
Vol. I, pp. 423, 424.
1164
WALLACE, Ronald, op. cit., p. 142.
1165
A Religião foi um fator importante para favorecer ou obstaculizar o desenvolvimento da
cidadania. A versão calvinista do protestantismo reforçou o individualismo e favoreceu a cidadania
colocando ênfase na sociedade, e não no Estado. Ver: HERMET, G. (1991) “Des Concepts de la
Citoyenneté dans la Tradition Occidentale”. Métamorphoses de la Représentation Politique au
Brésil et en Europe. Paris. Edit. Centre National de la Recherche Scientifique.
1166
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., p. 661.
364

Diante de tal fato, não podemos afirmar que Calvino foi o pai do
capitalismo em sua evolução histórica e como o temos hoje nem podemos negar
que sua visão não o fazia prisioneiro de nenhum “sistema fechado de moral
econômica e social”.1167 Pela capacidade de colocar a fé no exercício integral da
vida, por outro lado, o reformador contribuiu para o desenvolvimento de tal
sistema, mas sempre sob a soberania de Deus e os princípios do amor e da justiça
para com os homens, jamais com suas próprias regras, e ainda dentro do contexto
histórico no qual estava inserido.1168

1167
Ibidem, p. 661.
1168
Ibidem., p. 661.
365

Conclusão

A modernidade e a pós-modernidade se caracterizam pela grande evolução


tecnológica, científica, social, cultural, e também pela quebra de grandes
paradigmas. O impacto da modernidade sobre a fé foi avassalador, sobretudo, no
auge do Iluminismo. Na pós-modernidade, a fé cristã se vê desafiada a integrar
sem perder-se, fruto da pluralidade e da subjetividade, do derretimento da própria
racionalidade.
Nesse sentido, a Igreja se vê com o compromisso de enfrentar muitos
gigantes, entre os quais, ela mesma se constitui em um de seus grandes algozes.
Responder a esse tempo, repleto de interpelações, tem sido o grande desafio da
Igreja. Neste tempo, proclamado como o tempo da liberdade absoluta,
paradoxalmente, do ponto de vista religioso, avistamos certo retorno ao
fundamentalismo, até como forma de assegurar sentido de vida, diante da
realidade niilista em que se encontra o homem.
É diante desse cenário que a Igreja emerge para estabelecer uma conexão
sólida entre a proclamação do Evangelho e a liberdade. A Igreja carrega, no
cumprimento de sua vocação, a mensagem libertadora do Evangelho de Jesus
Cristo, pela via da inculturação. Portanto, o que enfatizamos neste derradeiro
capítulo foi exatamente o resgate daqueles paradigmas contemplados no capítulo
terceiro, iniciando com a fundamental importância do querigma libertário, que não
apenas liberta o homem, mas a própria Igreja como anunciadora. O querigma à luz
das Escrituras não pode ser viabilizado sem os elementos cristológico e
soteriológico, desvelando a pessoa do ser humano, como imagem e semelhança de
Deus, mas também separado do seu Criador pelo pecado. Posto isso, verificamos
o novo homem em Cristo Jesus e as implicações éticas a partir do Evangelho para
a sua nova realidade de vida no contexto da pós-modernidade. Por isso,
verificamos algumas das influências de uma teologia libertária na sociedade, fruto
da ação da Igreja.
366

6
CONCLUSÃO

A proposta de nossa pesquisa objetivou levantar a questão da Liberdade


Cristã à luz do reformador João Calvino no contexto na modernidade e da pós-
modernidade. Em face de tal cultura, repleta de luzes e de sombras, a vocação da
Igreja no cumprimento de sua missão querigmática e a relação com a Liberdade
Cristã são vitais para o processo de humanização do homem. As tensões sempre
existiram, existem e existirão no exercício do anúncio do evangelho e na liberdade
que o próprio evangelho carrega, sobretudo no atual contexto em que vivemos,
com grandes exacerbações de fundamentalismos, por um lado, e de liberalismos
na outra ponta. Por isso o objetivo da tese é discutir o tema da Liberdade Cristã
em João Calvino, na busca de oferecer uma resposta cristã e protestante ao nosso
tempo.
Para tanto, no primeiro capítulo, fez-se necessário uma leitura descritiva do
nosso tempo, verificando o atual momento histórico, sobretudo o seu ethos, vital
na constituição e formação da cultura. Por isso, contemplamos a modernidade e a
pós-modernidade em suas dimensões sociocultural, econômica, antropológica e
religiosa, estabelecendo uma definição para cada um dos seus paradigmas.
A via pela qual percorremos foi de fundamental importância não apenas para
análise do nosso tempo, mas também para obter elementos de aferição sobre o
pluralismo religioso que campeia nossa cultura, inserir o objeto de nossa tese, a
partir do lugar em que estamos e apresentar como a proposta do evangelho tem
sido apresentada no cenário evangélico brasileiro.
Um dos elementos focais da tese foi constatar o caldo religioso pluralista no
qual a cultura religiosa está inserida e como a sociedade está marcada pela
desesperança e por um vazio existencial muito grande, afetando diversos setores
da sociedade e, conseqüentemente, da vida humana, fruto de uma cultura
predominantemente marcada pelo poder do econômico, no qual as leis do
mercado é que ditam as normas das relações humanas e do próprio homem com a
criação, tornando a nossa casa um lugar praticamente inabitável.
367

Como decorrência dessa questão, trouxemos à tona as questões crísticas,


com suas implicações teológicas para o cristianismo, tendo como pano de fundo o
Diálogo Inter-religioso, visto que, como resultado da pluralidade, constatamos que
nenhuma religião pode arvorar-se de se ver absoluta em suas verdades, sobretudo,
em detrimento das demais. Na outra ponta, verificamos o fato de que todas têm o
mesmo direito à verdade. O cristianismo encontra-se nessa fluidez de verdades e
absolutos, carregando em si verdades absolutas. Verificamos os desafios de se
viver a fé cristã nesse contexto, tendo que transitar e se colocar entre os
paradigmas exclusivista, inclusivista e o pluralista no diz respeito às questões
cristológicas e soteriológicas.
Ainda pior foi constatar uma presença evangélica na sociedade alienada e
alienante, em muitos dos seus segmentos, vencida, também, pela cultura de
mercado, oferecendo um evangelho descaracterizado, uma fé tornada produto e
comercializada – e com ela toda uma linha de produtos que anunciam a
felicidade. Nesse contexto, mais do que nunca, as portas se abriram para a perda
dos valores morais, éticos, religiosos, com sua máxima relativização e com sérias
conseqüências para as estruturas familiar, social, cristã, educacional, apenas para
citar algumas.
E mais, o grande paradoxo pós-moderno é que o homem não deixou de ser
religioso, ao contrário, mas agora é adepto de uma religião de consumo, alinhada
aos ditames mercadológicos cujo centro é antropológico. É uma religião em
detrimento de uma espiritualidade integral, relevante, significativa e marcante. Eis
o grande desafio para intercambiar o querigma da Igreja e a liberdade cristã, tendo
como interlocutores os homens e as mulheres vencidos por essa cultura.
Emergem desse paradigma da pluralidade, como marca tangível da
modernidade e da pós-modernidade, as diversidades cristológicas, crísticas e,
conseqüentemente, soteriológicas. E o resultado final é uma multiplicidade
eclesiológica. Portanto, cremos na importância da pesquisa não só para levantar
tais questões, mas também para reforçar o papel da Igreja como agente de
transformação histórica, expressão e sinal do Reino de Deus, instrumento na
promoção de libertação no profundo serviço de resgate do vital humano pela ação
libertadora e libertária do genuíno evangelho de Jesus Cristo.
368

Entendemos que a temática da Liberdade Cristã em João Calvino só


ganharia ainda mais relevância tendo, como pano de fundo, esse quadro
sociocultural-econômico e antropológico-religioso.
No segundo capítulo, fizemos uma incursão de cunho histórico sobre o
período preparatório à Reforma do Século XVI e o Movimento propriamente dito,
que foi muito além das fronteiras religiosas, tendo repercussões na vida política,
social, econômica e cultural, bem como fornecendo caminhos para a segunda
geração de reformadores, que foi o caso de João Calvino.
Em seguida, contemplamos, de forma bem detalhada, a vida e a formação de
Calvino, os caminhos percorridos como humanista e homem dedicado aos mais
diversos estudos. Verificamos que a Reforma Protestante do Século XVI nasceu
na Alemanha, com o grande reformador Martinho Lutero (1517). Entretanto, no
contexto na Reforma, surgiu o que chamamos de Movimento Reformado, na
Suíça, num primeiro momento com Ulrico Zuínglio e, mais tarde, com João
Calvino, em Zurique e Genebra, respectivamente.
Fato importante de destaque é a constatação de que Calvino foi um dos
principais líderes e articuladores de todo o Movimento Reformado, sistematizando
as grandes concepções teologais e a estruturação da forma de governo que
marcam indelevelmente as Igrejas reformadas ou conhecidas como
presbiterianas.1169
Nada na Reforma foi conquistado ou construído com facilidade. Na verdade,
quebrar paradigmas sempre exigiu grandes esforços. Lamentavelmente a Reforma
provocou muitas baixas entre católicos e protestantes. Digo isso, porque, quando
Genebra abraçou a Reforma, em 1535, pelas mãos de Guilherme Farel, Calvino,
após ter lançado sua 1ª edição das Institutas, resolveu viajar a Paris para visitar
seus irmãos, mas, em função do período de guerras, teve que tomar outro
caminho, passando por Genebra e encontrando-se, então, com Guilherme Farel.

1169
O professor de História da Igreja, José Roberto da Silva Costanza, traz uma nota explicativa
acerca do governo da Igreja reformada ou presbiteriana, em sua apostila sobre “Os Fundamentos
Doutrinários de Calvino”. “O governo da Igreja presbiteriana é comumente chamado de sistema
misto de democracia e elementos hierárquicos, porque o poder é balanceado entre pastores e leigos
e entre congregações e os corpos de governo maiores da Igreja. Embora a estrutura de governo da
Igreja presbiteriana varie, usualmente consiste de um sistema conciliar ascendente. Cada
congregação é governada por um conselho ou consistório, composto pelo pastor e por presbíteros,
que são eleitos representantes da congregação. A congregação pertence ao presbitério, ou classe,
que coordena e governa as atividades das congregações dentro de uma determinada área
geográfica. São membros de um presbitério todos os pastores e os presbíteros representantes de
cada congregação”.
369

Genebra lutava bravamente contra a tirania do duque chamado Charles III e


do bispo, Pierre de La Baume. Assim, Farel persuadiu Calvino veementemente a
ficar e lutar ao lado da Reforma. O seu pedido fora tão contundente que Calvino
aquiesceu e aderiu ao desafio.
No entanto, depois de muitas lutas, a resistência a Calvino foi aumentando e,
em 1538, os partidos oposicionistas ganharam terreno. Calvino sofreu acusações
de que adotara posições heréticas. Como vimos, Calvino e Farel foram proibidos
de pregar no Domingo da Ressurreição, mas eles pregaram e, assim, foram
destituídos dos cargos e tiveram de deixar a cidade. Vejam como a Reforma foi
sendo construída.
Calvino passou um tempo exilado, dedicando-se ainda mais aos estudos,
mas consciente e seguro de que Deus o havia chamado para a tarefa de reformar a
Igreja daqueles dias. Genebra o quis de volta e ele aquiesceu ao chamado e foi
capaz de vencer toda a oposição devido a sua dedicação e obstinação. Pela graça
de Deus pode ser vitorioso. Este foi o segredo do seu êxito, acrescentado a sua
disposição, sua disciplina e sua infatigável energia. Tinha plena convicção de que
estava fazendo a obra do Senhor em Genebra.
Foi assim, debaixo de muitas lutas que, definitivamente, Genebra tornou-se
um centro de refugiados, uma cidade modelo, no acolhimento e na prática dos
ideais da Reforma. O coroamento do trabalho do reformador genebrino foi a
criação da Academia de Genebra, organizada em junho de 1559. Seu grande
amigo e sucessor, Teodoro Beza, foi o primeiro reitor.
Vimos, também, que, como fruto de seu vasto conhecimento, produziu
muitas obras, catalogadas e chamadas de Corpus Reformatorum, com 59 volumes,
tendo As Institutas especial destaque.
Já no terceiro capítulo, dedicamo-nos, em parte, à vida, obra e pensamento
de João Calvino. E utilizamos o mesmo espaço para o fulcro de nossa tese, que é a
temática da Liberdade Cristã, na qual verificamos o seu conceito de liberdade,
especialmente seu pensamento teológico nas dimensões antropológica,
cristológica, soteriológica e eclesiológica e a liberdade decorrente desses
paradigmas a partir do contexto da Reforma.
370

Quando tratamos das dimensões teologais em Calvino e a Liberdade Cristã


delas decorrentes, constatamos, por exemplo, que o cristianismo vem enfrentando
sérios desafios de plausibilidade, no contexto da pós-modernidade, especialmente
em seu paradigma cristológico. Nesse contexto histórico, Deus não ocupa mais o
centro, mas sim o homem.
Portanto, o verificamos, nesse novo mundo, que Deus tem sérios problemas
de habitação, pois o homem, por ter alcançado sua maioridade, já não mais precisa
de Deus e O lança cada vez mais para a margem da existência, com sérias
conseqüências éticas para o próprio homem, envolvido agora pelas religiões de
consumo, tendo, muitas vezes, o próprio cristianismo como protagonista dessa
nova modalidade.
Na verdade, o centro de nossa tese – a Liberdade Cristã – foi extraída a
partir da reflexão dos paradigmas antropológico, eclesiológico, cristológico e
soteriológico. Para o paradigma antropológico, Calvino não abre mão do fato de
que, no homem, reside a imagem de Deus, embora esteja numa situação de
alienação do Criador, vivendo em processo de ruptura consigo, com o próximo,
com a criação e, principalmente, com Deus, fruto da Queda, de sua livre atitude de
desobediência, o que o fez escravo do pecado. Portanto, somente conhecendo a
Deus é que poderá conhecer a si mesmo e vice-versa. Mas, no homem, reside a
glória do Criador, pois é o ápice, a coroa da criação.
Para o paradigma eclesiológico, temos o quarto volume das Institutas como
centro desta reflexão, no qual o reformador a apresenta como organismo vivo,
sinal do Reino de Deus, proclamadora da mensagem libertadora, agente de
transformação histórica e espaço para vivência e convivência daqueles e daquelas
alcançados pelo evangelho libertador de Jesus Cristo. Há dois aspectos
fundamentais a destacar na visão eclesiológica em Calvino, ou seja, primeiro a
busca pelo desenvolvimento de uma espiritualidade na relação com o próximo,
transformado em práxis na sociedade e, o segundo, a responsabilidade social na
concretização da justiça do Reino. Na verdade, a Igreja é chamada também a ser
vanguarda da promoção da justiça social.
371

No que diz respeito ao paradigma cristológico, o reformador busca, nele, o


seu ponto de encontro entre sua visão antropológica e eclesiológica. Para Calvino,
a redenção do homem e sua conseqüente liberdade, estão na pessoa e na obra de
Jesus Cristo. Em Cristo reside todo o propósito redentor de Deus e toda a
plenitude da graça do Pai. Verificamos três princípios na cristologia calvinista:
Primeiro, ela está em harmonia com a Escritura Sagrada e toda a tradição
cristológica. Segundo, sua cristologia traz implicações práticas para o exercício da
vida cristã individual e comunitária. Terceiro, ela revela de forma clara o projeto
redentor que norteou toda a práxis cristã em Genebra.
E, por fim, do paradigma soteriológico concluímos que somente Jesus Cristo
possui valor salvífico único e universal. Mesmo em pecado, a vida humana é
marcada pela ação de Deus, ou seja, para Calvino, foi dado ao homem conhecer e
experimentar a maravilhosa obra de redenção de Deus, na pessoa bendita de Jesus
Cristo, seu unigênito Filho, que desde os tempos mais antigos foi sendo revelado
ao homem, como Aquele que haveria de vir e que, na plenitude dos tempos, veio e
revelou em Sua face todo esplendor da graça do Pai.
Dessa forma, Deus insistiu em trazer a liberdade de volta ao homem, o que
significa dizer que o estado pós-queda do mesmo, pela graça de Deus, não carrega
em si a tragédia da palavra final sobre a história humana. Como dissemos no
corpo do terceiro capítulo, à semelhança do relato da criação: “Na qual a terra era
sem forma e vazia e o caos fazia parte daquele cenário, o Eterno Deus haveria de
intervir na história humana, a fim de transformar o trágico em restauração”. O
pecado não venceria o propósito para o qual Deus criara o homem.
Vimos, também, que a liberdade cristã, segundo o pensamento do
reformador de Genebra, é liberdade que plenifica o homem, que humaniza o
desumanizado, e que gera relações saudáveis em todas as dimensões da existência
humana. O elemento fundamental à liberdade está na oferta que Deus faz de Si
mesmo na pessoa e obra de Jesus Cristo e operada pelo Espírito Santo, outorgando
ao homem a justificação.
372

Assim, impõe-se o desafio de resgatar o conteúdo do verdadeiro do


evangelho de Jesus Cristo, sobretudo pelas Igrejas Cristãs históricas, seja
Católica, sejam Protestantes, pois cremos que a grande alternativa viável para esse
tempo será a proposta genuína do evangelho libertador, capaz de oferecer sentido
de vida ao homem, pela mediação salvífica de Jesus Cristo, com uma eclesiologia
teológica e focada nas necessidades do homem pós-moderno, não de uma
eclesiologia que atenda às exigências de uma sociedade de mercado, marcada pelo
consumismo, inclusive religioso.
Quando partimos para o quarto capítulo, buscamos uma investigação
detalhada acerca da liberdade cristã, a partir da vocação de Deus, que Se deu e Se
dá, cotidianamente, na gratuidade de Jesus Cristo, que trouxe definitivamente o
Reino de Deus e com Ele a verdadeira liberdade pelo seu estabelecimento nos
corações dos homens, através do próprio senhorio do Filho, operado pela ação do
Espírito Santo. Tudo foi verificado nas páginas dos evangelhos, desde a
Encarnação até a morte e ascensão de Jesus Cristo. Verificamos, também, o
nascimento da Igreja, espaço de vivência e convivência dos alcançados pela oferta
do Pai, tornando-se o espaço primeiro para a práxis da liberdade, pela contínua
dinâmica do Espírito Santo.
Oportuno destacar que o comissionamento do Senhor Jesus à Igreja visava a
devolvê-los à sociedade a fim de que pudessem viver a liberdade ofertada por
Deus com tal intensidade, que a missão do Filho obtivesse continuidade através de
Seus discípulos, vivendo e proclamando o evangelho, que convida à liberdade, e
agindo, concretamente, na história, para promoção de uma nova sociedade com
sinais tangíveis do Reino do Pai.
No quarto capítulo, fomos buscar, também, o conceito mais profundo de
liberdade cristã a partir da pessoa, obra e mensagem de Jesus Cristo. Na verdade,
a liberdade cristã a partir do Reino de Deus anunciada e vivida por Ele. Como
dissemos, desde a encarnação até a sua ascensão, encontramos em Jesus os
verdadeiros traços da liberdade que o Pai deseja que Seus filhos vivam. Ou seja, a
vocação de Deus para cada um de seus filhos é a liberdade em Cristo Jesus, Seu
bendito Filho, que, livremente, encarnou-se para o estabelecimento do Reino do
Pai e para salvação do homem perdido, completamente afastado do seu Criador.
373

Portanto, a grande mensagem extraída dos evangelhos é o Reino de Deus,


que, na verdade, tem culminância histórica através do Seu domínio sobre os
corações dos homens. Ou seja, o Reino anunciado e vivido por Jesus trazia como
centro da soberania do Pai sobre todas as coisas e sua ação deliberada em redimir
integralmente o ser humano. Verificou-se que Jesus não trazia um novo Reino,
mas a irrupção, a chegada, o desvelamento deste Reino que sempre existiu.
Fundamental observação é destacar que tal Reino não possuía nem possui
dimensões apenas escatológicas, mas presente, inaugurado em e com a presença e
a mensagem libertadora de Jesus Cristo.
Analisamos, de igual forma, que a Igreja nascente no contexto
neotestamentário era e é o espaço para a vivência da verdadeira liberdade,
ofertada por Deus em Cristo, tornando-se, também, um valioso instrumento de
proclamação do evangelho libertador e de ação transformadora na sociedade na
qual ela está inserida, a fim de que os sinais do Reino de Deus sejam cada vez
mais visíveis na história.
Digno de nota é a profunda relação entre Jesus e a Igreja, pois ela é vista
como o Seu Corpo. Há uma identidade espiritual e funcional da Igreja com Jesus
Cristo. Urge, portanto, destacar na pós-modernidade, que o primeiro e basilar
elemento fundante da Igreja é o cristológico. Sendo assim, emerge de tal
afirmação o fato de que a salvação é um ato exclusivo e por excelência de Deus na
pessoa de Jesus Cristo. Como dissemos, “a presença humana de Jesus Cristo e os
seus atos libertadores são a presença e os atos do próprio Deus no meio do povo e
para o povo”.
Revelamos, também, que o Espírito Santo compõe a base da Igreja
neotestamentária. Na verdade, ela só ganha vida e dinamismo pela força e ação do
Espírito. Por isso ser ela chamada de Igreja Pneumática. Somente pelo Espírito é
que a Igreja pode viver a verdadeira liberdade, expressando sua real identidade,
autenticidade, autoridade e conquistando o que mais tem faltado, plausibilidade.
Importa reafirmar mais uma vez que a Igreja está fundamentada sobre a
Palavra de Deus, que é um paradigma teológico de sua ação querigmática. No
ambiente de derretimento dos valores e da relativização de todas as verdades,
impõe-se o desafio da genuinidade da Palavra de Deus, a fim de que não tenhamos
uma anunciação evangélica superficial acerca do Jesus histórico e do Cristo da fé.
374

Assim como Igreja de Jesus Cristo, nós vivemos o tempo do anúncio e do


testemunho, sendo a continuação do Reino jamais sua totalidade, mas sinal do
Reino de Deus na história da humanidade.
No quinto e último capítulo de nossa tese, buscamos articulá-lo com todos
os demais capítulos com a intenção de confrontar a realidade pós-moderna com as
verdades bíblicas no que tange à liberdade cristã e resgatar dimensões importantes
da teologia de João Calvino, a fim de que verifiquemos a atualidade de seus
escritos e de seus pressupostos teológicos, face aos desafios inerentes à pós-
modernidade.
Lamentavelmente a constatação a que chegamos foi de que, de modo geral, a
sociedade atual procura a liberdade pelo caminho do individualismo, vivendo
drasticamente a síndrome de narciso, equivocadamente confundida como
liberdade. Fruto de uma sociedade egocentralizada.
No entanto, propusemos como encontro da verdadeira liberdade, a graciosa
oferta da Boa Notícia – o Evangelho libertador –, vivida e anunciada por Jesus
Cristo, que não apenas liberta o homem, mas o torna cada vez mais livre na
medida em que vive na dimensão do outro. Tomamos Jesus Cristo como modelo
absoluto dessa via, que, como dissemos, “ultrapassa todos os tempos e barreiras
culturais, ideologias religiosas, interesses econômicos”. Aqui, encontramos a
grande resposta do cristianismo ao mundo em que vivemos.
A beleza doutrinária do reformador pode ser vista, também, na capacidade
de olhar a Palavra de Deus como sua ação contínua na história, transformando a
vida individual, a social e a eclesiástica. O homem é desafiado a perceber-se,
diante de Deus, como pecador e alvo da graça do Senhor, como “destinatário de
uma vida nova”,1170 ao mesmo tempo.
Do ponto de vista eclesiástico, seu desafio constante, foi discernir a
realidade à sua volta, fossem realidades sociais, políticas, econômicas e
espirituais, e responder à luz da viva e dinâmica Palavra de Deus. Eis uma postura
ético-cristã sincrônica, em evolução com as novas demandas humanas. Sua ética
social é surpreendente pelo não engessamento das regras morais e pela constante
interpelação ao homem de viver a justiça do reino, imutável que é, à luz das novas
circunstâncias que vão surgindo no cenário da vida.

1170
BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., p. 668.
375

A partir da célebre frase Ecclesia reformata et semper reformanda est - A


Igreja Reformada está sempre se reformando –, há um grande desafio à Igreja
Protestante Reformada e, porque não dizer, ao cristianismo de modo geral, em
todos os lugares, com maior ou menor ênfase, de que esta precisa ser a tônica da
Igreja na pós-modernidade diante dos gritantes e urgentes desafios que requerem
da Comunidade de Fé uma postura cada vez mais adequada aos novos tempos e,
ao mesmo tempo, sem abrir mão de seus pressupostos bíblico-teológicos.
Reconhecemos que a Reforma do Século XVI nasceu com a proposta de
contestação, de mudanças radicais nas bases da fé cristã, apresentando-se como
revolucionária, libertadora e alternativa, mas, paradoxalmente, vem sofrendo os
golpes sutis de uma ortodoxia engessada, para não dizer um tradicionalismo
fechado, anacrônico, alienado de sua realidade. Ou seja, o princípio reformado
vem sendo esquecido. Eis o nosso desafio e grande tarefa eclesiológica na pós-
modernidade.
Assim, a presença e a ação querigmática da Igreja na história, evidenciam e
concretizam a realidade do Reino de Deus, uma vez que o anúncio das Boas
Novas do evangelho libertador realiza a salvação presente e plenitude salvífica
futura.
Mais do nunca a ação querigmática da Igreja precisa olhar para a práxis de
Jesus como modelo último de ação na história, pois tradições e prescrições
meramente humanas eram sempre relativizadas em função do ser humano, ou seja,
qualquer tipo de religiosidade opressora era questionado, diante de sua autoridade
e liberdade, visando a promover a liberdade do homem, na medida em que revela
a face de um Deus sem qualquer intenção de aferir as ações meritórias do homem
– religiosas – para com Ele, mas seu desejo sempre foi demonstrar a expressão
acolhedora do Pai, que chama, ama e perdoa, sem requerer nada em troca, senão a
resposta do amor. Contemplar o ministério de Jesus como modelo eclesiológico
foi perceber, claramente, sua capacidade em revelar o mistério de Deus aos
homens e mulheres de seu tempo, sobretudo, os mais simples e marginalizados.
376

Resgatar a Liberdade Cristã, no contexto da pós-modernidade, significa


ressaltar que, na verdade, toda a teologia calvinista é essencialmente cristológica,
mediada, conseqüentemente pela unicidade e universalidade salvíficas em Jesus
Cristo. Tal verdade ultrapassa a concepção teológica de que Jesus é o único
mediador entre Deus e os homens, mas concretiza a verdade da eternidade do
Verbo encarnado, eternamente concebido ou gerado do Pai, como afirma a
tradição dos primeiros e grandes Concílios.
No entanto, entendemos que tal asseveração acontece sem perder a
dimensão do diálogo religioso, o que não significa, por exemplo, que teremos que
abrir mão do que cremos. Trata-se do desafio de integrar sem se perder, anunciar,
mas estar aberto em aprender e apreender. A Liberdade Cristã abre-nos a visão
para o fato de que o Espírito Santo age livremente na história a fim de realizar o
plano redentor de Deus na pessoa de Jesus Cristo.
Os paradigmas cristológico e soteriológico são fundamentais a fim de que
combatamos, em muitos segmentos religiosos, a religião de mercado da pós-
modernidade, completamente vazada pelo poder econômico, na quais a graça de
Deus tem sido esquecida e, em seu lugar, erguida uma religiosidade
antropocentralizada e a fé comercializada.
A Liberdade Cristã transita, também, pela concepção antropológica,
demonstrando a natureza do homem antes da Queda, em profunda e constante
relação de intimidade com Deus, tendo sido criado à Sua imagem e semelhança.
No entanto, após a Queda, tornou-se um errante e em constante processo de
ruptura com o Criador. Deixou sua condição de aliado de Deus para viver
alienado dele. Como afirmamos, “a ruptura com Deus trouxe uma desintegração
do ser humano, pois a relação criatura-Criador deixou de existir em plenitude”.
Vimos que, na sábia visão de Nilo Agostini, “o vital humano fora tremendamente
afetado, alterando completamente seu ethos e trazendo danosas conseqüências à
vida pessoal e em comunidade”. Mas, para Calvino, mesmo pecador, o homem
reflete ainda traços da glória de Deus, embora em estado de morte espiritual,
portanto, carecente da graça salvadora de Jesus Cristo, único capaz de restaurar o
seu vital humano.
377

Portanto, no cumprimento de sua missão, compete a Igreja anunciar a


verdadeira e integral salvação em Jesus Cristo, única capaz de promover e integrar
o homem, restaurando-lhe todas as dimensões da vida, ou seja, salvação que atinja
seu status quo e seu modus vivendi.
Do ponto de vista das implicações éticas e da práxis libertadora da Igreja
diante dos desafios da pós-modernidade, destacamos o fato de que, para o
reformador genebrino, há muitos cristãos nominais, “não tendo nada de Cristo
exceto o título”.1171 Sendo assim, o evangelho jamais pode ser visto apenas como
uma religião meramente moral ou um amontoado de doutrinas discursivas. Ao
contrário, o evangelho libertador passa, necessariamente, por uma profunda e
radical experiência com o Cristo ressurreto, causando ao homem uma nova visão
de vida e um novo estilo de vida.
Finalmente, não podíamos deixar de falar sobre as influências do reformador
na sociedade, a partir de uma teologia libertária. Assim, temos que destacar a
grande contribuição de Calvino para a transição da Idade Média para a Era
Moderna. O reformador foi capaz de conjugar a questão da visão econômica com
a visão moral, integrando-as, embora sendo uma tarefa difícil, sobretudo para o
seu tempo, visto que a separação era comum entre os pensadores modernos e
antigos. Articulou as novas mudanças econômicas do seu tempo numa prática
diferenciada da existente até então.
Nesse sentido, Calvino enxergou as mudanças sociais a partir da Igreja,
alcançando suas mais diversas áreas, por meio de uma vida cristã autêntica e
disciplina, visando sempre à glória de Deus e a expansão do Seu Reino. Ora, se a
transformação da sociedade se dá a partir da Igreja, deduz-se a atividade de
homens e mulheres regenerados pelo Evangelho libertador, que os tornou livres
em Cristo, e que, portanto, passaram a nutrir uma nova visão de mundo,
entendendo, por exemplo, todas as atividades humanas como espirituais, visto que
o homem, nascido de novo, pratica a vontade de Deus em todas as dimensões da
vida, posto que recebesse do Pai capacitação para tal, através dos dons naturais e
espirituais. Como bem afirmou Kuyper, não há dicotomia na vida cristã, pois tudo
que ele realiza, o faz dentro da cultura, utilizando-se da cultura e servindo à
cultura.1172

1171
Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 181.
1172
KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 80.
378

Quando pensamos na influência do calvinismo, não podemos deixar a sua


relação com a cultura, extremamente positiva. Segundo o calvinismo, não há
separação ou dicotomia entre cristianismo e cultura, visto que a vida cristã é
integral e integrada com a cultura, pois todas as coisas estão sujeitas às Escrituras,
ao governo de Deus. Portanto, em última análise, são teonômicas. Daí termos
destacado a influência da fé reformada na sociedade, mormente nas áreas da
política, da cultura e da economia.
Em outras palavras, o que podemos aprender de Calvino, é uma teologia
extremamente articulada com a realidade histórica, sendo, portanto, dinâmica,
pronta a dialogar e a responder aos seus interlocutores à luz da Palavra de Deus, a
fim de que a presença da Igreja na sociedade fosse atual, relevante e jamais
anacrônica.
Ao concluir este trabalho, importa registrar a relevância e a rica experiência
de que o labor da reflexão de um teólogo da envergadura de João Calvino é, na
verdade, por um lado, um exercício profundamente desafiador e por outro, um
imenso investimento no labor teológico, que desemboca no enriquecimento do
conhecimento e amplia os horizontes para a continuação da pesquisa teológica.
Esperamos, como acontece em outros lugares, que venhamos conhecer,
aprofundar e a usufruir mais da teologia deste importante reformador. Soli Deo
Gloria!
379

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS

De Calvino

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______. Introdução ao seu Commentary on the Book of Psalms. Edimburgo:
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