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Anscombe Filosofia Moral Moderna PDF
Anscombe Filosofia Moral Moderna PDF
G. E. M. Anscombe
Ora, se se faz essa comparação, fica claro que a relação entre os fatos
mencionados e a descrição "X deve a Y tanto" é uma relação interessante, a
qual chamo de "Valor bruto relativo a" essa descrição. Ademais, os próprios
"fatos brutos" aqui mencionados possuem descrições relativamente às quais
outros fatos são "brutos" — como, por exemplo, ele transportou as batatas até
minha casa e ele as deixou lá são fatos brutos relativos a "ele me forneceu
batatas". E, por sua vez, o fato que X deve dinheiro a Y é, por sua vez, "bruto"
relativamente a outras descrições — por exemplo, "X pode pagar". Ora, a
relação de "bruteza relativa" é complicada. Menciono alguns pontos: se xyz é
um conjunto de fatos brutos relativos à descrição A, xyz é um conjunto
contido em um conjunto maior de que uma parte é válida se A é válida; no
entanto, o fato de que uma parte seja válida não acarreta necessariamente A,
porque circunstâncias excepcionais podem sempre fazer diferença; e o que
conta como circunstâncias excepcionais para A geralmente só pode ser
explicado por meio de alguns exemplos, nada se podendo oferecer de
teoricamente adequado no que diz respeito a elas, visto teoricamente se poder
sempre imaginar um contexto especial ulterior que reinterprete qualquer
contexto especial. Ademais, muito embora em circunstâncias normais xyz seja
uma justificativa para A, isso não é o mesmo que dizer que A e 'xyz' são o
mesmo; pode haver um contexto institucional que fornece propósito à
descrição A, não sendo A uma descrição dessa instituição (por exemplo, a
declaração de que dou a alguém um centavo não é uma descrição da
instituição do dinheiro ou da moeda deste país). Assim, muito embora seja
ridículo imaginar que não possa haver uma transição, por exemplo, de "é" a
“deve a”, o caráter da transição é na verdade bastante interessante e vem à luz
como resultado de uma reflexão sobre os argumentos de Hume1.
1 Os dois parágrafos acima são um resumo do artigo "On Brute Facts" Analysis 18
(1958): 69-72, reimpresso em ANSCOMBE, G, E. M. Collected Philosophical Papers, vol. III:
Pthics, Religion and Politics (Oxford: Blackwell, 1981), pp. 22-5.
Que eu deva ao merceeiro uma dada soma é um de um conjunto de
fatos que é “bruto” em relação à descrição "sou uma caloteira". "Dar o calote"
é evidentemente um tipo de "desonestidade" ou "injustiça" (naturalmente,
essa consideração não terá efeito algum em minhas ações, a não ser que eu
pretenda cometer ou evitar atos de injustiça).
Os termos "tem de" (should), "deve" (ought) ou "precisa de" (needs) têm
relação com o que é bom ou mau: e.g. o maquinário precisa de óleo, ou tem de
ou deve ser lubrificado no sentido de que funcionar sem lubrificação é ruim
para ele, ou de que ele funciona mal sem lubrificação. Segundo essa
concepção, é claro, "tem de" ou "deve" não estão sendo usados em nenhum
sentido "moral" especial quando se diz que um homem não deve se furtar a
pagar (no sentido aristotélico do termo "moral" — ἠθικός — estão sendo
usados em conexão com um tópico moral, a saber, as paixões e ações [não-
técnicas] humanas). Contudo, possuem hoje um sentido por assim dizer
"moral" especial — i.e. um sentido segundo o qual implicam algum veredicto
absoluto (como culpado/inocente para um homem) com respeito àquilo que é
descrito nas frases em que "deve" é empregue em certos tipos de contexto: não
apenas os contextos que Aristóteles chamaria de "morais" — paixões e ações —
refora, mas também alguns contextos que ele chamaria de "intelectuais".
Devo julgar que Hume e nossos atuais escritores de ética teriam feito
um belo serviço ao mostrar que não se pode encontrar conteúdo algum na
noção de "dever moral", não fosse o fato que os últimos filósofos tentaram
encontrar um conteúdo alternativo (bastante suspeito) e reter a força
psicológica do termo. Teria sido mais razoável abandoná-lo. Ele não faz
sentido razoável fora de uma concepção legalista em ética; eles não defendem
essa concepção; e você pode fazer ética sem ela, como nos mostra o exemplo
de Aristóteles. Teria sido um grande avanço se, em vez de "moralmente
errado", fossem sempre invocados gêneros como "inverídico", "impudico"
"injusto". Já não nos indagaríamos se fazer algo é "errado", passando
diretamente de alguma descrição de uma ação a essa noção: indagaríamos,
e.g., se foi injusta, e a resposta por vezes se faria clara de imediato.
3 Como é absurdamente chamada. Visto que premissa maior = premissa que contém o termo que é
predicado na conclusão, é um solecismo falar a seu respeito no que tange ao silogismo prático.
4 Os objetivistas oxonienses evidentemente distinguem entre "consequências" e "valores intrínsecos",
produzindo, com isso, a aparência enganosa de não serem consequencialistas. Contudo, não
sustentam — e Ross explicitamente o nega — que a gravidade de, e.g., obter a condenação de
inocentes é tal que não pode ser sobrepujada, e.g., pelo interesse nacional. Sua distinção entre
“consequências” e “valores intrínsecos", portanto, não tem nenhuma importância.
Resta buscar por "normas" nas virtudes humanas: assim como o ho-
mem tem tantos dentes, que por certo não são o número médio de dentes que
os homens têm, mas é o número de dentes da espécie, talvez a espécie homem,
considerada não apenas biologicamente, mas do ponto de vista da atividade
de pensamento e escolha nos vários setores da vida — poderes, faculdades e
uso das coisas de que precisa —, "tenha" tais e tais virtudes e este "homem"
com o conjunto completo de virtudes seja a "norma", como o "homem" com,
e.g., um conjunto completo de dentes é a norma. Nesse sentido, porém,
"norma" deixa de ser grosso modo equivalente a "lei". Nesse sentido, a noção de
uma "norma" nos aproxima antes de uma concepção aristotélica do que de
uma concepção legalista em ética. Não há, julgo, nada de ruim nisso, mas caso
se tente com isso dar um sentido a "norma", deve-se reconhecer o que
aconteceu com o termo "norma", que se pretendia que significasse "lei — sem
introduzir Deus": deixou de significar "lei". E, assim, as expressões "obrigação
moral", "dever moral" e "dever" (duty) têm melhor lugar no Index, caso se as
consiga pôr aí.
Texto originalmente publicado em Philosophy (Journal). Vol. 33, nº 124, 1958, pp. 1-19.
Tradução do livro Sobre a ética nicomaqueia de Aristóteles. Odysseus, 2010, pp. 19-41.