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MODALIDADE DE APRENDIZAGEM:UMA CONTRIBUIÇÃO

ARTIGO DE REVISÃO PARA A AMPLIAÇÃO DO CONCEITO

MODALIDADE DE APRENDIZAGEM:
UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A
AMPLIAÇÃO DO CONCEITO

Regina Orgler Sordi

RESUMO - O conceito de modalidades de aprendizagem é uma das pedras


angulares da teoria psicopedagógica clínica por permitir descrever e
compreender a forma pessoal com que cada sujeito acerca-se e relaciona-se
ao objeto de conhecimento. Este artigo pretende, à luz das contribuições
seminais de Sara Paín e Alicia Fernández, bem como, contribuições de autores
da filosofia e psicanálise que têm se dedicado ao estudo do pensamento em
sua potência estética, ampliar o conceito de modalidades de aprendizagem.
Introduz o conceito de recepção, relacionado à dimensão estética do
pensamento, o qual, associado aos mecanismos assimilativo e acomodativo,
formam uma tríade capaz de incluir, para além dos aspectos recognitivos da
aprendizagem, sua dimensão inventiva e problematizadora.

UNITERMOS: Aprendizagem. Modalidades de aprendizagem.


Mecanismos assimilativo/acomodativo.

Regina Orgler Sordi - Psicóloga; Doutora em Psicologia Correspondência


da Educação pela Universidade Federal do Rio Grande Regina Orgler Sordi
do Sul (UFRGS); Professora do Instituto de Psicologia Rua Dr. Alcides Cruz, 406
da UFRGS. Porto Alegre - RS - CEP 90630-160
E-mail: sordi.vov@terra.com.br

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INTRODUÇÃO falamos em aprendizagem, no campo psico-


O estudo sobre a aprendizagem humana, do pedagógico clínico, estamos nos referindo
ponto de vista das significações do aprender, foi simultaneamente a, pelo menos, quatro elementos
fortemente influenciado pelas seminais que compõem o seu processo:– organismo, corpo,
contribuições de Paín1 e Fernández2. A partir de inteligência e desejo – todos eles entrelaçados e
seus desenvolvimentos, não apenas compre- afetando-se mutuamente. Ora, se o conceito em
endeu-se melhor a indissociabilidade entre as questão é “modalidades de aprendizagem”, este
dimensões conscientes e inconscientes do deve incluir os quatro elementos. Na elaboração
pensamento, como também, inaugurou-se uma inicial de Paín 1 - modalidade do processo
nova disciplina – a Psicopedagogia Clínica – que assimilativo-acomodativo – estaríamos mais
desenvolveu uma concepção mais complexa do fortemente assentados sobre o vértice da
sujeito da aprendizagem. Este último não se inteligência, um dos elementos da aprendizagem.
limita ao aluno, mas ao sujeito aprendente, aquele Acompanhando os desenvolvimentos de
que, a partir do vínculo com o outro humano, Fernández3, vemos que a descrição da moda-
torna-se capaz de se reconhecer ativo em sua lidade assimilativa-acomodativa não parece ser
história e de se responsabilizar pela autoria de suficiente para dar conta da descrição das
seu pensamento. modalidades de aprendizagem, muito embora,
Ao longo de sua obra, Fernández3 chega a assinala a autora, sigamos trabalhando com os
reconhecer que vários conceitos serviram como mesmos termos hiper/hipo assimilação/
ferramentas importantes e até fundamentais para acomodação, originalmente apresentados por
o desenvolvimento de suas idéias. Reconheceu Paín.
que um conceito, porém, mereceu atenção especial Neste sentido, Fernández 3 lança alguns
por parte dos estudiosos de sua obra, bem como, questionamentos: “Então, por que continuamos
daqueles profissionais que, em suas práticas utilizando os termos ´assimilação´e ´acomo-
pedagógicas e/ou psicopedagógicas, ocuparam- dação´para falar do operar intelectual? Tenho me
se de estudá-lo e melhor compreende-lo. Trata- perguntado: será por fidelidade a Piaget? Não
se do conceito de ‘’modalidade de aprendi- creio. Será, então, por fidelidade a Sara Paín?
zagem”. De um único capítulo dirigido ao mesmo, Poderia ser, mas no momento, ainda não encontrei
em sua primeira obra2, escreve um novo livro3, outros termos que me satisfaçam” .
no qual dedica, pelo menos, dez de seus O presente artigo apresenta uma contribuição
dezesseis capítulos a este tema. Entretanto, a no sentido de propor a introdução de um terceiro
autora deixa uma questão para ser melhor termo para compor juntamente com a assimilação
estudada e discutida. e a acomodação. Pretende, com essa contribuição,
Num olhar retrospectivo, a primeira pessoa a enriquecer e/ou ampliar a compreensão das
introduzir o termo “modalidade”, para referir-se modalidades de aprendizagem.
à aprendizagem, foi Sara Paín. Baseando-se nas Em sua obra mais recente, Fernández 3
hipóteses piagetinas, desenvolve um modelo de entende que participam das modalidades de
construção de diagnóstico psicopedagógico, para aprendizagem, “...uma série de aspectos
o qual inclui a necessidade de se conhecer a (conscientes, inconscientes e pré-conscientes), da
“modalidade do processo assimilativo- ordem da significação, da lógica, da simbólica e
acomodativo”. Fernández2,3 retomará o conceito da estética”.
de “modalidade”, porém, não mais circuns- Ao englobar as teses de um pensamento
crevendo apenas ao pocesso assimilativo- estético, a autora propõe um avanço na
acomodativo, tal como preconizado por Paín, mas compreensão das modalidades de aprendizagem
introduzirá um novo conceito: “modalidades de que, a partir da década de 90, introduz na teoria
aprendizagem”. Neste sentido, sempre que psicopedagógica clínica à dimensão estética do

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pensamento Pain3 como mais uma das estru- das ressonâncias afetivas e primeira fonte de
turas que compõem a aprendizagem, junta- contato com a realidade. Precisaremos introduzir
mente às estruturas lógico/objetivas e simbólicas. a idéia de um corpo estético para dar lugar, na
Todavia, no momento de descrever as moda- construção da modalidade de aprendizagem, à
lidades de aprendizagem de um sujeito, a autora dimensão sensível do humano, pré-lógica e pré-
enfatiza os aspectos já apresentados por Paín4, simbólica, mas da qual evolui toda capacidade
da modalidade do processo assimilativo-acomo- criativa que condensa a história da cultura e o
dativo, acrescenta os aspectos referentes às devir da inventividade inerente a toda
significações, mas não introduz os aspectos aprendizagem.
relativos à elaboração estética do pensamento.
Ou seja, já há uma ampliação com relação ao DA M O DA L I DA D E D O P R O C E SS O
conceito de modalidade do processo assimilativo- A SS I M I L AT I VO -AC O M O DAT I VO À
acomodativo, o qual dirige-se para a elaboração MODALIDADE DE APRENDIZAGEM
lógica do pensamento, porém a consideração Em uma de suas últimas obras, Fernández3
ao estético, embora mencionado na definição constata: “ Os alunos e os leitores ensinam-nos
geral, não participa, de forma mais operacional, muitíssimo. Às vezes, permitem que o professor
do conceito de modalidades de aprendizagem. e o autor dêem prioridade a algum aspecto de
O estético diz respeito ao corpo não apenas em suas idéias e revalorizem sua importância. Isso
sua dimensão de corpo marcado pelo outro, mas ocorreu comigo com o conceito de ´modalidade
um corpo-subjetividade à medida em que este de aprendizagem´, que venho trabalhando
vai sendo afetado por novos universos5. Trata- desde A Inteligência Apriosionada”.
se de um corpo vibrátil5 ou de um corpo como Reconhecendo sua importância, Fernández3
lugar de ressonância estética4, este não mais sede define a modalidade de aprendizagem como “um
somente das representações, como na estrutura molde, ou esquema de operar que vai sendo
simbólica, mas corpo-receptáculo, cuja mera utilizado nas diferentes situações de apren-
presença frente ao espetáculo da vida, provoca dizagem. É a forma como cada sujeito desvela o
afecções cujos efeitos são indeterminados. Trata- oculto, com o objeto a conhecer.
se, portanto, de uma dimensão pré-lógica e pré- Em cada um de nós, podemos observar uma
simbólica do pensamento, prévia à estrutura das particular ´modalidade de aprendizagem´, quer
significações. dizer, uma maneira pessoal para acercar-se ao
Como incluir essa noção de corpo estético objeto de conhecimento e para conformar seu
compreendendo-o como participante da formação saber. Tal modalidade se constrói desde o
das modalidades de aprendizagem? Esse é o nascimento e, através dela, nos enfrentamos com
desafio a que se propõe esse artigo. a angústia inerente ao conhecer-desconhecer” 2.
A primeira parte deste trabalho apresentará o Trata-se, portanto, de uma tensão entre o que
conceito de modalidade do processo assimilativo- se impõe como repetição/permanência de um
acomodativo, elaborado por Paín1 e, posterior- modo anterior de relacionar-se e o que precisa
mente ressignificado por Fernández3 e sua mudar nesse modo de relacionar-se com o objeto
contribuição no sentido de permitir um novo olhar de conhecimento, consigo mesmo como autor e
sobre quem ensina e quem aprende. Por sua vez, com o outro ensinante.
será mostrado que a referência ao elemento Quando fala em molde relacional, a autora
“corpo”, como um dos quatro elementos que refere-se a uma forma que cada sujeito utiliza
compõem a aprendizagem, ainda se relaciona para aprender, a qual inclui um conjunto de
mais fortemente ao corpo constituído e aspectos: da ordem da significação, da lógica, da
simbolizado no vínculo com o outro, um corpo simbólica, da corporeidade e da estética. De
que dará origem a um ego inicial, corporal, sede maneira geral, seguindo os mecanismos que

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regem o operar intelectual, descritos por Piaget, definições originais, para incluir os aspectos
devemos pensar que assimilação e acomodação concernentes à subjetividade.
devem estar equilibrados para que essa tensão Já não estamos mais puramente no campo da
entre o conhecido e o novo produzam uma análise da modalidade do processo assimilativo-
aprendizagem saudável. Porém, esses acomodativo, mas mais próximos a uma
mecanismos respondem pelo acionar da compreensão de aprendizagem, que engloba a
inteligência e não são suficientes para trama organismo-inteligência-corpo-desejo. É
compreender a experiência corporal e estética da uma trama que embora se expresse em um sujeito
aprendizagem. A assimilação, para Piaget6 é o particular, é necessariamente constituída e
processo de integração cujo esquema é o construída no vínculo com o outro. Para tanto,
resultante. É o movimento do processo de operam junto ao mecanismo da assimilação, as
adaptação pelo qual os elementos do ambiente emoções, os desejos, os sonhos, ilusões e
se alteram para serem incorporados na estrutura frustrações, as angústias, as alegrias e sofrimentos
do organismo. Mas um esquema de assimilação do corpo. A presença dos fatores intersubjetivos
é incessantemente submetido às pressões das permite pensar que a modalidade de
circunstâncias e pode se diferenciar em função aprendizagem de cada sujeito estará mais ou
dos objetos aos quais é aplicado. A acomodação menos favorecida de acordo com:
é o movimento do processo de adaptação pelo • ”o grau de permissão que tenha sido dado ao
qual o organismo se altera, de acordo com as sujeito em sua infância (e que lhe seja dado
características do objeto assimilado. Piaget no presente) para questionar sem sentir que
observa que, apesar das variações entre os o questionado sofre ou faça sofrer e para
movimentos de assimilação e acomodação, há diferenciar-se sem perder o amor;
uma tendência geral a uma invariância, em • as experiências prazerosas e dolorosas que
qualquer processo de adaptação do ser vivo. seus pais tenham-lhe permitido em relação ao
Essas invariâncias proporcionam o vínculo responder perguntas difíceis, eleger coisas
fundamental entre a biologia e a inteligência. diferentes dos outros, opinar diferente;
Paín1 intitula de “modalidade do processo • as experiências prazerosas ou dolorosas que
assimilativo-acomodativo” ao processo de seus professores tenham-lhe permitido e
adaptação que, conforme Piaget, cumpre-se oferecido com relação a facilitar ou culpabilizar
graças ao duplo movimento complementar de a pergunta, as escolhas e a diferença;
assimilação e acomodação. A investigação sobre • as experiências lúdicas facilitadoras e
esse processo permitirá concluir sobre as impeditivas ou sancionadas3”.
oportunidades que o sujeito teve para fazer uma Estes aspectos dizem respeito aos movimentos
adaptação inteligente. Por sua vez, a inibição de assimilação-significação. Ainda temos os
precoce de atividades assimilativo-acomodativas movimentos de acomodação-significação que
dá lugar a modalidades nos processos dizem respeito às diferentes identificações do
representativos, cujos extremos podem ser sujeito, com as aberturas ou fechamentos a
caracterizados conforme o Quadro 1. espaços confiáveis ou persecutórios para o
Ao trabalhar com modalidade de desenvolvimento das aprendizagens.
aprendizagem, Fernández 2,3 considera a Acompanhando as definições das duas au-
importância de se estudar a modalidade do toras, temos a síntese apresentada no Quadro 1.
processo assimilativo-acomodativo, tal como A participação do corpo na aprendizagem e,
propõe Paín. Entretanto, embora utilizando-se por consequência, a participação do corpo na
da mesma nomenclatura sobre as modalidades construção da modalidade de aprendizagem dá-
hiper e hipo acomodativas/assimilativas, se por meio da novela vincular. O corpo
Fernández realiza um contraponto com as constituído por essa dramática humana, sede de

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Quadro 1 - Modalidades do Processo Assimilativo - Acomodativo: vs. Modalidades de Aprendizagem


MOD ALID
MODALID ADES DO PROCES
ALIDADES SO AS
PROCESSO SIMIL
ASSIMIL
SIMILAATIV
TIVOO- MOD
MODALIDALID ADES DE APRENDIZA
ALIDADES GEM
APRENDIZAGEM
A COMOD
COMODAATIV
TIVOO (P aín, 1985, p.47)
(Paín, (F er nández, 2001, p.84)
(Fer
HIPOASSIMILAÇÃO: os esquemas de objeto HIPOASSIMILAÇÃO: pobreza de contato com o
permanecem empobrecidos, bem como a capacidade objeto, que redunda em esquemas de objeto
de coordená-los. Isto resulta num déficit lúdico, e na empobrecidos, déficit lúdico e criativo.
disfunção do papel antecipatório da imaginação
criadora.

HIPERASSIMILAÇÃO: pode dar-se uma internalização HIPERASSIMILAÇÃO: predomínio da subjetivação,


prematura dos esquemas, com um predomínio do desrealização do pensamento, dificuldade para
lúdico, que ao invés de permitir a antecipação de resignar-se.
transformações possíveis, desrealiza negativamente
o pensamento da criança.

HIPOACOMODAÇÃO: que aparece quando o ritmo HIPOACOMODAÇÃO: pobreza de contato com o


da criança não foi respeitado, nem sua necessidade de objeto, dificuldade na internalização de imagens, a
repetir muitas vezes a mesma experiência. criança sofreu a falta de estimulação ou o abandono.

HIPERACOMODAÇÃO: acontece quando houve HIPERACOMODAÇÃO: pobreza de contato com a


superestimulação da imitação. A criança pode subjetividade, superestimulação da imitação, falta de
cumprir as instruções atuais mas não dispõe de suas iniciativa, obediência acrítica às normas, submissão.
expectativas, nem de sua experiência prévia com
facilidade.

um organismo que forma sua infra-estrutura Entretanto, a participação do corpo não se


neuro-fisiológica, sede de uma capacidade para esgota nestas duas dimensões – a lógica e a
transformar os esquemas reflexos em esquemas simbólica. Esse corpo é simultaneamente um
de ação, construtores da estrutura lógica é, lugar de ressonância estética, para o qual o
também, sede de intercâmbios humanizadores, mundo torna-se presente. Não poderíamos sequer
constitutivos da estrutura simbólica. afirmar que a novela vincular precederia a
A dimensão corporal comparece como o lugar capacidade humana para o assombro, a beleza e
onde as aprendizagens são registradas. Esse a ressonância estética do mundo. Meltzer7 assim
registro vai se entretecendo no vínculo neces- descreve o enigma do nascimento (e não, como
sariamente assimétrico entre aquele que deseja se pretendeu até então, o trauma do nasci-
que o outro aprenda e o ser aprendente, em cuja mento): “A devotada mãe comum apresenta ao
formação inicial vão se inscrevendo os desejos de seu lindo bebê comum um objeto complexo de
autoria e de autonomia. Curioso paradoxo da enorme interesse, tanto sensorial como infra-
existência e da formação das modalidades de sensorial. Sua beleza externa, concentrada, como
aprendizagem, pois o desejo saudável com relação deve ser, nos seios e na face, complicada em
ao aprender é justamente aquele que se constitui cada caso pelos mamilos e pelos olhos, bom-
num vínculo humano necessariamente fusional, mas bardeia o bebê com uma experiência emocional
com vistas a logo transformar-se num campo de de qualidade passional, resultando em que o
diferenças e individuações. bebê seja capaz de ver estes objetos como

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´lindos´. Mas permanecem desconhecidos para é o detonador, por excelência da cognição, e não
o bebê o significado do comportamento de sua o seu contrário. A cognição emergeria como um
mãe, do aparecimento e do desaparecimento do momento segundo, para deixar de ser só mistério
seio e da luz de seus olhos, de uma face na qual e ser reabsorvido numa lógica capaz de contê-lo
as emoções passam como sombras de nuvens e explicá-lo. O momento estético é gratuito,
sobre a paisagem. Afinal de contas, o bebê veio fortuito, está sempre em excesso, sempre além
para uma terra estranha onde desconhece a do que se pede.
linguagem e também as indicações e “Tomar a rosa como sub-classe das flores ou
comunicações não verbais costumeiras. A mãe como símbolo do efêmero suprime o encanto de
lhe é enigmática; ela exibe um sorriso de sua aparência. O momento estético é o da
Gioconda a maior parte do tempo, e a música de aparição, em forma de rosa, de algo da ordem da
sua voz fica constantemente mudando de tom perfeição. É uma captação em êxtase, quer dizer,
maior para o menor. Como ´K´(o de Kafka), o na passividade da descentração de si mesmo.
bebê precisa esperar por definições advindas do Momentos obrigatoriamente de excesso e de
´castelo´- o mundo interno de sua mãe. (...)Isto exceção, imprescindíveis à paixão de pensar e
é o conflito estético, que pode ser enunciado de que o pensamento mesmo anula, evitando a
modo mais preciso em termos do impacto estético psicose”4.
do exterior da ´linda´ mãe, disponível aos O momento estético não responde a nenhum
sentidos, e do enigmático interior que precisa ser desejo, pois a surpresa vem do que não estava
construído por meio da imaginação criativa. Tudo desejado, é algo que vem da abertura. Ele pode
na arte e na literatura, e toda e qualquer análise ser muito frequente, mas não pode durar muito
testemunha sua perseverança através da vida”. mais do que um par de instantes, porque por uma
Não resta dúvida que este roteiro estético parte, carece de ancoragens empíricas para
desenvolvido por Meltzer, no campo psicanalítico, manter-se, já que não se pode descrever, nem
traz para um primeiro plano da fundação do imaginar e, por outra parte, para dar-se conta
sujeito, a capacidade de apreciar as qualidades que, em verdade, houve tal momento, há que se
do objeto, de suportar e perseguir seu mistério, tomar distância, recordá-lo e, então, descrevê-lo
para sempre perdido no interior outrora habitado e imaginá-lo, saber que foi correto, da mesma
na mãe, mas que pode ser construído a partir de maneira como se faz com os sonhos, que sabemos
evidências de suas qualidades mentais. O autor que existem, porque deles despertamos.
não menciona, em primeiro lugar, um encontro Para acercar essa noção de um corpo estético
com a mãe, apenas por meio do toque acariciante que instaura com seu presente, a presença das
ou do olhar humanizador da mesma, mas ressalva coisas no mundo, necessitamos introduzir um
neste encontro o complicado bombardeio de luzes momento de recepção, anterior mesmo ao
e sombras, com o aparecimento e desapa- mecanismo da assimilação. Dessa forma, a
recimento dos mamilos e do brilho dos olhos da aprendizagem se daria em dois momentos quase
mãe. Já está presente, desde o início, quase como simultâneos – o da recepção e o da assimilação/
um pré-requisito para a existência, o mistério que acomodação. Por conseguinte, o conceito de
é para o bebê decifrar esse mundo de ressonâncias modalidade de aprendizagem não poderia apenas
afetivas, de sons, cores, ritmos e harmonias que se definir pelos mecanismos de assimilação e
desfilam diante de seus olhos recém chegados acomodação, tingidos pelos esquemas lógicos e
ao mundo. de significações, mas, também, deveria
Para Paín4, qualquer teoria sobre a transmissão contemplar a receptividade estética. Esta última,
do conhecimento ficaria incompleta sem a por sua vez, só pode expressar-se por meio de
consideração à elaboração estética do seus efeitos. E quais são os efeitos, como se
pensamento. Para Deleuze8, o momento estético expressam no processo de aprendizagem?

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Para podermos excursionar pela dimensão processos cognitivos não apenas a partir de leis
estética do pensamento, é preciso que revisemos gerais e necessárias, que conduzem à solução
nossa compreensão sobre a aprendizagem. de problemas, mas como uma invenção de
Conforme explica Kastrup9, as teorias psicológicas problemas, nos aproximamos a uma vertente mais
da aprendizagem se constituíram com base no experencial, para além dos quadros de referência
discurso da ciência e buscaram as condições da experimentação científica que foram traçados
invariantes da cognição, sob a forma de leis pela inteligência. Segundo Deleuze8, quando a
científicas, demarcando o que o campo possui da inteligência intervém na busca de sentido, de
ordem da necessidade e da repetição. Sob este solução de problemas, é sempre num momento
vértice, a aprendizagem é compreendida em sua segundo, depois da ação deste contato imediato
vertente recognitiva e direcionada à solução de com o que Bérgson11 chama de “emoção criadora”,
problemas. As experiências de recognição mas cuja compreensão aproxima-se do momento
relacionam-se ao reconhecimento prático ou ou do impacto estético4,7. Para Bérgson11, a emoção
consciente de um objeto. Caracterizam-se por criadora diz respeito a um contato imediato com
sua utilidade na vida prática e por assegurar nossa algo que é exterior ao sujeito e lhe provoca um
adaptação ao mundo. Essas aprendizagens abalo afetivo, uma agitação que é criadora na
ocorrem quando as sensações ativam um traço medida em que exige representações.
mnêmico e ocorre uma síntese, que é fonte da Qual o lugar, no conceito de modalidade de
atividade de reconhecimento, que torna o aprendizagem a esse aspecto receptivo, imediato,
presente, o passado e o novo, como formas de corpo-presença frente ao espetáculo do mundo
identitárias e que tem o papel de assegurar a e que força a cognição? Pensamos que se torna
unidade da cognição10. necessário introduzir o elemento “recepção”, aos
Existe um outro nível, este menos estudado, mecanismos assimilação e acomodação, para
onde a aprendizagem começa justamente ali onde compor uma visão mais ampla da modalidade de
não reconhecemos, mas ao contrário, estra- aprendizagem. Conforme explica Deleuze12,
nhamos, problematizamos. Neste caso, as expe- “pensar, é pensar por conceitos, ou então por
riências de problematização provocam uma funções, ou ainda por sensações, e um desses
divergência entre as faculdades de sensibilidade, pensamentos não é melhor que o outro, ou mais
memória e imaginação. Falamos de uma plenamente, ou mais sinteticamente, ou mais
aprendizagem inventiva, para a qual, em primeiro completamente ´pensado´”. Aquele que é capaz
plano, está a posta do problema e, não, a solução de manter uma atitude estética receptiva, pensa
de problemas. Compreender a aprendizagem por sensações, é mais sensível aos signos emitidos
como recognição é trabalhar pela solução de pela matéria e se vê constrangido a decifrar
problemas, ao passo que a aprendizagem seu mistério – um mistério inerente a todo
inventiva é aquela que acontece, antes de tudo, conhecimento.
na problematização, mergulhando no mundo Numa situação pedagógica ou psico-
sígnico da matéria, empreendendo-se numa pedagógica, em que importa tanto a observação
errância. das modalidades de aprendizagem, não daremos
Poderíamos deduzir que os mecanismos de passagem apenas aos esquemas de significação/
assimilação e acomodação responderiam pelo assimilação/acomodação, construtores de um corpo
nível recognitivo da aprendizagem. Isto por que subjetivado, mas deremos passagem ao corpo-
é por meio da descrição destes mecanismos afecção. Este último, não apenas visto como
invariantes que se explica o progresso do instrumento de apropriação de conhecimento,
conhecimento, partindo de estruturas elementares corpo-registro de experiência, corpo-recordação,
e se integrando em estruturas cada vez mais síntese de ser e de saber, porém: “Nossa questão
complexas. Porém, se compreendemos os agora é como pensar o corpo em sua dimensão

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estética. Trata-se, aqui, do corpo como vivendo e receptiva respondem a uma intrusividade do
não como esquema morfológico; do corpo que objeto sobre o sujeito. Acompanhando a hipótese
instaura com seu presente, a presença das coisas de Meltzer:“ A formulação do conflito estético
no mundo. É o corpo aqui e agora que capta o como sendo um problema interior-exterior, um
espetáculo desde um ponto de vista” 4. conflito entre aquilo que podia ser percebido e
Há duas maneiras de instaurar as coisas no aquilo que só podia ser interpretado conduziu
mundo: a primeira, é por meio da recognição. diretamente ao problema da violência enquanto
‘’Isto é uma árvore”, “chove”, etc., dimensão violação: violação da privacidade dos espaços
necessária para a aprendizagem, todavia, não internos e de suas representações. A força
suficiente. A outra maneira é através da integradora dessa visão da violência fez-se sentir
problematização. Esta se manifesta nos momentos através de toda a gama de violações físicas e
em que a ignorância se orienta para uma mentais, do indivíduo contra o indivíduo, do
manifestação enigmática, em que não fugimos grupo contra o indivíduo e do grupo contra o
dela de forma ascética e pragmática, resolvendo grupo”7.
de vez o mistério que ela nos apresenta, mas Nesta descrição, o autor intitula de violência
contemos uma emoção criadora vivida no corpo a toda condição que, dado seu caráter de
e que nos impele a colocar problemas ao intrusividade, tira a essência do impacto da
conhecimento beleza do mundo e da intimidade apaixonada
com outro ser humano, além de diferenciar o
UMA DEFINIÇÃO AMPLIADA DAS mistério do segredo. O mistério está associado
MODALIDADES DE APRENDIZAGEM ao impulso em direção ao conhecimento, forjando
Compreender a aprendizagem na sua conjeturas imaginativas à espera de uma
dimensão problematizadora/inventiva coloca-nos revelação. Implica um reconhecimento da
numa via divergente à recognição, para a qual privacidade do objeto e promove a capacidade
os mecanismos de assimilação e acomodação de tolerar o desconhecido sem apressar
respondem como principais invariantes. Inti- interpretações prematuras de sentido e
tularemos de capacidade receptiva a esta motivações. Implica a capacidade de tolerar a
capacidade de abertura, a sensibilidade, o beleza do mundo, da qual a mãe é a representante
composto de forças que afetam ao sujeito. Quanto inicial, apesar dos aspectos desconhecidos,
mais assimilativo (hiper-assimilação), maior a incompreensíveis e aterrorizantes envolvidos13.
força das sensações e o sujeito fica sem dar vazão Já, o segredo consiste em curiosidade intrusiva,
à recepção e sem saída cognitiva ou simbólica produto da violação dos espaços internos. A
para o mundo de sensações que o invade: o curiosidade transforma-se em desejo de conhecer/
mundo se torna pura aparência, um ritmo estéril invadir o espaço do outro. Conforme prevalecer
e psicótico4. Quanto menos assimilativo (hipo- o mistério ou o segredo, teremos um divisor de
assimilação), menor a capacidade de recepção e águas entre os aspectos criativos e destrutivos
menor a capacidade de liberar a atitude estética, do conhecimento.
ficando o sujeito paralisado no pragmatismo e Para que o sujeito possa acomodar o material
no desencanto precoce. assimilado, seu espaço psíquico deve estar o mais
Quanto à acomodação, na medida em que este aberto possível ao mistério, pois este não impõe
mecanismo responde pela internalização de de fora para dentro e, sim, pressiona, permite
imagens, podemos pensar que, se a hipera- que o interior busque decifrar a mensagem
comodação está relacionada a uma supe- enigmática.
restimulação da imitação e, se a hipoacomodação Podemos dizer, portanto, que associada à
provavelmente aparece quando não se respeitou assimilação, a capacidade receptiva diz respeito
o tempo da criança, os problemas na capacidade às possibilidades de “segurar em tensão” os

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Quadro 2 - Modalidades de Aprendizagem


MOD ALID
MODALID ADES DE APRENDIZA
ALIDADES APRENDIZAGEM GEM – (versão ampliada)
HIPO-RECEPÇÃO-ASSIMILAÇÃO: pouca sustentação da curiosidade, pouca afectação corporal, redundando em
pobreza de contato com o objeto de conhecimento, déficit lúdico e criativo.

HIPER-RECEPÇÃO-ASSIMILAÇÃO: falta de vazão à recepção, excessiva tensão corporal impeditiva de uma saída
simbólica ou cognitiva, desrealização do pensamento, dificuldade para resignar à legalidade do conhecimento.

HIPO-RECEPÇÃO-ACOMODAÇÃO: pobreza de contato com o objeto, dificuldade na internalização de imagens, a


criança sofreu intrusividade de seus espaços psíquicos, falta de estimulação ou abandono.

HIPER-RECEPÇÃO-ACOMODAÇÃO: pobreza de contato com a subjetividade, superestimulação da imitação, falta


de iniciativa, obediência acrítica às normas, submissão. A capacidade criativa fica prejudicada pelo ataque às
conjeturas imaginativas que não encontram espaço para conterem a tensão do desconhecimento e do mistério.

mistérios transmitidos pelo objeto, o que e na construção da modalidade de apren-


pressupõe o desenvolvimento da capacidade dizagem, pode ser uma ferramenta útil no
problematizadora e inventiva – possibilidade de desenvolvimento dos processos de ensino-
colocar problemas - no campo da aprendizagem. aprendizagem. Na medida em que a educação,
Associada à acomodação, a capacidade receptiva em geral, está mais voltada aos processos
diz respeito a um espírito capaz de tolerar a tensão recognitivos e de solução de problemas, o
entre o decifrável e o resto indecifrável inerente
acolhimento ao pensamento divergente parece
a todo conhecimento.
não encontrar muitos espaços para a compo-
sição de modalidades de ensino e aprendi-
CONCLUSÃO
zagem mais inventivas. Na medida em que o
Acompanhando os mecanismos assimilativo/
acomodativo que têm definido as modalidades conhecimento é concebido teleologicamente,
de aprendizagem, sugerimos a introdução do visando ao cumprimento de leis gerais,
triângulo recepção/ assimilação/acomodação, qualquer manifestação que ultrapasse esses
sendo a recepção, uma atitude corporal “sufi- limites, colocando-lhe problemas, tende a ser
cientemente em tensão como para emocionar- recusada14.
se e suficientemente distraída como para deixar- Ao conceber as modalidades receptivas como
se surpreender”4. A recepção saudável expressa- componentes das modalidades de aprendizagem,
se, assim, por meio de um corpo presente, capaz não estamos pretendendo nenhum avanço com
de ser afetado e de sustentar uma atitude relação aos desenvolvimentos já realizados pela
inventiva - de colocação de problemas - antes teoria psicopedagógica, mas ao contrário,
de esquivar-se por uma saída imediata à busca reivindicando um recuo aos aspectos do aprender
de soluções.
que precisam ser reiteradamente enfatizados: os
Ao invés de falarmos em hipo ou hiper
assimilação, poderíamos conceber as modalidades de que o aprender não se restringe a dominar as
de aprendizagem expressas em hipo ou hiper ferramentas do método científico, mas pressupõe
recepção-assimilação-acomodação. De forma viver e desenvolver as qualidades sensíveis
geral, teríamos as definições no Quadro 2. inerentes a todo o conhecimento, mais próximas
A ênfase na capacidade receptiva, como um a fruição de uma obra de arte do que do distante
corolário da elaboração estética do pensamento escrutínio de seus componentes.

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SORDI RO

SUMMARY
Modality of learning: a contribution to the
enlargement of the concept

Modalities of learning is one of the keystone concepts of the clinical


psycho-pedagogic theory which allows to describe and understand the
personal way in which one approaches and relates to the object of knowledge.
This article intends, enlightened by the seminal contributions of Sara Paín
and Alícia Fernández, as well as, authors from philosophy and psychoanalysis
who have been dedicated to the study of thought in its aesthetic potency, to
enlarge the concept of modalities of learning. It introduces the concept of
reception which is related to the aesthetic dimension of thought which, in
association to the concepts of assimilation and accommodation, form a triad
able to include, more than the recognitive aspects of learning, its inventive
and problematical dimension.

KEY WORDS: Modalities of learning. Assimilation/accommodation


mechanisms. Learning.

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Trabalho realizado no Instituto de Psicologia da Artigo recebido: 12/6/2009


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Aprovado: 2/8/2009
Alegre, RS.

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