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UNIJUI - UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO

GRANDE DO SUL

ANA PAULA KRAVCZUK RODRIGUES

GÊNERO E SEXUALIDADE A PARTIR DE FOUCAULT: O LONGO PROCESSO


HISTÓRICO DE NORMALIZAÇÃO E NORMATIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS
CONDUTAS

Ijuí (RS)
2016
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ANA PAULA KRAVCZUK RODRIGUES

GÊNERO E SEXUALIDADE A PARTIR DE FOUCAULT: O LONGO PROCESSO


HISTÓRICO DE NORMALIZAÇÃO E NORMATIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS
CONDUTAS

Monografia final do Curso de Graduação em


Direito objetivando a aprovação no componente
curricular Monografia.
UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul.
DECJS – Departamento de Ciências Jurídicas e
Sociais

Orientadora: MSc. Joice Nielsson

Ijuí (RS)
2016
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Dedico este trabalho aos meus pais, pelo apoio


incondicional, paciência e respeito.
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AGRADECIMENTOS

À minha mãe e meu pai, pelo apoio, compreensão e dedicação em fazer eu me sentir
amparada em todos os momentos, especialmente nos mais conturbados.

Aos meus irmãos, Roberto e Celso, pelo carinho, discussões e companheirismo em


casa e ao longo do curso.

À minha orientadora, Joice, com quem eu pude compreender por qual caminho eu
quero seguir após o término da graduação, me apoiando na escolha do tema, sempre
disponível e preocupada com a qualidade da pesquisa.

Aos meus queridos e queridas, amigos e amigas, que tanto me ouviram falar sobre
gênero, desconstrução e sexualidade, e me incentivaram a escrever sobre o que gosto.
Especialmente nos momentos finais, nos quais me fiz um pouco impaciente e mesmo assim
tive apoio.
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“Que é loucura: ser cavaleiro andante


ou segui-lo como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, acordado, sonha doidamente?
O que, mesmo vendado,
vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?”
Carlos Drummond de Andrade
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RESUMO

A presente pesquisa monográfica faz uma análise de como, ao longo do tempo, foram
produzidos uma série de padrões comportamentais que deveriam ser seguidos pelas pessoas
em relação a questões de sexualidade, padrões corporais e de gênero, configurando-se um
longo processo de normalização das condutas. Este processo histórico é perpassado por
relações de poder. Desta forma, objetiva-se compreender, a partir da obra do filósofo francês
Michel Foucault, a vinculação entre o Poder e o Direito, enquanto instrumento de
manifestação que normatizaram os padrões de conduta, permitindo aqueles considerados
‘normais’ e criminalizado aqueles tidos como desviantes. Nesse sentido, o primeiro capítulo
abordará o estudo do Poder em Michel Foucault, primeiramente enquanto microfísica e
posteriormente enquanto biopolítica. O segundo capítulo analisará de que forma o poder foi
instituído e manifesto no controle do corpo e da sexualidade, analisando de que modo este
poder interfere na constituição das identidades e das subjetividades de gênero de cada um,
criando de padrões de identidade que desrespeito a subjetividade do sujeito. A metodologia
utilizada baseou-se em pesquisa bibliográfica, principalmente nas obras de Michel Foucault e
em analises atuais sobre as implicações das mesmas em nosso mundo atual.

Palavras-Chave: Gênero. Sexualidade. Corpos. Condutas. Michel Foucault.


Normalização.
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ABSTRACT

This paper aimes to make an analysis of how, over time, have been produced a series
of behavioral patterns that should be followed by people in relation to issues of sexuality,
body patterns and gender, configuring a long process of normalization of conducts. This
historic process is filled by power relations. In this way, the objective is to understand, from
the work of the french philosopher Michel Foucault, the binding between the power and the
Law, as an instrument of manifestation that normalized standards of conduct, allowing those
considered 'normal' and criminalised those taken as deviatings. In this sense, the first chapter
will discuss the study of power in Michel Foucault, first while microphisics and subsequently
while biopolitics. The second chapter will examine how the power was instituted and manifest
in the control of the body and of sexuality, analyzing how this power interferes in the
constitution of identities and of gender subjectivities of each one, creating standards of
identity that disregard the subjectivity of the subject. The methodology used was based on a
bibliographic search, mainly in the works of Michel Foucault and in current analyzes on the
implications of the same in our world today.

Keywords: Gender. Sexuality. Bodies. Conducts. Michel Foucault. Normalization.


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.........................................................................................................................9

1 OS PODERES EM MICHEL FOUCAULT......................................................................11


1.1 Poder disciplinar.................................................................................................................14
1.2 Biopoder..............................................................................................................................17

2 O CONTROLE DO CORPO E DA SEXUALIDADE......................................................21


2.1 A história da sexualidade....................................................................................................22
2.1.1 A vontade de saber...........................................................................................................22
2.1.2 O uso dos prazeres...........................................................................................................27
2.1.3 O cuidado de si................................................................................................................30
2.2 Normalização das condutas e da sexualidade.....................................................................32

CONCLUSÃO............................................................................................................... ..........40

REFERÊNCIAS ........................................................................................................... ..........42


9

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa de conclusão de curso apresenta uma análise acerca de como, ao


longo do tempo, foram produzidos uma série de padrões comportamentais que deveriam ser
seguidos pelas pessoas em relação a questões de sexualidade, padrões corporais e gênero,
configurando-se um longo processo de normalização das condutas. Este processo histórico é
perpassado por relações de poder.

Para que este trabalho fosse concluído foram realizadas pesquisas bibliográficas em
meio eletrônico e físico, principalmente nas obras do filósofo francês Michel Foucault e em
análises atuais sobre as implicações destas em nosso mundo atual. Também foi realizada uma
pesquisa do tipo genealógica, na qual se faz uma análise tomando como referência a dimensão
histórica para que seja possível compreender as formas que o discurso se instaurou e de que
maneira isto ocorreu.

Deste modo, o objetivo é a compreensão, a partir das obras de Foucault, da vinculação


entre o Poder e Sexualidade e Gênero, considerando o poder enquanto instrumento de
manifestação que normatiza(ram) os padrões de conduta, os corpos e as subjetividades dos
indivíduos e das populações, permitindo aqueles considerados “normais” e criminalizando
aqueles que seriam considerados como desviantes.

No primeiro momento é feita uma abordagem sobre o estudo genealógico do Poder em


Michel Foucault, inicialmente enquanto microfísica e posteriormente enquanto biopolítica. O
objetivo foi analisar de que modo o poder se manifesta, enquanto micro-poderes, poderes
disciplinares e biopolíticas, configurando-se em instrumentos e relações nas quais tod@s
estamos envoltos. Este poder acaba por moldar o corpo e a mente, garantindo assim o pleno
controle sobre o cidadão da modernidade.
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O segundo momento foi destinado para abordar em forma de análise a forma com que
o poder foi instituído e se manifestou no controle do corpo e da sexualidade, buscando
compreender de que maneira o poder interfere na constituição das identidades e das
subjetividades de gênero de cada indivíduo. Apesar de Foucault não ter se referido
especificamente ao gênero, o desenvolvimento de seus estudos foi crucial para os posteriores
desdobramentos da teoria feminista. Ao controlar o corpo, a sexualidade e as subjetividades
de cada indivíduo, as relações de poder também perpassam e moldam as construções de
gênero de nossa sociedade patriarcal.

Com base nesses estudos se observa nítidas contribuições para que seja feita uma
reflexão sobre uma nova ética, a partir da problemática foucaultiana, que tem respaldo na
contestação dos discursos de normalização, indo contra uma constante submissão que o
sujeito sofre pela moralidade religiosa e/ou legal.
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1 O PODER EM MICHEL FOUCAULT

Ao embarcar no estudo sobre o poder, o filósofo francês Michel Foucault inicia a


construção de suas compreensões críticas analisando as relações de poder ao contrário da
concepção tradicional, que considera o Estado como detentor do poder, instituído e
estruturado. As grandes questões que envolvem essa problemática, conforme destacam Diniz
e Oliveira (2014), seriam: Como a minoria que acredita deter o poder contém a maioria?
Como o processo histórico influenciou na construção na mudança das modalidades de poder?
Como os indivíduos reagem frente à uma tentativa de dominação das instituições?

Com tais questões em mente, como um investigador da história, ele empenha-se em


entender a “microfísica” do poder, examinando “os modos por meio dos quais o poder é
constituído e manipulado discursivamente” (SANTOS; WERMUTH, 2015, p. 336). Deste
modo, o poder para Foucault (1995) coloca em pauta as relações entre sociedade, entre os
indivíduos, definindo que uma relação de poder é a ação que não age direta e imediatamente
sobre outrem, mas em si mesma.

Não devemos nos enganar: se falamos do poder das leis, das instituições ou das
ideologias, se falamos de estruturas ou mecanismos de poder, é apenas na medida
em que supomos que ‘alguns’ exercem um poder sobre os outros. (FOUCAULT,
1995, p.40).

Tais questionamentos, e a necessidade de compreender como o poder está permeando


todas as estruturas sociais, levam Foucault (1981) a desenvolver um estudo feito de forma
histórica, resgatando suas diferentes formas de domínio, transformações sociais e
constituição, naquilo que ele vai determinar de genealogia do poder. Genealogia, ou
arqueologia são os termos utilizados por Foucault para estudar essas novas tecnologias de
poder, destinados a trazer à luz os discursos suprimidos da sociedade ocidental (SANTOS;
LUCAS, 2015). As exumações genealógicas de Foucault, segundo os autores, trazem a tona
que as culturas são, de fato, fundamentadas no poder legitimado, e não como elas em geral
gostam de afirmar, em ideias de verdade e justiça. Tais sistemas hegemônicos de poder
implicam a marginalização e exclusão de certos grupos sociais vulneráveis em nome da
ordem. Para Foucault,

A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande número de materiais


acumulados, exige paciência. Ela deve construir seus ‘monumentos ciclópicos’ não a golpes
de ‘grandes erros benfazejos’ mas de ‘pequenas verdades inaparentes estabelecidas por um
método severo’. Em suma, uma certa obstinação na erudição. A genealogia não se opõe à
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história como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se
opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das
indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da ‘origem’. (FOUCAULT, 1979, p. 16)

Como rompimento da concepção clássica de poder, Foucault traz uma abordagem


diferenciada. Como dito anteriormente, o poder não pode ser, então, localizado e observado
em uma determinada instituição ou no Estado. Diferentemente da tradição da Ciência Política,
para Foucault o poder não está localizado ou centrado em uma instituição, e nem tampouco
como algo que se transmite por meio de contratos jurídicos ou políticos. O poder não será
considerado como algo que o indivíduo possa ser possuidor ou ceder a algum governante.
Tem-se o acontecimento do poder como uma relação de forças, estando em todos os lugares,
envolvendo toda a estrutura social em relações de poder e estas não podem ser
individualizadas ou estarem alheias às pessoas.

É preciso não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e


homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma
classe sobre as outras; mas ter bem presente que o poder não é algo que se possa
dividir entre aqueles que o possuem e o detém exclusivamente e aqueles que não o
possuem. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo
que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos
de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se
exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre
em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou
consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder
não se aplica aos indivíduos, passa por eles. (FOUCAULT, 2004, p. 193)

Em palavras foucaultianas (2004, p. 175), o poder “não se dá, não se troca nem se
retoma, mas se exerce, só existe em ação”, o poder é principalmente manutenção e reprodução
das relações econômicas, mas acima de tudo uma “relação de força”. Essa maneira como o
filósofo trata o poder é inovadora. O que realmente importava, então, não era a criação de um
novo conceito, mas sim a análise do poder como prática social, que foi constituído
historicamente, e suas inúmeras formas de exercício na sociedade. Para Foucault, de acordo
com Rocha, (2010), não importava a criação de um novo conceito fechado e estatizado, mas
sim um estudo feito de forma analítica. Segundo o autor,

Não que haja propriamente uma teoria geral do poder em Foucault, mas ele o
percebe como uma prática social historicamente constituída (episteme) que precisa
ser entendida em sua dinâmica de desenvolvimento na realidade crua das relações
humanas. Pois, a genealogia de poder de Foucault vai além do costumeiramente
trabalhado em direito que é o Estado como produtor, institucionalizador e
mantenedor do poder. Há formas de exercício do poder diferentes do Estado, a ele
articuladas de maneiras variadas e que são indispensáveis inclusive pra sua
sustentação e atuação eficaz. (ROCHA, 2010, p.105).
Deste modo,
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O conceito de poder para Foucault não deve ser equivalente aos conceitos de
repressão, lei, soberania, instituições e aparelhos do Estado, como comumente é
analisado. Foucault não se refere a uma forma de sujeição realizada por leis e regras,
nem a um sistema de dominação de uns sobre outros. Ao contrário, poder é
entendido como multiplicidade de correlações de forças, como jogo, como
estratégias móveis. Ou seja: poder visto como potencialidade criadora, própria do ser
humano, que se faz aparecer nas práticas e nas relações humanas. Falamos de poder
enquanto relação de forças, enquanto prática, enquanto poder circulante, não estático
nem centralizado em um ponto. Falamos de exercício de poder e não de aquisição do
mesmo. O poder também não pertence a alguém, isto é, não provem de uma relação
entre dominados e dominadores; não é uma instancia dual, binária mas sim uma
instancia onipresente, isto é, se produz a cada instante, em todos os pontos, em todas
as relações. (BOFF, 2008, p. 190).

No mesmo sentido, afirma Duarte (2008), este mesmo poder é sempre plural, exercido
através de práticas distintas e que se transformam, mesmo dentro de instituições sócias. Deste
modo, o poder se dá em um conjunto de relações e práticas sociais historicamente
constituídas, que atuam por meio de dispositivos estratégicos dos quais ninguém escapa, pois
não há espaço da vida em que estes poderes não atuem por meio de seus mecanismos. O que
cabe indagar, portanto é, quais “[...] quais são, em sem seus mecanismos, em seus efeitos, em
suas relações, os diversos mecanismos de poder que se exercem a níveis diferentes da
sociedade, em domínios e com extensões tão variados? (FOUCAULT, 1981, p.174).

Todos nós, enquanto seres sociáveis, relacionáveis, estamos de alguma maneira


próximos da temática desenvolvida por Foucault. E mais do que isso, acaba nos envolvendo
na própria temática, em uma rede de poder, enfim, estamos todos imersos em redes de
poderes, que podem ser chamadas de micropoderes.

Inicialmente, ao desenvolver sua genealogia, Foucault identifica, como os filósofos


clássicos buscavam justificar o poder a partir da soberania (DINIZ; OLIVEIRA, 2014). Pois,
o soberano detinha o direito de “deixar viver” ou “fazer morrer”. São, pois, nas sociedades
europeias do século XVIII o contexto no qual surgem novas tecnologias de poder. Elas só
serão possíveis com o advento da categoria “sujeito” e são os corpos físicos das pessoas o
primeiro espaço no qual fora exercida uma nova forma de poder. (FOUCAULT, 2007, p. 17)
Isto ocorre com a institucionalização das escolas, dos hospitais, dos quartéis, das prisões entre
outros ambientes denominados como instituições de “sequestro”. Esta denominação é
utilizada pelo fato de individualizar o sujeito e usar técnicas disciplinares para docilizá-lo. Ao
lado do poder disciplinar, surgirá no final do século XVIII um tipo de poder que será
nominado por Foucault de biopoder.
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É o contexto daquelas sociedades que surge o poder disciplinar, “que nasce como uma
tecnologia de poder que trata o corpo do homem como uma máquina, objetivando adestrá-lo
para transformá-lo em um instrumento útil aos interesses econômicos” (DINIZ E OLIVEIRA.
2014, p. 144). Concomitantemente surge o biopoder, cujo foco não é o corpo individualizado,
mas o corpo coletivo. O biopoder, segundo os autores, não se diferencia somente do poder
disciplinar, mas também do poder soberano, pois enquanto na soberania havia um direito do
soberano “deixar viver” ou “fazer viver”, no biopoder haverá uma tecnologia de poder voltada
para o “fazer viver” e o “deixar morrer”, que será um poder que vai se encarregar da
preservação da vida, eliminando tudo aquilo que ameaça a preservação e o bem estar da
população. Esta é a genealogia do poder que analisaremos adiante.

1.1 O poder disciplinar

Como já demonstramos, uma das características que se pode perceber na análise do


poder de Foucault é um importante deslocamento que ele faz da ideia de poder como algo que
é monopolizado pelo Estado, para um poder que é baseado nas relações sociais através de
uma rede de “micro-poderes”, ou microfísica do poder. Ou seja, trata-se de analisar o poder
partindo não do centro (que é entendido como o Estado), mas das periferias, segundo Diniz e
Oliveira (2014). Segundo os autores, para Foucault, era analisando as relações de poder nos
níveis periféricos da sociedade que se poderia ter uma noção melhor de como ele torna-se
onipresente em todas as estruturas sociais.
Para isso ele vai voltar o seu olhar para instituições como os hospitais, as fábricas, as
escolas, os hospícios, os quartéis, entre outros, que vão ajudar a entender como as relações de
poder são formadas e como identificar estas várias relações de poder que de certa forma estão
fora do Estado.
Deste modo, Michel Foucault dedica-se com afinco à análise do poder disciplinar. A
disciplina não é uma instituição, nem um aparelho de Estado. É uma técnica de poder que
funciona como uma rede que vai atravessar todas as instituições e aparelhos de Estado. Este
instrumento de poder que atua no corpo dos homens usará a punição e a vigilância como
principais mecanismos para adestrar e docilizar o sujeito, pois é a partir deles que o homem se
adequará às normas estabelecidas nas instituições como um processo de produção que, a partir
de uma “tecnologia” disciplinar do corpo, construirá um sujeito com utilidade e docilidade
(DINIZ; OLIVEIRA. 2014, p. 150).
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Santos e Wermuth (2015, p. 343) falam de uma espécie de genealogia e domesticação


da alma moderna. Esta alma, denominada de consciência também é uma construção do poder
disciplinar. Seja como consciência, psique, subjetividade, jamais é uma realidade pré-
existente, sobre a qual atuam os mecanismos punitivos, e o investimento politico sobre o
corpo, mediante a utilização de uma tecnologia de poder sobre esse corpo. Segundo os
autores, “na fabrica, na escola, no hospital, no convento, no regimento militar ou na prisão,
trata-se sempre da continuação de uma anatomia politica pela distribuição espacial dos
indivíduos e o controle de suas atividades”, ou ainda “pela combinação dos corpos e das
forças, de modo a deles extrair a máxima utilidade.”. Ao construir o corpo “parte de um
espaço, núcleo de um comportamento, soma de forças que se aglutinam, torna-se possível
adestra-lo e torna-lo útil”. A anatomia politica do corpo fabrica pequenas individualidades
funcionais e adaptadas mediante investimentos microfísicos.

Segundo Foucault (1987, p. 195), o poder disciplinar é um poder que

Em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem


dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as
forças para reduzi-las; procura liga-las para multiplica-las e utilizá-las num todo. [...]
Adestra as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma
multiplicidade de elementos individuais – pequenas células separadas, autonomias
orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos combinatórios. A
disciplina “fabrica indivíduos; ela é a técnica especifica de um poder que toma os
indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício.
[...] O sucesso do poder disciplinar se deve sem duvida ao uso de instrumentos
simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação, num
procedimento que lhe é especifico, o exame.

A ideia de um sujeito útil e dócil é uma concepção positiva utilizada por Foucault para
dissociar os termos repressão e dominação que definiam a intervenção violenta do Estado
sobre os cidadãos (DINIZ; OLIVERA. 2014). Foucault mostrará com isso que se a dominação
capitalista fosse baseada somente na repressão, ela não se manteria por muito tempo. A
princípio é fundamental entender que “a disciplina é um tipo de organização do espaço. É
uma técnica de distribuição dos indivíduos através da inserção dos corpos em um espaço
individualizado, classificatório, combinatório” (MACHADO, 2009, p. 173). Essa disciplina é
um mecanismo que propiciará uma transformação do sujeito, tirando da “força do corpo” sua
“força política” e tornando máxima sua “força útil”. Todavia, apesar de se falar muito em
força, “o poder disciplinar não será imposto com uma forma de violência explicita, mas
totalmente discreto e sutil, para que não seja percebido, sobretudo pelo fato de já ter existido
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métodos violentos que não alcançaram resultados tão eficazes como a disciplina” (DINIZ;
OLIVEIRA, 2014, p. 150).

A disciplina segundo Foucault tem seu marco histórico na medida em que surge com
ela uma arte do corpo humano (FOUCAULT, 2010) que não está preocupada somente com a
sujeição e o aumento das habilidades do sujeito, mas preocupa-se, sobretudo, com uma
relação formada a partir de mecanismos que irão tornar o sujeito tanto mais obediente quanto
mais útil. Formar-se-á, segundo Diniz e Oliveira (2014), uma política de coerção partindo de
um trabalho minucioso que manipulará de forma calculada os gestos, comportamento e outros
elementos do corpo humano inserindo-o em uma espécie de maquinaria do poder que irá
esquadrinha-lo, desarticulando-o para que o mesmo seja recomposto. Esse processo chamado
de “anatomia política” ou “mecânica do poder”, será o responsável por fazer funcionar as
operações com a rapidez e a eficácia que se espera e funcionará como a fabricação de corpos
exercitado, submissos e acima de tudo, dóceis. É a partir dessa experiência fundada na
disciplina que Foucault analisará o que ele chama de “fabricação dos indivíduos máquina”
(Idem).

Especialmente em Vigiar e punir, Foucault analisa esse processo de fabricação


tomando por base a figura do soldado. Vimos assim o poder disciplinar tratar o corpo do
indivíduo como máquina com o objetivo de adestrá-lo e transformá-lo. A disciplina é um tipo
de poder que se dá sobre o corpo individualizado. Paralelo ao poder disciplinar surgiu no final
do século XVIII um tipo de poder que se voltará não mais para o individuo em particular, mas
para a população, e esse mecanismo de poder será chamado por Foucault de “Biopoder”.

Em síntese, de acordo com Duarte (2008), os micro-poderes disciplinares investem e


atuam sobre o corpo, penetram o corpo, forjam-no. Em síntese, a disciplina é uma forma de
organização do espaço e de disposição dos homens no espaço visando otimizar seu
desempenho, bem como é uma forma de organização, divisão e controle do tempo em que as
atividades humanas são desenvolvidas, com o objetivo de produzir rapidez e precisão de
movimentos. A estes elementos se acrescentam a vigilância e o exame, considerados como
elementos essenciais do poder disciplinar. Foi assim que Foucault descobriu um corpo social
produzido pelo investimento produtivo de uma complexa rede de micro-poderes disciplinares
que atuavam de maneira a gerir e administrar a vida humana, tendo em vista tornar possível a
utilização dos corpos e a exploração otimizada de suas capacidades e potencialidades.
17

1.2 O Biopoder

Foi apenas no final do percurso genealógico de sua investigação que Foucault chegou
aos conceitos de biopoder e biopolítica, tendo em vista explicar o aparecimento, ao longo do
século 18 e, sobretudo, na virada para o século 19, de um poder disciplinador e normalizador
que já não se exercia sobre os corpos individualizados, nem se encontrava disseminado no
tecido institucional da sociedade, mas se concentrava na figura do Estado e se exercia a título
de política estatal com pretensões de administrar a vida e o corpo da população (DUARTE,
2008). Este emergiu como um complemente ao poder disciplinar. Nas palavras do autor “Pois
essa técnica não suprime a técnica disciplinar simplesmente porque é de outro nível, está em
outra escala [...] e é auxiliada por instrumentos totalmente diferentes”. (FOUCAULT, 2000, p.
289.).
A partir do século XVIII o homem passa a perceber que é de fato possuidor de um
corpo e com isso se reconhece como alguém que pertence a uma espécie. Essa iluminação deu
origem a questões que envolvem a vida do homem como algo que deve ser preservado, em
um novo cenário que abriu espaço para uma biopolítica voltada para a regulamentação dos
processos das massas (DINIZ E OLIVEIRA, 2014). Consequentemente a biopolítica
apresentará uma tecnologia e de dispositivos que devem assegurar a vida da população, pois
sua meta é controlar aquilo que possa limitar a vida do homem não em particular, mas no
conjunto da espécie humana. Para que isso aconteça será usado um dispositivo de poder que
Foucault chamará de “Biopoder”, uma ferramenta fundamental para a tecnologia de poder que
irá controlar as massas. A respeito do biopoder Foucault diz o seguinte:

(...) essa série de fenômenos que me parece bastante importante, a saber, o conjunto
dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas
características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa
estratégia política, numa estratégia geral de poder. Em outras palavras, como a
sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a partir do século XVIII, voltaram a
levar em conta o fato biológico fundamental de que o ser humano constitui uma
espécie humana. É em linhas gerais o que chamo, o que chamei, para lhe dar um
nome, de biopoder. (FOUCAULT, 2008, p. 3)

O surgimento de uma nova tecnologia de exercício do poder como o biopoder mostra


que as relações de poder não acontecem somente no plano do sujeito em seu espaço restrito,
mas amplia-se também para o espaço da população. Nesse caso, afirmam Dinis e Oliveira
(2014), a perspectiva do fenômeno individual de adestramento do sujeito, vai ser ampliada e
agora serão levados em conta os fenômenos coletivos. Com isso nasce a preocupação com a
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saúde e o bem estar da população. E para que esses fatores sejam preservados, será iniciada
uma política de policiamento para evitar tudo àquilo que possa ameaçar a vida da população.
Vários procedimentos são efetivados para alcançar este objetivo de preservar a vida da
população, como por exemplo, “[...] uma medicina que vai ter, agora, a função maior de
higiene pública, com organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de centralização
da informação, de normalização do saber [...] e da medicalização da população.”
(FOUCAULT, 1999, p. 291). Essas medidas são importantes para que se tenha um certo
controle de problemas como o da natalidade e da mortalidade, e esse controle é um dos
mecanismo de poder do “biopoder”.

Segundo Foucault,

Mais precisamente, eu diria isto: a disciplina tenta reger a multiplicidade dos


homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos
individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E,
depois, a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não
na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao
contrario, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da
vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença etc.
(FOUCAULT, 1999, p. 291).

Pois, é a partir deste momento que se terá uma complementação do direito de


soberania, não com o intuito de excluí-lo, mas na intenção de modificá-lo, tornando-se o
inverso e constituindo-se assim um poder que tem a capacidade de “fazer viver” ou pode
também “deixar morrer”. Portanto, enquanto no direito de soberania, existia o poder de
“deixar viver” ou “fazer morrer”, no biopoder há uma nova tecnologia de poder que deve
“fazer viver” ou pode “deixar morrer”. Portanto, a tecnologia do biopoder aparece com
dispositivos de poder sobre a população, que exercerá sobre esse homem coletivo o poder de
“fazer viver” e “deixar morrer”, algo que está aquém do poder soberano, que ao contrario, era
um poder sombrio, e por sua vez consistia em um poder de fazer morrer (DINIZ; OLIVEIRA,
2014).

Deixando de exercer seu direito de impor a morte, o poder soberano garantia a vida.
Tratava-se aí da forma de atuação de um poder soberano adaptado à figura de uma sociedade
na qual o poder se exercia por meio do confisco, apoderando-se de bens, dos corpos e da
própria vida dos súditos. Em suma, afirma Duarte (2008), opera-se aí um importante
deslocamento de ênfase: se antes o poder soberano exercia seu direito sobre a vida na medida
em que podia matar, de tal modo que nele se encarnava o “direito de fazer morrer ou de deixar
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viver”, a partir do século 19 se opera a transformação decisiva que dá lugar ao biopoder como
nova modalidade de exercício do poder soberano, que agora será um “poder de ‘fazer’ viver e
‘deixar’ morrer.

À luz de Foucault, sobre o biopoder:

Foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser


garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por
meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos.
Mas o capitalismo exigiu mais do que isso; foi-lhe necessário o crescimento tanto de
seu esforço quanto de sua utilizabilidade e sua docilidade; foram-lhe necessários
métodos de poder capazes de majorar as forças, as aptidões, a vida em geral, sem
por isto torná-las mais difíceis de sujeitar. (FOUCAULT, 1988, p. 132)

O biopoder, então, utiliza de instrumentos estatais buscando exercer o controle sobre


os indivíduos e massas, assegurando ter a propriedade sobre suas vidas e seus direitos, tudo a
partir do dado biológico humano. Essa tecnologia do poder está intimamente ligada ao
momento histórico que está inserida, onde o sujeito se reconhece como individuo social e que
pertence a uma espécie, nesse tempo abre-se espaço para uma biopolítica direcionada a
regulamentação dos processos das massas. Consequentemente, essa biopolítica necessita de
respaldo para a preservação e controle do que possa limitar a vida do indivíduo, no conjunto
de sua espécie, assim temos o biopoder (DUARTE, 2008).

Sob as condições impostas pelo exercício do biopoder, o incremento da vida da


população não se separa da produção contínua da morte, no interior e no exterior da
comunidade entendida como entidade biologicamente homogênea: “São mortos
legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os outros”
(FOUCAULT, 2001, p. 140). É por isso que no século 19 também se opera uma
transformação decisiva no próprio racismo, que deixa de ser um mero ódio entre raças ou a
expressão de preconceitos religiosos, econômicos e sociais para se transformar em doutrina
política estatal, em instrumento de justificação e implementação da ação mortífera dos
Estados. A descoberta da importância política do racismo como forma privilegiada de atuação
estatal, fartamente empregada ao longo do surto imperialista europeu do século 19, e
radicalizada cotidianamente ao longo do século 20, tendo no nazismo e no stalinismo seu
ápice, tem de ser compreendida em termos daquela mutação operada na própria natureza do
poder soberano (DUARTE, 2008).
20

Segundo Duarte (2008), a descoberta não apenas da biopolítica, mas também do


paradoxal modus operandi do biopoder, o qual, para produzir e incentivar de maneira
calculada e administrada a vida de uma dada população, tem de impor o genocídio aos corpos
populacionais considerados exógenos, é certamente uma das grandes teses que Foucault legou
ao futuro.

Com isso, haverá por parte da biopolítica a preocupação com as relações entre a
espécie humana e o meio em que ela vive (FOUCAULT, 1999). Sua importância ocorre em
função da população necessitar de boas condições do ambiente para preservar sua existência.
Os problemas climáticos e geográficos – assim como as epidemias e outras mazelas – vão
afetar diretamente a população. Portanto, é a partir das taxas de natalidade e mortalidade,
vinculadas às diversas incapacidades biológicas que a biopolítica vai conseguir extrair o
conhecimento necessário para a definição de qual área ela deve intervir com seu poder. Esse
poder extraído será fundamental para aperfeiçoar os mecanismos de poder que serão baseados
numa espécie de previdência, que tem por objetivo – além de alcançar a baixa da morbidade e
a alta da natalidade – prolongar a vida da espécie humana. Para isso serão estabelecidos
mecanismos reguladores com o intuito de manter o equilíbrio da população. Um exemplo
claro desta regulamentação é o controle da sexualidade, visto que é empecilho entre corpo-
população, necessitando de disciplina e regulamentação, ou seja, norma. Ilustra o autor:

Se a sexualidade foi importante, foi por uma porção de razões, mas em especial
houve estas: de um lado, a sexualidade, enquanto comportamento exatamente
corporal, depende de um controle disciplinar, individualizante, em forma de
vigilância permanente; e depois, por seus efeitos procriadores, em processos
biológicos amplos que concernem não mais ao corpo do indivíduo mas a esse
elemento, a essa unidade múltipla constituída pela população. A sexualidade está
exatamente na encruzilhada do corpo e da população. Portanto, ela depende da
disciplina, mas depende da regulamentação. (FOUCAULT, 2011, p. 289).

A forma como o poder, tanto disciplinar quanto, principalmente o biopoder atuam


sobre o corpo e a subjetividade se vinculam com a construção de padrões normalizados de
condutas sexuais e de construções de gênero será objeto de analise no próximo capítulo.
21

2 O CONTROLE DO CORPO E DA SEXUALIDADE

A partir do momento em que passou à análise dos dispositivos de produção da


sexualidade, Foucault percebeu que o sexo e, portanto, a própria vida, se tornaram alvos
privilegiados da atuação de um poder disciplinar que já não tratava simplesmente de regrar
comportamentos individuais ou individualizados, mas que pretendia normalizar a própria
conduta da espécie, bem como regrar, manipular, incentivar e observar macro-fenômenos
como as taxas de natalidade e mortalidade, as condições sanitárias das grandes cidades, o
fluxo das infecções e contaminações, a duração e as condições da vida, etc. A partir do século
19, já não importava mais apenas disciplinar as condutas, mas também implantar um
gerenciamento planificado da vida das populações (DUARTE, 2008).

Assim, o que se produz por meio da atuação específica do biopoder não é mais apenas
o indivíduo dócil e útil, mas é a própria gestão calculada da vida do corpo social. Deste modo,
afirma Duarte, compreende-se porque o sexo se torna o alvo de toda uma disputa política: a
partir do século 19, ele é o foco de um controle disciplinar do corpo individual, ao mesmo
tempo em que está diretamente relacionado aos fenômenos de regulação das populações,
conferindo um acesso do poder soberano à vida da própria espécie. A sexualidade, tal como
produzida por toda uma rede de saberes e poderes que agem sobre o corpo individual e sobre
o corpo social, isto é, o sexo como produto do que Foucault chamou de dispositivo da
sexualidade, será então a chave para a análise e para a produção da individualidade e da
coletividade.

Naturalmente nossa sociedade está constante transformação e as relações sociais cada


vez mais complexas, e isso fez com que o corpo e a sexualidade fossem compreendidos como
objetos de disciplina e controle social nas relações de poder. Na verdade, Foucault já vai
perceber, a partir da sua obra A História da Sexualidade, que a forma mais ‘fácil’ de controlar
as pessoas era através do controle de seu corpo, e vai demonstrar como isto aconteceu ao
longo da história. Mais precisamente, estas relações de poder são construídas sob a ótima do
masculino, conforme já afirmava Simone de Beauvoir (1980) havendo, então, uma submissão
do corpo e da sexualidade do feminino ao biopoder exercido pela sociedade, chamada de
patriarcal.
22

2.1 A história da sexualidade

Ao falar da história da sexualidade, Foucault busca abordar este assunto através de três
formas. A primeira é o questionamento das práticas de discurso e de como os saberes se
formaram e se desenvolveram, desde estudos referentes à reprodução até níveis
comportamentais. A segunda se dá com uma análise dos sistemas de força que regulamentam
as práticas sexuais e instalam regramentos e normas amparadas pelas instituições, como as
pedagógicas, médicas, religiosas e judiciárias. Por último, mas não de forma definitiva, é feita
uma interpretação da maneira através da qual os indivíduos passam a valores suas condutas,
sentimentos, sensações, prazeres, se reconhecendo como sujeitos desse objeto de estudo, a
sexualidade (FOUCAULT, 2001).

Para que se posso começar a entender de que forma conhecemos e vivenciados a


sexualidade, é preciso ser feito um estudo a começar por suas raízes, porém isso não significa
que Foucault quis buscar um ponto definitivo onde as investidas sobre a sexualidade se
tiveram seu nascimento/gênese, o seu alvo é mais distante.

2.1.1 A Vontade de Saber

Michel Foucault publicou em 1976 o primeiro volume da História da Sexualidade,


intitulado “A vontade de saber”, fazendo, então, uma abordagem inicial a uma série de
estudos históricos. Em uma primeira análise se pode notar a existência de algumas teses
principais dentro desse primeiro volume. O filósofo nos ensina que o desabrochar histórico do
século XIX é pontuado, também, por repressão, controle e recrutamento.

A busca por apresentar uma história da sexualidade dos três últimos séculos, nos quais
houve uma repressão do discurso sobre o sexo em contrapartida com a propagação de
discursos que resultariam em uma ciência sexual (scientia sexualis), a qual vai
exponencialmente diversificar e condenar as formas que seriam consideradas não naturais da
sexualidade. Desenvolve-se, também, uma nova concepção de poder, que se torna sinônimo
de repressão, mas realiza, além de tudo, uma provocação mascarada. Ao final se tem a
tentativa de libertar o sexo, ou da ideia de que fazemos do sexo, de uma opressiva
escravização social, mostrando que essa tentativa nada mais é do que um notável mecanismo
de poder, que objetiva nos prender em seu próprio pano.
23

Em A Vontade de Saber o pensamento foucaultiano é mais amplo e geral em questão


de elementos e questionamentos, nos dando uma visão da situação na qual suas ideias estão e
quais direções elas poderão, ou não, tomar. Perpassa-se o discurso da sexualidade, então, pela
proliferação e repressão, além de sua ligação com as relações de poder. Neste momento
inaugural existem elementos tanto de uma visão arqueológica, quanto de uma visão
genealógica, como se tem referência os primeiros e últimos escritos do filósofo francês,
Arqueologia do Saber (1969) e Microfísica do Poder (1979), respectivamente.

A arqueologia no discurso sobre sexualidade se demonstra quando não se busca com


exatidão o momento em que algo teve sua gênese.

A arqueologia busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os


temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos; mas os próprios
discursos, enquanto práticas que obedecem a regras (...); ela se dirige ao discurso em
seu volume próprio, na qualidade de monumento. Não se trata de uma disciplina
interpretativa: não busca um “outro” discurso mais oculto. Recusa-se a ser
“alegórica”. (FOUCAULT, 1969, p. 159).

Já esse aspecto genealógico do discurso pode ser percebido quando é tomada por base
a dimensão histórica para que se possa compreender as formas de proliferação no caminho da
sociedade ocidental. Logo nas primeiras páginas de A Vontade de Saber, Foucault nos faz
perceber que sua crítica seria que ao se pensar em teorias sobre determinado assunto o risco
de que este assunto perdesse o tom de simplicidade é alto, podendo este mesmo assunto
ganhar arabescos a partir de um destaque falso. E dessa maneira, diz:

Diz-se que no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. As práticas
não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência excessiva e, as
coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade.
Eram frouxos os códigos da grosseria, da obscenidade, da decência, se comparados
com os do século XIX. Gestos diretos, discursos sem vergonha, transgressões
visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas, crianças astutas vagando,
sem incômodo nem escândalo, entre os risos dos adultos: os corpos “pavoneavam”.
Um rápido crepúsculo se teria seguido à luz meridiana, até as noites monótonas da
burguesia vitoriana. A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se
para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na
seriedade da função de reproduzir. (FOUCAULT, 2001, p. 9).

Toda a base de crítica foucaultiana se deita sobre a construção de uma ciência do sexo,
sob uma perspectiva científica e de repressão, estando o discurso sobre a sexualidade
24

entrelaçado com as relações de poder. Dessa forma que este primeiro livro é gerado, a partir
de um relacionamento entre poder, sexualidade e saber.

O início de sua argumentação traz a imagem da moral vitoriana, sociedade que vive,
desde meados do século XVIII, com a sexualidade permeada pela hipocrisia, mudez e freios.
A família modelo conjugal incita o silêncio e se resume a sua função de reprodução para fins
de procriação, tudo que não tangesse as linhas de dentro desse modelo era visto como era
negado e jogado ao silêncio.

São desmoralizadas as sexualidades tidas como ilegítimas, sendo designadas apenas a


lugares que gerassem retorno de capital, mantendo em mente que, em uma época de
Revolução Industrial onde a mão de obra é vastamente explorada não deveriam ser gastas
energias nos prazeres e derivados, esta é a visão histórica. Da perspectiva política, praticar
quaisquer dessas condutas “ilegítimas” seria um desafio e confronto aos poderes já
estabelecidos.

Ao exemplo das crianças, vistas como não detentoras de sexo, volta-se a incitação ao
silêncio e os olhos são vendados toda vez que a sexualidade fosse se manifestar. Esse
comportamento proibidor é trazido por Foucault como hipótese repressiva:

Isso seria próprio da repressão e é o que distingue das interdições mantidas pela
simples Lei Penal: a repressão funciona, de certo, como condenação ao
desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio, afirmação da inexistência
e, consequentemente, constatação de que, em tudo isso, não há nada para dizer, nem
para ver, nem para saber. Assim mancharia, com sua lógica capenga, a hipocrisia de
nossas sociedades burguesas. (FOUCAULT, 2001, p. 10)

Foucault (2001, p. 17), chega a questionar se existiu mesmo uma ruptura entre a Idade
da repressão e a análise crítica da repressão, logo em seguida. Ao fazer esse questionamento,
temos que pensar que o filosófico não teve a intenção de refutar a existência da hipótese
repressiva e os reflexos dela, que remetem a termos como proibição, silenciamento, repressão,
censura. Mas criar uma crítica de que a ideia da história da sexualidade e do sexo se reduziu a
estes termos, dificultando a produção do saber.

Realizando a interpretação dessa hipótese, se percebe que essas características


negativas que foram citadas, além de estarem relacionadas com o poder, servem como um
25

instrumento de incitação. A partir disto, não se fala mais em perspectiva de restrição, mas
uma perspectiva de instigação, que fomenta o discurso produzindo o saber.

Desconstruindo os valores e a atenção voltada, na maioria das vezes, apenas à


característica impeditiva, é nítido que, ao mesmo tempo, existia uma proibição do que seria
dito sobre sexualidade de lado, e de outro havia uma instigação sobre o mesmo tema, a
vontade de saber. É fato que, ao analisar os estudos do filósofo, não há de se ver a história da
sexualidade como uma restrição, é justamente esta ideia que é refutada, sem ser negada sua
existência. O autor Roberto Machado ilustra:

O poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma “positividade”.
E é justamente esse aspecto que explica o fato de ele ter como alvo o corpo humano,
não para sucitá-lo, adestrá-lo. Não se explica inteiramente o poder quando se
procura caracterizá-lo por sua força repressiva. (2006, p. 172)

É-nos chamada a atenção para o sexo, para as técnicas que são usadas pelo poder e por
quais meios de discurso a sexualidade pode regular o indivíduo. Reiterando, Foucault nega a
interdição, pois, para ele, os termos negativos como silêncio e censura são uma produção
discursiva. Falando desses meios de discurso temos diversos exemples que apenas
intensificam a sexualidade. A igreja, por meio das confissões, já que até em pensamentos o
sexo é revelado; a literatura que traz o sexo detalhado, com exemplo no escritor Marquês de
Sade; a medicina em conjunto com a psiquiatria e o judiciário, ao estudar perversões; e a
própria racionalidade, que vê a “necessidade de regular o sexo por meio de discursos úteis e
públicos e não pelo rigor da proibição”. (FOUCAULT, 2001, p. 31).

Falando em racionalidade, podem ser citados outros variados exemplos que são
lembrados nesse primeiro título A Vontade de Saber, como controle de natalidade, economia
política da população, interditar o sexo das crianças, sexo adolescente como sendo um
problema público, demografia. A valorização do segredo em torno do sexo é uma
característica das sociedades modernas.

Quando se qualifica o discurso, surgem sexualidades úteis e conservadoras. Entre elas


está a monogamia heterossexual como regra, pois não iria de encontro à lei jurídica e natural.
Pois a homossexualidade aparece como personagem da sexualidade, mas como uma espécie
de hermafroditismo da alma, da prática da sodomia, como ressalta o próprio Foucault em seu
texto. São criados diversos nomes e personagens, como exibicionistas, fetichistas,
26

ginecomastos, mulheres disparêunicas, entre outros. Mesmo que já existissem, apenas agora
seriam pauta no discurso:

A mecânica do poder que ardosamente persegue todo esse despropósito só pretende


suprimi-lo atribuindo-lhe uma realidade analítica, visível e permanente: escrava-a
nos corpos, introdu-lo nas condutas, torna-o princípio de classificação e de
inteligibilidade e o constitui em razão de ser e ordem natural da desordem. Exclusão
dessas milhares de sexualidades aberrantes? Não, especificação, distribuição
regional de cada uma delas. Trata-se, através de disseminação, de semeá-las no real
e incorpora-las no indivíduo. (FOUCAULT, p. 51).

A dupla intencionalidade do controle tem duas faces: prazer e poder. Há essa


propagação/proliferação de prazes específicos e de sexualidades dispares. Cada vez mais
nítido que o sexo não é necessariamente interditado, temos como exemplos disto os próprios
sujeitos. Essa ciência vai ser chamada de scientia sexualis, produção de verdade sobre a
sexualidade. Diferindo-se da ars erotica, arte de iniciação que não prevalece aqui no ocidente
e nem em nosso contexto social. (FOUCAULT, 2001, p. 67).

A identificação do indivíduo (é) foi feita, por muito tempo, com referência aos
vínculos que este tem com outros indivíduos (família, por exemplo). Em seguida, pelo
discurso que era capaz de criar sobre si mesmo, sua verdade. E nesse aspecto, de autenticação
do indivíduo, a confissão, já citada, é um instrumento usado pelo poder. Portanto, por um lado
temos a “interdição” (ou obrigatoriedade) de esconder o sexo, temos por outro o “dever” de
confessá-lo. Ao tratar da confissão, o autor traz desde uma codificação clínica do “fazer falar”
até a medicalização dos efeitos da confissão.

Assim, de início o sexo estaria escondido do sujeito, necessitando de um exame


clínico para que fosse resgatado inconscientemente. O interlocutor decifraria o sexo de
outrem. Cria-se um poder-saber sobre o sujeito: “Nós dizemos a sua verdade, decifrando o
que dela ele nos diz, e ele nos diz a nossa, liberando o que estamos oculto”. (FOUCAULT, p.
79). Dessa forma que é criado o dispositivo da sexualidade, fundamentado nos instintos que
regulam os desejos (interno), criando tal e qual o sujeito que conhecemos atualmente.

Atenta-se, novamente, ao que Foucault chama de poder:

Multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e


constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos
incessantes as transforma, reforça, inverte, os apoios que tais correlações de força
encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as
defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se
27

originam e cujo esforço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos
estatis, na formalação de leis, nas hegemonias sociais. (1988, p. 102-103).

O poder é algo complexo e não se resumo em uma única ação ou força, porém este é o
ponto mais nebuloso dessa obra. Logo há uma tentativa de equilíbrio ao trazer uma construção
histórica de estratégias ligadas à sexualidade, como a histerilização do corpo da mulher, o
poder pedagógico do sexo da criança, condutas sociais de procriação e psiquiatria do poder
sobre perversões. Dois dispositivos são postos face a face, o da aliança e o da sexualidade. No
da sexualidade se tem toda uma estratégia de vigilância e no outro uma ligação direta com o
que é considerado lícito e tradicional.

Foucault (2001, p.139) apresenta, então, um conceito para sexualidade, como sendo
um conjunto de efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos, nas relações sociais, por
um certo dispositivo pertencente a uma tecnologia política complexa. O que ocorre na difusão
desse dispositivo é que o elemento repressor vai gerar uma separação de classes.

Quando a hipótese repressiva é refutada pelo filósofo, é por motivo de não ser o centro
de sua análise. Mas volta a aparecer quando se fala dessa difusão do dispositivo da
sexualidade, dizendo que a diferenciação social não se afirmará pela qualidade sexual do
corpo, mas pela intensidade de sua repressão (FOUCAULT, 2001, p.141). Repreende-se,
justamente, o que fora incitado. Surge uma nova organização sobre a vida, que podemos
chamar de biopoder, onde a sociedade normaliza a vida e o corpo. O dispositivo sexualidade é
o precursor para que questões como desejo e sexo fossem levantadas. E nesse contexto, o
filósofo usa a palavra “sexo” como propriamente da relação sexual.

Quer dizer que, o fato de que o desejo e as relações são frutos da construção social. Ao
final desse primeiro título sobre sexualidade, Foucault (2001) ainda diz não acreditar que, ao
se dizer sim ao sexo, se esteja dizendo não ao poder; ao contrário, se está seguindo a linha do
dispositivo geral da sexualidade.

2.1.2 O Uso dos Prazeres

No segundo volume da História da Sexualidade, publicado em 1984, Foucault


desmonta seu pensamento em relação ao projeto inicial apresentado no primeiro volume. Faz-
se uma retomada à Antiguidade, realizando uma análise das práticas que rodeavam o sexo na
28

Grécia Antiga. Logo em seguida entra a religião, representada pelo cristianismo alterando o
cenário quando faz a ligação entre o sexo e o pecado. O estudo genealógico do filósofo gira
em torno de como o indivíduo, homem ocidental, se tornou um sujeito de desejo.

Sexualidade é uma expressão nascida do século XIX, é uma produção da conduta.


Porém, para Foucault, sexo também pode ser tido como discurso. O discurso se difere da
ideologia, pois esta é a idealização das coisas, enquanto o discurso é o que se diz em si. O
poder traz a sexualidade como um instrumento de controle do indivíduo e das massas,
deixando de lado o erotismo localizado. Assim o autor assinala:

O próprio termo "sexualidade" surgiu tardiamente, no início do Século XIX. É um


fato que não deve ser subestimado nem superinterpretado. Ele assinala algo diferente
de um remanejamento de vocabulário; mas não marca, evidentemente, a brusca
emergência daquilo a que se refere. (FOUCAULT, p. 9)

No projeto inicial foi feita uma correlação entre campos de saber, exemplos de
normatividade e formas das quais o sujeito forma sua subjetividade. Já no segundo momento,
o foco é em como os sujeitos se reconhecem como sexuais. Enfatiza-se, porém, que o objetivo
não é uma descrição de condições práticas ou regras que representem o comportamento
sexual, mas sim uma investigação de como indivíduos se reconheceram como sujeitos
portadores de uma sexualidade. Portanto, a ênfase é em homens enquanto sujeitos sexuais
que produzem a história como é vista hoje.

O objetivo primordial foi estudar esse campo histórico vasto e complexo, onde
indivíduos dotados de moral são convocados a serem sujeitos morais da conduta sexual. E,
ainda, é questionado como houve a transição e transformação desse pensamento grego à
doutrina cristã. Esse título indica como o pensamento médico e filosófico, ao longo da
história, catalogou esse uso dos prazeres e formou temas severos sobre relações com o corpo,
com a esposa, com rapazes e com a verdade. Relacionado ao último se encontra a sabedoria,
ocorrendo um transpasse na ligação desejo e verdade pela sexualidade. Assim, começa-se a
compreensão da tríade foucaultiana saber-poder-prazer. (FOUCAULT, 2007)

Para o filósofo não há existência do sujeito sem noção de poder. A sexualidade, por si
só, é uma construção onde se entrelaçam a preocupação com a moral, com a ética e as
técnicas e as práticas em relação a si próprio. Assim o Uso dos Prazeres segue uma construção
a partir da interação de jogos de verdade com regras de conduta. Então, para os gregos antigos
29

o ato sexual era visto como algo positivo. Já para os cristãos, era algo associado ao mal,
passaram a excluir uma série de atitudes ao verem a queda na infidelidade, homossexualismo
e na não-castidade. A partir daí, pregou-se uma abstenção, rigidez e respeito à interdição,
sujeitado o individuo ao requisito cristão em torno do sexo.

Assim, inicia-se uma doutrinação sexual, incluindo a organização prisional do século


XIII que provocou uma codificação da experiência moral. Porém, a moral na Antiguidade
greco-romana era orientada para a prática em si e não se direcionava às interdições impostas
quanto às relações. Na Grécia Antiga a homossexualidade era livre, fazendo parte de ritos que
eram mantidos por mestres e seus pupilos, tudo em nome da busca pela sabedoria
(FOUCAULT, 2007). A explicação das práticas de si, anteriormente citada, se dá quando
invadimos a Idade Antiga e entendemos que os gregos não possuíam instituições de sequestro,
como foi o caso da igreja, fundamentada no século IV. O que havia era uma técnica com a
atenção voltada para o corpo, um cuidado de si que influenciava nas práticas sexuais.

Em relação aos rapazes, havia inquietamento quanto ao uso dos prazeres. Os homens
gregos podiam escolher livremente entre qualquer dos sexos (gênero), pois o
homossexualismo era permitido pela lei e pela opinião pública, havendo uma grande
tolerância. Um dos únicos questionamentos existentes era em torno do relacionamento de
homens com idades diferentes, pois a passividade era mal vista no homem adulto, já,
supostamente, dotado de uma formação moral e sexual. A homossexualidade tinha seu papel,
também, na pedagogia, explica-se: a condução do aprendiz pelo mestre, o homem mais vivido
e sábio. Dentro da sociedade havia a homossexualidade, que estava ligada à corte, como uma
relação aberta, que configurava amor, já que sem a regulação de uma instituição, a conduta
estava na relação em si. O casamento era restrito ao espaço menos nobre.

Ao trabalhar o conceito de moral, Foucault considera que podemos ter duas


compreensões, que esta pode ser um conjunto de regras e valores de ação propostas aos
indivíduos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos ou o comportamento real dos
indivíduos em relação às regras e valores que são impostos. Existe uma tensão entre estas
duas faces, porém também existe uma semelhança, que é a forma pela qual é preciso se
conduzir. Assim, as práticas demonstram uma enorme importância, pois apresentam o sujeito
moral como sujeito de suas próprias ações, independendo de qual instituição ele esteja
inserido (FOUCAULT, 2007).
30

2.1.3 O cuidado de si

No terceiro volume da História da Sexualidade, também publicado em 1984, a


problemática do desejo continua sendo o cerne principal. O estudo do cuidado de si parte de
uma relação subjetiva entre sujeito e verdade. Foucault fixou como de sua pesquisa a noção
de epiméleia heautoû existente entre gregos, romanos e helênicos, entre um período do século
V a.C até o século II d.C. O autor confessa que o que é pertinente é a questão do sujeito, que é
colocada em uma estrutura diferente pelo preceito délfico de conhecer a si mesmo, na conduta
de si e por si e, ainda, em relação com o outro. Estando presente em mente que délfico refere-
se à cidade histórica de Delfos ou ao seu oráculo, considerado na Antiguidade grega como
portador de poderes proféticos.

Nessa referência délfica, segundo Foucault, não havia relação com fundamentos da
moral e nem com os deuses, pois para ir a Delfos, além de prudência, o indivíduo necessitava
lembrar-se que, sendo ser mortal, deveria conhecer a si mesmo. De forma que não devia
contar demais com sua própria força nem afrontar-se com as potências que são as da
divindade. Olhando por uma perspectiva histórica, coube, então a Sócrates estabelecer bases
para que a noção do cuidado de si tivesse espaço no campo filosófico (FOUCAULT, 1985)

Como citado anteriormente, a ideia de epimeleia heautou (ideia grega) foi usada como
base para a noção do cuidado de si. Esta ideia se referia a uma atividade geral, seria uma
forma de atenção, a forma como nos modificamos e purificamos para que possamos nos
transformar e transfigurar. Um conjunto de práticas e requisitos que funcionavam como
exercícios, que definiriam os destinos, quais sejam: da cultura, da filosofia, da moral e, ainda,
da espiritualidade ocidentais.

Enfim, com a noção de epimeleia heautou, tem-se todo um corpus definindo uma
maneira de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que constituem uma
espécie de fenômeno extremamente importante, não somente na história das
representações, nem somente na história das noções ou das teorias, mas na própria
história da subjetividade ou, se quisermos, na história das práticas da subjetividade.
(FOUCAULT, 1985, p.15)

Para o filósofo francês inquietava-se com o preceito do cuidado de si, devido as


inúmeras tentativas em se colocar essa noção dentro do conhecimento de si. Pois esse cuidado
de si seria, então, um suporte para todas as formas e práticas de existência do sujeito. Havia
31

ainda o termo que surgia dos gregos, gnothi seauton, tão prestigiado em detrimento da
expressão epimeleia heautou.

Agora da perspectiva epitemológica, o estudo foucaultiano para o cuidado de si é


produzido com base na história sendo um fenômeno cultural, em virtude de sua aceitação
geral em certas noções sobre o governo de si e de outro como forma de liberdade. Procura-se
compreender como esse fenômeno cultural conseguiu se inserir na história do pensamento, de
modo tão marcante que modifique/comprometa o modo de ser do sujeito moderno e,
inclusive, do sujeito contemporâneo.

Deve-se atentar à análise do sujeito de subjetividade, ou seja, analisar quais seriam


as formas pelas quais o sujeito era constituído e de como ele se reconhecera como
sujeito. Perpassando as ciências entre os séculos XVII e XVIII e os jogos de verdade
nas relações de poder, o estudo também objetivava estabelecer esses jogos na
relação consigo mesmo, trabalhando a constituição de si próprio como sujeito,
recolhendo como campo de investigação o que se poderia chamar de história do
homem de desejo (FOUCAULT, 1985, p. 195).

Foucault afirma acerca do cuidado de si que temos “(...) o paradoxo de um preceito do


cuidado de si e que, para nós, mais significa egoísmo ou volta sobre si e que, durante tantos
séculos, foi, ao contrário, um princípio positivo, princípio positivo matricial relativamente a
morais extremamente rigorosas”. (1985, p.17). Analisando seus estudos, a noção de cuidado
de si percorre toda a filosofia antiga e chega até o início do cristianismo. Deve ser
compreendido que a trajetória nasce com o personagem de Sócrates, incitando,
explicitamente, o cuidado de si.

Na leitura em Foucault, a noção de cuidado de si entre gregos e romanos deve ser


compreendida como um dever, um conjunto de procedimentos. Esta é a problemática
principal, que do ponto de vista filosófico, é a busca dos cuidados com a alma, a verdade e a
razão. O estudo rege-se entre platônicos e neoplatônicos, epicuristas, estoicos e cínicos, em
seus variados pensamentos filosóficos. O conjunto de em torno das expressões gregas traz
significados como conhecer-te a si mesmo, provar-se a si mesmo e renunciar a si,
transpassando exercícios de respiração, abstinência e resistência. (FOUCAULT, 1985)

Nesse título, a condição filosófica, para o autor é de deixar de colocarmos a questão do


poder entre o bem e o mal, mas a colocarmos em termos de existência. O papel da filosofia é
fazer ver aquilo que vemos (FOUCAULT, 1985, p. 43). Ainda, denomina o redirecionamento
de sua teoria quanto às formas de análises filosóficas e científicas como um progresso de
32

conhecimentos. Pois, por um lado acaba por interrogar sobre as práticas discursivas que
articulam o saber e, por outro, sobre as relações múltiplas, estratégias e técnicas que articulam
o exercício dos poderes. Em um último momento, redireciona seu estudo, então, para as
formas e modalidades da relação consigo mesmo, por meio das quais o indivíduo se constituía
e se reconhecia como sujeito (FOUCAULT, p. 195). Basicamente, o sujeito deve conhecer a
si mesmo para que, assim, possa saber como modificar sua relação consigo mesmo e com os
outros, numa incessante busca pelo que é a verdade.

2.2 Normalização das condutas e da sexualidade

A partir do relato feito até o momento, relatando a genealogia do poder e sua relação
com o controle da sexualidade, percebe-se os processos denominado de normalização das
condutas. Na verdade, Foucault já vai perceber, a partir da sua obra A História da
Sexualidade, que a forma mais ‘fácil’ de controlar as pessoas era através do controle de seu
corpo, e vai demonstrar como isto aconteceu ao longo da história. Este controle do corpo e da
alma, da subjetividade vai impor um padrão de conduta socialmente aceitável, tornando
desviante os padrões de condutas e comportamentos que não se adequarem neste padrão.

O paradigma da normalidade nos traz diversas possibilidades de uso, pois, afinal, o


que é normalidade? Usamos muito este termo em produções acadêmicas, em falas cotidianas,
não precisando, necessariamente, ter um único significado. Por definição “normalidade” seria
o que condiz com a norma, um hábito, um exemplo. Assim traz uma definição de um
dicionário de filosofia, que o “normal” seria uma conformidade com a norma, um equilíbrio.
Cria-se uma lista de especificidades das quais caracterizam, inclusive, as condutas dos seres
sociais. Esse processo de classificação das condutas em normais e anormais é visto
historicamente, quando da escravidão, da mudança de valores morais e éticos, da visão sobre
relacionamentos, padrões estéticos, etc. E de qualquer forma, sempre é possível identificar
quais seriam os padrões aceitos diante da sociedade.

A julgar pelos momentos históricos, cada grupo social cria um determinado


comportamento que constitui uma normalidade, dependendo da natureza das coisas. Quando
um indivíduo se comporta de forma diversa temos a anormalidade, o que não é bem visto pelo
grupo social, pois, simplesmente, não é o exemplo imposto. A normalidade é invariável,
impossibilidade de modificação ou flexibilização, o que torna as coisas um pouco
33

contraditórias é que até a nossa noção de normalidade é variada de tempos em tempos.


Trabalhando com um cenário histórico pós-moderno, uma pessoa é considerada normal
quando está mais próxima do que chamamos de ideal, ou seja, quanto mais encaixe houver
com os padrões de saúde/relacionamento/vida social, mais normal alguém seria considerado.

O meio social em si cria definições para normal e anormal, estabelecendo o destino de


quem se encaixa em determinada conceituação dentro da sociedade, mas isso não quer dizer
que as definições sejam unânimes. O que se percebe a partir de Foucault é que estes padrões
sociais são permeados por relações de poder, sejam ele poder disciplinar ou biopolítica.
Portanto, são através dos dispositivos de poder que os padrões de comportamento e condutas
vai sendo moldados no cotidiano. Deste modo, enquanto construção social permeada por
relações de poder, o que acontece é que ao coexistirem, normal e anormal, ao mesmo tempo
que um indivíduo considerado normal em uma comunidade, pode ser considerado anormal em
outra, considerando as duas no mesmo espaço social. A exemplo disto têm as comunidades de
apoio a diferentes causas dentro de um mesmo espaço social.

As condutas anormais, que fogem da normalização, acabam se tornando instrumentos


do poder para que as mesmas condutas sejam reguladas (normatizadas) e, nesse sentido, é
clara a conclusão de que a norma não pretende apenas o regramento, mas também a punição
para quem foge do estabelecido. Essa noção de normal/anormal vai ser estudada por Foucault
no campo da ciência, onde se têm as práticas clínicas de psiquiatria, entre o final do século
XVII e o início do século XIX. Ele trata o poder psiquiátrico como um “intensificador da
realidade”, que funciona como um poder suplementar dado à realidade, sendo uma maneira de
regrar em uma tentativa de dominação. O que nos remete ao controle pelo poder novamente,
onde o indivíduo está sujeito a uma vontade e um saber alheio.

É necessário o entendimento desse campo da psiquiatria para os estudos em Foucault,


pois sua composição de aulas no curso de 1975 dedica-se ao estudo do “monstro humano”.
Anteriormente a essa data, a figura do monstro remetia diretamente a de “transgressão”, pois
consistiria em um ser que transgredia a ordem natural, fosse ela civil ou religiosa, ou ambas.
Já ao fim do século XVII, esse termo será substituído pela noção de irregularidade, a exemplo
do sujeito hermafrodita (FOUCAULT, 2010).
34

Então, ao ligar os termos monstruosidade e irregularidade, tem-se uma noção de que


determinado sujeito considerado irregular é o sujeito distante do acordado jurídica e
naturalmente, ou seja, passando a serem relacionados com a conduta do sujeito. Fala-se,
ainda, em monstro moral, no qual a estranheza está presente em seu comportamento, diferindo
do “erro” da natureza. A exemplo de monstro moral pode ser citado o rei tirano, quando faz
do seu próprio interesse uma imposição a todos seus súditos, situando acima do poder
jurídico. Outro aspecto interessante em se falando de monstro moral é quando este é
representado pelo povo que se revolta, de forma revolucionária, também saindo dos ditames
normais de imposição do poder. (FOUCAULT, 2010).

Ao longo dos tempos as condutas são manipuladas sem que sequer percebamos. A
submissão aos instrumentos de poder é feita de forma silenciosa. Se trouxermos isso de forma
mais palpável temos o exemplo mais corriqueiro na sociedade contemporânea, que é a
invasão na vida dos sujeitos através das redes sociais. Não estar presente nesse meio pode
fazer com o sujeito seja considerado “fora do normal” e, até mesmo, excluído. Confrontamos
pelo consumo excessivo e a necessidade de cada vez maior visibilidade, nos flagramos com
uma reformulação das identidades como formas de assegurar princípios como inclusão e
exclusão, que são produtos do mercado (BAUMAN, 2008 apud SILVA, p. 3, 2012).

Enfim, apesar dos estudos sobre normalidade, não se define de forma definitiva um
conceito do mesmo. A genealogia dos anormais indica que, sobretudo após a configuração das
noções de normal e de anormal no seio do saber e das práticas da psiquiatria, enquanto poder,
é que será possível a difusão maciça das tecnologias do poder de normalização para todas as
outras instâncias da sociedade.

A constante busca pelo que tornou a identidade do sujeito o que é hoje e como o
processo histórico influenciou, e influencia, nesse processo é traço característico nos estudos
de Michel Foucault.
(...) todas estas lutas contemporâneas giram em torno da questão: quem somos nós?
Elas são uma recusa a estas abstrações, do estado de violência econômico e
ideológico, que ignora quem somos individualmente, e também uma recusa de uma
investigação científica ou administrativa que determina quem somos.
Em suma, o principal objetivo destas lutas é atacar, não tanto ‘tal ou tal’ instituição
de poder ou grupo ou elite ou classe, mas, antes, uma técnica, uma forma de poder.
Esta forma de poder aplica-se à vida cotidiana imediata que categoriza o indivíduo,
marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõem-
lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os outros têm que reconhecer
nele. É uma forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos. Há dois significados
35

para a palavra ‘sujeito’: sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua
própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma
forma de poder que subjuga e torna sujeito a. (FOUCAULT, 1995, p.235).

Porém é necessário cuidado quando tentamos diferenciar e conceituar indivíduo e


sujeito dentro da obra do filósofo. Devemos pensar que o início de sua análise não se dá pelo
sujeito, mas através dele, estudando como variados e variáveis processos de objetivação e
subjetivação constroem o ser humano em sujeito. O termo sujeito pode significar o indivíduo
que está ligado a uma identidade que reconhece sendo sua. Se utilizando da genealogia,
Foucault explicita a identidade do indivíduo moderno: objeto dócil-e-útil e sujeito; carregando
em seu manto de estudo também um personagem fundamental da filosofia no ocidente, o
sujeito de conhecimento (FONSECA, 2011, p. 26).

Explana-se sobre condutas normais e anormais, normativas, desvios de conduta;


classificam-se os sujeitos como heterossexuais, homossexuais, trans, bi, pan, plurissexuais. A
busca da identidade através da sexualidade é o que nos move nos tempos de modernidade, e a
construção histórica do sujeito nos mostra isso, como a sexualidade influenciou e serviu como
meio de controle, regramento e até repressão. (XAVIER, 2003, p. 2).

O dispositivo da sexualidade, neste estudo, deve ser pensado como um dispositivo


capaz de permitir a proliferação do discurso sobre a própria sexualidade. O termo “sexo”
surge como uma das funções desse dispositivo para Foucault (1993), como meio de
construção de domínios da sexualidade, ou seja, sendo o produto do dispositivo e não o
fundamento em si. Segundo ele,

O discurso de sexualidade não se aplicou inicialmente ao sexo, mas ao corpo, aos


órgãos sexuais, aos prazeres, às relações de aliança, às relações inter-individuais,
etc. (...) um conjunto heterogêneo que estava recoberto pelo dispositivo de
sexualidade que produziu, em determinado momento, como elemento essencial de
seu próprio discurso e talvez de seu próprio funcionamento, a ideia de sexo
(FOUCAULT, 1993, p. 259).

A sexualidade seria uma forma de buscar definir a identidade de quem somos, nossa
subjetividade. Quando o objeto sexo surge como produto do dispositivo, vão começar a serem
identificadas as práticas de suporte desse discurso, como os atos homossexuais, que apesar de
já existirem na história não eram definidos como uma “condição diferenciada”. Assim,
passam a categorizar grupos e indivíduos, variados sujeitos da sexualidade.
36

Como já visto em a História da Sexualidade, ao longo da história foram usados


diversos procedimentos para que se pudesse descobrir uma ligação entre práticas e verdade,
forçando o sujeito a reproduzir o discurso sobre a sexualidade, um desses procedimentos será
a confissão, por exemplo. O homem (considera-se homem como indivíduo dentro da
sociedade) é, portanto, produto histórico e, além disso, é um produto de forças que são as
relações de poder, pois todas as suas vontades e ações se entrelaçam a essas forças, são
resultados. Na Idade Média o homem só poderia ser o produto de forças que o conectavam
com deus, sendo em si parte dessa conexão. Já na época moderna, o homem rompe esses
únicos laços, passa a se compreender conforme seu limite e potência são caracterizados, não
“fugindo” de seu próprio corpo. Enquanto o homem pós-moderno não é produto de forças que
são “ligadas aos céus” e nem se limita ao próprio corpo, mas sim produto das relações de
poder no meio social, dos questionamentos sobre a vida (PEZ, 2010, p. 3).

Incluindo a experiência individual em torno do sexo, produzindo a subjetividade, pois


tem-se um meio de identificação da maneira de ser feito pelo próprio ser.

Para Foucault não existe subjetividade e sim processos de subjetivação. Mas o que
seriam processos de subjetivação? Machado L. (1999: 214) esclarece: que
acreditamos ser nossa personalidade, nosso mais íntimo desejo, são expressões-em-
nós da história de nossa época. A própria necessidade de acreditarmos que temos
coisas que nos são particulares e que nos diferenciam do resto do mundo é uma
produção própria do momento que vivemos hoje. Nós somos atravessados por toda
uma complexa teia de aspectos desejantes, políticos, econômicos, científicos,
tecnológicos, familiares, culturais, afetivos, televisivos... Entretanto, cada um de nós
tem uma história de vida que é singular, mas que não é interior. (Souza; Machado;
Bianco, 2008, p. 20 – 21).

Há a mudança de identidade para identificação, para que faça parte de um dispositivo


para que funcione como realidade, ou seja, um modo de ser, de se conduzir e se relacionar.
Resgata-se a característica do que é semelhante/relativo na identidade e usa-se no mecanismo
da identificação para que isso aconteça. Assim, ganham-se novos domínios da sexualidade, a
partir de uma posição que se assume. Essa posição é uma soma da qualidade e da
qualificação, do que é semelhante e da ação que acontece em determinado meio de
regramentos que configuram uma experiência histórica da sexualidade. A partir daí temos a
enunciação, que é uma exposição que possibilita a fala, a prática do discurso e, logo, para que
o sujeito tome um posicionamento sobre sua identidade (XAVIER, 2003, p. 11-12).

O que pode ser absorvido dos estudos de Foucault sobre o processo de construção da
identidade do sujeito é o fato desse processo ser um movimento além do que é visto em seu
37

momento histórico. Pois sempre busca mostrar onde as forças de poder estão realmente
presentes, onde parece não existir dominação ou onde parece ser absoluta. Assim, temos as
práticas de liberdade, a renovação contínua do sujeito em sua identidade, que cria novas
singularidades e, logo, novas formas de pensar a vida e seus propósitos. Os conceitos
trabalhados em Foucault também não devem ser considerados estáticos, visto o trabalho
histórico e ligação íntima com as relações de poder, que são, na verdade, microrrelações
(PEZ, 2010, p.6).

A impossibilidade de ter uma perspectiva imediata de nossos corpos e das forças que o
moldam é crítica, porque nos é apresentado um leque de interpretações agradáveis sobre essas
forças, como elas podem ser positivas e convincentes buscando que melhoremos sempre, sem,
sequer, nos lembrarmos que é necessária uma discussão sobre isso, já que é considerado algo
da “normalidade”.

Enfim, esse movimento construtivo é, ao mesmo tempo, uma desestabilização e uma


construção do que conhecemos e do que consideramos normal-anormal. A identidade está
entrelaçada com a sexualidade que, assim, está amarrada ao controle do corpo que é objeto de
variados questionamentos e uma criação histórica e social. Do mesmo modo, a identidade e o
poder estão entrelaçados com os estereótipos de gênero.

Desta forma, será o sexo biológico o definidor que pré determinará as expectativas
sociais e econômicas do sujeito, a partir das dicotomias masculino/feminino, também é
esperada a coerência entre corpo, comportamento, vestimenta, carreira profissional, gênero,
práticas sócias, entre outras. Deste modo, a partir do controle dos corpos, realizado por meio
das instituições que se prestam ao exercício do poder, como o direito, são estabelecidas as
determinações de gênero (SCOTT, 1990).

A partir da teoria de poder e dos estudos sobre sexualidade Foucault é que são
constituídas as atuais definições de gênero, como a de Joan Scott (1990), para quem este é a
organização social da relação entre os sexos, presentes em todas as relações sociais, em todas
as sociedades e épocas, sendo, portanto, atemporais e universais. É, de acordo com a autora,
tanto um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas
entre os sexos, quanto uma maneira primária de significar relações de poder, cuja construção
38

apresenta três características principais: uma dimensão relacional, a construção social das
diferenças percebidas entre os sexos e um campo primordial onde o poder se articula.

A constante mutabilidade dos instrumentos de legitimação se distancia da precisa


identificação destes. Porém, é possível afirmar que essas tecnologias de controle apenas
mudaram para que pudessem se adaptar às novas realidades da sociedade, denominada por
alguns pensadores de pós-moderna. Assim, com base em Foucault, o estilo com que se
governa define os demais aspectos da vida dos governados por meio do biopoder, colocando o
Direito e o Estado a serviço de toda essa normatização. A dominação passa sutilmente pelas
massas, de modo que os indivíduos são inseridos em um cenário estratégico, onde são
percebidos como úteis ou inúteis, assim, acreditando em qual conduta seria “normal” ou
“anormal”, por pura razão instrumental.

A (i)legitimidade das condutas se torna cada vez mais evidente com o passar dos anos,
especialmente com a evidencia de que o ordenamento jurídico adotou um gênero em suas
normas, anormalizando condutas que não se encaixem perfeitamente. O grande clímax chega
quando a realidade evidencia que os corpos, na verdade, não são dóceis, e que a definição de
gênero é, como ensina Butler (2008), uma complexidade cuja totalidade é permanentemente
protelada, jamais plenamente exibida em qualquer conjuntura considerada, uma assembleia
que permita múltiplas convergências e divergências, sem obediência a um telos normativo e
definidor.

Como fonte de estudo, temos Judith Butler (2008), em sua obra Problemas de gênero:
feminismo e subversão da identidade, filósofa pós-estruturalista e considerada, também, pós-
feminista, faz os questionamentos sobre as noções de gênero e sexualidade, verdades prontas,
e, também, sobre o corpo, pois, para a autora, não existe corpo anterior ao choque cultural,
predeterminado, apenas como resultado biológico, mas sim produzido pelas mesmas
tecnologias discursivas que amparam sexos, gêneros e sexualidades.

Segundo a filósofa, a própria compreensão sobre identidade tem como centro a


discussão sobre gênero que, na linha do que aconselhava Foucault, as pessoas só se tornam
inteligíveis ao adquirir seu gênero em conformidade com padrões reconhecíveis de
inteligibilidade do gênero. Como gêneros inteligíveis, define Butler (2008), serão aqueles que
mantêm uma relação de coerência entre sexo, gênero, pratica sexual e desejo, restando
39

marginalizados pelas leis a causalidade entre o sexo biológico e o gênero culturalmente


construído.

Não se pode deixar de lado que em Foucault, Butler (2008) afirma que o sexo não
corresponde ao ambiente politicamente neutro sobre o qual a cultura se insere, mas que é um
resultado de discursos que expressam determinados interesses, sejam eles políticos e sociais.
Assim, a concepção de sexo como um dado natural/biológico é um efeito da construção
cultural de que devemos esperar certos comportamentos dos sujeitos, pois, só assim, seriam
adequados as regras sociais.

Deste modo, a problemática do sujeito é constitutiva do projeto de Foucault, segundo


constata Fonseca (2002). O sujeito transcendental, herdeiro do iluminismo, como medida de
todas as coisas, é questionado e relegado. Combate-se a soberania, do homem, enquanto
sujeito; o homem não é aquilo a partir do qual se organiza o sentido. Ele é mesmo produto de
certa prática discursiva que determina suas condições e possibilidades. Segundo Fonseca, é
nesse contexto que Foucault “determina a ‘morte do homem’”. Trata-se não mais de pensar o
homem a partir do próprio homem, mas de examinar os modos de normalização e constituição
do sujeito, ou seja, as operações discursivas pelas quais o individuo se constitui a si próprio
como louco, delinquente, doente, saudável, cidadão, mulher, homem, etc. Há que se
considerar que no decurso de tais operações discursivas de normalização o direito ocupa um
papel privilegiado de efetivação do controle e do poder.

Assim, a principal consequência desse empreendimento filosófico reside, de acordo


com Fonseca (2002), na possibilidade de abertura, do pensamento a um novo espaço: o de
poder pensar como, em uma cultura como a nossa, se instituem relações de alteridade e se
realizam as constituições de identidade e diferença. A par disso têm-se inegáveis
contribuições para a reflexão acerca de uma nova ética que se contraponha aos discursos
normalizantes dos dispositivos de dominação, discursos estes que produzem sujeitos a partir
da submissão a uma moralidade hegemônica religiosa ou legal. A problematização
foucaultiana na busca de uma nova forma de constituição da subjetividade, de novos modos
de sujeição que se estabeleçam como uma escolha ativa e pessoal na construção de uma
existência bela - como uma estética da existência - permanece fundamental na atualidade.
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CONCLUSÃO

Saber a diferença entre os termos sexo e gênero é muito importante para que se possa
fazer uma desconstrução de discursos usados durante séculos. Esses discursos se limitam a
categorizar as diferenças em características anatômicas, estereótipos entre masculinidade e
feminilidade e, ainda, sobre papeis de gênero, o caráter domiciliar e familiar ligado ao
feminino, por exemplo.

Ao reconhecer um processo histórico que normaliza nossas condutas e termos a noção


de que a categoria gênero é reconhecida, podemos dizer que é fundamental para que possamos
entender a necessidade da igualdade entre homens e mulheres, no que diz respeito a diversas
esferas da sociedade. Igualdade em quaisquer direitos dentro dessa sociedade, sejam eles
políticos, sociais, econômicos, familiares, etc.

O estudo de gênero e sexualidade, explanada um pouco de sua história na obra de


Michel Foucault (História da Sexualidade), demonstra claramente a importância do momento
histórico, social e político, para que conceitos como estes sejam formados, mesmo que nunca
sejam estagnados. E a influência constante das relações de poder para a constituição da
subjetividade dos sujeitos dentro da sociedade.

Dentro de um convívio social temos diversas culturas, classes, histórias e


sexualidades, posicionando-se em diferentes grupos sociais, formando também diversas
identidades. Temos concepções que refutam as criadas pelo senso comum, pois se afastam da
ideia de masculinidade e feminilidade hegemônica impostas, pelo simples fato de serem
consideradas diferentes.

Enfim, a pesquisadora Guacira Louro aponta que “serão sempre as condições histórias
específicas que nos permitirão compreender melhor, em cada sociedade específica, as relações
41

de poder que estão implicadas nos processos de submetimento dos sujeitos” (1997, p. 53). A
construção da identidade de gênero é processo histórico, moldada pela época e pelas
microrrelações de poder a que está submetida, é um reconhecimento de si que o sujeito
carrega, sendo mais fácil modificar sua forma anatômica (sexo) do que sua constituição
psicológica (gênero).

Deste modo, do que depreende-se dos estudos de Michel Foucault, especialmente com
relação à sexualidade, é que ele ajuda a desmistificar os argumentos arcaicos mas ainda
existentes de que comportamentos de gênero e de sexualidade são atribuições naturais,
essenciais de cada ser humano. Não há essências, mas sim histórias, individualidades, corpos
e subjetividades construídas a partir de uma inserção histórica, perpassada por relações
patriarcais de poder. Com Foucault podemos dizer sim, que sexualidade e gênero não são
destinos naturais, mas construções históricas e sociais que diferenciam e discriminam as
pessoas. Do mesmo modo, permanece a esperança porque, enquanto construções culturais,
podem bem ser desconstruídas em prol da igualdade.
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