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A Magia dos Contos Literários

Situação de Aprendizagem 01

Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina,
diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando,
sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca,
moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer
de ataque.
Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O
rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó,
o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas
de espuma surgiram no canto da boca.
Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os
moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de
pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando
ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede.
Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado. A velhinha de cabeça grisalha gritou
que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do
corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância.
Dario conduzido de volta e recostado à parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola
na gravata.
Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia
no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria.
Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las. Ocupado o
café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo,
gozavam as delícias da noite.
Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso. Um terceiro
sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e
alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade, sinal de nascença. O
endereço na carteira era de outra cidade. Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos
que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia.
O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi
pisoteado dezessete vezes. O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os
bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio, quando vivo, só
podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão. A
última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu.
A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que
estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto. Um senhor
piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito.
Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem
morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias.
Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos. Um menino de cor e
descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos,
quase o retrato de um morto desbotado pela chuva. Fecharam-se uma a uma as janelas e, três
horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão.
A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a
metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

Texto extraído do livro Vinte contos menores, Editora Record – Rio de Janeiro, 1979, pág.20.

Ampliando o Contexto: Eixo Leitura e Compreensão

1.1) De que se trata o texto de Dalton Trevisan?

1.2) O que o título do texto nos sugere?

1.3) Quem é o protagonista (personagem principal) da história?

1.4) Descreva esse personagem a partir das informações do texto.

1.5) Onde ocorre os fatos do texto narrador?

1.6) Quando ocorrem?

1.7) O que representa a vela na história?


1.8) Quando tem início, o conflito da narrativa?

1.9) Que tipo de narrador temos nesse conto?

10) Como a história termina?

2. Os parágrafos abaixo retirados do texto Uma vela para Dario, se encontram fora da ordem
lógica em que aconteceram o conto. Leia atentamente os parágrafos e ordene-os obedecendo
à sequência em que de fato ocorreram:

( ) Dario rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca.

( ) Não consegue fechar olho nem a boca, onde a espuma sumiu.

( ) Dario levou duas horas para morrer, ninguém acreditava que estivesse no fim.

( ) Não carregam Dario além da esquina, a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais,
muito peso.

( ) Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do Cadáver

( ) Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a esquina, diminui
o passo até parar, encosta-se a uma parede.

( ) O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo – os bolsos vazios.

( ) A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo.

( ) Um terceiro sugere-lhe examinem os papeis...

( ) A última boca repete - Ele morreu, ele morreu.

3. Em textos narrativos como o conto “Uma vela para Dario”, há também elementos da
descrição, quer dizer, a caracterização física ou psicológica de um lugar, objeto ou
personagem. No conto lido, é possível perceber algumas características físicas do protagonista
Dario, bem como objetos pessoais que ele portava. É interessante notar que o autor apresenta
esses elementos paulatinamente ao longo do texto, fazendo com que o leitor, descubra, aos
poucos, o vestuário de Dario, seu porte físico, bem como seus pertences pessoais. Muitas
vezes, o leitor reconhece um objeto pessoal de Dario pela sua falta, como no trecho... - não
tem os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata. Esse modo de escrever, entretanto, revela
ao leitor mais do que descrições da personagem, mostra também um pouco sobre o estilo do
autor ao tratar de temas graves da humanidade como o desprezo ou a indiferença.

Assinale a alternativa que está de acordo com as ideias apresentadas no enunciado acima:

(a) O modo como o autor escreve se assemelha ao estilo encontrado em um texto jornalístico,
não se percebendo no conto qualquer opinião do autor a respeito do fato narrado.

(b) Para que o conto pudesse ser mais bem interpretado, o autor deveria ter, logo no primeiro
parágrafo, registrado todas as características físicas do protagonista.
(c) A linguagem empregada pelo autor vai direto ao ponto, pois em uma só oração consegue,
ao mesmo tempo, apresentar características do protagonista e mostrar fragilidades de
carácter do ser humano.

(d) O conto não leva em conta a importância do leitor, pois faz com que este tome pleno
conhecimento do que ocorre na história aos poucos, muitas vezes sugerindo mais do que
efetivamente informando.

4. No conto de Dalton Trevisan, embora não se identifique o uso de expressões exageradas ou


de carga sentimental, percebe-se certo tom de denúncia de alguns comportamentos
questionáveis do ser humano. Observe os trechos abaixo, retirado do conto, e deduza qual(is)
comportamento(s) o autor do texto reprova em cada um deles:

(a) “Mas não se vê guarda-chuva ou cachimbo a seu lado”.

(b) “Já no carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará a corrida?

Concordam chamar a ambulância?.“

c) “Várias pessoas tropeçam no corpo de Dario, pisoteado dezessete vezes”. Leitura


Complementar: Considere o texto abaixo: um trecho retirado do conto:” Uma vela para Dario”
com uma reflexão da psicóloga Maria Laurinda Ribeiro de Souza, a partir de uma notícia de
jornal para responder as questões 5 e 6.
5 -Em que medida o trecho do conto se aproxima do que a socióloga Maria Laurinda afirma
sobre o comportamento humano em relação à violência?

6- No quadro “características do conto”, que se encontra abaixo temos as seguintes


informações:

*Trecho fictício. Fruto da imaginação do autor, não precisa corresponder a realidade.

*Tem como princípios finalidades: seduzir o leitor, compartilhar com ele acontecimentos,
sentimentos e ideias, como também levá-los à reflexão sobre comportamentos e atitudes
humanas.

*É uma narrativa linear e curta, tanto em extensão quanto no tempo em que se passa.
* A linguagem é simples e direta, não se utiliza de muitas figuras de linguagem ou de
expressões com pluralidade de sentidos.

* Todas as ações se encaminham diretamente para o desfecho.

*Envolve poucas personagens, e as que existem se movimentam em torno de uma única ação.

*As ações se passam em um só espaço, constituem um só eixo temático e um só conflito.

* A habilidade com as palavras é muito importante, principalmente para se utilizar de alusões


ou sugestões, frequentemente presentes nesse tipo de texto.

Comparando-se a características e a finalidade, acima destacadas, de um conto, e a notícia


Mulher é assaltada duas vezes na mesma semana, podemos afirmar que a notícia não é um
texto literário. Aponte, pelo menos, duas diferenças básicas entre o conto, um texto literário, e
a notícia, um texto informativo.

Ampliando o Contexto: Eixo Análise Linguística

7- Cada palavra e/ou expressão que o autor seleciona para seu texto tem sempre uma
intenção e revelam significados, muitas vezes, que vão além do sentido literal. Observe o
trecho abaixo, retirado do conto: “Uma vela para Dario”:

“É largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobre o rosto,...”

Explique o que o fato de o autor haver escolhido uma “peixaria” revela sobre o modo como o
moribundo foi tratado pelas pessoas.

8- No trecho: Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e, agora,
comendo e bebendo, gozam as delícias da noite, o verbo apreciam foi usado em tom de
ironia.

A ironia é um recurso expressivo da linguagem em que uma palavra é empregada em sentido


oposto ao que tem usualmente, para provocar crítica ou humor. Leia este exemplo: A mãe diz
ao filho que lhe entrega um boletim escolar com 7 notas vermelhas, de um total de 10
disciplinas: - Muito bonito, hein, José! A manifestação da mãe foi irônica, pois não há nada de
bonito em tirar tantas notas vermelhas. A mãe usa uma expressão positiva para caracterizar o
que, de fato, é um problema.

Volte ao trecho do conto em destaque e explique em que consiste a ironia no uso do verbo
apreciam.

9- “Registra-se correria de uns duzentos curiosos, que, a essa hora, ocupam toda a rua e as
calçadas: é a polícia”. A expressão “duzentos curiosos” foi usada no sentido figurado, ou seja,
não significa que havia realmente duzentas pessoas perto de Dario.
O exagero no número de pessoas que se aproximam de Dario revela algo sobre o
comportamento delas, que é:

(a) A compaixão

(b) O amor ao próximo

(c) À curiosidade mórbida

(d) O luto

(e) A revolta

10- No conto, as orações “A última boca repete – Ele morreu, ele morreu.” “A gente começa a
se dispersar” estão organizadas no parágrafo dentro de uma sequência lógica, para
demonstrar que:

(a) Os moradores que estavam à janela poderiam voltar aos seus afazeres.

(b) Os frequentadores do café precisavam ir a outro evento.

(c) As pessoas perderam o interesse em Dario tão logo viram que ele havia morrido.

(d) O lugar em que estava Dario precisava ser liberado para a aproximação da polícia.

(e) A humanidade respeita o sofrimento alheio, portanto deixa Dario sozinho.

11- O título do conto: “Uma vela para Dario” relaciona-se ao final da história: “Um menino de
cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver.”

a) A atitude do menino estabelece uma relação de oposição ou de validação do padrão de


comportamento das pessoas que surrupiaram os objetos pessoais de Dario e até o
pisotearam? Por quê?

b) O fato de Dario receber a solidariedade de uma criança descalça é uma atitude inesperada.
Levante hipóteses: qual seria a intenção dessa escolha do autor?

c) Há outro momento da história em que se reconhece um gesto caridoso em relação a Dario,


ainda que ineficaz. Nesse trecho o autor usa um adjetivo para qualificar positivamente a
pessoa que pratica o ato de solidariedade. Qual é esse trecho?

12- A palavra “vela” tem vários significados. Dentre os sentidos literais, “vela” pode ser uma
peça de cera com um pavio central em toda a extensão e cuja chama serve para iluminar. No
sentido conotativo ou figurado, dependendo do contexto cultural, a vela pode ser considerada
um objeto simbólico, normalmente associado à ideia de iluminação espiritual. Levando em
conta essas reflexões e a situação precária que Dario enfrenta antes e depois de sua morte,
que sentido a vela, que se “apaga as primeiras gotas da chuva”, adquire no conto Uma vela
para Dario?

13- Se as pessoas estivessem realmente preocupadas com o bem-estar de Dario quais medidas
concretas elas deveriam ou poderiam ter tomado para salvá-lo?

14- O modo como o autor Dalton Trevisan expõe as ideias em seus contos é reconhecido por
ele mesmo como objetivo, telegráfico, “enxuto” e conciso. É esse jeito de escrever que confere
à sua obra uma característica marcante de seu estilo literário que é o uso da ironia para
retratar as falhas morais humanas. Essa concisão na maneira de redigir pode ser evidenciada
no conto: “Uma vela para Dario”. Observe a oração abaixo:

“Não carregam Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais,
muito peso”.

Se a essa oração fossem adicionados verbo, substantivo e termos relacionais, palavras que
fazem a ligação entre as ideias, como conjunções (que, ainda que, mas etc.) e preposições (a,
até, antes, para etc.) ela poderia até informar com mais clareza o leitor, mas, por outro lado,
ficaria mais extensa e descaracterizaria o estilo de escrever do autor.

A oração, reescrita, poderia ficar, por exemplo, dessa maneira:

“Não carregam Dario além da esquina, ainda que a farmácia ficasse no fim do quarteirão; além
do mais, Dario era muito peso (ou era pesado para ser carregado)”.

Você é capaz de reescrever a oração abaixo, retirada do conto, inserindo as conjunções mas e
pois e o verbo estão? Lembre-se de que esse exercício tem o objetivo de ajudá-lo a perceber
as escolhas que o autor faz para transmitir suas ideias e não desvalorizar o modo de escrever
dele. Vamos tentar?

O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo os bolsos vazios.

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