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MANA 18(2): 393-410, 2012

RESENHAS

AGIER, Michel. 2011. Antropologia da ci- “prefácio” de Cordeiro e Frúgoli Jr. que
dade: lugares, situações, movimentos. São nos oferecem, além de comentários sobre
Paulo: Editora Terceiro Nome. 213 pp. o livro, uma análise luso-brasileira da tra-
jetória de Agier, seus diálogos, conceitos
e contextos. O resultado não é um todo
Guilherme Gitahy de Figueiredo coerente, mas fragmentos inacabados,
Universidade do Estado do Amazonas em construção, em interlocução. Ainda
Doutorando do PPGAS/MN/UFRJ assim a versão belga, de um ano antes,
foi lida como “límpida e construtiva” na
Neste livro, Michel Agier nos faz uma resenha da geógrafa Caroline Rozenholc.
contribuição estratégica: não traz uma Efeito de práticas de pesquisa cujas me-
“investigação de exotismo a qualquer diações Agier dedica-se a compartilhar.
preço” (:47). Ele fez carreira tecendo As três partes do livro seguem uma se-
situações e redes de interlocução com quência não cronológica em que desfilam
habitantes e intelectuais das cidades (1) as ferramentas teóricas e metodoló-
das margens mundiais, tendo integrado gicas, (2) a etnografia na cidade e, por
grupos de pesquisa na Colômbia e em indução, (3) um aporte antropológico para
Salvador, onde viveu sete anos. Foi com o debate interdisciplinar sobre a cidade.
a colaboração de seus interlocutores de Agier revela-se um bricoleur. O pri-
Lisboa e São Paulo – Graça Índia Cordei- meiro capítulo é uma entrevista, o que
ro, Heitor Frúgoli Jr. e José Guilherme lhe permite historicizar suas escolhas de
Magnani – que produziu esta tradução Lomé e Camarões à Colômbia, passando
revisada e ampliada. Agier não hesitaria por Salvador. Reinventa a “descrição
em chamar a obra de “rascunho”, metáfo- densa” de Clifford Geertz para abordar
ra que usa para exibir situações e lugares não uma “cultura” essencializada, mas
de uma “cidade em processo”, que se os sentidos da “situação social”. Esta ele
inventa a partir de suas margens ditas define como processo de construção de
“invisíveis” (Michel de Certeau). identidades e relações que “faz a cidade”,
O livro é composto de uma “introdu- tendo por referência a “dança Kalela”
ção” original, duas entrevistas (de 2003 de Clyde Michell. Dialogando com Jean
e 2008), quatro artigos (de 1997 a 2007) Bazin, destaca o caráter acessível dos par-
e três capítulos de L’invention de la ville: ticipantes da situação para a construção
banlieues, townships, invasions et fave- da “relação de pesquisa”. Deste encontro
las (1999), todos revisados. Conta ainda emerge a “cidade dos antropólogos” e a
com a “apresentação” de Magnani e um cidade utópica dos encontros. Constrói-se
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a “cidade bis”: “escrever certo número de materialidade dos espaços, apenas atra-
situações precisas é, talvez, tão concreto vessados. Mas há travessias em grupo e
como escrever os prédios e os edifícios” meios de transporte em que se estabelece
(:58). Paradoxalmente, a busca da concre- uma rica sociabilidade. A situação ritual
tude o leva a criar categorias capazes de (inspirada em Van Gennep e Victor Tur-
ler as relações fluidas, móveis e contin- ner) pode ser uma festa, uma dança ou
gentes que escrevem a cidade. um rito religioso que se afasta do cotidia-
No capítulo dois o conceito de “região no em processos liminares de “inversão,
moral”, de Robert Park, passa a significar perversão, travestimento, criação de um
os sentidos e as identidades que consti- mundo imaginário” (:97), cuja “definição
tuem os “lugares” da cidade através de consensual da situação” (:98) cria e mos-
“representações”, “trajetos”, “constru- tra identidades e relações.
ções” e “objetos urbanos”. À categoria O capítulo quatro abre a segunda parte
“situação”, Agier acrescenta que é preciso discutindo as formas urbanas da “família”
abordá-la a partir do ponto de vista de e do “familiar”. O mundo doméstico, da
seus atores – o “mínimo sentido parti- primeira socialização, é a ancoragem
lhado” que torna possível a interação – a partir da qual os indivíduos povoam
e das condições estruturais – “densidade com relações e significados os “lugares
regional da cidade, heterogeneidade étni- de passagem”, os “não lugares” de Marc
ca e regional, diferenciações econômicas Augé, espaços vazios de sentido que
e organização do trabalho específicas de então se tornam familiares. O capítulo
cada cidade, sistema político e adminis- cinco escreve nas duas faces do “avesso
trativo etc.” (:74). Finalmente, o conceito sombrio da mundialização” (:124): os
de “rede” dá mobilidade ao antropólogo, “enclaves fortificados” (Tereza Caldeira)
que por ele segue as articulações entre e os campos de refugiados. Naqueles, as
diversas situações. Mas Agier não se classes médias e altas se isolam e fazem
ilude com o alcance dos instrumentos de “desaparecer qualquer ideia de espaço
pesquisa: a cidade está se transformando público” (:122), enquanto nos campos,
para além das teorias. as nações tentam isolar populações
Para seguir esta cidade fugidia, o deslocadas em conflitos violentos. A re-
capítulo três propõe a classificação dos organização da vida nos não lugares dos
domínios urbanos por tipos de situa- campos tende pouco a pouco a diluir os
ção: “ordinária”, “extraordinária”, “de muros e as fronteiras, povoando-os com
passagem” e “ritual”. A ordinária é a relações e significados. Isto é detalhado
que apresenta regularidade social e no capítulo seis: discutindo pesquisas
espacial. Aproxima-se da busca clássica feitas no Quênia e na Palestina, conclui
dos padrões institucionais, mas inclui os que as populações escapam do estigma,
“truques” que permitem as pequenas do socorro e do controle não quando re-
resistências da vida cotidiana. Na ex- tornam às terras de origem, mas “quando
traordinária, a vida cotidiana é alterada deixam de ser as vítimas que a qualifi-
momentaneamente no acionamento de cação humanitária implica, e se tornam
códigos e relações, mas ela ganha sentido sujeitos” (:136).
apenas quando se torna objeto de inter- Na última parte, teorias e investi-
pretação, comunicação ou mobilização. gações mesclam-se em generalizações
A de passagem é, em primeira análise, a sobre cultura e política. No capítulo
dos indivíduos em trânsito: é a situação sete, Agier lastima que tantas teo-
de menor densidade de sentido e maior rias deixem à sombra os processos de
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“criação cultural”. Escolhe abordar a elas escrevem, desfilam, mascaram-se,


cultura nas práticas e, nestas, a cul- teatralizam, produzem performances
tura é sempre um processo criativo e que erguem novas identidades, lugares
situacional que se dá através das “in- e relações, constituindo “comunidades do
terpretações” – implícitas nas práticas – instante”. A cidade contemporânea vive
e das “ representações” – produzidas o paradoxo de ter surgido para aproximar
como performances. A cidade possui as pessoas, reduzindo “os custos da inte-
dois grandes “domínios de criação”: as ração e do trabalho” (:174), mas impõe a
representações de identidade e alteri- segregação em seus “quadros impessoais,
dade que ocorrem entre os citadinos e sistemas de proteção, organizações solitá-
os sentidos que adicionam aos espaços rias e narcisistas” (:174). São as criações
materiais. Compara os carnavais de artísticas e as ações políticas que desa-
Londres, Tumaco (Colômbia) e o Ilê Aiyê fiam a segregação: colocam indivíduos
de Salvador, cuja pesquisa deu origem diferentes “em relação”, na invenção de
ao livro Anthropologie du carnaval: la sentidos diante da permanente ameaça
ville, la fête, et l’Afrique à Bahia em do vazio. “É um desvio para se encontrar
2000, resenhado nesta mesma revista a si mesmo inventando comunidades de
por Hermano Vianna e, infelizmente, até encontro” (:177). O que se entende por
hoje não traduzido. “espaço público”, ou “política”, refere-se
Afirma que a criação cultural se vale portanto a situações de encontro em que
tanto de memórias e “trocas diretas algo é acrescentado à cidade: a “media-
entre pessoas de origens diferentes” ção simbólica” do ritual. A ação política
(:150) como de informações dos meios e cultural alcança a emancipação – liber-
de comunicação de massa, misturando tação dos constrangimentos ligados ao
elementos e produzindo performances estigma – e a subjetivação – “ser sujeito
que têm como objetivo afirmar identi- livre de palavra numa comunidade de
dades e conquistar reconhecimento e iguais” (:181). O próprio Agier apresen-
respeito em face dos estigmas. Formam- ta-se como testemunha e participante
se, assim, “comunidades” mais próximas dessas experiências: “é a partir daqui
e acessíveis aos indivíduos do que a que falamos” (:172), diz ele na primeira
“comunidade nacional”, uma “escala pessoa do plural. As relações de pesquisa
mediana de participação” que se estabi- de Agier são situações de instauração da
liza, ganha visibilidade e é suscetível de política.
se estender na vida cotidiana e alterar No capítulo nove a forma da entrevista
“os componentes políticos, ideológicos e tem o efeito de exibir mais uma comu-
identitários da cidade em seu conjunto” nidade de interlocução. O que instaura
(:156). Agier destaca a mestiçagem cultu- esses lugares, instantes, rituais? São
ral das identidades, cada uma valendo-se as ocupações e as invasões urbanas, as
de combinações que as fazem singulares instalações artísticas, as ações e as mani-
e tornam cada cidade um quadro “único festações políticas, em resumo, a “tomada
e reconhecível entre todos, como a vesti- da palavra”. Agier dá o exemplo de uma
menta de Arlequim” (:170). foto de Sebastião Salgado, que enquadra
O capítulo oito aponta a origem da o instante em que sem-terras cruzam o
política entre os “microgrupos resis- limiar que origina a ocupação. Depois
tentes”, as populações “fora de lugar”, disso vem a fase das negociações, da
“acantonadas” em campos, guetos ou divisão de poderes e territórios, “mas isso
novas favelas. No processo de criar raízes quer dizer que lhes reconheceram o seu
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ato coletivo e que foi esse ato que criou tamente civilizada” – e, “estendendo-se
uma nova situação” (:195). E as antropo- pelo imenso território nacional, silen-
logias? Para Agier existe uma “agarrada ciosa e ‘bestificada’, a grande plateia”.
ao que morre” (:191). Sua opção é por Ele acreditava que instituições científicas
uma “antropologia das emergências”: a e de ensino públicas, democráticas, autô-
antropologia situacional que nasceu nos nomas e vinculadas à população seriam
anos 1950, em meio ao movimento que capazes de conectar as camadas sociais,
atravessou várias áreas do conhecimento formando enfim o “povo brasileiro”. Daí
e até a Internacional Situacionista. Abor- o caráter estratégico da performance de
dar o mundo como pirata, interagindo em Agier: não é o desempenho da autoridade
acontecimentos e situações, e não por intelectual que toma povos por objetos e
representações externas à experiência reduz seus cientistas a consumidores, mas
vivida, que remetem ao já existente da emerge em práticas colaborativas. A fluida
“sociedade como estrutura social” (:192). cidade contemporânea é reconstruída em
O situacionismo antropológico de Agier é concreta escrita coletiva, narrativa que
sua ocupação – científica – da cidade. expressa e realiza a permanente incom-
A maioria das citações do livro é de pletude do pesquisador enquanto ator de
autores da Europa e dos Estados Unidos. histórias em que também somos autores.
Porém, Agier ajuda a criar situações, mis-
turar conhecimentos e tecer redes com
populações e cientistas liminares que
intensificam a sua expressão. Engajan-
do-se na sua invenção de identidades e
relações, colabora na diluição do colonia-
lismo. Por isso mesmo se afasta de outros
agentes urbanos, como os que criam
relações em estados e corporações, o que
pode deixar o leitor brasileiro com algu-
mas interrogações. Nossas cidades foram
criadas a partir do roubo de terras e da es-
cravização dos habitantes, condições que
se tornaram ordinárias. Como abordar si-
tuações como a formação de milícias ou a
migração de indústrias por trabalhadores
sem direitos? Seriam elas de confronto?
Os “não lugares” são estruturas sociais já
dadas, ou criações culturais destes outros
sujeitos? Resta enfrentarmos os atores e
os processos de invenção da segregação
e da dominação.
Anísio Teixeira disse em A universi-
dade e a liberdade humana (1954:44-45)
que a “transplantação de padrões euro-
peus” gerou no Brasil a dualidade com
“aspecto de teatro” entre uma classe
dominante – que personifica o “elenco
representativo” de uma nação “supos-

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