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Wagner de Barros*∗
Revista de Filosofia
Sobre a Autenticidade na
Filosofia de Sartre
RESUMO
O texto aborda o tema da autenticidade no pensamento de Sartre. As análises partem do texto Re-
flexão sobre a questão judaica, na qual Sartre disserta sobre o judeu autêntico e o inautêntico. Em
seguida, trabalha-se o conceito de má-fé, já que este parece tornar impossível qualquer projeto de
uma existência autêntica. A dificuldade consiste, deste modo, em conceber uma existência plena,
realizada, mas que não pode ser concebida com má-fé.
ABSTRACT
The text approaches the issue of authenticity in the thought of Sartre. The analysis comes from the
text Reflection on the Jewish question, in which Sartre discourse on the Jewish inauthentic and au-
thentic. Then we will work with the concept of bad-faith, as it seems impossible to make any project
an authentic existence. The difficulty is thus to devise a full existence, held, but that can not be
conceived in bad-faith.
[...] o que constituirá o verdadeiro valor Porém, observa-se que o democrata re-
do objeto considerado, valor acessível tira a individualidade e coloca em seu lugar o
tão-somente aos franceses da França real, homem abstrato, a humanidade ou a natureza
é justamente o que está ‘além’, o que é humana. O democrata não reconhece o judeu,
inexpressável em palavras. (SARTRE, mas apenas “um homem”. Não considera,
1963, p. 48). portanto, a situação do judeu. Neste sentido, o
O valor “místico” das obras francesas e de democrata nega a questão judaica. Todas as re-
todo o valor francês só é compreendido por um lações concretas estabelecidas, como a família,
francês. Trata-se de uma questão de raça. Há um com a sociedade ou com a religião são dissolvi-
valor que não pode ser acessado por todos. das. Também, o democrata teme a consciência
Sartre mostra ainda que o anti-semita apa- de que o judeu possa ter de sua condição. Ele
renta-se a um em-si, visto que está fechado em si não quer “dar ao judeu uma consciência mais
mesmo.2 Ele não discute o problema da questão precisa de si mesmo.” (SARTRE, 1963, p. 34),
judaica, apenas diz que o judeu está impregnado pois não há singularidade, mas apenas o homem
por uma maldade inata que passa de geração abstrato no qual todos fazemos parte.
para geração. Há uma essência judaica na qual o A distinção acima é fundamental para
judeu não tem escolha. Esta atitude particulariza o compreender o pensamento de Sartre, pois
judeu, faz com que ele se diferencie dos demais. o filósofo considera o homem enquanto um
Por outro lado, ele está condenado pelo resto de ser em situação. Isso significa que os sujeitos
sua vida a ter uma essência que não escolheu. existentes não possuem uma essência como
O anti-semita nega a liberdade do individuo ao considera o anti-semitismo. O judeu não possui
estabelecer uma essência imodificável. uma maldade inata. Todavia, o judeu tem uma
Na mesma obra, Sartre faz a distinção singularidade, isto é, ele não se equivale a outro
entre o anti-semita e o democrata. A diferença homem qualquer. Vejamos:
estabelecida pelo autor não deixa de ser impor- [...] o homem se define antes de tudo
tante. Sartre revela que, de um lado, o anti-semita como um ser “em situação”. Isto significa
1
No texto Reflexões sobre a questão judaica, Sartre analisa o problema do anti-semitismo. Embora esse seja o tema central da obra,
não trabalharemos com a questão. O que nos importa é como Sartre apresenta o judeu autêntico.
2
Como se sabe, na ontologia de Sartre encontra-se o ser em-si e o ser para-si. O ser do em si se caracteriza pela sua determinação,
“uma couve flor será sempre uma couve flor”. O ser em si encerra-se a si mesmo, “está isolado em seu ser e não mantém relação algu-
ma com o que não é.” (SARTRE, 2001, p.39). Isto significa que o em si não precisa de algo exterior para se definir, ele “é opaco em si
mesmo exatamente porque está pleno de si. Melhor dito, o ser é o que é.” (SARTRE, 2001, p. 38). Não se atinge esse ser bruto pois ele
não precisa de nada que não seja si mesmo para ser: “[...] As coisas se libertam de seus nomes. Estão ali, grotescas, obstinadas, gigan-
tescas, e parece imbecil chamá-las de bancos ou dizer o que quer que seja a respeito delas: estou no meio das Coisas, das inomináveis”
(SARTRE, 2006, p. 158). Já no caso do para si, temos que seu ser é uma busca de tornar-se algo, ou então, o para si é caracterizado
por este movimento de transcendência. Resultante da sua constituição, o para si quer ser algo que ele não é, ele “não é o que ele é e
é o que ele não é.” (SARTRE, 2001, p.128).
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O livro O Ser e o Nada foi publicado no ano de 1943. Já a obra Reflexão Sobre a Questão Judaica teve sua primeira publicação no
ano de 1946.
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No entanto, não se deve esquecer que, para Sartre, a inautenticidade “[...] não implica, naturalmente, nenhuma censura moral
[..]”(SARTRE, 1963, p. 54)
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Além disso, o homem sempre fica diante de si, sempre tem que escolher a sua existência. Lembra-se aqui novamente as palavras de
Roquintin: “Soa cinco e meia. Levanto-me, minha camisa fria se cola à minha carne. Saio. Por que? Bem, porque também não tenho
razão alguma para não fazê-lo. Ainda que fique, ainda que me escolha, nunca me esquecerei de mim [...] Gostaria tanto de me aban-
donar, de esquecer de mim mesmo, de dormir. Mas não posso, sufoco: a existência penetra em mim por todos os lados, pelos olhos,
pelo nariz, pela boca [...]” (SARTRE, 2006, p. 129 e p. 159).
Somos livres, mas isso não nos dispensa Por outro lado, vemos Brunet, um homem
de nos tornarmos livre. Simplesmente que largou sua “liberdade” para se engajar na
foi indispensável que a ontologia nos luta política. Brunet, ao contrário de Mathieu, é
dissesse de antemão se a tentativa teria o homem que se faz em seu projeto e que não
sentido. As análises ontológicas já feitas se fecha em si mesmo. A liberdade para Brunet
nos mostram que ela tem sentido, pois só tem sentido quando está direcionado para um
essencialmente não somos determinados. objetivo, um “engajamento”. Como diz Brunet para
Cabe a nós lhe dar um sentido positivo na
Mathieu: “Mas para que te serve a liberdade, se
atitude prática pela qual existencialmente
nós nos determinamos, tomando apoio
não para tomar posição?” (SARTRE, 1979, p. 143).
nas dificuldades de nossa própria pre- Portanto, a liberdade para Brunet só se realiza de
sença no mundo. (GILES, 2003, p. 63). fato quando fazemos uma escolha. O homem não
se deve fechar em si mesmo. Pelo contrário, para
Como já foi dito, o homem não deve agir ser livre o homem deve projetar-se, “Entrar para
de acordo com valores fixados, ou seja, não o Partido, dar um sentido à vida, escolher ser um
posso agir e justificar minha ação em valores homem, agir, acreditar.” (SARTRE, 1979, p. 147),
pré-estabelecidos. Crio os valores no momento criar valores e não negá-los. Vemos que Brunet
da minha ação. Se eu sou covarde, não sou cria um valor e dedica toda a sua existência em
porque nasci covarde, mas sim porque, nas nome desse valor. Sua existência é justificada pe-
minhas ações, faço-me covarde. Pode-se no- los valores objetivos os quais a sua liberdade se
tar que alguns dos termos chaves da filosofia submete. Enquanto Mathieu nega tudo em nome
sartreana é o “projetar-se” e o “engajamento”, de sua liberdade, Brunet quer ser algo, ele quer
o “compromisso”. O homem se faz enquanto recuperar o seu projeto. Constatamos, portanto,
projeto livre. Ele deverá, portanto, agir enquanto que na autenticidade a liberdade leva a ação
esse projeto. Ser covarde é projetar-se como co- do criar-se a si mesmo. Mais ainda, a liberdade
varde, ter um compromisso com essa covardia. não fecha o homem em si, mas o faz se engajar,
Só assim o valor existirá. A autenticidade, para agir. O homem existe e deve fazer uma escolha
Sartre, surgirá no momento em que reconheço sobre a sua existência. Como lembra Jeanson, “Eu
essa liberdade e ajo em seu nome. Querer a existo, mas eu só posso alcançar esta existência
liberdade significa em me afirmar enquanto assumindo-a.” (JEASON, 1947, p. 348, tradução
um ser livre, ou seja, em ser algo que não sou, nossa.). O homem faz com que sua liberdade seja
em projetar-me constantemente. Fazer-se livre autêntica quando possui a consciência de que
é criar a si mesmo, criar valores morais, em ser nada determina suas ações. Na ação o homem
o que não se é. Esse problema é elucidado no cria, ele revela a sua liberdade de ser. No entanto,
romance A Idade da Razão. (SARTRE, 1979, isso pode perfeitamente se encaixar na má-fé.
p. 63). Nessa obra, encontramos a personagem
Mathieu, um homem que quer ser livre. Ele não 4
assume nenhum compromisso, a única coisa que Um conceito que poderá ajudar a nossa
quer é ter essa liberdade que significa ausência compreensão de autenticidade é o de má-fé,
de compromisso. Assim, ele evita o casamento já que é lícito interpretar esta última como a
com Marcelle do mesmo modo que evita entrar negação de si. Na má-fé o homem finge ser
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“A má-fé tem na aparência, portanto, a estrutura da mentira. Só que – e isso muda tudo – na má-fé eu mesmo escondo a verdade de
mim mesmo.” (SARTRE, 2001, p.94).
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Sartre oferece como exemplo dessa fuga o homossexual que se afirma não sendo um homossexual. Este não reconhece a sua factici-
dade, ao contrário, ele nega a sua facticidade dizendo que o seu ser é possibilidade de ser. Sua homossexualidade pode ser modifi-
cada, ela não é em-si. No entanto, o problema desta fuga está no fato de que o homem considera a sua transcendência a maneira de
ser um ser em-si, uma coisa transcendente. Enfim, pela transcendência o homem escapa daquilo que é, ele foge do julgamento através
da sua possibilidade de ser.
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Nesta peça, Sartre desenvolve a sua tese da objetivação pelo olhar. Quando olhamos uma pessoa, não reconhecemos a sua liberdade,
mas a objetificamos, tornamo-la um ser em-si. A grande máxima “o inferno são os outros” exprime o desespero de não ser reconhecido
como um ser livre por outrem. Mas o homem pode utilizar esse artifício para escapar da responsabilidade e da liberdade. Quando o
outro me observa e me objetifica, posso escapar da minha transcendência.
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“l’homme existe de mauvaise foi, mais il peut, à partir de là, se réaliser selon la mauvaise foi ou se rendre authentique”