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E UCLID ES DA CUN H A ,

O ITAM ARATY E A A M AZÔ N IA


M IN ISTÉRIO D AS R ELAÇÕ ES E X TERIO RES

M inistrodeE stado Em baixadorCelso Am orim


Secretário-G eral Em baixadorSam uelPinheiro G uim arães

FU N D AÇÃO A LEX AN D RE D E G U SM ÃO

Presidente Em baixadora M aria Stela Pom peu BrasilFrota

IN STITUTO RIO BRAN CO (IRBr)

D iretor Em baixadorFernando G uim arãesReis

A FundaçãoA lexandredeG usmão(Funag),instituídaem 1971,éum afundação públicavinculadaao M inistério


das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil inform ações sobre a realidade
internacionale sobre aspectos da pauta diplom ática brasileira.Sua m issão é prom overa sensibilização da
opinião pública nacionalpara ostem asde relações internacionaise para a política externa brasileira.

M inistério dasRelaçõesExteriores
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O Instituto Rio Branco (IRBr),criado em abrilde 1945,é o órgão do M inistério das Relações Exteriores
(M RE)e tem com o finalidadeo recrutam ento,aform ação eo aperfeiçoam ento dosdiplom atasbrasileiros.
O IRBrorganiza,regularm ente,o Concurso de Adm issão à Carreira de D iplom ata,e m antém o Curso de
Form ação,o Curso de Aperfeiçoam ento de D iplom atas (CAD )e o Curso de Altos Estudos (CAE).

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K ASSIUS D IN IZ D A SILVA PO N TES

E UCLID ES DA CUN H A ,
O ITAM ARATY E A A M AZÔ N IA
Prê m io Azeredo da Silveira - 2º colocado
entre as dissertações apresentadas no
M estrado em D iplom aciado IRBr,2002-2004

C O LEÇÃO RIO BRAN CO

IN STITU TO RIO BRAN CO


FU N D AÇÃO A LEX AN D RE D E G U SM ÃO

BRASÍLIA 2005
Copyright©

Projeto de foto da capa:João Batista Cruz

D issertação apresentadaao Program adeForm ação eAperfeiçoam ento – prim eira


fase (profa-i)do Instituto Rio Branco com o parte dos requisitos para a obtenção
do título de M estre em D iplom acia,sob orientação da Professora M aria Angélica
M adeira.

Prê m io Azeredo da Silveira – Instituto Rio Branco -M estrado 2002-2004

D ireitos de publicação reservados à

Fundação Alexandre de G usm ão (Funag)


M inistério das Relações Exteriores
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Im presso no Brasil2005

D epósito Legalna Fundação Biblioteca N acional


conform e D ecreto n° 1.825 de 20.12.1907
SU M Á R IO

Introdução .........................................................................................................7

I-Euclidesda Cunha e a prim eira república.............................................13


1.1.Euclidesda Cunha e a política:a ideologia republicana e
o reform ism o social.........................................................................18
1.2.Euclidese asciê ncias........................................................................28

II-O Ingresso no Itam araty........................................................................37

III-A Am azônia na agenda de política exteriordo Brasil......................49


3.1.O sproblem asde fronteira com o Peru.........................................51
3.2.A viagem de Euclidesà Am azônia.................................................59
3.3.O relatório oficialda Com issão de Exploração
do Alto Purus.....................................................................................63

IV -Euclidesda Cunha e a Am azônia........................................................69


4.1.Am azônia,Terra sem história .............................................................71
4.2.A crítica social....................................................................................78
4.3.O discurso etnográfico:o sertanejo...............................................87
4.4.O discurso etnográfico:o caucheiro..............................................91
4.5.O JudasA hasverus...............................................................................98
4.6.A integração da Am azônia ao Brasil...........................................102

V -Euclidesda Cunha e a Política Internacional...................................108


5.1.O contexto sul-am ericano ............................................................112
5.2.A disputa interim perialista............................................................115
5.3.“Peru versusBolívia” .......................................................................122
5.4.A controvérsia com Zeballos.......................................................131
5.5.O trabalho de adido e osdilem asde um m em bro da
intelligentsia de classe m édia..........................................................135

Conclusões....................................................................................................141

Bibliografia ...................................................................................................147
IN TRO D UÇÃO
IN TRO D U ÇÃO

O presente trabalho -originalm ente apresentado com o dissertação


dem estrado no Instituto Rio Branco,sob aorientação daProfessoraM aria
AngélicaM adeira,eavaliadapelasProfessorasLúciaLippiO liveira(FG V/
RJ)eM arizaPeirano (U nB),cujasvaliosasobservaçõesagradecem os-tem
com o objetivosfundam entaisrecuperara m em ória histórica da passagem
de Euclides da Cunha pelo Itam araty e analisar os textos que produziu
sobreaAm azôniaesobreapolíticainternacionaldesuaépoca.A correlação
dostem asdecorre do fato de que osdiversosensaiosde Euclidessobre a
Am azônia e o cenário político internacionalda prim eira década do século
X X foram produzidos durante seu trabalho na Chancelaria brasileira,
inicialm ente com o chefe da com issão de lim ites com o Peru e
posteriorm ente com o adido do Barão do Rio Branco.

O estudo serádesdobrado,nessaesteira,em trê seixosfundam entais.


O prim eiro deles retom a a trajetória de Euclides da Cunha no Itam araty,
de sua adm issão até a viagem à Am azônia e sua atuação com o adido do
Barão do Rio Branco.O segundo detém -se na apreciação de seus textos
sobre a Am azônia,sobretudo do livro À M argem da H istória (1909)e de
alguns dos artigos presentes na coletâ nea ContrasteseConfrontos(1907).O
últim o tem porobjeto asconcepçõesfundam entaisde Euclidesda Cunha
sobre a política externa brasileira e a realidade internacionaldo início do
século XX .O s segm entos em questão são antecedidos,porém ,por um
capítulo introdutório,voltado à análisedesuainserção no cam po intelectual
da Prim eira República.

Essas considerações acerca do contexto intelectuale político da


Prim eira República tê m com o propósito apresentar os aspectos
fundam entaisdo pensam ento deEuclides.Suaform ação sedeu natransição
do Im pério paraaRepública,eo fato deaderirao credo republicano ainda
quando estudantedaEscolaM ilitarterárepercussõesim portantesem suas
concepções ideológicas e nas leituras que fará durante esse período.O

9
sentim ento nacionalista e o espírito cientificista que perm eiam toda sua
obra deitam raízesnesse período de form ação intelectual.

O prim eiro capítulo consubstancia,logo,um a reflexão teórico-


m etodológica baseada em conceitos capazes de colaborar na análise do
pensam ento deEuclidesdaCunha.Tendo em vistaqueum dospropósitos
do trabalho é o de elucidar a relação de Euclides com personagens
proem inentes em sua época - sobretudo o Barão do Rio Branco -,a
utilização do conceito de“cam po intelectual” ,conform edesenvolvido por
Pierre Bourdieu,seráum adaschavesexplicativasdasposiçõesdo escritor
no contexto histórico específico da Prim eira República. É à luz das
preocupaçõesgeradasno interiordo cam po intelectualedo grupo sociala
que pertencia E uclides que poderem os interpretar m elhor seus
pronunciam entossobre asidéiasem voga na transição para o século XX .

O conceito de“cam po intelectual” não esgota,porém ,o instrum ental


m etodológico necessário para o exam e do pensam ento euclidiano.O fato
de a obra de Euclidestersido lida criticam ente durante m uito tem po por
autoresquetrouxeram à bailao exam ede seuscondicionantesideológicos
obriga ao m anejo do conceito de ideologia ao longo do trabalho.
Apoiarem o-nos,nesse sentido,na concepção de ideologia fixada porK arl
M annheim ,que com preende esse conceito com o um conjunto de idéias
derivadasda visão de m undo de um grupo socialespecífico.

U m últim o conceito,o de intelligentsia de classe m édia,presente na


obra de N orbertElias,será utilizado com o intuito de explicitar o papel
queosintelectuaisbrasileirosdesseestrato socialtiveram no debatepúblico
sobre osrum os da República.Trata-se de um conceito que se relaciona e
com plem entaosdoisanteriores,dem odo quecam po intelectual,ideologia
e intelligentsia constituem a tríade que contribuipara a exposição dasraízes
e doselem entosque conform aram o pensam ento de Euclides.

U m a vez ultrapassada a reflexão sobre a relação entre Euclidese a


Prim eira República,objeto do prim eiro capítulo,ficam estabelecidos os
pressupostospara o estudo de sua trajetória no Itam araty,o que será feito
no segundo capítulo.Retom a-se,de início,o processo de sua adm issão na
Chancelaria,nacondição de chefe dacom issão de lim itescom o Peru.Sua
relação com o Barão do Rio Branco tam bém é analisada,haja vista que

10
Euclidesfoium dosintelectuaisquefizeram partedo círculo m aispróxim o
ao Chancelerbrasileiro – o que nos rem eterá,novam ente,ao conceito de
cam po intelectual.Em seguida,procede-seà apresentação doseventosque
cercaram sua viagem à Am azônia e dos trabalhos que daíresultaram ,
sobretudo o relatório oficialda com issão de lim itescom o Peru.

O s dois capítulos seguintes dedicam -se, respectivam ente, à


apresentação da viagem de Euclidesà Am azônia e à interpretação de seus
ensaiosam azônicos,sobretudo do livro À M argem daH istória.N essesentido,
o terceiro capítulo discorre sobre os problem as de fronteira com o Peru,
analisa os artigos sobre a questão publicados no jornalO Estado de São
Paulo e rem em ora a viagem de Euclides à Am azônia,com o objetivo de
quesetenhaum avisão panorâ m icadosproblem asqueenvolviam aregião
à época.Em seguida,no quarto capítulo,procede-seao estudo dosensaios
e artigosque reproduzem asexperiê nciasque Euclidesteve no Am azonas
eno Acre.Essestextoscolocam o escritornacondição deum dosprim eiros
intérpretesdaAm azônia.Suavisão contem plavatanto aspectosfísicoscom o
um aoriginalexposição dosproblem associaisvividospelapopulação local,
oferecendo ao leitor,por conseguinte,um a perspectiva com plexa da
realidade am azônica.O exam e da assertiva de que a Am azônia era um a
“terra sem história” é o passo inicialna interpretação dos ensaios de
Euclides,situando sua com preensão da região a partirdasleiturasque fez
denaturalistasestrangeiros.Em seguidaserão estudadosaspectosespecíficos
de seustextos,com o a crítica social-sobretudo a denúncia da exploração
do seringueiro -, o discurso etnográfico sobre os personagens que
protagonizavam o trabalho na selva - o seringueiro e o caucheiro - e a
descrição da cerim ônia do “Judas Ahasverus” ,um dos capítulos m ais
contundentesde À M argem da H istória.

O últim o capítulo alm ejareconstruiravisão queEuclidestinhados


problem asde política internacionalde seu tem po.Algunstem asm erecem
destaque,com o suasopiniõesacerca do contexto político sul-am ericano e
dadisputainterim perialistaentreEstadosU nidoseAlem anha.Sobreessas
duasquestõesEuclidesescreveu artigospublicadosinicialm entenaim prensa
eposteriorm enteno livro ContrasteseConfrontos.N essesegm ento seprocede
ainda à análise do livro Peru versusBolívia,escrito em razão de seu trabalho
no Itam aratyeporsolicitação diretado Barão do Rio Branco.Seu trabalho
com o adido tam bém éresgatado -apósseu regresso daAm azôniaEuclides

11
trabalhou com o cartógrafo na chancelariaentre 1906 e 1909 -,bem com o a
controvérsiacom o Chancelerargentino Estanislau Zeballos,aspecto pouco
conhecido desuabiografiaporém relevanteem suapassagem pelo Itam araty.

Em sum a,o prim eiro capítulo do presente trabalho – “Euclidesda


Cunha e a Prim eira República” – alm eja oferecer o contexto histórico,
político eintelectualem queEuclidesviveu.Essepano defundo perm itirá
um a m elhor com preensão de sua adm issão no Itam araty – objeto do
segundo capítulo – e dos textos que produziu após sua expedição à
Am azônia.Assim ,a expedição é o objeto do terceiro capítulo e osensaios
am azônicos são estudados no capítulo seguinte. Por derradeiro, são
apresentadasasconcepçõesfundam entaisdeEuclidessobreproblem asde
política internacional.Com o verem os,o interesse por essas questões foi
acentuado apósseu ingresso no Itam araty,já que o trabalho o colocou na
posição de observadorprivilegiado dasquestõesinternacionais.

O exam e da trajetória de Euclides no Itam araty e o estudo de seus


ensaiosam azônicoscham aa atenção para um m om ento pouco explorado
de sua vida,que vai de 1904 a 1909.D urante esse período Euclides
desem penhou suas funções com o chefe da com issão de lim ites com o
Peru ecom o adido do Barão do Rio Branco.O stextosqueproduziu nesse
intervalo de tem po são,em linhasgerais,analisadosno presente trabalho.
Em bora m enos conhecida, a obra de Euclides sobre a A m azônia
com partilhaalgum ascaracterísticascom OsSertões,sobretudo naconciliação
dosdiscursosliterário e científico e napreocupação em revelararealidade
dasregiõesm aisdistantesdo litoralbrasileiro.Ainda que a planejada obra
sobre a Am azônia – U m Paraíso Perdido – não tenha sido concluída em
razão desuaprem aturam orte,osensaiosqueEuclidespublicou não deixam
de constituir um esforço pioneiro de interpretação da Am azônia,sendo
ainda hoje de interesse para o conhecim ento da região.

D a m esm a form a,o trabalho no Itam araty perm itiu que Euclides
daCunha m antivesse contato com personalidadespolíticase diplom áticas
im portantesem suaépoca,notadam entecom o Barão do Rio Branco.U m a
vez inserido nesse am biente político e intelectual,pôde desenvolverum a
perspectiva própria sobre a República e discutir a inserção do Brasilno
cenário internacional.A recuperação dessasconcepçõesépasso im portante
para um a m elhorcom preensão de sua obra.

12
I-E UCLID ES D A CUN H A
E A PRIM EIRA REPÚBLICA
I.E U CLID ES D A C U N H A
E A PRIM EIRA R EPÚ BLICA

A com preensão do papeldesem penhado porEuclidesdaCunhano


Itam araty não dispensa a contextualização de seu pensam ento e de sua
posição socialno quadro da República proclam ada em 1889.O estudo de
seu pensam ento requer,portanto,um a reflexão correlata,concernente ao
substrato socialem queviveu equetevepapelim portantenaconform ação
de suas posições político-ideológicas.Esse estudo prelim inar se justifica
pela circunstâ ncia de que na obra de Euclides interagem com nitidez
elem entos de ordem política e literária,sendo possívelassinalar que sua
produção enfeixaum avisão específicasobrearealidadesocialdaépoca.A
m elhorinterpretação desuaobrapassa,porconseguinte,pelacom preensão
dosfatoreshistóricosa ela subjacentes.

N ão se trata,contudo,de adotarum a concepção determ inista,no


sentido dequeostextosdeEuclidessão m oldadosporfatoressociológicos
e carecem ,assim ,de autonom ia do ponto de vista estético.Trata-se,ao
contrário,decom preendertanto osaspectossociológicosinerentesà obra,
com o considerarsua estrutura com o sendo dotada de qualidadesestéticas
que independem do fato de o texto refletir ou não certas realidades.O s
aspectossociológicos pertinentesdevem sertom ados,nesse passo,com o
um elem ento interno,e não externo,da obra.O texto não deve servisto
nem com o um sim plesespelho darealidade,nem com o um aestruturaque
não travanenhum arelação com o contexto em quefoiproduzida.Antonio
Candido cham aaatenção paraaim prescindibilidadedequesecom binem ,
naanáliseliterária,tanto fatoresexternos(sociais)com o internos(estéticos):

“H ojesabem osqueaintegridadedaobranão perm iteadotarnenhum a


dessasvisõesdissociadas;e que só a podem osentenderfundindo texto e
contexto num ainterpretação dialeticam enteíntegra,em quetanto o velho
ponto de vista que explicava pelos fatores externos,quanto o outro,

15
norteado pela convicção de que a estrutura é virtualm ente independente,
se com binam com o m om entosnecessáriosdo processo interpretativo” .1

D essa m aneira,o exam e do trabalho de Euclides num a instituição


oficialrende ensejo a reflexões sobre as relações entre os intelectuais e o
poderno lim iardo século X X.A nom eação de Euclidesparaum cargo no
Itam araty se deveu,além de sua reconhecida com petê ncia intelectual,à s
relações de am izade que m antinha com im portantes figuras da época,
inclusive com um dos personagens m ais representativos da prim eira fase
daRepública,o Barão do Rio Branco.O quepeculiarizaaobradeEuclides,
contudo,é que m esm o a condição de funcionário do Estado não im pediu
que oslivrospublicadosapóssua viagem à Am azônia – com o Contrastese
Confrontose À M argem da H istória – perdessem o vigor de crítica sociale
políticaquem arcou OsSertões.N ecessário enfatizar,logo,queseu trabalho
no Itam aratyeaadm iração quenutriaporRio Branco eoutrospersonagens
em inentes do cenário político não tolheram a irresignação com osrum os
tom ados,à época,pelo regim e republicano.

A alusão à relação deEuclidescom figurasim portantesdaPrim eira


República leva-nosao conceito de “cam po intelectual” .Pierre Bourdieu o
define com o um “sistem a de posições predeterm inadas” ,perm itindo
explicar

“o queasdiferentescategoriasdeartistaseescritoresdeum adeterm inada


época e sociedade deviam ser do ponto de vista do habitussocialm ente
constituído,para que lhes tivesse sido possívelocupar as posições que
lheseram oferecidasporum determ inado estado do cam po intelectuale,
ao m esm o tem po,adotaras tom adas de posição estéticas ou ideológicas
objetivam ente vinculadasa estasposições” .2

A posição específicadeEuclidesno cam po intelectualaquepertencia


é,com o verem os,adosescritoresdeclassem édiam arcadospelaexperiência
daProclam ação daRepública.D esdeo tem po deestudantedaEscolaM ilitar
Euclides já professava seu entusiasm o pelos projetos de reform a social.
Sua pertinê ncia a essa fração do cam po intelectualo levará a m anifestar,

1
Candido,Antonio.Literatura eSociedade.8ª ed.São Paulo,T.A.Q ueiroz,2000;Publifolha,2000,p.5-6.
2
Bourdieu,Pierre.A Economia dasTrocasSimbólicas.São Paulo,Ed.Perspectiva,1974,p.190.

16
com o assinalam aspalavrasdeBourdieu,um agam ade“posiçõesestéticas
ou ideológicas objetivam ente vinculada a estas posições” .Essas posições
consistirão no flertecom asteoriascientíficascentraisem voganaEuropa
e na tentativa de afirm ara nacionalidade brasileira tanto do ponto de vista
territorial(daía adm iração por Rio Branco) com o racial(preocupação
presente tanto em OsSertõescom o nos ensaios am azônicos).Assinale-se
que após a proclam ação da República o grupo a que pertencia Euclides
deixa de sero dos republicanos propriam ente ditos,já que o processo de
m udança de regim e viria a se consum arantesda virada do século,e passa
a ser principalm ente o dos intelectuais e cientistas de classe m édia,
culm inando em suaeleição paraaAcadem iaBrasileirade Letras,em 1903.

D urante sua vida Euclides exerceu basicam ente funções ligadas ao


Estado,sejacom o m ilitar,engenheiro,funcionário do Itam aratyou professor.
As diversas passagens pelo aparelho de Estado não acarretaram ,contudo,
grandestransform açõesnasposiçõespolíticasdo escritor.O inconform ism o
com apolíticanacionalm anteve-seo m esm o,etalvez tenhaatéseagudizado
apósa consolidação do regim e republicano,pelo qualEuclideslutou desde
osprim órdiosdesuacarreiram ilitaredesdeo início desuacolaboração com
a im prensa.O s ensaios de Euclides sobre a Am azônia – escritos após a
viagem oficialao Am azonas e ao Acre – revelam ,nesse passo,a m esm a
com batividade socialque caracterizam seustextosanteriores.

U m dos pontos que sobressaem é,desse m odo,a sim biose entre


duasfacetas de Euclides:o funcionário de Estado,colaboradordireto do
Barão do Rio Branco,e o reform ador social,cioso dos rum os tom ados
pela República.Essas duas dim ensões ilum inam o cam po intelectual
específico em que operou.Com o funcionário de Estado Euclides pôde
pensara República e osinteressesgeopolíticosdo Brasilm aisativam ente,
e com o reform ador socialnão se escusou de dialogar com as ideologias
políticas que lhe foram contem porâ neas,inclusive com o m arxism o.3 O s
ensaios am azônicos denotam essa dupla perspectiva. A o lado de
ponderações e análises técnicas relevantes para o trabalho burocrático,
em ergem asconsideraçõesde ordem sociológica e a crítica social.M esm o
ostextospropriam enteoficiais,com o o relatório dacom issão,evidenciam
a coexistê ncia dessasduasdim ensõescontrastantes.

3
Cf.item 4.2,infra.

17
O estilo vigoroso de Euclides,constatado principalm ente em seus
artigosnaim prensa,justificam o pseudônim o utilizado nosprim eirostextos
publicados no jornalA Província deS.Paulo:Proudhon.A alusão ao líder
socialista francê s do século XIX revela as aspirações de reform a social
acalentadasporEuclidesdesdesuajuventude.Paraele,Proudhon seria“o
pensadorm aisoriginaldo nosso século” .4

O exam e do papelpúblico de Euclidesda Cunha,com o intelectual


efuncionário do Estado natransição entreosséculosXIX eXX ,seráfeito
a partirde duaschaves explicativas principais.D e início,serão apreciadas
asrelaçõesde Euclidescom a políticae suasconvicçõesideológicas.N um
segundo m om ento,passarem osao estudo de suasrelaçõescom aciê nciae
com oscírculosintelectuaisde sua época.Para isso nosapoiarem ostanto
no conceito de “ideologia” com o no de “intelligentsia” de classe m édia.

1.1 -E U CLID ES E A POLÍTICA :A ID EOLOG IA REPU BLICA N A


E O REFORM ISM O SOCIA L

Com o intelectual,Euclides da Cunha não se furtou a m anifestar,


sobretudo por interm édio da im prensa,suas im pressões sobre a política
brasileirano m om ento dainstauração daRepública.O traço m aism arcante
desuasreflexõespolíticasiniciaiséo evidenterepublicanism o.Suaform ação
ocorreu num am bienteim pregnado pelosideaispositivistasquecolocavam
em xequeam onarquiaeesposavam aciê nciacom o instrum ento prim ordial
de análise da sociedade e da natureza.Essa form ação cientificista,obtida
nos anos em que estudou na Escola M ilitar da Praia Verm elha,se fará
presente de m odo indelévelem suasconvicçõespolíticas.

Ao nosreferirm osà “ideologia” quesem anifestanaobradeEuclides


tem os em m ente a “concepção total” de ideologia desenvolvida porK arl
M annheim .Para M annheim ,a concepção totalrefere-se à “ideologia de
um a época ou de um grupo histórico-socialconcreto,porexem plo,a de
um a classe,ocasião em que nos preocupam os com as características e a
com posição da estrutura totalda m ente desta época ou deste grupo” .5

4
Cunha,Euclides da.“Atos e Palavras” .In:Obra Completa,v.1,Rio de Janeiro,Ed.N ova Aguilar,
1995,p.611.
5
M annheim ,K arl.Ideologia eU topia.4ª ed.Rio de Janeiro,Ed.G uanabara,1986,p.82.

18
N ão se trata,assim ,de um a concepção particularde ideologia,peculiarao
pensam ento m arxista,segundo a qual as idéias apresentadas por um
interlocutor“são encaradascom o disfarcesm aisou m enosconscientesda
realnatureza de um a situação,cujo reconhecim ento não estaria de acordo
com os seus interesses” .6 Ao revés,cabe analisaras opiniões de Euclides
não com o representaçõesde interessesparticularesdo escritor,m ascom o
um leque de posiçõesderivadasda visão de m undo de seu grupo social.

D esse m odo,aideologiaveiculadanaobradeEuclidesserátom ada


com o um conjunto de idéiasgestado no contexto histórico-socialem que
viveu o escritor.Essa“concepção total” deideologiadepende,com o registra
M annheim ,de um a análise m ais com preensiva das idéias vigentes no
“cam po intelectual” (recorrem os novam ente ao conceito de Bourdieu)a
que Euclides esteve ligado.Iniciarem os,logo,pela exposição panorâ m ica
do processo histórico testem unhado por Euclides durante o período de
sua form ação intelectual.

O episódio m ais em blem ático do republicanism o de Euclides é o


protesto queefetuouem 1888duranteavisitado M inistrodaG uerrado Im pério
à Escola M ilitar.O episódio,supostam ente planejado em grupo,acabou
consistindo num aação isoladadeEuclides,que,ao desem bainharseu sabree
atirá-lo ao chão,acabou selando sua expulsão da instituição,à qualretornou
som ente após a proclam ação da República.A adesão dos alunos da Escola
M ilitar aos princípios republicanos e positivistas decorria não apenas da
influê ncia direta de professores com o Benjam in Constant,m as tam bém da
insatisfação com ascondiçõesde trabalho e com a política de prom oçõesdo
Exército.Todavia,o protesto de Euclidesnão se deveu apenas à dem ora na
prom oção ao posto de alferes-aluno.A intenção de defender a República
tam bém sefaziapresente.Roberto Venturaassinalaque,anosdepoisdo protesto,
EuclidesdaCunhaconfessou aG astão daCunhaque“seu protesto faziaparte
deum plano derebelião paraproclam araRepública,queacabou sendo traído
peloscolegas” .7 Aindasegundo o relato deEuclides,aspalavrasquedirigiu ao
m inistro Tom ásCoelho deixavam clarassuasconvicçõesrepublicanas.8

6
Ibidem,p.81.
7
Ventura,Roberto.Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha.O rganização de M ário César
Carvalho e José Carlos Barreto de Santana.São Paulo,Ed.Com panhia das Letras,2003,p.74.
8
Ibidem,p.75.

19
A passagem pela Escola M ilitarexerceu,porém ,forte influê ncia na
form ação intelectual de Euclides.O exem plo de Benjam in Constant,
positivista de grande ascendê ncia junto aos alunos,ajudaria a conform ar
suasconvicçõesintelectuais.Com o registraLuizCostaLim a,parao futuro
escritor“Constantserá um dosparadigm aspara a vida ético-profissional,
sendo de se presum ir,talo paralelism o de suasbiografiasarespeito,haver
sido um dosm odelosque para sem pre o m arcou” .9

Após o episódio ocorrido na Escola M ilitar,Euclides prosseguiu


sua defesa da República porm eio de artigospublicadosna im prensa.Sua
colaboração com o jornalO Estado de São Paulo - então denom inado A
ProvínciadeSãoPaulo- teveinício tam bém em 1888,apósseu desligam ento
da Escola M ilitar.Seu prim eiro artigo na Província foipublicado em 22 de
dezem bro de 1888,quando Euclides contava 22 anos de idade.O texto,
intitulado “A Pátria e a D inastia” ,expressa a fé nosprincípiospositivistas
deevolução dasociedade:“D esiluda-seo governo.A civilização éo corolário
m aispróxim o daatividadehum anasobreo m undo;em anadaim ediatam ente
deum fato,queassum ehoje,naciê nciasocial,o caráterpositivo deum alei
-a evolução -,o seu curso,com o está,é fatal,inexorável,não há tradição
quelhedem oream archa,nem revoluçõesqueaperturbem (...)” .10 O artigo
criticava a decisão do governo im perialde transferir para localidades
distantesosm ilitaresque sim patizavam com a República,com o D eodoro
da Fonseca,que fora rem ovido para o M ato G rosso.11

É no artigo seguinte,porém ,que Euclides vai m anifestar m ais


incisivam ente sua crença na im inê ncia da proclam ação da República.
“Revolucionários” foipublicado em 29 dedezem bro de1888.N eleEuclides
observaqueo “republicano brasileiro deveser,sobretudo,em inentem ente
revolucionário” 12,no sentido de que tem de destruir para,em seguida,
construirum a nova sociedade.Assevera,ainda,que “a política do século
X IX cham a-se dem ocracia” ,assinalando que “de há m uito a colaboração
de todas as ciê ncias e das tendê ncias naturais de nosso tem peram ento,

9
Lim a,Luiz Costa. E uclides da Cunha – contrastes e confrontos do Brasil.Rio de Janeiro, Editora
Contraponto/Petrobrás,2000,p.8.
10
Cunha,Euclides da.“A Pátria e a D inastia” .In:Obra Completa,v.1,cit.,p.597.
11
Ventura,Roberto.Retrato interrompidoda vida deEuclidesda Cunha,cit.,p.78.
12
Cunha,Euclides da.“Revolucionários” .In:Obra Completa,v.1,cit.,p.597.

20
despiu-ado frágilcaráterdeum aopinião partidária,pararevesti-ladafortaleza
dalógicainquebrantáveldeum adedução científica” .13 A adesão aosprincípios
dem ocráticosserám anifestadatam bém em outrosartigos.Euclides,todavia,
não em prega o term o “dem ocracia” para designar,literalm ente,o governo
do povo pelo próprio povo.Em artigo posterior,publicado já em 1889,ele
contesta oscríticosdosrepublicanosque m anejam ,com freqüê ncia,a tese
de que a República é inviávelporque o povo não reúne condições de se
autogovernar.ParaEuclides,adem ocracia,no regim erepublicano,não afasta
o m érito ou a aptidão.Segundo ele,o “governo republicano – digam o-lo
sem tem or– é naturalm ente aristocrático – ospergam inhosdessa nobreza,
porém ,ascendem num acontinuidadeadm irável,dasoficinasà sacadem ias” .
N esse sentido,classifica a República com o “o governo de todosporalguns
– m asestessão fornecidosportodos” .14

N um apredição queserevelariacorreta,Euclidesregistranaspáginas
da Província deSãoPaulo,no início de 1889,que a proclam ação da República
era questão de tem po:“Porque sabem os que a República se fará hoje ou
am anhã,fatalm ente com o um corolário de nosso desenvolvim ento;hoje,
calm a,científica,pelalógica,pelaconvicção:am anhã...Am anhãserápreciso
quebrara espadado senhorConde D ´Eu” .15

A participação de Euclides, pela im prensa, nos episódios que


conduziriam à proclam ação da República m arca o início de sua atividade
com o intelectualpúblico.A colaboração com jornaiscom o A ProvínciadeSão
PauloeO D emocrataevidenciam o surgim ento do pensadorinfluenciado pela
ciênciaeo escritordeestilo hiperbólico,engajado nam ilitâ nciapelareform a
social. Esse envolvim ento com o processo de m udança política e
transform ação socialnão cessará com a proclam ação da República.As
deficiênciasdo novo regim efarão com queEuclides,frustrado com osrum os
do país,continue defendendo m udanças,ainda que de form a m aisdiscreta.
Ao entusiasm o inicial,portanto,seguiu-se a desilusão com a República.16

13
Ibidem,p.598.
14
Idem.“Atos e Palavras” .In:Obra Completa,v.1,cit.,p.605.
15
Ibidem,p.609.
16
O lím pio de Sousa Andrade pondera que Euclidesé um “falso desiludido” com a República,“pois,
m ais adiante,tentará reacender em sium a cham a qualquer de esperança” .Cf.“Para a Peneira da
H istória” .In:Obra Completa,v.1,cit.,p.590.

21
O vigorquecaracterizaosartigosiniciaisdeEuclidesnaim prensa não
deixa de afetar a qualidade de seus argum entos.Com o ressalta O lím pio de
Souza Andrade,prevalece,em seu noviciado na im prensa,o “gosto pela
generalidadeepelasabstrações,quecaracterizavaasuageração debatalhadores” .
O apego à sidéiasgeraiseabstratasfaziacom queraram entesevoltasse“para
osdetalhes,parao lado objetivo dascoisas,parao concreto darealidade” .17

A ideologia de Euclides,na linha da “concepção total” proposta


por M annheim ,resulta do conjunto de valores que prevaleciam em seu
cam po intelectual:adefesadaRepública,apregação pelareform asocial,o
positivism o e o culto à ciê ncia.Essas trê s vertentes de idéias,típicas dos
estratosde classe m édia insatisfeitoscom osrum osdo Segundo Im pério,
m arcam a form ação ideológica do escritor.

O cenário político brasileiro é,portanto,um areferê nciafundam ental


paraacom preensão daobradeEuclides,quesedistingueporum consistente
substrato histórico,aludindo aacontecim entospolíticosesociaisdo Brasil
nosvinte anosque se seguiram à proclam ação da República.

A presença da política na vida de Euclidesnão se cingiu à spáginas


deseusartigoselivros.D ecepcionado com osproblem aseincongruê ncias
da Prim eira República,Euclides chegou a postular um a candidatura a
deputado porSão Paulo.W alniceN ogueiraG alvão registraqueapolíticaé
um adascarreirasm alogradasdeEuclides,ao lado do m agistério.Q uanto ao
ensaio de candidatura,assevera:“Estim ulado pelosrepublicanospaulistase
especialm ente pela confraria do jornalO Estado deS.Paulo,teve seu nom e
adiantado,m aspreterido,paraum aindicação acandidato.O autordasugestão
foiJúlio M esquita,porém o projeto não foiavante” .18 Com efeito,da
correspondê ncia pessoalde Euclides da Cunha podem os depreender as
circunstâ nciasqueo levaram apostularum acandidaturaadeputado,aúnica
– em alsucedida– incursão concretaquefezem buscadeum m andato eletivo.

Em carta a Júlio M esquita,Euclidesaceita o convite do am igo para


tentara candidatura,atribuindo-a principalm ente à am izade que o unia ao
17
Andrade,O lím pio de Souza.H istória einterpretaçãodeO s Sertões.4ª ed.Rio de Janeiro,Academ ia
Brasileira de Letras,2002,p.59.
18
G alvão,W alnice N ogueira.“Anseios de am plidão” .In:CadernosdeLiteratura Brasileira,nos.13/14.
São Paulo,Instituto M oreira Salles,2002,p.174.

22
diretordeO EstadodeSãoPaulo:“Aceitando o seu convite,espontaneam ente
feito,paraocuparum lugarno próxim o Congresso Constituintedo Estado,
faço-o principalm enteporqueelepartiu deum velho com panheiro delutas
que,conhecendo-m edesdem enino,sabeperfeitam entequeeu seriaincapaz
de aceitarse m e reconhecesse sem atitude para o cargo” .Aludindo a um
dos traços fundam entais de sua personalidade,a introspecção,Euclides
reporta-se tam bém ao passado de m ilitâ ncia republicana – especialm ente
ao episódio deinsubordinação queprotagonizou naEscolaM ilitar:“Apesar
de um a m ocidade revolucionária,sou um tím ido!Assusta-m e qualquer
conceito dúbio ou vacilante.E está nisto explicada m esm o a anom alia de
terperm anecido engenheiro obscuro atéhoje,num regim ecujapropaganda
m e levou até a revolta e ao sacrifício franco,com o sabe” .E rem ata
m anifestando certo entusiasm o com apré-candidatura:“Adem ais,sabeque
não iludireia sua expectativa.Sereino Congresso o que sou aqui– um
trabalhador” .19 Euclides,porém ,não obteveo núm ero devotosnecessário
para sagrar-se candidato pelo Partido Republicano de São Paulo.

Assim ,écerto queo escritor,adespeito dafrustração com osrum os


tom ados pela República,não repudiou totalm ente a possibilidade de
ingressarna política.O fracasso da tentativa em lançarsua candidatura a
deputado,todavia,gerou um arrependim ento inicialno escritor.N o final
do m esm o ano de 1900, relata a seu am igo Reinaldo Porchat que a
em preitada foium “escorregão” :

“O M esquita,esse Júlio M esquita que à s vezes penso ser um irm ão


m aisvelho,ofereceu-m acom adorávelespontaneidade.Aceitei-a.M aseste
desazo,esse escorregão fora da linha reta em que sem pre estive,esse
esquecer pecam inoso da m inha velha rigidez republicana,esse transigir
com a vaidade -paguei-os!Aindabem .Sinto singularconsolo no próprio
travardo desapontam ento que m e estonteou” .20

M uito em boratenhalam entado esse“escorregão foradalinhareta” ,


Euclidesm anteve a pretensão de participarde um a eleição,com o atesta o
19
Carta a Júlio M esquita,s.d.1900.In:G alvão,W alnice N ogueira e G alotti,O swaldo.Correspondê ncia
deEuclidesda Cunha.São Paulo,Edusp,1997,p.120.Asdem aiscitaçõesda correspondê ncia pessoal
e oficialde Euclides da Cunha serão feitas com base nessa edição.
20
Carta a Reinaldo Porchat,em 2 de dezem bro de 1900.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,
p.121.

23
fato detercedido aospedidosdeFrancisco Escobarparaselançarcandidato
a deputado federalporCam anducaia,em M inasG erais21,no ano de 1908.
O ito anos após o insucesso de sua pré-candidatura a deputado por São
Paulo,Euclidesaindanutria,m esm o quedeform atê nue,projetoseleitorais.
Ao aceitarapresentarsua candidatura,justifica a nova tentativaa partirdo
rom antism o eidealism o queo singularizavam desdeo período deestudante
daEscolaM ilitar:“N ão resisto à perspectivaquem edescerras!Sou o m esm o
rom â ntico incorrigível.A idealização subm eto-aaosestudosm aispositivos,
envolvo-a no cilício dos algarism os,esm ago-a no peso das indagações as
m ais objetivas – e ela revive-m e,cada vez m aior,e triunfante” .Anuncia,
adem ais, seu otim ism o com a m issão que alm eja desem penhar no
Congresso:“Penso até,num ím peto depecam inosavaidade,quedestruirei
aesterilidadedeum Congresso deresignados,tolhidosportodaespéciede
com prom issos” .22

Pouco tem po depois,todavia,Euclides desiste da candidatura.


Pondera que “ser deputado nesta terra é hoje um a profissão qualquer –
paraaqualdecididam entenão m epreparei” .PedeaEscobarque“passem os
um a esponja sobre o nosso rom ance eleitoral” .23

A ligação de Euclides da Cunha com a política apresenta,por


conseguinte,característicasbem definidas.O republicanism o eadefesade
reform as sociais são traços m arcantes de sua atuação,bem com o um a
espécie de rom antism o ou idealism o aos quais ele se referiu em diversas
ocasiões.Sua personalidade com bativa do ponto de vista intelectualteve
pouca desenvoltura,contudo,no plano da prática político-partidária.O
fracasso de sua prim eira tentativa eleitorale a precoce desistê ncia de sua
candidatura em M inasG eraisindicam que Euclidesnão estava preparado
para aslideseleitorais,sobretudo em função de seu alegado escrúpulo em
solicitarfavores e adesões e em travarcontato com políticos tradicionais.
Seusím petos“revolucionários” não encontravam ,porconseguinte,espaço
para progredirno cenário político da Prim eira República.

21
G alvão,W alnice N ogueira,op.cit.,p.176.
22
Carta a Francisco Escobar,em 10 de abrilde 1908.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,p.
358.
23
Carta a Francisco Escobar,em 27 de m aio de 1908.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,p.
363-364.

24
Sua participação política vaise concentrar na colaboração com a
im prensa e no contato com personagensproem inentesda época,já que a
passagem pela vida partidária foi efê m era. Seu trâ nsito nos círculos
intelectuais perm itiu-lhe o acesso a políticos e burocratas im portantes.A
ligação com o Barão do Rio Branco, por exem plo, surgiu devido à
interm ediação de intelectuais renom ados,com o José Veríssim o,e de
diplom atasque ocupavam altoscargos,com o O liveiraLim ae D om ício da
G am a.U m outro exem plo dessa conexão com oscírculosde poderpode
ser encontrado na nom eação de Euclides para o cargo de professor de
Lógicado Colégio Pedro II,obtidaduassem anasantesdesuam orte.M uito
em boratenhaficado em segundo lugarno concurso,superado pelo filósofo
Farias Brito,foio nom eado pelo governo,em razão da intervenção de
am igoscom o Rio Branco eo escritoredeputado Coelho N eto,quetinham
influê ncia junto ao presidente N ilo Peçanha.24

Esse episódio explicita,m ais um a vez,a com posição do grupo


intelectuala que Euclides pertencia.Para Bourdieu,a análise do cam po
intelectualrequer,num prim eiro m om ento,a análise da “posição dos
intelectuais e dos artistas na estrutura da classe dirigente” .25 N o Brasil,
durante a Prim eira República,houve um a im bricação m uito clara entre
elites políticas e elites intelectuais.Euclides é um exem plo disso,tendo
trabalhado no Itam araty de 1904 até um pouco antes de sua m orte,em
1909.A ação do Barão do Rio Branco,trazendo para o M inistério das
Relações Exteriores intelectuais conhecidos,evidencia que nas prim eiras
décadas da República o Estado era o locusonde escritores e professores
poderiam obter estabilidade financeira e, em contrapartida,legitim ar
ideologicam ente o novo regim e político.N icolau Sevcenko observa:

“Rodrigues Alves representou a m ais harm oniosa e conseqüente


articulação entreatradição do Im pério,osinteressesdacafeiculturapaulista
e a finança internacional.Rio Branco por seu turno fechou esse círculo
atraindo o grupo deintelectuaisqueagregadosao M inistério dasRelações
Exterioresrepresentaram aintelligentsiado novo regim e,ao m esm o tem po
que consolidou toda a substâ ncia da política interna de Rodrigues Alves

24
Ventura,Roberto.“M em ória Seletiva -À Frente da H istória” .In:CadernosdeLiteratura Brasileira,
núm eros 13 e 14.São Paulo,Instituto M oreira Salles,2002,p.37.
25
Bourdieu,Pierre,op.cit.,p.191.

25
através de sua integração funcionalno sistem a internacionalde forças
políticas” .26

Euclides da Cunha viu-se em diversos m om entos na contingê ncia


de buscarno Estado atão alm ejadaestabilidade financeira,a fim de poder
se dedicarcom m aisafinco aosestudose à literatura.Sua decepção com a
engenharia,com o verem osposteriorm ente,foim anifestadadiversasvezes
aosam igos.N ão tendo logrado obterum acolocação com o professor,apesar
desuaam bição delecionarnaEscolaPolitécnicade São Paulo e naEscola
M ilitardo Rio G randedo Sul(aconquistadacadeiradeLógicano Colégio
Pedro II só ocorrepouco antesdesuam orte),éapenascom o trabalho no
Itam araty que se integra de m aneira m ais efetiva -ainda que não estável,
por ocupar um cargo de estrita confiança do Barão do Rio Branco - à
burocracia estatal.

Para os intelectuais da Prim eira República o Estado representava,


nesse passo,um a forte fonte de atração.N ão obstante,Euclidesm anteve
ascaracterísticascentraisde seu pensam ento.Com o verem os,m esm o nos
textos que produziu quando já em pregado no Itam araty,sobretudo na
coletâ neadeartigoseestudosÀ M argem daH istória,são apresentadascríticas
à situação socialdas populações m ais afastadas dos centros de poder.O
reform ism o socialque am parava seu republicanism o persistiu íntegro
durante toda a sua vida.

É im portanteressaltar,adem ais,queo contexto histórico quem arca


o declínio do Im pério e a ascensão da República é acom panhado por
transform ações sociais e culturais que levam a intelectualidade a buscar
novosfundam entosparaanação.Asconcepçõesfilosóficasqueem ergem
naEuropadesem penham ,nesseprocesso,um papeldecisivo.O darwinism o,
o positivism o com teano e o evolucionism o consubstanciaram -se,a partir
da década de 1870,num ideário que levaria,no Brasil,à defesa ideológica
do republicanism o.A intelligentsia de classe m édia brasileira esforçava-se,
dessam aneira,em sintonizar-secom asprincipaiscorrentesdepensam ento
em voga na Europa.N orbertElias conceitua intelligentsia de classe m édia
com o sendo “num erososindivíduosnam esm asituação edeorigenssociais

26
Sevcenko,N icolau.Literaturacomomissão:tensõessociaisecriaçãoculturalnaPrimeiraRepública.4ªed.São
Paulo,Editora Brasiliense,1999,p.46.

26
sem elhantes espalhados por todo o país,pessoas que se com preendiam
porqueestavam nam esm asituação” .27 Euclides,decisivam enteinfluenciado
pelas concepções científicas m odernas,é um exem plo de com o esse
conjunto de idéias redundaria na defesa,no plano político,de reform as
políticasesociais,lançando m ão deargum entosm uitasvezesfrágeis,dada
adisparidadeentreseu arcabouço ideológico earealidadebrasileira.Ainda
assim ,convém registrar que o projeto dos intelectuais brasileiros m ais
afinados com os centros europeus era prom over,com esteio nas novas
correntes filosóficas,a m odernização do país, do ponto de vista político,
sociale cultural.

O fato de os intelectuais brasileiros passarem a se envolver


progressivam ente na defesa de transform ações,de 1870 até o início do
século X X , leva N icolau Sevcenko a fixar que, nesse período, “o
engajam ento se torna a condição ética do hom em de letras” .28 Ainda
segundo Sevcenko,ostem asquedespontavam naanálisedessesintelectuais
brasileiroseram “aatualização dasociedadecom o m odo devidaprom anado
da Europa,a m odernização das estruturas da nação,com a sua devida
integração nagrandeunidadeinternacionale aelevação do nívelculturale
m aterialda população” .29

Todo o quadro exposto – a ascensão da República e a crença de


Euclides nas possibilidades do novo regim e,bem com o o papelque a
intelligentsiadeclassem édiadesem penhou no período,defendendo reform as
a partirda influê ncia de correntes de pensam ento européias – se presta a
colaborarparaainterpretação daprodução deEuclides,inclusivedostextos
sobre a Am azônia e sobre política internacional,escritos em sua m aior
parte durante o desem penho de atividades no Itam araty.A com preensão
dessesegm ento desuaobraexigequesetenhaem m iraqueEuclideséum
republicano crítico,observadordasquestõespolíticasepregadorconstante
dereform associais.Taisconcepçõespolíticasvão sefazerpresentes,com o
verem os,em suaobraliteráriaeem suasanálisesdaconjunturam undialda
prim eira década do século XX .

27
Elias,N orbert.O Processo Civilizador– U ma H istória dosCostumes.v.1.Rio de Janeiro,Jorge Zahar
Editor,1994,p.36.
28
Ibidem,p.78-79.
29
Ibidem,p.79.

27
1.2 -E U CLID ES E A S CIÊN CIA S

A ligação deEuclidescom asciê ncias,sobretudo asnaturaiseexatas,


m ostra-se nítida na leitura de suasobras.É de se destacarque a apreensão
de certascorrentesfilosóficaseuropéias,sobretudo do evolucionism o,fez
com que incorresse em alguns erros e contradições,notadam ente no que
diz respeito à análise dam isturaderaçase seusreflexosnaconstituição da
nação.D e acordo com N elson W erneck Sodré,o em prego de conceitos
im portados das doutrinas européias indicaria,nos textos de Euclides,a
influê ncia da “ideologia do colonialism o” .Sodré a conceitua da seguinte
form a:“Porideologiado colonialism o seentendeaquio conjunto deidéias
econceitosque,gerado edesenvolvido com aexpansão colonialdasnações
do O cidente europeu,pretende justificara sua dom inação sobre as áreas
de quese haviam apossado em ultram ar(...)” .A ideologiado colonialism o
reuniria,nessepasso,“tudo o quejustificavaaexploração colonial:conceitos
de clim a,conceitosde raça,conceitosde civilização” .30

O conceito de ideologia esposado por Sodré deita raízes na


concepção m arxista,vendo o fenôm eno ideológico sobretudo com o um a
falsarepresentação darealidade.D ifere,nessesentido,da“concepção total”
deideologiaapresentadaporM annheim ,que,com o vim osanteriorm ente,
não corporificaum avisão céticadasidéiasdeum interlocutor,procurando,
antes,perquirir o contexto sociohistórico em que foram produzidas.A
referê ncia anteriorà ideologia de Euclidesnão m antém nenhum a relação,
portanto, com a conotação assum ida pelo term o “ideologia do
colonialism o” ,estando ligada,sim ,à “concepção total” de M annheim .

Ainda que os equívocos dos textos de Euclides sejam inegáveis,a


assertiva de que sua literatura incorpora a ideologia do colonialism o não
reflete aspecto fundam entalde sua obra:a afirm ação da nacionalidade.A
despeito de sua sintonia com as principais vertentes do pensam ento
europeu,Euclidesfoioriginalao m anuseá-lasem suaanáliseecom preensão
histórica do Brasil.O serrosque com eteu com relação à m estiçagem ,por
exem plo,são m itigados,tanto em OsSertõescom o em À M argem daH istória,
porpalavrasde louvorao sertanejo e ao am azônida.D aíque asreflexões
de Euclides estejam freqüentem ente assentadas em am bigüidades e

30
Sodré,N elson W erneck.“Revisão de Euclides da Cunha” .In:Obra Completa,v.2,cit.,p.32.

28
contradições.Em OsSertõesfica patente essa transição:a visão negativa da
figura do sertanejo se transm uda,ao finalda obra,na célebre assertiva de
que ele m esm o,o sertanejo,é o “cerne de nossa nacionalidade” .Tam bém
em À M argem daH istória,conform eressaltarem osposteriorm ente,Euclides
abandona a visão preconceituosa do im igrante nordestino que vai à
Am azônia (referindo-se à s levas de im igrantes com o o “rebotalho das
gentes” )para enaltecer,páginas depois,o destem ore resistê ncia que tem
à s adversidades. A ssim , a aceitação do evolucionism o convive,
problem aticam ente,com a necessidade que sente em revelaro interiordo
Brasile louvarseuspersonagensprincipais,com o o sertanejo e o caboclo.

Sodrévislum brou um “dualism o singular” em Euclides,entendendo


que ascontradiçõesreforçariam a ideologia do colonialism o:

“Existe em Euclidesda Cunha um dualism o singular,de que osseus


livrosestão pontilhados:enquanto observa,testem unha,assiste,conhece
porsim esm o,tem um a veracidade,um a im portâ ncia,um a profundidade
e um a grandeza insuperáveis;enquanto transm ite a ciê ncia alheia,ainda
sobre o que ele m esm o viu,testem unhou,assistiu,conheceu,descaipara
o teorism o vazio,para a digressão subjetiva,para a ê nfase científica,para
a tese desprovida de dem onstração” .31

O ponto devistaaquiadotado,no entanto,assum eum ainterpretação


distinta:as contradições na obra de Euclides debilitam a exposição das
correntesfilosóficasrepresentativasdaideologiado colonialism o,retirando-
lhe eficáciaecoerê ncia.Assim ,aaceitação acríticadastesesevolucionistas
tende a serenfraquecida pela forte im pressão que causou em Euclides o
contato com arealidade:o conhecim ento dascondiçõesconcretasde vida
do sertanejo vaim arcá-lo positivam ente.A contradição colabora,assim ,
paraesvaziaravisão negativadam isturaderaças.O “dualism o singular” a
que se refere Sodré – de um lado o plano da teoria,das correntes de
pensam ento européiasquevisariam à justificação do colonialism o;deoutro
o confronto deEuclidescom arealidade,quelheofereceoutraperspectiva,
m ais positiva,dos fenôm enos que discute – atesta,nesse sentido,que os
juízossum áriosdeEuclidessobrecertostem asnão são unívocos,restando
debilitadosdentro do próprio texto.

31
Ibidem,p.40.

29
Convém ,logo,resgatar o histórico da relação de Euclides com as
ciê ncias, tem a que desperta, na interpretação de sua obra, diversas
controvérsias,com o a relativa à ideologia do colonialism o.

O ingresso de Euclides na Escola M ilitar é o passo inicialpara o


estudo de diversoscam posdaciê ncias– m ineralogia,astronom ia,cálculo,
m etalurgia,geologia,geografia,dentreoutrasdisciplinas.A form ação obtida
na Escola da Praia Verm elha e na Escola Superiorde G uerra lhe perm itiu
conseguiro título debacharelem M atem áticas,Ciê nciasFísicaseN aturais.32
O am biente intelectualque freqüentava era m arcado pela influê ncia de
autores com o Com te,D arwin,H aeckel,Spencer e G um plowicz,cujas
concepçõesestavam em voganaEuropa.Com relação aessascorrentesde
idéias,contudo,Euclides deixou claro que sua aceitação não deveria
significar a aplicação irrestrita de concepções estrangeiras à realidade
brasileira.Pelo contrário:Euclidesafirm ou,em diversosm om entos,que a
especificidade da form ação brasileiraexigia um esforço m aiorde reflexão,
quefossealém daincorporação acríticadeteoriasgestadasem outrospaíses
– o que,com o dissem os,atenuaoseventuaiserrosdecorrentesdacaptação
direta,sem um a m aioraferição crítica,dasdoutrinaseuropéias.33

N um artigo intitulado O BrasilM ental,de1898,Euclidesdeixapatente


essa visão.Acerca do positivism o,porexem plo,contesta a idéia de que as
ponderações de Com te tenham sido aceitas, no Brasil, sem m aiores
adaptações:“O ra,a verdade é que a grande m aioria da atualgeração
brasileira,que rem odelou o espírito sob o influxo tonificadordo notável
critério científico do pensador francê s,não ultrapassou as páginas da
“filosofia positiva” ,da “geom etria analítica” e da “síntese subjetiva” ” .34
Q ueria dizer,com isso,que o credo positivista tinha sido aceito no Brasil
m aisno plano dasciê ncias,no qualsuasobservaçõessefariam pertinentes,
do que na esfera dos rituais e dos cultos,em que a pregação de um a
aristocracia de sábios parecia se antagonizar com os ideais republicanos.

32
Santana,José CarlosBarreto de.Euclidesda CunhaeasCiênciasN aturais.São Paulo-Feira de Santana,
Ed.H ucitec e U niversidade Estadualde Feira de Santana,2001,p.47.
33
Clóvis M oura observa que Euclides,apesar de se am parar “num cabedalde conhecim entos que
não o ajudava adesvendarosvéusquecobriam asolução dosproblem asbrasileiros” ,era um escritor
“sensívelaosproblem asdasociedadebrasileira” .Cf.M oura,Clóvis.IntroduçãoaopensamentodeEuclides
da Cunha.Rio de Janeiro,Editora Civilização Brasileira S.A.,1964,p.10.
34
Cunha,Euclides da.“O BrasilM ental” .In:Obra Completa,v.1,cit.,p.452.

30
Euclidesassevera,assim ,que“um am inoriadim inutíssim aaceitou todasas
conclusões do pontífice.A m aioria perm aneceu autônom a.É escusado
dem onstrar.Bastaaafirm ativaincontestáveldeque em nossasindagações
científicaspreponderam ,exclusivosem todaalinha,o m onism o germ â nico
e o evolucionism o inglê s” .35

AsreflexõesdeEuclidessalientam ,porconseguinte,queacorrente
prevalecenteno Brasil,sobretudo entreaintelligentsiadeclassem édia,erao
evolucionism o, verificando-se, adem ais, um a aceitação parcial do
positivism o.Essagam adeidéiasdeveriaserinterpretadaà luz darealidade
brasileira,já que a nossa história seria peculiar,caracterizando-se pela
presença de “tipos étnicos em ergentes do cruzam ento de raças m ui
diversas” .36 A existê ncia de raças diferentes e sua fusão na form ação da
nacionalidade brasileira poderiam ser explicadas,segundo Euclides,com
esteio nos conceitos das correntes determ inistas e evolucionistas.Assim ,
citando Ludwig G um plovicz,um a de suas m aiores influê ncias,Euclides
assenta que

“podem oscaracterizaro nosso m ovim ento evolutivo com o um resultado


da ação de raças heterogê neas que se acham entre sinum a relação de
subordinação ou depredom ínio,ou num equilíbrio m aisou m enosestável,
obtido à custadecom prom issospolíticos,determ inando um asuperposição
de classes que se erige na ordem política com o – a seleção naturaldas
raças” .37

O fato de a nacionalidade brasileira resultar da m istura de tipos


étnicos distintos entre sifaria com que fôssem os fatalm ente diferentes.
U m dos fatores constituintes de um a nacionalidade seria a capacidade de
form ularum corpo de idéias próprio,de m aneira que se pudesse respirar
“livrem ente em am biente superior, autônom os, não absorvendo
parasitariam ente o resultado de esforços estranhos,m as transform ando-
osem nossaeconom iaíntim a,ereagindo pornossavez sobre o progresso
geralim prim indo-lheum traço deoriginalidadequalquer” .38 Com o jávisto,

35
Ibidem.
36
Ibidem,p.455.
37
Ibidem.
38
Ibidem,p.443.

31
essa assertiva de Euclides resulta da circunstâ ncia de que os intelectuais
brasileiros pugnavam ,no finaldo século X IX ,pela gestação de idéias
explicativas sobre o Brasile seus problem as,com o passo decisivo para a
form ação de um a nacionalidade independente.

Ressalte-se,novam ente,que essa ê nfase sobre a necessidade de


am oldarm oso pensam ento estrangeiro à snossasespecificidadesnão evitou
queo próprio Euclidesincorresseem algunsequívocos.Adepto deD arwin
eG um plovicz,com eteu,em OsSertões,diversasim propriedades,ao revelar
preconceitoscontra o sertanejo e contra a figura de Antônio Conselheiro.
Afirm a,perem ptoriam ente,que a “m istura de raças m uidiversas é,na
m aioria dos casos,prejudicial” .39 Entretanto,é ainda em Os Sertões que
Euclides, paradoxalm ente, passa a sublinhar o vigor do sertanejo,
considerando-o o cerne de nossanacionalidade e “um a raça forte” .40 Essa
já referida contradição interna de sua obra – os preconceitos coexistem
com avisão positivadostiposétnicosnacionaisqueresultaram dam istura
de raças – enseja diversas críticas aos argum entos de Euclides,com o a
acusação dearauto da“ideologiado colonialism o” feitaporN elson W erneck
Sodré.

LuizCostaLim a,apropósito deOsSertões,sublinhaqueaanálisede


Euclidescom binaum “darwinism o cru” eum “evolucionism o grosseiro” ,
aliados à idéia de que o avanço da nação dependia inexoravelm ente da
República:“Antes pois que Euclides dispusesse de um a “teoria” sobre o
futuro do país,jáem punhavaseuspressupostos,sobreosquaisem nenhum
m om ento se questionaria.As conseqüê ncias deste apriorism o não serão
pequenas, nem pouco danosas” .41 Para Costa Lim a, Euclides, com o
Conselheiro,tam bém seriaum fanático,cujacrençanospoderesdaciê ncia
e da república acabavam redundando num a espécie de autoritarism o.O
contato com o sertão e com suaspopulaçõesteriafeito com que adotasse,
porém ,outro discurso.D aía ponderação de que seu pensam ento contém
duas dim ensões:a dos referenciais científicos do finaldo século XIX e
início do século X X,que o levou a incorrerem apriorism os e equívocos
sobre certos tem as;e,de outra parte,a do contato com a realidade do

39
Idem.OsSertões.4ª ed.Rio de Janeiro,Record,2001,p.113.
40
Ibidem,p.115.
41
Costa Lim a,Luiz,op.cit.,p.16-17.

32
interiorbrasileiro,que lhetrouxe im pressõescapazesdeinfirm arosjuízos
sum áriosem itidoscom base apenasnospostuladosevolucionistas.

O apego de Euclides à s ciê ncias m antém -se ao longo de toda sua


vida.Em 1903,por exem plo,em correspondê ncia a Araripe Júnior,em
que analisa a disputa im perialista no continente am ericano,travada entre
EstadosU nidoseAlem anha,reiterasuaadm iração porG um plovicz,autor
que preconizava a luta de raças com o força m otriz da história:“Sou um
discípulo de G um plowicz, aparadas todas as arestas duras daquele
ferocíssim o gê nio saxônico” .42

Tam bém osensaiosdeEuclidessobreaAm azônia,queanalisarem os


posteriorm ente, deixam entrever a adesão do escritor aos princípios
científicosdo evolucionism o.Ao apreciar,em artigosno jornalO Estadode
SãoPaulo,aim inê nciadeum conflito entreBrasilePeru,Euclidescriticao
país vizinho com respaldo em argum entos raciais,assinalando que a
m estiçagem teria contribuído para os im pulsos belicistas dos peruanos.43
Adem ais,a com preensão que tinha do panoram a político internacional,
m arcado pelo crescente poderio e intervencionism o norte-am ericanosna
Am érica Centrale do Sul,baseava-se na tese de que a disputa entre as
nações tam bém era parte de um processo de seleção natural,em que os
m ais fracos estariam fadados ao fracasso.A alusão freqüente à “seleção
natural” e a crítica que em preende à m estiçagem caracterizariam ,em
Euclides,um etnocentrism o resultantedafascinação quesobreeleexerciam
o evolucionism o e o transform ism o.44

A influê ncia do evolucionism o alia-se a outra característica


fundam ental do pensam ento euclidiano: o nacionalism o. Com o já
sublinham os,a absorção da gam a de idéias em anadas da Europa não
redundou,no autordeOsSertões,num aalienação totaldarealidadebrasileira.
O que se verifica,ao contrário,é a defesa que faz em prolde um m aior
conhecim ento das regiões e populações do Brasil.Alfredo Bosiobserva
queEuclidesfaz partedo grupo deescritoresque,no início do século XX ,
passaram a tem atizar problem as fundam entais do Brasil, com o “as

42
CartaaAraripeJúnior,em 27 defevereiro de1903.In:Correspondê nciadeEuclidesdaCunha,cit.,p.151.
43
Cf.item 3.1,infra.
44
Sodré,N elson W erneck,op.cit.,p.45-46.

33
oposições cam po/cidade, branco/m estiço, rico/pobre, cosm opolita/
brasileiro,im igrante/nacional...” .Ainda segundo Bosi,“variam no tem po
eno espaço asincidê nciasdessastensões:osdesequilíbriosdizem respeito
ora a problem asregionais,que acabam envolvendo o podercentral,ora à
estrutura m esm a da sociedade,feita de classes e grupos de status que
integram de m odo assim étrico e injusto o sistem a da nação” .45 É lícito,
nessesentido,atribuirm osaEuclidesacondição deintérpretedasociedade
brasileira,tendo ele efetuado um trabalho sociológico pioneiro,m uito
em boranão tenhaproduzido textospropriam enteacadê m icos,esim dado
form a literária a questões que se colocavam em prim eiro plano na
consolidação do regim e republicano.

D eve-se atentar,logo,para esta peculiaridade de Euclides:trata-


se de um autorque se apropriou do fluxo de idéiasadvindasda Europa,
em bora buscasse evitar a adoção de um cosm opolitism o alheio à
realidade brasileira.N o prefácio ao livro “O Inferno Verde” ,de Alberto
Rangel,Euclides pondera que “pensam os dem asiado em francê s,em
alem ão,ou m esm o em portuguê s.Vivem osem pleno colonato espiritual,
quase um século após a autonom ia política” .46 Seu propósito era o de
queaapreensão dasideologiase correntesfilosóficaseuropéiasse fizesse
de acordo com um a perspectiva nacionalista, isto é, que fossem
m anejadasconform easpossibilidadesde explicarfenôm enosbrasileiros,
o que em certos casos conduziu a erros (com o na análise da
m iscigenação).D esse m odo,Euclidesesforçava-se em utilizarum crivo
crítico na leitura do sistem a de idéias europeu. Para ele, o
cosm opolitism o típico do am biente intelectualda Prim eira República
era um a “espécie de regímen colonialdo espírito que transform a o filho
de um paísnum em igrado virtual,vivendo,estéril,no am biente fictício
de um a civilização de em préstim o” .47

G ilberto Freyre,a propósito das generalizações que Euclides faz


quando tratadeproblem asetnográficos,ressalvaqueele“não seextrem ou
45
Bosi,Alfredo.“AsLetrasnaPrim eiraRepública” .In:Fausto,Boris(org.).H istóriaG eraldaCivilização
Brasileira – O BrasilRepublicano:SociedadeeInstituições(1889-1930).v.III,t.II.3ª ed.São Paulo,D ifel,
1985,p.304.
46
Cunha,Euclides.“O Inferno Verde” ,prefácio ao livro de m esm o título de Alberto Rangel.In:
Obra Completa,v.1,cit.,p.498.
47
Cunha,Euclides.ContrasteseConfrontos.In:Obra Completa,v.1,cit.,p.195.

34
em m ístico dequalquerteoriadesuperioridadederaça” .48 Conquanto Freyre
reconheça em Euclides“exagerosetnocê ntricosna análise e interpretação
da nossa sociedade” 49,tem o cuidado de observar que “em Euclides da
Cunha o pessim ism o diante da m iscigenação não foiabsorvente.N ão o
afastou detodo daconsideração edaanálisedaquelaspoderosasinfluê ncias
sociais a cuja som bra se desenvolveram ,no Brasil,condições e form as
feudaisdeeconom iaedevidajám ortasnaEuropaocidental(...)” .50 N esse
sentido,o acolhim ento do evolucionism o surgido naEuropa não im pediu
quesalientasse– eprocurasseafirm ar– osaspectosespecíficosdaform ação
da nacionalidade brasileira.

Tendo em vistaoselem entosbásicosdarelação deEuclidesdaCunha


com as idéias políticas e científicas de sua época,podem os nos dedicar,
agora, a recuperar sua trajetória no Itam araty e em preender um a
interpretação de seus ensaiossobre a Am azônia e a política internacional
de seu tem po.

48
Freyre,G ilberto.PerfildeEuclideseoutrosperfis.Rio de Janeiro,Livraria José O lym pio Editora,1944,
p.41.
49
Ibidem,p.40.
50
Ibidem,p.42.

35
II-O IN G RESSO N O ITAM ARATY
II.O IN G RESSO NO ITAM ARATY

O ingresso de Euclides da Cunha no Itam araty é resultado da


am bição pessoaldo escritorem travarcontato com a Am azônia.Após a
publicação de OsSertõesem 1902,Euclidespropôs-se a descortinarpara o
Brasilaquela “terra sem história” ,expressão que utilizou para designara
outra vasta porção do território nacionalque persistia pouco conhecida
pelo resto do país.N osprim eirosanosdo século X X a Am azônia passara
a adquirirm aiorrelevo para o governo central,sobretudo em função dos
problem as envolvendo a incorporação do Acre – efetivada em 1903 pelo
Tratado de Petrópolis – e do período m ais intenso de exploração da
borracha.

O trabalho no Itam araty apresentava-se,nesse passo,com o um


instrum ento útilà pretensão literária de Euclides.Sua vida pessoal,no
início de 1904,é caracterizada poratribulações.U m a breve apreciação das
dificuldades que se apresentavam é relevante para a com preensão dos
cam inhosqueo levaram ao Itam araty.À ausê nciadeestabilidadefinanceira
som am -seasaspiraçõesintelectuaisqueo incom patibilizavam com arotina
da vida de engenheiro.À época,Euclides trabalhava na Com issão de
Saneam ento deSantos,m orando nacidadevizinhadeG uarujá.O trabalho
não o satisfazia51,com o severificaem seu epistolário.Em correspondê ncia
a M achado de Assis,datada de 15 de Fevereiro de 1904,refere-se a seu
“triste ofício” e desabafa:“Realm ente,desde que aquichegueinão tive
ainda um quarto de hora para m e dedicaraosassuntosqueridos,nem aos
livrosprediletos.Estou inteiram ente em baraçado e preso num a rede...de
esgotos!A com paração,tristem ente realista,étristem enteverdadeira” .52 A
reticê ncia quanto à sua perspectiva profissionale a evidente am argura
51
Sílvio Rabelo destaca que “Euclides foium engenheiro sem nenhum gosto pela profissão” .Cf.
Rabelo,Sílvio.Euclidesda Cunha.Rio de Janeiro,Livraria Editora Casa do Estudante Brasileiro,1948,
p.271.
52
Carta a M achado de Assis,em 15 de Fevereiro de 1904.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,
p.197.

39
persistem nacartade12 deM arço,endereçadaao historiadorM ax Fleiuss:
“Aquiestou à s voltas com o m eu triste ofício de engenheiro.Q uer isto
dizer que bem pouco tem po m e sobra para cuidar de coisas m ais altas.
Calcule a m inha revolta contra essa situação lastim ável:chum bado à
profissão ingrata que m e desvia tanto dosestudosprediletos...” .53

A alusão ao “tristeofício” põedem anifesto queEuclidesacalentava


objetivos intelectuais que dessem seguim ento ao sucesso atingido porOs
Sertões.Seu dia-a-diaera,contudo,pontilhado pelasangústiasdaprofissão.
Em abrilde 1904,pede dem issão do em prego em Santos em razão de
desentendim entos com seus superiores.Retorna ao Rio de Janeiro,não
logrando obter,todavia,em prego fixo.Reinicia,então,a colaboração com
o jornalO EstadodeSãoPaulo,escrevendo,tam bém ,para O País,do Rio de
Janeiro.A precariedade e instabilidade de sua situação profissionalsão
patentes,refletindo-seinclusivefinanceiram ente.Roberto Venturasalienta
que os sobressaltos financeiros fizeram com que Euclides transferisse os
direitosde OsSertõesparaaeditoraLaem m ert“pelam ódicaquantiadeum
conto e 800 m ilréis” .54

O período que se inicia em abrilde 1904,com o abandono das


atividades de engenheiro em Santos,é decisivo para as suas pretensões.
Saturado darotinaqueo afligia,eresistenteasolicitarfavoresparaconseguir
nova colocação,passa a vislum brar novos objetivos.O interesse pela
Am azônia era antigo,e se acentuara com o problem a do Acre.Em 1903,
em cartaaLuísCruls,asseveraque“alim ento hádiaso sonho deum passeio
ao Acre” .Seus escrúpulos,porém ,restringiam -lhe o cam po de ação.N a
m esm a carta,prossegue:“M asnão vejo com o realizá-lo.N esta terra,para
tudo faz-se m istero pedido e o em penho,duascoisasque m e repugnam .
Elim ino poristo aaspiração – équetalvezpudesseprestaralgunsserviços” .55

Euclidesm anifestavafreqüentem enteesseem bateíntim o entreseus


escrúpulose a prem ê ncia em obterum em prego estávelna burocracia do
Estado.Revelou,inclusive,que chegara a negar um a oferta do então
presidente Floriano Peixoto,que teria lhe oferecido,em retribuição ao seu

53
Carta a M ax Fleiuss,em 12 de M arço de 1904.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,p.198.
54
Ventura,Roberto.“M em ória Seletiva -À Frente da H istória” ,cit.,p.31.
55
Carta a LuísCruls,em 20 de Fevereiro de 1903.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,p.149.

40
apoio à causa republicana,a colocação que m elhor lhe conviesse na
burocracia estatal.56 A recusa trouxe-lhe orgulho, m as tam bém
conseqüê ncias danosas,fazendo com que sofresse com as incertezas de
suaprofissão.ParaLuizCostaLim a,o repúdio à ofertadeFloriano engendra
um evidente ressentim ento em Euclides:“Com o se ele dissesse:se eu não
fosse tão rígido,sofreria m enosapertos” .57

E sse ressentim ento com a ausê ncia de im pessoalidade no


funcionam ento do Estado éum aconstanteem Euclides,m asnão vaiobstar
o estreitam ento de suas relações com o Barão do Rio Branco.Euclides
tinha consciê ncia de que sua ida à Am azônia estava na dependê ncia do
exercício de um a função oficial, e que sua nom eação passava pelo
acionam ento deum acadeiaderelaçõespessoais,sobretudo dentro do grupo
intelectuala que pertencia.D e início,porém ,a decisão de não solicitar
favoreso leva a abandonartem porariam ente seu objetivo.

É a dem issão do cargo de engenheiro da Com issão de Saneam ento


de Santose a inexistê ncia de novasofertasde trabalho,a partirde abrilde
1904,quefazem Euclidesretom aro plano deiraAm azônia.Suadecepção
com aengenhariaéprofunda,agudizando-seapóso m alogro desuaidaao
Rio deJaneiro,ondenão conseguiu em prego.Lá,testem unhou quea“pobre
engenharia” estava “torpem ente jogada na calaçaria estérilda rua do
O uvidor ou entupindo as escadas das Secretarias” .Acrescente-se a isso
um a gam a de frustrações pessoais:“D oloroso é isto:tenho doze anos de
carreirafatigante,abnegada,honestíssim a,elogiada,traçadaretilineam ente;
passei-os com o um asceta,com a m áxim a parcim ônia,sem um a hora de
festa dispendiosa, e chego ao fim desta reta tão firm e, inteiram ente
desaparelhado!” .58

Em junho de 1904,em correspondê ncia a José Veríssim o,Euclides


cedeà scontingê nciaseaceitaosbonsofíciosdeseu am igo junto ao Barão
do Rio Branco paraconseguirum posto naCom issão deReconhecim ento

56
A revelação constadecorrespondê ncianão datadaaLúcio deM endonça,em 1904.In:Correspondê ncia
deEuclidesda Cunha,cit.,p.193-194.
57
Lim a,Luiz Costa,op.cit.,p.09.
58
Carta a Vicente de Carvalho em 27 de Abrilde 1904.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,p.
204.

41
do Alto Purus.Euclides não recuou,no entanto,a ponto de buscar,
pessoalm ente, sua nom eação, preferindo utilizar a interm ediação de
Veríssim o e tam bém de O liveira Lim a.Este últim o assinalou em suas
m em órias:“(...)fuieu queum pouco depoiso fez,porseu desejo,escolher
para a com issão do Alto-Purus” .59 Todavia,porrazões pessoais,O liveira
Lim a transferiu a incum bê ncia de conversar com Rio Branco a José
Veríssim o.60 N acartaaJoséVeríssim o Euclideséexplícito no queconcerne
à sua objeção ao pleiteam ento de cargos no Estado:“N ão escreverei
diretam ente ao Barão do Rio Branco” .61

Euclides não era um desconhecido para Rio Branco. A fam a


alcançada com a publicação de Os Sertões já ecoara junto ao Chanceler
brasileiro,fazendo com que sufragasse o seu nom e na eleição para a
Academ iaBrasileiradeLetras.62 Com o registram osanteriorm ente,Euclides
e Rio Branco m antinham um a certa interlocução sobre os problem as do
país,jáque o Chancelerbrasileiro esforçava-seem se cercarde intelectuais
capazesde com partilharsuaspreocupaçõescom aintegridade territoriale
a afirm ação da nacionalidade brasileira.N ão houve,assim ,resistê ncia do
m inistro à indicação efetuada por José Veríssim o.O prim eiro encontro
pessoalentreEuclideseRio Branco,ocorrido em m eadosde1904,selou a
nom eação do escritorparaacom issão dereconhecim ento do Purus,criada
com afunção de dem arcarasfronteirasdo Brasilcom o Peru.O encontro
é narrado porFrancisco Venâ ncio Filho com esteio no relato de D om ício
da G am a,que testem unhou a conversa entre Euclides e Rio Branco.
Segundo D om ício,o encontro seestendeu dasnoveà sonzehorasdanoite,
eRio Branco pareciaà vontade,“contentedeencontrarquem o entendesse
e partilhasse o seu interesse pelosassuntosque lhe eram caros” .Euclides,
deoutraparte,parecia“cadavezm aisintim idado em alà vontade,com o se
o oprim isseo respeito quelheinspiravadesdeo prim eiro m om ento aquele
grande hom em público” .63

59
Apud:Venâ ncio Filho,Francisco.Rio Branco e Euclides da Cunha.Rio de Janeiro,M inistério das
Relações Exteriores/Im prensa N acional,1946,p.15-16.
60
Venâ ncio Filho,Francisco.“Retrato H um ano de Euclides da Cunha” .In:Cunha,Euclides.U m
Paraíso Perdido:reunião deensaiosamazônicos.Brasília,Senado Federal,Conselho Editorial,2000,p.73.
61
Carta a José Veríssim o em 24 de Junho de 1904.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,p.207.
62
Venâ ncio Filho,Francisco,RioBrancoeEuclidesda Cunha,cit.,pp.11-13.
63
Apud:Venâ ncio Filho,Francisco,RioBrancoeEuclidesda Cunha,cit.,p.19.

42
Algum as sem anas após o encontro foipublicada a nom eação de
Euclidescom o chefe da com issão de reconhecim ento do Purus.Iniciava-
se,assim ,um período decinco anosdetrabalho no Itam araty.Seu ingresso
nainstituição,com o se vê ,apresentaespecificidadesque vão serefletirem
suaobra.Euclideseraum intelectualaserviço do Estado,ligado diretam ente
ao Barão do Rio Branco.O stextosqueresultarão desuaviagem à Am azônia,
inclusive o relatório oficialda m issão,revelam um a visão com plexa da
região,concatenando a perspectiva geográfica que interessava à com issão
com análises sociológicas originais à época.Seus estudos são,tam bém ,
propositivos.À sem elhança do que ocorrera com Os Sertões,Euclides,
coerente com sua visão republicana,preocupava-se sobretudo com a
integração daAm azôniaao Brasil.Essaintegração,transcendendo aquestão
de lim ites,dependia de políticaspúblicasde desenvolvim ento e de auxílio
à spopulaçõeslocais.É o conjunto dessasanálisesepropostasqueperm ite
aquilataro valordostextosde Euclidessobre a região.

O encontro de 1904 foio início de boas relações pessoais com o


Barão do Rio Branco.Euclides adm irava o Chanceler,com o revela em
extensa carta a D om ício da G am a:

“O próprio barão,com asuaestranhaam ajestosagentileza,recorda-


m e um a idade de ouro,m uito antiga,ou acabada.Continuo a aproxim ar-
m e dele sem pre tolhido, e contrafeito pelo m esm o culto respeitoso.
Conversam os;discutim os;ele franqueia-m e a m áxim a intim idade – e não
há m eio de podereu considerá-lo sem asproporçõesde hom em superior
à suaépoca(...)D efato,éo caso virgem deum grandehom em justam ente
apreciado pelosseuscontem porâ neos.A suainfluê nciam oral,hoje,irradia
triunfalm ente pelo Brasilinteiro” .64

As particularidades da relação entre Euclides da Cunha e o Barão


do Rio Branco interessam porcontribuírem paraum am elhorcom preensão
do papelque o chefe da com issão de lim itesdesem penhará no Itam araty.
Asrelaçõescom Rio Branco são cerim oniosas.Porsetratardeum “hom em
superiorà sua época” ,Euclidesnão logra desvencilhar-se,com o afirm ou,
de um “culto respeitoso” pela figura do Chanceler.A afinidade que existe
entream bosdizrespeito ao interessequedevotam à sregiõesm aisafastadas

64
CartaaD om ício daG am aem 15 deAgosto de1907.In:Correspondê nciadeEuclidesdaCunha,cit.,p.335.

43
do país.Rio Branco,com o atorpolítico,teveê xito nadefesadaintegridade
do território nacional,escudando-seem argum entoshistóricosegeográficos
carosaEuclides.Este,porseu turno,fixou em seustextosascontradições
quem arcavam aRepúblicanatransição parao século XX,trazendo apúblico
os problem as das populações do interior do Brasil.A convergê ncia de
interesses e o partilham ento de um a certa cosm ovisão parece haver
colaborado,assim ,para a aproxim ação entre Euclidese Rio Branco.

D e outro lado,os papéis que desem penharam guardam um a certa


com plem entaridade.Rio Branco tinha desenvolturano cam po da política,
ao passo que Euclides era um intelectualcujo gê nio poderia ter,com o
vislum brou Rio Branco,grande serventiaparao Itam araty.N ão se tratava,
afinal,deum sim plesliterato,m asdealguém capacitado tecnicam entepara
asfunçõesquelheforam atribuídas:chefedaCom issão deReconhecim ento
do Purus e,posteriorm ente,cartógrafo do Itam araty,trabalhando com
questões de fronteira.Alberto Venâ ncio Filho aponta dois elem entos de
aproxim ação entre Euclides da Cunha e Rio Branco:am bos tinham “as
m esm asconvicçõespelo interessepúblico epelanoção do serviço à pátria”
e Rio Branco,adem ais,tinha a postura de “sem pre procurarse servirdos
m elhorestalentos” .A separar-lheshaviaaorigem :Rio Branco erafilho de
um estadista do Im pério e fora educado no colégio Pedro II e nas
tradicionaisFaculdadesdeD ireito deSão Paulo eRecife;Euclides,porsua
vez,erafilho deum m odesto guarda-livrosetiveraum percurso atribulado
até concluiro curso de engenharia na Escola M ilitar.65

N ão obstante,valedestacarqueaproxim idadeao Barão do Rio Branco


não perm itiu que Euclides obtivesse um em prego estávelno Itam araty.As
funções que desem penhou foram de estrita confiança do Chanceler,não
oferecendo,assim ,m aioresperspectivasdefuturo.Suaspretensõesdeocupar
um outro posto,inclusive no exterior,não tiveram o apoio de Rio Branco.66

Aindano tocanteà suarelação com o Barão do Rio Branco,Euclides


via no Chancelera única figura capaz de resguardara soberania brasileira

65
Venâ ncio Filho,Alberto.“O Barão do Rio Branco e Euclides da Cunha” .In:Cardim ,Carlos
H enrique e Alm ino,João (orgs.).Rio Branco – a A mérica do Sule a M odernização do Brasil.Rio de
Janeiro,EM C,2002,p.214.
66
Cf.item 5.7,infra.
sobreaAm azônia.Em cartaaFrancisco Escobar,escritaem 1906,quando
ostrabalhosda com issão que chefiou já haviam sido encerrados,Euclides
não poupou adjetivos para m anifestar sua adm iração pelo chefe da
diplom acia brasileira.Assinalou que o Barão era “o único grande hom em
vivo desta terra” ,reunindo diversas qualidades:“é lúcido,é gentil,é
trabalhador,e traça na universalchateza destes dias um a linha superiore
firm edeestadista.N inguém poderiasubstituí-lo.(...)asubstituição do Rio
Branco porquem querque seja será um a calam idade” .67 N a m esm a carta,
Euclidesobservaquearesolução dosdiversoslitígioscom ospaísesvizinhos
exigiam um a gam a de conhecim entos que poucos,além de Rio Branco,
possuíam .A gravidade da situação,que poderia levarà perda de até “um
quinto daAm azôniaopulentíssim a” 68,im punha,segundo ele,acontinuidade
de Rio Branco na chancelaria,a despeito da m udança de presidente que
ocorreria naquele ano.

O ingresso de Euclides da Cunha no Itam araty foiresultado,por


conseguinte,da difícilsituação que vivia em m eadosde 1904.A síntese de
seu percurso ésim ples:apósadem issão em Santosretornaao Rio deJaneiro
com o intuito de reem pregar-se com o engenheiro;não conseguindo,
m anifesta desgosto com sua profissão,retom ando o projeto de viajar à
Am azônia;aciona,logo,seusam igos,sobretudo JoséVeríssim o,queobtém
junto ao Barão do Rio Branco a nom eação do escritor com o chefe da
com issão que explorará o Purus.

Cabereiterar,portanto,que anom eação de Euclidesparaum cargo


no Itam aratyécorolário daredederelaçõespessoaism antidaspelo escritor.
A referê nciaquefizem osanteriorm enteao conceito de“cam po intelectual”
perm iteesclarecercom o sedáaligação dosintelectuaiscom o poder.Afinal,
paraBourdieu adefinição decam po intelectualpassanecessariam entepela
“form aparticulardarelação queseestabeleceobjetivam enteentreafração
dosintelectuaiseartistasem seu conjunto easdiferentesfraçõesdasclasses
dom inantes” .69 O caso darelação entreEuclideseRio Branco éilustrativo,
atestando queno BrasildaPrim eiraRepúblicaaintelligentsiadeclassem édia
m antinhaestreitasrelaçõescom oscírculosdo poder– o quenão solapava,

67
Carta a Francisco Escobar,em 13 de junho de 1906.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,p.305.
68
Ibidem,p.306.
69
Bourdieu,Pierre,op.cit.,p.191.
especialm ente no que diz respeito a Euclides,sua capacidade de pensar
criticam ente os rum os do novo regim e.Essa dualidade na relação dos
escritores com a classe dom inante -ora de proxim idade,ora de crítica -é
reconhecidatam bém porBourdieu,queaexplicaapartirdaassertivadeque

“os escritores e intelectuais constituem , pelo m enos desde a época


rom â ntica,um a fração dominada da classe dominante,que,em virtude da
am bigüidade estruturalde sua posição na estrutura da classe dom inante,
vê -se forçada a m anter um a relação am bivalente tanto com as frações
dom inantes da classe dom inante (“os burgueses” )com o com as classes
dom inadas(“o povo” ),e a com porum a im agem am bígua de sua posição
na sociedade e de sua função social” .70

A posição de Euclides é,com efeito,am bivalente,visto que sua


desilusão com aPrim eiraRepúblicanão im pediu quecom partilhasseidéias
com personagens em blem áticosdo regim e,notadam ente o Barão do Rio
Branco – cujas ligações com o poder retroagiam ,inclusive,ao período
m onárquico.O fato éque Rio Branco tinhacom o diretriz atrairparao seu
círculo m ais próxim o intelectuais que pudessem , a um só tem po,
desem penharfunçõesderelevo ecolaborarnalegitim ação do poderpolítico,
o que acentua a am bigüidade do papeldesem penhado pelo escritor no
Itam araty: sua sim ples presença na instituição confere a ela m aior
legitim idade junto à intelligentsia,a despeito de eventuais objeções que
Euclidestivesse com relação ao regim e republicano.

Além dessaê nfase no cam po intelectualaque pertenciaEuclides,o


esforço em apresentarsua “ideologia” – na acepção da “concepção total”
de M annheim – possibilita esclarecer algum as das posições políticas que
m anifestou ao longo de sua vida.A form ação intelectualobtida num
am biente im pregnado pelo positivism o e pelo entusiasm o com asciê ncias
tornou Euclides um defensor de m udanças sociais.Essa cosm ovisão
atravessasuaobra,eperm itecom preendernão apenasaposição particular
de Euclides,m as a de um estrato socialm aisam plo:o dosintelectuais de
classe m édia que,na relação am bígua que m antê m com o novo regim e,
buscam participarativa e criticam ente da construção da República,tendo
com o fonte de estabilidade financeira,entretanto,cargos oferecidos pelo

70
Ibidem,p.192.

46
próprio Estado.A biografiadeEuclidesnosdáum exem plo dafragilidade
dessa intelligentsia de classe m édia:m uito em bora deplore alguns aspectos
daRepúblicarecém -instituída,especialm enteanecessidadedefavorparaa
obtenção de colocações,Euclidesvaiterde lançarm ão dessa m esm a rede
de relações pessoais (no â m bito específico de seu grupo intelectual)para
logrartanto um aposição no Itam aratycom o,no finaldavida,um cargo de
professorno Colégio Pedro II.

O estabelecim ento dessespressupostosdeanálisedaobradeEuclides


– o “cam po intelectual” esuasrelaçõescom asclassesdirigentes;aideologia
de Euclidese sua posição na intelligentsia de classe m édia – perm ite que se
avance no estudo da passagem do escritorpelo Itam araty e na análise de
seusensaiosam azônicose sobre política internacional.

47
III-A A M AZÔ N IA N A A G EN D A D E
PO LÍTICA E XTERIO R D O BRASIL
III.A A M AZÔ N IA N A A G EN D A D E
PO LÍTICA E XTEIO R D O B RASIL

3.1 – O S PROBLEM A S D E FRON TEIRA COM O PERU

A incorporação do Acre ao Brasil,form alizada pelo Tratado de


Petrópolis,em 1903,acentuou anecessidadedeentendim entoscom o Peru
para o estabelecim ento daslinhaslim ítrofesentre osdoispaíses.A divisa
entre o Acre e o Peru era o objeto centraldas preocupações,em função
dosinteresseseconôm icosquesevoltavam paraaexploração daborracha.

Já em 1903-1904 estava patenteada a relevâ ncia do problem a


fronteiriço.O acirram ento dos â nim os resultava das incursões peruanas
no território do Acre,suscitando aquestão decom o preservaraintegridade
territorialbrasileira na região.O governo peruano aspirava ao dom ínio de
grandes áreas no Alto Purus e Alto Juruá,aquiescendo,assim ,com a
penetração de seusnacionaisno território acreano.O sdesentendim entos
com o Peru indicavam que o Tratado de Petrópolis resolvera um litígio e
gerara outro,que dem andaria cinco anosaté sua solução definitiva.

Aspretensõesperuanasdiziam respeito aum avastaregião:além de


um a parcela do território do Am azonas,o país vizinho pleiteava todo o
território do Acre.Asáreasem disputa,som adas,totalizavam um asuperfície
de442.000 quilôm etrosquadrados.Segundo Araújo Jorge,acobiçaperuana
rem ontava a 1863 e am parava-se inclusive em docum entos cartográficos
de origem oficial,que datavam do período colonial.71

Além das divergê ncias com o Brasil,o Peru tam bém m antinha
pendê ncias territoriais com a Bolívia.Com o verem os posteriorm ente,
Euclidesvaiescreverum livro sobreo assunto,PeruversusBolívia,publicado
em 1906,no qualdeclina argum entos favoráveis à posição boliviana.D e

71
Jorge,ArthurG uim arãesde Araújo.RioBrancoeasfronteirasdoBrasil:uma introduçãoà sobrasdoBarão
doRioBranco.Brasília,Senado Federal,1999,p.121.

51
acordo com Álvaro Lins,o Peru estava,à época,num m om ento deaspiração
expansionista,reivindicando territóriosao Brasil,à Bolívia,ao Equadoreà
Colôm bia.72 Seu governo viacom receio osentendim entosentrebrasileiros
ebolivianosem torno do Acre,tendo,inclusive,pleiteado um anegociação
tripartite,o que foirechaçado porRio Branco.73

Em m aio de1904,asm obilizaçõesm ilitaresdeam basaspartesacirravam


osâ nim osnaregião.Rio Branco m anifestavapreocupação com alentidão do
Exército em enviarguarniçõesparao Acre,advertindo que“estam osaperder
tem po e a dartem po ao Peru para que se reforce e fortifique em Iquitos,no
Juruáeno Purus.(...)no interessedapaz,eu peço einsto quenosm ostrem os
forteseprontosparadarum golpequeim pressioneosperuanos” .74

O cerne do problem aeraapresença,em áreasdo Juruá e do Purus,


de caucheiros peruanos.Em 1902 houve a ocupação organizada,por
caucheiros peruanos,do Alto Juruá,o m esm o ocorrendo no Alto Purus
em 1903.75 Astensõescresciam ,easm obilizaçõesm ilitaresdasduaspartes
conferiam à questão m aiorpassionalidade,atraindo a atenção da opinião
pública.O com portam ento agressivo dos representantes diplom áticos
peruanos no Rio de Janeiro tam bém dificultava as negociações bilaterais,
tendo o Brasil,contudo,m antido-se firm e na tese de que a pretensão
peruana não encontrava respaldo jurídico.

É nesse contexto que surgem os prim eiros textos escritos por


EuclidesdaCunhasobrea Am azônia76,antesm esm o deviraconhecerde
perto a região.

Euclidescham a aatenção parao problem aem artigo publicado em


14 de m aio de 1904 no jornalO Estado deSão Paulo.Intitulado “Conflito

72
Lins,Álvaro.RioBranco.São Paulo,Ed.Alfa-O m ega/Fundação Alexandre de G usm ão,1996,p.292.
73
Ibidem,p.291.
74
Viana Filho,Luís.A V ida do Barão do Rio Branco.Brasília,Senado Federal/Fundação Alexandre de
G usm ão,1996,p.336.
75
Lins,Álvaro,op.cit.,p.292.
76
Antesdostextosescritosem m aio de 1904 Euclidespublicara o artigo “FronteiraSuldo Am azonas.
Q uestão de Lim ites” ,trazido a público em 14 de novem bro de 1898 no jornalO Estado deSão Paulo.
Trata-se,no entanto,de um texto que não travarelação com aspreocupaçõescentraisque m anifestaria
em 1904-1905,quando se ocupa da viagem à Am azônia.In:Obra Completa,v.1,cit.,pp.531-535.

52
Inevitável” ,destacaasincursõesperuanaseavançatesesqueexplicariam o
m ovim ento de nacionaisdo paísvizinho naregião do Acre.ParaEuclides,
asincursõesnão consubstanciariam apenas“aavidezdealgunsaventureiros
doudam enteferretoadosdaam bição queosarrebataà sparagensriquíssim as
dos seringais” .O fluxo de peruanos obedeceria a um im perativo m aior,
seguindo as“leisfísicasinvioláveisde toda aquela zona” .77

O artigo é paradigm ático a respeito das concepções de Euclides


anteriores ao contato com a Am azônia.N ele se percebe que o escritor,
im buído dos ideais científicos característicos do positivism o e do
evolucionism o, interpretava os fatos políticos à luz de pressupostos
teóricosgeográficose etnográficos.Trata-sedo Euclidesqueteorizacom
apoio nas leituras que fazia de autores europeus,visão que tende a se
transform ar após a viagem que fará à Am azônia.Em m eados de 1904,
porém ,a correta apreensão dos problem as com o Peru dem andaria,
segundo Euclides,um exam e percucientedaspeculiaridadesdo território
e do povo peruano,num a leitura do conflito à luz dos princípios do
determ inism o.Euclides principia o texto,portanto,rechaçando a visão
segundo a quala progressiva penetração de peruanos no Acre revelaria
tão-som enteum acobiçapelasriquezasexistentesnaregião – em verdade,
um a série de fatoresnaturaisestaria im pelindo a expansão dosperuanos
rum o à Am azônia brasileira.

Com o não se tratasse apenas da “avidez de alguns aventureiros” ,


Euclidescuida de form ularsua tese sobre a causa geradora doschoques
com o Peru:um a “leifísica inviolável” que determ inaria a expansão do
paísvizinho rum o ao Atlâ ntico.Essaleifísicadecorreriadacircunstâ ncia
deo Peru estarconfinado,à época,entreo Pacífico eosAndes.A pobreza
de recursos do litorale o fato de não se vislum brar um a solução para
esse problem a no Pacífico im pulsionava a nação para a busca de um
acesso ao Atlâ ntico,o que exigiria o dom ínio de áreas no Purus e no
Juruá,tributáriosdo rio Am azonas.N aspalavrasdeEuclides,“osdestinos
do Peru oscilam entre doisextrem osinvariáveis:ou a extinção com pleta
danacionalidadesuplantadaporum anum erosapopulação adventícia(...)
ou um desdobram ento heróico para o futuro,um a entrada atrevida na
Am azônia,um arushsalvadoraà scabeceirasdo Purus,visando do m esm o

77
Cunha,Euclides da.“Contrastes e Confrontos” .In:Obra Completa,v.1,cit.,p.179.

53
passo um a saída para o A tlâ ntico e um cenário m ais fecundo à s
atividades” .78

O fundam ento da tese de Euclides é, com o se vê , fruto da


com binação entre condicionantes geográficos e naturais – o fato de a
população peruanaestarconfinadaaum litoralestéril– eum certo instinto
deautoconservação danacionalidade,quepassou avislum brarnaAm azônia
um a possívelsolução para asconstriçõesim postaspela natureza.

Euclides vaim ais além e passa a se apoiar tam bém em fatores de


ordem étnica.Aquise faz presente,um a vez m ais,o em prego apriorístico
de teses evolucionistas,levando-o a conceber um a etnografia repleta de
afirm açõesfrágeis,configurando “incom preensõespordesconhecim ento
do problem a,incom preensões por refractariedade,incom preensões por
aceitação de teorias falsas (...)” .79 Para ele,a im petuosidade dos peruanos
em seu avanço rum o à Am azônia,desrespeitando asoberaniabrasileirana
região,decorreriadeum a“m estiçagem dissím il” ,quecontem plaria“am ais
num erosagaleriaetnográficadaterra:do caucásio puro,ao africano retinto,
ou am arelo desfibrado e ao quíchuadecaído (...)” .80 Essa m isturade etnias
engendrariaconseqüê nciastam bém no plano político.Afinal,o am álgam a
detem peram entosresultantedam iscigenação gerariadesordem econflitos.
Tratar-se-ia,naspalavrasdo autor,deum a“sociedadeincaracterística,sem
tradiçõesdefinidas” ,fazendo com queo “desequilíbrio dasforçasnaturais
quelheconvulsionam o território” serefletissetam bém naordem política.81
Fielà s concepções determ inistas e evolucionistas,Euclides é taxativo ao
ponderarque no Peru deparam osapenascom um am isturaderaças,enão
com um povo.

O artigo de 1904 não é inovador,claro,por veicular as visões


cientificistas de Euclides.É original,porém ,ao utilizaressas concepções
com o instrum ento interpretativo deum fenôm eno depolíticaexterna.N ão
se trata,com o em OsSertões,de esm iuçara form ação física e psíquica do
sertanejo,m asde enunciartesescontrovertidassobre osefeitosdeletérios

78
Ibidem.
79
Sodré,N elson W erneck,op.cit.,p.41.
80
Cunha,Euclides da.ContrasteseConfrontos,cit.,p.180.
81
Ibidem.

54
queam iscigenação teriatrazido aum paísvizinho.Euclidesalm ejava,com
seusargum entos,darforosde cientificidade à noção de que a desordem e
o caudilhism o prevaleciam na m aiorparte das repúblicas sul-am ericanas.
O ingresso de peruanos no território brasileiro seria consectário do
m ovim ento tum ultuário deum a“sociedadeincaracterística” ,m arcadapela
aleatória m istura de diferentesetnias.

Euclides registra ainda que o projeto de penetração peruana na


Am azônia era antigo,tendo se m anifestado em diferentes ações dos
governos daquela república,interessados na construção de ferrovias que
ligassem aAm azôniaperuanaao litoral.82 E fazum aadvertê nciafinalacerca
daim inê nciadeum aguerra:“Secontrao Paraguai,num teatro deoperações
m aispróxim o eacessível,aliadosà srepúblicasplatinas,levam oscinco anos
paradestruiroscaprichosde um hom em – certo não sepodem individuar
epreverossacrifíciosqueosim poráalutacom aexpansão vigorosadeum
povo” .83

Convém cham ar a atenção para o título do artigo, “Conflito


Inevitável” .A idéia de inevitabilidade do choque com o Peru advém dos
m esm ospressupostosdeinfalibilidadequeregem asleisfísicas.Porestarm os
dianteda“expansão vigorosadeum povo” ditadapelascondiçõesnaturais
eétnicas,parecehaver,à prim eiravista,pouco espaço paraum acontenção
político-diplom ática do avanço peruano sobre o Acre.Este artigo de
Euclidessobreo Peru,conquanto não sejaconclusivo,m anifestaaintuição
de que haverá um choque arm ado na região,ensejando a expressão que
serve de título ao texto.

N ota-se,desse m odo,o vivo interesse de Euclidespelosproblem as


daAm azônia,queassum iaplano dedestaquenaspreocupaçõesdepolítica
externa após a celebração do Tratado de Petrópolis.Vale reiterar que os
artigos que redigiu sobre a questão peruana antecederam sua nom eação
com o chefe da Com issão de Exploração do Alto Purus.

Esseinteresseredundou noutro artigo relevante,tam bém publicado


no jornalO EstadodeSãoPaulo.“Contra osCaucheiros” veio à tona em 22

82
Ibidem,p.181-182.
83
Ibidem,p.182.

55
dem aio de1904,apenasoito diasapósapublicação de“Conflito Inevitável” .
N ele Euclidesse am para,novam ente,em tesesetnográficaspara destacar
asespecificidadesda guerra que poderia ocorrerna selva am azônica.

Seu argum ento inicialé o de que o envio de batalhões para o Alto


Purus“é um erro” :“Está passado o tem po em que a honra e a segurança
das nacionalidades se entregavam ,exclusivam ente,ao rigor das tropas
arregim entadas” .84 À prim eiravista,parecequeEuclidesdeclinará asrazões
para que se evite um conflito arm ado com o Peru.O propósito do artigo,
todavia,édiverso:paraEuclidesastropasregularesdo Exército não teriam
preparo nem resistê ncia física suficientes para com bater na região.Ao
afirm ar que passou o tem po em que a segurança das nacionalidades
escorava-se apenas em “tropas arregim entadas” ,Euclides querdizerque
parece m ais aconselhável que os próprios habitantes da região, os
nordestinos que m igraram atraídos pelo látex,estejam na linha de frente
da resistê ncia à invasão.N ão se trata,pois,de lam entaro conflito,m asde
adicionara ele novasconsideraçõesde ordem etnográfica.

Tropastradicionais,assim ,não teriam condiçõesde com baternum


am biente inóspito,onde o inim igo em prega táticas heterodoxas:“Alinão
nos aguardam tropas alinhadas.Esperam -nos os caucheiros solertes e
escapantes,m alreunidosnosbatelõesdevoga,dispersosnasubásligeiras,
ou derivando velozm ente,isolados,à feição das correntes,nos m esm os
paus boiantes que os rios acarretam (...)” .85 D em ais disso,o clim a é
fustigante, tornando árdua a adaptação hum ana. Esses em pecilhos
conduzem Euclidesanegaraconveniê nciadeque seprossiga no envio de
m ilitaresparaaregião em disputa.Articula,ao contrário,um ateseoriginal:
a resistê ncia dos próprios civis.Para Euclides,“as forças para repelir a
invasão jáaliseacham ,destraseaclim adas,nastropasirregularesdo Acre,
constituídaspelosdestem erosossertanejosdosEstadosdo N orte” ,o que
o levaaconcluir:“Parao caucheiro -ediantedestafiguranovaim aginam os
um caso de hibridism o m oral:a bravura aparatosa do espanholdifundida
naferocidade m órbidado quíchua-,para o caucheiro um dom adorúnico,
que o suplantará:o jagunço” .86

84
Ibidem.
85
Ibidem,p.184.
86
Ibidem,p.185.

56
A conclusão do artigo revela que Euclidesnão estava defendendo,
portanto,um recuo nam ilitarização do conflito.M asnão écorreto seinferir,
daí,quepreconizasseo recurso à força.N averdade,nota-se,nasentrelinhas
do texto,queEuclidesreceiao conflito bélico,sejaporelem entosobjetivos,
com o asdificuldadesdeacesso à região,sejaporqueaindaestavam abertas
as portas do diálogo e da diplom acia.O entusiasm o com que louva as
virtudes físicas do jagunço e as críticas que desfere contra a instabilidade
política e contra a “m iscigenação dissím il” do paísvizinho resultam m ais
do estado de â nim osdaépocaedascaracterísticasbásicasde um artigo de
im prensa do que de um a análise detida do conflito.

Vê -se,à luzdo exposto,quetam bém o texto “ContraosCaucheiros”


lastreia-se em argum entos de base etnográfica,procurando vincular o
com portam ento hum ano à scondiçõesfísico-clim áticase a considerações
raciais.Tam bém aquio título ésignificativo:oscaucheiros(resultado,com o
visto,dam isturaentrea“bravuraaparatosado espanhol” com a“ferocidade
m órbida” do quíchua) são tom ados com o inim igos a serem derrotados
pelo vigordosjagunços.

A questão peruana se faz presente ainda em outro artigo de Euclides,


tam bém reunido no livro ContrasteseConfrontos:“Entre o M adeira e o Javari” ,
publicado no EstadodeSãoPauloem 29 dem aio de1904.É o terceiro texto de
Euclidessobre o problem a que se enfrentavana Am azônia,e com o qualele
lidariaapartirdeagosto do m esm o ano.N esteartigo Euclidesvoltaaprofessar
suafé no determ inism o e no darwinism o.A região do Acre é,segundo ele,o
“palco agitadíssim o deum episódio daconcorrê nciavitalentreospovos” .87 A
utilização da expressão “concorrê ncia vital” não é m eram ente m etafórica:
Euclides buscava retratar com fidelidade um a confrontação de base
supostam entebiológica.Tanto queassevera,explicitam ente,que“o quealise
realizou,eestárealizando-se,éaseleção naturaldosfortes” .88 Em outrostextos
Euclidescontinuaráexpondo suavisão daconform ação físicado caboclo ede
suacom plexarelação com o m eio.

U m dos pontos centrais do artigo, ultrapassando a discussão


etnográfica,éapreocupação em prom overaintegração efetivadaAm azônia

87
Ibidem,p.188.
88
Ibidem.

57
ao Brasil.Com o terem osoportunidadedesalientarposteriorm ente,Euclides
desenvolveu um a visão estratégica sobre a Am azônia,propugnando por
sua integração física ao Brasil.Fazendo um a analogia com os Estados
U nidos,ponderou que essa integração física passa pela engenharia e pelo
estabelecim ento decanaiseficientesdecom unicação entreo Acreeo resto
do país.D aíaim portâ nciadepolíticaspúblicasqueatendam aesseobjetivo:
“As novas circunscrições do Alto Purus,do Alto Juruá e do Acre devem
refletir a ação persistente do governo em um trabalho de incorporação
que,na ordem prática,exige desde já a facilidade das com unicações e a
aliança dasidéias,de pronto transm itidase traçadasna inervação vibrante
dostelégrafos” .89 D o contrário,“a Am azônia,m aiscedo ou m aistarde,se
destacarádo Brasil,naturalm entee irresistivelm ente,com o se despegaum
m undo de um a nebulosa – pela expansão centrífuga do seu próprio
m ovim ento” .90

Convém prosseguir com a análise de um últim o artigo,tam bém


inserido no volum e Contrastes e Confrontos. Em “Solidariedade Sul-
Am ericana” Euclides dá vazão, novam ente, à sua crença na idéia de
“concorrê nciavital” entreospovos.N esseprocesso com petitivo,não hesita
em afirm arasuperioridadebrasileiraeadesordem dasrepúblicasvizinhas.
Criticando a belicosidade de paísesdo continente,assenta que o “recente
Tratado de Petrópolis (...) é o m elhor atestado dessa antiga irradiação
superiordenosso espírito,destruindo ou dispensando sem preo brilho ea
fragilidade dasespadas” .91 E aceita claram ente a guerra,sob o argum ento
dequenão seriao prim eiro caso deum aguerrareconstrutora:“Aceitem os
tranqüilam entealutacom quenosam eaçam ,equenão podem ostem er” .92
Suaconclusão éadequeo idealdesolidariedadeentreospaísesdaAm érica
do Sulé “irrealizável” ,servindo apenas para “nos prender à s desordens
tradicionais de dois ou trê s povos irrem ediavelm ente perdidos” .93 N o
contexto deum conflito civilizacional,o Brasildeveriafazerprevalecersua
superioridade e sua tradição de estabilidade política,ainda que tivesse de
atritar-secom asrepúblicasvizinhas,vistasem geralcom o governosdébeis

89
Ibidem,p.189.
90
Ibidem.
91
Ibidem,p.192.
92
Ibidem.
93
Ibidem.
e m arcadosporum a espécie de “seleção naturalinvertida” ,conseqüê ncia
de um “darwinism o pelo avesso aplicado à história” .94

O sartigosde Euclidessobre osproblem asde fronteira com o Peru


revelam ,assim ,algum asrecorrê nciasdesuaobra,com unsaoutrosintelectuais
de seu tem po - isto é,próprias de seu cam po intelectualespecífico,que
m anifestava um a ideologia conform ada pelos problem as do regim e
republicano e pela influê ncia do pensam ento europeu.A preocupação
cientificista,presente no exam e etnográfico das populações locais,e um a
visão estratégicada Am azôniae de suaintegração ao Brasilestão presentes
deform aem brionárianosartigosquepublicou em m aio de1904.A viagem
ao Am azonaseao Acrelheperm itirádesenvolveressasperspectivaseproduzir
reflexõesm aisalentadassobre osproblem asda região.Essa visão m ostrar-
se-á,com o verem os,com plexa.N ão sevaicogitardeum aleiturasim plesm ente
cientificista da realidade regional.O stextosde Euclidesserão enriquecidos
porum testem unho sociológico dascontradiçõessociaisqueafetam aregião,
epelo conteúdo m arcadam entepropositivo.Assim com o no artigo “Entreo
M adeiraeo Javari” ,serão apresentadaspropostasparaaintegração daregião
– e de suaspopulações– ao restante do país.

O s quatro artigos que apreciam os – “Conflito Inevitável” ,“Contra


osCaucheiros” ,“Entreo M adeiraeo Javari” e“SolidariedadeSul-Am ericana”
– são textospioneirosdeEuclidessobreaAm azônia,expressando sobretudo
sua visão do conflito com o Peru,que passaria a absorvê -lo após sua
nom eação,pelo Barão do Rio Branco,com o chefedaCom issão Brasileirade
Reconhecim ento do Alto Purus.A leitura dos artigos nos aproxim a da
incipiente visão de Euclides sobre os problem as de política externa,tem a
que será aprofundado na parte finaldo presente trabalho.N ote-se,porém ,
queosartigosreferidosilustram bem algum asdasfalhasdasconcepçõesde
Euclides,derivadasdautilização deteoriasque,um avezconfrontadascom a
realidade da Am azônia,viriam a m ostrarsua debilidade.

3.2 – A V IA G EM D E E U CLID ES À A M A ZÔN IA

E uclides é nom eado chefe da Com issão Brasileira de


Reconhecim ento do Alto Purus em 09 de Agosto de 1904.A criação da

94
Ibidem,p.191.
com issão resultou do acordo brasileiro-peruano celebrado em 12 deJulho de
190495,consoante o qualosdoispaísestom ariam providê nciaspara que um a
expedição reconhecesse o Alto Purus, produzindo um relatório que
fundam entasseadiscussão sobreadelim itação defronteiras.A com issão,assim ,
eram ista,com postadebrasileiroseperuanos.A com issão brasileiraerachefiada
porEuclidesetinha,entreseusm em bros,o fotógrafo EgasChavesFlorence
eoengenheiro Arnaldo Pim entadaCunha,prim o deEuclides,nom eado auxiliar
técnico.96 D o lado peruano acom issão erachefiadapelo capitão Pedro Alejandro
Buenaño.97 Posteriorm ente Euclidesviria aqueixar-se dosperuanos,pornão
reconhecernelesum interesseem acelerarostrabalhos:“são quíchuas,quíchuas
m orbidam ente preguiçosos quando se trata de partir” .98 O acordo de 12 de
Julho tam bém criou um acom issão m istaparao reconhecim ento do Alto Juruá,
presididano lado brasileiro pelo generalBelarm ino deM endonça.99

A nom eação de Euclidesé o início de um a espera de quatro m eses,já


que,ao contrário de suasexpectativasim ediatas,só partirá para a Am azônia
em dezem bro de1904.N esseínterim ,ocupa-secom ospreparativosdaviagem
em uda-se,em setem bro,parao Rio deJaneiro,láacom odando suafam ília.100

As preocupações financeiras de Euclides prosseguem durante esse


período deespera.Em correspondê nciaaseu pai,em 25 deagosto,discuteo
possívelvalorde seus vencim entos e aceita os conselhos paternos para que
seja m aispragm ático:“O sr.tem razão:tenho sido idealista dem ais– e disto
m e arrependo.Vou fazero possívelpara consideraras coisas praticam ente,
sem contudo perderam inhavelhalinharetaà qualjáestouhabituado” .Salienta,
ainda,que pretende desem penhar sua m issão no Purus com “a m áxim a
dedicação” .101

95
Jorge,ArthurG uim arãesde Araújo,op.cit.,pp.123-124;Lins,Álvaro,op.cit.,pp.294-295;Braga,
Robério.Euclidesda Cunha noA mazonas.M anaus,Editora Valer/Fundação Lourenço Braga,2002,p.
29.
96
Para a com posição da com issão,cf.Venâ ncio Filho,Francisco.“Retrato H um ano de Euclides da
Cunha” ,cit.,p.75.
97
Ventura,Roberto,“M em ória Seletiva – À Frente da H istória” ,cit.,p.32-33.
98
Cartaa José Veríssim o,em 19 de m arço de 1905.In:Correspondê nciadeEuclidesdaCunha,cit.,p.274.
99
Jorge,ArthurG uim arães de Araújo,op.cit.,p.124.
100
Ventura,Roberto,“M em ória Seletiva – À Frente da H istória” ,cit.,p.32.
101
Carta a M anuelR.Pim enta da Cunha,em 25 de Agosto de 1904.In:Correspondê ncia deEuclidesda
Cunha,cit.,p.224.
U ltim ados os preparativos,Euclides parte em 13 de dezem bro e
chega a M anaus no dia 30,após escalas,dentre outros lugares,em Recife
(onde encontra ClóvisBevilácqua)e Belém (onde visita Em ílio G oeldi).102
Sua prim eira im pressão da cidade não foipositiva,em função sobretudo
do clim aquenteeúm ido.Recém -chegado,alude,em cartaaAfonso Arinos,
a um “perm anente banho de vapor” ,reportando-se à cidade com o a
“ruidosa, am pla, m al-arranjada, m onótona e opulenta capital dos
seringueiros” .103 M anifesta o m esm o juízo posteriorm ente,influenciado
destaveznão som entepelo desconforto propiciado pelo clim a,m astam bém
pelasdificuldadesque encontra para organizara partida ao Purus.

Em cartaaD om ício daG am a,refere-seaM anauscom o um a“Cápua


abrasadora,trabalhosa,que m e devora energias” e com o um a cidade
“com ercial e insuportável” . E expressa suas preocupações com os
preparativos da expedição, afirm ando sofrer com a “sobrecarga de
preocupações” ,em especialasdificuldadesparaobtertransporterum o ao
Purus.104 O m esm o sentim ento se faz presente em carta a José Veríssim o,
quando diz que leva,em M anaus,um a “vida perturbada e fatigante” .105

O stranstornostrazidospelasdificuldadesem prepararapartida da
expedição fazem com queEuclidesdesabafecom JoséVeríssim o,afirm ando
que o exploradoringlê sChandless,quando chegou a M anaus,“encontrou
da parte do G overno provinciale até do povo o m ais eficaz e poderoso
auxílio” ,ao passo que“nós,brasileiros,revestidosdeum acom issão oficial,
encontram osem peçosindescritíveis!” .106

A estadadeEuclidesem M anausseprolongam aisdo queo previsto.


O sóbicesqueseapresentam à organização logísticadaexpedição eadem ora
no envio de instruçõesdo Itam araty com pelem a com issão a perm anecer
na capitalaté abrilde 1905.Em 10 de m arço de 1905 Euclides envia
102
Ventura,Roberto,“M em ória Seletiva – À Frente da H istória” ,cit.,p.32.
103
Carta a Afonso Arinos,em 12 de janeiro de 1905.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,p.
250.
104
Carta a D om ício da G am a,s.d.1905.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,p.255-256.
105
Carta a José Veríssim o,em 13 de janeiro de 1905.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,p.
252.
106
Carta a José Veríssim o,em 2 de fevereiro de 1905.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,p.
261-262.

61
correspondê nciaao Barão do Rio Branco.N ela,precisando asdificuldades
dacom issão,afirm aqueam issão oficialenfrentadificuldadesfinanceirase
que vaipartir,em função do atraso,num m om ento im próprio,em face da
vazante do rios.107

A expedição parte em 5 de abril.As dificuldades prosseguem ,


inclusive com o naufrágio de um dos barcos que levavam m antim entos.
Em diversos trechos,em virtude das condições de navegabilidade,os
m em brosdam issão tiveram quesedeslocarem canoas.A com issão,porém ,
consegueatingiracabeceirado Purus,eretornaaM anausem 23 deoutubro,
depoisde terfeito,em seism eses e m eio,o itinerário de 3.210 km para o
reconhecim ento do rio.108

O s acontecim entos que cercaram a viagem da Com issão brasileira


ao Purusforam inicialm entedescritosporEuclidesem entrevistaao Jornal
doCommercio,de M anaus,publicada em 29 de outubro de 1905.O escritor
relem bra, de início, os obstáculos que se apresentaram à expedição,
m encionando a “quadra im própria em que seguim os” – referindo-se à
vazante dos rios,que im pôs o uso de canoas – e o naufrágio do batelão
M anuelU rbano,quetransportavaosvíveres.109 Asexpectativasdosm em bros
da Com issão não eram das m elhores.Euclides ressalta:“Íam os para o
m isterioso.N ão pode negar-se que até aquela data existia,entre nós e as
nascentesdo Purus,descido um desm esurado telão,escondendo-no-las” .110

O “m isterioso” a que alude Euclides consistia em duas ordens de


em pecilhos.O prim eiro deleseram osnaturais.N o itinerário daexpedição
encontravam -se,conform erelatanaentrevista,quedasd´águaebancosde
areia e paus.Em segundo lugarhavia a am eaça dosinfieles,com o Euclides
denom inaos“bárbaros,querondavam porperto num aam eaçaperm anente
e surda” 111,e que,de acordo com o testem unho da com issão,haviam
trucidado um a m ulher e jogado o seu cadáver no barranco do rio que

107
Venâ ncio Filho,Francisco,Rio Branco eEuclidesda Cunha,cit.,p.24-25.
108
Ventura,Roberto,“M em ória Seletiva – À Frente da H istória” ,cit.,p.33.
109
Cunha,Euclides.“O s Trabalhos da Com issão Brasileira de Reconhecim ento do Alto Purus” .
Entrevista ao JornaldoCommercioem 29 de O utubro de 1905.In:Obra Completa,v.1,cit.,p.554.
110
Ibidem,p.555.
111
Ibidem,p.556.

62
percorriam . D e resto, Euclides reporta-se à pequena quantidade de
m antim entosdisponíveis112 eao esforço despendido paraquesealcançasse,
com ê xito,a cabeceira do Purus.Concluiasseverando que,ao atingir o
ponto pretendido,“o que eu principalm ente distingui,irrom pendo de trê s
quadrantes dilatados e trancando-nos inteiram ente – ao sul,ao norte e a
leste – foia im agem arrebatadora da nossa Pátria que nunca im agineitão
grande” .113

O sum ário feito porEuclidesem suaentrevistaao JornaldoCommercio


dá um a idéia das variadas dificuldades superadas pela com issão nos seis
m esesem eio deexpedição.O escritoratém -se,em seu relato,arem em orar
o trajeto seguido pelam issão oficialeosprincipaisproblem asenfrentados
em cada etapa.A única m enção à spopulaçõeslocaisocorre quando cita a
am eaça dos infieles. Recém -chegado, talvez ainda não tivesse tido a
oportunidade de organizarsuasreflexõessobre asprecáriascondiçõesde
vida dos seringueiros.O m om ento era apenas o de registraros episódios
principaisda viagem que percorreu o Purus.

3.3 – O RELA TÓRIO OFICIA L DA COM ISSÃ O D E E X PLORA ÇÃ O


D O A LTO PU RU S

O relatório oficialdaCom issão deReconhecim ento do Alto Purus


traz outrasponderaçõesde Euclidesque m erecem exam e m aisdetido.A
análise em separado deste docum ento decorre do fato de se tratar de
texto redigido após a viagem de Euclides ao Purus, contendo, logo,
elem entos que podem contribuir para o exam e do livro À M argem da
H istória.O bserve-se que o docum ento,intitulado Relatório da Comissão
M ista Brasileiro-Peruana deReconhecimento do A lto Purus,foipublicado pela
Im prensa O ficialem 1906 com o subtítulo “N otas com plem entares do
com issário brasileiro” 114,dem onstrando,assim ,que Euclides da Cunha
foio responsávelpela redação.

112
Ibidem.Euclidesobservou que “fom osà m eia ração” e faz um a listada quantidade de cadaum dos
víveres (carne seca,farinha,açúcar,arroz,“restos de bolacha esfarinhada” e leite condensado)com
o intuito de dar relevo, m ais um a vez, à s diversas dificuldades enfrentadas pela com issão:
“Propositadam ente apresento esta lista.É eloqüente” .
113
Ibidem,p.558.
114
Idem.O RioPurus.In:ObrasCompletas,v.1,cit.,p.753.

63
N essedocum ento oficialatrajetóriadaexpedição ganhacontornos
m aisdetalhados,eEuclidessente-seà vontadeparaapresentarcom entários
sobre a região.D e início,não se furta a reforçar as adversidades que
encontrou na organização da m issão.Registra o “atraso das Instruções,
recebidaspoucosdiasantesda partida,de sorte que o tem po despendido
em M anausnosdesalentava,tornando problem ático o chegarm osao term o
da viagem de que nos encarregáram os,sobre aum entar grandem ente as
suas dificuldades” .115 Corrobora, assim , as im pressões e críticas que
m anifestaranascartasqueenviou deM anausduranteo intervalo entresua
chegada,em dezem bro de1904,eapartidadaexpedição,em abrilde1905.

Após apresentaras características físicas principais do Alto Purus,


Euclidesdetém -se,no relatório oficial,no exam edospovoadoresdaregião.
É aquiqueeledefine,pelaprim eiravez,asnotasdistintivasdosdoisgrupos
responsáveispela ocupação do interioram azônico.N ão constituem ,aliás,
sim ples grupos.N as palavras de Euclides,poder-se-ia divisar,no Purus,
duas“sociedadesnovaseoriginais” :adoscaucheiroseadosseringueiros.116
Conquanto se trate de um a descrição sucinta,Euclidesesboça um exam e
sociológico que se alia à descrição técnica que faz do Puruse do clim a da
Am azônia.

Asduas“sociedades” apontadasporEuclidesrepresentam ,grosso


m odo,os pólos do conflito que envolvia o Brasile o Peru.D e um lado
estariam os caucheiros peruanos,objeto,com o visto,de um artigo de
Euclides publicado no jornalO Estado de São Paulo.D e outra parte,os
seringueirosbrasileiros.Asdiferençasentre asduasclassesde povoadores
éclara:oscaucheirosexploram o caucho,gom aelásticaque,ao contrário do
látex,não se renova.D esse m odo,o “caucheiroé porforçaum nôm ade,um
pesquisador errante,estacionado nos vários pontos a que chega até que
tom be o últim o pé de caucho” .117 Esse nom adism o em basava inclusive
argum entos jurídicos que respaldavam a posição brasileira,porquanto o
deslocam ento contínuo dos caucheiros peruanos inviabilizaria a
configuração do utipossidetis,segundo a qualapenasa ocupação efetiva do
território pleiteado poderiageraro direito à reclam ação de um título legal.

115
Ibidem.
116
Ibidem,p.779.
117
Ibidem.

64
O seringueiro,porseu turno,“éporforçasedentário efixo.Enleiam -
no,prendendo-o para sem pre ao prim eiro lugar em que estaciona,as
própriasestradasqueabriu,convergentesnasuabarraca,equeelepercorrerá
durante a sua vida toda” .118 A despeito da distinção traçada,Euclides é
cristalino ao destacara contribuição dos dois grupos para o povoam ento
do Alto Purus.Sua apreciação do tem a esgota-se,por conseguinte,na
definição das duas “sociedades” e no contraste entre o nom adism o dos
caucheirose o sedentarism o dosseringueiros.A análise prosseguirá em À
M argem da H istória,m om ento em que Euclides vaidar m aior ê nfase ao
caráterdo caucheiro eà precáriasituação socialdaspopulaçõesqueviviam
da exploração da borracha.

Essa conciliação de descrição geográfica e apreciação sociológica


atesta a convicção de Euclides de que, no início do século X X , o
desenvolvim ento industriale científico im punha ao escritora necessidade
de novos conhecim entos.A literatura deveria,assim ,em sim biose com a
ciê ncia,espelharastransform açõesem curso.O escritor,anteanecessidade
de dom inarnovas linguagens,tornar-se-ia um polígrafo:“A sua obra [de
Euclides]distribui-se em cinco gê neros:historiografia,geografia,crônica,
epistolografia e poesia, versadas todas em estrito consórcio com o
com entário científico.Raram enteEuclidespraticou algunsdelesem estado
puro,optando tam bém aquipreferivelm ente por um a com binação das
form as” .119 Essa fusão de discursos se faz presente em toda a sua obra.
Assim ,no relatório oficialque produziu para o Itam araty,Euclides lança
m ão tanto deenunciadosem inentem ente geográficose técnicos-é o caso
daqueles relativos ao levantam ento hidrográfico e ao clim a do Purus -,
com o em ite juízos sobre o povoam ento da região e elogia o “destem or
estóico” de seushabitantes.120

N o relatório da com issão Euclidesnão deixará de prestartributo a


seusantecessoresnaexploração do Purus.U m dostópicosdo texto oficial
é dedicado a resgatar a contribuição das diversas personalidades que
enfrentaram os rios desconhecidos da Am azônia.N este ponto Euclides
revela um am plo conhecim ento acerca da bibliografia sobre o tem a e

118
Ibidem.
119
Sevcenko,N icolau,op.cit.,p.134.
120
Cunha,Euclides da.O RioPurus,cit.,p.801.

65
sum aria,em linhasgerais,asdiversasdescriçõesda região e o equívoco de
cronistas e viajantes que não citavam o Purus e suas populações.Assim ,
para Euclides o desconhecim ento e o “abandono” do Purus se deviam
sobretudo à s “lacunas lam entáveis das nossas tradições” .121 O fato de o
Purusm ostrar-sepouco conhecido teriam otivado aRoyalG eographicalSociety
de Londresa designarem 1864 um de seusm em bros,W illiam Chandless,
paraexploraro rio am azônico.M asChandless,adm irado efreqüentem ente
citado porEuclides,não foio prim eiro a percorrero Purus no intuito de
conhecerseu traçado easpopulaçõesqueo m argeavam .O crédito caberia
aum brasileiro,M anuelU rbano daEncarnação.Euclideso descrevecom o
“um cafuz destem eroso e sagaz,[que]tinha,a par do â nim o resoluto e
sobranceiro aosperigos,um avivacidadeintelectual,agreatnaturalintelligence,
no dizerde Chandless,que m uito contribuiu para o ascendente que teve
sobretodasastribosribeirinhas,eparaque se abrisse naquelasbandasum
dosm elhorescapítulosda nossa história geográfica” .122

A resenhaqueEuclidesfazdasexpediçõescom andadasporM anuel


U rbano tem com o propósito salientarque foieste brasileiro o prim eiro a
fixardados segurossobre o Puruse sobre aspopulaçõesindígenas que o
povoavam .O utro brasileiro,o engenheiro Silva Coutinho,teria sucedido
U rbano na exploração do Purus,tendo inclusive m ostrado capacidade de
predizerosproblem asque se abateriam sobre a região,salientando o fato
de que o Purusé o único canalde com unicação do Peru e da Bolívia com
o rio Am azonas,o que confere ao rio um a im portâ ncia estratégica para os
paísesvizinhos.123

Aspáginasde m aiorlouvordo relatório são,contudo,consignadas


aW illiam Chandless.Ao revésdeM anuelU rbano,queera,naspalavrasde
Euclides,um hom em inculto,porém aparelhado deum “tino adm irável” 124,
além de ser um “m estiço inteligente e bravo” 125, Chandless era um
pesquisador europeu respeitado. Pôde, assim , ter m aior precisão no
estabelecim ento de dadossobre o Purus,que visitou em 1864.Euclidesé

121
Ibidem,p.780.
122
Ibidem,p.783-784.
123
Ibidem,p.785.
124
Ibidem,p.784.
125
Ibidem,p.779.

66
perem ptório ao assinalarque Chandless“realizou a m aisséria entre todas
asexploraçõesdo grande rio” .126 A despeito dosobstáculosim postospela
região,pôdesolucionardiversasquestõesqueperm aneciam irrespondidas,
dem onstrando principalm ente que o Purus não se confundia com o rio
M adre de D ios,constituindo um a bacia independente.127

Chandless foio últim o explorador do Purus antes da viagem da


Com issão M ista Brasileiro-Peruana em 1905.O s avanços por ele obtido
teriam sido tão valiososqueEuclidesassevera,no relatório,queosresultados
daexpedição são “em grandecópiaum com plem ento dosesforçosdaquele
explorador” .128

U m últim o aspecto do relatório que atraia atenção é a análise feita


porEuclidesdo povoam ento do Purus.Com o jávim osanteriorm ente,ele
discerniu a existê ncia de duas “sociedades” ,a dos caucheiros e a dos
seringueiros, am bas dedicadas à exploração das riquezas da região.
Posteriorm ente,em À M argem daH istória,Euclidesvoltariaasalientarcom o
asriquezasnaturaisatraíam levasdepovoadores,retom ando osargum entos
de base científica que m arcaram OsSertõese os artigos sobre a Am azônia
publicadosem m eadosde 1904.

Paraele,no interiordaAm azôniaocorreum a“vastaseleção natural” :


“Lá persistem apenas os fortes.E sobrepujando-os pelo núm ero,pelo
m elhorequilíbrio orgâ nico de um a clim ação m ais pronta,pela robustez e
pelo garbo no enfrentarem perigos,osadm iráveiscabocloscearensesque
revelaram aAm azônia” .129 Euclidespersiste,assim ,nastesesevolucionistas,
lançando m ão da term inologia darwinista e reiterando que, dadas as
condições físicas e clim áticas da região, apenas os m ais preparados
fisicam ente– eosim igrantesdo nordeste,os“jagunços” ,seriam o m elhor
exem plo disso – poderiam sobreviver.

Euclidestam bém fazm enção aum doselem entosqueim pulsionarão


seu livro À M argem da H istória:o quadro socialda região.Seu juízo é o de

126
Ibidem,p.786.
127
Ibidem,p.788.
128
Ibidem,p.789.
129
Ibidem,p.801.

67
que “o rude seringueiro é duram ente explorado” ,m ostrando-se “quase
um servo” .130

Além dastesesevolucionistase da preocupação social,um terceiro


aspecto é m encionado de passagem e constituirá o últim o elem ento do
tripéquesustentaráaposteriorelaboração do livro À M argem daH istória:o
isolam ento daregião.A exploração do caboclo éfacilitadapelo isolam ento
em que vive,e osm ales sociais,de acordo com Euclides,“desaparecerão,
desde que se incorpore a sociedade seqüestrada ao resto do país,e para
isto requer-se,desdejá,com o providê nciaurgentíssim a,o desenvolvim ento
da navegação até o últim o ponto habitado,com pletada pelo telégrafo,ao
m enosentre M anause a Boca do Acre” .131

O Relatório da Com issão é um texto original pelo interesse


dem onstrado por Euclides em propor,ainda que de passagem ,m edidas
tendentes a redim ir a m arginalização das populações am azônicas. A
perspectivatécnicaquenorteiao relatório não é,porconseguinte,exclusiva.
Convivem ,em seu texto,o foco histórico,dem onstrado na preocupação
em rem em orar a contribuição de W illiam Chandless; o foco social,
consubstanciado no depoim ento sobre a exploração do seringueiro e no
exam e das razões econôm icas que prom overam o célere povoam ento do
Purus;e,porderradeiro,um avisão estratégicado rio,visto com o plenam ente
navegávele de grande interesse econôm ico.Essesaspectosnão poderiam
ser objeto de um a análise m ais extensa em virtude dos objetivos e
características de um relatório.N ada obstante,é neste texto oficialque
Euclidesapresentaasproposiçõesqueserão posteriorm entedesenvolvidas
em À M argem da H istória.

130
Ibidem,p.801-802.
131
Ibidem,p.802.

68
IV -E UCLID ES D A CUN H A E A A M AZÔ N IA
IV.B RASIL E M U N D O AN TE O SÉCU LO XXI

4.1 – A M A ZÔN IA ,TERRA SEM H ISTÓRIA

A viagem deEuclidesà Am azôniaperm itiu-lhetestem unhardeperto


adifícilsituação daspopulaçõesquealiviviam .A constatação dasprecárias
condiçõesdevidado seringueiro eo isolam ento daregião levaram Euclides
aprojetararedação deum segundo “livro vingador” ,quereceberiao título
U m Paraíso Perdido. Sua m orte prem atura obstaculizou, porém , a
concretização desseprojeto.SobreaAm azônia,além deartigosesparsose
dos textos reunidos em ContrasteseConfrontos,Euclides pôde escrever os
ensaiosde À M argem da H istória,cujarevisão foiconcluída pouco antesde
sua m orte,em 1909.

Cum pre registrar,porém ,que os ensaios am azônicos de Euclides


padecem da falta de unidade,tratando-se de artigose textosesparsosque
foram posteriorm ente reunidos nos dois livros citados.A despeito da
qualidade de sua produção sobre a A m azônia, Euclides não teve a
oportunidade de conceberum a obra sistem ática sobre a região,am bição
queseconsubstanciariano livro U m ParaísoPerdido.Francisco FootH ardm an
assinala,dessa form a,que

“do ponto de vista estético-literário,este projeto euclidiano perm aneceu


algo truncado.Apesarde,entre osm elhorestextosescritosporEuclides,
nessa fase finalda vida,situarem -se alguns dos ensaios de sua prosa
am azônica,inspirados em boa parte,m as não exclusivam ente,naquela
expedição,faltou ao conjunto a unidade épico-dram ática e a arquitetura
estilística que salta aosolhos em OsSertões” .132

Em À M argem da H istória deparam os com a elaboração form alde


argum entos apenas esboçados em textos anteriores.O relatório sobre a

132
H ardm an,Francisco Foot.“A vingança da H iléia:ossertõesam azônicosde Euclides” .In:Revista
TempoBrasileiro,n.144,jan/m ar2001,p.31.

71
expedição ao Am azonaseao Acre,redigido parao Itam araty,contém apenas
o em brião da crítica sociale daspropostasde integração da Am azônia ao
Brasil.Essesdoisaspectosganham vulto em À M argem da H istória.

U m prim eiro ponto am erecerrealceéo título do segm ento inaugural


daobra:Terrasem história.Trata-sedapartem aissubstancialdo livro,dedicada
exclusivam enteà Am azônia.O soutrosdoiscapítulosreportam -seatem as
variados.O segundo recebe a designação de V áriosEstudos,com pondo-se
de trê s ensaios sobre tem as distintos:V iaçãosul-americana,M artín G arcía e
O primadodoPacífico.O terceiro capítulo éum ensaio histórico,denom inado
D aindependê nciaà República.A reflexão sobreaAm azôniaestácingida,logo,
ao prim eiro capítulo da obra.

Ao lançarm ão da expressão Terra sem história Euclidespredispõe o


leitor para a sensação de abandono e desconhecim ento que atinge a
Am azônia.Sobre a região pouco se tinha escrito,afora as crônicas de
viajanteseosrelatosdepesquisadoresestrangeirosquebuscaram desvendar
os segredos naturais dos rios e florestas tropicais.O povoam ento efetivo
do interior am azônico era,à época,recente,estim ulado sobretudo pela
exploração da borracha,que fez as cidades do Am azonas e do Acre
experim entarem um surto de progresso na passagem do século X IX para
o século XX .Já no relatório da Com issão de Exploração do Alto Purus,
que analisam os anteriorm ente,Euclides se referira ao “abandono” a que
era relegado aquele tributário do rio Am azonas.N esse sentido,não se
poderiafalar,naquelem om ento,num a“história” daAm azônia,m orm ente
se considerarm os com o parte fundam entaldessa recuperação histórica o
estudo das populações am azônicas,sobretudo o seringueiro vindo do
N ordeste.

A m igração de nordestinos para a Am azônia foium a resposta à


dem anda de m ão-de-obra para a exploração da borracha,m atéria-prim a
cadavezm aisprocuradano m ercado m undial:“Sebem queaspossibilidades
de increm ento não fossem m uito grandes,as exportações de borracha
extrativa brasileira subiram da m édia de 6.000 toneladasnosanossetenta,
para11.000 nosoitenta,21.000 nosnoventae 35.000 no prim eiro decê nio
deste século [X X]” .133 A transum â ncia de nordestinos para a Am azônia

133
Furtado,Celso.Formaçãoeconômica doBrasil.24ª ed.São Paulo,Editora N acional,1991,p.131.

72
era,assim ,um arespostaà escassezdem ão-de-obranaregião.Ascondições
detrabalho queosaguardavam ,contudo,não eram propíciasà prosperidade.
Celso Furtado destacaria,posteriorm ente,o contraste entreasituação dos
im igranteseuropeusenordestinos.O im igranteeuropeu chegavaao Brasil
“com todos os gastos pagos,residê ncia garantida,gastos de m anutenção
asseguradosaté a prim eira colheita” ,ao passo que o im igrante nordestino
na Am azônia encontrava situação bem distinta:“com eçava sem pre a
trabalharendividado,poisviaderegraobrigavam -no areem bolsarosgastos
com a totalidade ou parte da viagem ,com os instrum entos de trabalho e
outras despesas de instalação” .134 Essa difícil situação do seringueiro,
confrontado com asdívidase com a insalubridade da região am azônica,é
retratada com detalhesem À M argem da H istória.

N esse sentido,a expressão “terra sem história” deriva do pouco


conhecim ento que se tinha a respeito da Am azônia no início do século
X X.Roberto Ventura pondera que para Euclides os sertões – tanto os
nordestinos com o os am azônicos – “são vistos com o desertos,espaços
fora da escrita” .Assim ,“o escritor defendia a integração dos sertões à
escrita e à história,cujos lim ites e cujas fronteiras estariam em contínua
expansão desde a chegada dos navegadores e colonizadores europeus à
terra brasílica” .135 O idealde Euclidesseria,logo,o de resgatara região do
abandono e integrá-la ao processo histórico de desenvolvim ento.

O prim eiro segm ento deTerrasem históriadenom ina-se“Im pressões


gerais” einiciacom um aassertivaim pactante.Euclidessalientaquealeitura
dosviajantesque escreveram sobre o rio Am azonas– com o H um boldt–
contribuiu para form arno leitorum a im agem idealizada do m aiorrio do
planeta.Estar face a face com o rio,contudo,causou no escritor um a
frustração, “um caso vulgar de psicologia” . Euclides diz que “ao
defrontarm os o Am azonas real,vem o-lo inferior à im agem subjetiva há
longo tem po prefigurada” ,e concluide m aneira surpreendente:“Toda a
Am azônia,sob este aspecto,não vale o segm ento do litoralque vaide
Cabo Frio à ponta do M unduba” .136

134
Ibidem,p.133-134.
135
Ventura,Roberto.“Os Sertões entre dois centenários” .In:M adeira,Angélica e Veloso,M ariza.
D escobertasdo Brasil.Brasília,Editora U niversidade de Brasília,2001,p.122-123.
136
Cunha,Euclides.À M argem da H istória.São Paulo,Ed.M artins Fontes,1999,p.1.

73
Euclidesaludiaespecificam enteà im pressão visualque aAm azônia
causa no visitante.A uniform idade da vegetação,a longa extensão dos
rios,a m agnitude da floresta,tudo geraria no observadorum a espécie de
entorpecim ento dos sentidos.A igualdade daquele cenário,em toda sua
vasta extensão,resultaria no que Euclides denom inou de “m onotonia” .
Esclareceessesentim ento apartirdeum aanalogiacom osm ares:“(...)em
poucashoraso observadorcedeà sfadigasdem onotoniainaturávelesente
que o seu olhar,inexplicavelm ente,se abrevia nos sem -fins daqueles
horizontesvaziose indefinidoscom o osdosm ares” .137

O pessim ism o inicial de Euclides indispõe-se, pois, com as


concepções que idealizam a Am azônia com o um paraíso,cujas belezas
naturais não encontrariam rivais em nenhum a outra parte do m undo.A
constatação da m onotonia visual não im pede, todavia, que deixe
transparecerem seusensaiosaforteim pressão queo contato com aregião
deixa no visitante,lançando m ão,quando necessário,de superlativos que
exprim iriam o ê xtase derivado do contato com a natureza local.Esses
superlativos,porém ,são acom panhadosderessalvasquelheretiram aforça.
É o caso da m enção à “im perfeita grandeza” da flora.E,num a síntese de
suas im pressões íntim as,afirm a:“D estarte a natureza é portentosa,m as
incom pleta.É um a construção estupenda a que falta toda a decoração
interior” .138

A ssim , Euclides vai carregar nas cores com que descreve a


A m azônia, trabalhando com um jogo de antíteses que se presta a
im pressionaro leitor.Essasantítesessão com ponentesfundam entaisde
seu estilo,queprim avaem lidarcom asoposiçõesecontrastes.139 Podem os
nos utilizar,m ais um a vez,de suas próprias palavras:“Parece que alia
im ponê ncia dos problem as im plica o discurso vagaroso das análises:à s
induções avantajam -se dem asiado os lances da fantasia. As verdades
desfecham em hipérboles” .140

137
Ibidem,p.2.
138
Ibidem,p.3.
139
“É um a constante em sua obra a ê nfase sem pre reincidente sobre os contrastes,as antíteses,os
choques,osconfrontos,osdesafios,oscotejos,asoposições,osantagonism os” .In:Sevcenko,N icolau,
op.cit.,p.136.
140
Cunha,Euclides da.À M argem da H istória,cit.,p.4.

74
O scontrastespresentesnaprosaeuclidianasão indicativosdo estilo
expressionistaidentificado porG ilberto Freyreno autordeOsSertões.Para
Freyre,Euclideséum estilistadalinguagem ,habituado aconferirà spalavras
um tratam ento escultural,“exagerando então osalongam entos,osâ ngulos,
os relevos” .141 A com posição desse estilo distancia-se m uitas vezes da
preocupação em apresentar um a descrição objetiva e sintética dos
fenôm enosnaturais.Ao assinalarque“à sinduçõesavantajam -sedem asiado
oslancesda fantasia” Euclidescorrobora essa tese,e justifica seu próprio
estilo expressionista.

Ashipérbolesassum em acondição deum adasnotasdefinidorasde


sua literatura.Freyre apresenta um a reflexão que talvez explique a visão
inicialdeEuclidessobreaAm azônia:“A Euclydescom o querepugnavana
vegetação tropicalenapaisagem dom inadapelo engenho deaçúcaro gordo,
o arredondado,o farto,o satisfeito,o m ole dasform as;seusm açoscom o
quedecarne;o pegajento daterra;adoçurado m assapê .Atraía-o o anguloso,
o ossudo,o hirto dos relevos ascéticos ou,quando m uito,secam ente
m asculinosdo “agreste” e dos“sertões” ” .142

N esse sentido,a pecha de “m onotonia inaturável” que atribuià


Am azôniadecorreriadesuaprópriadificuldadeem lidar,no plano literário
e da im aginação,com o “farto” ,com o “satisfeito” .O agreste ofereceria,
nesse passo,m aiorespossibilidadesao exercício de sua criação literária.A
im ensidão da Am azônia,sua exuberâ ncia,a riqueza de sua flora e fauna,a
abundâ ncia de recursosnaturais,o clim a úm ido e aschuvasintensas,tudo
parecia se incom patibilizarcom a exigüidade dos sertões.Para o escultor
dalinguagem ,com o o defineFreyre,o contrasteéfundam ental.N anatureza,
essescontrastesparecem em anarm aisdo “anguloso” e do “hirto” do que
do “arredondado” dasflorestastropicais.

M as Euclides,a despeito de sua afirm ação inicial,segundo a qual


“todaaAm azônia,sob esteaspecto,não valeo segm ento do litoralquevai
de Cabo Frio à ponta do M unduba” ,não vaise escusarde preservarseu
estilo expressionista na apresentação que fará da região.Ele o confessa ao
fixarquealioslancesdafantasiarivalizam com aobjetividadedasinduções.

141
Freyre,G ilberto,op.cit.,p.27.
142
Ibidem,p.30.

75
Em À M argem daH istóriaessedualism o entrefantasiae objetividade,entre
o literário e o científico,será um a dasforçasm otrizesdo texto.

Aindano prim eiro segm ento de“Terrasem história” ,ImpressõesGerais,


Euclidesdá um a dem onstração da sim biose entre a fantasia e a descrição
ao assinalarque na Am azônia osfenôm enosnaturaism uitasvezesfogem
dos quadros tradicionais de apreensão científica.Com esteio na análise
dos estudiosos que percorreram a região,observa que se trata talvez da
terram aisnovado m undo.Porserrecente,osfenôm enossão m aisvigorosos
em enosregulares,o quedesafiao observador:“Tem tudo efalta-lhetudo,
porquelhefaltaesseencadeam ento defenôm enosdesdobradosnum ritm o
vigoroso,de onde ressaltam ,nítidas,as verdades da arte e da ciê ncia – e
que é com o que a grande lógica inconsciente das cousas” .143 D essa
constatação adviria a visão da Am azônia com o um a região em constante
m utação,de construção inacabada,um a espécie de página incom pleta do
G ê nesis.144

Asreflexõesiniciaisde Euclidesem À M argem da H istória denotam


sua preocupação em ressaltar que não basta o rigor científico para
com preendera m agnitude da Am azônia,porquanto o encadeam ento dos
fenôm enosé,ali,surpreendente.Seu pressuposto detrabalho éharm onizar
o discurso científico com o discurso literário.Ao se referir aos grandes
exploradores da Am azônia,Euclides observa que sua produção “reflete
bem a fisiografia am azônica:é surpreendente,preciosíssim a,desconexa.
Q uem quer que se abalance a deletreá-la,ficará,ao cabo desse esforço,
bem pouco além do lim iarde um m undo m aravilhoso” .145

Esse“m undo m aravilhoso” exigiriaqualidadesdeim aginação,enão


apenasaposturadesim plesobservação.Euclidestem o cuidado deem basar
suaposição recorrendo a um dospesquisadoreseuropeusque exploraram
a Am azônia,Frederico H artt.Ao estudara geologia da região,H arttteria
seconfrontando com aineficáciadasfórm ulascientíficas.N essem om ento,
segundo Euclides,“teve de colher de súbito todas as velas à fantasia” .

143
Cunha,Euclides.À M argem da H istória,cit.,p.3.
144
Ventura,Roberto.“OsSertõesentre doiscentenários” .In:M adeira,Angélica e Veloso,M ariza,op.
cit.,p.118.
145
Cunha,Euclides.À M argem da H istória,cit.,p.3

76
H arttteria resistido à tentação de am parar-se no sonho e na im aginação,
asseverando:“ -N ão sou poeta.Falo a prosa da m inha ciê ncia.Revenons!” .
Todavia,o esforço cientificistateriaresultado infrutífero.Euclidesconclui
o com entário sobreo relato deH arttdestacando queasm aravilhasnaturais
da Am azônia im pedem que o observador m antenha um a posição de
distanciam ento e neutralidade: “[H artt] Escreveu: encarrilhou-se nas
deduções rigorosas.M as decorridas duas páginas não se forrou a novos
arrebatam entosereincidiu no enlevo...É que o grande rio,m algrado asua
m onotoniasoberana,evocaem tantam aneirao m aravilhoso,queem polga
porigualo cronistaingê nuo,o aventureiro rom â ntico eo sábio precavido” .146

A s páginas de À M argem da H istória seguem esse m odelo de


conciliação entre fantasia e zelo cientificista.Seus ensaios não podem ser
consideradosapenasartigoscientíficos:suafiliação à literatura decorre da
inevitabilidade da fantasia,aceita por Euclides com o pressuposto de
trabalho.Essa dialética entre ciê ncia e fantasia vaipersistir ao longo do
livro,podendo-severificarum aalternâ ncianaqualidadedaprosaeuclidiana.
D e um a parte se colocam os capítulos m ais apegados ao relato técnico,
sobejando asdescriçõesgeológicaseclim áticasdaregião;deoutro,o retrato
do seringueiro e do caucheiro e a enum eração dasriquezasda florestadão
vazão ao estilo propriam ente literário.Francisco H ardm an observa que a
valorização da fantasia indicaria,em Euclides,um a frustração com a idéia
de progresso,levando-o a buscar um a conciliação entre ciê ncia e arte:
“H erdeiro da m elhor tradição rom â ntica,Euclides,a essa altura fazendo
coro no grupo de escritores e intelectuaisdesiludidos com a ideologia do
progresso,tentavaapontarparaum anovasínteseentreciê nciaeartecom o
destino da linguagem na m odernidade” .147

Este é o caso da análise que Euclides faz do rio A m azonas.


Inicialm ente são apresentadas as especificidades científicas que o
peculiarizam ,especialm enteacircunstâ nciadeo seu leito caudaloso destruir
as próprias m argens:trata-se da “função destruidora” 148 que dá à água a
coloração barrenta.Essaapresentação do rio extrapola,entretanto,oslim ites
da ciê ncia.Em face da capacidade destruidora do rio Am azonas,Euclides

146
Ibidem.
147
H ardm an,Francisco Foot,op.cit.,p.40.
148
Cunha,Euclides da.À M argem da H istória,cit.,p.5.

77
o denom ina de “o m enos brasileiro dos rios” 149, e, fiel a seu estilo
expressionista, encerra suas ponderações de form a m etafórica: “(...)
sem pre desordenado,e revolto,e vacilante,destruindo e construindo,
reconstruindo e devastando, apagando num a hora o que erigiu em
decê nios – com a â nsia,com a tortura,com o exaspero de m onstruoso
artista incontentávela retocar,a refazere a com eçarperpetuam ente um
quadro indefinido” .150

A fantasia e a expressão literária da vastidão am azônica são


instrum entos eficazes m anejados por Euclides,ao causar no leitor um a
forteim pressão daquelaregião pouco conhecida.Alianaturezasecolocaria
com o um a adversária do hom em ,oferecendo condições precárias de
adaptabilidade e m inando,paulatinam ente,o â nim o em preendedor do
habitante da floresta.A im pressão inicial lavrada por Euclides é,por
conseguinte,pessim ista:“D aí,em grande parte,a paralisia com pleta das
gentesquealivagam ,hátrê sséculos,num aagitação tum ultuáriaeestéril” .151
Essa assertiva prepara o leitorpara a crítica socialque Euclides,de form a
pioneira,vaidesenvolvernostópicossubseqüentesdeÀ M argem daH istória.

4.2 – A CRÍTICA SOCIA L

A afirm ação dequeEuclidesdaCunhaem preende,em seusensaios


am azônicos,adenúnciadadifícilsituação daspopulaçõesam azônicasnão
éunâ nim e.Roberto Ventura,um deseusm aisrenom adosbiógrafos,recusa
essa interpretação.Para ele,Euclidespropugnava sobretudo pela chegada
do progresso edacivilização à Am azônia,pregando,ainda,“aabsorção do
indígena e do sertanejo pelas raças e culturas tidas com o superiores,ao
defender a integração dos vazios e desertos à escrita e à história,cujos
lim ites e fronteiras estão em contínua expansão.Povoar,colonizar e
escriturar são os instrum entos para taltransplante da civilização para os
“territóriosbárbaros” ” 152.N esse sentido,aindasegundo Roberto Ventura,
o discurso deEuclidessobreaAm azônianão seria“politicam entecorreto” :
“A originalidade e a excentricidade de taldiscurso residem m uito m aisna

149
Ibidem,p.6.
150
Ibidem,p.9.
151
Ibidem,p.12.
152
Ventura,Roberto.Retrato interrompido deEuclidesda Cunha,cit.,p.248.

78
escrita exuberante,fortem ente im agética e figurativa,do que no tom
m issionário da denúncia social” .153

O s textos de Euclides sobre a Am azônia – m orm ente aqueles


reunidosem À M argem daH istória– m anifestam ,com efeito,apreocupação
de seu autorcom o desenvolvim ento da região.A perspectiva,contudo,ia
além da sim ples absorção dos “povos bárbaros” .Cuidava-se,antes,de
prom over a integração efetiva da Am azônia ao Brasil.O s problem as de
fronteira que o Brasilenfrentava,à época,indicavam que o abandono da
região poderia acarretar a perda da soberania brasileira sobre aqueles
territórios,com o dem onstravam as incursões de caucheiros peruanos no
Acre.Euclidesdefendiaaintegração físicadaAm azôniaao resto do Brasil
com o form adepreservação dasoberaniaededesenvolvim ento econôm ico,
procurando livrar a região do abandono e do isolam ento,inserindo-a na
história.

D essa m aneira,o tom de denúncia socialfica claro nos ensaios


inseridos em À M argem da H istória.A form a com o retrata o seringueiro,
inclusivenadescrição dacerim ôniado “JudasAhasverus” ,alm ejapatentear
asdurascondiçõesde vidado trabalhadordafloresta.N ão secogita,logo,
de proposiçõesque se dedicam apregar,sem m ais,aconversão dospovos
locais à “civilização” e ao “progresso” .N os textos de Euclides faz-se
presente,ao contrário,um a necessidade de valorização das populações
consideradas“bárbaras” ,havendo m esm o um autilização problem áticados
term oscivilização e barbárie.Berthold Zilly pondera que “não se trata de
substituirsim plesm enteabarbáriepelacivilização,m asdevalorizarefundir
as duas, pelo m enos no plano sim bólico, criando um a cultura e,
eventualm ente,um a sociedade nova,nem exclusivam ente civilizada no
sentido europeu,nem am ericanam ente selvagem ” .154

A defesa que Euclides faz do desenvolvim ento da região é,em


verdade,resultado de seu nacionalism o e de seus tem ores com relação à
preservação daintegridadedo território nacionalanteacobiçaestrangeira.
M esm o que se possa inferir, dessa circunstâ ncia, um a eventual

153
Ibidem.
154
Zilly,Berthold.“A barbárie:antítese ou elem ento da civilização ? D o Facundo de Sarm iento a Os
Sertõesde Euclides da Cunha” .In:Revista Tempo Brasileiro,n.144,janeiro-m arço 2001,p.124.

79
incom patibilidadedediscursos-o queseadm iteatítulo deargum entação -,é
certo queessaincom patibilidadesedá,detodam aneira,entreduasvertentes:
de um lado a defesa do progresso;de outro,a da denúncia social.Assim ,
m esm o quevenhaacontradizerapregação do desenvolvim ento econôm ico,a
denúnciasocialcontinuaasefazerpresentenaspáginasdosensaiosdeEuclides
(um a eventualcontradição não elim inaria suascríticassobre ascondiçõesde
vida no interior am azônico).É lícito,igualm ente,assinalar que na obra de
Euclideso desenvolvim ento daAm azônia-suainserção nahistória-apresentar-
se-iajustam entecom o form aderedução dasdiscrepâ nciaseinjustiçassociais.
Afinal,com o ponderaVentura,“foradahistóriaedageografia,o sertão tornou
possíveisatosde violênciaebarbárie,com o o m assacredosconselheiristas,o
cárcere dos seringueiros e a destruição das m atas e das florestas” .155 Assim
sendo,a inserção na história não perm itiria tão-som ente o desenvolvim ento
econôm ico,m as tam bém a m elhoria na vida da população local.D e resto,
im põe-se adm itir-com o verem os m ais adiante -que Euclides incorreu em
algunserrosdeanálise,derivados,m aisum avez,desuavisão daquestão racial
edo exacerbado em prego deargum entoscientíficos.

Todavia,antesque se procedaà análise dosargum entoscontidosem


A M argem daH istória,torna-serelevanteum abreverecapitulação datrajetória
de Euclides no cam po da crítica social.É essa preocupação com as
desigualdadesque vaiconduzi-lo a professarum liberalism o hum anitário,e
porvezesm anifestaradesão aalgunsprincípiosdo socialism o – atitude que
éim portanteelem ento paraainterpretação deseustextossobreo seringueiro.

Em 1º dem aio de1904,diado trabalho,epoucosm esesantesdeser


nom eado chefedaCom issão BrasileiradeReconhecim ento do Alto Purus,
Euclidespublicou em O EstadodeSãoPauloo artigo “U m Velho Problem a” ,
no qualexpõe sua visão da desigualdade sociale das doutrinas políticas
quealm ejavam com batê -la.A relevâ nciado artigo repousaprincipalm ente
na circunstâ ncia de o escritor apresentar reflexões sobre o pensam ento
m arxista.Para alguns autores esse artigo atesta que Euclides,desiludido
com osrum osdaRepública,passou aprofessaro credo socialista156 -apesar

155
Ventura,Roberto.“OsSertõesentre doiscentenários” .In:M adeira,Angélica e Veloso,M ariza,op.
cit.,p.113.
156
“Fizera-se um republicano e,por fim ,sentindo-se desprezado pela República,apelara para o
socialism o m arxista” .In:Rabelo,Sílvio.Euclidesda Cunha,op.cit.,p.463.

80
de,com o verem os,recusar alguns dos princípios basilares da doutrina,
com o aidéiaderevolução.Em “U m Velho Problem a” ,desfere críticasao
sistem a capitalista e não esconde sua adm iração pelas proposições do
socialism o científico voltadas à proteção do trabalhador. Contudo,
com partilham os o entendim ento de que a aceitação apenas fragm entária
das teses dos autores socialistas im pede que se considere Euclides um
m arxista.157

Tom ando com o ponto de partida a fom e e a indigê ncia de parcela


considerávelda população,Euclides da Cunha observa que os avanços
políticostrazidospelaRevolução Francesa-um dosíconesdosrepublicanos
brasileiros-não tiveram com o contrapartidaaelim inação dasdiscrepâ ncias
sociais.Ao revés,osprivilégiosdanobrezateriam apenassido substituídos
pela instituição da propriedade burguesa:

“Por isto,a breve trecho,se patenteou a inanidade das reform as


executadas:ao invésde um núm ero de privilegiados,nosquaiso egoísm o
se atenuava com astradiçõescavalheirescasda nobreza,um outro,m aior
e form ado pela burguesia vitoriosa,m ais inapta ainda a com preender a
m issão socialda propriedade,ávida pordom inarlivre na arena que se lhe
abria,e tornando m aior o contraste entre a sua opulê ncia recente e a
situação inalterada do proletariado sem voto (...)” .158

Essaobservação preparao terreno paraadefesadealgunsprincípios


característicosdo socialism o científico.Euclides,descrentedasrevoluções
burguesas,concluique fenôm enos com o o ocorrido na França em 1789
não ultrapassaram oslim itesdaspalavrasde ordem ,pouco representando
em term osdetransform ação davidadostrabalhadores.Citando K arlM arx,
assevera que foi “com este inflexível adversário de Proudhon que o
socialism o científico com eçou ausarum alinguagem firm e,com preensível
e positiva” 159.Sua adm iração pelas concepções m arxistas advém do rigor
científico e m etodológico que lhe serviam de aparato.Im portava,para
Euclides,a objetividade e o lastro teórico que em basavam o m arxism o.

157
“N ão se pode afirm ar,em sã consciê ncia,haver sido Euclides da Cunha um socialista,m uito
m enos um m arxista” .Cf.M oura,Clóvis,op.cit.,p.109.
158
Cunha,Euclides.ContrasteseConfrontos,cit.,p.217.
159
Ibidem,p.218.

81
N esse sentido,aponta as características que reputava fundam entais no
socialism o científico:“N ada de idealizações:fatos;e induçõesinabaláveis,
resultantesdeum aanáliserigorosadosm ateriaisobjetivos;eaexperiê ncia
e a observação,adestradas em lúcido tirocínio ao través das ciê ncias
inferiores;e a lógica inflexíveldosacontecim entos(...)” .160

A adm iração de Euclidespelo m arxism o não se detém ,todavia,no


louvarasupostaobjetividadecientíficaquefundam entavaadoutrina.Esse
respeito seria natural em Euclides,cuja form ação positivista tendia a
valorizaro conhecim ento factualeacoerê ncialógicadasidéias.O escritor
vaim aisalém ,deixando clarasuaadesão à sconcepçõessocialistasvoltadas
para a valorização do trabalho.Assinala,porexem plo,que a “fonte única
daprodução edo seu corolário im ediato,o valor,éo trabalho” .Em seguida,
arrem ata:“D aíum a conclusão irredutível:- a riqueza produzida deve
pertencer toda aos que trabalham .É um conceito dedutivo:o capitalé
um a espoliação” .161

A partirda asserção de que “o capitalé um a espoliação” ,Euclides


passa a criticar de m aneira contundente o capitalism o,num tom quase
panfletário.O bservaquea“exploração capitalistaéassom brosam enteclara,
colocando o trabalhadornum nívelinferiorao dam áquina” 162,num indício
de que de fato havia lido M arx,dada a sim ilitude de seusargum entoscom
os do pensador alem ão.M ais adiante,pondera que “neste confronto se
expõe a pecam inosa injustiça que o egoísm o capitalista agrava, não
perm itindo,m ercê do salário insuficiente,que se conserve tão bem com o
osseusaparelhosm etálicos” 163.Essaexploração im piedosado trabalhador
naseconom iascapitalistasjustificaria,segundo Euclides,osdoisprincípios
basilaresdo socialism o científico,a socialização dosm eiosde produção e
circulação e a posse individualsom ente dosobjetosde uso.164

O desfecho de “U m Velho Problem a” não deixadúvidasquanto ao


entusiasm o de Euclides por alguns dos itens que com punham o ideário

160
Ibidem.
161
Ibidem.
162
Ibidem,p.219.
163
Ibidem.
164
Ibidem.

82
socialista.Em suaopinião,o poderdostrabalhadoresseriaenorm e,bastando
quecruzem osbraçospara“abalaraterrainteira” .165 Contudo -eesteéum
ponto fundam entalquando sediscuteseo escritoreraou não efetivam ente
m arxista - Euclides dem onstra preferê ncia pelos processos reform istas,
não se m ostrando adepto de revoluçõese insurreiçõesviolentas.Em suas
palavras,“o caráter revolucionário do socialism o está apenas no seu
program a radical.Revolução:transform ação.Para a conseguir,basta-lhe
erguera consciê ncia do proletário” ,já que o seu triunfo seria “inevitável” .
Essetriunfo seriagarantido pelas“leispositivasdasociedadequecriarão o
reinado tranqüilo das ciê ncias e das artes” .166 A m obilização dos
trabalhadoresseriao passo fundam entalparaam elhoriadesuascondições
de vida.

N esse sentido,ao negara revolução com o m ecanism o principalde


transform ação da sociedade,Euclides deixa claro que sua adesão à steses
socialistas restringe-se à defesa do trabalhadore à distribuição eqüitativa
das riquezas.N ão se trata,logo,de um m arxista,pornegara necessidade
darevolução etam pouco aludirao surgim ento deum asociedadecom unista.
A m elhoria nas condiçõesde vida deveria ocorrerde form a gradual,sem
rupturasbruscas.Aquiseapresenta,novam ente,ainfluê nciadasconcepções
evolucionistas,que preconizam a transform ação constante e paulatina da
sociedade:“O caso de Euclidesé bastante sintom ático.O autorinterpreta
aidéiasocialista nosestritosparâ m etrosdo evolucionism o,sob aégide do
princípio lapidar do positivism o – “conservar m elhorando” .A instâ ncia
privilegiada da ação política seria a dasreform asda legislação,conduzidas
a um aperfeiçoam ento progressivo” .167

A defesa de reform as sociais se faz presente tam bém num texto


m enosconhecido.Trata-sedeum pequeno m anifesto intitulado “Program a
de O Proletário e M ensagem aos Trabalhadores” ,publicado no jornal“O
Proletário” em 1º de m aio de 1899,exatam ente cinco anos antes que o
artigo “U m Velho Problem a” aparecesseem O EstadodeSãoPaulo.O sdois
textosforam publicados,sugestivam ente,no diado trabalho.O “Program a
deO Proletário” ,redigido porEuclides,com põe-sedevinteum pontos,nos

165
Ibidem,p.220.
166
Ibidem.
167
Sevcenko,N icolau,op.cit.,p.151.

83
quaissedestacam princípiosdebasesocialista.Euclidespropõe“im postos
diretosepesadíssim ossobrearenda” ,defendeacriação detribunaisarbitrais
“paradecidirasquestõesentrepatrõeseoperários” ,propugnapelajornada
diária de oito horas e proibição do trabalho noturno,prega a edição de
“leisrepressivascontraosusurários” ea“nacionalização do crédito” ,além
de propora “reivindicação dosbensdo clero para a com unhão social” .168
N a “M ensagem aosTrabalhadores” ,Euclides refere-se à “reabilitação do
proletariado” pelavalorização do trabalho esuajustarem uneração.Reitera,
ainda,que o propósito do clube “Filhosdo Trabalho” – responsávelpela
edição do jornalO Proletário– é o de “divulgarosprincípiosessenciaisdo
program a socialista,em penhando-se em difundi-losentre todasasclasses
sociais” .169

N ão se pode negar,por conseguinte,o escopo reform ista das


proposições de Euclides.Suasconvicções republicanase a sim patia pelas
“leispositivas” do socialism o científico revelam ainsatisfação com o quadro
social brasileiro – cuja transform ação, com o vim os, deveria se dar
progressivam ente,enão pelaviarevolucionária,no quedestoavadadoutrina
m arxista.OsSertões,trazendo ao público a m iséria do sertanejo,tornou-se
um “livro vingador” ao contribuir para que se repensasse as bases da
República e a situação de precariedade em que viviam as populações do
interiordo Brasil.A viagem à Am azônia,porsua vez,ofereceu a Euclides
aoportunidadede efetuaracríticasocialdasituação deoutro personagem
esquecido:o seringueiro.N aspáginasem queretrataavidado trabalhador
da floresta am azônica,Euclides deixa transparecersua preocupação com
osrum osdaquela “terra sem história” .

É ainda no capítulo de abertura de À M argem da H istória –


“Im pressões G erais” – que Euclides vaiveicular um a forte denúncia da
situação socialdo seringueiro.O painelfísico-clim ático daregião é,logo,o
pano de fundo de um cenário socialdram ático.

O seringueiro,geralm entevindo do N ordesteem buscadem elhores


padrões de vida,encontrava nos confins da Am azônia um a situação de

168
Cunha,Euclidesda.“Program ade O ProletárioeM ensagem aosTrabalhadores” .In:ObraCompleta,
v.1,cit.,p.578-579.
169
Ibidem,p.579.

84
sem i-escravidão.A violê ncia pareceu a Euclides a linguagem básica das
relaçõessociaisno interioram azônico.Segundo o escritor,é à entrada de
M anausqueo im igranteefetuariaatransição parasuanovacondição social.
A ida à Am azônia não representaria um a etapa m elhorde sua vida,daía
referê nciaaM anauscom o sendo um “lazareto dealm as” ,ondeo nordestino
abdicaria das ilusões que m otivaram sua viagem :“À entrada de M anaus
existeabelíssim ailhadeM arapatá– eessailhatem um afunção alarm ante.
É o m aisoriginaldoslazaretos– um lazareto dealm as!Ali,dizem ,o recém -
vindo deixa a consciê ncia” .170

D o ponto de vista histórico a situação social apresentada por


Euclides destoa do progresso econôm ico vivido pela região am azônica.
A exploração da borracha atingia seu auge no lim iar do século X X ,e
cidadescom o M anaussim bolizavam essesurto deprosperidadeeriqueza,
travando contato direto com m etrópoles européias,seja do ponto de
vistacultural,seja porinterm édio de transaçõesfinanceirase com erciais.
O instrum ento da exploração do látex,o seringueiro,era o pólo frágil
desse sistem a que levava para a Am azônia os interesses do capitalism o
internacional.171

Euclidesdescreveo trabalho no interiordaflorestacom traçosfortes:

“É que,realm ente,nasparagensexuberantesdashévease castiloas,o


aguarda a m aiscrim inosa organização do trabalho que ainda engenhou o
m aisdesaçam ado egoísm o” .172 Em seguida,justificao seu raciocínio com
um a definição contundente do que enfrentava o seringueiro:“(...) o
seringueiro realiza um atrem enda anom alia:é o hom em que trabalhapara
escravizar-se” .173

170
Idem.À M argem da H istória,cit.,p.12.
171
Celso Furtado realça asdifíceiscondiçõesde vida dosseringueiros:“Entre as longascam inhadas
naflorestaeasolidão dascabanasrudim entaresondehabitava,esgotava-sesuavida,num isolam ento
quetalvez nenhum outro sistem aeconôm ico hajaim posto ao hom em .D em ais,osperigosdafloresta
e a insalubridade do m eio encurtavam sua vida de trabalho” .In:Furtado,Celso,op.cit.,p.134.
172
Cunha,Euclides da.À M argem da H istória,cit.,p.13.Euclides volta a m encionar a crueldade do
sistem a de trabalho à pág.35,valendo-se de term os sem elhantes:“Aguardava-as e ainda as aguarda,
bem que num a escala m enor,a m ais im perfeita organização do trabalho que ainda engenhou o
egoísm o hum ano” .
173
Ibidem.

85
Euclidesprocede,então,à enum eração dosm ecanism osqueenredam
o seringueiro num sistem aem que seu trabalho,porm aisintenso que seja,
não o livradacondição dedevedor.D esdesuapartidaéobrigado acontrair
dívidas com o patrão: transporte, habitação, alim entação, vestuário,
instrum entos de trabalho,tudo passa a ser contabilizado com o passivo
perante o barracão senhorial.As dificuldades para saldar o débito se
avolum am em razão dascaracterísticasclim áticasdaregião,cujasenchentes
obstam aextração do látex duranteparteconsideráveldo ano.A conjugação
dessesfatoressubjugao seringueiro e o vinculaao com ando dossenhores
da borracha.

A situação se reveste de m aior gravidade,com o assinala Euclides,


em função dos contornos jurídicos desse sistem a de organização do
trabalho.N osseringaisexistiam “Regulam entos” que fixavam porescrito
“cousasassom brosas” 174,com o a obrigação de que o trabalhadorsó pode
efetuar com pras no barracão do patrão,sob pena de ser m ultado,ou de
que as benfeitorias feitas em sua casa não ensejariam qualquerdireito de
indenização quando da m udança do m orador.Essa precária situação fazia
com que o seringueiro não se sentisse preso ao localsenão em virtude das
dívidasquecontraíra.Afinal,só aquitação deseu débito – tornadainviável
por seu crescim ento ininterrupto – recuperaria a liberdade perdida já à
entradade M anaus,no “lazareto de alm as” onde o im igrante renunciariaà
sua consciê ncia.

O dram a do seringueiro leva Euclides a exortar o poder centrala


agirem benefício daquelestrabalhadores:“Estaresenhacom portariaalguns
exem plos bem dolorosos. Fora inútil apontá-los. D ela ressalta
im pressionadoram ente a urgê ncia de m edidas que salvem a sociedade
obscura e abandonada:um a leido trabalho que nobilite o esforço do
hom em ;um a justiça austera que lhe cerceie os desm andos;e um a form a
qualquerdo homestead que o consorcie definitivam ente à terra” .175

As duras reflexões acerca da situação socialdo seringueiro não


afastam ,entretanto,algunserrosdeavaliação quederivam dasconcepções
filosóficasperfilhadasporEuclides.Em boraapresentedeform acristalina

174
Ibidem,p.14.
175
Ibidem,p.16.

86
o funcionam ento do sistem a de exploração do seringueiro,o escritornão
seescusadeensaiarum aexplicação etnográficaparaasm azelasdo im igrante
nordestino.Trata-se de um esboço de explicação,porque Euclidesdedica-
lhepassagensepisódicas.A prim eiradelasconstadas“Im pressõesG erais”
que abrem À M argem da H istória.

Em um único parágrafo,Euclides assevera:“Agora vede o quadro


real.Aquele tipo de lutador é excepcional.O hom em de ordinário leva
à queles lugares a im previdê ncia característica da nossa raça;m uitas vezes
carrega a fam ília,que lhe m ultiplica os encargos;e quase sem pre adoece,
m ercê daincontinê nciageneralizada” .176 O scontrastesdessapassagem são
surpreendentes.A explicação de Euclidesé sum ária,destacando apenasa
“im previdê ncia característica de nossa raça” ,em m ais um reflexo de sua
visão determ inista.Seu laconism o não im pedeainferê nciadequeam istura
deraçasqueresultou no sertanejo éo elem ento causadordessafraqueza,a
im previdê ncia.Assim ,o fatorracialpassaaserum adasforçasquetornam
m aisprecáriaasituação do trabalhador:além dacrim inosaorganização do
trabalho,a raça – e a im previdê ncia que dela resulta – vem a acentuaras
fraquezasdo seringueiro.

É im portante assinalar que em À M argem da H istória a explicação


etnográficaencontra-seem um acam adasuperficial,jáqueEuclidesnão se
aventura num a reflexão m aisprofunda sobre oscondicionam entosraciais
do seringueiro.Sua preocupação básica é pôrde m anifesto a escravização
do trabalhadorda Am azônia pelo sistem a de exploração de m ão-de-obra
que alise instalou.M as um a interpretação de seu discurso etnográfico é
passo necessário paraaavaliação dosargum entosfixadosem À M argem da
H istória.

4.3 – O D ISCU RSO ETN OG RÁ FICO :O SERTA N EJO

O povoam ento daAm azôniaapóso surto deexploração do látex,a


partirdo finaldo século XIX,tevecom o protagonistaprincipalo im igrante
nordestino.O “clim a caluniado” da Am azônia ofereceria,no entanto,
poucaspossibilidadesdeprogresso parao trabalhadorrecém -chegado.N o
início de À M argem daH istória,Euclidesapresentaum aim agem expressiva

176
Ibidem,p.14.

87
do quesignificaam igração do sertanejo:jánailhadeM arapatá,próxim aa
M anaus,o viajanteabandonariasuaconsciê ncia.Com o sepercebeao longo
da obra,essa abdicação da consciê ncia é um m ecanism o que propiciará a
adaptação do im igrante ao isolam ento e à sua própria “escravização” .
D espojado de sua consciê ncia,o nordestino sofreria paulatinam ente com
o enfraquecim ento de suasforçasm orais.

Euclides refere-se à ocorrê ncia de um “desfalecim ento m oral” 177,


resultado do contato com o am bienteinóspito ecom um clim aquefustiga
as energias do serhum ano.U m a m etáfora é em pregada para ilustraresse
quadro:o sertanejo torna-se um exilado conform e vaipenetrando aquele
“paraíso tenebroso” .As noções de “exílio” ,“expatriado” e “deserto”
aparecem com freqüê nciasnosensaiosam azônicosdeEuclides.Seu objetivo
é o de dim ensionara distâ ncia que separa aquelaspopulações dasregiões
centrais do Brasil,além de dar cores m ais fortes à em preitada a que se
dedicam osim igrantes.Adem aisdospercalçosdanatureza,o próprio clim a
encarregar-se-ia de selecionar os m ais aptos.O nordestino,habituado à s
intem péries,em ergiriaassim com o o responsávelpelo povoam ento deum
território em que as m oléstias dificultam a sobrevivê ncia hum ana:“O
cearense,o paraibano,os sertanejos nortistas,em geral,aliestacionam ,
cum prindo,sem o saberem ,um a das m aiores em presas destes tem pos.
Estão am ansando o deserto.E assuasalm assim ples,aum tem po ingê nuas
e heróicas, disciplinadas pelos reveses, garantem -lhes, m ais que os
organism osrobustos,o triunfo na cam panha form idável” .178

Euclides recorre ao evolucionism o para explicar o fenôm eno do


povoam ento da Am azônia. A seleção natural puniria os organism os
despreparados para enfrentar as doenças e o clim a causticante. O s
nordestinos, com suas alm as “disciplinadas pelos reveses” , estariam
preparados para a tarefa de ocuparo vazio da floresta.O custo,todavia,
seriaalto:o desfalecim ento m oral,o abandono daconsciê ncia,o exílio,eo
trabalho que,paradoxalm ente,leva à servidão.

O s custos do povoam ento da Am azônia,pagos pelo nordestino,


seriam agravados em razão da própria desorganização do processo de

177
Ibidem,p.28.
178
Ibidem,p.30.
im igração.Euclidesressaltaque“não seconhecenahistóriaexem plo m ais
golpeante de em igração tão anárquica,tão precipitada e tão violadora dos
m ais vulgares preceitos de aclim am ento,quanto o da que desde 1879 até
hojeatirou,em sucessivaslevas,aspopulaçõessertanejasdo território entre
a Paraíba e o Ceará para aquele recanto da Am azônia” .179

Essa desorganização faria com que o povoam ento do Acre se


apresentasse com o “um caso histórico inteiram ente fortuito,fora da
diretriz do nosso progresso” .180 E uclides ataca a ausê ncia de
planejam ento do povoam ento m ovido pela constatação de que as
populações que m igram para a Am azônia o fazem em razão do flagelo
da seca.Seria a “escassez de vida” do N ordeste que im pulsionaria o
fenôm eno -o nordestino vaià Am azônia para se foragirdasm azelasde
sua própria região.É a partir dessa prem issa que Euclides avança na
discussão racial, form ulando um discurso etnográfico contraditório
sobre o nordestino.

Com o vim os anteriorm ente,Euclides louva a em preitada levada a


cabo pelo nordestino.Sua tese é a de que ele,acostum ado à sdificuldades
de adaptação a um clim a rude,m ostra-se capaz de arrostarosdesafiosde
povoam ento daAm azônia,podendo sobreviverao crivo daseleção natural.
Em seguida,apóscriticaradesorganização do processo m igratório,Euclides
parece seguir outra trilha,im pugnando o caráter benéfico da im igração
nordestina a partirde argum entosestritam ente raciais.

Euclides registra que os im igrantes resultariam de um a “seleção


naturalinvertida” :“(...)todososfracos,todososinúteis,todososdoentes
e todos os sacrificados expedidos a esm o,com o o rebotalho das gentes,
para o deserto” .181 N este m om ento o nordestino não é m ais visto com o
um bravo predisposto asuportarasagrurasdo clim aam azônico.Ao revés,
os im igrantes representariam o “rebotalho das gentes” ,enviado pelos
poderes públicos para a Am azônia com o objetivo de m inoraros efeitos
das secas.Caso contrário,aquela população de “fam intos assom brosos,
devoradosdasfebresedasbexigas” ,“bárbarosm oribundosqueinfestavam

179
Ibidem,p.33.
180
Ibidem.
181
Ibidem.
o Brasil” ,poderiam encher as cidades do litoralnordestino.182 A política
governam entalconsistiria em se desvencilhar do problem a rem etendo a
população excedente do N ordeste para a Am azônia:“Abarrotavam -se,à s
carreiras,os vapores,com aqueles fardos agitantes consignados à m orte.
M andavam -nosparaaAm azônia– vastíssim a,despovoada,quaseignota–
o que equivalia a expatriá-losdentro da própria pátria” .183

A m udança no discurso de Euclides é evidente.N um m om ento o


espírito dos nordestinos é visto com o “heróico” e sua alm a se apresenta
“disciplinada pelos reveses” . A dem ais, seus “organism os robustos”
garantiriam o triunfo da cam panha de povoam ento da Am azônia.184 Em
seguida,esse “rebotalho dasgentes” é tom ado apenascom o o produto de
um aseleção naturalinvertida,capazde“m alignarecorrom peraslocalidades
m ais salubres do m undo” .185 Essa contradição é m ais um exem plo do
dualism o que m arca o pensam ento de Euclides. O observador que
testem unhainlocoaem preitadadosnordestinostendealouvarosim igrantes;
jáo escritorqueseam paranosreferenciaisteóricosdascorrentesfilosóficas
européiasé um pessim ista quanto à m iscigenação.

Convém destacarque a alusão ao “rebotalho dasgentes” é o m ote


que Euclides utiliza para atacara política governam entalde povoam ento
daregião.O papeldospoderespúblicossecingiriaao envio daspopulações
à região. A pós isso, via-se o abandono: “Cessava a intervenção
governam ental.N unca,até aos nossos dias,a acom panhou um só agente
oficial,ou um m édico.O sbanidoslevavam am issão dolorosíssim aeúnica
de desaparecerem ” .186

A conclusão de Euclidesé,tam bém ela,paradoxal.Após referir-se


à scondiçõesdas populaçõesque m igravam para a Am azônia – m arcadas
pela fom e e pela doença:“fam intos” ,“febrentos” ,“variolosos” –,volta a
m anifestarsurpresacom o resultado do processo depovoam ento.Assevera
que,m algrado o descaso governam ental,“aspopulaçõestransplantadasse

182
Ibidem.
183
Ibidem.
184
Ibidem,p.29-30.
185
Ibidem,p.34.
186
Ibidem.

90
fixam ,vinculadas ao solo;o progresso dem ográfico é surpreendente – e
dascabeceiras do Juruá à confluê ncia do Abunã alonga-se,cada vez m ais
procurada,a terra da prom issão do N orte do Brasil” .187 Ao afirm ar a
possibilidadedepovoam ento daAm azônia,apesardo clim apouco propício,
refutava o juízo de Chandless,que via com pessim ism o as condições de
habitabilidade da região.188

Talvez a contradição seja apenasaparente,e Euclidessaliente que é


o “rebotalho das gentes” que vaià Am azônia apenas para,porcontraste,
darm aisdestaqueao resultado do processo:o nordestino fam into edoente
que chegaà florestaé capaz,sem qualquerauxílio governam ental,de levar
adiante o povoam ento e exploração das riquezas da região. É desse
fenôm eno – o fraco que vence o am biente inóspito – que em ergiria o
heroísm o do sertanejo.D etodam aneira,o discurso etnográfico queperm eia
À M argem daH istórianão se apresentacoerente.Seu grau deobjetividadeé
m ínim o,resultando num a m escla de im pressõessubjetivasdo observador
e da aplicação aleatória de teses evolucionistas.N a verdade,o discurso
etnográfico m ostra-se m ais literário do que propriam ente científico,daí
resultando ascontradiçõesapontadas.

4.4 – O D ISCU RSO ETN OG RÁ FICO :O CA U CH EIRO

Após as reflexões iniciadas em “Im pressões G erais” ,Euclides


m antém a conciliação entre o discurso etnográfico e a crítica social.Já no
relatório oficialda Com issão de Exploração do Alto Purus se aludira à
existê ncia,naquela região,de duas sociedades,a dos caucheiros e a dos
seringueiros.N esse texto,todavia,Euclides não desenvolveu m aiores
considerações,atendo-seà notadistintivaentreasduassociedades:enquanto
o caucheiro peruano é nôm ade,porexplorara castiloa elástica -cuja gom a
não se renova -,o seringueiro é sedentário,podendo dedicar-se à extração
do látex que periodicam ente se renova.

Em À M argem da H istória tam bém o caucheiro m erece um a análise


sociológica original.Ele é visto com o um desbravador que transpõe os

187
Ibidem.
188
Reis,ArthurCézarFerreira.A A mazônia ea integridadedoBrasil.Brasília,Senado Federal,Conselho
Editorial,2001,p.122.

91
obstáculosgeográficos,notadam ente osAndes,para atingiro Alto Purus.
Suasdificuldadesnão secingiam ,porém ,à superação dasbarreirasnaturais,
jáqueasáreasdeexploração do caucho eram povoadasportribosindígenas
que se antagonizavam com osperuanos.O com bate aosíndiosm odelava
o caráter do caucheiro,visto por Euclides com o dotado de bravura e
coragem .O interesse pela figura do caucheiro não decorria apenas da
circunstâ ncia de ser ele o sím bolo da penetração dos peruanos no Acre.
Em verdade, ali transcorreria um em bate de m aiores proporções,
envolvendo o queEuclidesdenom inade“civilização” (representadapelos
brasileiros,peruanose bolivianos)e astribosindígenas.

N osartigospublicadosem 1904 em O EstadodeSãoPaulo,Euclides


insistia em que o choque entre interesses brasileiros e peruanos era um
episódio da “concorrê ncia vital” entre os povos.O s confrontos entre
caucheirosperuanoseíndiosno Alto Purusnão fugiriaà regra,consistindo
tam bém num adisputapelasobrevivê ncia.O caucheiro seriaim pulsionado
pela forças da civilização,e a satisfação de seus objetivos dependia da
superação do obstáculo indígena:“E os caucheiros aparecem com o os
m ais avantajados batedores da sinistra catequese a ferro e fogo,que vai
exterm inando naqueles sertões rem otíssim os os m ais interessantes
aborígenessul-am ericanos” .189

Com o se depreende do excerto transcrito, Euclides percebe a


com plexidade do problem a e se recusa a reduzi-lo à dialética entre
civilização e barbárie.Afinal,os próprios elem entos representativos da
civilização levariam a cabo o exterm ínio dos “m ais interessantes
aborígenes sul-am ericanos” . Assim com o em Os Sertões a civilização
supostam ente consubstanciada nas forças m ilitares da República
engendrou o m assacre de Canudos - o que tornou a obra um “livro
vingador” ,dedenúncia-,tam bém nosensaiossobreaAm azôniaEuclides
trabalhou cautelosam ente com a idéia de “civilização” .A exploração da
m ão-de-obra do seringueiro e a dizim ação de tribos indígenas expõem ,
ao contrário,os efeitos nocivos que os interesses da civilização levavam
ao interior am azônico.Em seus textos resta claro que “a civilização
engendra a sua própria antítese:um a barbárie m oderna,m ais perigosa e
desum ana do que a barbárie pré-m oderna,e que só pode ser superada

189
Cunha,Euclides da.À M argem da H istória,cit.,p.42.

92
por m eio da própria civilização, que deve incorporar elem entos das
com batidas culturas tradicionais” .190

O caucheiro,com o nôm ade,é m ais um agente destruidor do que


um suporte da civilização.Seu cotidiano é o de derrubara árvore,extrair
suariquezaeabandonaraáreadevastada.Euclidespondera:“Assim ,entre
os estranhos civilizados que alichegam de arrancada apenas para ferir e
m ataro hom em e aárvore,estacionando o tem po necessário aque am bos
seextingam ,seguindo aoutrosrum osonderenovam asm esm astropelias,
passando com o um a vaga devastadora e deixando ainda m ais selvagem a
própria selvageria – aqueles bárbaros singulares [os índios] patenteiam o
único aspeto tranqüilo dasculturas” .191

O contrasteentrecivilização ebarbárienão énítido.Afinal,Euclides


reporta-se aos “estranhos civilizados” cuja m issão é destruir (“vaga
devastadora” ).Contrariam ente,os“bárbarossingulares” sim bolizariam o
“único aspecto tranqüilo dasculturas” .Aparentem ente,logo,houve um a
inversão da carga sem â ntica dos term os “civilização” e “barbárie” ,o
prim eiro denotando aação devastadorado caucheiro,eo segundo indicando
o único elem ento de estabilidade naquele cenário de disputa vital.

Adem ais,dessechoqueentrebárbarosecivilizadosnão resultaum a


síntese possível.Sérgio Paulo Rouanetsugere,com o chave explicativa do
dualism o m odernidade/barbárieem Euclides,aidéiade“dialéticanegativa”
com o apresentada por A dorno: um a dialética “capaz de m anter a
contradição em todaasuavirulê ncia,um adialéticasem síntese,em que os
doispólosperm anecessem inconciliáveis” .192 D essa m aneira,em Euclides
teríam osa dicotom ia entre m odernidade e abarbárie – e sua fé repousaria
na m odernidade,explicitada pela ciê ncia e pelo progresso técnico.Essa
crença na m odernidade constituiria a prim eira vertente da “dialética
negativa” do pensam ento euclidiano.A segundavertenteseriao queRouanet
denom ina de “m odernidade enquanto barbárie” 193 – isto é,as forças

190
Zilly,Berthold,op.cit.,p.128-129.
191
Cunha,Euclides da.À M argem da H istória,cit.,p.45.
192
Rouanet,Sérgio Paulo.“O Sertão da D ialética N egativa” .In:Folha deSãoPaulo,Caderno “M ais” ,
1º de D ezem bro de 2002,p.12.
193
Ibidem,p.12-13.

93
supostam ente civilizatórias com o m otorda barbárie,o que em À M argem
da H istória se revela tanto no caucheiro que dizim a a floresta e ataca as
tribosindígenascom o no senhordaborrachaqueexploraim piedosam ente
a força de trabalho do seringueiro.

O dualism o civilização/barbárie ultrapassa,em Euclides,a análise


do caucheiro.A integralidadedeseu pensam ento pareceestarancorada,de
form a im plícita ou explícita,nessesdoispólos.Berthold Zilly destaca que
um adastem áticasm aiscarasaEuclides,aconstrução do Estado nacional,
levaem consideração aexistê nciade um litoralcivilizado eum interior– o
sertão,a Am azônia – ainda em estágio pré-civilizado.M asnão se trata de
proporsim plesm ente que o litoralavance para o interiorcom seusvalores
epráticas:“Poiso interiorpodeserincivilizado,m aseleétípico eautê ntico,
m ais nacionaldo que as cidades e o litoral,que são civilizados,porém
dem asiado internacionalizados” .194 D ilui-se,assim ,o sentido tradicional
da oposição litoral-interior,deslocando-se para o interior o potencialde
construção da nacionalidade brasileira.

A visão positiva do caucheiro – e todo o discurso etnográfico que


Euclidesform ula em torno desse personagem – é conseqüê ncia sobretudo
da adm iração porsuas qualidades de desbravador.Assim ,o exploradorda
castiloaéum nôm ade,cujavidaerranteo põefaceafacecom diversosperigos,
equeencontrano indígenasuaantítese.O brigado abater-secom ossilvícolas,
o caucheiro desafia o perigo continuam ente.Esse entusiasm o literário pela
figurado caucheiro estávazado em trechoscom o o seguinte:“H á,realm ente,
nestelance,um traço com oventedeheroísm o.O hom em perdido nasolidão
absolutavaiprocuraro bárbaro,levando aescoltaúnicadasdezoito balasde
seu rifle carregado” .195 Para que o leitor m elhor visualize a audácia do
caucheiro,e sua argúcia em se aproveitardo descuido do inim igo,Euclides
m ostra-se preocupado em narrarosdetalhesque cercam esse cotidiano de
enfrentam ento.A “conquista” dosindígenaspeloscaucheirospareceserum
doscoroláriosda seleção naturalque é,tam bém ali,im placável.

Todavia,esseprocesso dedisputapelasobrevivê ncia,naAm azônia,


m ostrou-se a Euclides tão cruela ponto de as páginas de À M argem da

194
Zilly,Berthold,op.cit.,p.123.
195
Cunha,Euclides da.À M argem da H istória,cit.,p.43.

94
H istóriaselim itarem à aplicação assistem áticadetesesevolucionistasà quela
região.O cientistaperdeu espaço,nestem om ento,ao crítico social.O autor
deixaclaro que o dram ahum ano que se desenrolanasáreasde exploração
do caucho edaborracharequerum apercepção queváalém dafriautilização
dospressupostosdarwinistase determ inistas.

Assim ,Euclidessalientaque“o dram arealquesedesenrolaéquase


inconcebívelparao nosso tem po” ,referindo-sea“um asérieindefinidade
espoliados” .196 Essaspopulações– vítim asdariquezatrazidapelaborracha
– trabalham anos a fio,sofrem com as m oléstias típicas da região e,por
fim ,“extinguem -se no absoluto abandono” .197 Com o visto,o dram a na
Am azônianão atingiaapenaso seringueiro,afetando tam bém aspopulações
indígenas,cujo trabalho era duram ente explorado peloscaucheiros.

Podem os retornar, então, à discussão relativa à dialética entre


civilização e barbárie que pautou asponderaçõesde Euclides.A princípio,
o caucheiro parece sero representante do processo civilizatório,já que é
ele quem estáintegrado aosinteressesfundam entaisdam odernidade e do
capitalism o.O que im pulsiona sua ação é a racionalidade instrum entale a
buscaincessantedo lucro.A barbárie,ao revés,estariaconsubstanciadano
atraso das populações indígenas,alheias à s possibilidades contidas nas
riquezas naturais da floresta.A organização do trabalho que se im põe à
força,contudo,inverte os pólos dessa relação.Com o vim os,aliparece
operarum a“dialéticanegativa” ,em queacivilização setornabarbárie,por
m eio da escravização e do exterm ínio dosindígenas.

O caucheiro,portanto,revela em suas ações um a am bigüidade


essencial,expondo afaceta obscura da civilização.A narrativa de Euclides
apresenta,nessaesteira,doisníveisdistintos.N o prim eiro,o daperspectiva
positiva,procura-se realçar as qualidades do caucheiro,sua coragem e
destem or em enfrentar os desafios trazidos pelo am biente inóspito.N o
segundo são acentuadosostraçosnegativosdo caucheiro,e a tônica recai
sobre a barbárie perpetrada contra os indígenas.O conflito entre essas
duas perspectivas desperta Euclides para a dificuldade em se classificar
esse personagem contraditório da Am azônia.Convém reproduzir suas

196
Ibidem,p.47.
197
Ibidem.

95
palavras:“Realm ente,o caucheiro não éapenasum tipo inédito nahistória.
É,sobretudo,antinôm ico e paradoxal.N o m ais porm enorizado quadro
etnográfico não há um lugarpara ele.A princípio figura-se-nos um caso
vulgar de civilizado que se barbariza,num recuo espantoso em que lhe
apagam oscaracteressuperioresdasform asprim itivasda atividade” .198

E sse “tipo inédito na história” , com suas am bigüidades e


contradições,diluia fronteira tradicionalentre a civilização e abarbárie.É
um caso de civilizado que se barbariza. Essa constatação explicita a
consciê ncia que Euclides tinha das forças obscuras que subjazem à
m odernidade.A despeito de sua crença no progresso e na força da razão,
que persistiu ao longo de toda a sua vida,ele pôde divisar os contrastes
sociais provocados pela penetração do capitalism o naquela “terra sem
história” .

A confissão deEuclidesdequenão háespaço parao enquadram ento


do caucheiro nos m odelos etnográficos tradicionais torna-se m ais clara
conform e ele avança em seu esforço analítico.O fato de o caucheiro
com binar elem entos da civilização e da barbárie não significa que suas
açõessejam instáveisou quecareçam deracionalidade.Elenão écivilizado
e bárbaro em função de um a indefinição fundam entalde personalidade.
Antes,resta claro que seu lado “bárbaro” está a serviço de seusinteresses
econôm icos,isto é,de seu lado “civilizado” .O bárbaro aflora para dar
eficácia aosinteressesdo civilizado.

Euclidesexpõe esse raciocínio na seguinte passagem :

“É um caso de m im etism o psíquico de hom em que se finge bárbaro


paravencero bárbaro.É caballeroeselvagem ,consoanteascircunstâ ncias.
O dualism o curioso de quem procura m anter intactos os m elhores
ensinam entosm oraisao lado deum am oralfundadaespecialm enteparao
deserto – reponta em todos os atos de sua existê ncia revolta.O m esm o
hom em que com invejável retitude esforça-se por satisfazer os seus
com prom issos, que à s vezes sobem a m ilhares de contos, com os
exportadoresde Iquitosou M anaus,não vacila em iludiro peón m iserável
que o serve,em alguns quilos de sernam biordinário;ou passa porvezes

198
Ibidem,p.48.

96
da m aisrefinada galanteria à m áxim a brutalidade,deixando em m eio um
sorriso cativante e um a m esura im pecável,para saltarcom um rugido,de
cuchillorebrilhanteem punho,sobreo cholodesobedientequeo afronta” .199

A fim de tornar m ais nítida a am bivalê ncia do caucheiro – ora


civilizado, ora bárbaro – Euclides o com para aos bandeirantes que
desbravaram o interior do Brasil.Para ele,o bandeirante agia de acordo
com um a lógica inexorável:é sem pre brutal.O caucheiro,porseu turno,
não tinha essa coerê ncia em suas ações,podendo ser,consoante suas
conveniê ncias,bárbaro ou civilizado.Com o,então,defini-lo? Euclides é
sintético: “É o hom únculo da civilização” .200 O caucheiro, em sua
inconstâ ncia,despendeenergiasduranteanosnosconfinsdaflorestapara,
em m eses, esgotar todos os seus recursos num a viagem a Paris. N a
m etrópole européia,com o destaca Euclides,nada denuncia sua origem e
seu lado nôm ade e bárbaro. Tensionado pelos dois pólos de sua
personalidade contraditória – o lado civilizado e o lado bárbaro – é capaz
de se revestir da persona que m elhor lhe convém .Ante o indígena ele é
bárbaro,já que é “um hom em que se finge de bárbaro para vencer o
bárbaro” .201 Em Paris se esm era em atos de elegâ ncia,m anifestando seus
dotesde civilizado.

Restaclaro queo em bateentreoscaucheiroseaspopulaçõeslocais


não é regido pornenhum tipo de regra.Com o toda etapada concorrê ncia
vital,a preponderâ ncia é dos m ais fortes:“N ão há leis.Cada um traz o
código penalno rifle que sobraça,e exercita a justiça a seu alvedrio,sem
que o cham em a contas” .202

A apreciação finalde Euclidessobre a presença doscaucheiros no


Acre não é positiva,em razão fundam entalm ente de seu nom adism o.O
gê nero de vida dos peruanos que exploram a castiloa acarretaria “a
desorganização sistem ática dasociedade” ,já que a inexistê nciade apego à
terra – e a voracidade com que se lançam em busca de novas árvores –
provocaria “um a involução lastim ávelno hom em perpetuam ente arredio

199
Ibidem,p.48-49.
200
Ibidem,p.49.
201
Ibidem,p.48.
202
Ibidem,p.50.

97
dos povoados,errante de rio em rio,de espessura em espessura,sem pre
em busca de um a m ata virgem onde se oculte ou se hom izie com o um
foragido da civilização” .203

Ao enunciar sua conclusão Euclides se refere ao caucheiro com o


um “foragido da civilização” .À luz do que já fora assinalado,podem os
consignar a essa afirm ação o m esm o significado da assertiva segundo a
qualo caucheiro é o civilizado que se barbariza.Foragir-se da civilização
não é renunciar a ela:o caucheiro enfrenta os perigos da floresta com o
propósito de enriquecere retornarà civilização com um novo status.Sua
riquezaperm itirá,segundo o exem plo apresentado porEuclides,iraParis,
um dos centros da civilização,abandonando a rudeza que lhe perm ite
sobreviverna Am azônia.

“Tipo inédito na história” ,“hom únculo da civilização” ,“civilizado


quesebarbariza” ,“foragido dacivilização” :essasdesignações,queEuclides
utiliza em seu discurso sobre o caucheiro,dão conta da contraditória
personalidadedessepersonagem .Ao apresentá-lo,o autornão sem anteve
adstrito aos fundam entos científicos da etnografia: seu texto é
em inentem ente literário,ainda que não lhe faltem detalhesde observação
que caracterizam o estilo científico. Com o escritor, foi tom ado pela
com plexidade do personagem , nele revelando todos os traços do
expressionism o identificado porG ilberto Freyre.

4.5 – O JU DA S A H A SV ERU S

Já no início de À M argem da H istória Euclides da Cunha delineia o


panoram a desalentadorem que vive o seringueiro,protagonista do dram a
hum ano queafetaaAm azônia.Esseim igrantenordestino viveriao paradoxo
de trabalhar para escravizar-se, ensejando a denúncia do sistem a de
organização do trabalho que envolvia a exploração da borracha.

O s contornos do dram a do seringueiro encontram sua m elhor


expressão nadescrição dacerim ôniado JudasA hasverus.Além darelevâ ncia
propriam enteestilística,essesegm ento deÀ M argem daH istóriaéum valioso
registro sociológico davidado seringueiro.O m ito do “JudasAhasverus” ,

203
Ibidem,p.67.

98
com um naIdadeM édia,envolveum personagem – Ahasverus– condenado
a um a vida errante até o fim dos tem pos, resultado de “um a culpa
irrem issível, ou do gesto im piedoso para com aquele que ia m orrer
crucificado” .204 M ilton H atoum sublinha que a vida errante de Ahasverus
guarda sem elhança com a vida de Euclides,cuja â nsia por m ovim ento e
novasparagensfoidecisivaem suaviagem aCanudose à Am azônia.D ois
aspectos da lenda de Ahasverus teriam interessado a Euclides:o pecado
sem redenção e a fatalidade do destino.205

A vida penosa do seringueiro no labor das “estradas” ,onde se


em penhava na exploração do látex,pareceu a Euclides representar com
propriedadeo dram adeAhasverus.Condenado atrabalharparaescravizar-
se,sem perspectivadefuturo,o seringueiro érelegado ao abandono eà sua
própria sorte.Seu pecado prim ordial– a am bição – torna-o um ím pio,
sujeitando-o à svicissitudesdeum destino cruel.Essedestino,com o exporá
Euclides,é fatal:o seringueiro parece condenado a sofrer na floresta o
resto de seusdias.

A celebração religiosa do JudasA hasverus tem lugar no sábado de


Aleluia.É nesse dia que “os seringueiros do Alto Purus desforram -se de
seus dias tristes.É um desafogo.Ante a concepção rudim entar da vida
santificam -se-lhes,nesse dia,todas as m aldades” .206 O extenso leque de
sofrim entosvividospelo seringueiro – asm oléstias,asdurascondiçõesde
trabalho,as dívidasim pagáveisque obstaculizam o seu retorno à terra de
origem , a solidão da floresta (floresta a que E uclides se refere
m etaforicam entecom o um deserto,parailustraro im pacto dasolidão)– são
expurgadoscom apassagem ,pelosriosdaregião,do boneco de palhaque
sim boliza o Judas,objeto da fúria vingadora daspopulaçõeslocais.

O transcurso dosdiassantosnão altera a rotinado seringueiro.Sua


faina prossegue im odificada – exceto com a chegada do sábado.A rotina

204
H atoum ,M ilton.“Expatriadosem suaprópria pátria” .In:CadernosdeLiteratura Brasileira,nos.13/
14.São Paulo,Instituto M oreira Salles,2002,p.322.Francisco FootH ardm an salienta que o Judas
Ahasveruséum personagem queseassocia“ao m ito do Judeu Errante,condenado ao eterno degredo
e a não m orrerantes do Juízo final,porterblasfem ado contra o Cristo a cam inho do calvário” .Cf.
H ardm an,Francisco Foot,op.cit.,p.47.
205
Ibidem.
206
Cunha,Euclides.À M argem da H istória,cit.,p.52.

99
de purgações enseja a analogia entre a vida do seringueiro e a paixão de
Cristo.N o caso do seringueiro,todavia,ossofrim entosnão seconcentrariam
num a sem ana, m as se estenderiam ao longo de sua existê ncia: “E
consideram ,absortos,que esses sete dias excepcionais (...)lhes são,ali,a
existê ncia inteira,m onótona,obscura,dolorosíssim a e anônim a,a girar
acabrunhadoram ente na viadolorosa inalterável,sem princípio e sem fim ,
do círculo fechado das “estradas” ” .207 O seringueiro viveria
perm anentem enteossofrim entosquesão lem bradosnaquelasem anasanta.
A paixão deCristo éum aoportunidade dedarvazão ao acúm ulo depenas
a que se subm ete durante todo o ano.

Essa teia de m artírios teria incutido no seringueiro um a certa


resistê nciaao sofrim ento.Acostum ado aospesaresdiários,não énareligião
que ele busca a resposta para seu m artírio:“É m ais forte;é m ais digno.
Resignou-se à desdita.N ão m urm ura.N ão reza.(...)Tem a noção prática,
tangível,sem raciocínios,sem diluiçõesm etafísicas,m aciça e inexorável–
um grandepeso aesm agar-lheinteiram enteavida– dafatalidade;esubm ete-
se a ela sem subterfugir na cobardia de um pedido, com os joelhos
dobrados” .208

O seringueiro parece saber,assim ,que a resposta para o seu dram a


não é de ordem m etafísica.Seu pragm atism o am biciona no m áxim o um
lenitivo para a raiva,e o JudasA hasverus em erge com o um m om ento de
catarse para o sofrim ento contido.É um com portam ento que Euclides
classifica de “estóico” 209:suportarum ano inteiro de privaçõespara,num
único dia,entregar-seà vingançacontrao Judascorporificado num boneco
quenavegaaesm o pelosrios.Essavingançasedáporm eio detiros,pedras
e objetoslançados contra a estátua inerte que atravessa asvias fluviais da
região.

Euclides não se cinge à descrição da construção do Judas e de sua


passagem pelos povoados.Entrega-se a um esforço de interpretação do
fenôm eno social.Suateseéadequeo seringueiro constróio boneco à sua
sem elhança. Ao expurgar na estátua de palha seus sofrim entos, está

207
Ibidem.
208
Ibidem,p.53.
209
Ibidem.

100
praticando um avingançacontrasim esm o.Suaam bição – queo trouxedo
N ordesteem buscadariqueza– redundou em fracasso,eavingançacontra
o Judas é sobretudo um a vingança contra sua im previdê ncia:“É um
doloroso triunfo.O sertanejo esculpiu o m aldito à sua im agem .Vinga-se
de sim esm o:pune-se,afinal,daam bição m alditaque o levou à quelaterra;
e desafronta-se da fraqueza m oralque lhe parte os ím petos da rebeldia
recalcando-o cada vez m ais ao plano inferior da vida decaída onde a
credulidadeinfantilo jungiu,escravo,à glebaem pantanadadostraficantes,
que o iludiram ” .210

A discrepâ nciacom oscaucheiroséevidente.Enquanto osperuanos


tê m apossibilidadedeenriquecerporinterm édio dautilização dam ão-de-
obra indígena obtida à força ou aliciada com m anufaturas de valor
insignificante,o seringueiro é,elepróprio,aforçadetrabalho.Ao contrário
dos indígenas,porém ,sua ida à floresta é voluntária.Sua escravização é
resultado do sistem a de trabalho ao qualaderiu por vontade própria,ao
buscarum padrão devidam elhor.Essaadesão im previdenteaoscontratos
unilateraiseaosregulam entosinjustosim postospelossenhoresdaborracha
gera a frustração consigo m esm o.Por essa razão Euclides divisou na
cerim ônia do JudasA hasveruso m om ento de autopunição do seringueiro.

Ao observarque o boneco do JudasA hasverusrepresenta tam bém o


próprio seringueiro,Euclidesrevelao seu pessim ism o com asituação social
da Am azônia.A descrição que faz de todo o ritualde construção dos
bonecos – form atados à im agem e sem elhança do seringueiro,para que
este possa expiarm elhorsuas próprias culpas – e de sua passagem pelos
riosadquireum afortedram aticidade.Com o assinalaM ilton H atoum ,esse
pessim ism o está enraizado na H istória211:a sina do seringueiro não deriva
sim plesm entedeseu isolam ento no interiordafloresta.É conseqüê nciade
um acadeiam aisam pladefenôm enos,sobretudo do avanço do capitalism o
sobre aperiferiaedo sistem ade organização do trabalho que prevalecena
Am azônia.O isolam ento do seringueiro é m últiplo,sendo ditado não
som entepelaim ensidão daflorestam astam bém pelo fato dequeo trabalho
a que se dedica determ ina sua circunscrição à s“estradas” onde procede à
coletado látex.A expressão “à m argem dahistória” é,portanto,paradoxal:

210
Ibidem,p.55-56.
211
H atoum ,M ilton,op.cit.,p.334.

101
o habitante da Am azônia está à m argem porque sofre com o abandono a
que é relegado pelo poderpúblico,m asseussofrim entossão concretos,e
derivadosdainserção daAm azôniano processo histórico de expansão do
capitalism o.

Esse pessim ism o de Euclideslevou-o,inclusive,a escolhero título


de O Paraíso Perdido para sua planejada obra sobre a Am azônia.É o que
confessaaJoséVeríssim o em m arço de1905,em cartaenviadadeM anaus,
pouco antesde partira expedição que percorreria o Purus:“Acha bom o
título U m Paraíso Perdido para o m eu livro sobre a Am azônia ? Ele reflete
bem o m eu incurávelpessim ism o” .212

4.6 – A IN TEG RA ÇÃ O DA A M A ZÔN IA AO BRA SIL

Com o vim os nos tópicos precedentes,Euclides discorreu sobre o


hom em da A m azônia não apenas sob o ponto de vista das teorias
determ inistase evolucionistasque m arcaram o conjunto de sua obra.Sua
perspectiva foi,tam bém ,sociológica,denunciando as difíceis condições
devidanaregião.Ao utilizaraexpressão “expatriado em suaprópriapátria”
para designar o seringueiro,deixou entrever um juízo crítico sobre a
incorporação da Am azônia ao Brasil:seria possívelconcebera soberania
sobre aquele território -em especialo Acre -,se a população alipresente
era constituída de “expatriados” ?

A constatação de que a população de seringueiros e caboclos que


vivem naregião não tem m aioreslaçoscom o resto do Brasillevou Euclides
adesenvolverargum entossobreo processo deintegração daAm azôniaao
resto do país.Em À M argem da H istória estapreocupação estám anifestada
sobretudo na parte finalde “Terra sem história” .N o artigo “Brasileiros” ,
porexem plo,Euclidesrepassaaspretensõesperuanasde incorporação de
parte da Am azônia brasileira.A tentativa de explicação dessas incursões
peruanasjá fora feita no artigo “Conflito Inevitável” ,publicado em 1904
em O Estado deSão Paulo.“Brasileiros” ,por seu turno,foioriginalm ente
publicado no Jornaldo Commercio,do Rio de Janeiro,em 1907.Euclides
retom a,nesse texto,a análise do que denom inou de “o problem a do
O riente” :a penetração de peruanos na Am azônia seria fruto de um a

212
Carta a José Veríssim o,em 10 de M arço de 1905.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,p.268.

102
necessidade histórica,porquanto o país vizinho am bicionava um a saída
parao Atlâ ntico,eo acesso ao rio Am azonaspassavapelo dom ínio deseus
afluentes,em especialo Puruse o Juruá.

Reproduzindo algum as teses já apresentadas em “Conflito


Inevitável” , Euclides pondera que a anexação de parte do território
fronteiriço eraum dospontoscardeaisdapolíticaexteriorperuana.N esse
passo,a incursão de caucheirosnão era um acaso,m ascorolário de “um a
m archaregeneradoraparao oriente” 213 encabeçadapelo Estado.O governo
peruano teria coordenado,segundo Euclides,o processo de colonização
dasáreasadjacentesao Brasil,sem pre com vistasa obterum a saída para o
Atlântico.Todavia,som entecom adescobertado caucho surgiu um atrativo
consistente para a colonização.Essa form a de ocupação seria nociva à
região,já que,com o foiassinalado anteriorm ente,o caucheiro erra pela
floresta em busca de riquezas,não se apegando à terra,o que provoca “a
desorganização sistem ática da sociedade” .214

O propósito de Euclides ao discorrersobre a questão parece sero


de contrastaro intenso interesse do governo do Peru com a ausê ncia de
políticas de ocupação do lado brasileiro.Com o sublinha o autor de Os
Sertões,“o G overno peruano nunca renunciou ao seu prim itivo propósito
deum acolonização intensiva” .215 A despeito dosfracassosdosprojetosde
colonização,a exploração do caucho dava novo alento à s pretensões
peruanas,criando o cenário para que se contrapusessem caucheiros e
brasileiros.Apenascom o agravam ento dastensões– ecom aorganização
de expediçõesarm adasperuanas,em apoio à penetração doscaucheiros–
é que o governo brasileiro voltou suasatençõespara a área em litígio,sem
esboçar,contudo,um plano m aior de integração física da Am azônia ao
Brasil.

O artigo seguinte – “A Transacreana” – veicula um a daspropostas


de Euclidespara que se proceda à integração:a criação de um a via férrea
quepercorresse o recém -incorporado território do Acre.Seu argum ento é
o de que o povoam ento da Am azôniaseguiu o leito dosrios,relegando ao

213
Cunha,Euclides.À M argem da H istória,cit.,p.62.
214
Ibidem,p.66.
215
Ibidem,p.69.

103
abandono aparteinteriordaregião.A solução paraesseproblem aconsistiria,
segundo ele,na“ligação transversadeseusgrandesvales” ,isto é,nacriação
de“varadouros” :“O varadouro – legado daatividadeheróicadospaulistas
com partido hoje pelo am azonense,pelo boliviano e pelo peruano – é a
vereda atabadora que vaiporterra de um a vertente fluvialà outra” .216

Euclides valeu-se, aqui, de sua form ação de engenheiro para


apresentar com detalhes seu projeto de integração.Parte da prem issa de
que o desenvolvim ento da engenharia tornou superáveis eventuais
em pecilhos naturais à criação de linhas de com unicação.Após indicaras
características geográficas do território acreano,Euclides observa que o
trajeto da linha férrea já se encontra reconhecido, dem andando,por
conseguinte, um a ação rápida do governo federal: “A intervenção
urgentíssim a do G overno Federalim põe-se com o deverelem entaríssim o
de aviventar e reunir tantos esforços parcelados” ,intervenção essa que
deveria consistir“no estabelecim ento de um a via férrea – a única estrada
de ferro urgente e indispensávelno Território do Acre” .217

O s benefícios que defluiriam da concretização do projeto são


enfatizados por Euclides, que destaca os m últiplos efeitos sociais e
estratégicos.N o que respeita aosefeitossociais,assevera que asm elhorias
iriam “do sim ples fato concreto da redistribuição do povoam ento” à
“gerê nciam aispronta,m aisdesim pedida,m aisfirm e,dospoderespúblicos,
que hoje ali se triparte,desunida, em sedes adm inistrativas im postas
exclusivam ente pelas vicissitudes geográficas” .218 Relativam ente aos
resultados estratégicos,registra a im portâ ncia de um sistem a eficaz de
com unicações na região de fronteira,facilitando a defesa do território
brasileiro ereduzindo avantagem dosperuanosdecorrentedo dom ínio de
posiçõesnosriosM adre-de-D iose U cayali.219 D aía sua conclusão de que,
ao propiciar o equilíbrio de forças na região,a Transacreana deveria ser
vista com o “um a grande estrada internacionalde aliança civilizadora,e de
paz” .220

216
Ibidem,p.73.
217
Ibidem,p.76.
218
Ibidem,p.79.
219
Ibidem,p.82-83.
220
Ibidem,p.84.

104
A enunciação de propostas de integração física da Am azônia ao
resto do Brasilnão se exaure,em À M argem da H istória,nos dois artigos
m encionados,“Brasileiros” e“Transacreana” .Jáno início do livro Euclides
tececonsideraçõessobreosproblem asqueacom etem asprincipaisviasde
com unicação da região,osrios.É no artigo “Rios do abandono” que são
desenvolvidasreflexõessobreo potencialdo Rio Purus,aindainexplorado
pelo governo central.N este artigo resta evidenciada a instrum entalização
do trabalho científico – Euclides lança m ão de term inologia técnica e de
núm eros para fundam entar suas observações sobre as características
hidrográficasdo Purus– em proldaproposição de políticasque deveriam
seradotadaspelo governo central.Com o com issário brasileiro deexploração
do Alto Purus,Euclides não se cingiu ao registro burocrático e à m era
descrição dosaspectosnaturaism aisrelevantesdo rio.O cupou-se,tam bém ,
deindicarpossibilidadesdem elhoraproveitam ento dasviasdecom unicação
disponibilizadaspelanatureza,em borao papeldacom issão fosseapenaso
de harm onizar,com osperuanos,os dados geográficossobre a região de
fronteira.

N o caso do Purus,a constatação é a de que o rio,conquanto


apresente boas condições de navegabilidade,sofre com a carê ncia de
m elhoram entosque poderiam aum entarsua im portâ ncia econôm ica.Em
função dos fenôm enos naturais peculiares à região,o Purus pode ser
obstruído pelaquedadebarrancos(as“terrascaídas” )ou pelo acúm ulo de
troncos e galhos.O s habitantes da região,caucheiros e seringueiros,não
despendem ,segundo Euclides,“o m ínim o esforço e não despendem um
golpeúnico defacão ou dem achado num só daquelespaus,paradesafogar
a travessia” .221 D aía conclusão de que o Purusencontra-se abandonado,a
despeito deseu potencialparao desenvolvim ento daregião.Essaobstrução
pelas“terrascaídas” não constituiria,contudo,em pecilho dem ontaparao
governo central.Sua superação não apresentaria m aiores dificuldades,
faltando apenas a intervenção governam ental:“Entretanto,o sim ples
enunciado destesinconvenientes,evidentem entealheiosà ssuasadm iráveis
condiçõesestruturais,delata que a rem oção deles,em bora dem orada,não
dem anda trabalhos excepcionais de engenharia e excepcionais
dispê ndios” .222

221
Ibidem,p.25.
222
Ibidem,p.26.

105
As condições para a exploração do Purus estariam dadas pela
natureza,tendo em vista suas “adm iráveis condições estruturais” e sua
excelente hidráulica fluvial,o que conduz Euclidesa afirm ar:“O Purusé
um a das m aioresdádivas entre tantas com que nosesm aga um a natureza
escandalosam ente perdulária” .223 N a linha da preocupação social que
perpassaÀ M argem daH istória,procurasalientarqueo quadro deisolam ento
da Am azônia e as dificuldades vividas por seus habitantes não decorre
senão da situação de abandono a que foirelegada pelo governo central.
ParaEuclides,apreservação daintegridadeterritorialiriaalém ,no entanto,
da celebração de acordosde lim ites,já que enquanto não se prom ovesse a
inclusão da A m azônia e de sua população na pauta de políticas de
desenvolvim ento do poder central,a soberania brasileira sobre a região
persistiria am eaçada.O litígio com o Peru,intensificado logo após a
celebração do Tratado dePetrópolis,dem onstravaafragilidadedapresença
brasileira na área do Alto Puruse Alto Juruá.

Cioso da capacidade do rio em gerar o desenvolvim ento local,


Euclides é enfático ao rogar pela intervenção governam entalna região:
“D equalquerm odo,urgeiniciar-sedesdejám odestíssim o,m asininterrupto,
passando degoverno agoverno,num atentativapersistenteeinquebrantável,
que seja um a espécie de com prom isso de honra com o futuro,um serviço
organizado dem elhoram entos,pequeno em boraem com eço,m ascrescente
com osnossosrecursos– que nossalve o m ajestoso rio” .224

Coerentecom aassertiva– enunciadano início deÀ M argem daH istória


– dequenaAm azônia“asverdadesdesfecham -seem hipérboles” ,Euclides
éaindam aisenfático ao consignarqueo Purus– “um rio enjeitado” – pode
vira serum a das m ais im portantes linhas de expansão histórica do Brasil:
“Precisam osincorporá-lo ao nosso progresso,do qualele será,ao cabo,um
dosm aioresfatores,porqueépelo seu leito desm edido em foraquesetraça,
nestesdias,um a dasm aisarrojadaslinhasda nossa expansão histórica” .225

U m a das singularidades de À M argem da H istória é,portanto,a


veiculação de um a visão estratégica da integração da Am azônia ao Brasil.

223
Ibidem.
224
Ibidem,p.28.
225
Ibidem.

106
Fielao reform ism o quem arcasuacondição deintelectualdeclassem édia,
Euclidesdefendeum papelativo do Estado naproteção do território edas
populações m ais afastadas.A proposta de criação da Transacreana e os
argum entosem proldo m elhoram ento do rio Purusdem onstram que sua
reflexão é coerente com o panoram atraçado na parte inicialdo livro:um a
vez constatado o abandono do Purus e das populaçõeslocais,tornava-se
prem ente a concepção de propostasque pudessem m inorarosproblem as
regionais.Com o texto sobre a Transacreana Euclides encerra um a obra
queapresentafundam entalm entetrê sníveisdistintosdeanálise.O prim eiro
desses níveis é descritivo, alicerçado na apresentação dos dados
fundam entais – geográficos,geológicos,hidrográficos – da região que
percorreu com o chefedaCom issão deExploração do Purus.N ão setrata,
porém ,deum adescrição puraesim ples,um avezque,com o assinalou nos
capítulos iniciais de À M argem da H istória,o contato com a natureza da
Am azônia provoca no observadoracessosde im aginação e de fantasia.O
texto de Euclides é revelador dessa particularidade:m uito em bora se
verifiquem lam pejos cientificistas,no m ais das vezes a apresentação das
características físicas do rio Am azonas e da floresta é acom panhada de
liberdadesm etafóricas.

O segundo níveléo dacríticasocial,consubstanciando-seno discurso


sobre o caucheiro e na denúncia das condições de vida do seringueiro.
Euclides ocupou-se não apenas em fixar os traços etnográficos m ais
m arcantes desses dois personagens,m as foipioneiro na revelação das
m azelas sociais que resultavam do sistem a de organização do trabalho
vigente nas áreas de exploração da borracha.O terceiro nívelé o das
propostas de integração da Am azônia ao Brasil,porm eio de políticas de
governo (com o o m elhoram ento dascondiçõesdenavegabilidadedo Purus
eacriação daTransacreana)tendentesaprom overainclusão físicaesocial
da região ao restante do país.

A concatenação dessastrê scam adasde reflexão torna À M argem da


H istóriaum aobracom plexa,dedifícilclassificação.O interessequedesperta
é não som ente literário,m as tam bém histórico,sociológico e político.A
diversidadedediscursoseníveisdeanáliseem pregadosporEuclidesperm ite
que se considere esse livro o retrato fielde um m om ento histórico.Em
verdade,seu esforço foio deem preenderum a“interpretação” daAm azônia
em sentido lato.A designação de “intérprete da Am azônia” indica com

107
m aiorclareza a pretensão de Euclides de efetuarum a síntese abrangente
daregião,contem plando osdiversosaspectos– inclusiveo social– daquele
território ainda pouco conhecido pelo podercentral.

É por esta razão que Péricles M oraes inicia sua obra Intérpretesda
A mazônia com a assertiva de que Euclidesfoio prim eiro grande pensador
dosproblem asda região:

“D e fato,naquela época,a não sero prosadord´OsSertões,nenhum


outro escritor se aventurou à tem eridade de tais entrepresas.Pode-se
m esm o avançarque osseusestudossobre aAm azônia,assim naspáginas
do À M argem da H istória,com o no prefácio m agistraldo InfernoV erde,são
o eixo centralde tudo quanto se tem pensado e escrito sobre a região
portentosa” .226

D o ponto de vista da diplom acia brasileira,porsua vez,os“textos


fundadores” de Euclides sobre a Am azônia oferecem um a visão clara da
am plitude que deve ter a política externa brasileira relativa à região.A
preservação do território não estaria cingida à m anutenção dasfronteiras,
avançando sobre duas outras dim ensões:a da integração física e inclusão
social.O s ensaios de Euclides veiculam ,assim ,um a evidente perspectiva
estratégica.Além de perm itirum a com preensão histórica dos problem as
que atingem a Am azônia,suas reflexões trazem ,de form a objetiva,os
problem as fundam entais da região,que persistem até hoje:a porosidade
dasfronteiras,o isolam ento daspopulaçõeseasdificuldadesdeintegração
física. O “abandono” da Am azônia encontrou em Euclides,do ponto de
vistadadiplom aciaedapolíticaexterna,um adesuasm elhoresform ulações.

226
M oraes,Péricles.Os intérpretes da A mazônia.M anaus,Editora Valer e G overno do Estado do
Am azonas,2001,p.15-16.

108
V -E UCLID ES D A CUN H A
E A PO LÍTICA IN TERN ACIO N AL
V -E U CLID ES D A C U N H A E
A PO LÍTICA IN TERN ACIO N AL

O presente capítulo alm eja apresentaralguns aspectos da visão de


Euclidesda Cunha sobre a política internacionaldo início do século XX .
Trata-se de um esforço ensaístico visando à extração,das ponderações
presentes em seus textos,de algum as linhas gerais representativas do
pensam ento do escritorsobrearealidadem undial.Com o verem os,avisão
que tem das relações de poder entre as nações foitam bém fortem ente
influenciada pela correntes científicas e filosóficas que configuram a
ideologia de seu cam po intelectual,e que tivem os a oportunidade de
exam inarno prim eiro capítulo.

Euclidesm anifestou em diversasoportunidadessuasopiniõessobre


assuntos internacionais,seja em artigos publicados na im prensa,seja em
obras com o Peru versus Bolívia.Era um observador privilegiado e nutria
vivo interesse pelasquestõesinternacionais,m asnão am bicionava tornar-
se um pensador ou um form ulador de política externa.M ais correto é
considerá-lo um intelectualcujavocação em revelaro lado pouco conhecido
do país - é um dos intérpretes do Brasil, preocupado em afirm ar a
nacionalidade brasileira e refletirsobre a construção da República-levou-
o a m anifestarjuízossobre asrelaçõesinternacionaisdo país.

A propensão a escreversobre política externa em ergiu em especial


nos m om entos que antecedem sua adm issão no Itam araty,em 1904.Sua
viagem oficialà Am azônia,ao longo de 1905,ensejou a oportunidade de
escreverseustextosprincipaissobreasquestõesdefronteiraqueenvolviam
o Brasile,tam bém ,sobre o contexto político sul-am ericano.D a m esm a
1
Esse estudo veio a serpublicado de pgs.61 a 83 no livro Reflexões sobre D efesa e Segurança:um a
Estratégia para o Brasil,vol.1,Brasília,M inistério da D efesa,2004.

111
form a,asdisputasdefronteiraentrePeru eBolívia,quepoderiam afetaro
Brasil,levaram Euclides a escrever,a pedido de Rio Branco,o livro Peru
versusBolívia,publicado em 1906,em que declina argum entosfavoráveisà
posição boliviana.

Trê s artigos publicados em 1904 no jornalO Estado de São Paulo


consubstanciam suavisão pré-am azônicaacercado litígio defronteiracom
o Peru:“Conflito Inevitável” ,“ContraosCaucheiros” e“Entreo M adeira
eo Javari” .Estestextos,jáanalisadosnaparte inicialdo presente trabalho,
estão reunidos no volum e ContrasteseConfrontos,que Euclides editou em
1907.Esta m esm a obra contém trê s outros artigos im portantes no que
concerneà políticainternacional:“SolidariedadeSul-Am ericana” ,“O Ideal
Am ericano” e “Tem oresVãos” ,que apreciarem osm aisadiante.

Sua obra de referê ncia sobre a Am azônia,À M argem da H istória,


tam bém sem ostraindispensávelà com preensão desuavisão dosproblem as
externosdo Brasil.Escrita apósa viagem que Euclidesfez ao Am azonase
ao Acre,delineiaosproblem associaisqueatingiam aspopulaçõesdaregião.
Conform eexpusem osno tópico anterior,o autorpreocupou-seem assinalar
queaincorporação efetivadaAm azôniaao Brasilpassavapelaação do poder
central,seja no sentido de prom over políticas de integração física,seja
prom ovendo ainclusão socialdaqueles“expatriadosem suaprópriapátria” .

5.1 – O CON TEX TO SU L -A M ERICA N O

Euclidesingressou etrabalhou nosquadrosdo Itam aratyentre1904


e 1909,durante parte da gestão do Barão do Rio Branco.N esse período o
governo brasileiro,prem ido pelascircunstâ ncias,viu-senacontingê nciade
resolverproblem asdefronteiracom diversosdeseusvizinhos.Esseslitígios,
que m uitas vezes repercutiam junto à opinião pública (as controvérsias
com o Peru são ilustrativas a esse respeito,ao acarretarem m obilizações
m ilitares de am bas as partes),colocaram a relação com os países sul-
am ericanosna ordem do dia.M esm o asrelaçõescom a principalpotê ncia
hem isférica,osEstadosU nidos,desenvolviam -sedem aneiraafortalecera
posição brasileira em face dosdem aispaísesdo continente.

A produção de Euclidesrelativaatem asdepolíticaexternalevaem


consideração essecontexto específico.D aíapredom inâ ncia,em seustextos,

112
de reflexões sobre o cenário político sul-am ericano e a influê ncia norte-
am ericana na região.O volum e ContrasteseConfrontos,com o vim os,traz o
artigo “Solidariedade Sul-Am ericana” ,em que Euclides apresenta a idéia
de “concorrê ncia vital” entre povos.Ainda nesse artigo,preconiza a
superioridade brasileira sobre os vizinhos, geralm ente vistos com o
repúblicas desordenadas e dadas ao belicism o.Refere-se,assim ,a noções
evolucionistas com o a de “seleção naturalinvertida” e “darwinism o pelo
avesso” ,aplicando-as à situação vigente nas repúblicas sul-am ericanas de
línguaespanhola.Curiosam ente,veráo Brasilcom o sendo dotado deum a
certa superioridade com relação aospaísesfronteiriços,o que não ocorre
quando refletesobreaação depotê nciascom o EstadosU nidoseAlem anha
no continente:nesse caso,seríam os todos nações frágeis e tem erosos da
“vanguarda da civilização” .

Euclides não ocultava,portanto,seu pessim ism o com o idealde


solidariedade sul-am ericana, classificando essa idéia de “perigosa” e
colocando aspasnapalavragoverno quando sereferiaao podercentraldas
naçõesda Am érica do Sul227,de m odo a registrara instabilidade política e
o caudilhism o que caracterizariam a região.

Trata-se de um a posição singular,que não chega a destoar,porém ,


daorientação geraldapolíticaexternarepublicanano início do século XX .
Conquanto sealm ejasseum am aiorintegração com ospaísesdo continente,
as desconfianças que estes nutriam relativam ente ao Brasileram levadas
em consideração, dando à política externa de Rio Branco um curso
pragm ático e realista.Para Euclides,o “espírito superior” do Brasilesteve
patentenosepisódiosqueenvolveram aaquisição do Acreeosposteriores
problem as de fronteira com o Peru.Com o já assinalado,o Tratado de
Petrópolis seria um reflexo da “irradiação superior de nosso espírito” ,
expressando um a“atitudedesinteressadaeoriginalíssim a,depovo cavaleiro-
andante” .228

Essa visão deriva do fato de que Rio Branco renunciou ao uso da


forçaepôsterm o ao litígio porinterm édio deum acordo,recom pensando
a Bolívia financeiram ente e com territórios,m uito em bora a região em

227
Cunha,Euclides da.ContrasteseConfrontos,cit.,p.190.
228
Ibidem,p.192.

113
disputa já estivesse sob o controle de brasileiros.H averia,assim ,um a
incom preensão geraldospaísesdelínguaespanholacom relação ao Brasil.
A diligê nciadaRepúblicainstaladaem 1889 em travarasm elhoresrelações
possíveis com as nações sul-am ericanas esbarraria num a espécie de
prevenção perm anentecontraasaspiraçõesbrasileiras.D essem odo,“essa
solidariedadesul-am ericanaéum belíssim o idealabsolutam enteirrealizável,
com o efeito único de nos prender à s desordens tradicionais de dois ou
trê s povos irrem ediavelm ente perdidos,pelo se incom patibilizarem à s
exigê nciasseverasdo verdadeiro progresso” .229

E m “Solidariedade Sul-A m ericana” E uclides com para o


isolacionism o da política externa do Im pério com as tentativas de
aproxim ação levadas a cabo após a proclam ação da República.N um a
exceção curiosa à sua crença republicana,vê positivam ente a diretriz de
afastam ento do Brasilobservadaduranteo período m onárquico,quando a
desordem dasrepúblicasvizinhaspouco interferirianapolíticanacional.A
im plantação do regim e republicano teria feito,paradoxalm ente,com que
as desconfianças contra o Brasilse acentuassem nos países vizinhos.
Adem ais,o fato deo Brasiltam bém tersetornado um arepúblicaelim inou
o elem ento que o diferenciava dosdem aisgovernosdo continente:não se
poderia m ais falar,a partir de então,na distinção entre a estabilidade
m onárquicabrasileiraeaanarquiatipificadoradasrepúblicasqueem ergiram
do im pério colonialespanhol.Ao contrário:

“Sem aquele ponto de referê ncia, a opinião geral desvaira; (...)


confunde-nos nas desordens tradicionais de caudilhagem ;m istura os
nossos quatorze anos de regím en novo a m ais de um século de
pronunciam entos;ecom o,duranteestacrisedecrescim ento,nossaltearam
e salteiam desastres– que só podem seratribuídosà República porquem
atribuía ao firm am ento astem pestadesque no-lo escondem – já não nos
distingue nosm esm osconceitos.E que conceitos...” .230

D o ponto devistadapolíticaexterior,paraEuclides,aRepúblicateria
trazido inconvenientesparao Brasil,inserindo-o,aosolhosdaopinião pública
externa,no contexto dedesordenseconflitosquepeculiarizavam osdem ais

229
Ibidem,p.193.
230
Ibidem,p.190.

114
paísessul-am ericanos.Tornava-se necessário,assim ,que o Brasilenvidasse
esforçosno sentido dedesvencilhar-sedaim agem atribuídaaseusvizinhos.
Euclidesobservaqueum a“guerrilhadedescrédito” estariasendo m obilizada
contra o Brasil,colocando-o na m esm a posição de paísescom o o Paraguai
(“convalescente” ),a Bolívia (“dilacerada pelos m otins e pelas guerras” ),a
Colôm bia (em conjunto com a “abortíciarepublícola que há m eseslhe saiu
dosflancos” )eo U ruguai(“aestahoraabalado pelascavalariasgaúchas” ).231

Essa visão negativa dos países sul-am ericanos em basava a oposição


de Euclides à idéia de solidariedade continental. Extrai-se de suas
consideraçõesadefesadeum certo isolacionism o em facedosdem aispaíses
sul-am ericanos,na linha da política praticada durante o Im pério.Tratava-se
de um m eio de recom por a im agem do país junto aos observadores
estrangeiros,quepassaram avercom desconfiançaarepúblicabrasileira,em
função dasdesordensinerentesaesseregim enosdem aispaísesdo continente.
O conflito com o Peru,segundo Euclides,constituiria um a oportunidade
paraqueo Brasilrecuperasseum apartedeseu prestígio.O confronto arm ado
poderia apresentar-se com o um a “guerra reconstrutora” .Ante a ineficácia
do diálogo com o vizinho,resultante principalm ente dos preconceitos que
os países sul-am ericanos alim entavam contra o Brasil, cum pria que
seguíssem os“parao futuro;e,conscientesdanossarobustez,paraadesafronta
eparaadefesadaAm azônia,ondeavisão proféticadeH um boldtnosrevelou
o m aisam plo cenário de toda acivilização daterra” .232

A críticaao idealdesolidariedadesul-am ericanafazia-seacom panhar


pela defesa de um a m aioraproxim ação com osEstadosU nidos.Euclides
m ostrava-se,nesseponto,em sintoniacom asconcepçõespan-am ericanistas
deRio Branco.A aliançaestratégicacom osEstadosU nidospoderiatrazer
benefícios ao Brasil,sobretudo num contexto em que aquele país se via
desafiado pelastentativasde penetração da Alem anha na Am érica do Sul.

5.2 – A D ISPU TA IN TERIM PERIA LISTA

Euclides da Cunha foium observadorda política internacionalno


lim iardo século XX .Esseperíodo ém arcado peladisputainterim perialista

231
Ibidem,p.191.
232
Ibidem,p.193.

115
entre osEstadosU nidose outraspotê ncias– notadam ente a Alem anha –
pelahegem oniasobreo continenteam ericano.Com o Barão do Rio Branco
à frente da chancelaria,e a consolidação da aliança estratégica com os
Estados U nidos,os debates sobre política internacionalpassam a fazer
parte da ordem do dia.Testem unhava-se,à época,o debilitam ento da pax
britannica e o robustecim ento da econom ia norte-am ericana nas relações
internacionaisde troca.

O s capitais estrangeiros,em virtude da saturação dos m ercados


dom ésticosnaEuropaenosEstadosU nidos,buscavam ,apartirdadécada
de1870,expandir-separaoutrasregiõesdo globo.A Am éricado Sulpassou,
nesse contexto, a ser objeto da cobiça das econom ias em acelerado
crescim ento,tornando-seum aáreadeinfluê nciadisputada,sobretudo após
a reorientação da política externa dos Estados U nidos no sentido de um
m aiorintervencionism o político eeconôm ico nospaíseslatino-am ericanos.
O corolário Rooseveltà doutrina M onroe,segundo o qualo hem isfério
ocidentaldeveria serprotegido da ação colonialista européia,podendo os
Estados U nidos assum irem o papelde polícia continental,sim boliza a
guinada política daquele país em direção a um a m aior interferê ncia nos
assuntosda região.

A Alem anha,por seu turno,sofreu um surto de industrialização


apósaunificação política,passando aalm ejaraaberturadenovosm ercados
a seus produtos: “O com ércio com os países novos era visto com o
necessário à indústria.Im punha-se entrarde rijo na com petição colonial.
Para isso era preciso aum entar a M arinha m ercante e a de guerra.Em
1896,o K aiseranunciou que o futuro da Alem anha estava nosm ares” .233

A rivalidade entre Estados U nidos e Alem anha m arca,portanto,o


período em questão.O s artigos de Euclides sobre política internacional
tê m com o pano de fundo esse cenário de com petição interim perialista,
sendo freqüentesasalusõesà spolíticasdessesdoispaísespara a Am érica
do Sul.Euclides,todavia,não acreditavaqueacom petição pudesseam eaçar
asoberaniabrasileira:“N um aquasem aniacoletivadaperseguição,andam os,
porvezes,à sarrancadascom algunsespectros:o perigo alem ão e o perigo

233
Bueno,Clodoaldo.Política externa da Primeira República:osanosdeapogeu (1902 a 1918).São Paulo,
Paz e Terra,2003,p.35.

116
yankee” .234 Entretanto,o m edo das potê ncias seria apenas o m edo da
“civilização” :“N ão é o bárbaro que nos am eaça,é a civilização que nos
apavora.Esta últim a consideração é expressiva.M ostra que osreceiossão
vãos” .235 Apesarde vernos Estados U nidos e na Alem anha sím bolos de
progresso,Euclides form ulou algum as críticas à política desses países,
persistindo, porém , na tese de que a am eaça im perialista carecia de
concretude para o Brasil.Trata-se,novam ente,de um a am bigüidade:ao
m esm o tem po em que vislum bra as duas potê ncias em ergentes com o
sím bolos de evolução e progresso econôm ico,m ostra-se receoso de suas
pretensõesim perialistas.

N um dos artigos do volum e Contrastes e Confrontos,intitulado “O


K aiser” ,Euclidesenuncia críticasao im peradoralem ão,G uilherm e II,e à
política expansionista do país.Para ele,a Alem anha,“que acordou tarde
paraaexpansão colonizadora” ,estariaseagitando “num estonteam ento” .236
O súbito projeto expansionista alem ão,num cenário em que osm elhores
quinhõesdo planeta já haviam sido repartidosentre asgrandespotê ncias,
afigurar-se-ia com o “um a política de gorjetas” :

“Em todososseusatos– nosarrogantesultimata contraaVenezuela,


nosassaltosferocíssim osdeW aldersée,em Pequim ,ou nastortuosidades
eperfídiasdiplom áticasquerodeiam alongahistóriadaestradaparaBagdá,
ou,ainda,no ganancioso alongarde olhos para os Estados do Sul,a sua
â nsia alucinada do ganho,pela pilhagem dos últim os restos da fortuna
dos países fracos,pode assum ir todas as form as,até m esm o o aspecto
heróico:m as destaca-se com aquele traço inferiore irredutível” .237

Condena, por estas razões, a política do kaiser G uilherm e II,


assinalando que sua continuidade “vaiisolando a Alem anha do convívio
das nações” .238 As críticas prosseguem em outro texto,tam bém inserido
em ContrasteseConfrontos,m aspublicado originalm ente no jornalO Estado
de São Paulo, em 6 de agosto de 1904. D enom inado “A A rcádia da

234
Cunha,Euclides da.ContrasteseConfrontos,cit.,p.196.
235
Ibidem,p.197.
236
Ibidem,p.133.
237
Ibidem,p.133-134.
238
Ibidem,p.134.

117
Alem anha” ,o artigo é m ais cristalino no julgam ento depreciativo do
im perialism o teutônico.O ponto departidadaanáliseéum artigo publicado
narevistaContemporaryReview,cujo autorassevera,naspalavrasdeEuclides,
“que som os um povo sem juízo,e a vitalidade germ â nica,em breve,nos
absorverá” .239

ParaEuclidesessevaticínio,aindaque não de todo despropositado,


não se realizaria naquele m om ento histórico específico.Em sua opinião,a
Alem anha não reunia,à época,condições de subjugaro Brasile torná-lo
sua “Arcádia” .A disputa interim perialista que travava com os Estados
U nidos,a Inglaterra e a França im pedia-lhe vôos m ais altos,já que a
obtenção de novas colônias im plicaria,de pronto,o choque com algum a
dessaspotê ncias.Euclidesfiava-se,adem ais,no papelde gendarm e ou de
polícia continentalexercido pelos Estados U nidos na Am érica Latina,
conform e pregava o corolário Rooseveltà doutrina M onroe:“Além disto,
o princípio de M onroe,interpretem o-lo à vontade,com ser um reflexo
político dosinteressesestritam ente com erciaisdosyankees,tem o valorde
nosfacilitarao m enosum a longa trégua” .240

A circunstâ ncia da A lem anha encontrar dificuldades para a


concretização de sua política expansionista e a presença protetora dos
Estados U nidos no hem isfério não im pediam , porém , que Euclides
vislum brasse a am eaça representada pelosideaisgerm â nicos.N o início
do século X X a pretensão alem ã de obterm ercadospara seusprodutos
e conquistar colônias fornecedoras de m atérias-prim as engendrou o
surgim ento de concepções pangerm anistas, que preconizavam a
incorporação de regiões habitadas por populações de origem alem ã –
caso do suldo Brasil.Clodoaldo Bueno observa que os “Estados do
Brasil m eridional, especialm ente Santa Catarina, já possuíam , então,
forte contingente im igratório de origem alem ã.N ão obstante não tenha
partido do governo im perialalem ão qualquer iniciativa ou incentivo,
os elem entos pangerm anistas, em 1900, m antiveram a ilusão de
transform araquelas “colônias sem bandeiras” em base de um im pério
na Am érica do Sul” .241

239
Ibidem,p.137.
240
Ibidem,p.140.
241
Bueno,Clodoaldo,op.cit.,p.35.

118
N essa esteira,Euclides,conquanto não acreditasse na hipotética
incorporação do Brasilao im pério alem ão,não se furtava a alertarpara os
perigosque a política pangerm anista poderia trazerpara o país.Cita,assim ,
diversosautoresalem ães,porele classificadosde “foliculáriosassanhados” ,
quedefendiam explicitam enteapossedo sulbrasileiro.A om issão do governo
brasileiro poderia provocar,advertia,nossa inserção na órbita de poderda
Alem anha.242 D aía necessidade de que fossem form uladase concretizadas
políticasdeocupação do território brasileiro edeexploração desuasriquezas.
Afinal,se de um lado a Alem anha,em função de seu acelerado progresso e
dasreduzidasdim ensõesdeseu território,via-secom pelidaabuscarrecursos
em outroscontinentes,deoutro o Brasil,adespeito desuaspotencialidades,
apenas contem plava “as nossas virgens bacias carboníferas,as nossas
m ontanhas de ferro,as nossas cordilheiras de quartzito,os nossos litorais
douradospelasareiasm onazitas,eo estupendo dilúvio canalizado denossos
rios,e oscerroslastreadosde ouro dasgrupiaras(...)” .243

O sdoisartigosindicados– “O K aiser” e“A ArcádiadaAlem anha” –


revelam ,porconseguinte,osreceiosqueEuclidescultivavarelativam enteao
expansionism o alem ão.Taisreceiosnão são,contudo,significativos,porquanto
Euclidesnão vianaAlem anha,com o visto,acapacidadeim ediatadeviolara
soberaniabrasileira.O m esm o ocorreriano querespeitaao intervencionism o
norte-am ericano.Afinal,a política externa dos Estados U nidos voltava-se
m aisparaaobtenção dehegem oniapolíticaeeconôm icado queà aquisição
de colôniasna Am érica do Sul.O interesse dosnorte-am ericanosera,logo,
o depreservararegião com o áreadeinfluê ncia,em detrim ento daspotê ncias
européias,conform esalientaClodoaldo Bueno:“O sm étodosdo im perialism o
norte-am ericano não são,portanto,os típicos da época.Pelo fato de os
Estados U nidos terem sido colônias da Europa,a opinião pública e o
legislativo pressionaram o PoderExecutivo no sentido deseevitaraim posição
a outros povos de um a sujeição contra a qualhaviam se insurgido para se
constituírem em nação independente.Preferiam -seaszonasdeinfluê ncia” .244

A política intervencionista dos Estados U nidos é com entada por


Euclidesno artigo “O IdealAm ericano” ,tam bém inserido no livro Contrastes

242
Cunha,Euclides da.ContrasteseConfrontos,cit.,p.139.
243
Ibidem,p.137.
244
Bueno,Clodoaldo,op.cit.,p.41.

119
eConfrontos.O título do texto é o m esm o do livro que Euclidesse dedica
aresenhar,escrito pelo presidente norte-am ericano Theodore Roosevelt.
Para o autorde À M argem da H istória,Rooseveltnão se m ostra um bom
escritor(“Roosevelté um estilista m edíocre” ),e suas teses não trazem
nada de inovador (“o seu últim o livro, o Ideal americano, é um a
sistem atização de truísm os” 245).Todavia,a obra do presidente norte-
am ericano traria conclusões relevantes para os países sul-am ericanos,
que são retratados de form a negativa no livro,apresentando-se com o
nações “de segunda” .246

ParaEuclides,apregação de Rooseveltem proldo am ericanism o,


com o form a de se evitaras desordens característicasda repúblicassul-
am ericanas, deveria ser vista com realism o. Para ele, a política
intervencionista de Roosevelt dem onstraria que o presidente norte-
am ericano era o “m elhordiscípulo de H obbese G um plovicz” .247 N um
contexto de confrontação entre potê ncias por áreas de influê ncia,
estaríam os diante do “darw inism o rudem ente aplicado à vida das
nações” .248 Revela,nesse passo,sua descrença na eficácia do D ireito
Internacional:“(...)o falar-se no D ireito é extravagâ ncia idê ntica à de
quem procura discutir ou indagar sobre a m oralidade de um
terrem oto” .249

A interpretação que faz do pan-am ericanism o é, portanto, de


fundo realista. O “ideal” em questão ocultaria, em verdade, o
expansionism o das nacionalidades m ais fortes contra as m ais fracas.A
Am érica do Sulseria um dos palcos dessa confrontação,cum prindo,
assim ,que os form uladores de nossa política externa atentassem para
as colocações do presidente norte-am ericano, inclusive o quadro
pessim ista que traça da “anarquia sul-am ericana” .250 Som ente o
robustecim ento do paíse de suasinstituiçõespoderiaoferecerproteção
adequadacontraosperigostrazidospelaconcorrê nciainterim perialista.

245
Cunha,Euclides da.ContrasteseConfrontos,cit.,p.193.
246
Ibidem,p.194.
247
Ibidem,p.196.
248
Ibidem.
249
Ibidem.
250
Ibidem,p.194.

120
D esse m odo, o Brasil deveria se acautelar diante das forças
im perialistas,m asnão porm eio dainvocação deprincípiosjurídicosou da
condenação abstrata do expansionism o das grandes potê ncias.Em seu
ponto devista,o “darwinism o” entrenaçõesdeveriasertrabalhado apartir
deum aleiturapragm áticado cenário internacional:senão aperfeiçoássem os
nossas instituições,fortalecendo nossa soberania,estaríam os sujeitos à s
vicissitudes das forças im perialistas: “Roosevelt com para de m odo
pinturesco essaconcorrê nciaform idávelaum vasto eestupendo footballon
thegreen:o jogo deveserclaro,franco,enérgico edecisivo;nadadedesvios,
nadadetortuosidades,nadadereceios,porqueo triunfo éobrigatoriam ente
do lutadorque histthelinehard!” .251

Em outro artigo,intitulado “Tem oresVãos” ,deixaclaro queo Brasil


não deve tem era ação dosEstadosU nidosno continente:

“D e fato,atentando-se para a m aior destas am eaças,a da absorção


yankee, põe-se de m anifesto que o im perialism o nos últim os tem pos
dom inante na política norte-am ericana não significa o fato m aterialde
um a conquista de territórios, ou a expansão geográfica à custa do
esm agam ento dasnacionalidadesfracas– senão,num a esfera superior,o
triunfo das atividades,o curso irresistívelde um m ovim ento industrial
incom parável, e a expansão naturalíssim a de um país onde um
individualism o esclarecido, suplantando a iniciativa oficial, sem pre
em perrada ou tardia,perm itiu o desdobram ento desafogado de todas as
energias garantidas por um senso prático incom parável,por um largo
sentim ento da justiça e até por um a idealização m aravilhosa dos m ais
elevadosdestinosda existê ncia” .252

Essa adm iração pelo sucesso norte-am ericano coloca Euclides


em consonâ ncia com os projetos de aliança estratégica entre Brasile
Estados U nidos,levado a cabo por Rio Branco:“É extraordinária a
sim ilitude da sua posição [de E uclides] com a política do Pan-
A m ericanism o e do A BC, im prim idas pelo Barão do Rio Branco à
atuação do Itam araty” .253

251
Ibidem,p.196.
252
Ibidem,p.197.
253
Sevcenko,N icolau,op.cit.,p.142.

121
Para Euclides,o verdadeiro perigo não era o im perialism o,m as o
“perigo brasileiro” :adesorganização política,afragilidadeeconôm ica,um
“federalism o incom preendido” ,o “dom ínio im pertinente da velha tolice
m etafísica” 254,dentre outros m ales.Rem atando suas reflexões sobre o
im perialism o norte-am ericano e alem ão,Euclides não vê ,ao m enos no
curto prazo,perigos palpáveis para a soberania brasileira.As potê ncias
estrangeirasnão seriam inim igasdo Brasil,antesrepresentariam avanguarda
da civilização e do progresso (em bora nutrissem ,tam bém ,pretensões
im perialistas).Tem ê -lasim portariaem tem eraprópriacivilização:“Verem os,
então,m elhor,todo o infundado de receiosou de im aginosas conquistas,
que são até um a calúnia e um a condenávelafronta a nacionalidades que
hoje nosassom bram ,porque progridem ,e que nosam eaçam pelo m otivo
único de avançarem triunfante e civilizadoram ente para o futuro” .255

O sargum entosdeEuclidessobreaascensão dosEstadosU nidose


da Alem anha com o potê ncias são m arcadam ente am bíguos – ora se faz
um aavaliação positiva,oranegativa.Essaam bigüidadepodeserexplicada,
um a vez m ais, por sua adesão aos câ nones do evolucionism o, que
fundam enta,porexem plo,a tese de que asduaspotê nciasconstituiriam a
“vanguarda” da civilização, ao passo que as nações sul-am ericanas
representariam a ocorrê ncia de um a espécie de “darwinism o invertido” .
Poroutro lado,ao lidarcom o problem a sob um enfoque m ais realista e
pragm ático,Euclidespôdeapontarosperigosdo expansionism o teutônico
enorte-am ericano,divisando asam eaçasquetrariaparaospaísesdaregião.
N ão obstante,podem os concluir que m esm o o reconhecim ento desses
perigoscede ante a ideologiado evolucionism o,que acabaporprevalecer:
qualquer apreensão com as políticas im perialistas poderia ser visto,em
últim a instâ ncia,com o um m edo da “civilização” .

5.3 – “PERU V ERSU S BOLÍV IA ”

A publicação do livro Peru versusBolívia,em 1906,é outro fruto do


trabalho de Euclides no Itam araty.A edição da obra - originalm ente
publicada,em artigos,no Jornaldo Comércio,do Rio de Janeiro -se deu a
pedido do Barão do Rio Branco,que vislum brava a possibilidade de que

254
Cunha,Euclides da.ContrasteseConfrontos,cit.,p.199.
255
Ibidem.

122
interessesbrasileirosfossem afetadospelo desfecho dapendê nciaterritorial
entre osdoispaísesvizinhos.256

Ao retornar da m issão à Am azônia,em janeiro de 1906,Euclides


viu-se sem funçõesdefinidasno M inistério dasRelaçõesExteriores,após
finalizar o relatório oficial da Com issão M ista Brasileiro-Peruana de
Reconhecim ento do Alto Purus.O relatório veio aserpublicado em junho
de 1906,pela TipografiaN acional.A despeito daindefinição quanto à sua
situação no Itam araty, continua colaborando com Rio Branco. Em
correspondê nciaaFrancisco Escobar,assinala:“Extintaam inhacom issão,
o m inistro não m e dispensou,encarregando-m e da organização de uns
m apas.Assim vivo enleado entre osvelhostraçosdosvelhoscartógrafos,
ossujeitosm aisdesleaise desonestosque andam pela G eografia (...)” .257

Em carta a Firm o D utra,já em julho de 1906,reitera a insatisfação


com as atividades que vem desem penhando no M inistério, restritas
basicam ente ao ofício de cartógrafo.Salienta que ainda se encontra “à s
voltascom unsvelhosm apasindecifráveis” .N a m esm a correspondê ncia,
refere-se à possibilidade de ser nom eado para um cargo na equipe que
supervisionaria a construção da estrada de ferro M adeira-M am oré:“N ão
seiseaíchegou anotíciadeque eu iasernom eado chefedafiscalização da
M adeira-M am oré.Realm ente as coisas se encam inham para isto – e se
obstáculo sério que encontro – a oposição de m eu pai– fordesviado,aí
estareiem breve,calçando de novo asm inhasbotasde sete léguas” .258

Euclidesvoltariaafazerreferê nciaà ssuas“botasdeseteléguas” em


diversos outros m om entos, procurando enfatizar sua propensão ao
nom adism o.Em correspondê ncia de 24 de julho de 1906,com unica a seu
pai– principalopositor de um a nova viagem ao Acre – que recebeu,e
aceitou,o convite do M inistro da Viação para ser o fiscaldo G overno
junto à EstradadeFerro M adeira-M am oré:“N ão puderesistiraestaatração.
Será m ais um sacrifício;m ais um a arrancada valente para o futuro;e sei
queo sr.não reprovaráo m eu ato,queseráo m eu últim o ato detem eridade.

256
Tocantins,Leandro.Euclidesda Cunha eoParaísoPerdido.Rio de Janeiro,Record,1968,p.186-187.
257
Carta a Francisco Escobar,em 13 de junho de 1906.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,p.
305.
258
Carta a Firm o D utra,em 7 de julho de 1906.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,p.307.

123
Além disto ireicom pletar as m inhas observações,ainda falhas,sobre a
Am azônia” .259

A resolutacontrariedadedo pai,contudo,dem oveu Euclidesdaidéia


de prosseguir com a intenção de viajar novam ente à A m azônia. A
possibilidade de vir a participar da m issão que dem arcaria as fronteiras
com a Venezuela -pretensão que não se concretizou -tam bém m otivou
sua desistê ncia260,oficializada em setem bro.N este m esm o m ê s inicia a
redação deU m ParaísoPerdido,conform esalientaem cartaaFirm o D utra.261
Continua,assim ,suas atividades regulares no M inistério,com o adido do
Barão do Rio Branco.

É ao longo desseano de1906,m arcado porincertezasprofissionais,


que Euclides escreve Peru versusBolívia.O litígio de fronteiras entre esses
doispaísesfora subm etido à arbitragem do presidente argentino.O Peru,
irresignado com o Tratado de Petrópolis,postulava todo o território do
Acreeo restabelecim ento dasfronteirasoriginalm enteprevistasno Tratado
de Santo Ildefonso,de 1777.O laudo arbitrala ser em itido em Buenos
Airespoderia,nessepasso,atingirfortem enteasfronteirasbrasileiras,um a
vez que o Peru pregava que sua fronteira com o Brasildeveria ser dada
pelalinham édiaentreosriosM adeiraeJavari,o queaum entariasuaextensão
territorial.A preocupação de Euclides era a de apresentar argum entos
favoráveis à posição boliviana,resguardando,dessa m aneira,os efeitos
decorrentes do Tratado de Petrópolis,que concretizara a aquisição,pelo
Brasil,do território do Acre.

Euclides principia a obra observando que o território em disputa


“envolve a m aior superfície territorialque ainda se discutiu entre dois
Estados” .262 A áreatotal,segundo cálculosefetuadospelo próprio escritor,
atingiaos720.000 quilôm etros,o quecorresponderiaavinteecinco Bélgicas,
com o faz questão de salientar.263 A controvérsia entre Peru e Bolívia não

259
Carta a M anoelRodriguesPim enta da Cunha,em 24 de julho de 1906.In:Correspondê ncia deEuclides
da Cunha,cit.,p.310.
260
Ventura,Roberto.RetratointerrompidodeEuclidesda Cunha,cit.,p.245.
261
CartaaFirm o D utra,em 30 de setem bro de1906.In:Correspondê nciadeEuclidesdaCunha,cit.,p.314.
262
Cunha,Euclidesda.Peru versusBolívia.In:Obra Completa,v.1,cit.,p.811.
263
Ibidem,p.812.

124
poderia servista com o sendo apenas um a desinteligê ncia acerca da linha
lim ítrofe entre osdoispaíses.Asdim ensõesda área em disputa indicavam
queo processo dearbitragem em curso em BuenosAirespoderiavulnerar
interessesde outrospaísesdo continente.

A intenção do governo do Peru em restauraraslinhasdem arcatórias


previstasno Tratado deSanto Ildefonso,de1777,im portava,em verdade,
num a tentativa de restaurar o V ice-Reinado do Peru. O sucesso da
pretensão significaria o revigoram ento de docum entos reais que
rem ontavam ao período colonial.Euclides im pugna a validade desses
docum entos,am parando-se justam ente no paradoxo de o Peru invocar
textoslegaisque repudiara ao proclam arsua independê ncia da Espanha.
N ão caberia,porestarazão,atentativadelastrearsuapretensão em cédulas
reais,ordenanças de intendentes ou na “caótica” Recopilación deLeyesde
Indias:

“(...)éevidentequeestascaducas,enão raro contraditórias,resoluções


do m ais retrógrado im perialism o da história,retardatárias de séculos,no
fixarem as raias m eram ente judiciárias,ou adm inistrativas,das parcelas
dosVice-reinadosdo Peru eBuenosAires,contravirão,em m uitospontos,
aoslim itespolíticosdosdoisEstadosconstituídosm aistarde com o m ais
ruidoso repúdio das antigasinstituições que os vitim avam ” .264

O escritorrecorre,deinício,aargum entosjurídicos.O bservaque o


Tratado de Santo Ildefonso,e as cédulas reais que a ele se vinculavam ,
careciam delegitim idadeà luz dosprincípiosdeD ireito Internacional,por
duasrazões fundam entais.A prim eira,já m encionada,decorre do fato de
que tanto o Peru com o a Bolívia tornaram -se repúblicas independentes,
fazendo tábula rasa do ordenam ento jurídico que lhes fora im posto pela
potê ncia colonial.A segunda razão tornaria m aispatente a im propriedade
do pleito peruano:os doispaísesvizinhos,no exercício de sua soberania,
firm aram tratadosde fronteira com o Brasilao longo do século X IX ,não
cabendo,nessesentido,ainvocação do Tratado de Santo Ildefonso contra
o que fora pactuado pelosprópriosgovernosdasnaçõeslitigantes.Tendo
o Peru firm ado seuslim itescom o Brasilem 1851,e a Bolívia em 1867,o
debate sobre docum entos legais expedidos ao longo do período colonial

264
Ibidem,p.813.

125
representaria,de acordo com Euclides,um “grande salto m ortalde cem
anos,flagrantem ente violadorde toda a continuidade histórica” .265

A circunstâ ncia de o Peru insistirna dem arcação de fronteirasà luz


do Tratado de Santo Ildefonso leva Euclidesa observarque o governo do
país vizinho decidira abandonar,sem m ais,“os com prom issos de sua
existê ncia autônom a” ,inclusive “abdicando a própria altitude política” .
D aíreferir-se ao Peru,de form a irônica,com o “República sonhadora do
Pacífico” .266

Euclides dem onstra a profundidade de seu conhecim ento sobre a


questão ao articular,ainda,outra tese jurídica original:a de que o Tratado
de Santo Ildefonso constituiria apenasum acordo prelim inar,que deveria
sercom plem entado porum verdadeiro Tratado de Lim ites,inclusive com
a constituição de com issões representativas dos reinos da Espanha e
Portugal.Com o apenas os portugueses teriam designado um a com issão
para percorrer a área a serdem arcada,os objetivos do Tratado de Santo
Ildefonso não puderam se concretizar.267 A conclusão foiextraída de um
exam e acurado dos textos legais pertinentes,especialm ente dos pouco
conhecidos “Artigos Separados” que com pletavam o tratado.D a análise
desses artigos Euclides pôde fundam entar sua tese de que o Tratado de
Santo Ildefonso consubstanciavatão-som enteum aconvenção preparatória
para a form ação ulteriorde outrostrê stratados:de aliança,de com ércio e
de lim ites.

Resgatando a m em óriahistórica relativaà form ação dosTratados


de M adrie Santo Ildefonso,firm ados ainda pelas coroas de Espanha e
Portugal,Euclides observa que os próprios negociadores dos acordos
reconheciam que a linha divisória neles prevista era desconhecida à
época,não tendo sido sequer percorrida por representantes dos dois
reinos.Tratava-se,assim ,de “terrenos ignotos” 268,de um a “teratologia
político-geográfica” 269, insuscetível de gerar direitos para o governo
peruano.

265
Ibidem.
266
Ibidem,p.814.
267
Ibidem,p.819-820.
268
Ibidem,p.818.

126
Aforaosargum entospropriam entejurídicos,Euclidesnão deixade
se reportar à s “características da raça” que diferenciavam a colonização
portuguesa da espanhola.Assim ,os lim ites previstos originalm ente no
Tratado de Tordesilhas e de M adrisucum biram à ação desbravadora dos
brasileiros,e de seu tipo m ais representativo:o bandeirante.Procedendo
ao contraste,sublinha que enquanto a “som bria legislação castelhana
enclausurava os colonos no círculo intransponíveldos distritos,sob a
disciplina dos corregedores,vedando-lhes novos descobrim entos,ou
entradas” ,osportugueses“avançavam m illéguaspelo Am azonasacim a,e
nas bandas do sulos nossos extraordinários m estiços sertanejos iam do
Iguaçu à sextrem asdo M ato G rosso,perlongando o valo tortuoso elongo
do rio Paraguai” .270

A ocupação de vastos territórios pelos portugueses consolidava,


assim ,“o triunfo deum araçasobre outra” .271 D e um lado,aregressão dos
dom ínios espanhóis,incapazes de ocuparefetivam ente os territórios sob
sua jurisdição,e,de outro,a vigorosa ação expansionista dosportugueses,
dando novoscontornosà geopolítica da Am érica do Sul.272

Euclides reitera,ainda,que o governo peruano já havia celebrado


com o Brasiloutro tratado de lim ites,em 1851,o qual,além de não fazer
referê ncia à convenção de 1777,atestaria a absoluta invalidade das linhas
traçadas em Santo Ildefonso.Esse docum ento reconhecia explicitam ente
que a divisa entre Brasile Peru seria estabelecida apenas pelo curso do
Javari,sem qualqueralusão ao rio M adeira.273

Após contestar as pretensões peruanas de revalidar o Tratado de


Santo Ildefonso,Euclidespassaadiscorrerespecificam ente sobre o litígio
entrePeru eBolívia,subm etido à arbitragem do presidenteargentino.Com o
já assinalado,a resolução do conflito de fronteiraspoderia afetaro Brasil,
porquanto o Peru pleiteava, dentre outros territórios, a área que
com preendiao território do Acre.Tem ia-se,porconseguinte,queo Tratado

269
Ibidem,p.820.
270
Ibidem,p.815.
271
Ibidem,p.816.
272
Ibidem.
273
Ibidem,p.821-822.

127
dePetrópolisviesseaserim pugnado no caso deum laudo arbitralfavorável
ao Peru.O s argum entos m anejados por Euclides na defesa da posição
boliviana am param -se na m inuciosa análise de docum entos históricos e
jurídicosrelativosà questão.D einício,ponderaqueascolôniasespanholas
foram divididas pela corte em audiê ncias e provincias mayores.N o que
concerne ao Vice-Reinado do Peru,surgiram duas audiê ncias:a de Lim a,
hojePeru,eadeCharcas,abarcando o território hojepertencenteà Bolívia.

O estudo da delim itação entre as audiê ncias de Lim a e de Charcas


m ostrava-se fundam entalpara a solução da controvérsia.Para Euclides,a
audiênciadeCharcasdetinha,pordeterm inação daprópriacoroaespanhola,
o controledaáreaqueposteriorm enteviriaasero Acre,além dosterritórios
adjacentes,à épocaconhecidoscom o provinciasnodescubiertas.A secom provar
o dom ínio da audiê ncia de Charcas sobre as provinciasno descubiertas-que
abarcavam ,cum pre ressaltar,o Acre -,não restaria dúvida sobre o direito
da Bolívia à área pleiteada pelo Peru.

Segundo E uclides, o surgim ento da audiê ncia de Charcas,


posteriorm ente Bolívia,sedeviafundam entalm enteafatoresgeográficos,já
que a cordilheira dos Andes estabelecia um claro lim ite naturalem face da
audiê nciadeLim a.A distâ nciaqueaseparavado litoralcontribuiu inclusive
paraqueaBolíviadesenvolvessecaracterísticaspróprias,diferindo em diversos
aspectosdo Peru:“Falam porsim esm ososacontecim entos,no revelarem
que a Bolívia foi,entre todas as repúblicas espanholas,a prim eira que se
delineou em um passado longínquo,rodeando-se,desdeo princípio,com os
m aisnotáveiselem entosdeum aorganização poderosa” .274 Euclidesassinala
queacriação daaudiênciadeCharcassubordinou-seà s“exigê nciasdo m eio” :
“O s seus m otivos resultaram de fatores físicos,tangíveis:a distâ ncia,e os
sérios em baraços de com unicações entre a sede litorâ nea do governo,em
Lim a,e asparagensrem otas,no levante.Entre estase aquela,aprum am -se
osparedõesdascordilheiras,ásperos,abruptos,não raro im praticáveis(...)” .
Conclui,assim ,assinalando que “a Bolívia é um a criação dosAndes” .275

A alusão aosfatoresgeográficosnão exclui,porém ,a circunstâ ncia


dequeaaudiê nciadeCharcasfoicriadatam bém com o propósito defazer

274
Ibidem,p.830-831.
275
Ibidem,p.831.

128
frente à expansão portuguesa.A possibilidade de um ainvasão portuguesa
fez com que o território boliviano se apresentasse com o um a frente de
detenção à ação de Portugal: “A s forças, que no litoral peruano se
dispersavam e dispartiam em tum ultos e revoltas intestinas, ali se
com punham num m ovim ento gerale instintivo de defesa” .276

A análise da cédula realque deu origem à audiê ncia de Charcas,em


1573,dem onstra,segundo Euclides,que osseus lim itescom preendem as
cham adasprovinciasnodescubiertas,situadasnoslim itesdosreinosdePortugal
e Espanha.N o território dessas províncias situam -se,inclusive,as bacias
do Juruáedo Purus,foco dacontrovérsiaenvolvendo osgovernosbrasileiro
eperuano.A inferê nciaquesefazéadequeaBolívia– antigaaudiê nciade
Charcas – detinha títulos jurídicos sobre a região dem andada pelo Peru,
m ostrando-se válida,inclusive,a negociação com o Brasilem torno do
território do Acre.O sdireitosdaaudiê nciadeCharcasforam convalidados
inclusive pelo Tratado de M adrid,celebrado em 1750,que m anteve a
subdivisão em audiê ncias.

O exam e dos docum entos da coroa espanhola e dos tratados de


lim itesentre Portugale Espanha atestaria,porconseguinte,que oslim ites
entreasduascoroas,naregião em litígio,eradado pelaprovínciadeCharcas,
hoje Bolívia.A audiê ncia de Lim anão poderiapostular,em conseqüê ncia,
nenhum direito territorialsobre o território do Acre e adjacê ncias.Sua
tentativa de recuperaroslim ites previstos no Tratado de Santo Ildefonso
carecia de fundam entos jurídicos ao não levarem consideração a divisão
do Vice-Reinado do Peru em audiê nciase o fato da audiê ncia de Charcas
deteraresponsabilidadeadm inistrativasobreaáreaque à épocaestavaem
litígio.

Euclides destacou,adem ais,que a audiê ncia de Charcas passara a


gozarprogressivam ente de m aiorautonom ia,em razão da distâ ncia que a
separava de Lim a e de Buenos Aires,sedes dos Vice-Reinados do Peru e
do Prata,respectivam ente.A m etrópole,ao outorgarao governo deCharcas
m aiores poderes de decisão, “desfechava as derradeiras pancadas na
influê ncia com balida do vice-reinado peruano” .277 D escabia,portanto,o

276
Ibidem,p.833.
277
Ibidem,p.849.

129
objetivo do governo do Peru de recuperar o dom ínio sobre as áreas em
disputa,sob o argum ento deque osterritóriosestariam sujeitos,duranteo
período colonial,à jurisdição da audiê ncia de Lim a.

Peru versusBolívia traz,ainda,consideraçõessobre o princípio do uti


possidetisjuris,ou “direito de posse” .M uito em bora a audiê ncia de Charcas
não tivesselogrado estabelecerdom ínio efetivo sobreascham adasprovincias
nodescubiertas,onde se incluíam asbaciasdo Puruse do Juruá,é certo que
o direito deocupá-laserado governo local,enão daaudiê nciadeLim a.O s
docum entos da coroa espanhola dem onstrariam que a área disputada era
partedaaudiê nciadeCharcas,sendo seu,portanto,o direito deposse:“As
linhas anteriores eram indispensáveis.D em onstram ,à saciedade,a posse
boliviana, virtual m as inalienável, sobre as paragens ignotas que lhe
dem oravam ao norte;e,ao m esm o passo,o afastam ento da influê ncia
peruana,sobejas vezes expresso nos m ais solenes docum entos oriundos
da m etrópole” .278

Por fim ,Euclides invoca os term os do tratado de lim ites firm ado
entre Brasile Peru em 1851,que supera o Tratado de Santo Ildefonso e
recusa a linha m édia M adeira-Javaricom o sendo a linha fronteiriça entre
osdoispaíses.Ao contrário,segundo osterm osdo tratado,apenaso Javari
seria o lim ite naturalentre Brasile Peru.279

EuclidesfinalizaPeruversusBolíviaafirm ando queaobraéum adefesa


do D ireito,enão um asim plesdefesadosdireitosdaBolívia.280 A publicação
do livro trouxe expectativas para Euclides,que esperava um a m elhor
recepção junto ao público brasileiro.A obra foirapidam ente traduzida
para o espanhol pelo representante da Bolívia junto ao Tribunal de
Arbitragem em Buenos Aires,Eleodoro Villazón,ganhando o título de
“La cuestión de lim ites entre Bolivia y elPeru” .A tradução teve larga
distribuição em Buenos Aires,m as no Brasilatingiu círculos restritos,a
despeito doselogiosde intelectuaisdo porte de José Veríssim o e O liveira
Lim a.281 Em correspondê nciaaAlberto Rangel,Euclidesrefere-seà suposta

278
Ibidem,p.864.
279
Ibidem,p.890-891.
280
Ibidem,p.892.
281
Tocantins,Leandro,op.cit.,p.226.

130
indiferença com que seu livro foirecebido no Brasil:“Espero dentro de
poucosdias-traduzido para o espanhol,em BuenosAires,porEleodoro
Villazon,m inistro boliviano,-o m eu “Peru versusBolívia” .Com o vê s,o
estrangeiro entendeu que deve aproveitaraquele trabalho,-recebido com
indiferença pelospatrícios...” .282

Todavia, a publicação da obra em espanhol - bem com o a


sensibilidadedeseu tem a,queenvolviainteressesbrasileiroseargentinos-
colaborou paraenvolverEuclidesem polê m icacom o Chancelerargentino
Estanislau Zeballos,que viria a insinuarque o escritorbrasileiro teria lhe
fornecido inform açõesrelevantessobre o conflito entre Peru e Bolívia.

5.4 – A CON TROV ÉRSIA COM ZEBA LLOS

As relações entre o Barão do Rio Branco e o Chancelerargentino


Estanislau Zeballosviviam um m om ento crítico em 1908.Zeballos,político
nacionalista e defensor de um a política externa agressiva,sustentava a
cam panhaem prolde um a corridaarm am entistade seu paíscom o Brasil.
Segundo Clodoaldo Bueno,Zeballos era um adm irador da M achtPolitik
bism arkiana,e,“a exem plo do acontecia na Europa,apoiava alianças e
negociações secretas” .283 Adem ais,foifundador do periódico La Prensa,
expoentedo antibrasileirism o naim prensaportenha:“Zeballoseo LaPrensa
faziam parte de um a corrente “nacionalista liberal” ,cujo ideário,segundo
Ferrari,abrangia a defesa do território,a com pra de arm am entos e o
revisionism o histórico,entre outrospontos” .284

A nom eação de Zeballos para a chancelaria argentina,em 1906,


m arcou um a nova fase nas relações entre Brasile Argentina,tendo sido
acentuadaaanim osidadeentreosdoispaísesem função dapolíticaagressiva
levada adiante pelo governo do país vizinho.A perda de apoio interno,
porém ,acarretou asaídadeZeballosdo m inistério em 1908,em decorrê ncia
das controvérsias em torno de sua política para o Brasil.D eixando o
governo,trazapúblico um acartaao presidenteargentino,FigueroaAlcorta,

282
Carta a Alberto Rangel,em 20 de setem bro de 1908.In:Correspondê ncia deEuclidesda Cunha,cit.,p.
377.
283
Bueno,Clodoaldo,op.cit.,p.254.
284
Ibidem.

131
em queserefereaum docum ento secreto,“provainstrum ental” dosperigos
quesofreriaaRepúblicaArgentina.Essedocum ento secreto seriaum texto
de Rio Branco contra a Argentina285.Pressionado a tornar público o
conteúdo do docum ento em questão,Zeballospublicaartigo em setem bro
de 1908 em que transcreve um telegram a que teria sido enviado porRio
Branco para as representações diplom áticas do Brasilem Buenos Aires,
Assunção,M ontevidéu,LaPaz,Santiago,Lim aeW ashington.O telegram a
determ inaria à s legações brasileiras que em preendessem um a cam panha
contraa Argentina,divulgando que sua política externa visava à conquista
dospaísesm aisfracosda Am érica do Sul.286

Rio Branco nega,de im ediato,a veracidade das afirm ações de


Zeballos.Este,então,desafiao Chancelerbrasileiro apublicaro telegram a
núm ero 9,indicando,inclusive,assenhasdo docum ento.Rio Branco solicita
aos governos da Argentina e do Chile que forneçam cópias autê nticas e
oficiaisdo telegram acifrado nº9.Averiguadaaexistê nciaeo conteúdo do
telegram a,Rio Branco faz publicarno D iárioOficialde 15 de novem bro de
1908 que o docum ento existe,e que Zeballos utilizou-se de um a falsa
tradução do texto.Traz à tona,então,o conteúdo verdadeiro,do qualnão
consta nenhum a referê ncia à suposta cam panha difam atória contra a
Argentina.287

Euclidesviu-se,desúbito,envolvido no episódio do telegram anº9,


anteasalusõesdeZeballosà alegadaobtenção,porm eio decorrespondê ncia
trocada com o escritorbrasileiro,de inform ações secretas da chancelaria
brasileira.A im prensa da época dava conta de que Zeballos afirm ara ter
conhecim ento daobraPeru versusBolívia,escritaporEuclidesem defesada
posição boliviana.A Argentina tendia a ver a publicação de Peru versus
Bolívia com o um exem plo da interferê ncia de Rio Branco nosassuntosde
paísesvizinhos,alegando queadisputaestavasubm etidaapenasà arbitragem
do governo de BuenosAirese que o Brasilnão era parte da controvérsia.
Zeballosteriaescrito aEuclidesbuscando m aisinform açõessobreo litígio,
tendo supostam enteobtido um ainconfidê nciado escritorbrasileiro:“Esse
livro [Peru versusBolívia]foi-m e dado porum m inistro brasileiro;escreviao

285
Lins,Álvaro,op.cit.,p.383.
286
Ibidem,p.384.
287
Ibidem,pp.385-389.

132
autor propositadam ente para m e docum entar,e tenho em m eu poder a
resposta à m inha carta” .288 A suposta carta de Euclides daria a Zeballos,
segundo o próprio ex-Chancelerargentino,preciosasinform açõessobre a
políticaexternabrasileira,o quepoderiaconfigurarcrim edetraição.Euclides
chegou a com parar-se, naquele m om ento, com o capitão D reyfus,
injustam enteacusado detraição naFrança,cujo caso tornou-secélebreno
início do século XX .

Em novem bro de1908,Euclidesenviacorrespondê nciaaZeballos:


“Surpreendi-m e vendo ontem as nossas relações exclusivam ente
intelectuais envolvidas na cam panha solitária que V.Exa.está travando
com im aginários antagonistas,em flagrante contraste com a harm onia
nacionalbrasileiraeargentina” .289 Passa,então,aaludirà correspondê ncia
citada porZeballos:“Referindo-se V.Exa.à correspondê ncia particular
que hoje confessahaverpropositadam ente provocado paradocum entar-
se,apresso-m e em declararque não receio tais docum entos.D esejando
vê -los explícitos,autorizo o Jornaldo Commercio a publicar as cartas que
m e m andou” .290 Assim ,pede a Zeballos que tam bém faça publicar a
correspondê ncia que recebeu.

AsduascartasqueEuclidesrecebeu deZeballos,publicadasno Jornal


do Commercio, trazem apenas elogios e agradecim entos de praxe pelo
recebim ento dos volum es de Os Sertões e Castro A lves e seu tempo. As
correspondê ncias não fazem alusão ao livro Peru versusBolívia.291 Por sua
vez,arespostadeZeballosao pedido depublicação dascartasquerecebeu
deEuclidescingiu-seaum sucinto telegram a:“Lam ento m olestia.Contesto
porcorreo.Zeballos” .Euclides não recebeu,todavia,nenhum a resposta
porvia postal.292

Em carta a seu cunhado O taviano da Costa Vieira,Euclides faz


nova referê nciaao episódio:“D evesterlido no Jornal,o terrívelem brulho
argentino,enredado pela alm a danada do Zeballos,o grande cachorrão

288
Rabelo,Sílvio,op.cit.,p.414.
289
Carta aEstanislau Zeballos,em novem bro de 1908.In:Correspondê nciadeEuclidesdaCunha,cit.,p.387.
290
Ibidem.
291
Rabelo,Sílvio,op.cit.,p.415.
292
Ibidem,p.415-416.

133
quetentou enlear-m enassuastraficâ ncias,ou transform ar-m eem Capitão
D reyfus do M inistério do Exterior!...D ei-lhe,com o vistes,a pancada
bem no alto da cuia,e o bruto (por um telegram a que m e m andou,
lam entoso) gem eu deveras!” .293 A controvérsia foi dirim ida com a
publicação da versão oficialdo telegram a núm ero 9 e com o silê ncio de
Zeballosacercado pedido depublicação dacorrespondê nciaquerecebera
de Euclides.

O Jornaldo Comércio saiu em defesa do escritor,registrando que a


im pressão de Peru versusBolívia foicusteada pelo próprio jornal,e não por
Rio Branco ou pelo Itam araty:

“N o artigo de anteontem , o Sr. Zeballos, entre outras coisas


pitorescas,pela obsessão que revela de sua parte,sustenta que o Sr.Rio
Branco mandou imprimirum livroa favordaspretensõesbrasileiras(...).O livro
que o Sr.Zeballos se refere,com o tendo sido m andado im prim ir por
Rio Branco,é evidentem ente o Peru versusBolívia,do nosso colaborador
Euclides da Cunha.Este trabalho pagam o-lo com o nosso dinheiro,
conform e recibo em nosso poder (...) O Sr.Zeballos não é capaz de
provarque o Peru versusBolívia lhe tivesse sido entregue porum ministro
brasileiro.A obra do Sr.Euclides da Cunha que o Sr.Assis lhe entregou
foioutra” .294

Com o visto,Zeballos asseverara que Peru versus Bolívia lhe teria


sido entregue por um “m inistro brasileiro” .Tratava-se de Assis Brasil,
m inistro da legação brasileira em Buenos Aires.Contudo,o diplom ata
efetuara a entrega de OsSertões.O livro Peru versusBolívia foienviado a
Zeballos pelo próprio Euclides,não tendo o escritor se utilizado,para
tanto,dos canais diplom áticos do Itam araty.

A controvérsia com Zeballos ocorreu nos últim os m om entos do


trabalho de Euclides na chancelaria brasileira.Em m enos de um ano ele
abandonaria a instituição,apóssua nom eação para a cadeira de Lógica do
Colégio Pedro II.

293
Carta a O taviano da Costa Vieira,em 5 de novem bro de 1908.In:Correspondê ncia deEuclidesda
Cunha,cit.,p.388.
294
Tocantins,Leandro,op.cit.,p.231.

134
5.5 – O TRA BA LH O D E A D ID O E OS D ILEM A S D E U M M EM BRO DA
IN TELLIG EN TSIA D E CLA SSE M ÉD IA

Apóso térm ino de sua m issão na Am azônia,Euclidesprossegue


suasatividadesno Itam araty com o adido do Barão do Rio Branco.Já se
assinalou,anteriorm ente,que o ano de 1906 é m arcado porincertezas.
O trabalho de cartógrafo não o satisfaz,e o fato de não ocupar um
posto estávelfaz com que tenha um a visão cada vez m ais crítica da
instituição.

Segundo Sílvio Rabelo,“asuaposição de adido eraapiorsituação


para um hom em do tem peram ento de Euclides – de um a instabilidade
e de um a insegurança que ele procurava justificar com os rígidos
princípiosde sua ética” .295 D e início,dedicou-se à elaboração de m apas
com vistas à negociação de lim ites com os países vizinhos,utilizando
os docum entos e tratados da biblioteca do Itam araty.Euclides ainda
acreditava na possibilidade de vir a obter um a colocação m elhor no
m inistério:“D este m odo, esperava Euclides que m ais cedo ou m ais
tarde a sua colaboração junto a Rio Branco lhe valesse com o credencial
para um cargo de m elhor representação,talvez m esm o um a com issão
no estrangeiro” .296

Asangústiasde Euclidesreiteram a fragilidade da relação existente


entre a intelligentsia de classe m édia e o poder.O fato de o Estado se
apresentarcom o principalfontedeestabilidadefinanceiraparaascam adas
m édiasconferia ao intelectualum a am bivalê ncia já discutida no segm ento
inicialdo presente trabalho:em bora crítico do regim e,Euclides vê -se na
dependê ncia das benesses ou de favores de personalidades do governo.
Evidencia-se,de m odo exacerbado no Brasilda Prim eira República,um a
característica com um a todo cam po intelectual:nele os escritores,com o
registra Bourdieu,constituem a fração dom inada da classe dom inante.As
afinidades com Rio Branco,decorrentes da circunstâ ncia de partilharem
idéias e projetos,não elide o fato de que os intelectuais de classe m édia
eram ,na m edida do possível,cooptados pelo poder político com o fonte
de legitim ação do regim e.

295
Rabelo,Sílvio,op.cit.,p.408.
296
Ibidem.

135
A referê nciaà debilidadedaintelligentsiadeclassem édiaesuarelação
am bíguacom o poderpodeexplicarasdificuldadesenfrentadasporEuclides
na m anutenção de sua posição no aparelho de Estado.

Apósdesistirdo cargo defiscaldasobrasdaestradadeferro M adeira-


M am oré, em razão sobretudo da oposição de seu pai, vê -se
m om entaneam ente sem opções no m inistério.N o finalde 1906,escreve
ao am igo Francisco de Escobar.Assinala que “continuo ainda adido à
Secretariado Exterior,nam inhaausteraatitude,decartógrafo” .Em seguida,
desabafa:“Isto dá-m e um traço antigo m agnífico – com a vantagem de
isolar-m e, refugindo ao contágio perigosíssim o de um m eio
irrem ediavelm ente perdido.Vê com o descam bo a todo o m om ento para
um desalentado pessim ism o ?...” .297

M esm o apósapublicação dePeruversusBolíviaasituação deEuclides


não sem odificou.A despeito de suaboarelação com Rio Branco,edesua
adm iração pelo Chanceler, diversas vezes m anifestada, continuaria a
desenvolverapenas atividades de cartógrafo.Sílvio Rabelo destaca que o
escritorchegou a am bicionarum posto na legação brasileira no Paraguai,
pretensão que acabou se frustrando.298 Alm ejou,tam bém sem sucesso,
participarda com issão brasileira que fixaria oslim itescom a Venezuela.299

Adem ais da decepção com sua colocação,Euclides tam bém se


indispunha com o am biente do Itam araty:“Porfim ,dera igualm ente para
detestaro próprio am biente do Itam aratícom seussnobsda carreira,o seu
rigorism o protocolare a sua elegâ ncia de transatlâ ntico.Junto dessa gente
superiorm ente instalada,ele se sentia hum ilhado.Faltava-lhe,por outro
lado,a suficiente plasticidade para tolerar a convivê ncia dos m inistros e
secretáriosde legação,quase todosunssofisticados” .300

Sílvio Rabelo observa,ainda,que a natureza da colaboração de


Euclides com o Itam araty era “hum ilhante” :“H um ilhante era a natureza

297
Cartaa Francisco de Escobar,em 26 de dezem bro de 1906.In:Correspondê nciadeEuclidesdaCunha,
cit.,p.321.
298
Rabelo,Sílvio,op.cit.,p.417.
299
Venâ ncio Filho,Francisco,RioBrancoeEuclidesda Cunha,cit.,p.68.
300
Rabelo,Sílvio,op.cit.,p.418.

136
dessa colaboração:um cartógrafo pouco diferia de um desenhista.E o
pioré que ninguém estranhavaadesproporção entreo que poderiarender
com o engenheiro ou com o intelectuale o que realizava com o sim ples
desenhista de um M inistério que não prim ava pela eficiê ncia ou pela
capacidade dosseusfuncionários” .301

M aisum a vez em erge adificuldade darelação entre aintelligentsiade


classe m édia e os círculos do poder.Essa relação ora se distinguia pelo
distanciam ento crítico, ora pela proxim idade. N o caso específico de
Euclides,a adm iração m anifesta pelo Chanceler não era m itigada pelo
desconforto desuaposição no m inistério.Assim ,aeventualcom unhão de
idéias que m antinham , derivada do com partilham ento das m esm as
preocupações com os destinos do Brasil,parecia não se quebrarcom os
problem as burocráticos enfrentados porEuclides.Rabelo apresenta um a
hipóteseparaesclarecerarelação deEuclidescom o o Barão do Rio Branco.
N ão obstantearelação derespeito m útuo,o escritornuncachegou aexpor
parao Chancelersuainsatisfação com aposição decartógrafo.ParaRabelo,
esse fato dem onstra a existê ncia de um “sentim ento de anulação” que o
dom inavajunto aRio Branco.Esse“sentim ento deanulação” evidencia-se
em cartadestinadaao cunhado O taviano daCostaVieira.Euclidesassevera
queaindanão haviaabandonado o m inistério porduasrazões:“Aindanão
saídisto,porduasrazõesúnicas:1º -porque o Barão continua a tratar-m e
com a m esm a sim patia,e falta-m e â nim o para (pela quarta vez!)observar-
lhe a inconveniê ncia desta posição;2º -porque se eu tom aressa resolução
decisiva e deixara secretaria,não faltará quem reprove m aisesse atestado
deinconstâ nciaou faltadepersistê ncia” .Pede,então,um conselho:“D ize-
m ecom franqueza:devereicontinuarnum aposição,não previstaaindaem
leiem bora o m inistro até hoje m e retivesse despertando-m e a esperança
do cargo que se criaria ? O u deverei,inflexivelm ente,vencendo todas as
solicitações,deixá-la?” .302

Em cartaaO liveiraLim a,um dosgrandesexpoentesdadiplom acia


brasileira durante a Prim eira República,Euclides registra:“Continuo na
Secretaria do Exterior – na m esm a situação de expectativa;e por vezes

301
Ibidem,p.421.
302
Carta a O taviano da Costa Vieira,em 15 de novem bro de 1908.In:Correspondê ncia deEuclidesda
Cunha,cit.,p.393-394.

137
torturado dedesconfianças,própriasdestaíndoledecaboclo” .Em seguida,
relem bra o caso com Zeballos,episódio que dem onstraria “osperigosda
m inha posição de Com issário in-partibus, condenado à prisão num a
Secretaria” .Reitera,adem ais,sua insatisfação com a posição ocupada no
m inistério:

“Lá se vão doisanosde expectativa,e m aravilha-m e a paciê ncia com


que os tenho suportado,em bora ela se explique pela própria oposição
m anifestadapelo Barão do Rio Branco à sm inhastentativasdeseguirnovo
rum o.N ão m earrependo disto.M as,desgraçadam ente,areform aplaneada,
na Secretaria, que deveria criar-m e um lugar, ainda não se fez, e
provavelm ente não se fará. (...) Julgo, porém – e digo-lhe isto
reservadam ente – que não poderei continuar a ser vencido pelas
com odidadesdesta situação até além do fim deste ano” .303

Euclides,porém ,continuariaatrabalharno Itam araty,abandonando


suaposição apenasdepoisdeassum iracadeiradeLógicado Colégio Pedro
II,em julho de 1909.

O s anos de trabalho no Itam araty trouxeram ,portanto,diversas


frustrações a Euclides.Além de não ter logrado ingressar na carreira
diplom ática,não obteve um cargo estávelna burocracia do m inistério,
atuando durantetodo o período com o adido de Rio Branco.ParaRoberto
Ventura,asam biçõesdeEuclidesteriam enfrentado aoposição do próprio
Chanceler:“Trabalhou no Itam araty de 1904 a 1909,com o chefe de
expedição e depois com o cartógrafo,m as já perdera o sonho de entrar
paraa carreiradiplom ática,e até aesperança de obtercargo estável,jáque
o Barão do Rio Branco,m inistro das Relações Exteriores,não chegou a
apoiarnenhum a dessaspretensões” .304

G ilberto Freyre sugere um a explicação m enosconvencionalpara a


obstrução de Rio Branco aos objetivos de Euclides.Segundo Freyre,Rio
Branco procurava cercar-se de hom ens bem apresentados,o que erigiria
um obstáculo à ascensão de Euclides,que pouco cuidava da aparê ncia:
“Essa sua preocupação estendia-se à figura e à apresentação doshom ens,

303
CartaaO liveiraLim a,em 13 de novem bro de1908.In:Correspondê nciadeEuclidesdaCunha,cit.,p.392.
304
Ventura,Roberto.Retrato interrompidoda vida deEuclidesda Cunha,cit.,p.254.

138
parecendo explicaro fato de nunca teraproveitado Euclydesda Cunha –
em certa época tão desejoso de irà Europa que pensou ingenuam ente em
serprofessorem Paris– (...)senão em m issõessul-am ericanas” .305

Seu trabalho com o adido cingiu-se à colaboração técnica na


determ inação de lim itescom asrepúblicasvizinhas.Suaparticipação m ais
im portantesedeu naelaboração do tratado decondom ínio daLagoaM irim
edo rio Jaguarão,nafronteiracom o U ruguai.D eoutraparte,o tratado de
lim itescom o Peru,baseado nostrabalhosdacom issão delim itespresidida
no lado brasileiro por Euclides,foifirm ado em 8 de setem bro de 1909,
logo após a m orte do escritor.A exposição de m otivos dos dois tratados
contê m diversas alusões aos relatórios e aos m apas produzidos pelo
escritor.306

D essa m aneira, os cinco anos de trabalho no Itam araty não


significaram a obtenção da tão alm ejada estabilidade.M antiveram ,ao
contrário,a preocupação de Euclides com seu rum o profissional,já que,
apósa viagem à Am azônia,deparou-se com a rotina de cartógrafo,num a
posição de estrita confiança do Barão do Rio Branco,sequerprevista em
lei.Seu caso é paradigm ático a respeito dos percalços da intelligentsia de
classe m édia em sua relação com o Estado durante a Prim eira República.

305
Freyre,G ilberto.Ordem eProgresso.4ª ed.Rio de Janeiro,Ed.Record,1990,p.CL.
306
Venâ ncio Filho,Francisco,Rio Branco eEuclidesda Cunha,cit.,p.60-61.

139
CO N CLUSÕ ES
C O N CLU SÕ ES

A passagem de E uclides da Cunha pelo Itam araty trouxe


conseqüê nciasim portantesparasuaobra.Foiem razão deseu trabalho na
chancelariaquepôdeproduzirdoislivrosim portantes:À M argem daH istória
e Peru versus Bolívia, este últim o, com o visto, escrito diretam ente em
decorrê ncia de sua atuação com o adido do Barão do Rio Branco.Cabe
assinalar,adem ais,que alguns artigos presentes no volum e Contrastes e
Confrontostravam relação direta com sua viagem à Am azônia ou com os
atritosentre Brasile Peru em torno de questõesde fronteira.
Com o seregistrou no capítulo inicialdo presentetrabalho,aposição
de Euclides no cam po intelectuale na relação com o cam po do poder
caracterizava-se pela am bivalê ncia.A intelligentsia de classe m édia era
sim ultaneam ente crítica das novas instituições e dependente dos círculos
do poder – já que sua estabilidade financeira estava ligada,no m ais das
vezes,à ocupação de um cargo no Estado.O pensam ento de Euclides
contém essa am bigüidade: um dos m ais acesos críticos da Prim eira
Repúblicatornou-separtedo círculo depensadoresligado aum adasfiguras
m aisnotóriasdo regim e,o Barão do Rio Branco.A presençadeintelectuais
no Itam aratytinhaduplafunção:ao m esm o tem po queelevavaaqualidade
dostrabalhosoficiais,legitim avao novo regim ejunto ao cam po intelectual
próprio dos escritores de classe m édia. Com o observa Bourdieu, a
intelligentsiadeclassem édia,adespeito desuaideologiareform ista,constituía,
inclusive no caso de Euclides,um a fraçãodominada da classedominante.
Além de possibilitarum a m elhorcontextualização de parte de sua
produção literária,o estudo do trabalho de Euclidesno Itam araty clarifica
aspectosim portantesde sua biografia apósa publicação de OsSertões,em
1902.Essesanos– de1904 a1909 – são pouco enfatizadosem seusestudos
biográficos,secom paradoscom o peso m aiordado aosanosdeform ação
(notadam ente a passagem pela Escola M ilitar)e o período em que esteve
envolvido na redação de OsSertões.N esses cinco anos,porém ,o escritor
desenvolveu um asériedeprojetospessoais– o caso daviagem à Am azônia
– eescreveu trê sim portanteslivros:ContrasteseConfrontos,PeruversusBolívia

143
eÀ M argem daH istória.Prosseguiu,adem ais,nacolaboração com aim prensa,
o que resultou em artigosrelevantespara o conjunto de sua obra.
A especificidade dessa produção intelectualposterior a Os Sertões
perm ite,assim ,que se singularize essescinco anosda vida de Euclides.O
m om ento de seu ingresso no Itam araty,em 1904,m arca o início de um a
novaetapa.Abandonando arotinadeengenheiro,pôdeviajarà Am azônia
e direcionar sua produção para tem as que,em bora já freqüentassem sua
produção literária,não eram dom inantes:a Am azônia,problem as de
fronteira e questões de política internacional.É nesse m om ento que se
estreita,além disso,suaredederelaçõescom o cam po intelectualpolarizado
porRio Branco.
D o ponto devistabiográfico,doisaspectosm erecem realceno exam e
do período 1904-1909:a relação de Euclidescom o Barão do Rio Branco
eaviagem à Am azônia.N o tocanteà srelaçõescom o Barão,restaclara,da
leitura da correspondê ncia pessoal de Euclides, sua adm iração pelo
Chancelerbrasileiro.EuclidesserefereaRio Branco com o um dosgrandes
personagensdesuaépoca,o único,porexem plo,capazdepreservar,pelos
canaisdiplom áticos,aintegridadeterritorialdo Brasil.O conceito de“cam po
intelectual” nos perm itiu esclarecer m elhor essa relação,já que um dos
elem entos estruturantes dessa noção,segundo Bourdieu,é o exam e da
posição de intelectuais e artistas na classe dirigente,o que se m ostra
fundam entalno caso de Euclides,pois sua relação com um a das figuras
m aisim portantesdaestruturade poder– Rio Branco – vailhe abrirnovas
perspectivasprofissionais.A viagem à Am azônia,porseu turno,ensejaráa
produção de artigosqueposteriorm entedarão origem ao segm ento inicial
do livro À M argem daH istóriaeligarão Euclidesdiretam enteaosproblem as
de lim ites em que o Brasilestava envolvido.A viagem ao Am azonas e ao
Acre e ostextosque escreveu com base em sua experiê ncia na região são
ospontos altosde sua passagem pelo Itam araty,porquanto o trabalho de
cartógrafo que desenvolveu a partir de 1906 trazia-lhe,com o confessou
renitentem ente em sua correspondê ncia a am igos,m ais dissabores que
entusiasm o.
D os ensaios am azônicos de Euclides se depreende a preocupação
com apreservação daintegridadedo território brasileiro.Tanto sob o ponto
de vista sociológico,com o sob o â ngulo dasconsideraçõesgeopolíticas,o
tem aque subjaz aostextossobre aAm azôniaé am anutenção do dom ínio
brasileiro sobrearegião.A recuperação dos“expatriados” quelátrabalham
– o seringueiro sim boliza asdifíceiscondiçõesde vida da população local

144
– e a ocupação efetiva do território,por m eio da integração física e da
criação de viasde com unicação com o resto do Brasil,são propostasque
dão contornospolíticosaosensaiosde Euclides.
Cabe notar que a leitura feita pelo escritor dos problem as da
Am azônia reveste-se de evidente atualidade.Asquestõesporele expostas
– basicam ente o abandono da região,que conduz tanto à porosidade das
fronteiras com o ao agravam ento da situação social– constituem ,ainda
hoje,ostem asbásicosde reflexão sobre a região.Seusensaiossão vistos,
poresta razão,com o textos fundadores da reflexão sociológica acerca da
Am azônia.Euclides pensou,do ponto de vista da diplom acia,os fatores
estratégicos que se relacionavam à ação do poder público na região,
acrescentando,à discussão sobre o território,a variávelsocial.Para a
diplom acia brasileira seus textos ainda oferecem novas perspectivas de
leitura.Além de sua im portâ ncia historiográfica,porretratara situação da
Am azônia no início do século X X,durante o ciclo borracha,perm ite um a
leitura renovada dos problem as de fronteiras,de integração física e de
inclusão social,enfatizando a relevâ ncia dessas trê s dim ensões para a
form ulação da política externa brasileira.
N o que concerne à sua visão da política internacional, resta
evidenciadaainfluê nciado cientificism o quepeculiarizou o seu pensam ento.
A referê ncia à s repúblicas sul-am ericanas vizinhas está carregada,por
exem plo,de equívocos resultantes de um a visão de m undo assentada no
evolucionism o.A instabilidadepolíticadessespaísespoderiaserexplicada,
segundo Euclides,a partir da m istura de raças que m arca sua form ação
social.O evolucionism o tam bém se prestaria a elucidar a confrontação
interim perialista travada porEstados U nidos e Alem anha na Am érica do
Sul.Assim ,os países m ais desenvolvidos disputariam entre sio controle
dasriquezasdenaçõesm aisfracasedesorganizadas,com o assul-am ericanas.
O instrum entaldo evolucionism o vaiser em pregado tam bém no
discurso etnográfico sobre o seringueiro.Em bora Euclides,à sem elhança
do que aconteceu com o sertanejo em OsSertões,m anifeste inicialm ente
um avisão negativado im igrante nordestino (considerado em certo trecho
de À M argem da H istória com o o “rebotalho das gentes” ),não deixa,por
outro lado,de explicitar sua adm iração pela tenacidade e vigor físico do
trabalhadordaAm azônia,queresisteà sintem périesem buscadem elhores
condições de vida.A adm iração que nutre pelo personagem convive,em
verdade, com os erros de interpretação derivados da interpretação
evolucionista de Euclides.

145
N essesentido,aaplicação dedoutrinascientíficasà análisedosm ais
diversos tem as -do seringueiro à política internacional-retira m uito da
consistê nciadealgunsdosargum entosdeEuclides,ao sim plificaraanálise
de certosfenôm enos,com o a im igração para a Am azônia e o acirram ento
do im perialism o.D o ponto devistaliterário,contudo,osestudoscontidos
em À M argem da H istória e os artigos de ContrasteseConfrontostê m grande
valor por duas razões basilares:representam um docum ento im portante
deeventoshistóricosquem arcaram o início daRepúblicaeconsubstanciam
um exem plo da originalidade do trabalho de Euclides,voltado sobretudo
para questõesrelativasà constituição da nacionalidade.
D os ensaios am azônicos e dos textos sobre política internacional
analisados no presente trabalho resta evidenciada,portanto,a relevâ ncia
dos trabalhos do autorde OsSertõespara a interpretação da Am azônia e
para um a com preensão geraldos problem as enfrentados pela Prim eira
República.O processo deconsolidação dasfronteirasnacionaisearelação
do Brasilcom ospaísessul-am ericanose com potê nciascom o osEstados
U nidos e a Alem anha são tem as que se fazem presentes nos ensaios e
artigos de Euclides,inserindo-se no quadro de sua “literatura m ilitante” .
Testem unha de seu tem po,a obra de Euclides é um instrum ento de valia
para o entendim ento dosproblem asque se apresentavam para o governo
republicano no lim iardo século XX .

146
B IBLIO G RAFIA

Obra completa deEuclidesda Cunha


CU N H A,Euclides.Obra Completa,2 vols.Rio de Janeiro,Editora N ova
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TextosdeEuclidesda Cunha
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b)Artigos
“A Pátria e a D inastia” .In:Obra Completa,v.1,pp.595-597.
“Atose Palavras” .In:Obra Completa,v.1,cit.,pp.603-615.
“O BrasilM ental” .In:Obra Completa,v.1,cit.,pp.441-456.
“O Inferno Verde” ,prefácio ao livro deAlberto Rangel.In:ObraCompleta,
v.1,cit.,pp.492-499.
“O sTrabalhosdaCom issão BrasileiradeReconhecim ento do Alto Purus” .
Entrevista ao Jornaldo Com m ercio em 29 de O utubro de 1905.In:Obra
Completa,v.1,pp.553-558.
“Program a de O Proletário e M ensagem aos Trabalhadores” .In:Obra
Completa,v.1,cit.,p.578-579.
“Revolucionários” .In:Obra Completa,v.1,cit.,pp.597-601.
c) R elatório oficial da C om issão M ista B rasileiro-Peruana de
Reconhecim ento do Alto Purus
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150
Livro Euclidesda Cunha,oItamaratyea A mazônia

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Formato 15,5 x 22,5 cm

M ancha gráfica 11 x 18 cm

Tipologia G aramond noscorpor24,20,18,15,14,12,11 (texto),10 e8

Tiragem 1.000 exemplares

Impressãoeacabamento G ráfica Prol

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