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A Liderança do ponto de vista

da Psicanálise
CAPITÃO-TENENTE (T) PRISCILLA CORRÊA DE OLIVEIRA
Ajudante da Divisão de Pesquisa do SSPM
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ);
Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O presente trabalho pretende refletir sobre o conceito maneira voluntária para que sejam alcançados os obje-
de liderança e a sua importância para uma Organização tivos de um grupo. Desta forma, podemos inferir que
Militar. Para tanto, serão articulados conceitos psicana- a liderança efetiva em uma Organização tende a au-
líticos com estudos e publicações da Marinha, especial- mentar sua produtividade, bem como a satisfação de
mente com o Manual de Liderança da Diretoria de En- seu pessoal, uma vez que pressupõe a motivação para
sino da Marinha (1996), para que seja possível avançar uma contribuição espontânea. Por tudo isso, a propos-
na compreensão dos mecanismos em jogo na liderança, ta desse trabalho é refletir sobre a liderança e pensar de
bem como para repensarmos o uso a ser feito dela. que maneira podemos aplicar esses conhecimentos no
aprimoramento de nossos processos de trabalho dentro
de uma Organização Militar.
O conceito de liderança
[De liderar + -ança.] O ser humano é um
S.f.
animal de horda
1. Função de líder.
2. Capacidade de liderar; espírito de chefia. A multidão sempre quer ser dominada por um po-
3. Forma de dominação baseada no prestígio pes- der ilimitado. Ela está, em seu mais alto grau, ávi-
soal e aceita pelos dirigidos da por autoridade. Tem sede de submissão.
(Dicionário Aurélio Eletrônico 3.0). (FREUD, 1921/1996)

Uma das definições acima propostas pelo Dicionário A liderança está presente nas relações sociais desde
Aurélio Eletrônico 3.0 para o termo liderança é: “forma os tempos mais primitivos. Da mesma forma, nos pri-
de dominação baseada no prestígio pessoal e aceita pe- mórdios da história de cada ser humano, ele foi mar-
los dirigidos”. No Manual da DEnsM (BRASIL, 1996), a cado pela influência pregnante de, ao menos um outro
liderança é definida como um processo de influenciação ser, comumente seus pais, na tomada de suas decisões.
e persuasão que atua no sistema de atitudes do indiví- Freud, em seu texto intitulado Psicologia de Grupo e a
duo, dentro de um grupo. O Manual ressalta ainda que, Análise do Ego (1921/1996), aponta para uma tendência
para ser considerada efetiva, a liderança precisa ser vo- do ser humano a se organizar em torno de um líder.
luntária e legítima. O autor explicita em seu texto que o ser humano é um
Nas duas definições apresentadas acima, podemos “animal de horda” que está sempre em busca de alguém
destacar a importância da influência do líder, que apa- que possa conduzi-lo em suas escolhas.
rece diretamente relacionada ao seu prestígio, condição E, para melhor ilustrar esse fenômeno, Freud
para que os liderados voluntariamente aceitem segui-lo. (1921/1996) analisa o caso do exército. O autor observa
E, como o Manual destaca, a adesão voluntária é con- que o soldado do exército toma seu superior como um
dição para a caracterização da liderança propriamente “Ideal” e é justamente por isso que esse último pode ser
dita. chamado de líder. Ou seja, ele demonstra que, a partir
A publicação da DEnsM (BRASIL, 1996) fornece uma do momento em que um grupo, submetido a um chefe, o
outra definição de liderança que parece ainda mais com- toma como um “ideal do ego”, esse passa a ocupar o lu-
pleta, pois coloca em questão os interesses da institui- gar de líder. Aí se encontra a diferença, muitas vezes su-
ção em que está inserida, a saber: “(...) é o processo til, entre um mero chefe e um líder propriamente dito.
que consiste em influenciar pessoas no sentido de Ao mesmo tempo em que se dá essa operação que fun-
que ajam, voluntariamente, em prol dos objetivos da da o líder no interior de um grupo, há a formação de
instituição” (p.40). Ou seja, a liderança deve conduzir um laço afetivo entre os demais liderados. Os membros
os liderados de acordo com os valores e interesses da desse grupo identificam-se entre si, passam a partilhar
Organização. obrigações de mútua ajuda e esperam ser reconhecidos
A liderança, portanto, pode ser pensada como um pro- como iguais perante o líder. Nas palavras de Freud: “um
cesso de condução de pessoas que procura motivar e grupo primário desse tipo é um certo número de indiví-
influenciar seus liderados, a fim de que contribuam de duos que colocaram um só e mesmo objeto [o líder] no

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lugar de seu ideal do ego e, consequentemente, se iden- Notamos, então, que, desde que um sujeito é colocado
tificaram uns com os outros (...)” (FREUD, 1921/1996, nessa posição de Ideal, ele passa a deter um poder sobre
p.126). o grupo, que podemos denominar de prestígio. Mas que
Em suma, a teoria freudiana nos mostra que um grupo poder misterioso e muitas vezes irresistível é esse que
submetido a um líder apresenta dois processos em sua chamamos de prestígio?
estrutura: a identificação entre os liderados e a coloca- O prestígio, segundo o Dicionário Priberam da Língua
ção do líder em posição de “ideal do ego”. Portuguesa, é definido como influência decorrente de
Simbolicamente, podemos dizer que o líder vai ocupar algo ou alguém tido como admirável, como poder de
o lugar de “pai” dentro do grupo, e os liderados serão atração. De acordo com Freud (1921/1996), o prestígio
como irmãos que reivindicam o amor paterno. Dessa consiste em uma forma de domínio exercido sobre nós
forma, o autor nos indica que o que sustenta os grupos por um sujeito ou ideia, capaz de paralisar nossa capa-
é um tipo de laço que podemos chamar de afetivo ou cidade de crítica, enchendo-nos de admiração e respeito.
amoroso, tal como nas formações familiares. Mais ainda, o autor acrescenta que esse prestígio gera
Para submeter-se a um líder, é preciso ter com ele um uma espécie de fascinação que pode ser comparada com
laço emocional e, em contrapartida, espera-se dele um a hipnose. Isso explica por que alguns líderes ao longo
tratamento igualitário em relação a seus pares. Podemos da história da humanidade foram seguidos por seu povo
dizer que os liderados “amam” seu líder e esperam que sem qualquer questionamento crítico, tal como ocorreu
ele os “ame” em retorno. Com isso queremos dizer que com Hitler na Alemanha.
o preço pela submissão a um líder é a expectativa de A partir da teoria da psicanálise, podemos notar que,
que ele trate todos os seus “filhos” igualmente, sem de- na medida em que colocamos alguém em posição de al-
monstrar preferências. Logo, para que um líder sustente teridade, de Outro e, assim, supomos que esse alguém
o lugar que lhe é oferecido perante um grupo, é exigido pode nos guiar em nossas ações, nós dotamos esse su-
que trate a todos com justiça e imparcialidade. jeito de um poder sobre nossas vidas. Essa seria a base
Freud (1921/1996) acrescenta que a liderança também do que ocorre quando um grupo situa alguém em posi-
pode ser negativa e, neste caso, ao invés de ser base- ção de líder, momento em que as decisões deste passam
ada em um laço amoroso, é regida pelo ódio. O líder a influenciar todos os liderados.
negativo, segundo o autor, é descrito como aquele que Ao mesmo tempo, a psicanálise nos mostra que, por
se orienta pelo ódio a alguém ou a uma instituição, po- trás dessa influência que passa pelos pais, professores,
dendo funcionar com os mesmos laços emocionais que médicos, chefes e todos aqueles que ocupam um lugar
ocorreriam em uma liderança positiva. Isso nos adver- de alteridade ao longo da vida de um sujeito ou grupo,
te quanto ao risco do surgimento de lideranças regidas há um laço afetivo que não pode ser desprezado. Como
pelo ódio, a fim de evitar as consequências desastrosas foi introduzido no tópico anterior, esses laços emocio-
que esses grupos podem gerar para as Organizações. nais são a essência da mente de um grupo. Em última
instância, podemos dizer que o que mantém o grupo
unido é o laço emocional com o líder e entre os lide-
O poder do líder rados.

O prestígio pessoal liga-se a umas poucas pessoas,


que se tornam líderes por meio dele, e tem o efeito Atributos do líder
de fazer com que todos lhes obedeçam como se
fosse pelo funcionamento de uma magia magnéti- Só poderemos ser considerados líderes quando
ca. (FREUD, 1921/1996, p.91). nossos homens nos olharem com confiança, quan-
do eles se mostrarem ansiosos por conhecer nos-
Uma vez compreendido que o ser humano tende a or- sos desejos, ávidos por ganhar nossa aprovação e
ganizar-se em grupos cuja estrutura coloca um determi- prontos a se empenhar a uma palavra nossa, na
nado sujeito em posição de liderança sobre os demais, execução de nossas ordens, sem mesmo conside-
cabe questionar o que estaria por trás desse poder des- rar se estão certas ou erradas.
tinado ao líder. Afinal, como é possível que um sujeito (Comandante do “USS Clark”- USN, CMDR. HEWLETT
detenha tamanha autoridade sobre um grupo? De onde THEBAUD apud BRASIL, 2010, p. 14).
vem esse poder que, por exemplo, permitiu que Hitler
liderasse uma nação inteira, até mesmo pessoas muito A partir do caminho percorrido neste trabalho, pode-
cultas e instruídas, na perseguição aos judeus? mos entender melhor por que se espera tanto de um
Como foi dito anteriormente, todo sujeito, no início de líder. Notamos que este precisa constantemente susten-
sua história, está submetido cegamente à influência de tar o lugar de Ideal oferecido pelo seu grupo, sob risco
seus pais (ou àqueles que ocupam o lugar deles). Esses constante de ser despojado de sua posição privilegia-
são os primeiros a ocuparem para cada sujeito o lugar da. Constatamos que, para fazer jus ao lugar de “ideal
de um Outro, com maiúscula. Este Outro diz respeito a do ego” que lhe é oferecido, ele tem de dar provas de
uma posição de alteridade, inicialmente encarnada pe- merecê-lo.
los pais de uma criança e, posteriormente, ocupado por Primeiramente, o líder precisa apresentar uma for-
algumas poucas pessoas que virão influenciar a vida de mação sólida, um bom preparo teórico, para que este-
cada um (professores, mestres, chefes, etc.). Trata-se de ja apto a conduzir seus liderados sem reduzir-se a um
uma posição de Ideal, lugar daquele que supostamente mero seguidor de regras ou procedimentos preexisten-
seria capaz de guiar o sujeito em sua vida. tes. Além de seus conhecimentos, ele tem que ser capaz

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de transmitir permanentemente a ética e os valores da cada militar possa repensar a posição que ocupa dentro
organização em que está inserido. Mas o maior desafio da Organização em que se insere e, principalmente, abre
de um líder será sempre despertar a adesão voluntá- espaço para que busque sustentar o lugar de líder diante
ria de seus liderados para que sejam alcançados os de seus subordinados. Para isso, é preciso conquistar a
objetivos almejados. admiração e confiança de seus liderados, trabalho árduo
Sobretudo percebemos que a confiança no líder é es- e contínuo, condição para o exercício da liderança.
sencial para que ele consiga contagiar o grupo. É assim
que ele inspira seu pessoal a ir além no exercício das
tarefas propostas, mostrando o poder da liderança no
crescimento das organizações. Referências
Bibliográficas:
A liderança na Marinha
do Brasil (MB) BRASIL. Ministério da Defesa. Manual de Liderança.
1ª edição. Rio de Janeiro: Diretoria de Ensino da Ma-
rinha, 1996.
O comandante-chefe é um pai que ama todos os
soldados igualmente e, por essa razão, eles são
BRASIL. Ministério da Defesa. Conselho aos Jovens
camaradas entre si. (...) Todo capitão é, por assim
da Marinha. Brasília: Marinha do Brasil, 2010.
dizer, o comandante-chefe e o pai de sua compa-
nhia, e assim também todo oficial inferior, o de
BURSZTEIN, J. G. Hitler, a tirania e a psicanálise: en-
sua unidade.
saio sobre a destruição da civilização. Rio de Janei-
(FREUD, 1921/1996, p.106).
ro: Companhia de Freud, 1998.

No militarismo, a importância da liderança nas Orga-


DICIONÁRIO PRIBERAM DA LÍNGUA PORTUGUE-
nizações é bastante evidente. A carreira militar, caracte-
SA. Disponível em: http://www.priberam.pt/dlpo/
rizada pela ascensão progressiva na hierarquia, impõe
default.aspx?pal=prestígio. Acesso em: 24 de abr.
a necessidade de que todos possam atuar como líderes.
2011.
A liderança, portanto, deveria comparecer em todos os
postos e graduações, tendo no Comando a sua expres-
FREUD, S. “Psicologia de Grupo e a Análise do ego
são máxima. Mas não podemos esquecer que, apesar da
(1921/1996)”. In: Edição standard brasileira das
autoridade legal que cada posto ou graduação oferece
obras psicológicas completas de Sigmund, v. XVIII.
ao militar perante seus subordinados, é necessário con-
Rio de Janeiro: Imago, 1996.
quistar, permanentemente, por iniciativa própria, a ca-
pacidade de influenciar seus subordinados para ascen-
OLIVEIRA, P. C. Do lugar dos sacerdotes ao não lugar
der, de fato, à posição de líder.
do analista: uma articulação pela transferência. Dis-
Para tanto, devemos lembrar, como foi apresentado
sertação de Mestrado em Teoria Psicanalítica. Insti-
anteriormente, que a liderança na MB deve ser nortea-
tuto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
da pelos interesses da Organização Militar em que está
Janeiro – UFRJ. Rio de Janeiro, 2005.
inserida e, principalmente, pelos valores essenciais da
Marinha do Brasil.
Mais ainda, o líder deve preocupar-se em sustentar 1.
O termo “Ideal” com maiúscula diz respeito a al-
sua posição de Ideal frente aos seus subordinados, tra-
guém em posição de referência, de modelo.
tando-os com justiça e imparcialidade, seja no que con-
cerne às escolhas, designações para cargos e funções, 2.
O “ideal do ego”, também conhecido como supe-
nas promoções, bem como nas punições e distribuições
rego, é descrito na obra de Freud (1923/1996) como
de tarefas. Espera-se que ele saiba agir de maneira crite-
uma parte modificada do ego, responsável por apre-
riosa, de modo a não abalar a confiança de seus lidera-
sentar os valores a serem seguidos pelo sujeito, as-
dos. Aí comparece a importância do exemplo pessoal,
sim como para impor aquilo que não deve ser se-
pois para ser admirado é preciso apresentar compor-
guido. Ou seja, é uma referência com a qual o ego
tamentos e qualidades que justifiquem a posição de
está constantemente se comparando e que, muitas
Ideal que lhe foi oferecida. Afinal, devemos lembrar
vezes, é responsável pelo sentimento de culpa.
que é como Ideal que o líder tem o poder de mobilizar
espontaneamente seus subordinados em direção a seus 3.
O conceito de grande Outro na obra de Lacan diz
objetivos.
respeito a uma posição de referência, em direção à
qual o sujeito se dirige em busca de respostas para

Considerações finais suas questões.

O percurso trilhado ao longo deste trabalho deixa claro


como a liderança pode ser determinante no crescimen-
to de uma Organização Militar. Além disso, o conheci-
mento das bases que sustentam a liderança permite que

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