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Gallo, Sílvio. Filosofia: experiência do pensamento. 1ª Ed.

São Paulo-
SP:Scipione. 2013.
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Observe a foto desta página. Converse com seus colegas sobre a


situação que ela retrata.
Você já pensou sobre como orienta sua vida? Você faz aquilo que
sua família espera de você? Procura construir suas próprias opiniões e
compreender os valores compartilhados ao seu redor ou prefere aceitar
o que os outros lhe dizem e fazem? Você age de acordo com regras e
costumes estabelecidos ou os contesta?
Em filosofia, a área dedicada a refletir sobre as ações humanas em
relação à vida em coletividade e à vida de cada um é denominada ética. Passeata organizada em maio de 2012
pela Associação Brasileira de Lésbicas,
Esse termo vem da palavra grega êthos, que significa 'caráter', 'índole', a Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
maneira de ser de uma pessoa ou de uma sociedade. Também pode sig- (ABGLT), em frente ao Palácio do Planalto,
em Brasília (DF), que reuniu adultos,
nificar 'temperamento', as disposições de alguém segundo seu corpo e jovens, políticos e integrantes de diversos
sua alma, ou, ainda, a ação de cada um conforme sua própria natureza. movimentos sociais, em protesto contra a
homofobia, considerada crime no Brasil.

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CAPÍTULO 2 | ÊT|cA: PoR QUE E PARA QUÊ?


Os gregos antigos tinham outra palavra muito próxima, éthos - que
em latim seria mos, morís, da qual se origina o termo em português
moral -, com o sentido de 'costume', 'uso', 'hábito'. Para eles, pertence
fa ao âmbito da moral aquilo que é feito de modo habitual e irrefletido,
isto é, as ações que não consistem em objeto de reflexão para o agente,

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que se orienta nos costumes e hábitos do dia a dia, partilhados pelos
membros da comunidade.
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Já a ética, para os antigos gregos, é diferente da moral, pois diz res-
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TheoSzc peito às ações refletidas, nas quais se pensa e sobre as quais se decide
if/ de acordo com o temperamento, com o caráter de quem as executa.
Para viver eticamente, é preciso se conhecer, pensar naquilo que se faz,
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praticando a máxima de Sócrates: “Uma vida que não merece ser pen-
sada não merece ser vivida" - o que consiste, portanto, no oposto de
agir de acordo com a moral.
Além dessas distinções, frutos de profundos debates e questiona-
mentos filosóficos históricos, outros questionamentos foram levantados
dentro do campo da ética. Um deles, inspirado nas reflexões de Sócra-
tes, indaga o seguinte: quando agimos eticamente, o que buscamos? Em
outras palavras: existe um fim para as ações éticas? Se sim, qual é?
Na tentativa de responder a essas questões, alguns filósofos disse-
ram que uma vida ética consiste em procurar a felicidade; outros afir-
maram que ela consiste em agir de acordo com o dever. Vejamos, então,
quem são eles e como argumentaram.

AR|sTóTELEs E A ÉT|cA como AçÃo


PARA A |=E|.|c|DADE
Pela máxima que mencionamos logo acima, é possível notar que as
preocupações éticas já faziam parte do pensamento de Sócrates, que
orientava a filosofia para a vida humana e o debate em torno de como viver.
Nos diálogos de Platão, a perspectiva ética é o próprio fundamento
da organização política e social da cidade. Como vimos no capítulo an-
terior, a cidade justa é aquela na qual o cidadão é educado para se co-
nhecer plenamente, para viver de acordo com suas habilidades e neces-
sidades, contribuindo com o melhor de sie tendo a virtude como o prin-
cipal valor. Assim, Platão acredita ser possível alcançar a felicidade.
Nos escritos de Aristóteles, podemos também constatar uma preo-
cupação com as questões éticas. E foi justamente com ele que esse
campo do saber filosófico recebeu uma primeira sistematização.
No século IV a.C., Aristóteles estabeleceu uma primeira organiza-
ção das ciências (no sentido antigo do termo, isso é, um saber sistema-
tizado segundo critérios racionais de classificação), dividindo-as em
dois grandes campos.

138 UNIDADE3 | PoR QuEEcoMo AG||\/los?


De um lado ficaram as ciencias teoréticas, aquelas produzidas

por teoria, contemplação, e que não criam seus objetos, pois se


dedicam a pensar objetos que já existem e independem do pensa-
mento. A finalidade dessas ciências está fora delas, pois seu objeto
é exterior ao pensamento. Nesse grupo Aristóteles incluiu a meta-
física (que estuda os objetos não materiais e é denominada “filoso-
fia primeira") e a fisica, subdividida em filosofia da natureza, biolo-
gia e psicologia.
HUMORES
De outro lado ficaram as ciências práticas (ou ciências da práxis),
que têm por objeto a ação humana. Segundo Aristóteles, essas ciências Aquilo que Aristóteles chama de humo-
criam seus próprios objetos e encontram suas finalidades nelas mes- res são os liquidos do corpo humano:
sangue (proveniente do coração), fleu-
mas. Criam seus objetos, pois a ação humana depende do pensamento;
ma (também conhecido como fleugma
é pensando que agimos. No caso dessas ciências, o pensar e o agir estão ou flegma, é um muco secretado pelas
intimamente conectados. Por isso Aristóteles afirma que elas encon- membranas mucosas, especialmente
tram suas finalidades nelas mesmas: ao pensar as açöes dos seres huma- aquelas do sistema respiratório), bilis
nos, essas ciências não focam objetos exteriores, mas o próprio ser hu- amarela (secretada pelo figado) e bilis
negra (segundo os antigos, provenien-
mano. Nesse grupo foram incluidas a economia, a politica e a ética. te do baço). A teoria dos quatro hu-
A primeira cuida da administração da casa; a segunda, da gestão da ci- mores foi criada por Hipócrates de Cós
dade; e a última trata da organização da vida de cada um. São, pois, três (c. 460 a.C.-377 a.C.) e se tornou a
ciências bastante integradas entre si, uma vez que todas tratam de nos- base da medicina antiga. De acordo
com o humor predominante no tempe-
sas açöes, cada uma relativa a determinada esfera: a vida de cada um,
ramento, temos os diferentes caracte-
sua casa, sua cidade. res: o sanguíneo (corajoso e amoroso),
A filosofia ética, afirma Aristóteles, estuda as açöes humanas basea- o fleumático (racional e calmo), o colé-
das naquilo que é natural em cada ser humano, seu caráter. O caráter, rico (com predominio da bilis amarela,
para ele, é o temperamento, ¡sto é, o modo como se temperam em agressivo e irritadiço) e o melancólico
(com predominio da bilis negra, desa-
cada um de nós os quatro elementos básicos (quente, frio, seco e úmi-
nimado e inquieto). Essa teoria serviu
do) e os quatro humores (sangue, fleuma, bilis amarela e bilis negra), de de base para Aristóteles refletir sobre a
forma que um deles predomine sobre os demais. O temperamento dá ação humana no campo da ética.
origem a quatro tipos básicos de caráter: sanguíneo, fleumático, coléri-
anha
co e melancólico.
A ética aristotélica ensina a viver de acordo com o caráter, a dispo- uaAem

sição natural de cada um. Não se trata, porém, de simplesmente agir de


modo predeterminado; a ética implica uma ação racional, ¡sto é, pensa-
Pnacoteca,hAunq
da. Para Aristóteles, nós aprendemos a agir eticamente. Mas como isso
seria possível? Segundo o filósofo grego, somos dotados de um apetite
ou um desejo, isto é, de uma inclinação natural, para buscarmos o pra- ReproduçãoUAnfga
zer e fugirmos da dor. O apetite é, porém, uma paixão (que para os
gregos implicava passividade), o que se opöe à ação (atividade). A tare-
fa da ética é educar nosso apetite ou desejo para que evitemos o vicio
(para os gregos, a desmedida) e alcancemos a virtude (o equilibrio),
conquistada pelo exercicio da prudência.
Quanto mais refletirmos sobre a finalidade das nossas açöes,
mantendo-nos na direção das açöes virtuosas - as quais, segundo Os Quatro Apóstolos, de 1526, feito pelo
pintor alemão Albrecht Dürer. Acredíta-se
Aristóteles, têm na felicidade o maior bem, por ter seu fim em si que esta obra foi inspirada na teoria
mesma -, quanto mais soubermos agir racionalmente, conduzindo aristotélica dos humores. Assim, da esquerda
para direita, joão sería o sanguíneo; Pedro, o
nossos desejos para longe dos vicios, mais prudentes, melhores e ƒleumático; Marcos, o colérico; enquanto que
felizes seremos. Paulo seria o melancólico.

CAPÍTULO 2 | ÉT|cA: PoR QUE E PARA QUÉ?


Afinal, se não há bem maior que a felicidade, é porque todas as nos-
Alunos de uma escola de Educação Infantil sas ações e objetivos que perseguimos são, na verdade, meios para que
da prefeitura de São Paulo (SP) participam alcancemos esse fim último.
do projeto Pomar-Escolas, que propõe a
plantação de flores e sementes de verduras e
legumes como ƒorma de educação A ética e a moral: a importância do hábito
socioambiental (foto de 2001). Projetos
como esse visam à prática de determinadas Para Aristóteles, a tarefa da ética é ensinar bons costumes, basea-
ações desde a infância, como o respeito à
natureza e o consumo de alimentos dos no bom caráter. Ela, portanto, engloba a moral e vai além, uma vez
saudáveis, para que elas se tornem um que a moral apenas se ocupa das ações humanas segundo os costumes.
hábito na vida adulta dessas crianças.
Apesar disso, a ética não
ado
nega a importância do hábito.
4.:

Es


genca Não nascemos virtuosos ou
Castro/A
viciosos por natureza. Adqui-
Sérg`o
rimos as virtudes éticas por
meio de uma prática de vida,
de exercícios contínuos; a ta-
refa da ética consiste em tor-
nar essas práticas um hábito.
Se é ruim agir apenas por
hábito, isto é, irrefletidamen-
te, transformar o agir de for-
ma reflexiva em um hábito é
uma importante tarefa ética.
Tornamo-nos virtuosos quan-
do buscamos agir sempre de
modo racional e equilibrado,
sem cairmos no excesso ou
na falta. Agir de modo exces-
sivo é um vício, assim como
agir pouco ou deixar de agir.
Mas, se a ética é uma ciência prática, uma ciência da ação humana,
então qual é o objetivo dessa ação? Essa pergunta é respondida em uma
ÉTICA A NICÔMACO das principais obras de Aristóteles sobre o tema: Ética a Nicômaco.
São atribuídos a Aristóteles três livros
Nela, o filósofo começa afirmando que todas as atividades humanas
que tratam de temas relacionados à éti- tendem a um bem; logo, a questão é saber qual é o “supremo bem",
ca, sendo Ética a Nicômaco o mais com- aquele que está acima de todos os outros e do qual todos derivam. E sua
pleto. Não se sabe ao certo a razão de resposta é que, na vida humana, o supremo bem é a felicidade.
seu título. Especula-se que seja uma
homenagem ao pai ou a um filho de
Aristóteles, ambos chamados Nicôma- A felicidade como supremo bem
co. Os estudiosos concordam que é
Vivemos para ser felizes e para bem agir, segundo Aristóteles. A
uma obra da maturidade, que desen-
volve e aprofunda uma série de temas questão consiste então em saber o que é a felicidade. Muitas pessoas
que aparecem em seus outros livros so- consideram que ela seja algo simples e óbvio, como o prazer, a ri-
bre ética. Ética a Eudemo e Magna Mo- queza ou a honra. Mas será isso mesmo? Os sábios também pensa-
ralia são as duas outras obras, que al- riam assim?
guns pesquisadores afirmam não terem
Para Aristóteles, não há uma resposta única. Ele afirma que existem
sido escritas por Aristóteles, e sim por
seus alunos, com base em aulas lecio- pelo menos quatro ideias diferentes de felicidade, que correspondem a
nadas pelo filósofo. três tipos de vida.

UNIDADE 3 | PoR QUE E coMo AG||\/los?


Para um tipo de vida "vulgar", comum, a felicidade consiste em ser
capaz de experimentar os prazeres sensíveis imediatos, como comer Felicidade pode ser
bem, embriagar-se e divertir-se nos esportes. Para outro tipo de vida qualquer coisa
"vulgar", a felicidade consiste na riqueza.
Se voce quer ser feliz tente
Para a vida política, a felicidade consiste em ser reconhecido publi- Felicidade pode ser so ilusao
camente como alguém honrado. Para a vida contemplativa (daqueles Mas se o coraçao nao mente
que se dedicam ao pensamento, à filosofia), a felicidade é o próprio Felicidade pode ser qualquer
exercício da contemplação, a atividade da parte racional da alma, aque-
la que é plenamente humana, que nos torna diferentes de todos os ou- Uma cachaça um beijo um
tros animais. orgasmo
Uma visão contemporânea da multiplicidade de respostas para o Um futebol na tarde de domingo
sentido de felicidade pode ser encontrada na letra da canção “Felicida- Uma cançao de Roberto e
de pode ser qualquer coisa", de Zeca Baleiro. Erasmo
Aristóteles procura demonstrar que nenhuma dessas respostas é sa- Vida eterna e a vida do sonho
tisfatória, porque em nenhuma delas a felicidade é um bem que se basta. Deus e o tempo sonhar e a
Se alguém deseja a riqueza, por exemplo, é porque pensa que ao ser rico salvaçao
será feliz; então sua finalidade é a felicidade, não a riqueza. A riqueza é O sonho de Lennon morreu
um meio, uma forma de atingir a felicidade, não a finalidade da vida. Mas Q meu nao
será que sendo rico alguém será realmente feliz? Ê importante ressaltar BALEIRO Zeca O disco do ano Rio de
que o mesmo raciocínio vale para os prazeres e a honra. Janeiro Som Livre, 2012 1 CD
O depoimento abaixo vai ao encontro da afirmação de Aristóteles
de que a riqueza é um meio para se atingir um fim, mas não pode ser
tomada como um fim em si mesma:

66
Quando estava ganhando vinte mil dólares por ano, achei que
era capaz de ganhar cem mil. Quando já ganhava cem mil por
ano, achei que poderia ganhar duzentos mil. Quando estava
ganhando um milhão de dólares por ano, achei que poderia
ganhar três milhões. Havia sempre alguém num degrau mais alto
que o meu, e eu não conseguia parar de pensar: será que ele é
realmente duas vezes melhor do que eu?
Palavras do banqueiro norte-americano Dennis Levine, citadas em: Nado
FukudaAgenc
Esaon

SINGER, Peter. Ética prática. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 351.

Aristóteles afirma que o bem almejado só pode ser alcançado pela


ação, pelo ato, e não pela teoria, pela contemplação, como pensava Pla-
tão. Refletindo sobre a finalidade das ações e os meios usados para al-
cançá-las, ele usa um exemplo: qual é a finalidade da medicina? Aquele
que exerce a medicina busca sempre a saúde de seus pacientes; logo, a
saúde é o supremo bem para a prática do médico. Karma Ura, presidente do Centro de Estudos
Usando esse mesmo raciocínio, Aristóteles afirma que a felicidade é do Butao, um dos divulgadores de uma
inovaçao politica de seu pais, o conceito de
o supremo bem para a ação humana, pois é em nome dela que fazemos Felicidade Interna Bruta (FIB) Criado em
tudo. Ela é desejável em si mesma e por si mesma. Podemos desejar contrapartida ao Produto Interno Bruto
(PIB) ele mede a riqueza do pais nao pela
prazeres, honras ou riquezas, pois sua posse pode nos tornar felizes, soma de seus bens produzidos e serviços
mas não desejamos felicidade porque ela nos faz ricos, honrados, etc. A prestados, mas pelo grau de satisƒaçao e de
felicidade de seus habitantes com as
felicidade é algo absoluto e autossuficiente, constituindo assim a finali- condiçoes de vida oferecidas por ele Foto
dade das ações humanas. de 2008

CAPÍTULO 2 | ET|cA E PARA Qu^ 4

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