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Pós-Graduação Lato
Especialização
Sensu Nível:
Curso
Psicopedagogia
Disciplina:
Aprendizagem e Contextos Sociais
Homepage: www.profjoaobeauclair.net
E-mail: joaobeauclair@yahoo.com.br
Ementa:
Objetivos:
Objetivo Geral:
Objetivos Específicos:
Definir e situar a importância das diferentes concepções dos contextos
familiares na contemporaneidade:
Discutir aspectos referentes à cultura social global do século XXI;
Conhecer e analisar as relações estabelecidas entre: a organização e a
estrutura relacional; a comunicação familiar e os diferentes estilos
familiares.
Acessar informações acerca do sofrimento relacional na família,
compreendendo a criança e o adolescente sintomáticos inseridos nas
principais disfunções familiares.
PROGRAMA:
5. METODOLOGIA
7. AVALIAÇÃO:
8. REFERENCIAIS BIBLIOGRÁFICOS
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GONÇALVES, Júlia Eugênia. Com vocês, a Psicopedagogia. In.: PINTO, Maria Alice. (org)
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6
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SIBÍLIA, P. O show do eu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p. 89-112.
TEXTOS
Texto I:
Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs/
Resumo
Nas últimas décadas, várias mudanças ocorridas no plano socioeconômico - cultural pautadas
no processo de globalização da economia capitalista, vêm interferindo na dinâmica, na
7
Em se tratando da família, Costa (2005) nos fala que esta a fim de cumprir as exigências sociais
passou a operar duplamente como formadora de cidadãos iguais, mas por meio de pessoas
desiguais e formar sujeitos realizados, por meio de consciências infelizes. A dignidade da
mesma constituiu-se por meio de alicerces precários que possibilitaram o desencadeamento
do mal-estar contemporâneo.
Já para Birman (1999), esse mal-estar se justifica pela nossa vivência em mundo perturbado e
conturbado diante do qual nossos instrumentos interiores interpretativos ficam bem aquém da
agudeza e da rapidez dos acontecimentos.
Partindo do conceito atual denominado por Debord (1967) de ‘sociedade do espetáculo’,
verifica-se, hoje, uma diminuição do espaço para reflexão sobre si, sobre os outros e sobre o
mundo, mas sim o que rege a cultura do nosso tempo é o consumo desenfreado, o
individualismo e a busca pelo bem-estar a curto prazo. Para o autor: “O espetáculo se
apresenta como uma enorme positividade indiscutível, pois seus meios são ao mesmo tempo
seus fins e sua justificativa é tautológica: “O que aparece é bom, e o que é bom aparece”.
Nesse monopólio da aparência, tudo o que fica do lado de fora simplesmente não é” (1967,
apud SIBÍLIA, 2008, p. 112).
De acordo com Sibília (2008):
Nesta cultura das aparências, do espetáculo e da visibilidade, já não parece mais haver motivos
para mergulhar naquelas sondagens em busca dos sentidos abissais perdidos dentro de si
mesmo. Em lugar disso, tendências exibicionistas e performáticas alimentam a procura de um
efeito: o reconhecimento nos olhos alheios e, sobretudo, o cobiçado troféu de ser visto. Cada
vez mais, é preciso aparecer para ser. Pois tudo aquilo que permanece oculto, fora do campo
da visibilidade – seja dentro de si, trancado no lar ou no interior do quarto próprio – corre o
triste risco de não ser interceptado por olho algum. E, de acordo com as premissas básicas da
sociedade do espetáculo e da moral da visibilidade, se ninguém vê alguma coisa é bem
provável que essa coisa não exista (p.111).
Presencia-se, assim, uma contemporaneidade marcada pela cultura do narcisismo (LASCH,
1984) e da efemeridade. Inserido nesse contexto de exacerbação de si e de desvalorização do
‘Outro’ é que se pode melhor compreender a liquidez e a fragilidade dos laços sociais.
Como cita Birman (1999): “Os destinos do desejo assumem, pois, uma direção marcadamente
exibicionista e autocentrada, na qual o horizonte intersubjetivo se encontra esvaziado e
desinvestido das trocas inter-humanas” (p. 24).
Entretanto, se de um lado nos é concedida certa liberdade de escolha, do outro o ser humano
é marcado pela ‘falta’. O ‘Outro’ cede lugar a vários ‘Outros’ cuja função primária não se traduz
como responsável pelo desenvolvimento. Tendo em vista que, para se desenvolver, o ser
humano necessita do ‘Outro’ é que se pode compreender o paradoxo no qual a
Contemporaneidade firma sua existência.
Ainda para o referido autor, a fragmentação da subjetividade trouxe como reação o
autocentramento do sujeito no ‘eu’, porém, de uma forma diferente do individualismo
moderno. Pois, enquanto a subjetividade moderna constitui-se no duplo registro da
interioridade e da reflexão sobre si mesmo, a subjetividade contemporânea sustenta o
paradoxo de um autocentramento voltado para a exterioridade, em que a dimensão estética,
dada pelo olhar do ‘Outro’, ganha destaque (BIRMAN, 1999).
Com tantas transformações e sendo esta a cultura do ‘espetáculo’ caracterizada pela atuação
performática do sujeito frente ao ‘Outro’ – objeto que lhe possibilita o gozo – e, também,
sendo esta uma sociedade narcísica é que é possível dizer que se vive hoje a cultura do fugaz,
do efêmero, dos valores superficiais e não mais centrado nas normas sociais. Tais mudanças
tendem a justificar as novas relações dentro da família.
Nessa perspectiva paradoxal a família pode ser entendida como marco fundamental das
relações sociais primárias, como célula fundamental na formação e no desenvolvimento do ser
humano e ao mesmo tempo como responsável por disseminar a neurose.
9
Segundo Alencar (1985) cabe à família – por meio de sua força modeladora garantir aos seus
membros a socialização através da transmissão de valores, crenças e costumes sociais. Sendo
assim, atribui-se a ela, também, a responsabilidade por possibilitar a união dos seus membros
baseada no amor e no afeto.
O amor e seu lugar na família e na contemporaneidade
É inegável a importância da história para a concepção do amor. Na Antiguidade a experiência
amorosa possuía um lugar marginal na vida de indivíduos e grupos. Entretanto, foi a partir do
Renascimento – com a valorização do homem (antropocentrismo) e do prazer (hedonismo) –
que ocorreu uma mudança na maneira de se conceber o amor e o afeto. Assim, pode-se dizer
que o que se convencionou chamar de amor moderno serviu para indicar a integração entre o
desejo e o prazer do homem na ordem social (LÁZARO, 1996).
É importante lembrar também que as transformações porque passa a sociedade ocidental –
séculos XVII e XVIII – tendem a desorganizar / (re)organizar os modelos sociais. Assim, o
advento da burguesia acaba por fortalecer a célula familiar como unidade de afeto uma vez
que acredita ser a família responsável por garantir aos membros um ambiente de ordem e
estabilidade. Vê-se, com isso, não somente a privatização da família, mas também a oposição
ao mundo que, por ser público, tornou-se instável (DONZELOT, 1986). Para Giddens (2002), as
transformações sociais na modernidade, principalmente fomentadas pela chegada da
industrialização e pela transformação do trabalho, vêm produzindo profundas modificações
nas subjetividades e identidades dos sujeitos e nas interações estabelecidas nas suas relações
sociais.
Para Philliphe Áries, essa nova preocupação para com a família fez com que esta assumisse
uma nova função – para além do direito privado – de se responsabilizar pelo cuidado moral e
espiritual de seus membros.
Segundo Áries (1981):
A família cumpria uma função – assegurava a transmissão da vida, dos bens e dos nomes – mas
não penetrava muito longe na sensibilidade (...). Essa nova preocupação fez com que a família
deixasse de ser apenas uma instituição de direito privado e assumisse sua nova função moral e
espiritual (formação de corpos e almas). O cuidado dispensado às crianças passou a inspirar
sentimentos novos (Sentimento Moderno da Família) (p.193).
Com isso, verifica-se que a família aparece como instituição responsável pelos afetos,
sentimentos e amor. Segundo Lázaro (1996): “As frustrações afetivas decorrentes da inserção
dos indivíduos numa rede de interdependência mais complexa e diferenciada podem auxiliar
na compreensão da fragilização dos laços sociais”(p.161).
Com base nessa conceituação e também nas mudanças que ocorreram nos relacionamentos
amorosos é possível dizer que o ser humano está cada vez mais à procura ‘de’, alterando, por
vezes, a maneira de lidar, não somente com sua forma de se relacionar, mas também com o
modo de conceber a felicidade, o prazer e a si mesmo.
Do individualismo à sociedade do desamparo: algumas reflexões
Numa perspectiva sócio-histórica e cultural, a família ocidental presenciou grandes mudanças
no que se refere ao seu processo de individualização, principalmente ao longo da segunda
metade do século XX até os dias atuais: diminuição da durabilidade dos casamentos e das
famílias numerosas; aumento do número de divórcios e de recasamentos; regularização da
união estável (antes chamado ‘Concubinato’); surgimento dos mais variados modelos de
famílias – monoparentais, nucleares, unipessoais, homoparentais, recompostas, dentre outros.
Atualmente, o elemento central que regulamenta as famílias é o espaço privado sempre a
serviço de seus membros. Segundo a visão psicanalítica, o grupo familiar detém uma função
estruturante no psiquismo do ser humano. Para Freud (1929/1994), a inserção do indivíduo no
social somente é possível por meio do Complexo de Édipo e do Complexo de Castração.
Além disso, e tendo como base a cultura ocidental, Lacan (2002) acredita que esta introduz
uma nova dimensão na realidade social e na vida psíquica e é essa dimensão que vai
especificar a família humana bem como os fenômenos sociais. Além disso, cabe à família o
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transmissão de valores, crenças e costumes da sociedade da qual está inserida para todos os
seus membros.
Já Ariès (1981) aponta para o que se convencionou chamar de “sentimento de família” tendo
em vista a formação da mesma por meio do entrelaçamento de emoções; das ações pessoais,
familiares e culturais formando o mundo familiar – espaço único para cada família, mas circular
para a sociedade e para as interações com o meio social. Trata-se, em verdade, da célula mater
da sociedade, do seu núcleo inicial, básico e regular.
Ou seja, conforme Amaral (2001), a família contemporânea fez emergir necessidades de
intimidade e de identidade entre seus membros possibilitados pela união por meio de
sentimentos, de costumes e de gênero da vida.
De acordo com Sarti (1995), a família não se resume somente a um forte elo afetivo, mas ao
próprio substrato de sua identidade social e simbólico que a estrutura e a justifica no mundo.
É sabido, também, que cada pessoa tem sua própria representação da família real e da família
sonhada, da sua própria família e da família do outro. Entretanto, a família não se traduz como
algo concreto, mas sim como algo construído a partir de elementos da realidade. De acordo
com Petrini (2003), a família encontra novas formar de estruturação que, de alguma forma, a
reconstituem sendo reconhecida como estrutura básica e permanente da experiência humana.
Por tudo o que fora exposto até o momento é possível crer que se vive, na
contemporaneidade, mudanças sociais importantes em diferentes níveis. Nesse contexto
presencia-se, por meio do regime da acumulação de capital flexível que possibilita a
emergência e a parceria com a atual globalização que produz implicações no ocidente, a
acumulação flexível que passa a valorizar o efêmero, o fugido, a novidade e a fluidez das
relações e que proporciona a instabilidade e a fragilidade das relações afetivas e familiares.
Considerações Finais
Na família se dão os fatos básicos da vida: o nascimento, a união entre os sexos, a morte. No
entanto, a história da família não é linear, mas descontínua haja vista o registro de padrões
familiares distintos com suas diversas explicações como alternativa do modelo familiar.
Nesse sentido, a família atual vai ser a concretização de uma forma de se viver os fatos básicos
da vida; ela se relaciona, mas não se confunde exclusivamente com o parentesco – relação de
consangüinidade, dependência ou afinidade. Assim e por ser considerada como estrutura
universal uma vez que existe em todas as sociedades traduz-se como grupo social responsável
pela realização e pela manutenção dos vínculos.
No mundo contemporâneo, as mudanças ocorridas na família relacionam-se com a
‘fragilização’ e/ou ‘perda’ do sentido de tradição.
Nessa perspectiva, a família contemporânea, considerada como ‘micro’ unidade de consumo e
de subsistência reflete o sentimento de se estar vivendo em um mundo incerto, incontrolável e
assustador, algo diferenciado da segurança projetada em torno de uma vida social estável.
Vive-se, com isso, a lógica da satisfação instantânea e a cultura da sociedade de consumo
desenfreado, do individualismo, do esquecimento e da inquietação. Essas mudanças de
comportamento e de regras construídas e reproduzidas através das relações sociais tendem a
repercutir diretamente sobre a família que em sua ‘primogenitura’, no que se refere às relações
sociais, sente o impacto de suas imposições narcísicas.
Por tudo isso se faz mister (re)pensar a família contemporânea considerando-se não somente a
sua base de construção sócio-histórica como também a sua singularidade imbuída numa
sociedade movida não pelo ‘desejo’, mas pela ‘falta’, pela necessidade cada vez mais perversa e
‘ditadora’ do Mercado e pela urgência de reconhecimento por aquilo que se tem e não pelo
que se é. Entretanto, cabe ainda uma difícil tarefa uma vez que, na contemporaneidade, não há
espaços para reflexões, talvez pequeninas ‘brechas’ou ‘lacunas’ que devem ser considerados e
analisados com elevado grau de importância.
E é por tudo isso que ainda é preciso e plausível acreditar que a modificação no ‘pensar’ e no
‘olhar’ de forma singular as famílias é o que possibilitará uma mudança na forma de se
considerar as práticas que permeiam suas relações. Reconhecer e aprender a contextualizar as
13
Texto II:
AS RELAÇÕES FAMILIARES NA CONTEMPORANEIDADE:
CONFLITOS E SOLUÇÕES
Juliana Barbosa Torres e Giselle Picorelli Yacoub 1
Resumo: A família, dentro das mais diversas configurações da convivência humana, obteve
sempre papel de destaque na organização do sistema social. Em grande parte das sociedades
tradicionais estudadas por antropólogos, a família era a sua própria estrutura, onde o membro
mais velho, o patriarca, exercia poder total sobre os demais. Com o fortalecimento do poder
Estatal, o domínio familiar passou a se restringir mais à vida íntima do cidadão. Com a
modernidade avançada, a configuração familiar tende cada vez mais a se diferenciar da
configuração tradicional. O objetivo de nosso estudo é, dentro desse panorama geral da
sociedade ocidental contemporânea, fazer um paralelo da transformação dos laços familiares e
a judicialização da sociedade, através do viés da resolução de conflitos. Palavras-chave: Família;
relações sociais; conflitos.
Introdução
O advento da modernidade marcou profundamente a história humana, pois trouxe um jeito
“todo novo” de experimentar o mundo. A sociedade moderna se diferencia completamente de
suas precedentes pré-modernas nas suas instituições, relações sociais e etc. Porém,
vivenciamos na contemporaneidade uma nova ordem social que já se diferencia da moderna
quando esta foi estudada pelos clássicos da sociologia como Marx, Weber e Durkheim. Muitos
autores falam em “fim da modernidade”, muitos falam em “pós-modernidade” e outros
trabalham com a “modernidade avançada”, que seria uma modernidade ainda mais moderna.
É nesse último conceito que vamos no ater para explicar como a primeira instituição social
humana conhecida, a família, se modificou até aparecer nos dias de hoje em um formato
completamente diferente da noção que se tinha nas sociedade pré-modernas e início da
modernidade. O nome família continua o mesmo, mas em seu interior, a família se modificou
completamente.
E, paralelamente, como todas as instituições sociais passaram por radicais transformações na
modernidade avançada, não foi diferente com o Direito, que é o responsável por “organizar a
sociedade” e administrar seus conflitos.
Com essa constante modificação das relações sociais, o Direito precisou e ainda
precisa, se transformar para poder atender toda uma demanda social. Nesse artigo, após
debater a noção do conceito de família na contemporaneidade através da análise de autores
que estão trabalhando incessantemente esse tema, abordaremos a transformação jurídica
ocorrida paralelamente e como esta pode se transformar para poder atender às necessidades
dessa nova organização familiar que está se formando e transformando constantemente.
1. As transformações sociais na modernidade avançada
1
CONGRESSO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR EM SOCIAIS E HUMANIDADES Niterói RJ:
ANINTER-SH/ PPGSD-UFF, 03 a 06 de Setembro de 2012, ISSN 2316-266X Juliana Barbosa
Torres1 - Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade
Federal Fluminense jubarbosatorres@yahoo.com.br Giselle Picorelli Yacoub2 - Mestranda
pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense
gisellepicorelli@hotmail.com
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A modernidade começa a surgir na Idade Média e início do Renascimento. Até os dias atuais,
foram inúmeras transformações sem precedentes históricos. Podemos dizer que hoje, vivemos
em uma época de constante transformação em praticamente todos os âmbitos da vida social e
institucional. Da sociedade tradicional para a sociedade industrial ocorreram rupturas que
demarcaram essa mudança e fizeram com que os indivíduos transformassem praticamente
toda sua forma de ação e seu olhar sobre o mundo a sua volta, transformando completamente
suas narrativas de vida.
Krishan Kumar, ao analisar o surgimento da modernidade, coloca que esta se iniciou
como uma invenção da Idade Média cristã, destacando o mundo moderno cristão do mundo
antigo pagão. Na renascença ocorreu uma espécie de retorno ao tempo cíclico antigo, através
da grande valorização que foi da a Idade de Ouro da Antiguidade, o que estava por vir era um
passado reformado, renascido”. (KUMAR, Krishan, passim, 2006).
De acordo com Kumar, o que a Renascença trouxe para a visão de mundo moderno foi
a capacidade de formular novos padrões críticos e racionais que poderiam ser usados contra
qualquer forma da autoridade intelectual. Porém, foi no século XVIII que, de acordo com o
autor, os tempos modernos finalmente ganharam vida. A modernidade deixou de significar a
cópia inferior de uma época antiga gloriosa ou o último estágio empobrecido da existência
humano e passou a significar uma ruptura: “um rompimento completo com o passado, um
novo começo baseado em princípios radicalmente novos” (KUMAR, Krishan, 2006, p.18). O
moderno passou a significar mudança, quanto mais recente no tempo maior é a mudança.
O moderno é revolucionário em si, a modernidade é uma revolução constante de
idéias e instituições, características essas, que de acordo com Kumar, levaria a modernidade a
um relativismo sem objeto. Porém, em seu surgimento, os profetas da modernidade
acreditavam em seu significado, a era moderna era vista como um ponto culminante do
desenvolvimento humano.
Ulrich Beck, como os demais teóricos da sociologia contemporânea, busca encontrar
termos chaves para diferenciar as formas de vidas sociais que se configuram na atualidade, das
vividas no inicio da chamada era moderna. O autor observa que não se cabe mais a ideia de
uma sociedade industrial, sendo assim, explica que estamos caminhando para a denominada
“sociedade de risco”.
FALTA A CITAÇÃO
“Pergunte-se o que é realmente uma família hoje em dia? O que significa? É claro que
há crianças, meus filhos, nosso filhos. Mas, mesmo a paternidade e a maternidade, o
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núcleo da vida familiar, estão começando a se desintegrar no divorcio (...) Avós e avôs
são incluídos e excluídos sem meios de participar nas decisões de seus filhos e filha. Do
ponto de vista de seus netos, o significado das avós e dos avôs são incluídos e excluídos
tem que ser determinado por decisões e escolhas individuais. (BAUMAN, Zygmunt,
1999 p. 13 apud BECK, Ulrich)
Há uma revolução global em curso no modo como pensamos nós mesmos e no modo
como formamos laços e ligações com os outros. É uma revolução que avança de
maneira desigual em diferentes regiões e culturas, encontrando muitas resistências.
(GIDDENS, 1993, p.61)
parentesco não podem estar seguras de suas chances de sobrevivência, muito menos
calcular suas expectativas de vida. Sua fragilidade as torna ainda mais preciosas.
(BAUMAN, 2004, p.47)
no denominado Estatuto das Famílias6, prevendo em seu artigo 5º que “Constituem princípios
fundamentais para a interpretação e aplicação deste Estatuto a dignidade da pessoa humana, a
solidariedade familiar, a igualdade de gêneros, de filhos e das entidades familiares, a
convivência familiar, o melhor interesse da criança e do adolescente e a afetividade”.
Assim, a dignidade da pessoa humana, como princípio informador do sistema jurídico
pátrio e, in casu, dos direitos de família, incide diretamente sobre a conceituação
contemporânea de família e seus desdobramentos.
E, diante das transformações decorrentes da modernidade, importante ressaltar o
fenômeno de “desreferencialização do sujeito” 37, no momento em que há um afastamento
entre sujeito e cidadão, estando o individualismo muito presente na vida do homem. Contudo,
a família também é núcleo de direitos e deveres e, como resultado deste afastamento, os
conflitos são inevitáveis.
Assim, o litígio, como elemento integrante da sociedade, sempre permeou a vida
humana, sendo o Poder Judiciário, órgão responsável por apresentar respostas aos conflitos.
Por meio de decisões judiciais, que determinam de quem é o direito em disputa, nem
sempre é possível abarcar e dissolver todos os litígios decorrentes das relações interpessoais.
Na atualidade estamos diante do fenômeno chamado por Kazuo Watanabe de “cultura
da sentença. Os juízes preferem proferir sentença ao invés de tentar conciliar as partes para a
obtenção da solução amigável dos conflitos. Sentenciar, em muitos casos, é mais fácil e mais
cômodo do que pacificar os litigantes e obter, por via de conseqüência, a solução dos conflitos”
(WATANABE, 2007, p. 07).
Ademais, junto a esta cultura da sentença, o judiciário vivencia aguda crise e apresenta
contumaz ineficácia da tutela prestada.
Enquanto visão patrimonialista do Código Civil de 1916, a tutela das relações familiares
tinha a finalidade principal de assegurar soluções para conflitos pontuais, de cunho material e
financeiro. Hoje, em um direito civil erigido sobre o fundamento da proteção existencial, as
relações decorrentes da convivência familiar devem ser abordadas com intuito de preservar as
relações sociais resultantes daquele núcleo, assegurando uma tutela adequada aos anseios do
cidadão, não apenas do sujeito de direitos.
Nesta direção, quando se trata da tutela jurídica da família, necessária uma adequação
direcionada para um procedimento que respeite e promova o diálogo, estando diretamente
relacionado ao respeito à dignidade do homem, levando em consideração o indivíduo como
sujeito social, dentro de suas perspectivas e peculiaridades.
Na sociedade, como na família 48, (considerada célula mater), os conflitos também são
inerentes, e os assuntos que envolvem a tutela familiar estão diretamente relacionados à
pessoa e sua dignidade, exigindo, assim, um tratamento em conformidade com essa
característica, um procedimento adequado que alcance o conflito real e permita a dissolução
da litigiosidade contida neste. O laço que antes se revestia de afeto, pode se transformar em
algema de rancor e desafeto nos momentos de crise. 5
9 O impasse familiar precisa ser abordado de maneira a esvaziar qualquer possibilidade
de cronicidade, pois as relações persistem após o procedimento de abordagem de tal
demanda. Como a crise na família é situação regular, precisa ser dissolvida por completo, seja
ela simples ou complexa. Caso contrário, a cristalização e o acúmulo de tais pelejas latentes
podem gerar “patologias” psicológicas e sociais, atingindo toda a estrutura familiar e os
elementos do tecido social, gerando danos e sofrimentos profundos àqueles envolvidos.
Com isso, tendo em vista sua natureza e sua fundamentação no afeto, os conflitos
decorrentes das relações de família tendem a retornar ao judiciário quando não são
efetivamente desfeitos610. Isto porque o modelo paternalista que circunda a decisão proferida
pelo juiz de direito não dissolve o conflito interpessoal existente, não desconstrói o conflito
real, apenas regulamenta um conflito aparente, seja uma disputa de guarda, crédito alimentar
ou um divórcio, acirrando, em muitos casos, a disputa e a litigiosidade existente
naquelarelação social.
Na jurisdição estatal, quando o juiz decide, o que se expressa é uma linguagem binária,
apresentando única alternativa – vencedor e vencido. Neste modelo, um terceiro,
supostamente com mais poder e conhecimento, tem a função de dirimir um conflito entre
pessoas que, supostamente, não têm condição de fazê-lo. Na decisão judicial não há consenso,
nem espaço de comunicação, o que há é imposição de uma regra a ser seguida. Todavia,
narelações de família, nem sempre, a solução é tão cartesiana. Por envolver subjetividades
diversas a solução deve surgir da transformação do conflito, sendo a mediação uma alternativa
eficaz, pois permite uma relação ternária, através da presença do mediador, aberta ao diálogo,
superando este binômio cartesiano de certo e errado. É possível um redimensionamento das
responsabilidades, com a compreensão do litígio e a criação de possíveis soluções.
Neste passo, os conflitos familiares vão além de um simples conflito jurídico – que
pode ser desfeito através da aplicação de norma cogente – e merecem uma atenção especial,
pois estão diretamente relacionados ao desenvolvimento do ser, da pessoa humana, de
suapersonalidade e relações sociais. Com isso, o Direito sozinho não é capaz de abordar tais
demandas, sendo a interdisciplinaridade essencial, através da articulação entre profissionais de
diversas áreas das ciências humanas – ciências sociais, jurídicas e da saúde mental -,
viabilizando a colaboração para uma melhor leitura do conflito em questão.
4
8 No tocante à noção de família, aduz Roselaine dos Santos Sarmento (2005, p.289), que “a família
constitui o alicerce mais sólido em que se assenta toda a organização social, estando a merecer, por isso, a
proteção especial do Estado: é a base da sociedade. Além disso, é a própria sementeira da democracia,
pois o lar é o lugar de onde tiramos as nossas primeiras idéias sobre nós mesmos, nossas atitudes para
com as outras pessoas, nossos hábitos e nossas estratégias para enfrentar e resolver problemas.”
5
De acordo com Gergen, citado pela psicóloga Denise Maria Perissini da Silva, “a família é um lugar de
enfrentamento, em que os problemas se estabelecem facilmente e as soluções são mais difíceis de serem
encontradas. Essa situação sugere um acúmulo de crises quando ocorre a ruptura familiar, justamente
porque às crises cotidianas somam-se a desestabilização do sistema e a fragilização das relações que
tendem a se agravar” (SILVA, 2011, p.36/37).
6
Em relação a possível ineficácia de decisões judiciais perante os conflitos familiares, afirma Eliene
Ferreira Bastos que “temos em mente que a crise familiar pode perdurar mesmo com a decisão judicial
que põe fim ao conflito jurídico. Pois, no procedimento judicial, o aspecto subjetivo, emocional, psíquico
dos envolvidos, em muitos casos, não são devidamente enfrentados e examinados” (BASTOS, 2005,
p.144).
11 www.mediation-familiale.org
20
A busca pela eficiência, por meio das reformas padronizadas e burocratizantes, como
uma medida de política judiciária nem sempre é capaz de atender às necessidades e
expectativas decorrentes de um conflito familiar, que possui natureza artesanal e peculiar,
demandando tutela adequada e especializada, possuindo a mediação, na maioria dos casos, as
técnicas necessárias e adequadas a este tipo de conflito.
A FENAMEF – Fédération Nationale de La Médiation Familiale 7 expressa excelente e
atual conceito de mediação familiar:
Texto III:
Famílias brasileiras do século XX: os valores e as práticas de educação da criança
Zélia Maria Mendes Biasoli-Alves1
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP
A família, unidade dinâmica, inserida no contexto social mais amplo e em constante interação
com ele, mantém gerações diferentes numa convivência diuturna onde se dão trocas afetivas
intensas e onde se forja a identidade primeira (Biasoli-Alves, 1995).
As diferentes áreas do conhecimento mostram que são inúmeros os ângulos pelos quais se
pode 'olhar' a família, trazendo cada um deles uma contribuição diversa para a sua
compreensão. Pode-se pensá-la do ponto de vista psicológico, como se pode analisá-la sob o
prisma social, cultural ou segundo a evolução histórica em determinadas sociedades e mesmo
a partir das leis que regem a sua formação e dissolução.
Nas colocações de Gomes (1990) a família tem especificidades que a distinguem de qualquer
outra instituição e nela se defrontam e se compõem as forças da subjetividade e do social.
Portanto, ao assumir a socialização ela levará a criança, como sujeito de aprendizagem social, a
interiorizar um mundo mediado, filtrado pela sua forma de se colocar frente a ele; assim, os
padrões, valores e normas de conduta do grupo social em que ela está inserida serão
transmitidos de modo singular à geração mais nova, que por sua vez irá assimilá-los segundo
suas idiossincrasias.
7
www.mediation-familiale.org
21
Esta é também a posição de Berger e Luckman (1985) que dentro da tradição do pensamento
sociológico afirmam que existe, em especial nos primeiros anos de vida da criança, "uma ampla
e consistente introdução sua ... no mundo objetivo da sociedade ou de um setor dela"(p. 175)
numa relação dialética em que a geração mais nova interioriza um mundo já posto, que lhe é
apresentado com uma configuração definida, de cuja construção ela não participou (Biasoli-
Alves, 1995).
Mas há que relativizar, em parte, esse tipo de postura que dá amplos, e quase exclusivos,
poderes ao ambiente. Já na década de 1960 Bell (1964,1968) inicia uma reinterpretação dos
resultados de pesquisas na área da interação mãe-criança, pondo em evidência o papel que o
nenê desempenha como fator de alterações no ambiente familiar, gerando, então, um novo
modelo considerado como bidirecional em que a socialização da geração mais nova processa-
se porque ela e o social (imediato) atuam um sobre o outro, todo o tempo.
Depois viria a introdução ao social mais amplo, que segundo Scabini e Marta (1996) acontece
num grupo especial, a família, onde existe uma organização complexa de relações de
parentesco e uma história que vai gradativamente sendo composta, gerando padrões
específicos de conduta. Ou, nos termos de Rican (1996), num grupo que se constitui como a
Matriz Básica das relações, emoções e motivos humanos, em Nicho de Desenvolvimento
(Zamberlan e Biasoli-Alves,1997) onde se concentram as condições materiais e de socialização
da criança, onde são internalizadas as normas culturais e estabelecidos os nexos básicos para o
desenvolvimento ulterior.
Tem-se a partir daí, então, que a família, ao assumir uma prole, dá origem ao processo através
do qual o elemento mais novo do grupo irá se transformar num 'eu' distinto dos outros
significativos de sua vida (Biasoli-Alves, 1995), ao mesmo tempo em que assimila e transforma
os padrões, valores e normas do grupo social em que ela está inserida.
Se, de outro lado, coloca-se a ênfase no ponto de vista psicológico, terse-á a família definida
pelas relações intergeneracionais e de intimidade (Petzold,1996). Estudá-la, pois, sob esse
enfoque, significa vê-la como o espaço em que se constitui a personalidade e focalizar
sobretudo a qualidade dos vínculos, as necessidades de pertença e de liberdade, a estrutura de
equilíbrio que se estabelece ao longo do tempo entre os elementos que a compõem.
E isso não invalida o fato de as crianças de uma cultura serem socializadas para se tornarem
adultos dentro daquela cultura e de que as idéias a respeito de desenvolvimento infantil
emerjam em contextos histórico-culturais fazendo com que qualquer explicação teórica do
desenvolvimento infantil seja um subproduto da história humana. Outrossim, reforça a
conotação de que se de um lado o indivíduo das gerações mais novas é visto como cumprindo
tarefas, de outro, ao agir, ele condiciona e reconstrói o que o rodeia, modifica o ambiente
(interno X externo) através de suas reações, necessidades e particularidades do seu
desenvolvimento - e é por influenciar quem o enfluencia que ele pode ser descrito como
produtor do próprio desenvolvimento (Belsky e Tolan, 1981). Nessa perspectiva, Lerner e Bush-
Rosnagel (1981) dizem "que as mudanças ao longo do desenvolvimento ocorrem como uma
conseqüência de relações bidirecionais recíprocas entre um organismo ativo e um contexto
ativo, e , na medida em que o contexto muda o indivíduo, este muda o contexto"(p.3). Do
ponto de vista da família, isso significa que as gerações mais velha e mais nova vão estar em
um processo constante de aprendizagem uma com a outra.
Entretanto, a literatura vem enfatizando, cada vez mais, grandes e profundas mudanças na vida
familiar e nas práticas de cuidado e educação das crianças e jovens, conseqüência natural do
conjunto de transformações por que passaram as sociedades nessas últimas décadas do século
XX e que atingiram diretamente a maneira como se compõem e convivem as famílias
contemporâneas.
É fato que as famílias ainda permanecem como a forma predominante da vida em grupo na
maior parte das sociedades ocidentais (Gundelach, 1991), e que, nesse caso, cabe a elas serem
o agente da socialização primária (Nicolacci-da-Costa, 1991), responsáveis pela determinação
de como vão se dimensionar as práticas de educação da prole, os ambientes em que as
crianças vão viver, as formas e limites para as relações e interações entre avós, filhos, netos e o
social mais amplo.
23
Contudo, as grandes alterações de valores que vêm sendo observadas fizeram-se acompanhar
de mudanças no comportamento, condicionadas pela influência de macrovariáveis. Impossível,
então, considerar que a socialização das gerações mais novas tenha se mantido a mesma ao
longo de todo o século XX, que os conceitos de ideal de criança, de adulto, que o valor e a
função da Infância, que a crença na adequação e competência de certas práticas educativas
para o controle do comportamento, tudo tenha permanecido igual, sem questionamentos.
Por outro lado, pensar a família no Brasil contemporâneo e buscar contribuir para a sua
compreensão implica primeiro dizer que não há A Família Brasiliera e sim Famílias Brasileiras
com sistemas simbólicos e padrões comportamentais diversos.
Gundelach (1991) afirma que a família francesa moderna, contemporânea, tornou-se mais
frágil e com um tamanho reduzido, se comparada à de 25 anos atrás. O número de pessoas por
habitação diminuiu influenciado, em parte, pelo aumento dos divórcios; as famílias têm menos
crianças e um fator relevante está no trabalho das mulheres fora do ambiente doméstico;
existe uma elevação da importância de valores mais democráticos tendo havido uma
transformação profunda dos valores sociais em que os libertários substituíram os autoritários,
fazendo com que nas famílias, nas escolas e no trabalho as pessoas estejam menos dispostas a
aceitar a autoridade.
E provável que estes mesmos tipos de transformação possam ser observados na realidade
brasileira, que viu predominar, ainda durante boa parte do século XX, o chamado 'modelo
moderno de família nuclear', partilhado pelas camadas médias da sociedade de consumo. A
partir de 1950 as mudanças são mais intensas e aceleradas e a família brasileira parece vir
assumindo novas formas de organização e de relações entre seus membros (Goldani,1993).
Entretanto, ainda se carece de estudos que descrevam, em detalhes, como estas
transformações foram acontecendo e seus reflexos nos modos de ser das relações entre as
diferentes pessoas que convivem numa família, incluindo-se aí as alterações nos papéis
masculino e feminino, de pais e filhos, avós, tios e primos.
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OBJETIVOS
Essa apresentação foi preparada tendo, pois, como objetivos mostrar a evolução nas formas de
criar e educar a criança, durante o século XX, no Brasil, tomando por base um conjunto de
estudos que vêm sendo levados a efeito pelo Grupo de Pesquisa 'Família e Socialização'
visando identificar continuidades e descontinuidades nessa evolução, e, através da descrição
de como costumavam ser as relações dentro da família, em especial entre pais e filhos do início
do século até o presente, desenhar a linha que seguiram as alterações e analisar o sentido que
assumiram.
METODOLOGIA
Para fazer face a objetivos tão amplos, que exigem sejam os dados contextualizados, inclusive
historicamente, optou-se pela seleção de estudos cuja metodologia está centralizada no Relato
Oral, em especial num tipo especial de História de Vida, que Demartini (1992) chama de
'Inacabada', por admitir que esta seria a forma mais adequada de 'conhecer um cotidiano ao
qual não se poderia ter acesso de outra maneira', obtendo-se dados significativos sobre a
realidade pesquisada.
Num segundo momento as análises e discussões dos estudos escolhidos foram lidas
detalhadamente e selecionados para serem relatados neste trabalho alguns aspectos que se
mostrassem capazes de mostrar as continuidades e descontinuidades na evolução das práticas
de cuidado e educação da criança na família, dando ênfase também nas maneira de ser dos
relacionamentos entre as gerações, ao longo deste século.
A - O primeiro estudo escolhido, relatado na sua íntegra por Biasoli-Alves (1995), tinha por
objetivo a descrição das práticas de cuidado e educação de crianças, na família; nele 110 mães
de camada média, a maioria com grau de instrução universitátio, que tinham um filho na
primeira infância no início da década de 1980, foram entrevistadas segundo o Roteiro
Estruturado de Biasoli-Alves e Graminha (Biasoli-Alves, 1995); esse roteiro permitia indagar os
25
diversos aspectos da rotina diária da família, as formas de a mãe vir lidando com seu filho(a),
desde bebê até a idade de 8 anos, procurando investigar também seu sistema de crenças sobre
desenvolvimento e práticas ideais de educação de criança. Este estudo permitiu descrever: a
liberdade e as restrições dentro do processo de educação da criança (levando-se sempre em
conta que se tratava de crianças de camada média da população, que viviam sua infância na
primeira metade da década de 1980); os recursos utilizados pelas mães para corrigirem o
comportamento inadequado; o papel atribuído à afetividade; a consistência na maneira de as
mães lidarem com seu filho nas diferentes situações da rotina diária; os brinquedos,
brincadeiras e atividades presentes no cotidiano dessas crianças; a caracterização pelas mães
da educação levada a efeito e a considerada por elas como ideal.
B - O segundo estudo, relatado na íntegra por Dias da Silva (1986), trata da evolução nas
formas de a família criar e educar suas crianças; os dados vêm de entrevistas, realizadas a
partir de um roteiro semi-estruturado, com três grupos de mães que tinham os filhos pequenos
em momentos diferentes do século XX: nas décadas de 30/40, de 50/60 e de 70/80; toda a
amostra era pertencente à camada média da população de uma cidade de porte médio, do
interior do Estado de São Paulo; este estudo visava identificar, no relato das mães sobre o seu
cotidiano com as crianças, as alterações, ao longo do tempo, de diferentes dimensões da
prática de educação, tais como autoridade, exigência, afetividade, comunicação, consistência
bem como as fontes que as mães procuraram e seguiram para educar os filhos, com ênfase na
orientação para a solução de problemas referentes ao cuidado e ao comportamento.
RESULTADOS
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Face ao tipo de dado dos três estudos selecionados, inicialmente dividiuse o período analisado
em dois: até 1930 e de 1930 ao final da década de 80. Em seguida identificaram-se aqueles
aspectos considerados como salientes e capazes de fornecer uma descrição do cotidiano,
tendo sempre como meta identificar as continuidades e descontinuidades na evolução das
práticas de cuidado e educação da criança na família ao longo do século XX, tomando por base
as relações entre as diferentes gerações que convivem numa mesma família.
Ainda tendo como suporte as análises e discussões dos estudos, foram selecionados para
relato os temas mais enfatizados pelos entrevistados, tais como: a diferença nos valores de
uma geração para a outra; a questão da liberdade que é dada à criança hoje; as regras que
norteiam a sua educação.
Dos resultados fazendo uso das falas dos informantes, priorizando um relato qualitativo, que,
de imediato, pudesse transmitir as informações pretendidas.
Sobressai inicialmente a descrição de famílias com uma constelação grande, em que o número
de filhos é elevado, com pouca diferença de idade de um para o outro, o que se faz
acompanhar de contato constante com as gerações mais velhas, que muitas vezes moram na
mesma casa e têm para com os netos um carinho especial.
"A gente chegava lá e já tinha mingau ... ela fazia um mingau gostoso... e tinha guardado p'ra
gente ".
"Meu companheiro foi meu avô... ele ficava a noite conversando, contando histórias do tempo
dele de juventude..."
O cotidiano acontece num espaço amplo, dentro e fora de casa; ele é dominado pelas
brincadeiras, por atividades que a criança organiza num tempo grande em que ela dispõe de
liberdade para 'criar'.
27
"... brincava também na rua, né, assim, à noite, no tempo do calor, a vizinhança ia tudo por as
cadeiras na porta... era tempo ainda de lampião de gás... brincava de roda, de maré, de
esconde-esconde ...e assim era passada a vida, né..."
"Na época que eu fui criança eu podia brincar muito ... na Praça XV eu corria, brincava muito
com os meus companheiros e companheiras ali. Então era uma vida mais fácil, com bastante
liberdade para a criança... não era assim uma vida tão organizada pelos adultos para a
criança... "
Esse cotidiano é também marcado por certa distância entre o mundo - e consequentemente as
preocupações e dissabores - dos adultos e o das crianças.
"... não tinha o que falar e a criança vivia mais no mundinho dela, justamente por causa dessa
separação de que os pais eram lá em cima e a gente cá em baixo, a gente vivia no mundo das
crianças, que era só nosso... não ficava sabendo se'tinha algum problema".
"Então não conversava na frente da gente ... minha mãe era de um ciúme que não deixava
ouvir conversa ..."
" Se ele perguntava, agente respondia ...mas, se ele não perguntasse ninguém falava nada
porque ele achava que na hora da comida era hora de sossego".
"eu não sei... os tempos antigos eram diferentes, a gente não podia responder, a gente não
podia se meter na conversa de adulto... Meu pai era bom, mas era ele lá no alto e a gente lá
em baixo... tinha que respeitar... "
Por outro lado, os padrões de alimentação e vestimenta são bem mais restritos.
"E a gente tinha um vestidinho melhor, que era de por para ir à missa, no domingo; no mais era
uma roupa bem simples, e na Escola usava um avental... "... "as famílias eram numerosas, a
roupa que não servia mais, porque tinha ficado pequena, era logo ajeitada para o menor. "
"Era muito difícil você ter um brinquedo, era dificílimo... A vida quando eu era criança era uma
vida difícil, os pais trabalhavam bastante, mas com muitos filhos era difícil. "
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"Meu pai só conversava conversa boa... conversava sobre política, sobre o que achava errado...
sobre um livro que ele tinha lido... "
"...Minha mãe soube me criar muito bem ... eu era disciplinado, de uma família que respeitava
a ordem e a lei... uma família privilegiada.... porque os filhos obedeciam a mãe, eram filhos
exemplares, eram trabalhador, cumpridor do dever..."
Pode-se sumarizar dizendo que o contato entre as diferentes gerações de uma família acontece
de forma natural - as próprias condições de moradia determinavam isso - e implica primeiro a
responsabilidade dos mais velhos para com os mais novos sempre, não importando o tipo de
parentesco ou mesmo a sua existência; segundo, por divisões de acordo com papéis de
comando e submissão, em que o domínio do social mais amplo pertence ao sexo masculino e a
casa é o 'reino', do feminino; terceiro, uma convivência e companheirismo entre os jovens, dos
dois sexos, que acompanhados ou não de adultos participavam de festas e atividades fora do
contexto familiar; quarto, pelo 'folguedo'entre as crianças das mais diversas idades (Biasoli-
Alves, 1995).
Quando se toma como referência os dados da pesquisa que investigou as práticas de educação
de crianças com grupos de mães de idades diferentes - da década de 1930 ao final dos anos
1980 -algumas das mudanças já ficam bem claras.
Primeiramente, o espaço físico em que as crianças dos três grupos passaram a infância é, num
primeiro momento, caracterizado como amplo e altera-se chegando a bem limitado - da
liberdade de se deslocar de um canto a outro da cidade, para a restritividade da casa e
ambientes pequenos a ela afins. Desaparece a rua como ponto de encontro e brincadeiras; a
conotação dada ao ambiente doméstico sofre, ao mesmo tempo, alteração de significado, em
relação especialmente ao seu uso pela criança.
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"Antigamente, o jardim tinha uma frequência maravilhosa. Hoje em dia está muito difícil criar
as crianças... a casa hoje, inclusive, é para embelezar, e, a casa antes era para funcionar. As
crianças ficavam à vontade. Nunca fui de ter casa bonita para os outros verem... "
Por outro lado, à medida que as brincadeiras ficam circunscritas à própria casa, elas passam de
atividade em grupo para 'brincadeira solitária'; ainda que o relato das mães mais jovens mostre
sua preocupação com o ensinar aos filhos o que curtiram durante sua infância, também entra
em jogo o prover a criança com uma grande quantidade de objetos lúdicos, numa expectativa
de que ela se entretenha sozinha, ou tenha no adulto o seu companheiro de jogos.
"eu ensinei amarelinha, roda, corda., brinquei muito de esconde-esconde com ele dentro de
casa... "
"Olha, tudo que você pensar de brinquedo ele tem... e, no fundo, não brinca com nada ... pega
e logo deixa de lado... "
Os relatos trazem uma descrição das famílias saindo 'em bloco' nas décadas de 1930/40 para
atividades religiosas, sociais, de lazer e é comum que as mães ao se referirem à forma de as
diferentes gerações estarem em contato, estabelecerem comparações com o que acontece
atualmente.
"Hoje em dia os pais deixam os filhos em casa para poder aproveitar mais ... nós não, não se
usava deixar"...
Há indícios, por outro lado, de que nas décadas seguintes inicia-se a divisão em programas de
adultos e de crianças e, mesmo quando juntos, cada um já está mais preso a uma atividade
individual - ouvir Rádio, ver TV - enquanto as crianças brincam. E os pais mais jovens estão
dizendo
"ah, chega uma hora que eu quero ter o meu tempo, minha vida, para falar, conversar"...
Assim, as atividades conjuntas, em que os mais velhos buscavam passar a própria experiência e
conhecimento, que se constituíram em um aspecto muito presente e muito forte para as
famílias das décadas de 1930/40 - as mães se lembram que ensinaram brincadeiras, falar "na
língua do P", recitar, cantar, contar estórias e até a fazer discursos para comemorar datas,
aniversários "bem dentro do espírito da época"- vão gradativamente dando lugar a contatos
mais de acordo com a divisão por idades, passando a predominar criança com criança, jovem
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com jovem, adulto com adulto, velho, se possível, com velho, numa assimilação do que chegou
às famílias como valores da modernidade. E a TV, que aparece nas casas das famílias brasileiras
de camada média a partir da década de 1950, ajuda a difundir tais idéias. Ela irá dominar o
espaço e o tempo do contato familiar no período seguinte, e ainda que as críticas sempre
tenham existido, o tempo que as crianças da década de 1980 consomem diante da TV parece
independer do discurso dos pais.
Quando se analisa o relato dos diferentes grupos de mães, verifica-se que as diferenças vão se
estabelecendo à medida que o tempo passa, e de tal modo que o que vale como certo nas
décadas de 1930/40 em termos da liberdade que deve ser dada à criança, do papel da família,
do ideal de filho, do que significa ser mãe não corresponde ao adequado para as mães das
décadas de 1970/80. Alguns trechos das falas das informantes são extremamente expressivos
dessas mudanças.
"A mãe tem que ser boa mãe, carinhosa, mas com autoridade para o filho não descambar"
"As grandes famílias eram melhores que as pequenas, porque um olhava pelo outro"
"Eu nunca pensei em um ideal de filho. Eu só pensava em alimentá-los bem, tratá-los com todo
carinho, cuidar da saúde deles, da roupa, da escola"...
"Eu não era de falar, mas é lógico que eles entendiam que se ficou de castigo é porque fez arte.
"
"Eu não ia a festa, não ia passear, não ia a lugar nenhum que eu não pudesse levar as crianças.
Eu me dediquei a eles ".
"As mães hoje ficam loucas para tirar a criança de perto delas e inventam aula de balé, judô,
escolinha de pintura.."
"Rigidez só atrapalha...já percebi que não adianta, certas coisas se aprende sem exigir"...
"Mas, per aí! Não é mãe de tempo integral, porque ela se anida e depois cobra. Ela dá e cobra.
Eu dou e não cobro"...
"A minha é a preocupação com o futuro, se vai ser feliz, realizado, se vai fazer o que quer"...
Sumarizando, pode-se dizer que as práticas de cuidado e educação de filhos nas décadas de
1930/40 têm uma direção moral e todos os elementos estão colocados para que a criança
venha a se tornar um adulto bem educado, estando a ênfase portanto no controle do
comportamento; já nas décadas intermediárias, o modelo educacional fala da necessidade de
ternura e estimulação para um bom desenvolvimento e da necessidade do lúdico e do lazer
para uma vida saudável em família. Nos anos 1970/80 o discurso das mães enfatiza o diálogo
com a criança, a exigência de compreensão, de afeição, chegando-se ao extremo da
preocupação com o seu bem-estar subjetivo.
a) A determinação do dia-a-dia
Nas décadas de 1980/90 um grande espaço é dado, dentro da rotina diária, à criança, quer
para que ela tome decisões em conjunto com a mãe, quer sem interferência desta,
resguardando-se aquelas áreas em que há maior imposição do adulto, pressionado pelas
características da vida nos centros urbanos e por um ideário que focaliza a necessidade seja da
higiene para manutenção da saúde, seja o comportamento adequado no trato social.
As mães têm por norma permitir que a criança tome iniciativas. Em contrapartida, procuram
manter uma estruturação da vida diária em termos de horários e organização da casa, mas não
de forma insensível às solicitações da criança.
Dir-se-ia que este é um padrão que evidencia a preocupação das mães com o desenvolvimento
da autonomia e da independência do filho, pressupondo-se que elas o visualizam como capaz
de tomar decisões, ainda que dentro de limites.
32
Quando se colocam as mães de idades diversas diante de uma mesma lista de regras de
exigência e regras de permissão, e se confrontam os resultados, verifica-se de imediato que o
número de regras das mães que criaram os filhos nas últimas décadas é menor se comparado
ao que exigiam as mães dos anos 30/40; por outro lado, cresceu o número de permissões à
medida que o tempo foi passando.
Onde aconteceram essas mudanças? Por exemplo, na maneira de se dirigir aos adultos, nos
chamados Tratamentos de Respeito, que hoje já não são mais usados, tudo está inteiramente
padronizado no você, porque 'o Senhor está no céu '; nas práticas religiosas atualmente muito
mais livres e descompromissadas; na exigência de privacidade para a realização de
determinadas atividades ligadas ao Cuidado Pessoal, em especial daquelas que implicavam a
visão do corpo da criança sem roupa.
Mas, as mudanças também estão do outro lado. A criança já não dispõe de tempo livre para
ficar 'vagabundeando' por aí. Pelo contrário, ela estará sendo tão mais bem cuidada, pensa-se,
quanto mais atividades fixas os adultos forem capazes de colocar no seu dia-a-dia, e por
isso "Educar um filho hoje custa muito dinheiro Sua liberdade vem condicionada, então, à
necessidade de desenvolvimento de sua autonomia, visando um adulto competitivo,
independente, 'realizado profissionalmente'.
DISCUSSÃO
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Esses dados descritivos das práticas de educação da criança, visualizados através das falas das
mães, já oferecem, de pronto, um quadro de algumas das muitas mudanças que vieram
ocorrendo ao longo do século XX, nas formas de lidar com as gerações mais novas. Entretanto,
certas discussões ainda são necessárias.
Seria a partir das décadas de 1960/70 que entraria em jogo a necessidade de explicar o
desenvolvimento através do processo de socialização (Biasoli-Alves, 1995) dando ênfase a uma
interdependência dos fatores que o indivíduo traz com ele e dos ambientais, até porque antes
admitia-se, muito mais facilmente, que o indivíduo fosse determinado pelas práticas de
educação, numa interpretação próxima, em alguns momentos, da chamada 'tabula rasa', que
assumia ser a criança inteiramente plasmável, em especial, pela família que cuidava dela
quando ainda muito jovem 'o momento por excelência para ensinar, para moldar'.
Essa alteração, que se observa nas últimas décadas, vem no bojo de outra mais abrangente: até
o momento em que predomina pensar o homem como determinado de fora para dentro, o
ambiente é poderoso, capaz; quando se coloca o ideal no homem com sua individualidade,
dono de si mesmo, fica incoerente enfatizar a formação como vinda de forças externas: parece
muito mais adequado um ideário que afirma a subjetividade como construída e expressa-o
homem lança no mundo as suas idéias, as suas idiossincrasias, e faz dele o palco onde atua.
Assim, o 'entorno'é importante, sem dúvida, mas existe a capacidade de assimilar o ambiente
transformando-o de acordo com as suas características pessoais. E, com esse substrato de um
modelo bidirecional que se analisa cada vez mais a atuação da família e a participação de cada
um no seu processo de desenvolvimento ao longo da vida. De acordo: Há que se analisar os
dados tendo o contexto da época como referência.
Mas, a partir daí, algumas questões e/ou questionamentos surgem de pronto. Primeiramente,
as pesquisas (inclusive as aqui discutidas) põem em evidência a preocupação das mães mais
novas com o desenvolvimento do filho, ao mesmo tempo em que aparecem as incoerências de
sua prática porque, num tipo de sociedade como a contemporânea, urbana e industrializada,
essas incoerências ficam subjacentes à própria prática que as famílias adotam, visando
socializar sua prole segundo os modelos propostos pelo grupo mais amplo: primeiro
transforma-se o lúdico em tarefa e competição, estrutura-se o cotidiano da criança em função
de atividades e obrigações, assume-se a determinação do uso de seu tempo, faz-se da sua vida
uma vida semelhante, e muito, à do adulto. Devora-se, assim, a sua infância com a intenção de
prepará-la para o futuro!
34
Num outro pólo, a liberdade é o tema que domina, e as retrições impostas ficam contidas,
quiçá disfarçadas, e o discurso acaba se fazendo dentro do esperado para mães de camadas
médias, de nível educacional alto: a preocupação com o desenvolvimento da autonomia e da
independência da criança é real, bem como a presença de uma prática de educação que busca
promovê-las. Mas, que liberdade é esta se por outro lado a criança tem que se adaptar a
exigências, não ditas, tantas e tão diversificadas da vida em sociedade hoje?
Tentando discutir...
Sem dúvida, que as transformações, que os dados focalizados nesse relato evidenciam, podem
ser vistas seja nos seus aspectos mais amplos, como o cotidiano das famílias, seu espaço de
convivência e as relações entre gerações, até nos seus mais focais e particulares, ainda que se
mantenha a crença de que à família cabe a tarefa da socialização e de que ela dimensiona as
práticas de educação das gerações mais novas.
Primeiramente é necessário não esquecer que, cada vez as crianças das camadas médias
(como as dos projetos aqui comentados) vão mais cedo para o ambiente coletivo, o que
significa muitas vezes uma dupla socialização, um processo de interferência acentuada de
valores e normas outros que não os da família.
Segundo, é ainda preciso que se saliente mais um fator a poder influir na educação da criança
das últimas duas décadas, porque ela está, desde muito pequena, sujeita à estimulação dos
meios de comunicação de massa, especialmente da Televisão, diante da qual passa boa parte
do tempo em que está desperta.
Por outro lado, quando se indaga sobre o que é melhor, se o hoje ou o ontem, a tendência dos
mais velhos é a de fazer paralelos garantindo que o passado tinha valores mais sólidos, que a
vida era difícil, porém mais saudável, mais vivida e portanto melhor.
Mas, os mais novos fazem críticas ao autoritarismo, à ausência de liberdade para escolher a
profissão ou determinar o que fazer nos tempos livres, ou ainda à falta de meios e de
oportunidades.
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E esse é um fenômeno real, sem dúvida, ainda que seja fácil exagerar a sua extensão e a sua
importância, porque muitas pessoas jovens continuam a partilhar uma boa relação com as
gerações mais velhas, a despeito de um aumento de divergência de interesses e atividades.
Mas, por outro lado, não deixa de ser também verdadeiro que as gerações jovens têm
procurado sistematicamente se colocar contra os modelos com que se identificaram na
primeira infância e pretendem, quase sempre, um projeto de vida que conscientemente se
distancia do que foi levado a efeito pelos pais, tanto na sua vida afetiva, quanto profissional,
quanto no seu papel de socializadores. Então, os conflitos são fundamentados na realidade.
Mas, será preciso esperar que o tempo decorra, que a nova geração entre na vida adulta,
forme um novo núcleo familiar, e inicie a educação dos filhos para que as aproximações fiquem
muito mais presentes e o relacionamento se faça, inclusive com a valorização da experiência
dos mais velhos.
Analisando o problema por outro ângulo, a vida familiar é um processo complexo, que
compreende três, e às vezes quatro gerações que avançam juntas no tempo, seguindo um ciclo
vital periodizado por eventos críticos, que definem etapas evolutivas - casamento, nascimento
de filhos, adolescência, aposentadoria (Scabini e Marta 1996), eventos que trazem
incumbências de desenvolvimento próprias a cada fase. Portanto, a diversidade é a sua norma
e seria ela a responsável pelo processo contínuo de aprendizagem dos elementos que
compõem a família.
Se de um lado tem-se certa imposição de normas e valores, de outro, existe a sua reformulação
ao serem assimiladas pelos mais novos, e com o passar do tempo, à medida que a história
daquela família vai sendo construída, as diferentes gerações vão, mais ou menos
conscientemente, construindo uma interpretação condividida de alguns aspectos cruciais da
vida. Isso fará com que, gradativamente, haja êxito no solucionar a crise entre os pais e a prole,
36
de tal modo que ela não signifique ruptura, mas a construção da lealdade intergeracional com
a partilha de valores e sentimentos, mesmo quando a distância física é imensa e a convivência
diuturna impossível. E, nesse momento tem-se a linha saudável do desenvolvimento.
Referências Bibliográficas
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37
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38
RESUMO
Dividimos este artigo em duas partes com o objetivo de traçarmos uma comparação entre duas
histórias. Na primeira é desenvolvido um panorama histórico da família na sociedade ocidental,
culminando com a hegemonia ideológica do modelo nuclear. A elaboração desta parte inicial
permite-nos construir uma história da terapia de família relacionando dois aspectos: a
formação da família nuclear na modernidade e o surgimento da intervenção do especialista
com fins terapêuticos. O mode-lo nuclear, pautado na intimidade e fechado à sociabilidade
pública, constitui a família como algo inteiramente novo, sem parâmetros anteriores. São os
especialistas, aliados ao Estado moderno, com seus modos de intervir e suas práticas
terapêuticas, que irão esclarecer às famílias quais são as normas de funcionamento desse novo
39
Houve um tempo em que as relações familiares – incluindo pai, mãe, filhos, parentes,
agregados, vizinhos, amigos, entre outros – perdiam-se em meio a uma ampla comunidade. As
relações familiares, como a do casal e a dos pais com seus filhos, eram permeadas por relações
comunitárias, consideradas mais importantes, na maioria das vezes.
Quando as relações extensas faziam parte das relações familiares não existiam poderes
especializados ou seculares, externos a essas relações, que ditassem as normas do
comportamento: os papéis eram definidos “desde sempre”. A comunidade de pertença não
deixava dúvidas quanto ao que fazer. A família era a sociedade, confundindo-se com ela. O
indivíduo perdia sua visibilidade em meio às relações. A hierarquia ditava as regras para as
relações familiares, e os conflitos, quando surgiam, submetiam-se ao rigor da lei. A
desobediência equivalia à exclusão e à falta de proteção, que era o mesmo que ser entregue ao
pauperismo e à morte (Ariès, 1986; Shorter, 1995). Nessa configuração não havia necessidade
de uma prática terapêutica, conforme relatam os estudos de Costa (1989) sobre o Brasil, de
Donzelot (1986) sobre a França, e de Lasch (1991) sobre os Estados Unidos, referindo-se à
transformação das relações familiares, que na modernidade caracterizam-se pela intervenção
do Estado em aliança com especialistas da saúde. Nessa mesma direção encontram-se os
estudos de Sennett (1993) a respeito da transformação da sociabilidade pública em domínio
privado, com a conseqüente psicologização das relações sociais.
40
Todos os membros do grupo familiar deviam obediência e respeito ao pai, aquele que os
deveria proteger, vigiar e corrigir. Nos séculos XVI e XVII, os “sentimentos dolorosos” e “maus”
eram os predominantes nas relações familiares, e não o amor. De acordo com Antoine de
Blanchard (apud Flandrin, 1995), eram vários os sentimentos “maus”, como: inveja, ciúme,
aversão, ódio, desejo de morte etc. A moral caracterizava-se mais pelo pecado do que pelo
amor.
Podemos observar a diferença que nos separa da antiga sociedade pela relação pais-filhos e
pelos sentimentos surgidos e expressos na convivência doméstica: de um lado os “maus
sentimentos” gerados pelo poder total, direito de vida e de morte, que era concedido ao pai;
de outro, caracterizando o modelo nuclear, o dever paterno de proteção, baseado no
sentimento de amor.
Na antiga mentalidade, o pai tinha todo poder sobre os filhos, como o senhor sobre os seus
escravos; eles pertenciam-lhe em propriedade plena, porque os fizera; ele nada lhes devia. Na
nossa mentalidade contemporânea, pelo contrário, o fato de os ter feito confere-lhe mais
deveres do que direitos para com eles. Eis uma viragem fundamental dos princípios da moral
familiar (Flandrin, 1995, p. 147).
Na Europa, no fim do século XVII e início do XVIII, ocorreu uma mudança marcante no lugar da
criança e da família (Ariès, 1986). A afeição tornou-se necessária entre os cônjuges, e entre os
pais e os filhos. O “sentimento de família” nasceu simultaneamente com o “sentimento de
infância”: com o objetivo de melhor cuidar de suas crianças, a família recolheu-se da rua, da
praça, da vida coletiva, em que antes se encontrava, para a intimidade, fazendo desaparecer a
antiga sociabilidade. Paulatinamente, através dos séculos, o valor social da linhagem transferiu-
se para a família conjugal. Quando essa passagem se consolidou, a família tornou-se a “célula
social”, a “base dos Estados”.
41
Shorter (1995) estuda o que chamou de um “surto de sentimento”, ocorrido desde o século
XVIII, fazendo desaparecer a família tradicional. Este surto desenvolveu-se em três áreas:
primeiramente no namoro, caracterizado pela busca de felicidade e desenvolvimento
individual; depois na relação mãe-bebê, que passou a se caracterizar pelo bemestar do bebê
acima de tudo; e por último na mudança da relação entre a família e a comunidade
circundante, na qual os laços entre os membros da família reforçaram-se, caracterizando a
“domesticidade”.
Com a difusão das relações igualitárias, a autoridade patriarcal reforçada pela comunidade
tornou-se intolerável. O conceito de “domesticidade” como unidade emocional, constituída
pela privacidade e isolamento da família, foi a terceira área na qual o surto de sentimento na
modernidade manifestou-se: “Os membros da família passaram a sentir muito mais
solidariedade uns com outros...” (Shorter, 1995, p. 244). Nas palavras de Sennett, a família
deixou de ser vista como uma região “não-pública, e cada vez mais como um refúgio
idealizado, um mundo exclusivo, com um valor moral mais elevado do que o domínio público”
(Sennett, 1993, p. 35).
Pode-se estabelecer uma relação entre a vida familiar, baseada na intimidade, e a noção de
democracia. Hoje, pela crescente democratização das relações, a intimidade é definida pela via
do “relacionamento puro”, isto é, nada externo – seja a comunidade ou patrimônio familiar,
dentre outras possibilidades – pode determinar o início ou continuidade de um relacionamento
(Giddens, 1993). O amor, vinculado ao direito de escolha, permitiu a contaminação da família
pelos valores democráticos. A diversidade estendeu-se ao casal, aos pais e filhos, aos parentes
e amigos, gerando uma multiplicação de novas relações. Nessa nova configuração, as relações
familiares baseiam-se na intimidade, na comunicação livre e aberta, pautando-se no diálogo e
na democracia. Desse modo, novos caminhos são indicados, caracterizando o que pode ser
chamado de pós-modernidade.
A terapia de família chegou ao Brasil nos anos 70. Foi, porém, no final dos anos 50 que ela
começou a tomar forma nos Estados Unidos, orientando-se principalmente pela Teoria dos
Sistemas. Nesse momento foi forte a presença do modelo de família nuclear, tendo o casal,
com uma maior centralidade do que na sociedade tradicional, a função de constituir um núcleo
em torno dos filhos. Esse modelo, característico da modernidade, tem sido questionado em
sua forma nuclear, preservando-se algumas características, como a intimidade e a privacidade.
Nesse sentido, para a terapia de família foi necessário, ao longo de sua história, posicionar-se
de modos diferentes em relação à configuração familiar, constituindo o contexto da
intervenção terapêutica em estreita relação com as transformações histórico-sociais. Uma das
principais fontes de questionamento e transformação, tanto para a família quanto para a
terapia de família, foi o movimento feminista, a partir dos anos 70 (Goodrich, 1990; Perelberg,
1994; Rampage e Avis, 1998).
Começamos com duas das falas dos entrevistados, terapeutas de família cariocas, que se
vinculam à tradição da terapia de família, privilegiando a família nuclear fundada no biológico,
na união heterossexual e na procriação. Para esses terapeutas, pode-se entender o que se
45
“Só acontece família com filho. A estruturação da família para mim necessita ter duas
gerações. (...) Então, para mim, a formação básica da família é: três pessoas, necessariamente
duas gerações diferentes” (T.2).
“Junção de um homem e uma mulher. Não vou entrar nas novas organizações familiares. É
junção de um homem e de uma mulher e o nascimento de um primeiro filho. União de um
homem e uma mulher e o nascimento do primeiro filho. É isso. Nascimento ou adoção do
primeiro filho” (T.8).
A terapia de família, por conseqüência, visa a separar as fronteiras com o exterior, nos casos
em que o casal tenha essa dificuldade específica. Com a chegada dos filhos, o casal adquire
uma nova função: a parental, que caracteriza a família como “uma instituição para educar as
crianças”, sendo a vida familiar dependente “de um sólido vínculode casal” (Minuchin, 1995a,
p. 202). É nesse momento que surgem mais especificamente as tarefas ligadas à socialização; a
família exerce seu lugar de “matriz da identidade”, possibilitando a seus membros a
experiência de pertinência a um grupo, assim como a experiência de sua separação, de sua
autonomia. Entre pais e filhos, como entre o casal e o mundo exterior, é preciso que existam
fronteiras bem definidas e reguladas por regras que determinam quem e como se participadas
46
Mais um dos entrevistados faz eco a essas formulações, concordando que família é necessária
como grupo social, com a função de cuidar de um ser dependente biológica e
psicologicamente. As mudanças impostas pelas novas tecnologias de reprodução refletem na
família, possibilitando novas transformações, mas sua participação social como um grupo que
cuida de um ser dependente permanece e permanecerá. Outras formas de cuidado poderão
surgir, ainda que os papéis familiares não continuem os mesmos. Mantém-se assim a idéia de
proteção fornecida por esse grupo formador das identidades pessoais, seja ele biológico ou
não. O processo da construção da personalidade permanece localizado no interior da família e
da convivência íntima, apesar das transformações sociais.
“... a gente necessita do relacional pra saber até quem eu sou. No meu referencial a família é
necessária, importante para as organizações sociais. Não acho que é uma coisa falida, eu acho
que ela está mudando as suas formas de constituição. Necessária e importante porque nós
nascemos e a gente vem de um pareamento, se a gente pensar também em termos biológicos,
um pareamento que nos faz ser um serzinho humano que é totalmente dependente, e ele
precisa de um grupo para dar consistência a esse ser dependente, para ele vir a se desenvolver
e poder ser um indivíduo. Então, a existência do grupo constituído para dar continente pra que
esse ser venha a se desenvolver nunca vai deixar de existir, sempre existiu e sempre vai existir.
(...) Então quando a gente pensa agora nessa reprodução assistida, bebê de proveta, clone, vão
existir, talvez, novas estruturas de grupo. (...) o ser humano precisa de um grupo para provar a
existência dele, dar identidade àquela existência. (...) Então, o núcleo que eu chamo de familiar
é um grupo de pessoas que vai receber esse elemento, e na hora que recebe esse elemento
cada um define um papel, um que vai cuidar dessa forma, um que vai cuidar daquela forma.
(...) Talvez no futuro não seja pai, mãe e filho, possam ser outras coisas. O ser humano precisa
dessa estrutura... ela vai mudar, mas nunca vai sair de foco” (T.6).
estar correndo riscos devido à sobrecarga de suas funções. Outro dos entrevistados apresenta
como entende a família, ressaltando esse aspecto nuclear e de proteção:
“...as pessoas estão dentro dessa cultura... que eu não sei se vai acabar... elas se agregam.É que
precisam de um pacto de solidariedade, cumplicidade, um oásis, do anonimato do mundo,
digamos, fora. Então eu acho que as pessoas vão se vinculando e escolhendo os seus parceiros
por essa jornada. Por essa caminhada ao longo da vida. Eu acho que aí é importante ter esse
núcleo para ir gerando uma outra geração e acompanhar essa outra geração...” (T.4).
A “família ampla”, por sua vez, é uma forma bem adaptada a situações de estresse e carência,
na qual as funções são compartilhadas envolvendo membros da família extensa. Essa forma de
funcionar é entendida por Minuchin como uma resposta às situações de pobreza, podendo ou
não caracterizar estruturas familiares patogênicas com fronteiras não definidas. Minuchin é
conhecido por seu trabalho com famílias carentes, às quais se atribui uma configuração
extensa em oposição ao modelo nuclear, vinculado ao aburguesamento e à industrialização das
grandes cidades. Entretanto, mesmo considerando tipos diferenciados de família, sua
intervenção sempre privilegia uma constituição familiar que defina suas fronteiras ao
constituir-se em separado. Afirma o autor:
Prefiro trabalhar com a família nuclear, algumas vezes modificando a composição do grupo
(diferentes subsistemas: casal, pai e filho, irmãos etc). (...) Em algumas famílias (porém), o
trabalho com membros significativos da família ampla é importante (Minuchin, 1990a, p. 139).
Em outro texto, ao abordar o trabalho com famílias amplas, Minuchin relativiza a afirmação
anterior, sugerindo ao terapeuta uma maior flexibilidade para não separar completamente uma
avó e seu neto, quando a avó cumpre funções parentais. Pode-se observar a diferenciação das
funções sem correr o risco de uma separação mais prejudicial que terapêutica, e sem
transformar essa família necessariamente no reflexo do modelo nuclear: “a influência da
família extensa nas funções da família nuclear nunca deverá ser subestimada” (1990b, p. 61). A
mesma ênfase quanto à delimitação das fronteiras encontra-se na situação de famílias que se
constituem por meio de um segundo casamento, um recasamento. Dessa vez, porém, as
fronteiras referem-se às relações entre pais e filhos.
namorar sozinho (tempo para as crianças serem crianças e para os casais ficarem sozinhos)
(Minuchin, 1995a, p. 203).
Outro de nossos entrevistados também vê a família como uma união heterossexual visando à
procriação, mas levanta a questão trazida pelas “novas formas” que não se enquadram nessa
visão.
“A família sempre se forma com a união de duas pessoas, sendo essa união oficializada ou não.
(...) Tradicionalmente essa união se deu entre diferentes sexos, mas atualmente existem certas
uniões que estão se dando até entre homossexuais que adotam filhos, e que dessa forma
estariam concebendo núcleos familiares... chamados atualmente de novas famílias” (T.7).
Durante os anos 60 e 70, quando várias escolas já tinham se consolidado, e uma nova
revolução sexual realizava-se na sociedade, as situações de recasamento e de casais
homossexuais tornaram-se visíveis, a partir dos debates advindos do movimento feminista.
Uma nova interpretação quanto à ligação entre os membros da família e o sistema social mais
amplo foi oferecida pela Terapia de Família Feminista, que questionando a família nuclear,
centrada no casal heterossexual e na criação de filhos, aponta para outras formas: famílias
monoparentais, famílias compostas por homossexuais e seus filhos etc (Perelberg, 1994;
Goodrich et al, 1990).
A maior parte das outras formas de composição familiar ou era encarada como patológica ou
era simplesmente invisível para eles (terapeutas americanos, homens brancos de classe média)
(Rampage e Avis, 1998, p. 190).
A partir de uma perspectiva feminista, a família saudável é aquela em que seus membros se
encontram comprometidos com o estímulo do potencial de todos, com a evitação de todo tipo
49
O exemplo seguinte indica como variadas posições podem estar presentes em um mesmo
terapeuta, demonstrando a dificuldade, própria do relativismo pós-moderno, de se buscar uma
definição exclusiva de família. Despontam, por conseqüência, posições paradoxais: ao lado de
variadas possibilidades de formas relacionais permanece uma configuração de família definida
pelo surgimento de um filho.
“Família é o sistema que está na minha frente(...). É o sistema de relações que está
acontecendo diante do terapeuta (...), mas acho que existem outras maneiras de ver, diferentes
formas de relação ocorrem (...) família só existe quando tem filho. (...) Não necessariamente
são os genitores que estão com a criança, podem ser pais adotivos, podem ser outras formas,
recasamento... há uma enormidade de relações familiares” (T.1).
Maurizio Andolfi é conhecido por juntar diferentes referências: a Teoria Estrutural, com sua
ênfase no presente, e a Teoria dos Sistemas Familiares de Bowen, voltada para o passado e
para a família de origem, definindo a família como um campo emocional que abarca três
gerações (Andolfi, 1980; 1989a; 1989b; 1996; 1998). Essa conjugação pode ser observada no
relato que se segue, e em uma citação de Andolfi. A família, mesmo quando desconhecida, é
um fator determinante, tanto no nível biológico quanto no simbólico, para a formação do
indivíduo, gerando questões a respeito da pertinência ao grupo e da autonomia individual. Esta
é uma visão diferenciada da família nuclear moderna, propondo uma saída e acentuando a
importância da família de origem, porquanto sua influência se faz sentir até na ausência. Não
se diluindo completamente, as relações nucleares são permeadas pelas histórias de gerações
anteriores.
“É... o indivíduo entra para uma família quando nasce e só sai dela quando morre. (...) Então,
você faz o genograma da família, você vai encontrar traços de sua família de origem com
certeza, mesmo que essa família renegue. (...) Mesmo com famílias adotivas é... onde eu
também... quando eu faço o genograma, eu incluo o adotado, a família adotiva e a família
biológica. (...) Mesmo o adotado que teve um contato com a família biológica de repente por
dez minutos, aquela família tem uma influência ali. A família biológica tem uma influência na
vida dessa criança adotada. Não estou dizendo que uma influência negativa nem de problema
não. Mas uma influência que você faz um estudo, você encontra traços” (T.3).
50
Quando falamos de família não podemos nos limitar a pensarmos em termos de genitores e
filhos, devemos sempre ter uma visão mais ampla que leve em consideração as gerações
anteriores e as regras sociais próprias de cada época. De fato, a história das gerações que
precederam o indivíduo é cheia de significados, mesmo quando não se atinge diretamente: é
possível obter informações a partir das narrações dos próprios genitores, de seus hábitos de
vida e de objetos que clarificam suas relações passadas; além disso, reexaminar a imagem de
uma figura parental, mesmo que física ou emotivamente distante do núcleo familiar e torná-la
viva dentro da dinâmica familiar, pode permitir uma releitura dos eventos (Andolfi, 1996, p.
56).
Para outro entrevistado a família é igualmente vista como formada por um padrão, tanto
biológico quanto simbólico, construído em gerações anteriores. Acrescenta, porém, que esse
modelo vem sendo questionado pelas novas tecnologias reprodutivas, ao permitir a geração de
seres com histórias não convencionais, e que dificilmente poderão ser compreendidos por
meio de visões anteriores.
“... eu acho que nós somos herdeiros da história dos nossos antepassados. É... então a gente
carrega essa bagagem. Acho que a família se forma a partir das histórias que as famílias vão
contando não importa por onde. Seja pelo silêncio, seja pelas narrativas. Porque nem todas as
famílias contam. Aliás, a maioria das famílias não conta. Mas isso vem. Vem pelo corpo, vem
pelo inconsciente... não importa qual inconsciente a gente nomeie. Mas eu acho que
teoricamente eu diria que as famílias... as famílias são montadas a partir de um padrão
geracional, da herança. (...) de repente dá um clic e de onde eu vim, de onde eu nasci. Eu acho
que agora a gente já está num momento importante de bebê de proveta, de bebê de barriga
de aluguel, onde a família está questionada em termos dessas premissas que eu estou
trazendo” (T.5).
uma mudança que necessita ser mais pesquisada entre nós devido à sua diferenciação de
autores tradicionais como Minuchin e Andolfi.
Hoje pouco se escreve sobre uma noção de família ou sobre uma proposta que se pretenda
minimamente generalista; escreve-se muito sobre as variedades das formas encontradas,
caracterizando um relativismo exacerbado (Minuchin, 1991). Pouco se relaciona à construção
da técnica uma idéia generalista de família; muito se propala a respeito de técnicas específicas,
aplicadas às situações familiares específicas, de acordo com situações e tipos de problemas
(Nichols e Scwartz, 1998). A crítica de Minuchin (1991) dirige-se ao abandono da
sistematização de teorias, já que “constatou-se” não haver realidade “em si”. Ao se abrir mão
da idéia de verdade, não há mais necessidade de produzir sistemas teóricos explicativos.
Restam a experiência, a linguagem e a conversação entre o terapeuta e seus “clientes”. Sucede-
se, desse modo, a transformação do saber especializado em experiência a ser compartilhada,
tendo implicações quanto à construção do conhecimento e à prática clínica. A ênfase
anteriormente estava no poder do terapeuta para gerar a mudança. Este poder sendo
questionado é posto de lado, enquanto o poder da família ou do cliente para dirigir as
mudanças que deseja passa a ser enfatizado.
Salvador Minuchin costuma fazer constantes relações entre a autoridade dos pais e a tarefa do
terapeuta. Com o desvanecimento do modelo de autoridade tradicional, o patriarcal, ele é
substituído por um modelo flexível e racional. Aumentam as dificuldades parentais no
enfrentamento da “complexidade da educação infantil”. O reconhecimento dessa mudança
ajuda a julgar imparcialmente os pais na execução de sua tarefa de ao mesmo tempo “proteger
e guiar”, enquanto “controlam e reprimem”. Os filhos, por sua vez, devem crescer e tornar-se
indivíduos autônomos, rejeitando e atacando os pais. O processo de socialização, portanto,
torna-se conflitante. O terapeuta deve buscar apoiar todos os membros da família (1995b).
52
Nesta perspectiva, ele é o responsável pelo sistema terapêutico; assume a liderança e é “fonte
de apoio e cuidados” (1990a). A família convida o terapeuta (especialista)a ajudá-la a mudar. É
possível que haja divergências entre terapeuta e família quanto aos objetivos da terapia, mas o
terapeuta, ao atender um pedido de ajuda – “mude-nos sem nos mudar” –, ampliará as
alternativas do sistema desafiando as regras estabelecidas. Desafia, assim, a família em seu
modo de experimentar a realidade.
O autor enfatiza a família como a “matriz da cura e do crescimento de seus membros”. Se, no
entanto, o terapeuta observar que a autonomia dos filhos está sendo tolhida, deverá ajudar a
família a ter uma compreensão sobre as diferenças individuais, reconhecendo diversos estágios
de desenvolvimento (1990a). Concluindo que o terapeuta de família é “um agente de mudança
limitado”, Minuchin reconhece os perigos das imposições dos modelos do terapeuta. Faz parte
de seu trabalho de especialista reconhecer suas imposições e limitações. Seu saber deve
conformar-se aos “dramas familiares”, não buscando sua própria confirmação, e sim a
autonomia do sistema familiar.
No primeiro relato, a seguir, o terapeuta intervém a partir de um modelo de família. Para que a
terapia seja efetiva é preciso que a família se adapte a um modelo. No segundo, o terapeuta
cumpre sua função dando lugar à família, tornando a terapia um espaço privado, de proteção e
elaboração de conflitos. Em ambos encontramos a perspectiva da presença ativa do
especialista, característica de uma imagem que os terapeutas de família têm sobre si,
principalmente em seu início histórico, que corrobora a visão moderna da intervenção.
“Eu não posso mexer com uma terapia familiar... sem ajudá-los a criar situações, a fazer
modificações às vezes práticas, reais, dentro das casas, para poder ter essa estruturação de
família” (T.2).
“As famílias estão precisando de espaços onde elas estejam confortáveis, e a Terapia de Família
é um desses espaços. A família perdeu um pouco de espaço na sociedade” (T.1).
As primeiras escolas marcam sua diferença a partir de uma intervenção ativa do terapeuta de
família, criticando a suposta passividade do psicanalista. No exemplo seguinte encontramos as
duas posições no mesmo entrevistado. A expressão do cliente e a ação do terapeuta ganham
prioridades diferentes, dependendo da intervenção a ser realizada. Na primeira posição, a
passividade é por vezes confundida com a idéia de neutralidade; supõe, de qualquer forma, um
53
“Eu faço o seguinte, na psicanálise a situação é a pessoa que percebe os seus sentimentos,
pensa e modifica. Na minha terapia familiar é exatamente o contrário. Eu introduzo uma
modificação. Depois é que vai gerar um pensamento sobre essa modificação (na família)” (T.2).
A união da pessoa com o especialista é mais um dos temas recorrentes no campo da terapia de
família. Podemos encontrá-la em Minuchin (1990b; 1995a), Andolfi (1996), Elkaïm (1990;
1998), entre outros. Cada encontro terapêutico cria momentos de participação con-junta.
Nossos entrevistados contam essa história, levando-nos da noção de especialista à idéia de
uma pessoa real consolidada com os anos de experiência. O terapeuta, com seus recursos
pessoais, para além de suas técnicas, ajuda a família a encontrar seus próprios recursos rumo à
autonomia na resolução de seus problemas.
“... eu diria que tem muito pouca diferença hoje em dia do que eu sou fora daqui, do que eu
sou aqui dentro. Eu acho que, quando eu comecei, eu era talvez uma terapeuta mais
engomadinha. Hoje em dia eu acho que estou muito confortável nesse lugar. Isso é uma
conquista com a idade” (T.4).
“Os recursos que eu posso usar, os meus, como pessoa, para ajudar aquela família. E de que
maneiras eu posso, principalmente, ajudar uma família a descobrir os recursos que ela tem,
não os meus técnicos. Os meus técnicos são muito limitados. Terapeuta de família que usa sua
técnica, ele tem... os seus instrumentos muito limitados. Ele tem que ajudar a família a
desenvolver a sua técnica ou os seus recursos pra seguir... porque você não pode fazer milagre.
Numa hora de sessão não consegue transformar as pessoas” (T.3).
objetivo. (...) Hoje em dia eu sou muito mais cada um tem sua narrativa, constrói... Então o que
vai ajudar o paciente é entrar na narrativa que não é útil pra ele e começar talvez a mexer com
ela, e poder criar outra que seja mais útil pra necessidade dele naquele momento” (T.4).
“Mas, quando você consegue transformar a situação grave numa conversa chata, a terapia de
família está acontecendo. Mais pra linha do construtivismo mesmo” (T.5).
Esses dois últimos relatos permitem-nos finalizar, referindo novamente ao movimento mais
atual da terapia de família. Se antes era possível pensar em uma imagem do terapeuta como
conhecedor e especialista, agora a viabilidade do conhecimento – e, portanto, a possibilidade
de vinculá-lo à oferta terapêutica – encontram-se questionados. A experiência de Lynn
Hoffman ajuda-nos a compreender o que vem ocorrendo no campo.
(...) a evolução de minha posição superou minha capacidade de traduzi-la para a prática. Eu
continuava a “pensar Zen”, mas nem sempre sabia como “agir Zen”. Foi então que um colega
da Noruega, Tom Andersen, surgiu com uma idéia fascinante, embora simples: a Equipe
Reflexiva (Andersen, 1987). O recurso de pedir que a família assista à discussão da equipe
sobre ela e que depois comente o que ouviu mudou tudo subitamente. O profissional não era
mais uma espécie protegida, observando famílias patológicas por trás de uma tela ou falando
sobre elas na privacidade de um escritório. A premissa da Ciência Social normal de que o
especialista tinha uma posição superior a partir da qual poderia ser feita uma avaliação correta
desmoronou. Para mim, pelo menos, o mundo da terapia foi alterado da noite para o dia
(Hoffman, 1998a, p. 24).
transformada tanto quanto as relações familiares, não exigindo mais uma teoria específica para
uma intervenção terapêutica específica.
No quadro atual, a terapia de família refuta a busca de uma estrutura universal, cedendo
espaço à pluralidade de idéias. Desde o feminismo e o advento da pós-modernidade mudanças
vêm ocorrendo, principalmente na crença quanto a encontrar uma causa para o sofrimento
psíquico no interior das relações familiares. Hoffman (1998b) descreve seu próprio movimento
inicial como a procura de uma chave adequada que a levava de um modelo a outro. No
entanto, um ponto de referência estabelecido para a avaliação da família e intervenção
terapêutica foi se tornando cada vez mais incerto. Ela afirma ter adquirido um estilo de “livre-
flutuação”, e pergunta-se: poderá isto se chamar terapia?
Para Anderson e Goolishian (1998), o termo tratamento, que de-nota uma intervenção para a
cura, não identifica mais sua prática terapêutica. A terapia é redefinida como a criação de um
espaço de mútua conversação, que pode gerar novas realidades entre parceiros de um
processo terapêutico. Baseada na prática desses autores, Lynn Hoffman (1998b) começa a
refletir sobre a possibilidade de deixar de lado a própria noção de um modelo, preferindo olhar
para fora de um enquadramento. Desse modo, a autora declara descobrir uma “tapeçaria
luminosa” de práticas que se estendem para todos os lados. Já não há mais a necessidade da
fixação de um modelo ou de uma resposta definitiva. Estabelece-se a diversidade como um
valor fundamental.
Atualmente, ao lado da flutuação das identidades pessoais (Gergen, 1992; Morin, 1996),
ocorrem simultaneamente a flutuação das identidades familiares (Roudinesco, 2003) e a dos
terapeutas de família. Trata-se, porém, de um processo que caracteriza a terapia de família
desde seu início. Ackerman já assinalava para a diversidade quando, em 1971, afirmou que há
tantas terapias de família quanto terapeutas: cada terapeuta contribui com sua trajetória e
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característica pessoal. A “tapeçaria da diversidade” vem sendo tecida desde o início da terapia
de família, embora nem sempre seja assumida e/ou discutida na proporção devida. Por isso,
gostaríamos de levantar ao menos duas questões para futuros debates. Como formar
terapeutas de família, ressaltando suas características pessoais ao lado da ausência de um
modelo unitário? Como lidar com a diversidade, diminuindo o risco de instaurar uma desordem
mais prejudicial que benéfica? Pensamos que este debate pode ser iniciado com uma discussão
sistemática a respeito de uma proposta de articulação entre diferentes teorias e práticas
(Féres-Carneiro, 1994; 1996; Goutal, 1985; Lebow, 1997). E justamente porque as teorias são
construções, devemos esperar que daí floresça a diversidade, e não a uniformidade. Conforme
nos indica Falicov (1998): é possível apreciar similaridades enquanto honramos a diversidade; é
possível aproximar os diferentes modelos em uma fértil região fronteiriça. Neste sentido,
ressaltamos a necessidade de considerar as transformações da família, relacionando-as às
transformações das identidades pessoais, que modificam as formas de intervenção
terapêutica.
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