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UFBA - DIREITO ADMINISTRATIVO

Prof. Durval Carneiro Neto

INTRODUÇÃO AO DIREITO ADMINISTRATIVO

Sumário: 1) A evolução do Estado e o contexto histórico do surgimento do Direito


Administrativo. 1.1) Estado de Polícia. 1.2) Estado de Direito. 2) Objeto e taxionomia do
Direito Administrativo. 3) Administração Pública nos sentidos subjetivo e objetivo. 4)
Mutações do Direito Administrativo e a amplitude da atividade administrativa. 4.1) Fase
do liberalismo (Estado mínimo e "administração patrimonialista"). 4.2) Fase do estatismo
(Estado interventor e “administração burocrática”). 4.3) Fase da democracia (Estado
eficiente e “administração gerencial”. 5) Fontes do Direito Administrativo. 5.1) Legislação.
5.2) Tratados internacionais. 5.3) Costumes. 5.4) Princípios gerais do direito. 5.5)
Doutrina e jurisprudência. 6) Regime jurídico administrativo (regras e princípios
administrativos). 6.1) Sentido e classificação dos “princípios” nas ciências. 6.2) A função
dos princípios na ciência jurídica. 6.2.1) A evolução da principiologia jurídica. 6.2.2) A
“normatividade principialista” e o “Bloco da Legalidade”. 6.2.3) Distinção clássica entre
normas-regra e normas-princípio. 6.2.4) Críticas aos critérios de distinção. 6.2.5)
Proposta conceitual de Humberto Ávila. 6.3) Classificação dos princípios jurídicos. 6.3.1)
quanto à amplitude: fundamentais, gerais e setoriais. 6.3.2) quanto ao reconhecimento
no direito positivo: explícitos e implícitos. 6.4) Princípios da administração pública. 6.4.1)
Supremacia e indisponibilidade do interesse público. 6.4.2) Críticas ao dogma da
supremacia do interesse público. 6.4.3) A doutrina dos interesses primários e
secundários (Renato Alessi). 6.4.4) Princípios expressos no art. 37, caput, da CF/88:
princípio da legalidade; princípio da impessoalidade; princípio da moralidade
administrativa; princípio da publicidade; princípio da eficiência. 6.4.5) Outros princípios
reconhecidos: princípio da presunção de legitimidade e veracidade; princípio da
hierarquia; princípio da especialidade; princípio do controle ou tutela; princípio da
autotutela; princípio da continuidade da atividade administrativa; princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade; princípio da motivação; princípio da segurança
jurídica; princípio da proteção à confiança e boa-fé objetiva; princípio do controle judicial
dos atos administrativos; princípio da obrigatoriedade do desempenho da atividade
administrativa; princípio da responsabilidade do Estado; princípio da precaução.

1) A EVOLUÇÃO DO ESTADO E O CONTEXTO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DO


DIREITO ADMINISTRATIVO

Onde houver sociedade, haverá Direito, já diziam os romanos (Ubi Societas Ibi Jus). De fato,
qualquer grupo social, por mais rudimentar que tenha sido, sempre pressupôs a existência de
normas de convivência, sem as quais os homens não poderiam delimitar o alcance da grande
variedade de interesses frente às limitações materiais da vida.

“O ser humano encontra-se em estado convivencial e pela própria convivência é levado a interagir;
assim sendo, acha-se sob influência de outros homens e está sempre influenciando outros. E como toda
interação produz perturbação nos indivíduos em comunicação recíproca, que pode ser maior ou menor,
para que a sociedade possa se conservar é mister delimitar a atividade das pessoas que a compõe
mediante normas jurídicas. (...) Somente as normas de direito podem assegurar as condições de
equilíbrio imanentes à própria coexistência dos seres humanos, possibilitando a todos e a cada um o
pleno desenvolvimento das suas virtualidades e a consecução e gozo de suas necessidades sociais, ao
regular a possibilidade objetiva das ações humanas”.1

1
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Volume 1. São Paulo: Saraiva.

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Já o Estado, como produto da convivência humana, nem sempre existiu na realidade social,
sendo, portanto, uma criação posterior ao Direito. Tempos remotos houve em que, apesar de
existirem normas que de certa forma regiam a convivência entre os homens na sociedade,
estes não se submetiam a uma autoridade central organicamente instituída, isto é, ainda não
se concebiam as figuras dos governantes e dos governados. Nestas sociedades primitivas,
como disse Hans Kelsen, predominava o princípio da autodefesa.

“Nas ordens jurídicas primitivas a reação da sanção à situação de fato que constitui o ilícito está
completamente descentralizada. É deixada aos indivíduos cujos interesses foram lesados pelo ato ilícito.
Estes têm poder para determinar, num caso concreto, a verificação do tipo legal do ilícito fixado por via
geral pela ordem jurídica e para executar a sanção pela mesma determinada. Domina o princípio da
autodefesa”.2

Tal ausência do poder organizado fazia com que o homem vivesse no chamado “estado da
natureza”, usando da própria força para garantir os seus interesses, o que gerava
insegurança social segundo a “lei do mais forte”. Tornou-se então necessária a criação de um
ente político com força dominante e soberana sobre a sociedade, um “mal necessário” como
chegaram a afirmar alguns: o ideal era que o homem pudesse viver sem se submeter a uma
força superior governante, o que, todavia, não se mostrou possível.

“A ameaça contínua de conflitos internos e fragilidade dos meios de proteção levaram comunidades à
insegurança. Essa situação de fraqueza e impotência para defender seus direitos levou os homens no
estado da natureza a idealizarem e a criarem um ente superior aos grupos, visando à segurança e ao
resguardo das pessoas e respectivas propriedades. A esse ente transferiu-se parte do poder de cada
membro, para que ele se organizasse de modo a proteger a todos e garantir-lhes a propriedade”. 3

Caminhou-se, assim, para a centralização da ordem jurídica na figura do Estado, cuja


atuação deveria se dar através de órgãos e agentes, de acordo com o que Kelsen chamou de
princípio da divisão do trabalho, restringindo ao máximo o princípio da autodefesa:

“Com o decorrer da evolução, esta reação da sanção ao fato ilícito é centralizada em grau cada vez
maior, na medida em que tanto a verificação do fato ilícito como a execução da sanção são reservadas a
órgãos que funcionam segundo o princípio da divisão do trabalho: aos tribunais e às autoridades
executivas. O princípio da autodefesa é limitado o mais possível. Mas não pode ser completamente
excluído. Mesmo no Estado moderno, no qual a centralização da reação coercitiva contra o fato ilícito
atinge o grau máximo, subsiste um mínimo de autodefesa. É o caso da legítima defesa”. 4

Concebida estava a ideia de Estado, em seu conceito clássico de nação politicamente


organizada, composto basicamente de três elementos (povo, território e soberania), como
produto das necessidades sociais. Uma organização instrumental imprescindível para a
convivência humana.

“Desta forma, o Estado, cujos elementos essenciais são a população, o território e o poder, define-se
como uma ordem jurídica relativamente centralizada, limitada no seu domínio espacial e temporal de

2 .
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes.
3
FARIA, Edimur Ferreira de. Curso de Direito Administrativo Positivo. Belo Horizonte: Del Rey.
4 .
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes.

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vigência, soberana ou imediata relativamente ao Direito Internacional e que é, globalmente ou de um


modo geral, eficaz”.5

Desde o seu surgimento, a concepção de Estado vem passando por constantes


transformações ao longo do tempo e no espaço, de acordo as forças políticas e os fatores
reais de poder predominantes em cada época e lugar, sobretudo, conforme a finalidade a
que se propõe.

“Alexandre Groppali acrescenta mais um elemento componente do Estado, que é a finalidade. Ela seria
o objetivo para o qual o Estado orientaria a consecução das suas atividades. A estrutura estatal não seria
um fim em si mesmo, uma entidade acima dos valores fundamentais da pessoa humana, mas teria
natureza instrumental, através da qual o Estado atenderia aos interesses da coletividade. Para o
mencionado autor, toda estrutura estatal existe para cumprir um determinado objetivo, que é fixado de
acordo com as circunstâncias histórico-político-sociais”.6

Nessa variada tipologia de formas históricas de Estados, Jorge Miranda cita o Estado
Oriental, o Estado Grego, o Estado Romano, o Estado Medieval e o Estado Moderno.7 E
conforme veremos no próximo tópico, os fatos históricos que levaram ao surgimento do
Direito Administrativo são relativamente recentes, tendo ocorrido na segunda fase do Estado
Moderno, no final do século XVIII.

1.1) ESTADO DE POLÍCIA

O modelo de Estado Moderno tem inicio na época do Renascimento europeu, após a


segunda metade do século XV.

“Os tempos modernos trouxeram a perda do prestígio de que a Igreja desfrutava na Idade Média e, em
consequência, geraram a concentração do poder nas mãos do príncipe. É dessa época o surgimento das
monarquias absolutas como única solução possível para conduzir à unidade do Estado perdida no
período feudal. A primeira etapa do Estado moderno é conhecida como Estado de Polícia, em que a
forma de Governo adotada é a monarquia absoluta. A segunda etapa corresponde ao surgimento do
Estado de Direito”.8

Na primeira fase do Estado Moderno, após o Renascimento e até meados do século XVIII,
cultivou-se a ideia do Estado-Polícia, em que predominavam os regimes absolutistas, não
havendo espaço para as liberdades individuais. Nesta época, a figura do Estado estava
voltada basicamente às questões de segurança e garantia da ordem pública. Não existiam
normas que limitassem o agir do Estado perante os indivíduos, conforme foi retratado na
clássica obra “O Príncipe” de Maquiavel e encontra-se simplificado na célebre frase de Luís
XIV (O Rei Sol): “O Estado sou eu” (l’Etat c’est moi).

No Estado de Polícia, o detentor do poder estatal vale-se de um “direito ilimitado para


administrar; não se reconhecem direitos do indivíduo frente ao soberano; o particular é um objeto do
poder estatal, não um sujeito que se relaciona com ele”. 9 Na monarquia absolutista, tal como
descreveu Bossuet, “Deus estabelece os reis como seus ministros e reina através deles
5 .
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes.
6
AGRA, Walber de Moura. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: RT.
7
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense.
8
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
9
GORDILLO, Agustín. Tratado de Derecho Administrativo. Belo Horizonte: Del Rey. Tomo 1.

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sobre os povos... Os príncipes agem, portanto, como ministros de Deus”. Nesse contexto da
teoria divina, predominava a ideologia de que o rei não poderia fazer mal (na expressão
francesa, “le roine ne peut mal faire”), ou seja, de que o rei não comete erros (entre os
ingleses, dizia-se “the king can not wrong”).

Numa síntese de como se dava o exercício do poder político no regime absolutista, assinala
Carlos Ari Sundfeld:

“a) O Estado, sendo o criador da ordem jurídica (isto é, sendo incumbido de fazer as normas), não se
submetia a ela, dirigida apenas aos súditos. O Poder Público pairava sobre a ordem jurídica.

b) O soberano, e, portanto, o Estado, era indemandável pelo indivíduo, não podendo este questionar,
ante um tribunal, a validade ou não dos atos daquele. Parecia ilógico que o Estado julgasse a si mesmo
ou que, sendo soberano, fosse submetido a algum controle externo.

c) O Estado era irresponsável juridicamente: le roi ne peut mal faire, the king can do no wrong.
Destarte, impossível seria exigir ressarcimento por algum dano causado por autoridade pública.

d) O Estado exercia, em relação aos indivíduos, um poder de polícia. Daí referirem-se os autores, para
identificar o Estado da época, ao Estado-Polícia, que impunha, de modo ilimitado, quaisquer
obrigações ou restrições às atividades dos particulares. Em consequência, inexistiam direitos individuais
contra o Estado (o indivíduo não podia exigir do Estado o respeito às normas regulando o exercício do
poder político), mas apenas direitos dos indivíduos nas suas recíprocas relações (o indivíduo podia
exigir do outro indivíduo a observância das normas reguladoras de suas relações recíprocas).

e) Dentro do Estado, todos os poderes estavam centralizados nas mãos do soberano, a quem cabia
editar as leis, julgar os conflitos e administrar os negócios públicos. Os funcionários só exerciam poder
por delegação do soberano, que jamais o alienava”.10

Ainda no final desta primeira fase do Estado Moderno, as forças políticas capitaneadas pela
burguesia em ascensão aos poucos vieram pregando um maior controle do poder estatal. Foi
nesse momento que na Alemanha desenvolveu-se a teoria do Fisco, que pugnava por uma
espécie de bifurcação da personalidade do Estado de Polícia, conforme explica Maria Sylvia
Zanella Di Pietro:

“Para combater esse poder absoluto do príncipe, elaborou-se, em especial por doutrinadores alemães, a
teoria do fisco, em consonância com a qual o patrimônio público não pertence ao príncipe nem ao
Estado, mas ao fisco, que teria personalidade jurídica de direito privado, diversa da personalidade do
Estado, associação política, pessoa jurídica de direito público, com poderes de mando, de império. O
primeiro submetia-se ao direito privado e, em consequência, aos tribunais; o segundo regia-se por
normas editadas pelo príncipe, fora da apreciação dos tribunais. Com isso, muitas das relações jurídicas
em que a Administração era parte passaram a ser regidas pelo direito civil e a submeter-se a tribunais
independentes, sem qualquer vinculação ao príncipe. Esses tribunais passaram a reconhecer, em favor
do indivíduo, a titularidade de direitos adquiridos contra o fisco, todos eles fundamentados no direito
privado. Mas o Estado, pessoa jurídica, enquanto poder público, continuava sem limitações
estabelecidas pela lei e indemandável judicialmente pelos súditos na defesa de seus direitos. A
bifurcação da personalidade do Estado apenas abrandou o sistema então vigente, mas não o extinguiu.

10
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. São Paulo: Malheiros.

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(...) correspondeu a uma bifurcação de regimes jurídicos: de um lado, o jus politiae (direito de polícia),
que partindo da ideia de poder sobre a vida religiosa e espiritual do povo, concentrou em mãos do
príncipe poderes de interferir na vida privada dos cidadãos, sob o pretexto de alcançar a segurança e o
bem-estar coletivos; de outro lado, o direito civil, que regia as relações do Fisco com os súditos e que
ficavam fora do alcance do príncipe, gerando direitos subjetivos que podiam ser assegurados por meio
de controle judicial. Esse sistema teve o mérito de submeter uma parte da atividade do Estado à lei e aos
Tribunais”.11

Sobre essa noção alemã de “Fisco” (Fiskus), escreve Jean Rivero:

“Nos direitos administrativos alemães do Século XIX, ainda próximos, no início do Estado de Polícia –
Polizeistaat – no qual a soberania do Estado excluía sua personificação jurídica, o Fisco, noção
transposta do Direito Romano do Baixo-Império, era de algum modo a Caixa do Estado, o Tesouro
Público, o Erário, personificado. Sob os traços do Fisco, o Estado tornava-se pessoa, no que dizia
respeito às relações financeiras (aqui compreendidas as nascidas do imposto) com os sujeitos, sendo tais
relações consideradas como de direito privado. Assim, tornavam-se possíveis um contencioso e uma
proteção jurídica dos indivíduos, que teriam sido, sem tal desvio, inconcebíveis, nas relações do súdito
e do soberano. Esta noção, em declínio desde o fim do século XIX, desapareceu nos dias de hoje, mas
mesmo no período de maior florescimento, seu ar de difusão permaneceu estritamente limitado aos
países diretamente germânicos”.12

Também na França se desenvolveu doutrina parecida, denominada teoria dos atos de


gestão, como tais considerados os atos praticados pelo Estado na gestão dos negócios
administrativos (Estado administração, com personalidade jurídica), distinguindo-os dos
chamados atos de império praticados pelo Monarca no exercício da sua soberania (Estado
potestade pública, desprovido de personalidade). Nessa visão, somente os atos de gestão
eram passíveis de controle jurídico e proteção aos indivíduos por eles atingidos, daí se
reconhecer personalidade jurídica ao Estado. Já os atos de império, ficavam fora do
regramento jurídico.

“Na época se afirmava que, ao praticar atos de gestão, o Estado teria atuação equivalente a dos
particulares em relação aos seus empregados ou prepostos; como para os particulares vigorava a regra
da responsabilidade, nesse plano o Estado também seria responsabilizado, desde que houvesse culpa do
agente. Ao editar atos de império, estreitamente vinculados à soberania, o Estado estaria isento de
responsabilidade”. 13

Mas, tal como aconteceu com a teoria do Fisco, se no primeiro momento a teoria dos atos de
gestão teve o mérito de abrandar a irresponsabilidade que até então caracterizava os atos do
Estado absolutista, propiciando algum controle judicial, posteriormente ela veio perdendo
prestígio, na medida em que se constatou “ser muito difícil, senão impossível, distinguir os atos de
império dos atos de gestão do Estado. Frequentemente, esses atos se mesclavam; às vezes, um mesmo
ato apresentava aspectos de gestão e de império, tornando, na prática, tormentosa a sua diferenciação”. 14

11
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
12
RIVERO, Jean. Curso de Direito Administrativo Comparado. São Paulo: RT.
13
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: RT.
14
MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Problemas de responsabilidade civil do Estado. In: FREITAS, Juarez (org.). Responsabilidade
Civil do Estado. São Paulo: Malheiros.

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De qualquer modo, já estavam lançadas as sementes para “a ideia de submissão da


Administração Pública à lei, como garantia das liberdades do cidadão” 15, que veio a caracterizar, no
momento seguinte, o chamado Estado de Direito.

1.2) ESTADO DE DIREITO

Mais adiante, desde meados do século XVII na Inglaterra e no final do século XVIII na
França, adentra-se na segunda fase do Estado Moderno, marcada pelo enfraquecimento
do Estado absolutista diante das grandes revolução liberais (revolução inglesa e revolução
francesa). Tais movimentos revolucionários, influenciados pelos ideais do iluminismo e
decorrendo não apenas de razões religiosas (no caso da Inglaterra), mas, sobretudo, de
razões econômicas (uma burguesia sufocada pelo poder da nobreza e do clero), abriram
espaço à criação de um modelo de Estado liberal e constitucional que buscava garantir os
Direitos do Homem e do Cidadão. No final do século XVIII, antes mesmo do novo Estado
Francês de 1789, o movimento liberal levou à declaração de independência dos Estados
Unidos da América (1776).

Inicia-se, nesse contexto, a construção de uma concepção que veio depois a ser denominada
Estado de Direito, num primeiro momento caracterizado pelo individualismo liberal,
passando-se a considerar o Estado como um instrumento para a satisfação dos interesses
individuais e exigindo-se dele o respeito aos direitos naturais e inalienáveis do homem. Tal
liberalismo clássico reduziu ao mínimo as tarefas do Estado e elevou ao máximo a liberdade
individual, seja no campo jurídico, seja no campo econômico (a famosa teoria liberal do
“laissez faire, laissez passer”).

Em suma, enquanto o Estado absolutista colocava-se acima dos direitos individuais, a partir
das revoluções liberais passou-se a instituir limitações ao agir do Estado, abrindo-se
espaço para o desenvolvimento do movimento constitucionalista e para o surgimento das
primeiras normas regulando a atuação estatal. Na França, tais normas foram concebidas
notadamente com base em julgados do Conselho de Estado Francês.

“A transformação do Estado absolutista em Estado de Direito verificou-se, como visto antes, com a
implantação da teoria da divisão de poderes do Estado: Legislativo, Executivo e Judiciário,
desenvolvida por Montesquieu. A França foi um dos primeiros países a adotar a tripartição de poderes,
antecedida pelos Estados Unidos da América do Norte. Hoje, a tripartição é adotada na maioria dos
Estados modernos. Visto apenas pelo prisma positivista, o Estado de Direito é aquele que se submete às
leis por ele próprio criadas, voltadas para a promoção do interesse social. É salutar ter em cognição que
as leis devem ser justas e democráticas, de modo a traduzir os verdadeiros e reais interesses da
sociedade. As leis, divorciadas desses valores, são injustas e contrariam a ideia de Estado de Direito.
Assim, pode-se considerar Estado de Direito aquele que prima pela democracia, zela pela moralidade
pública e administrativa, promove a Justiça, a segurança pública e o bem-estar coletivo e, ainda, se
submete às leis por ele criadas”.16

Essa transição do Estado-Polícia para o Estado de Direito é também comentada por


Carlos Ari Sundfeld:

15
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
16
FARIA, Edimur Ferreira de. Curso de direito administrativo positivo. Belo Horizonte: Del Rey.

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“Perceba como as normas sobre o exercício do poder se ampliam. Até então, todas as épocas anteriores,
destinavam-se a impor – praticamente sem limites e sem controles – a obediência das pessoas às
determinações do poder político. Agora, cuidarão ainda de fazer prevalecer o poder político sobre os
indivíduos (que pagarão impostos ao Estado, submeter-se-ão ao seu julgamento, obedecerão às leis por
ele produzidas); mas também – e sobretudo – de organizar o Estado para limitar e controlar seu poder
(os cidadãos escolhem em eleições os parlamentares, o Parlamento faz normas para regular a cobrança
de impostos pelo Executivo, um Tribunal pode anular a lei feita pelo Parlamento, o indivíduo pode
mover uma ação judicial para se furtar da cobrança ilegal de impostos) (...). Cunha-se, a partir de então,
o conceito de Estado de Direito, isto é, de um Estado que realiza suas atividades debaixo da ordem
jurídica, contrapondo-se ao superado Estado-Polícia, onde o poder político era exercido sem limitações
jurídicas, apenas se valendo de normas jurídicas para se impor aos cidadãos”. 17

Pela primeira vez na história, foram sistematizados critérios jurídicos para dirimir os conflitos
entre administrados e a Administração Pública, dando origem a doutrinas clássicas que
procuravam restabelecer a antiga dicotomia existente entre o Direito público e o Direito
privado18. Pode-se então dizer que somente aí, no final do século XVIII, surgiu o Direito
Administrativo como ramo do Direito público e cujo principal personagem é o Estado de
Direito.

Conforme aponta a doutrina, “na Época Moderna, os autores costumam indicar o dia 28, Pluvioso
do Ano VIII (1800), em que a Revolução Francesa editou sua primeira lei reguladora da pública
administração, como ‘data de nascimento’ do Direito Administrativo”.19

“Muito corrente entre os autores franceses, italianos e pátrios a menção à lei do 28 pluvioso do ano VIII
(1800) como ato de nascimento do direito administrativo, a qual pela primeira vez deu à administração
francesa uma organização juridicamente garantida e exteriormente obrigatória. Denominada por
Debbasch de constituição administrativa napoleônica, esta lei de 1800 contém, em síntese, preceitos
sobre organização administrativa e sobre solução de litígios contra a Administração”.20

“O novo (Estado), que se sucedeu à Revolução Francesa, pode ser sintetizado nos seguintes pontos: a)
formação de conjunto sistemático de preceitos obrigatórios para autoridades administrativas de todos os
níveis, muitos dos quais limitativos de poder; b) reconhecimento de direitos de particulares ante a
Administração, com previsão de remédios jurisdicionais; c) quanto à ciência, elaboração doutrinária
abrangente de todos os aspectos legais da atividade administrativa; d) elaboração jurisprudencial
vinculativa para a Administração e norteadora da construção de novos institutos jurídicos”. 21

Cretella Júnior aponta ainda que “o famoso caso Blanco, fato ocorrido em 1873, na cidade francesa
de Bordeaux, quando a menina Agnès Blanco foi atropelada por trem público, assinala o momento
culminante da autonomia do direito administrativo, expressa no notável voto do conselheiro David,

17
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. São Paulo: Malheiros.
18
Ressalte-se que esse dualismo tradicional entre o Direito público e o Direito privado, objeto de extensa discussão entre os doutrinadores,
segundo diversas teorias (do interesse dominante; do sujeito da relação etc.), já foi há muito criticado por Hans Kelsen, por considerá-lo de
caráter meramente ideológico e não científico. De fato, pode-se dizer que a linha que separa o Direito público do Direito privado está cada
vez mais obscurecida, haja vista as crescentes e complexas mutações na forma de prestação das atividades estatais, conforme s erá visto
mais à frente. Neste sentido, “não só a divisão da ciência do direito, em dois ramos – público e privado -, como também a subdivisão do
direito público em diversos campos é mais de natureza pedagógica do que de índole científica”. CRETELLA JUNIOR, José. Direito
Administrativo Brasileiro. Rio de janeiro: Forense.
19
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense.
20
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em evolução. São Paulo: RT.
21
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em evolução. São Paulo: RT.

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do Tribunal de Conflitos de Paris que, usando método próprio para julgar, deixou de lado o Código
Civil e colocou o feito em termos de direito público, derrogatórios e exorbitantes do direito comum”. 22

2) OBJETO E TAXIONOMIA DO DIREITO ADMINISTRATIVO

Conforme visto, o surgimento do Direito Administrativo está relacionado à queda do


absolutismo, sobretudo após a Revolução Francesa.

Até então, como assinala Hely Lopes Meirelles, “o absolutismo reinante e o enfeixamento de todos
os poderes governamentais nas mãos do Soberano não permitiam o desenvolvimento de quaisquer
teorias que visassem a reconhecer direitos aos súditos, em oposição às ordens do Príncipe”. 23

Com o ideal do liberalismo, propagado na Revolução Francesa de 1789, propiciou-se a


ascensão de uma política inspirada no pensamento de Aristóteles e que havia sido
sistematizada pelo Barão de Montesquieu, em 1748, na clássica obra “O Espírito das Leis”
(“L’Esprit des Lois”), preconizando a separação dos poderes, isto é, a tripartição das
funções do Estado em executivas, legislativas e judiciais.

O cerne da obra de Montesquieu está na assertiva de que somente o poder teria a força para
deter o poder. Com isso, impediu-se a concentração de poderes nas mãos de uma só
pessoa, de forma que se pudessem garantir as liberdades individuais contra os abusos dos
governantes. Seguindo o critério formal, reconheceu-se que o Estado deveria desempenhar
três funções distintas e independentes: legislativa, jurisdicional e administrativa.

Celso Antônio Bandeira de Mello aponta que a função legislativa “é a função que o Estado, e
somente ele, exerce por via de normas gerais, normalmente abstratas, que inovam
inicialmente na ordem jurídica, isto é, que se fundam direta e imediatamente na
Constituição”.24

A função jurisdicional, por sua vez, “é a função que o Estado, e somente ele, exerce por via de
decisões que resolvem controvérsias, com força de ‘coisa julgada’, atributo este que corresponde à
decisão proferida em última instância pelo Judiciário e que é predicado desfrutado por qualquer
sentença ou acórdão contra o qual não tenha havido recurso tempestivo”. 25 Por meio da função
jurisdicional se aplica a lei aos casos concretos.

Por fim, ainda segundo o citado autor, a função administrativa “é a função que o Estado, ou
quem lhe faça às vezes, exerce na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos e que no sistema
constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante comportamentos
infralegais ou, excepcionalmente, infraconstitucionais vinculados, submissos todos a controle de
legalidade pelo Poder Judiciário”.26

“Na prática, a função administrativa tem sido considerada de caráter residual, sendo, pois, aquela que
não representa a formulação da regra legal nem a composição de lides in concreto. Mais tecnicamente
pode dizer-se que função administrativa é aquela exercida pelo Estado ou por seus delegados,
subjacente à ordem constitucional e legal, sob regime de direito público, com vistas a alcançar os fins
22
CRETELLA JÚNIOR, José. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense.
23
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros.
24
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros.
25
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros.
26
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros.

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colimados pela ordem jurídica. Enquanto o ponto central da função legislativa consiste na criação do
direito novo (ius novum) e o da função jurisdicional descansa na composição de litígios, na função
administrativa o grande alvo é, de fato, a gestão dos interesses coletivos na sua mais variada dimensão,
consequência das numerosas tarefas a que se deve propor o Estado moderno. Exatamente pela ilimitada
projeção de seus misteres é que alguns autores têm distinguido governo e administração, função
administrativa e função política, caracterizando-se esta por não ter subordinação jurídica direta, ao
contrário daquela, sempre sujeita a regras jurídicas superiores”.27

Pois bem, o objeto do Direito Administrativo é justamente essa função administrativa, seja
ela exercida pelo próprio Estado, seja exercida até mesmo por particulares.

Exercendo a função administrativa, o Estado promove a gestão dos bens, interesses e


serviços públicos, os quais constituem um patrimônio da coletividade. Diógenes Gasparini
ressalta que a natureza da atividade ou função administrativa é a de um “munus público” e o
seu fim é sempre o interesse público ou o bem da coletividade.28

A função administrativa é, em regra, exercida pelo Poder Executivo. Todavia, os Poderes


Legislativo e Judiciário também a exercem, ainda que atipicamente, porquanto, apesar de
serem órgãos que desempenham respectivamente as funções legislativa e judiciária, também
têm, em seu bojo, setores administrativos.

Portanto, a atividade administrativa é predominante no Poder Executivo; mas não é exclusiva


deste Poder.

Aliás, a recíproca é verdadeira, pois há casos o Poder Executivo exerce atividades típicas da
função legislativa (ex: edição de medidas provisórias em caso de relevância e urgência –
CF/88, art.62).

Da mesma forma, em alguns casos o Poder Legislativo exerce atividades típicas da função
judiciária (ex: julgamento de impeachment do Presidente da República – CF/88, art.52, I;
Comissões Parlamentares de Inquérito – CF/88, art.58, §3º) e o Poder Judiciário exerce
atividades típicas da função legislativa (ex: elaboração dos Regimentos Internos dos
Tribunais – CF/88, art.96, I, a).

O importante é salientar que a qualificação da função (legislativa, judiciária e executiva) não


está relacionada com o Poder que a exerce (Legislativo, Judiciário e Executivo), mas sim com
a natureza do ato praticado.

Sobre o tema escreve José dos Santos Carvalho Filho:

“A cada um dos Poderes de Estado foi atribuída determinada função. Assim, ao Poder Legislativo foi
cometida a função normativa (ou legislativa); ao Executivo, a função administrativa; e, ao Judiciário, a
função jurisdicional. Entretanto, não há exclusividade no exercício das funções pelos Poderes. Há, sim,
preponderância. As linhas definidoras das funções exercidas pelos Poderes têm caráter político e
figuram na Constituição. Aliás, é nesse sentido que se há de entender a independência e a harmonia
entre eles: se, de um lado, possuem sua própria estrutura, não se subordinando a qualquer outro, devem
objetivar, ainda, os fins colimados pela Constituição. Por essa razão é que os Poderes estatais, embora
27
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas.
28
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva.

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tenham suas funções normais (funções típicas), desempenham também funções que materialmente
deveriam pertencer a Poder diverso (funções atípicas), sempre, é óbvio, que a Constituição o
autorize”. 29

Compreendida o que vem a ser a função ou atividade administrativa, convém agora apontá-la
como o objeto do Direito Administrativo, identificando a sua taxionomia30.

Consoante explica Alexandre Mazza, taxionomia (ou taxinomia) “é a natureza jurídica de


determinado instituto do direito. Indicar a natureza jurídica consiste em apontar a qual grande categoria
do direito o instituto pertence. Quando se trata de um ramo do direito, a indagação sobre sua natureza
jurídica resume-se em classificá-lo como ramo do Direito Público ou do Direito Privado”. Conclui
assim não haver dúvida de que “o Direito Administrativo é ramo do Direito Público na medida em que
seus princípios e normas regulam o exercício de atividades estatais, especialmente a função
administrativa”. 31

No conceito dado por Celso Antônio Bandeira de Mello: “O Direito Administrativo é o ramo do
Direito Público que disciplina o exercício da função administrativa, assim como os órgãos que a
desempenham”.

Neste mesmo sentido, vejamos outras definições atribuídas ao Direito Administrativo por
diversos doutrinadores:

“O Direito Administrativo pode ser definido como o ramo do Direito Público que concentra os
princípios e normas jurídicas regentes dos órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que
integram a Administração Pública, em todos os seus níveis – União, Estados, Distrito Federal e
Municípios -, bem como regente das atividades públicas direcionadas a realizar os fins almejados pelo
Estado” (Alexandre de Moraes32).

“Conjunto de princípios jurídicos que disciplinam a organização e a atividade do Poder Executivo,


inclusive dos órgãos descentralizados, bem como as atividades tipicamente administrativas exercidas
pelos outros Poderes” (Carlos S. de Barros Júnior33).

“Disciplina Jurídica reguladora da atividade do Estado, exceto no que se refere aos atos legislativos e
jurisdicionais, à instituição de órgãos essenciais à estrutura do regime e à forma necessária da atividade
destes órgãos” (Tito Prates da Fonseca 34).

“Ordenamento jurídico da atividade do Estado-poder, enquanto tal, ou de quem faça as suas vezes, de
criação de utilidade pública, de maneira direta e imediata” (Oswaldo Aranha Bandeira de Mello 35).

“O ramo do Direito Público Interno que regula a atividade das pessoas jurídicas públicas e a instituição
de meios e órgãos relativos à ação dessas pessoas” (José Cretella Júnior 36).

29
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas.
30
Taxionomia, também chamada de taxinomia (ou, ainda, taxonomia), consiste na ciência da classificação, isto é, na divisão dos objetos de
conhecimento em categorias, de modo a racionalizar o processo de compreensão.
31
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
32
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional administrativo. São Paulo: Atlas.
33
BARROS JÚNIOR, Carlos S. de. Compêndio de direito administrativo. São Paulo:RT.
34
FONSECA, Tito Prates da. Rio de Janeiro: Freitas Bastos.
35
BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo. São Paulo: Malheiros.
36
CRETELLA JÚNIOR, José. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense.

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“Conjunto harmônico de princípios jurídicos que regem os órgãos, os agentes e as atividades públicas
tendentes a realizar concreta, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado” (Hely Lopes
Meirelles37).

“Ramo do Direito Público que estuda o conjunto de princípios, de conceitos, de técnicas e de normas
que regem as atividades jurídicas do Estado como gestor de interesses públicos, cujo efetivo
atendimento lhe é cometido pela ordem jurídica para a segurança e em benefício dos administrados”
(Diogo de Figueiredo Moreira Neto38)

“O ramo do direito público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas
que integram a Administração Publica, a atividade jurídica não contenciosa que exerce e os bens de que
se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro39).

“O Direito Administrativo é o conjunto de normas jurídicas pertencentes ao Direito Público, tendo por
finalidade disciplinar e harmonizar as relações das entidades e órgãos públicos entre si, e desses com os
agentes públicos e com os administrados, prestadores de serviços públicos ou fornecedores do Estado,
na realização da atividade estatal de prestar o bem-social, excluídas as atividades legislativa e
judiciária” (Edimur Ferreira de Faria 40).

Em síntese, portanto, o Direito Administrativo é o ramo do Direito Público que surgiu


para regulamentar a atividade administrativa do Estado, pautando a conduta da
Administração Pública e dos administrados, com vistas aos interesses públicos.

Compreendido o objeto do Direito Administrativo, duas advertências precisam ser feitas.

Primeiro, urge compreender que a distinção entre o Direito Administrativo e a Ciência da


Administração.

Por ser uma ciência jurídica, o Direito Administrativo ocupa-se do estudo das normas que
regem a atuação da Administração e a consequente significação jurídica dada a fatos e a
atos praticados por ela ou pelos cidadãos na condição de administrados. Não é função do
Direito Administrativo lidar com questões relacionadas a métodos ou técnicas de gestão
pública. Isso é papel da Ciência da Administração, que não é uma disciplina jurídica.

De fato, “em que pese a proximidade entre os dois ramos do conhecimento, é importante não confundir
Direito Administrativo com a Ciência da Administração. Esta consiste no estudo das técnicas e
estratégias para melhor planejar, organizar, dirigir e controlar a gestão governamental. O certo é que o
Direito Administrativo define os limites dentro dos quais a gestão pública (Ciência da Administração)
pode ser validamente realizada”. 41 Em suma, o Direito Administrativo é ramo jurídico, que estuda
princípios e regras do Direito e fixa limites para a gestão pública. A Ciência da Administração
não é ramo jurídico, mas tão somente uma ciência social que estuda técnicas de gestão
pública. Essas técnicas, objeto da Ciência da Administração, devem obedecer às normas
jurídicas que são objeto do Direito Administrativo.

37
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros.
38
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense.
39
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
40
FARIA, Edimur Ferreira de. Curso de direito administrativo positivo. Belo Horizonte: Del Rey.
41
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. São Paulo: Saraiva.

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Como segunda advertência, convém ressaltar ainda que, mesmo no estudo das normas e
fatos jurídico-administrativos, existem atividades relacionadas à função administrativa
que estão didaticamente inseridas no campo de outras disciplinas jurídicas além do
Direito Administrativo. Deveras, algumas atividades específicas, apesar de afetas à função
administrativa, passaram a compor, pela sua importância e peculiaridades, ramos autônomos
do Direito. São exemplos as atividades atualmente enfocadas pelo Direito Tributário, pelo
Direito Previdenciário, pelo Direito Urbanístico, dentre outros ramos da ciência jurídica. Pode-
se dizer que são ramos autônomos e específicos que brotaram a partir de um mesmo tronco
central que é o Direito Administrativo.

3) ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NOS SENTIDOS OBJETIVO E SUBJETIVO

A doutrina costuma apontar o conceito de Administração Pública em sentido subjetivo e em


sentido objetivo, devendo o estudante ter atenção para saber distinguir quando o emprego da
expressão se dá num ou noutro sentido.

Segundo Alexandre de Moraes, “a Administração Pública pode ser definida objetivamente como a
atividade concreta e imediata que o Estado desenvolve para a consecução dos interesses coletivos, e
subjetivamente como o conjunto de órgãos e de pessoas jurídicas aos quais a lei atribui o exercício da
função administrativa do Estado”.42

Na mesma linha, Maria Sylvia Zanella Di Pietro leciona que “basicamente, são dois os sentidos
em que se utiliza mais comumente a expressão Administração Pública: a) em sentido subjetivo, formal
ou orgânico, ela designa os entes que exercem a atividade administrativa; compreende pessoas
jurídicas, órgãos e agentes públicos incumbidos de exercer uma das funções em que se triparte a
atividade estatal: a função administrativa; b) em sentido objetivo, material ou funcional, ela designa a
natureza da atividade exercida pelos referidos entes; nesse sentido, a Administração Pública é a própria
função administrativa que incumbe, predominantemente, ao Poder Executivo”.43

"São as seguintes as características da Administração Pública, em sentido objetivo: 1. é uma atividade


concreta, no sentido de que põe em execução a vontade do Estado contida na lei; 2. a sua finalidade é a
satisfação direta e imediata dos fins do Estado; 3. o seu regime jurídico é predominantemente de direito
público, embora possa também submeter-se a regime de direito privado, parcialmente derrogado por
normas de direito público. Assim, em sentido material ou objetivo, a Administração Pública pode ser
definida como a atividade concreta e imediata que o Estado desenvolve, sob regime jurídico total ou
parcialmente público, para a consecução dos interesses coletivos"44.

"Compõe a Administração Pública, em sentido subjetivo, todos os órgãos integrantes das pessoas
políticas (União, Estados, Municípios e Distrito Federal), aos quais a lei confere o exercício de funções
administrativas. São órgãos da Administração Direta do Estado. Porém, não é só. Às vezes, a lei opta
pela execução indireta de atividade administrativa, transferindo-a a pessoas jurídicas com personalidade
de direito público ou privado, que compõe a chamada Administração Indireta do Estado. Desse modo,
pode-se definir Administração Pública, em sentido subjetivo, como o conjunto de órgãos e de pessoas
jurídicas aos quais a lei atribui o exercício da função administrativa do Estado"45.

42
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional administrativo. São Paulo: Atlas.
43
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
44
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
45
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.

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Para alguns autores, no sentido subjetivo convém que a expressão seja grafada com as
iniciais maiúsculas (“Administração Pública”), enquanto no sentido objetivo costuma ser
empregada com iniciais minúsculas (“administração pública”).

Assim aponta José dos Santos Carvalho Filho:

“O sentido objetivo, pois, da expressão – que aqui deve ser grafada com iniciais minúsculas – deve
consistir na própria atividade administrativa exercida pelo Estado por seus órgãos e agentes,
caracterizando, enfim, a função administrativa. (...) A expressão pode também significar o conjunto de
agentes, órgãos e pessoas jurídicas que tenham a incumbência de executar as atividades administrativas.
Toma-se aqui em consideração o sujeito da função administrativa, ou seja, quem a exerce de fato. Para
diferenciar este sentido da noção anterior, deve a expressão conter as iniciais maiúsculas:
Administração Pública”.46

Ou seja, “escrita com iniciais maiúsculas “Administração Pública” é um conjunto de agentes e órgãos
estatais; grafada com minúsculas, a expressão “administração pública” designa a atividade consistente
na defesa concreta do interesse público. Por isso, lembre-se: concessionários e permissionários de
serviço público exercem administração pública, mas não fazem parte da Administração Pública”. 47

Saliente-se, porém, que esta distinção no tocante ao emprego de iniciais maiúsculas e


minúsculas nem sempre é lembrada pela doutrina, de modo que a distinção há mesmo de ser
feita com vistas ao contexto em que a expressão for utilizada.

4) MUTAÇÕES DO DIREITO ADMINISTRATIVO E AMPLITUDE DA ATIVIDADE


ADMINISTRATIVA

O Direito, como instrumento de regulação e pacificação social, tem o seu conteúdo variável
conforme os ideais políticos e os fatores de poder vigentes em cada época. Daí se dizer que
o Direito deve estar sempre em constante evolução, para que se adapte a cada realidade em
que pretende operar.

Como ramo do Direito, o Direito Administrativo também está sujeito a tais variações, razão
pela qual muitos de seus conceitos e institutos clássicos vêm sofrendo reformulações e
modificações estruturais, sobretudo a partir do final do Século XX.

“O surgimento e sistematização do direito administrativo responderam a concepções e necessidades


práticas de uma época e, ao mesmo tempo, significaram todo um esforço de legitimação, em nível de
preceitos jurídicos, do exercício do poder estatal em determinado setor de atuação, a Administração
Pública. A construção clássica desempenhou papel relevante na busca de objetivação do poder público e
na garantia dos direitos individuais. Mas, ante as transformações da sociedade e do Estado, torna-se
necessário realizar uma espécie de controle de validade das concepções tradicionais, o que, na verdade,
corresponde à própria ideia de ciência”. 48

Tais mutações do Direito Administrativo, como bem assinala Diogo de Figueiredo Moreira
Neto, estão diretamente relacionadas às fases evolutivas por que passou a administração

46
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas.
47
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
48
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. São Paulo: RT.

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pública, citando-se a fase do absolutismo, a fase do liberalismo clássico, a fase do estatismo


e a fase da democracia.49

Na fase do absolutismo, como já visto, ainda não existia propriamente o Direito


Administrativo, pois prevalecia a vontade do rei, caracterizando a chamada “administração
regaliana”. A sistematização desta disciplina jurídica somente ocorreu após as primeiras
revoluções liberais.

4.1) FASE DO LIBERALISMO (Estado mínimo e "administração patrimonialista")

Na fase do liberalismo clássico, ao longo do século XIX, os anseios individuais foram


supervalorizados, como forma de combate ao modelo absolutista e segundo os ideais da
completa liberdade de mercado pugnada por Adam Smith (laissez faire, laissez passer). O
Estado Liberal (ou Estado Mínimo) intervinha muito pouco na economia e nas liberdades
individuais.

“Com a evolução do Liberalismo e, principalmente, do Constitucionalismo emerge a necessidade de


afirmação do indivíduo frente ao Estado, o que leva à concepção de Direito Administrativo entendido
como um arcabouço legal apto a limitar e procedimentalizar o poder do Estado e garantir os direitos dos
indivíduos”.50

“Inúmeras expressões aparecem na doutrina para designar o Estado do século XIX: Estado liberal,
Estado censitário, Estado burguês, Estado nacional-burguês, État gendarme, Estado legislativo, Estado
guarda-noturno, Estado-neutro, Estado máquina, Estado-aparato, Estado-mecanismo, Estado-catedral,
Estado da potência e da razão, Estado garantista, Estado autoridade, Estado abstencionista. (...) O
Estado do século XIX agrupa indivíduos autônomos, independentes, livres, dotados de igualdade
política e jurídica. Como oposição ao Estado absoluto consagraram-se liberdades e direitos dos
indivíduos; estes, de súditos, deveriam ascender ao grau de cidadão. Daí os valores desse Estado:
garantia da liberdade, da convivência pacífica, da segurança, da propriedade; o Estado é instrumento de
garantia dos direitos individuais, disso decorrendo sua utilidade e necessidade (...) Outro aspecto refere-
se à autonomia da atividade econômica em relação à ingerência do Estado, como reação ao domínio
absolutista que editava regras reguladoras de preços e padrões de mercadorias, disciplinava o
treinamento de aprendizes e controlava as inovações e a concorrência, tudo com o objetivo de assegurar
a balança comercial positiva, reforçar reservas de ouro do país e gerar riquezas taxáveis. Consagrava-se
a absolutização do princípio da livre iniciativa, segundo Giannini, que tinha valor positivo, como
liberdade de empreender, e valor negativo, como remoção de obstáculos ao exercício da liberdade de
iniciativa econômica, e portanto, como abstenção, dos poderes públicos, no tocante a intervenções
limitativas”. 51

Como veremos no próximo tópico, a doutrina costuma apontar a fase do Estado Liberal como
sendo a que antecedeu historicamente a fase do Estado Social. Em linhas gerais, tal
cronologia é acertada, porém, cumpre sempre estar atento às peculiaridades de cada país.

É pertinente a observação feita por alguns autores no sentido de que, no Brasil, não houve
propriamente uma fase liberal (tomada essa expressão conforme os parâmetros clássicos do
liberalismo econômico e do Estado mínimo), porquanto o que ocorreu, de fato, foi um forte

49
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar.
50
MARQUES NETO, Floriano Peixoto. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo: Malheiros.
51
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. São Paulo: RT.

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intervencionismo estatal na nossa economia. Com isso, pode-se dizer que até meados da
década de 1930 o Estado brasileiro ainda era caracterizado por uma administração
patrimonialista, na qual os interesses pessoais dos detentores do poder acabavam se
confundindo com os interesses da Administração Pública .

"Patrimonialismo é um termo utilizado para descrever a falta de distinção por parte dos líderes
políticos entre o patrimônio público e o privado em um determinado governo de determinada sociedade.
Mediante tal prática, os governantes consideram o Estado como seu patrimônio, numa total confusão
entre o que é público e o que é privado, noção que prevaleceu durante o período dos estados
absolutistas. Tal fenômeno, (considerado como danoso para as economias e o desenvolvimento das
modernas sociedades), porém, se mostra ainda bastante forte, e dependendo do desenvolvimento de
cada país, estado ou município, sua intensidade é maior ou menor"52.

Vladimir da Rocha França faz uma interessante leitura crítica sobre o que ocorreu no Brasil
desde a colônia até a República Velha:

"Em rigor, não houve a transição do Estado liberal para o Estado social no Brasil, pelo simples fato de
que os direitos individuais assegurados na Constituição Imperial de 1824 e na Constituição Federal de
1891 careciam de efetividade quando confrontados com o intervencionismo patrimonialista do
Estado na ordem econômica. E, quando finalmente entrou em vigor o Código Civil de 1916, de perfil
econômico liberal, o modelo de Estado e de Direito que serviu de inspiração para as ordens
constitucionais citadas se encontrava em profunda crise, agravada pela Primeira Guerra Mundial. O que,
em verdade, ocorreu com o advento da Constituição Federal de 1934, foi essencialmente a legitimação
constitucional do intervencionismo estatal que já vinha sendo praticado desde 1500 na ordem
econômica, ampliando-o cada vez mais. Também é imperativo destacar a imposição constitucional da
intervenção estatal na ordem social, com a inserção dos direitos sociais no rol de direitos fundamentais.
Ao se observar atentamente a própria evolução do catálogo de direitos fundamentais na História do
Direito Constitucional brasileiro, constata-se que os direitos sociais foram marcados por uma pujante
expansão, sendo ampliados a cada nova ordem constitucional desde 1934. Passou a ser interesse do
Estado, democrático ou autoritário, garantir uma rede de proteção social mais extensa possível, com o
aumento da tributação, das limitações jurídico-administrativas aos direitos individuais e das normas de
ordem pública nas relações privadas"53.

Por influência de grandes sociológicos, com destaque especial para a obra de Max Weber, a
administração patrimonialista veio a evoluir para a chamada administração burocrática.

"É atribuído a Max Weber o estudo aprofundado do fenômeno do patrimonialismo, que já era notado e
percebido como nocivo nos estados alemães do século XIX. Weber, aliás, fazia uma associação bastante
pertinente entre as ideias de patrimonialismo e patriarcalismo (a concentração de poder nas mãos do
patriarca, ou líder, e seus agregados). Suas conclusões acerca da burocracia (não no seu sentido
pejorativo, que lembra algo que não funciona, repartições empoeiradas, com engrenagens lentas e
ineficientes, mas de um conjunto técnico, de uma administração pública profissionalizada, eficiente e
ética) redundaram no aparecimento de procedimentos como o concurso público, licitações, controle da
administração pública. No Brasil os ideais burocráticos foram fixados em nosso ordenamento jurídico,
de fato, apenas com a Constituição de 1988, numa época bastante tardia, portanto"54.

52
SANTIAGO, Emerson. Patrimonialismo. Disponível em: http://www.infoescola.com/sociologia/patrimonialismo/
53
FRANÇA, Vladimir da Rocha. O mito do estado liberal brasileiro. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/vladimir-da-
rocha-franca/o-mito-do-estado-liberal-brasileiro.
54
SANTIAGO, Emerson. Patrimonialismo. Disponível em: http://www.infoescola.com/sociologia/patrimonialismo/

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4.2) FASE DO ESTATISMO (Estado interventor e “administração burocrática”)

Na fase do estatismo, surgida após a crise do capitalismo liberal e o posterior advento do


Estado do Bem Estar Social (o chamado “Welfare State”) em meados do século XX, foi
marcada pela presença maciça do Estado como um fim em si mesmo, passando a prevalecer
o interesse do Estado paternalista frente aos interesses individuais, o que caracterizou a
“administração burocrática”.

“Estado intervencionista, Estado-providência, Estado de bem-estar, Estado assistencial, Estado


pluriclasse, Estado social, Estado social-democrata, Estado de associações, Estado distribuidor, Estado
nutriz, Estado empresário, Welfare State, Estado manager, Estado de prestações, estado de
organizações, Estado neocorporativo, Estado neocapitalista, Estado promocional, Estado responsável,
Estado protetor, Estado pós-liberal, Estado telocrático são nomenclaturas diversas que intitulam esse
modelo de Estado, na tentativa de traduzir, mediante um único adjetivo ou substantivo, sua
característica principal. (...) Se o Estado do século XIX era estruturalmente simples e era possível
delinear modelos ao menos coerentes, o Estado atual apresenta-se estruturalmente complexo, o que
explicaria que não tenha sido sistematizado em modelos ou que inexista teoria de organização e de
funcionamento do novo Estado.(...) A nova concepção dá ao Estado uma tarefa ampliada, bem mais
difícil de realizar a contento, que a manutenção da ordem pública reclamada do Estado liberal. Exige do
Estado a tarefa de propiciar a todos o bem-estar, a felicidade na terra. Assim, do ponto de vista
axiológico, os valores da personalidade individual, como liberdade, segurança e igualdade jurídicas,
completam-se com a garantia de condições essenciais da vida e com a correção de desigualdades
econômico-sociais”. 55

Em que pesem as recentes mudanças pelas quais passou a Administração Pública em nosso
país, os institutos tradicionais do Direito Administrativo brasileiro ainda são estudados sob
reflexo do modelo de administração burocrática, que, conforme aponta Alexandre Mazza, é
marcado pelas seguintes características: “a) toda autoridade baseada na legalidade; b)
relações hierarquizadas de subordinação entre órgãos e agentes; c) competência técnica
como critério de seleção pessoal; d) remuneração baseada na função desempenhada, e não
pelas realizações alcançadas; e) controle de fins; f) ênfase em processos e ritos”.56

4.3) FASE DA DEMOCRACIA (Estado eficiente e “administração gerencial”)

Na chamada fase da democracia reconheceu-se a falência do modelo estatal maçante,


colocando-se em primeiro lugar a eficiência da gestão administrativa na satisfação dos
interesses sociais, o que configurou a chamada “administração gerencial”.

“Desde a década de 60 assiste-se à pregação doutrinária pela democracia administrativa, que alguns
resultados já produziu. (...) Embora a passos lentos, muitas normas e medidas vem sendo implantadas
em vários ordenamentos do mundo ocidental para que a democracia administrativa se efetive. À
preocupação com a democracia da investidura soma-se, na época atual, a preocupação com a
democracia de funcionamento ou de operação, expressa também na doutrina publicista recente e nas
constituições promulgadas nas décadas de 70 e 80, com reflexos nas formulações clássicas da
Administração pública e do direito administrativo”.57

55
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. São Paulo: RT.
56
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
57
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. São Paulo: RT.

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“A fase da democracia, ascendendo como prevalecente o interesse da sociedade, caracterizando a etapa


da administração gerencial. No Brasil, essa segunda transição juspolítica, da administração burocrática
para a gerencial, está tendo seu início antes que se houvesse completado a primeira, pois as atividades e
comportamentos do Estado-administrador continuam aferrados a conceitos e princípios do
patrimonialismo, do paternalismo e do assistencialismo personalizantes e ineficientes, herdados ainda
da Colônia e pouco tocados no Império. Ainda assim, essa segunda transição começou a ser realizada
através de um processo convencionalmente denominado de reforma administrativa, desenvolvido em
duas etapas: uma etapa constitucional, necessária para a afirmação e reformulação dos novos conceitos
e princípios aplicáveis, e uma etapa legislativa ordinária, que deverá complementá-la e dar-lhe
exequibilidade”.58

“Estava feita a distinção entre a democracia clássica, voltada à escolha dos governantes, e a democracia
emergente deste final do Século XX, voltada à escolha de como se quer ser governado”.59

Esse processo deu origem a reformas administrativas em diversos países, sobretudo a partir
da década de oitenta do século passado, quando "verificou-se um esgotamento do modelo
keynesiano e intervencionista de Estado, propiciado pelo déficit público decorrente de anos de gastos
públicos feitos sem muita responsabilidade fiscal, pelo fim da Guerra Fria e pela globalização. O Estado
saiu de largos setores da vida social e econômica onde havia se inserido anteriormente. Não haveria,
contudo, como voltar ao Estado liberal dos oitocentos. Teríamos então o que muitos denominam
"Estado Regulador", que não mais intervém com tanta intensidade na economia, e que, na medida do
possível, permite aos atores privados tomar as suas próprias decisões empresariais e individuais, muitas
vezes até celebrando acordo com eles, retendo, contudo, sempre que forem necessários, amplos poderes
regulatórios sobre as atividades privadas. (...) A nosso ver, esses novos fenômenos representam
evoluções do Direito Administrativo decorrentes da evolução do Estado e da sociedade. Verifica-se,
uma vez mais, que, da mesma forma que o Direito Administrativo nasceu de uma importante evolução
social do Estado (Estado absolutista para o Estado liberal), ele continua a se transformar em razão das
alterações sociopolíticas ocorridas no Estado. Nada mais natural, já que a Administração é o
instrumento da atuação concreta do Estado na sociedade. Se o Estado e a sociedade mudam, a mudança
do Direito Administrativo é uma consequência lógica e natural. Impedi-la é uma missão tão impossível
quanto querer parar o curso da História". 60

Em síntese, o “modelo gerencial” na administração pública surgiu como forma de flexibilizar


a atuação burocrática do Estado, introduzindo-se mecanismos de avaliação de desempenho
e resultados e de qualidade e eficiência dos serviços públicos, com participação popular e
exercício da cidadania.

Buscou, assim, a “democratização” do aparato estatal e a maior atuação da sociedade, com a


redução do caráter político das decisões administrativas (“despolitização”), para se adotar um
modelo de administração pública consensual (“consensualidade”) em que se estimula uma
maior participação dos administrados cooperando e colaborando na definição dos rumos da
atuação administrativa eficiente.

Reportamos aqui às conclusões de Diogo de Figueiredo Moreira Neto sobre o tema:

58
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar.
59
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar.
60
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense.

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“Na relativamente breve mais fascinante trajetória bicentenária do Direito Administrativo podemos
distinguir uma nítida evolução conceptual em que a Disciplina surge, em seu período de formação, no
Estado Páleo-Liberal, ainda pouco desvencilhada das instituições da monarquia absoluta; submete-se,
progressivamente, a requisitos de legalidade, com o aperfeiçoamento das exigências juspolíticas
caracterizadoras do Estado de Direito; e atende, finalmente, às demandas de legitimidade, possibilitando
o advento do Estado Democrático contemporâneo. Assim, o Direito Administrativo nasceu como um
direito do Estado enquanto administrador, passou a ser um direito do Estado e dos administrados, e
tornou-se hoje, com seu núcleo constitucional e como seu prolongamento, um direito comum dos
administrados face ao Estado administrador”.61

“Quanto ao princípio da consensualidade, sua aplicação leva à substituição, sempre que possível, da
imperatividade pelo consenso nas relações Estado-sociedade e à criação de atrativos para que os entes
da sociedade civil atuem em diversas formas de parceria com o Estado”.62

Alexandre Mazza aponta o seguinte quadro comparativo entre a administração burocrática e


a administração gerencial:

ADMINISTRAÇÃO ADMINISTRAÇÃO
BUROCRÁTICA GERENCIAL
Período-base Antes de 1988 Após 1988
Norma padrão DL n. 200/67 Emenda n. 19/98
Paradigma A lei O resultado
Valores-chave Hierarquia, forma e processo Colaboração, eficiência e parceria
Controle Sobre meios Sobre resultados
Licitação Contrato de gestão,
Institutos relacionados Processo administrativo Agências executivas
Concurso público e estabilidade Princípio da eficiência 63

Após considerar que o modelo gerencial consolidou-se no Brasil com o advento da reforma
administrativa promovida pela Emenda Constitucional n. 19/98, Mazza chama, porém, a
atenção para o fato de que esse modelo “é acusado por muitos administrativistas de servir como
pretexto para diminuir os controles jurídicos sobre a Administração Pública. Aparentemente simpática,
a ideia de administração gerencial pressupõe administradores públicos éticos, confiáveis, bem-
intencionados... uma raridade no Brasil!”, ironiza o autor.64

Seja como for, entre cada uma das fases acima assinaladas, pode-se dizer que o Direito
Administrativo veio se submetendo ciclicamente a crises entre velhos e novos paradigmas,
passando por transformações que o levaram a se adaptar a cada nova realidade, consoante
saliente Odete Medauar:

“O termo crise, de uso frequente na atualidade para o direito em geral, para o Estado, para determinadas
figuras jurídicas, referido ao direito administrativo expressa a situação de passagem para um novo
momento de sua elaboração. Adquirido o status de ciência autônoma, edificada sua estrutura sistemática
fundamental, seu nível de maturidade permite que evolua, sem riscos de diluição das suas características
científicas. Parece habitual a atitude de qualificar como crise a situação de renovação de antigas regras e

61
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense.
62
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense.
63
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
64
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. São Paulo: Saraiva.

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equilíbrios. Também frequente se torna a afirmação de que as crises constituem oportunidades de


mudança dos sistemas humanos; é na medida em que há crises dos modos de raciocínio que surgem
possibilidades de mudança. Este é o significado da crise atribuída ao direito administrativo: a passagem
para um momento de modificação de antigas concepções. Esse momento revela mudanças que vêm se
realizando no direito administrativo no sentido de sua atualização e revitalização, para que entre em
sintonia com o cenário atual da sociedade e do Estado. Algumas tendências podem ser extraídas: a)
desvencilhamento de resquícios absolutistas, sobretudo no aspecto da vontade da autoridade impondo-
se imponente; b) absorção de valores e princípios do ordenamento consagrados na Constituição; c)
assimilação da nova realidade do relacionamento Estado-sociedade; d) abertura para o cenário sócio-
político-econômico em que se situa; e) abertura para conexões científicas interdisciplinares; f)
disposição de acrescentar novos itens à temática clássica”. 65

O que se observa é que, apesar de ser um ramo relativamente novo da ciência jurídica, o
Direito Administrativo mal teve tempo de consolidar suas bases teóricas lançadas no final do
século XVIII, haja vista a rapidez das mudanças sociais implementadas ao longo do século
XIX e, sobretudo, durante o século XX.

Ressaltando essa juventude e mutabilidade do Direito Administrativo, Alexandre Santos de


Aragão assinala que, se "comparado ao milenar Direito Civil, é, realmente, um Direito bastante
recente. Isso faz com que muitas das soluções encontradas ainda não se tenham consolidado por
completo, em especial se considerarmos as mudanças pelas quais o Estado passou desde o advento do
Direito Administrativo, havendo largos setores a serem desbravados. O Direito Administrativo ainda
está em constante evolução. Essa evolução permanente é reforçada pelo fato de o objeto do Direito
Administrativo ser uma atividade do Estado, refletindo sempre as mudanças políticas e ideológicas
deste. Basta lembrarmos quantas convulsões políticas sobre o Estado aconteceram durante todo o século
XX".66

Tais considerações servem para que estudioso do Direito Administrativo tenha sempre em
mente o contexto político-social vigente em cada época, conferindo uma interpretação
sistemática às regras e princípios que compõe o chamado “Regime Jurídico Administrativo”.

5) FONTES DO DIREITO ADMINISTRATIVO

Identificado o objeto do Direito Administrativo, enquanto o conjunto de normas que regem a


função administrativa estatal, convém agora identificar as fontes das quais são extraídas
estas normas.

A palavra fonte indica um local de onde brota algo, tal como uma fonte d'água, uma fonte de
luz, uma fonte de calor etc. Com essa mesma denotação, diz-se que das fontes do direito são
extraídas as normas jurídicas.

Reinaldo Couto assinala que "o vocábulo fonte vem do latim e significa o lugar onde brota, na
superfície da terra, água, sendo que deste sentido passa a abranger o ponto de partida de algo. As fontes
do Direito são os comandos (imperativos hipotéticos) que determinam e vinculam a atuação do
aplicador do Direito. Na linguagem popular, fonte representa a origem, sendo tudo aquilo de onde

65
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. São Paulo: RT.
66
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo, Rio de Janeiro: Forense.

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provém algo. Sob ótica jurídica, é a origem do Direito, incluídos fatores sociais, econômicos, históricos,
entre outros"67.

Cretella Júnior conceitua fonte do direito como “qualquer ato ou fato que concorra para formar a
norma jurídica”, de modo que são fontes do Direito Administrativo “todos os elementos, formais ou não
formais, dos quais brotam as normas de Direito Administrativo”.68

Vale dizer, tudo aquilo do que se extraia, direta ou indiretamente, parâmetros normativos para
as condutas da Administração e dos administrados, condicionando-os a agir nesse ou
naquele sentido, é uma fonte do Direito Administrativo.

Apesar de não haver uniformidade doutrinária na classificação das fontes do Direito,


costuma-se apontar que as fontes jurídicas podem ser primárias (também chamadas de
diretas ou imediatas) – que são aquelas com caráter prescritivo, isto é, delas são extraídas
diretamente as normas do ordenamento – ou secundárias (também chamadas de indiretas
ou mediatas) – que são aquelas com caráter meramente descritivo, mas que auxiliam na
identificação das fontes primárias.

Como fontes primárias do Direito Administrativo pode-se citar a legislação, os costumes e


as praxes (ou práticas administrativas), os tratados internacionais, os princípios gerais
do direito e, mais recentemente, as súmulas vinculantes e decisões de repercussão geral
do STF (mecanismos instituídos pela EC 45/2004). Como fontes secundárias podem ser
citadas a doutrina e a jurisprudência em geral (decisões judiciais não vinculantes).

5.1) LEGISLAÇÃO

A principal fonte primária do Direito Administrativo é a legislação, aqui entendida como lei em
sentido amplo (aí se incluindo a Constituição, as leis infraconstitucionais e os diversos atos
regulamentares expedidos pela Administração).

“Na expressão lei, discorre Brandão Cavalcanti, devemos compreender toda a escala das normas, na sua
hierarquia, desde a Constituição até as mais elementares, que completam, em ambientes e raios de ação
cada vez mais restritos, as normas jurídicas de mais alta hierarquia. Assim, as leis, os regulamentos, os
regimentos, as portarias, as circulares, as instruções”.69

“A lei é a mais importante fonte para o Direito Administrativo, gerador de direitos e obrigações,
impondo-se tanto à conduta dos particulares, quanto à ação estatal. Na qualidade de fonte, a lei tem um
sentido amplo, abrangendo diversas normas produzidas pelo Estado, o que inclui, por exemplo, além da
Carta Magna, as leis complementares, ordinárias, delegadas e medidas provisórias. (...) Os costumes e
as praxes são fontes não escritas e não organizadas. Os costumes são encontrados na sociedade e as
praxes no interior da Administração. (...) Porém, a utilização dos costumes encontra restrições, não
podendo ser utilizados contra a lei. (...) A doutrina é fonte escrita e mediata (secundária) para o Direito
Administrativo, não gerando direitos para os particulares, mas contribuindo para a formação do nosso
ramo jurídico”.70

67
COUTO, Reinaldo. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
68
CRETELLA JUNIOR, José. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense.
69
CRETELLA JUNIOR, José. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense.
70
PRADO, Leandro C.; TEIXEIRA, Patrícia Carla de Farias. 1001 questões comentadas de Direito Administrativo. São Paulo: Método.

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Não obstante esse sentido amplo de lei a que nos referimos (legislação), a Administração
somente poderá tomar medidas que estejam expressa ou implicitamente previstas em ato
legislativo (lei em sentido formal, decorrente do processo legislativo previsto no art.59 da CF).
Mesmo quando sejam editados regulamentos executivos (decretos, resoluções, portarias,
instruções normativas etc.), tais atos devem ter amparo na lei em sentido estrito. O tema será
abordado quando tratarmos do chamado poder normativo da Administração.

Saliente-se que, ao contrário do que ocorre noutras ciências jurídicas, o nosso Direito
Administrativo não é codificado. Isso porque, por conta do regime federativo adotado no
Brasil, cada ente político (União, Estados, DF e Municípios) tem competência para editar
normas referentes a sua respectiva Administração Pública, exceção apenas para alguns
assuntos cuja competência seja privativa da União.71 Destarte, as normas de Direito
Administrativo estão contidas em inúmeras leis esparsas editadas em âmbito federal,
estadual, distrital e municipal.

Segundo assinala Jean Rivero, mesmo os países cujo direito privado é tradicionalmente
codificado (civil law), não foram editados códigos de Direito Administrativo:

“Ora, país algum, salvo erro, possui um verdadeiro Código Administrativo, devendo ficar claro que não
se poderia aplicar o nome de Código ao agrupamento de leis e de regulamentos próprios a uma matéria
administrativa que, na França e em vários países estrangeiros, se rotulam com esse nome. Isto acarreta
duas consequências: do ponto de vista material, é preciso procurar as regras administrativas, onde elas
estiverem – e elas estão, em todos os países, esparsas em múltiplos documentos”.72

Fernanda Marinela assim comenta a polêmica questão da codificação do Direito


Administrativo:

“O Direito Administrativo não conta com uma codificação, o que acaba causando uma discussão
doutrinária sobre os seus benefícios e coloca os doutrinadores em três posições: os que negam as suas
vantagens, os que defendem a necessidade de uma codificação parcial e os que propugnam pela
codificação total, o que representa a maioria da doutrina. A prática atual deixou bem claro que o Código
não traz a estagnação do Direito, como defendia Savigny e seus seguidores. Assim sendo, espera-se que
os legisladores brasileiros se conscientizem de sua necessidade. A atual formação dessa disciplina, que
é feita por leis esparsas, muitas vezes dificulta a obtenção do conhecimento pelos interessados, não
permitindo uma visão panorâmica do Direito a que pertencem. Somente o Código remove esses
inconvenientes da legislação fragmentária, pela aproximação e coordenação dos textos que se interligam
para a formação do sistema jurídico, dando maior segurança ao aplicador e resolvendo grandes
divergências. Pode-se apontar, como exemplo, o Código Administrativo de Portugal”. 73

5.2) TRATADOS INTERNACIONAIS

Sobre os tratados internacionais, escreve o professor Cretella Júnior:

“Denominamos tratado internacional a todo acordo de vontade entre duas pessoas jurídicas de direito
público externo a respeito de direitos de soberania. O objeto do tratado, como se vê, é de direito

71
Como ocorre, por exemplo, nas legislações sobre desapropriação e sobre normas gerais de licitação e contratos administrativos , conforme
art.22, II e XXVII.
72
RIVERO, Jean. Curso de Direito administrativo comparado. São Paulo: RT.
73
MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. Niterói: Impetus.

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público, nada obstando, porém, que as entidades públicas, em jogo, pactuem normas de direito privado,
o que, nesse caso, caracterizaria mero contrato regido por princípios estranhos ao direito público.
Autorizados tratadistas italianos negam ao tratado internacional a categoria de fonte do direito
administrativo, porque a recepção desse acordo de vontades depende de dispositivos constitucionais.
Nesse caso, é fundamental examinar a Constituição do país, relativamente ao qual se faz a indagação,
observando-se que algumas são expressas a respeito, admitindo-o como fonte, ao passo que outras
exigem, para a recepção, o chamado método de conversão, que tem por efeito imediato transformar o
tratado em lei. No primeiro caso, o tratado é fonte, no segundo, não tem força própria, mas eficácia da
lei conversora. A qualidade de fonte jurídica do tratado está, pois, na dependência de seu conteúdo, em
primeiro lugar; em segundo lugar, que seja recebido na ordem jurídica interna; em terceiro lugar, que
encerre preceitos para cuja aplicação sejam competentes os órgãos administrativos”.74

Alexandre Mazza assinala ser “cada vez mais notável a influência dos tratados e convenções
internacionais no Direito Administrativo interno. As regras jurídicas originárias dos pactos
internacionais de que o Brasil é signatário ingressam no ordenamento nacional dotadas de força
cogente, vinculando órgãos e agentes da Administração Pública, especialmente em matéria de direitos
humanos, caso em que os tratados e convenções internacionais adquirem internamente o status de
norma constitucional, desde que aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por
três quintos dos votos dos respectivos membros (art.5º, §3º, da CF)”. 75

5.3) COSTUMES

Acerca dos costumes, a doutrina diverge sobre a sua natureza de fonte do Direito
Administrativo. Os que admitem, ressalvam que somente haveria espaço aqui para os
costumes secundum legem (servem apenas para interpretar a lei) e eventualmente os praeter
legem (com função supletiva, servem para suprir as lacunas da lei).

Quanto aos costumes contra legem (derrogatórios da lei), a doutrina clássica jamais os
admitiu no Direito Administrativo, haja vista o prestígio que tradicionalmente deteve o
princípio da legalidade a nortear toda a atividade da Administração. Em período mais recente,
porém, por força da ideia que veio se desenvolvendo na doutrina acerca da incidência direta
das normas constitucionais sobre a atividade administrativa, alguns juristas passaram a
admitir até mesmo o costume contra legem em hipóteses excepcionais.

A admissibilidade de reconhecer-se a força normativa de certas condutas reiteradamente


praticadas pela Administração, mesmo à margem da lei, encontra premissas no pensamento
de autores contemporâneos. Nessa linha, v.g., Gustavo Binenbojm, explica que ser possível
haver um ato administrativo violador de preceito legal, mas que ainda assim seja válido por
força da aplicação de princípios constitucionais no caso concreto. É o que ele chama de
juridicidade contra legem76, em que, a despeito do vício de legalidade, reconhece-se a
juridicidade da atuação administrativa por motivos ligados à segurança jurídica e à boa-fé
objetiva na conduta costumeiramente adotada pela Administração, o que, numa equação de
ponderação, deve prevalecer sobre a legalidade estrita. Mas o autor reconhece que o tema é
complexo e controvertido, sobretudo quando se trata de descumprimento à lei havida como
inconstitucional pela Administração, sem que tenha ocorrido prévio pronunciamento judicial.

74
CRETELLA JUNIOR, José. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense.
75
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
76
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar.

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Alguns autores distinguem os costumes das praxes administrativas, não aceitando estas
como fontes do Direito Administrativo, porém, isso não é uniformemente descrito pela
doutrina.

Alguns autores consideram a praxe administrativa como uma mera rotina da Administração,
sem ter, contudo, o amplo alcance de um verdadeiro costume77.

Para Cretella Júnior, praxes ou práticas administrativas são “recurso que lançam mão com
frequência as autoridades administrativas quando, na falta de disposições legais, precisam dar solução a
determinado caso submetido a sua apreciação. Ao contrário do costume, que brota espontaneamente do
povo, as práticas constituem uma série de usos seguidos pelos funcionários de determinadas
repartições, diante dos casos concretos que exigem solução imediata, não prevista em lei”. 78

Mas há doutrinadores que consideram a praxe administrativa como uma espécie de costume.

É como pensa Alexandre Santos de Aragão, ao escrever que "o costume pode ser uma prática
dos administrados ou da própria Administração Pública. No segundo caso, passa a ser reconhecido
como praxe administrativa - uma prática reiterada da Administração -, adquirindo especial importância,
já que poderá gerar, no indivíduo, a expectativa de sua continuidade ou da não oposição do Poder
Público em relação à postura que os administrados vinham assumindo. Nessa hipótese, o reforço de sua
posição como fonte do direito é feito pelos princípios da boa-fé e da igualdade, importantes argumentos
em favor da manutenção da conduta pública ou ao menos do não sancionamento do particular que se
comportar de acordo com a praxe administrativa. A nosso ver, a maior importância dos costumes ou
praxes administrativas é hermenêutica, na interpretação das leis e regulamentos, presumindo-se como
vinculante, entre as diversas interpretações plausíveis cabíveis, aquela contemplada pela prática
administrativa reiterada e com juízo coletivo de obrigatoriedade". 79

5.4) PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO

Fernanda Marinela salienta que “alguns autores incluem, ainda, como fonte desse ramo, os
princípios gerais do direito, que são critérios maiores, às vezes até não escritos, percebidos pela lógica
ou por indução. Vale dizer que são normas que representam a base do ordenamento jurídica, estando
intrínsecas a essa ordem legal, consideradas como orientações necessárias à exigência da justiça. (...)
São teses jurídicas genéricas que informam o ordenamento do Estado, conquanto não se achem
expressos em texto legal específico. Podem-se citar alguns exemplos: ninguém deve ser punido sem ser
ouvido, não é permitido o enriquecimento ilícito, ninguém se beneficiará da própria malícia, além de
muitos outros”.80

Segundo Edmir Netto de Araújo, “como proposições básicas que se aplicam à integralidade do
ordenamento jurídico, englobando todos os seus ramos e institutos, princípios como os da legalidade, do
devido processo legal, da isonomia, do pacta sunt servanda, da publicidade, e outros, são invocados
como meios, ao lado da analogia e da equidade, de integração das normas jurídicas, pois o legislador
não pode prever todas as hipóteses da vida real, e o juiz não pode se eximir de decidir a pretexto de

77
Segundo Diógenes Gasparini, “a praxe administrativa (simples rotina administrativa) não se confunde com o costume, não sendo, na
opinião da maioria dos autores, fonte do Direito Administrativo”. GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
78
CRETELLA JUNIOR, José. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense.
79
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense.
80
MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva.

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lacuna ou obscuridade da lei. Existe, no Direito Administrativo, em consonância com os princípios


gerais do Direito, toda uma principiologia setorial, que será focalizada mais adiante”.81

De fato, convém não confundir os princípios gerais do direito, aqui tidos como fontes supletivas do
direito ao lado da analogia e da equidade, com os diversos princípios jurídicos setoriais extraídos da
legislação brasileira e que, no caso específico do Direito Administrativo, integram o chamado regime
jurídico administrativo, como será abordado em tópico posterior. Tais princípios, assim como as regras,
estão explícita ou implicitamente previstos na legislação em vigor.

5.5) DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA

A doutrina se traduz como a atividade dos cientistas do Direito (doutrinadores) que emitem a
sua balizada opinião sobre os fenômenos jurídicos, intentando descrever o ordenamento
jurídico naquilo que as suas normas dispõem. Justamente por lhe faltar força normativa, ou
seja, deter apenas caráter descritivo do sistema jurídico, a doutrina não é fonte primária, mas
serve ao menos como uma fonte secundária que auxilia na aplicação do Direito
Administrativo.

O mesmo se diga da jurisprudência, consubstanciada nas reiteradas decisões dos


Tribunais, algumas delas já consagradas em súmulas jurisprudenciais. Tais decisões,
proferidas à vista de casos concretos nos quais encontra apenas aplicação inter partes, não
se revelam como normas gerais e abstratas que obriguem a Administração em outras
situações que não aquelas tratadas nos autos do respectivo processo judicial. Vale dizer, tais
decisões apenas detêm força normativa em relação às partes por elas atingidas. No mais,
servem apenas como mecanismos auxiliares da interpretação do ordenamento. Até mesmo
as Súmulas editadas pelos Tribunais servem apenas como orientação para a análise de
casos futuros, mas em regra não detêm força normativa ampla. Ou seja, tais súmulas são
meramente descritivas (interpretativas) do ordenamento, mas não integram o próprio
ordenamento.

Exceção a isto se encontra naquelas decisões proferidas pelo STF em controle concentrado
(abstrato) de constitucionalidade, com efeitos erga omnes (CF/88, art.102, §2º), merecendo
destaque também a figura da Súmula Vinculante instituída pela Emenda Constitucional n.
45/2004. As súmulas vinculantes, previstas no art. 103-A da Constituição, detêm força
normativa, integrando diretamente o ordenamento. Por isso são fontes primárias.

“As súmulas vinculantes não são enunciados interpretativos com validade apenas para os órgãos do
Poder Judiciário. O art.103-A, caput, da CF é claro ao mencionar a sujeição de todos os órgãos da
Administração Pública Direta ou Indireta, federal, estadual ou municipal, aos enunciados das súmulas
vinculantes. Conforme ensina Rodolfo Mancuso, a súmula vinculante do STF ‘acaba por condicionar as
relações entre a Administração e seus agentes tanto quanto entre ela e os cidadãos em geral’. Sendo
assim, se o interessado verificar que a autoridade proferiu decisão em desrespeito à súmula vinculante,
poderá, em sede de recurso, exigir que a decisão seja modificada, de sorte a se adequá-la ao enunciado
sumular do STF”.82

“Com a Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, o processo de ‘reclamação’ foi


especificado pelo Legislador para casos de violação de súmula vinculante. Nos termos do art.103-A,
81
ARAÚJO, Edmir Neto de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
82
NOHRARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago. Processo Administrativo. Lei 9784/99 comentada. São Paulo: Atlas.

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§1º, da CF, inserido pela emenda mencionada, ‘do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar
a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal,
que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e
determinará que outra seja proferida com ou sem aplicação da súmula, conforme o caso’. Mais tarde, a
possibilidade do uso da reclamação frente a atos administrativos e atos da Administração que
descumprem súmulas vinculantes do STF foi, de certo modo, limitada com a edição da Lei n. 11.417/06
– que regulamentou o art.103-A da Constituição, alterou a LPA (Lei n. 9784/99 - Lei do Processo
Administrativo), incluindo os arts. 64-A e 64-B, e disciplinou a edição, a revisão e o cancelamento de
enunciado de súmula vinculante pelo STF. O art.7º da Lei n. 11.417/06 esclareceu duas questões
importantes e que merecem destaque. A um, deixou claro que o administrado poderá utilizar os mais
diversos meios admitidos em direito para afastar a decisão administrativa que não aplicou ou aplicou
incorretamente uma súmula vinculante. A dois, limitou o uso da reclamação perante o STF. Por
determinação do art.7º, §1º, da Lei n. 11.417/06, o uso da reclamação somente será admitido após o
esgotamento das vias administrativas. Isso significa que, perante o descumprimento de súmula, deve o
administrado recorrer à instância administrativa competente até que esgote o limite de três instâncias
administrativas – regra geral prevista no art.57-A da LPA – ou o número máximo de instâncias previsto
em lei específica – duas, quatro ou mais instâncias. Caso as instâncias administrativas não tenham sido
esgotadas, poderá o interessado no processo administrativo recorrer ao Poder Judiciário. Contudo, não
poderá se valer especificamente da reclamação perante o STF”.83

6) REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO (REGRAS E PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS)

Todo estudo sistematizado pressupõe a fixação das normas que lhe confiram caráter
científico.

No campo do Direito, tais elementos sedimentados constituem os diversos regimes jurídicos


(conjuntos de normas jurídicas).

A partir do pensamento de ilustres jusfilósofos como Ronald Dworkin e Robert Alexy, grande
parte da doutrina contemporânea considera que as normas (gênero) não se revelam apenas
sob a forma de regras, mas, também, como princípios (espécies):

REGIME = CONJUNTO DE NORMAS = REGRAS + PRINCÍPIOS

6.1) SENTIDO E CLASSIFICAÇÃO DOS “PRINCÍPIOS” NAS CIÊNCIAS

Cretella Júnior diz que, no sentido vulgar, princípio tem o sentido de “aquilo que vem antes de
outro, origem, começo, momento em que se faz uma coisa pela primeira vez”, contrapondo-se à ideia
de fim. Já na linguagem técnico-científica “o vocábulo é vago, indeterminado, flutuante, não
oferecendo nenhuma indicação precisa sobre o sentido exato da proposição que se considera”, o que
não significa que a palavra deva ser banida do vocabulário das ciências. Todos os sentidos,
porém, “estão ligados pelo menos por um ponto de contato comum. Princípio é, antes de tudo, ponto
de partida. Princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais, típicas, que
condicionam todas as estruturas subsequentes. São os alicerces, os fundamentos de uma ciência”84.

Cabe à principiologia a exposição teórica e crítica dos princípios, definindo-os, antes de


tudo, classificando-os sob vários ângulos. É uma “teoria dos princípios”. Entre as inúmeras
83
NOHRARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago. Processo Administrativo. Lei 9784/99 comentada. São Paulo: Atlas.
84
CRETELLA JÚNIOR, José. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense.

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classificações, tem-se aquela que separa os princípios com base no critério de


abrangência, procurando defini-los e indagar até que ponto referem a esta ou àquela ciência.

Princípios onivalentes – São os “primeiros princípios”, premissas lógicas válidas para todas
as ciências, pois estão na base de todas as outras proposições. São proposições gerais,
universais, princípios diretores do conhecimento que se dirigem ao exercício do pensamento,
como os princípios da identidade (há similitude total entre uma noção e todas as suas
conotações constitutivas), da contradição (duas proposições contraditórias não podem ser, ao
mesmo tempo, ambas verdadeiras, ou ambas falsas), do terceiro excluído, (havendo duas
proposições contraditórias, se uma for verdadeira, a outra será necessariamente falsa e,
reciprocamente, sem que haja uma terceira solução), da razão suficiente (nada existe sem
que haja uma razão para isso).

Princípios plurivalentes – São princípios regionais, dotados de menor grau de generalidade e


comuns apenas a um grupo de ciências (apesar de não haver uma classificação segura sobre
a divisão das ciências em grupos). Cretella cita, por exemplo, que o princípio do alterum non
laedere (não prejudicar a outrem) pode ser aplicado tanto na ciência moral quanto na ciência
jurídica. O princípio da causalidade é válido para as ciências físicas; o princípio da
sociabilidade nas ciências sociais.

Princípios monovalentes – São proposições que servem de fundamento a um conjunto de


juízos relativos a um só campo do conhecimento. Haverá tantos princípios monovalentes
quantas ciências cogitadas pelo espírito humano. São proposições específicas que só valem
para determinado campo do conhecimento humano, como ocorre, na ciência jurídica, com os
chamados princípios gerais do direito.

Dentro do campo dos princípios monovalentes estão os gerais e os setoriais (específicos),


sendo estes as proposições básicas que informam os diversos setores em que se divide a
ciência. Cretella menciona a existência de princípios setoriais do direito administrativo, que
podem ser estudados em linha horizontal e em linha vertical, servindo de pilares para a
construção sistemática de um regime jurídico administrativo.

6.2) A FUNÇÃO DOS PRINCÍPIOS NA CIÊNCIA JURÍDICA

Nem sempre se reconheceu força normativa aos princípios. Classicamente os princípios


vieram sendo estudados como meros métodos de integração do direito, ou seja, havendo
lacuna, inexistência de regra para determinada situação, recorria-se aos princípios, dentre
outros parâmetros, para buscar uma solução jurídica. Havia assim uma espécie de
preeminência das regras em relação aos princípios.

Esse pensamento mudou com a evolução da principiologia jurídica, daí decorrendo a


emergência de uma teoria dos princípios, não mais como fonte meramente integrativa ou de
recomendação, senão como verdadeiras normas jurídicas.

6.2.1) A EVOLUÇÃO DA PRINCIPIOLOGIA JURÍDICA

São basicamente três os momentos pelos quais passaram os princípios na ciência jurídica: i)
fase do jusnaturalismo; ii) fase do positivismo; iii) fase do pós-positivismo.

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“Paulo Bonavides, a propósito do tema, leciona que a evolução da compreensão dos princípios, para a
ciência do direito, pode ser demarcada em três fases distintas: a) a jusnaturalista, na qual se recusa a
sua normatividade jurídica; b) a positivista, em que se reconhecem os princípios como normas, mas
como fonte normativa subsidiária; e a atual fase, c) pós-positivista, segundo a qual a norma é admitida
como um gênero cujas espécies são os princípios e as regras”.85

Luís Roberto Barroso86 ensina que o jusnaturalismo formado a partir do século XVI era
impregnado de valores sob a forma de princípios que buscavam orientar o sentido de justiça
para além das normas fixadas pelo Estado. Foram esses valores, inclusive, que inspiraram a
burguesia como combustível para as revoluções liberais, porém, paradoxalmente, uma vez
incorporados aos ordenamentos, acabaram sendo superados por uma visão positivista. Com
a promulgação dos códigos, escreve Bobbio, sobretudo o napoleônico, o jusnaturalismo
exauriu a sua função no momento mesmo em que celebrava o seu triunfo. Transpondo o
direito racional para o código, não se via nem admitia outro Direito senão este. O recurso a
princípios ou normas extrínsecos ao sistema do direito positivo foi considerado ilegítimo.

Todavia, prossegue Barroso, o triunfo do positivismo, do fetiche da lei, do legalismo acrítico,


serviu de disfarces para autoritarismos de matizes variados. Para Bobbio, o Positivismo, que
se apresentou como ciência pretensamente livre de juízos de valor, neutra, rigorosamente
científica, acabou tendo uma função política e ideológica, o que levantou a resistência de
jusfilosófos desde o início do século XX (Jurisprudência dos Interesses, de Ihering;
Movimento pelo Direito Livre, Ehrlich), levando a sua decadência emblematicamente
associada à derrota do Fascismo e do Nazismo.

No contexto do positivismo, os princípios passaram a ser reconhecidos pela ciência jurídica,


porém relegados a segundo plano, apenas como elementos úteis à integração do Direito nas
hipóteses de lacunas no ordenamento. Ou seja, na ausência de uma regra jurídica a resolver
uma questão no caso concreto, deveria o jurista recorrer aos princípios do Direito para
encontrar uma solução. Fora daí, porém, o princípio não deveria ser invocado.

Por fim, a superação histórica do Jusnaturalismo e o fracasso político do Positivismo legalista


abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito,
sua função social e sua interpretação, ao que se designou Pós-Positivismo e uma Nova
Hermenêutica Constitucional. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou
implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento da ordem jurídica de sua
normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre Direito e Ética.

Os princípios tiveram de conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que


teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade
direta e imediata.

6.2.2) A “NORMATIVIDADE PRINCIPIALISTA” E O “BLOCO DA LEGALIDADE”

O jurista português Paulo Otero87 aponta uma transfiguração da legalidade administrativa, na


qual um sistema tendencialmente fechado (“Direito de regras”) é substituído por um sistema

85
PIRES, Luís Manoel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa. Rio de Janeiro: Elsevier.
86
BARROSO, Luís Roberto. Apontamentos sobre o princípio da legalidade (delegações legislativas, poder regulamentar e repartição
constitucional das competências legislativas). In: “Temas de Direito Constitucional”, Rio de Janeiro: Renovar.
87
OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública – o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina.

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predominantemente aberto (“Direito de princípios”), de modo que a legalidade tornou-se


principialista.

Isso decorre da natureza compromissória da grande maioria dos textos constitucionais


surgidos na metade do século XX, procurando um equilíbrio entre orientações políticas
opostas (aspecto político), de modo que se buscou uma nova técnica jurídica de elaboração
de normas. Uma tal mudança de conteúdo das normas constitucionais, refletindo uma postura
constituinte pluralista e própria de uma sociedade aberta, permite recortar um sistema
constitucional centrado na distinção nuclear entre regras e princípios.

O “Direito de princípios” que hoje invade a legalidade administrativa é o resultado de um


sistema constitucional tendencialmente principialista (aberto), refletindo um pluralismo político
das sociedades modernas (síntese do compromisso das forças políticas com programas
divergentes), fazendo da Administração uma estrutura intermédia na realização de
ponderações entre diferentes e contraditórios princípios constitucionais. Reconhece que
alguns juristas alertam, porém, para o risco de se transferir para os tribunais a função de
limitação do poder e de proteção dos particulares que a lei, enquanto “Direito de regras”,
antes desempenhava. Eliminou-se, assim, a última réstia da separação dos poderes que
opõe o poder político e o poder judicial, conduzindo a um “governo de juízes”.

No campo do Direito Administrativo isso significou um avanço em termos de controle


jurisdicional dos atos administrativos discricionários.

Gustavo Binenbojm88 salienta o surgimento de doutrinas com base no que se convencionou


chamar de “discricionariedade justiciável”, decorrente da vinculação da Administração não
apenas às regras escritas dos textos legislativos, mas ao sistema jurídico como um todo, aí
incluídos princípios jurídicos.

Valendo-se das clássicas lições do jurista Adolf Merkl, o autor defende que a emergência da
noção de juridicidade administrativa, com a vinculação direta da Administração à
Constituição, não mais permite falar, tecnicamente, numa autêntica dicotomia entre atos
vinculados e atos discricionários, mas, isto sim, em diferentes graus de vinculação dos atos
administrativos à juridicidade, ao que corresponderá, via de regra, a um maior ou menor grau
de controle.

O mérito – núcleo do ato -, antes intocável, passa a sofrer a incidência direta dos princípios
constitucionais, e ao invés de uma dicotomia em moldes tradicionais (ato vinculado v. ato
discricionário), já superada, passa-se a uma classificação em graus de vinculação à
juridicidade, em uma escala decrescente de densidade normativa vinculativa: 1) atos
vinculados por regra; 2) atos vinculados por conceitos jurídicos indeterminados; c) atos
vinculados diretamente por princípios. Houve assim um estreitamento do âmbito do chamado
mérito administrativo.

Assim concebido o sentido da juridicidade administrativa, infere-se que a Administração


Pública está obrigada a cumprir não apenas as regras extraídas diretamente dos textos das
leis, mas também os princípios consagrados expressa ou implicitamente na Constituição,
além de outros instrumentos normativos.

88
BINEMBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar.

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É o que a doutrina francesa há muito costuma chamar de “Bloco da Legalidade”, na


expressão empregada por Maurice Hauriou, como o conjunto das fontes normativas que
integram o regime-jurídico administrativo, ou seja, o ordenamento jurídico encarado como
um todo sistêmico.

“Significa dizer que as regras vinculantes da atividade administrativa emanam de outros veículos
normativos a saber: a) Constituição Federal, incluindo emendas constitucionais; b) Constituições
Estaduais e Leis Orgânicas; c) medidas provisórias; d) tratados e convenções internacionais; e)
costumes; f) atos administrativos normativos, como decretos e regimentos internos; g) decretos
legislativos e resoluções (art.59 da CF); h) princípios gerais do direito”.89

Nesse sentido amplo, cumprir a lei não significa obediência apenas a determinado dispositivo
legal, mas, sim, a todo o sistema jurídico positivo composto por regras e princípios extraídos
dos mais diversos veículos normativos que vinculam a Administração.

A implementação legislativa dos mencionados princípios constitucionais, envolvendo uma


inevitável técnica enunciativa das normas legais em termos vagos, imprecisos e ambíguos,
remete para o aplicador do Direito no caso concreto a ponderação, a escolha da decisão
sobre harmonia possível entre os diversos princípios acolhidos pela Constituição.

6.2.3) DISTINÇÃO CLÁSSICA ENTRE NORMAS-REGRA E NORMAS-PRINCÍPIO

É clássica a distinção entre regras e princípios, como espécies do gênero norma,


apontada por J.J. Gomes Canotilho e referida por diversos autores90:

“Na conceituação de princípios, fez já escola a distinção capitaneada por J. J. Gomes Canotilho,
segundo a qual – embora tanto o princípio como a regra sejam espécies de norma -, o princípio
diferencia-se da regra porque, em livre resumo, o princípio tem maior grau de abstração (e, portanto,
menor grau de delimitação conceitual, a que Canotilho chama de “indeterminação”), porque o princípio
traz sempre um caráter de fundamentalidade dentro do sistema e um maior compromisso com a ideia de
Justiça e, enfim, porque o princípio é o próprio fundamento da regra, sendo esta um desdobramento
casuístico do princípio. Assim, se no conceito de norma estão abrangidos tanto os princípios quanto as
regras jurídicas, cumpre ter em mente a superioridade do princípio frente à regra, seja porque é o
princípio que serve de fundamento à regra” 91.

Num contexto de complexidade do fenômeno jurídico, os princípios assumem relevante papel


na aplicação do Direito, ao lado das regras. Dentre diversas utilidades, os princípios servem
para assegurar equidade na aplicação das regras, em atenção às nuances e particularidades
de cada situação, apontando soluções que venham a garantir a justiça do caso concreto.

“Em excelente estudo sobre os princípios jurídicos e o positivismo jurídico, Genaro Carrió esclarece
que há nada menos que sete focos de significação do que seja um princípio. Cuida do tema, levando-o,
metaforicamente, ao âmbito esportivo do futebol, e esclarece que a regra, em tal esporte, é: todo aquele
que agride, por qualquer forma, o adversário, tem, contra si, assinalada uma falta. Ocorre que os árbitros
89
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
90
Mas, apesar disso, criticada por alguns, a exemplo de Humberto Ávila, que, no seu livro Teoria dos Princípios, formula críticas aos
tradicionais critérios distintivos das regras e princípios, mencionando ainda uma nova categoria, por ele chamada de postulados normativos
aplicativos.
91
SLERCA, Eduardo. Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris.

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passaram a perceber que, caso marcassem sempre a falta, independentemente de qualquer circunstância,
estariam cometendo injustiça, pois o jogador agredido poderia superar-se e continuar com a bola.
Defluiu-se daí o que se rotula de lei da vantagem, a qual está acima das meras regras. Trata-se, na
verdade, de um princípio”.92

6.2.4) CRÍTICAS AOS CRITÉRIOS DE DISTINÇÃO

Os critérios de distinção apontados pela doutrina nunca foram uniformes. Humberto Ávila cita
vários autores que propuseram definições para as espécies normativas. Josef Esser propôs
uma distinção qualitativa. Para Karl Larenz os princípios indicariam somente a direção em
que está situada a regra a ser encontrada. Para Canaris, a distinção estaria no conteúdo
axiológico dos princípios e o seu modo de interação com outras normas. Dworkin atacou o
positivismo dizendo que as regras são aplicadas ao modo tudo ou nada, enquanto os
princípios possuem uma dimensão de peso demonstrável na hipótese de colisão. Alexy
princípios são deveres de otimização, negando a existência de peso entre os princípios (ao
contrário de Dworkin), cabendo haver uma ponderação em cada caso concreto em busca de
uma regra de prevalência93.

Para Ávila, portanto, há distinções fracas entre os pensamentos de Esser, Larenz e Canaris,
e distinções fortes entre Dworkin e Alexy, o que demanda sejam investigados modos de
aperfeiçoamento desses critérios.

Diz que a doutrina constitucional vive hoje uma espécie de Estado principiológico, mas que “a
euforia do novo terminou por acarretar alguns exageros e problemas teóricos”, de modo a haver “falta
da desejável clareza conceitual na manipulação das espécies normativas”, sendo que “várias
categorias, a rigor diferentes, são utilizadas como sinônimas”. Acrescenta que “o importante não é
saber qual a denominação mais correta desse ou daquele princípio. O decisivo, mesmo, é saber qual é o
modo mais seguro de garantir sua aplicação e sua efetividade”. 94

Ávila critica o critério do “caráter hipotético-condicional”95, porque entende que o conteúdo


normativo de qualquer norma – quer regra, quer princípio – depende de possibilidades
normativas e fáticas a serem verificadas no processo mesmo de aplicação. A existência de
uma hipótese de incidência é questão de formulação linguística e, por isso, não pode ser
elemento distintivo de uma espécie normativa. Sendo assim, a dispositivos formulados
hipoteticamente que ora assumem a feição de regras, ora de princípios. Qualquer norma
pode ser reformulada de modo a possuir uma hipótese de incidência seguida de uma
consequência, e mesmo havendo uma hipótese seguida de uma consequência, há referência
a fins. Deve-se ater não à ausência, mas ao tipo de prescrição de comportamentos e de
consequências.

Ávila critica o critério do “modo final de aplicação”96 (tudo ou nada nas regras; mais ou menos
nos princípios), porque muitas vezes o caráter absoluto da regra é completamente modificado
depois da consideração de todas as circunstâncias do caso, num processo complexo de
ponderações de razões. Cita casos em que a jurisprudência já deixou de aplicar uma regra
levando em conta circunstâncias particulares não previstas na sua hipótese normativa
92
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. São Paulo: RT.
93
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros.
94
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros.
95
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros.
96
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros.

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(exemplo do estupro presumido), de modo que a aplicação revelou que aquela obrigação,
havida como absoluta, foi superada por razões contrárias não previstas pela própria ou outra
regra. Conclui que a consequência estabelecida prima facie pela norma pode deixar de ser
aplicada em face de razões substanciais consideradas pelo aplicador, mediante condizente
fundamentação, como superiores àquelas que justificam a própria regra. São razões não
imaginadas pelo legislador para os casos normais, aspectos específicos abstratamente
desconsiderados. Outrossim, há regras que contêm expressões cujo âmbito de aplicação não
é total e previamente delimitado. Vagueza não é traço distintivo dos princípios, mas elemento
comum de qualquer enunciado prescritivo, seja ele um princípio, seja ele uma regra.

Ávila critica o critério do “conflito normativo” 97, dizendo que a ponderação não é método
privativo de aplicação dos princípios. A ponderação pode ocorrer na hipótese de regras que
abstratamente convivem, mas concretamente podem entrar em conflito. Em alguns casos as
regras entram em conflito sem que percam sua validade, e a solução para o conflito depende
da atribuição de peso a uma delas. Não é absolutamente necessário declarar a nulidade de
uma das regras, nem abrir uma exceção a uma delas. Um conflito entre regras, cuja solução,
sobre não estar no nível da validade, e sim no plano da aplicação, depende de uma
ponderação entre as finalidades que estão em jogo. A doutrina anglo-saxônica chama de
"aptidão para cancelamento" (defeasibility) a situação em que uma regra deixa de ser
aplicada por razões excepcionais que superem a própria razão que sustenta a aplicação
normal da regra. Outrossim, no caso de conflito entre princípios, o princípio ao qual se atribui
um peso menor pode deixar, na verdade, de ser aplicado, do mesmo modo que na relação
entre a regra e a exceção.

Ávila critica também o critério de Alexy quando identifica princípios como deveres de
otimização que pressupõe aplicação em máxima medida, porque nem sempre é assim, várias
hipóteses podem ocorrer. A dimensão de peso deste ou daquele elemento não está
previamente decidida pela estrutura normativa, mas é atribuída diante do caso concreto. Não
há dever de realização na máxima medida, mas o de realização estritamente necessária à
implementação do fim instituído pelo outro princípio, vale dizer, na medida necessária.
Ocorrem limitação e complementação recíprocas, sob ponderação, a exemplo do que
também acontece com as regras.

6.2.5) PROPOSTA CONCEITUAL DE HUMBERTO ÁVILA

O autor busca “manter a distinção entre princípios e regras, mas estruturá-la sob fundamentos diversos
dos comumente empregados pela doutrina”. Defende que, ao contrário do que se costuma dizer,
“os princípios não apenas explicitam valores, mas, indiretamente, estabelecem espécies precisas de
comportamentos” e “a instituição de condutas pelas regras também podem ser objeto de ponderação”.
“A aptidão para a aplicação de uma regra depende da ponderação de outros fatores que vão além da
mera verificação da ocorrência dos fatos previamente tipificados”.

Ávila propõe uma nova categoria, que denomina de postulados normativos aplicativos 98,
metanormas situadas num segundo grau e que estabelecem a estrutura de aplicação de
outras normas (princípios e regras). São deveres estruturantes da aplicação de normas. Cita
o exemplo da razoabilidade e da proporcionalidade, criticando o fato de a maior parte da
doutrina enquadrá-los, sem explicações, na categoria dos princípios. Os postulados não
97
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros.
98
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros.

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impõe a promoção de um fim, mas, em vez disso, estruturam a aplicação do dever de


promover um fim; de outro não prescrevem indiretamente comportamentos, mas modos
racionais e de argumentação relativamente a normas que indiretamente prescrevem
comportamentos.

O postulado explica o que é necessário para se conhecer o Direito; o princípio já é o


conteúdo do Direito.

Nessa mesma linha, há ainda outros autores que, a exemplo de Paulo de Barros Carvalho,
falam em “sobreprincípios”, como sendo princípios de maior hierarquia e que operam a
realização de outros princípios, citando como exemplo o sobreprincípio da segurança jurídica.

Sobre a distinção entre regras e princípios, Ávila propõe os seguintes critérios:

Regras “são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de


decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige avaliação da correspondência, sempre
centrada na finalidade que lhes dá suporte e nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes,
entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos”99.

Princípios “são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de


complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação demandam uma avaliação da correlação entre
o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária a sua
promoção”100.

Regras são imediatamente descritivas (estabelecem obrigações, permissões e proibições


mediante a descrição da conduta a ser cumprida), princípios são normas imediatamente
finalísticas (estabelecem um estado de coisas cuja promoção gradual depende de
comportamentos a ela necessários).

Princípios são normas primariamente complementares e preliminarmente parciais (abrangem


apenas parte dos aspectos relevantes para a tomada de decisão, não geram uma solução
específica). Regras são normas preliminarmente decisivas e abarcantes (pretendem abranger
todos os aspectos relevantes e aspiram gerar uma solução específica).

São os postulados normativos aplicativos são normas metódicas, que estabelecem critérios
para a adequada aplicação conjunta das regras e princípios.

6.3) CLASSIFICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS

6.3.1) QUANTO À AMPLITUDE (segundo Luiz Roberto Barroso101)

Fundamentais – são aqueles que contêm as decisões políticas estruturais do Estado,


configuram a sumarização de todas as demais normas constitucionais, e para os quais elas
podem ser direta ou indiretamente reconduzidas, ou desdobradas como deduções analíticas

99
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros.
100
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros.
101
BARROSO, Luís Roberto. Apontamentos sobre o princípio da legalidade (delegações legislativas, poder regulamentar e repartição
constitucional das competências legislativas). In: “Temas de Direito Constitucional”, Rio de Janeiro: Renovar.

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das normas matrizes. Ex: princípio republicano, federativo, do Estado Democrático de Direito,
da separação dos Poderes, presidencialista, da livre iniciativa etc.

Gerais – embora não integrem o núcleo de decisão política formadora do Estado, são,
normalmente, importantes especificações dos princípios fundamentais. Têm eles menos grau
de abstração e ensejam, em muitos casos, a tutela imediata das situações jurídicas que
contemplam. São desdobramentos dos princípios fundamentais que se irradiam por toda a
ordem jurídica, tais como os princípios da legalidade, isonomia, autonomia estadual e
municipal, acesso ao Judiciário, irretroatividade das leis, juiz natural, devido processo legal
etc.

Setoriais – são aqueles que presidem um específico conjunto de normas afetas a um


determinado tema. Irradiam-se limitadamente, mas em seu âmbito de atuação são supremos.
Por vezes são meros detalhamentos dos princípios gerais, como os princípios da legalidade
tributária ou da legalidade penal. Outras vezes são autônomos, como o princípio da
anterioridade em matéria tributária ou do concurso público em matéria de Administração
Pública. Ex: legalidade administrativa, impessoalidade, moralidade, publicidade, prestação de
contas.

6.3.2) QUANTO AO RECONHECIMENTO NO DIREITO POSITIVO

O reconhecimento de um princípio pelo direito positivo vai depender do modo como ele se
expressa no ordenamento. Um princípio reconhecido pode se expressar explicita ou
implicitamente.

Explícitos – Já incorporados textualmente ao ordenamento jurídico.

Implícitos - apesar de não expressos textualmente, são reconhecidos pela doutrina e pela
jurisprudência como extraídos da lógica do sistema jurídico. Alguns deles foram construídos
ainda nos primórdios de cada ciência jurídica e vieram adquirindo aceitação geral.

Convém salientar que tanto os princípios explícitos quanto os implícitos estão expressos no
ordenamento, daí a sua força normativa. A diferença é que os explícitos estão expressos
textualmente, ao passo que os implícitos não aparecem literalmente no texto, mas dele se
extrai por interpretação do sistema jurídico.

Assim, por exemplo, enquanto “o princípio da legalidade é explícito na Constituição Federal de 1988
(art.5º, II e art.37, caput), o princípio da razoabilidade é implícito (não aparece literalmente, mas
permeia e assim decorre do sistema); ambos os princípios são, no entanto, expressos no ordenamento
jurídico”.102

6.4) PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Na esfera específica do Direito Administrativo, tem-se o regime jurídico-administrativo,


consubstanciado nas normas que orientam a atividade administrativa, vale dizer, as regras e
princípios fundamentais do Direito Administrativo.

102
PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa. Rio de Janeiro: Elsevier. O autor emprega o termo
“expresso” em oposição a “tácito”. Enquanto o “implícito” é algo expresso, apesar de não literal, o “tácito” é algo que não está previsto (nem
explícita, nem implicitamente), “mas que hipoteticamente é admissível por inferência de outros elementos secundários”.

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Lucia Valle Figueiredo103 denomina regime jurídico administrativo ao “conjunto de regras e


princípios a que se deve subsumir a atividade administrativa no atingimento de seus fins” e que
contém regras próprias com aspectos inteiramente diversos do Direito Privado.

Maria Sylvia Di Pietro também faz importantes considerações sobre o regime jurídico-
administrativo:

“A expressão regime jurídico da Administração Pública é utilizada para designar, em sentido amplo,
os regimes de direito público e de direito privado a que pode submeter-se a Administração Pública. Já a
expressão regime jurídico administrativo é reservada tão somente para abranger o conjunto de traços,
de conotações, que tipificam o Direito Administrativo, colocando a Administração Pública numa
posição privilegiada, vertical, na relação jurídico-administrativa. Basicamente, pode-se dizer que o
regime administrativo resume-se a duas palavras apenas: prerrogativas e sujeições. (...) o Direito
Administrativo nasceu e desenvolveu-se baseado em duas ideias opostas: de um lado, a proteção aos
direitos individuais frente ao Estado, que serve de fundamento ao princípio da legalidade, um dos
esteios do Estado de Direito; de outro lado, a de necessidade de satisfação dos interesses coletivos,
que conduz à outorga de prerrogativas e privilégios para a Administração Pública, quer para limitar o
exercício dos direitos individuais em benefício do bem-estar coletivo (poder de polícia), quer para a
prestação de serviços públicos. Daí a bipolaridade do Direito Administrativo: liberdade do indivíduo e
autoridade da Administração; restrições e prerrogativas. (...) O conjunto das prerrogativas e restrições
a que está sujeita a Administração e que não se encontram nas relações entre particulares constitui o
regime jurídico administrativo. Muitas dessas prerrogativas e restrições são expressas sob a forma de
princípios que informam o direito público e, em especial, o Direito Administrativo”. 104

Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, o regime jurídico administrativo constrói-se sobre
dois traços fundamentais: a supremacia do interesse público sobre o particular e a
indisponibilidade do interesse público pela Administração105.

6.4.1) SUPREMACIA E INDISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO

Supremacia do interesse público sobre o particular – “já em fins do século XIX começaram a
surgir reações contra o individualismo jurídico, como decorrência das profundas modificações ocorridas
nas ordens econômica, social e política, provocadas pelos próprios resultados funestos daquele
individualismo exacerbado. O Estado teve que abandonar a sua posição passiva e começar a atuar no
âmbito da atividade exclusivamente privada. O Direito deixou de ser apenas instrumento de garantia
dos direitos do indivíduo e passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem
comum, do bem estar coletivo. Em nome do primado do interesse público, inúmeras transformações
ocorreram: houve uma ampliação das atividades assumidas pelo Estado para atender às necessidades
coletivas, com a consequente ampliação do próprio conceito de serviço público. O mesmo ocorreu com
o poder de polícia do Estado, que deixou de impor obrigações apenas negativas (não fazer) visando
resguardar a ordem pública, e passou a impor obrigações positivas, além de ampliar o seu campo de
atuação, que passou a abranger, além da ordem pública, também a ordem econômica e social. Surgem,
no plano constitucional, novos preceitos que revelam a interferência crescente do Estado na vida
econômica e no direito de propriedade; assim são as normas que permitem a intervenção do Poder
Público no funcionamento e na propriedade das empresas, as que condicionam o uso da propriedade e a

103
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros.
104
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
105
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros.

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exploração de determinados bens, como as minas e demais riquezas do subsolo, as que permitem a
desapropriação para a justa distribuição da propriedade; cresce a preocupação com os interesses difusos,
como o meio ambiente e o patrimônio histórico e artístico nacional. Tudo isso em nome dos interesses
públicos que incumbe ao Estado tutelar. É, pois, no âmbito do direito público, em especial do Direito
Constitucional e Administrativo que o princípio da supremacia do interesse público tem a sua sede
principal”106.

Hely Lopes Meirelles considera que “a primazia do interesse público sobre o privado é inerente à
atuação estatal e domina-a, na medida em que a existência do Estado justifica-se pela busca do interesse
geral”107.

Como assinala Maria Sylvia Di Pietro, "este princípio está presente tanto no momento da
elaboração da lei como no momento da sua execução em concreto pela Administração Pública. Ele
inspira o legislador e vincula a autoridade administrativa em toda a sua atuação. No que diz respeito à
sua influência na elaboração da lei, é oportuno lembrar que uma das distinções que se costuma fazer
entre o direito privado e o direito público (e que vem desde o Direito Romano) leva em conta o
interesse que se tem em vista de proteger; o direito privado contém normas de interesse individual e, o
direito público, normas de interesse público"108.

Celso Antônio Bandeira de Mello adverte, porém, que o interesse público não se contrapõe
necessariamente aos interesses privados. O interesse público é a dimensão pública dos
interesses individuais dos partícipes da sociedade109. Vale dizer, o interesse público diz
respeito a cada pessoa enquanto membro da sociedade e sob a perspectiva objetiva dos
direitos fundamentais consagrados na Constituição.

Indisponibilidade do interesse público pela Administração – “não se acham, segundo esse


princípio, os bens, direitos, interesses e serviços públicos à livre disposição dos órgãos públicos, a quem
apenas cabe curá-los, ou do agente público, mero gestor da coisa pública. Aqueles e este não são seus
senhores ou seus donos, cabendo-lhes por isso tão só o dever de guardá-los e aprimorá-los para a
finalidade a que estão vinculados. O detentor dessa disponibilidade é o Estado. Por essa razão, há
necessidade de lei para alienar bens, para outorgar concessão de serviço público, para transigir, para
renunciar, para confessar, para relevar a prescrição (RDA, 107:278) e para tantas outras atividades a
cargo dos órgãos e agentes da Administração Pública. É a ordem legal, afirma Celso Antônio Bandeira
de Mello (Curso, cit, p.23), que dispõe sobre essas atividades, possibilitando ou proibindo a
disponibilidade dos bens, direitos, interesses e serviços públicos. Em razão desse princípio o Supremo
Tribunal Federal já assentou que o poder de transigir ou de renunciar não se configura se a lei não o
prevê (RDA: 128:178), e Clenício da Silva Duarte afirmou que a relevação de prescrição é renúncia de
direito que importa em liberalidade, cuja efetivação depende de autorização legislativa (RDA, 107:278).
Aos agentes públicos, por força desse princípio, é vedada a renúncia, parcial ou total, de poderes ou
competências, salvo autorização legal (art.2º, parágrafo único, II, da Lei federal n.9784/99). Em razão
desse princípio, não pode a Administração Pública deixar de usar os meios judiciais e extrajudiciais
para repelir a turbação, o esbulho e a indevida utilização de áreas públicas (RT, 726:236)”110.

106
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
107
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros.
108
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
109
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros.
110
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva.

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6.4.2) CRÍTICAS AO DOGMA DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO E ATENUAÇÃO


DO PRINCÍPIO DA INDISPONIBILIDADE

Autores há, a exemplo de Gustavo Binenbojm, que criticam a ideia classicamente difundida
pela doutrina em derredor de uma suposta supremacia do interesse público sobre o interesse
particular, rogando uma melhor compreensão do que exatamente quer dizer isso, sob pena
de desvirtuar substancialmente o seu sentido. Para ilustrar simbolicamente esta advertência,
Binenbojm cita a referência feita por Élio Gaspari (no livro “A Ditadura Escancarada”) ao teor
de uma placa pendurada no saguão de uma delegacia paulista no auge da ditadura militar,
que dizia: “Contra a pátria não há direitos”. Trata-se de uma afirmação vazia e perigosa,
porque poderia servir para legitimar qualquer tipo de conduta estatal por mais arbitrária que
fosse.

Destarte, Binenbojm refuta a ideia de que existiria uma prevalência “a priori” do coletivo
(estatal) sobre o individual (privado). É a Constituição Federal, expressa ou implicitamente,
que estabelece quando e em que medida o interesse individual pode ser restringido. A ideia
de supremacia do interesse público não se coaduna com os postulados da proporcionalidade
e da razoabilidade, que preconizam a cedência recíproca entre os interesses em conflito.

A máxima preservação dos direitos individuais constitui porção do próprio interesse público.
Assim, as prerrogativas da Administração Pública em relação aos particulares devem
obedecer à lógica do princípio da igualdade (substancial) e ao teste de proporcionalidade.

Nesta mesma linha de críticas, Alexandre Santos de Aragão diz que em uma sociedade
complexa e pluralista não há apenas um interesse público. Outrossim, o interesse público e
os interesses dos cidadãos, que antes eram vistos como potencialmente antagônicos,
passam a ser vistos como em princípio reciprocamente identificáveis. Não há um interesse
público abstratamente considerado que deva prevalecer sobre os interesses particulares
eventualmente envolvidos111.

Humberto Ávila aponta que a supremacia do interesse público não se identifica com a ideia
de bem comum. Bem comum é a própria composição harmônica do bem de cada um com o
de todos; não o direcionamento dessa composição em favor do “interesse público”. Vale
dizer, o bem comum traduz uma situação de equilíbrio entre interesses públicos e privados.
Salienta o autor que a tal supremacia sequer poderia ser considerada uma norma-princípio, já
que sua descrição abstrata não permite uma concretização em princípio gradual, pois a
prevalência é a única possibilidade. Aduz, por fim, que na definição de interesse público estão
também contidos elementos privados, havendo uma reciprocidade entre interesses públicos e
privados em conexão estrutural. Apesar de a busca da satisfação do interesse público ser
uma finalidade a ser perseguida pela Administração, isto não significa a mesma coisa que
supremacia112.

Daniel Sarmento alerta que, dada a sua indeterminação conceitual, a supremacia do


interesse público periga tornar-se o novo figurino para a ressurreição das “razões de Estado”.
111
ARAGÃO, Alexandre Santos de. A supremacia do interesse público no advento do Estado de Direito e na Hermenêutica do Direito
Público contemporâneo. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstituindo o princípio da
supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
112
ÁVILA, Humberto. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. In: SARMENTO, Daniel (org.).
Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstituindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeir o: Lumen Juris.

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Baseia-se numa compreensão equivocada da relação entre pessoa humana e Estado,


calcada em pensamentos organicistas ou utilitaristas. No Estado Democrático de Direito, as
pessoas não existem para servir aos poderes públicos ou à sociedade política, mas, ao
contrário, estes é que se justificam como meios para a proteção e promoção dos direitos
humanos113.

Noutra esteira, José dos Santos Carvalho Filho assim refuta todos esses argumentos:

“Algumas vozes têm se levantado atualmente contra a existência do princípio em foco, argumentando-
se no sentido da primazia de interesses privados como suporte em direitos fundamentais quando
ocorrem determinadas situações específicas. Se é evidente que o sistema jurídico assegura aos
particulares garantias contra o Estado em certos tipos de relação jurídica, é mais evidente ainda que,
como regra, deva respeitar-se o interesse coletivo quando em confronto com o interesse particular. A
existência de direitos fundamentais não exclui a densidade do princípio. Este é, na verdade, o corolário
natural do regime democrático, calcado, como por todos sabido, na preponderância das maiorias. A
‘desconstrução’ do princípio espelha uma visão distorcida e coloca em risco a própria democracia: o
princípio, isto sim, suscita ‘reconstrução’, vale dizer, adaptação à dinâmica social, como já se afirmou
com absoluto acerto”.114

No que concerne à indisponibilidade do interesse público, "também esse princípio vem passando
por revisões doutrinárias que sugerem certa atenuação de seu conteúdo original. Sustenta-se que a
abertura do Direito Administrativo a uma certa consensualidade não constitui propriamente uma
disponibilidade do interesse público, pois a celebração de um acordo com o particular pode, em certos
casos, melhor atender ao interesse público do que a mera e simples imposição unilateral". 115

O STF já adotou essa linha de raciocínio, atenuando em alguns casos a aplicação do


princípio na sua concepção original. Cite-se o seguinte julgado:

"Poder Público. Transação. Validade. Em regra, os bens e o interesse público são indisponíveis, porque
pertencem à coletividade. É, por isso, que o Administrador, mero gestor da coisa pública, não tem
disponibilidade sobre os interesses confiados à sua guarda e realização. Todavia, há casos em que o
princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em
vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação deste interesse". 116

Aliás, a própria legislação brasileira, em diversas situações, admite a realização de


consentimentos por parte da Administração e até mesmo acordos e transações com os
administrados.

"É também de se destacar a série de leis que expressamente admitem essa negociação, destacando-se os
termos de ajustamento de conduta previstos na Lei de Ação Civil Pública como uma possibilidade
negocial, substitutiva da aplicação de sanções legais, para todos os entes públicos, não apenas para o
Ministério Público (art.5º, §6º, Lei 7.347/85). Disposições específicas semelhantes constam, entre
outros, do art.85 da Lei 12.529/2011 e do §5º do art.11 da Lei 6.385/76 para o CADE e a CVM ,
entidades disciplinadoras respectivamente da concorrência e do mercado de capitais. Deve ser lembrada

113
SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. Interesses Privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: SARMENTO,
Daniel (org.). Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstituindo o princípio da supremacia do i nteresse público. Rio de
Janeiro: Lumen Juris.
114
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas.
115
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense.
116
STF, RE 253.885-0, rel. Min. Ellen Gracie.

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ainda a possibilidade de a lei do Plano Diretor prever áreas onde o particular pode negociar com o
Município a possibilidade de construir fora dos limites legais através de 'outorga oneroso do direito de
construir' prevista no Estatuto da Cidade". 117

É prevista a possibilidade de arbitragem na legislação que trata das concessões e


permissões de serviços públicos, como um "modo amigável de solução das divergências
contratuais" (Lei 8987/95, art. 23, XV). Além disso, há leis que permitem que possa haver
acordos propostos por advogados públicos na via judicial.

6.4.3) A DOUTRINA DOS INTERESSES PRIMÁRIOS E SECUNDÁRIOS (RENATO ALESSI)

Segundo Celso Antônio: “uma vez reconhecido que os interesses públicos correspondem à dimensão
pública dos interesses individuais, ou seja, que consistem no plexo dos interesses dos indivíduos
enquanto partícipes da sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto incluído o depósito
intertemporal destes mesmos interesses, põe a nu a circunstância de que não existe coincidência
necessária entre interesse público e interesse do Estado e demais pessoas de direito público. O Estado
pode ter, tanto quanto as pessoas, interesses que lhes são particulares. Não são interesses públicos, mas
interesses individuais do Estado”118.

O Estado só pode buscar satisfazer os seus interesses privados quando estes não se
chocarem com os interesses públicos. Por isso, os interesses públicos são os interesses
primários e os privados do Estado são secundários. Esta distinção, já consagrada na doutrina
italiana, é exposta por Renato Alessi, com base em lições de Carnelutti e Picardi.

6.4.4) PRINCÍPIOS EXPRESSOS NO ART. 37, CAPUT, DA CF/88:

► Princípio da LEGALIDADE

Ao contrário do que ocorre em relação aos entes de Direito Privado, que podem fazer tudo
aquilo que a lei não proíbe, à Administração Pública somente é dado fazer o que a lei
previamente autoriza.

São palavras de Hely Lopes Meirelles:

"Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração
particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a
lei autoriza. A lei para o particular significa “pode fazer assim”; para o administrador público “deve
fazer assim”"119.

Tem-se aí a chamada legalidade estrita que impõe observância em todas as áreas


submetidas ao regime jurídico administrativo.

Na célebre expressão de Seabra Fagundes, o administrador público deve aplicar a lei de


ofício. 120

117
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense.
118
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros.
119
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros.
120
SEABRA FAGUNDES, Miguel. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Forense.

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Convém transcrever algumas valiosas lições doutrinárias acerca do princípio da legalidade:

“O princípio da legalidade contrapõe-se, portanto, e visceralmente, a quaisquer tendências de


exacerbação personalista dos governantes. Opõe-se a todas as formas de poder autoritário, desde o
absolutista, contra o qual irrompeu, até as manifestações caudilhescas ou messiânicas típicas dos países
subdesenvolvidos. O princípio da legalidade é o antídoto natural do poder monocrático ou oligárquico,
pois tem como raiz a ideias de soberania popular, de exaltação da cidadania. Nesta última se consagra a
radical subversão do anterior esquema de poder assentado na relação soberano-súdito (submisso)”121.

“Ao particular é dado fazer tudo quanto não estiver proibido; ao administrador somente o que estiver
permitido pela lei (em sentido amplo). Não há liberdade desmedida ou que não esteja expressamente
concedida. Toda a atuação administrativa vincula-se a tal princípio, sendo ilegal o ato praticado sem lei
anterior que o preveja (...) Do princípio da legalidade decorre a proibição de, sem lei ou ato normativo
que permita, a Administração vir a, por mera manifestação unilateral de vontade, declarar, conceder,
restringir direitos ou impor obrigações”.122

"Este princípio, juntamente com o de controle da Administração pelo Poder Judiciário, nasceu com o
Estado de Direito e constitui uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais. Isto
porque a lei, ao mesmo tempo em que os define, estabelece também os limites da atuação
administrativa que tenha por objeto a restrição ao exercício de tais direitos em benefício da
coletividade. É aqui que melhor se enquadra aquela ideia de que, na relação administrativa, a vontade
da Administração Pública é a que decorre da lei"123.

“É extremamente importante o efeito do princípio da legalidade no que diz respeito aos direitos dos
indivíduos. Na verdade, o princípio se reflete na consequência de que a própria garantia desses direitos
depende de sua existência, autorizando-se então os indivíduos à verificação do confronto entre a
atividade administrativa e a lei. Uma conclusão é inarredável: havendo dissonância entre a conduta e a
lei, deverá aquela ser corrigida para eliminar-se a ilicitude. Não custa lembrar, por último, que, na teoria
do Estado moderno, há duas funções estatais básicas: a de criar a lei (legislação) e a de executar a lei
(administração e jurisdição). Esta última pressupõe o exercício da primeira, de modo que só se pode
conceber a atividade administrativa diante dos parâmetros já instituídos pela atividade legiferante. Por
isso é que administrar é função subjacente à de legislar. O princípio da legalidade denota exatamente
essa relação: só é legítima a atividade do administrador público se estiver condizente com o disposto na
lei”124.

“A Carta Magna traça dois tipos de reserva legal: a absoluta e a relativa. A reserva legal absoluta
ocorre quando há a exigência da edição de lei formal para a regulamentação do texto constitucional. Já a
reserva legal relativa, embora se exija de lei formal, garante a fixação de parâmetros de atuação do
Poder Executivo, que pode complementá-la por ato infralegal por meio da edição de decreto
regulamentar (CF/1988, art. 84, IV)”.125

Convém esclarecer que a leitura do princípio da legalidade variou ao longo do tempo, desde a
concepção liberal pós-revolução, passando pelo Estado Social e alcançando o contexto pós-
positivista do Estado Democrático de Direito.

121
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros.
122
ROSA, Márcio Fernando Elias. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
123
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
124
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas.
125
PRADO, Leandro C.; TEIXEIRA, Patrícia Carla de Farias. 1001 questões comentadas de Direito Administrativo. São Paulo: Método.

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Num primeiro momento, concebia-se que a Administração poderia fazer tudo aquilo que a lei
não proibisse. Ou seja, admitia-se haver poderes administrativos discricionários exteriores ao
ordenamento jurídico, desde quando não houvesse lei os limitando. Era a chamada doutrina
da “vinculação negativa à lei” (negative Bindung), de tradição monárquica e que prevaleceu
como ideia dominante até o primeiro pós-guerra.126

Posteriormente, por influência do positivismo normativista, emanado das obras de Hans


Kelsen e Adolf Merkl, passou-se a considerar que todas as competências administrativas têm
como gênese a lei, mesmo quando o texto legal não descreva minuciosamente os poderes a
serem exercidos pela autoridade pública. Vale dizer, ainda que se reconheça haver poderes
discricionários da Administração, esses poderes não são exteriores ao ordenamento, eis que
devem sempre encontrar fundamento na lei para serem considerados válidos. É a doutrina da
“vinculação positiva à lei” (positive Bindung), que se consolidou a partir da Constituição
austríaca de 1920.127

Por fim, no atual contexto do conclamado pós-positivismo, sob a égide do


neoconstitucionalismo, o culto exacerbado à legalidade veio cedendo diante do culto à
Constituição128, com o reconhecimento da força normativa dos princípios constitucionais e a
visão do ordenamento jurídico como um todo sistêmico (bloco de legalidade).

Neste novo contexto, o art. 2º, parágrafo único, I, da Lei 9.784/99 impõe expressamente à
Administração uma atuação conforme a lei e o Direito.

Alexandre Santos de Aragão explica essa mudança de concepção acerca do princípio de


legalidade, relacionando-a com a própria mutação pela qual passou o dogma da separação
dos poderes, desde a sua idealização:

"Dentro da concepção inicial do princípio da legalidade, sustentava-se que o Poder Executivo só


poderia agir para aquilo que fosse exaustivamente predeterminado pela lei. Dentro dessa visão inicial de
separação dos Poderes, o Executivo administraria a gestão do bem coletivo apenas 'executando' as
normas previamente estabelecidas pelo Poder Legislativo. Daí se ver o Governo como um Poder
Executivo, e a vetusta definição de que administrar seria 'aplicar a lei de ofício'. Acontece que essa visão
de separação dos poderes e de uma Administração Pública meramente executora de leis era, já na época
de sua elaboração, meramente ideal, nunca realizada plenamente na prática. Viu-se, por um lado, que
nem todas as funções estatais poderiam ser subsumidas à classificação tripartide clássica
(administração, legislação e jurisdição - como classificar, por exemplo, as funções dos tribunais de
contas, do Ministério Público e de controle abstrato de constitucionalidade?). Notou-se ainda a
inconveniência de que cada um daqueles órgãos estruturais da organização estatal - Poder Legislativo,
Poder Executivo e Poder Judiciário - exercesse apenas a sua função principal. Na verdade, cada um
deles exerce todas as funções clássicas, apenas preponderando a sua função principal típica sobre as
outras. E, mais, constatou-se que, por mais que o Legislador quisesse, não lhe era possível
preestabelecer todas as regras da vida social, de cuja aplicação subsuntiva a Administração e o
Judiciário seriam meros autômatos. (...) Nem a separação dos Poderes nem o princípio da legalidade
perderam sua importância, mas se transformaram. Aliás, o principal fator a identificar a relevância dos
institutos jurídicos não é a sua petrificação, mas a sua adaptabilidade às diferentes conjunturas". 129
126
BINEMBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar.
127
BINEMBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar.
128
“Se o velho Estado de Direito do liberalismo fazia o culto da lei, o novo Estado de Direito do nosso tempo faz o culto da Const ituição”.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros.
129
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense.

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Para a adequada compreensão do alcance do princípio da legalidade no atual contexto,


remete-se o leitor ao quando já dito acima acerca da ideias de juridicidade e normatividade
principialista, na lição do jurista Paulo Otero.

► Princípio da IMPESSOALIDADE

É interpretado em dois sentidos.

Primeiro, diz-se que o Administrador não pode prejudicar ou beneficiar pessoas


determinadas, devendo praticar os seus atos sem ter em mira interesse pessoais nem de
terceiros, mas sim o interesse público. Exemplo disso está na regra do concurso público para
admissão de servidores ou empregados públicos (CF/88, art. 37, II), na vedação à prática de
nepotismo (Súmula Vinculante 13 do STF) e na necessidade de licitação para compras, obras
e serviços (CF/88, art. 37, XIX).

Em segundo lugar, as ações da Administração não devem ser imputadas à pessoa do


administrador, que apenas age por delegação do Estado e em nome do povo. Daí porque o
art. 37, §1º, da Carta Magna, assim como os arts.18 a 21 da Lei 9.784/99, proíbem que
conste nome, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal. Outrossim, o art.2º,
parágrafo único, III, da Lei 9.784/99 impõe que a Administração busque objetividade no
atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades. A
publicidade das ações do governo deverá ter estritamente caráter educativo, informativo ou
de orientação social. Infelizmente, na prática é muito comum se ver obras públicas
indevidamente relacionadas à figura pessoal do administrador. É razoável, todavia, a
utilização de placas de inauguração constando os nomes dos administradores, para fins de
lembrança histórica.

"Significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas
determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento" 130.

"O princípio em foco está entrelaçado com o princípio da igualdade (art. 5º, I e 19, III, da CF), o qual
impõe à Administração tratar igualmente a todos os que estejam na mesma situação fática e jurídica.
Isso significa que os desiguais em termos genéricos e impessoais devem ser tratados desigualmente em
relação àqueles que não se enquadram nessa distinção" 131.

“O princípio objetiva a igualdade de tratamento que a Administração deve dispensar aos administrados
que se encontrem em idêntica situação jurídica. Nesse ponto, representa uma faceta do princípio da
isonomia. Por outro lado, para que haja verdadeira impessoalidade, deve a Administração voltar-se
exclusivamente para o interesse público, e não para o privado, vedando-se, em consequência, sejam
favorecidos alguns indivíduos em detrimento de outros e prejudicados alguns para favorecimento de
outros. Aqui reflete a aplicação do conhecido princípio da finalidade, sempre estampado na obra dos
tratadistas da matéria, segundo o qual o alvo a ser alcançado pela Administração é somente o interesse
público, e não se alcança o interesse público se for perseguido o interesse particular, porquanto haverá
nesse caso sempre uma atuação discriminatória”132.

130
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
131
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros.
132
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas.

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► Princípio da MORALIDADE Administrativa

A Administração Pública deve atuar segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé
(art. 2º, parágrafo único, IV, da Lei 9.784/99).

Este princípio assume grande importância quando se investigam atos da Administração


formalmente legais, mas que, em sua substância, não visam o interesse público, traduzindo
verdadeiro desvio de finalidade (nem tudo que é legal, é honesto).

No dizer de Gasparini, “o ato e a atividade da Administração Pública devem obedecer não só à lei,
mas à própria moral, porque nem tudo que é legal é honesto, conforme afirmavam os romanos”133.

Como assinala José Afonso da Silva, “a idéia subjacente ao princípio é a de que a moralidade
administrativa não é a moralidade comum, mas moralidade jurídica”134. A moralidade administrativa
não é meramente formal, porque tem conteúdo jurídico a partir de regras e princípios da
Administração.

Por outro lado, Maria Sylvia Di Pietro salienta que o direito ampliou o seu círculo para
abranger matéria que antes dizia respeito apenas à moral, de modo que o desvio de poder ou
finalidade passou a ser encarado como ilegalidade, sujeitando-se a controle judicial.

"Em resumo, sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da


Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância
com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e
de equidade, a ideia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade
administrativa. É evidente que, a partir do momento em que o desvio de poder foi considerado como
ato ilegal e não apenas imoral, a moralidade administrativa teve seu campo reduzido; o que não
impede, diante do direito positivo brasileiro, o reconhecimento de sua existência como princípio
autônomo"135.

“A falta de moralidade administrativa pode afetar vários aspectos da atividade da Administração.


Quando a imoralidade consiste em atos de improbidade, que, como regra, causam prejuízo ao erário
público, o diploma regulador é a Lei n. 8429, de 2/6/1992, que prevê as hipóteses configuradoras da
falta de probidade na Administração, bem como estabelece as sanções aplicáveis a agentes públicos e a
terceiros, quando responsáveis por esse tipo ilegítimo de conduta. Ao mesmo tempo, contempla os
instrumentos processuais adequados à proteção dos cofres públicos, admitindo, entre outras, ações de
natureza cautelar de sequestro e arresto de bens e o bloqueio de contas bancárias e aplicações
financeiras, sem contar, logicamente, a ação principal de perdimento de bens, ajuizada pelo Ministério
Público ou pela pessoa de direito público interessada na reconstituição de seu patrimônio lesado. Outro
instrumento relevante de tutela jurisdicional é a ação popular, contemplada no art.5o, LXXIII, da
vigente Constituição”136.

O princípio da moralidade administrativa pode encontrar uma série de aplicações no âmbito


da administração pública.

133
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
134
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros.
135
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
136
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas.

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Por exemplo, impede a contratação de parentes para cargos em comissão, conforme já


restou decidido pelo STF (ADC-MC 12/DF e Súmula Vinculante 13). O fato de não haver lei
estabelecendo essa proibição não impede que se aplique diretamente o princípio da
moralidade para coibir a prática desse abuso de poder.

Com efeito, “não é necessária lei formal para aplicação do princípio da moralidade. A falta de lei não
torna lícita a contratação de parentes, porquanto a Administração Pública deve pautar-se em
conformidade com o princípio da moralidade, que exige um comportamento honesto, ético, decoroso e
digno de um agente público, bem como nos princípios da igualdade e da eficiência. Dessa hipótese
deriva a tese de que o nepotismo é ilícito por força do supracitado princípio, bem como dos demais dele
decorrentes, abrigados no art.37, caput, da CF”.137

“Entende o STF que muito embora o princípio da moralidade seja de certa forma abstrato, é dotado de
força normativa, não carecendo de lei formal para regulá-lo, ou seja, não é necessária a edição de lei que
o regulamente. Por outro lado, apesar de desnecessária, é possível que tal ocorra por meio de atos
infralegais, como o Decreto 7.203/2010, dispondo sobre o nepotismo na Administração Federal, uma
das formas de violação à moralidade. Outro exemplo é a Resolução 7/2005 do CNJ, objeto do
julgamento, pelo STF, da ADC-MC 12/DF, DJ 01/09/2006”.138

► Princípio da PUBLICIDADE

A Administração Pública deve sempre agir com transparência, praticando a mais ampla
divulgação possível dos seus atos, que, consoante assinala José dos Santos Carvalho Filho,
propicia “a possibilidade de controlar a legitimidade da conduta dos agentes administrativos. Só com a
transparência dessa conduta é que poderão os indivíduos aquilatar a legalidade ou não dos atos e o grau
de eficiência de que se revestem” 139.

“A atuação transparente do Poder Público exige a publicação, ainda que meramente interna, de toda
forma de manifestação administrativa, constituindo esse princípio requisito de eficácia dos atos
administrativos. A publicidade está intimamente relacionada ao controle da Administração, visto que,
conhecendo seus atos, contratos, negócios, pode o particular cogitar de impugná-los interna ou
externamente”140.

Celso Antônio Bandeira de Mello aponta que em um Estado Democrático de Direito, no qual
todo poder emana do povo (CF, art.1o, parágrafo único), “não pode haver ocultamento aos
administrados dos assuntos que a todos interessam, e muito menos em relação aos sujeitos
individualmente afetados por alguma medida” 141. Há determinados atos em que a publicidade é
requisito de eficácia, como ocorre, por exemplo, na licitação.

Ressalte-se que o princípio da publicidade não é absoluto. O art. 2º, parágrafo único, V, da
Lei 9.784/99 determina a divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses
de sigilo previstas na Constituição. Logo, a regra da publicidade encontra ressalvas nas
situações em que se faz necessário o sigilo, seja para proteger a intimidade ou a honra do
administrado (CF, art. 5º, X) ou quando imprescindível à segurança da sociedade e do Estado
(CF, art. 5o, XXXIII, parte final). Dentre os atos e atividades nas quais deve haver sigilo,
137
PRADO, Leandro C.; TEIXEIRA, Patrícia Carla de Farias. 1001 questões comentadas de Direito Administrativo. São Paulo: Método.
138
PRADO, Leandro C.; TEIXEIRA, Patrícia Carla de Farias. 1001 questões comentadas de Direito Administrativo. São Paulo: Método.
139
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas.
140
ROSA, Márcio Fernando Elias. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
141
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros.

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destacam-se aqueles “ligados a certas investigações, a exemplo dos processos disciplinares, de


determinados inquéritos policiais (art. 20 do CPP) e dos pedidos de retificação de dados (art. 5º, LXXII,
b, da CF), desde que prévia e justificadamente sejam assim declarados pela autoridade competente. Para
esses pode-se falar em sigilo”.

Atualmente, a lei que disciplina o acesso às informações públicas é a Lei 12.527/2011 (que
revogou expressamente a Lei 11.111/2005 e os dispositivos acerca do sigilo de documentos
da Lei 8.159/91). A atual legislação estabeleceu os procedimentos destinados a assegurar o
direito fundamental de acesso à informação, devendo haver publicação em sítios oficiais na
internet, que devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da
administração pública e tendo o sigilo como exceção.

“Para dar concretude a todos esses mandamentos constitucionais, foi promulgada a Lei nº 12.527, de
18.11.2011 (Lei de Acesso à Informação) com incidência sobre a União, Estados, Distrito Federal e
Municípios, que passou a regular tanto o direito à informação, quanto o direito de acesso a registros e
informações nos órgãos públicos, aplicável (a) a toda a Administração Direta e Indireta (autarquia,
fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista), (b) a entidades sob o controle direto ou
indireto dos entes federativos e, no que for cabível (c) às entidades privadas sem fins lucrativos que
recebam recursos públicos do orçamento, diretamente ou mediante contratos de gestão, termos de
parceria, convênios, subvenções sociais e outros benefícios similares. 142

“Tais informações, em poder dos órgãos e entidades públicas, observado seu teor e em razão de sua
imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado, poderão ser classificadas como
ultrassecreta, secreta ou reservada. Os prazos máximos de restrição de acesso à informação, conforme a
sua classificação vigoram a partir da data de sua produção e são as seguintes: I – ultrassecreta: 25 (vinte
e cinco) anos; II – secreta: 15 (quinze) anos; e III – reservada: 5 (cinco) anos.”143

Com efeito, a publicidade é um valor que deve ser sopesado com outros valores consagrados
pelo ordenamento jurídico. Exemplo disso está na decisão do STF (ADI-MC 2.472/RS, DJ de
03/05/2002) que considerou inconstitucional a exigência de veiculação de custo de
publicidade em todos os comunicados oficiais, pois isso violaria os princípios da
proporcionalidade e da economicidade, já que existem outros meios adequados para controle
das contas públicas.

Ademais, discutia-se nas instâncias inferiores se a publicação em Diário Oficial dos


vencimentos dos servidores públicos violaria o direito à intimidade destes. O STF, no SS
3.902/2011, decidiu pela possibilidade de divulgação da remuneração baseando-se no
princípio da publicidade que deve nortear a Administração.

“Outra questão levada à Corte foi a da legitimidade, ou não, de divulgação dos vencimentos brutos
mensais dos servidores, como medida de transparência administrativa. Conquanto houvesse desacordo
nas instâncias inferiores, ficou decidido que o fato se coadunava com o princípio da publicidade,
ressalvando-se, contudo, a necessidade de figurar exclusivamente o nome e a matrícula funcional do
servidor, vedada a divulgação de outros dados pessoais, como CPF, RG e endereço residencial.” 144

142
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas.
143
CUNHA JR, Dirley da. Curso de direito administrativo. Salvador: JusPodivm.
144
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas.

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Não se deve também confundir publicidade com publicação, “pois esta é apenas um dos meios
para se dar cumprimento àquela. Podem existir outras formas de se cumprir com a publicidade, mesmo
que não haja publicação, por exemplo, nos Municípios em que não exista imprensa oficial, admite-se a
publicidade dos atos por meio de afixação destes na sede da Prefeitura ou da Câmara de Vereadores”.
Assim, “a publicidade é exercida tanto quando a Administração publica seus atos em meios
oficiais, como a partir da expedição de certidões”145.

Para Hely Lopes Meirelles, a publicação que produz efeitos jurídicos é a do órgão oficial
(Diário Oficial e jornais contratados), e não a divulgação pela imprensa particular, pela
televisão ou pelo rádio, ainda que em horário oficial.

"Publicidade é a divulgação oficial do ato para conhecimento público e início de seus efeitos externos.
Daí porque as leis, atos e contratos administrativos que produzem consequências jurídicas fora dos
órgãos que os emitem exigem publicidade para adquirirem validade universal, isto é, perante as partes
e terceiros"146.

Diógenes Gasparini vai na mesma linha:

“A publicação para surtir os efeitos desejados é a do órgão oficial. De sorte que não se considera como
tendo atendido o princípio da publicidade a mera notícia, veiculada pela imprensa falada, escrita ou
televisiva, do ato praticado pela Administração Pública, mesmo que a divulgação ocorra em programas
dedicados a noticiar assuntos relativos ao seu dia-a-dia, como é o caso da Voz do Brasil, conforme já
decidiu o STF ao julgar o RE 71.652 (RDA, 111:145). Órgão oficial é o jornal, público ou privado,
destinado à publicação dos atos estatais. A Lei federal n.8666/93, chamada de Lei federal das Licitações
e Contratos da Administração Pública, sendo para a União o Diário Oficial da União, e, para os Estados,
o Distrito Federal e os Municípios, o que for definido nas respectivas leis. Se não for, por lei, exigida
essa forma de publicidade, os mesmos efeitos são alcançados mediante a afixação dos atos, contratos e
outros instrumentos jurídicos em quadro de editais, colocado em local de fácil acesso na sede do órgão
emanador”147.

Os atos praticados no âmbito interno da Administração não precisam ser necessariamente


publicados no Diário Oficial. Em regra, “os atos externos, por alcançarem particulares estranhos ao
serviço público, devem ser divulgados por meio de publicação em órgão oficial. Os atos internos, por
sua vez, também necessitam ser divulgados, mas não demandam publicação em diários oficiais,
podendo dar-se por meio de mera circular dentro da própria entidade ou órgão, ou mesmo do chamado
Boletim Interno”.148

Em suma, publicidade tem um sentido mais amplo do que publicação. Ou seja, quando a lei
exige publicação, cumpre-se o princípio da publicidade, mas há casos em que se dará
publicidade sem que seja necessário haver publicação. Esta se refere especificamente à
informação transmitida pelo Diário Oficial ou outro veículo previsto para esse fim, ou ainda
afixação em quadros de editais, nos casos em que a lei exija essa forma específica, sem o
que o respectivo ato não produzirá efeitos. Mas pode haver outros mecanismos de
publicidade além desta forma específica de publicação, como ocorre, por exemplo, com os
informes gerais constantes no portal da transparência no site do governo federal.

145
PRADO, Leandro C.; TEIXEIRA, Patrícia Carla de Farias. 1001 questões comentadas de Direito Administrativo. São Paulo: Método.
146
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros.
147
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
148
PRADO, Leandro C.; TEIXEIRA, Patrícia Carla de Farias. 1001 questões comentadas de Direito Administrativo. São Paulo: Método.

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► Princípio da EFICIÊNCIA

A Emenda Constitucional 19, de 04/06/1998, inseriu este princípio no caput do art. 37 da


CF/88. Posteriormente, constou também no art. 2º da Lei 9.784/99.

"O princípio da eficiência exige a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e
rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em
ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e
satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e seus membros"149.

"O princípio da eficiência apresenta na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao
modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas
atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar,
disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores
resultados na prestação do serviço público"150.

Trata-se de princípio intimamente relacionado ao modelo gerencial adotado na administração


pública moderna, no qual se priorizam os resultados e qualidade dos serviços prestados pelo
Estado. A eficiência revela-se na otimização dos recursos com o máximo de aproveitamento.
Além disso, impõe-se a todo agente realizar suas atribuições com presteza, perfeição e
rendimento funcional, tendo em meta resultados positivos e satisfatório atendimento das
necessidades coletivas.

O princípio da eficiência, em suma, impõe ao administrador o dever de boa administração e


se manifesta sob dois aspectos: o modo de atuação do agente público e o modo de
organizar, estruturar e disciplinar a Administração Pública.

“Conhecido entre os italianos como 'dever de boa administração', o princípio da eficiência impõe à
Administração Pública direta e indireta a obrigação de realizar suas atribuições com rapidez, perfeição e
rendimento, além, por certo, de observar outras regras, a exemplo do princípio da legalidade. Pela EC n.
19/98, que o acrescentou ao rol dos consignados no art. 37, esse princípio ganhou status
constitucional”151.

Maria Sylvia Di Pietro adverte que “a eficácia que a Constituição exige da Administração não deve
ser confundida com a eficiência das organizações privadas, nem é, tampouco, um valor absoluto diante
dos demais”152 (não se pode tudo em nome da eficiência, sob pena de se comprometer a
segurança jurídica).

“Vale a pena observar, entretanto, que o princípio da eficiência não alcança apenas os serviços públicos
prestados diretamente à coletividade. Ao contrário, deve ser observado também em relação aos serviços
administrativos internos das pessoas federativas e das pessoas a ela vinculadas. Significa que a
Administração deve recorrer à moderna tecnologia e aos métodos hoje adotados para obter a qualidade
total da execução das atividades a seu cargo, criando, inclusive, novo organograma em que se
destaquem as funções gerenciais e a competência dos agentes que devem exercê-las. Atualmente os

149
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros.
150
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
151
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
152
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.

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publicistas têm apresentado vários estudos sobre a questão concernente ao controle da observância do
princípio da eficiência. A complexidade que envolve o tema é compreensível: de um lado, há que se
respeitar as diretrizes e prioridades dos administradores públicos, bem como os recursos financeiros
disponíveis e, de outro, não se pode admitir que o princípio constitucional deixe de ser respeitado e
aplicado. Os controles administrativos (de caráter interno e processado pelos próprios órgãos
administrativos) e legislativo são reconhecidamente legítimos e indubitáveis à luz dos arts. 74 e 70 da
Lei Maior, respectivamente. O controle judicial, entretanto, sofre limitações e só pode incidir quando se
tratar de comprovada ilegalidade. Como tem consagrado corretamente a doutrina, o Poder Judiciário
não pode compelir a tomada de decisão que entende ser de maior grau de eficiência, nem invalidar atos
administrativos invocando exclusivamente o princípio da eficiência. Note-se que a ideia não pretende
excluir inteiramente o controle judicial, mas sim evitar que a atuação dos juízes venha a retratar a
devida interpretação no círculo de competência constitucional atribuída aos órgãos da
Administração”153.

Mais do que referir-se aos atos imputados à pessoa jurídica integrante da Administração
Pública, o princípio da eficiência deve estar voltado sobretudo para a seleção e capacitação
dos agentes públicos, que são as pessoas físicas que naturalmente executam as funções
estatais.

“Resulta evidente que não basta apenas a análise da ação, sem se atentar para o agente. Este é que fala
em nome do órgão. Por consequência, deve agir apenas e tão somente no cumprimento do dever legal.
Daí não ser eficiente o servidor que maltrata o usuário do serviço ou que busca o exercício da atividade
de polícia e é mal atendido. O servidor relapso que não comparece à repartição no horário de trabalho,
que busca atestado médico para não comparecer ao serviço, que frauda o ponto de forma a permitir
maior folga no horário, que não fiscaliza convenientemente a prestação de serviços por parte de
concessionários ou permissionários, deixa de atingir índices razoáveis de eficiência. Contraposto
essencial é que a administração pública estabeleça índices que devem ser buscados no comportamento
do servidor. A exigência de pontos que devem ser obtidos para analisar sua conduta. A reciclagem do
preparo do servidor no tratamento com o público. A busca de informações para prestá-las eficazmente
aos usuários: tudo faz parte do preparo do agente. Este que está em contato permanente com a
população deve procurar mais que o estrito cumprimento do dever legal. Isso não basta. Impõe-se a
cortesia, a urbanidade, o fácil trato, a delicadeza, apanágios que devem ser buscados. Há que se lembrar,
sempre, que o servidor é pago pelos usuários e a eles deve respeito”.154

6.4.5) OUTROS PRINCÍPIOS APONTADOS PELA DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA:

► Princípio da PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE E VERACIDADE

Por força deste princípio, presume-se que o administrador age de acordo com a lei e que os
fatos por ele declarados sejam verdadeiros.

Tal presunção é relativa (juris tantum), isto é, admite prova em contrário, mas impõe a
inversão do ônus da prova a favor da Administração. Não obstante, pensamos existirem
casos em que cabe à Administração demonstrar a validade dos seus atos, por ser ela a única
detentora dos meios de prova para tanto. Nesses casos, a presunção de legitimidade não
deve ser comodamente invocada pela Administração, sob pena de deixar o administrado
completamente vulnerável ao arbítrio dos agentes públicos.
153
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas.
154
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de direito financeiro. São Paulo: RT.

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“Esse princípio, que alguns chamam de princípio da presunção de legalidade, abrange dois aspectos: de
um lado, a presunção de verdade, que diz respeito à certeza dos fatos; de outro, a presunção da
legalidade, pois, se a Administração Pública se submete à lei, presume-se, até prova em contrário, que
todos os seus atos sejam verdadeiros e praticados com observância das normas legais pertinentes. Trata-
se de presunção relativa (juris tantum) que, como tal, admite prova em contrário. O efeito de tal
presunção é o de inverter o ônus da prova. Como consequência dessa presunção, as decisões
administrativas são de execução imediata e têm a possibilidade de criar obrigações para o particular,
independentemente de sua concordância e, em determinadas hipóteses, podem ser executadas pela
própria Administração, mediante meios diretos ou indiretos de coação. É o que os franceses chamam de
decisões executórias da Administração Pública”155.

Em que pese a sua inegável tradição, o princípio merece uma leitura crítica e mais
consentânea ao atual modelo do Estado Democrático de Direito.

Sem dúvida a presunção de legitimidade é um vetor normativo que assegura o regular


funcionamento da máquina administrativa, propiciando que o Poder Público adote as medidas
de força necessárias ao cumprimento de suas ordens e impedindo escusas aleatórias por
parte dos administrados. Contudo, tendo sido concebida no século XIX, ainda sob influência
de concepções não democráticas, a atual vigência do princípio da presunção de legitimidade
demanda uma releitura do instituto (uma filtragem constitucional), adaptando-o ao Estado
Democrático de Direito e aos direitos e garantias fundamentais assegurados pela
Constituição Federal de 1988.

É preciso reconhecer que a presunção de legitimidade somente deve ser invocada pela
Administração nos casos em que não for realmente possível a adoção de um adequado
procedimento de registro dos fatos envolvidos na atividade administrativa. Daí existirem
casos em que cabe à Administração demonstrar a validade dos seus atos, por ser ela a única
detentora dos meios de produção de prova para tanto, não lhe cabendo comodamente
invocar a presunção de legitimidade e deixar o administrado vulnerável ao arbítrio dos
agentes públicos156

► Princípio da HIERARQUIA

A hierarquia é fenômeno que existe no interior de uma entidade administrativa estruturada e


com distribuição e escalonamento de funções entre agentes, sob uma relação de
subordinação. Deste princípio decorrem dois poderes da Administração: poder hierárquico e
poder disciplinar. O poder hierárquico está relacionado com a capacidade de dar ordens,
rever a atuação, delegar e avocar. Já o poder disciplinar se relaciona com o poder de aplicar
sanções.

“Os poderes hierárquico e disciplinar são correlatos, mas inconfundíveis. Enquanto no uso do poder
hierárquico a Administração Pública distribui e escalona (organiza) as suas funções executivas, no
desempenho do poder disciplinar a Administração Pública controla o desempenho dessas funções, bem
como a conduta interna de seus agentes, punindo-os pelas eventuais faltas cometidas” 157.

155
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
156
CARNEIRO NETO, Durval. Processo, jurisdição e ônus da prova no direito administrativo, Salvador: Jus Podivm.
157
FRIEDE, Reis. Lições objetivas de direito administrativo. São Paulo: Saraiva.

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“Em consonância com o princípio da hierarquia, os órgãos da Administração Pública são estruturados
de tal forma que se cria uma relação de coordenação e subordinação entre uns e outros, cada qual com
atribuições definidas em lei. Desse princípio, que só existe relativamente às funções administrativas,
não em relação às legislativas e judiciais, decorre uma série de prerrogativas para a Administração: a de
rever os atos dos subordinados, a de delegar e avocar atribuições, a de punir; para o subordinado surge o
dever de obediência”158.

► Princípio da ESPECIALIDADE

Tem estreita relação com o fenômeno da descentralização administrativa, pelo qual o Estado
busca por lei a criação de pessoas jurídicas administrativas para desempenhar
especificamente atividades por ele transferidas. É a chamada Administração indireta, de que
são exemplos as autarquias, as fundações, as empresas públicas e as sociedades de
economia mista.

Celso Ribeiro Bastos assinala também que mesmo dentro da Administração direta deve
haver o respeito à distribuição de competências conferidas aos órgãos adequados 159.

Assim também escreve Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

“Quando o Estado cria pessoas jurídicas públicas administrativas – as autarquias – como forma de
descentralizar a prestação de serviços públicos, com vistas à especialização de função, a lei que cria a
entidade estabelece com precisão as finalidades que lhe incumbe atender, de tal modo que não cabe aos
seus administradores afastar-se dos objetivos definidos na lei; isto precisamente pelo fato de não terem
a livre disponibilidade dos interesses públicos. Embora esse princípio seja normalmente referido às
autarquias, não há razão para negar sua aplicação quanto às demais pessoas jurídicas, instituídas por lei,
para integrarem a Administração Pública Indireta. Sendo necessariamente criadas ou autorizadas por lei
(conforme norma agora expressa no art.37, incisos XIX e XX, da Constituição), tais entidades não
podem desvirtuar-se dos objetivos legalmente definidos” 160.

► Princípio do CONTROLE ou TUTELA

Não há hierarquia entres as entidades da Administração indireta e a Administração direta.


Todavia, cabe a esta exercer o controle ou tutela administrativa sobre aquelas, também
chamado de supervisão ministerial.

Embora os entes descentralizados estejam fora do poder hierárquico e disciplinar da


Administração centralizada, poderá haver intervenção pelo Poder Público a que se vincula
nos casos de desgarre, de desvio da lei feita pelo extravasamento da sua competência, com
o efeito de corrigir a atuação dessas entidades, colocando-as novamente nos trilhos
estritamente legais com a devida obediência ao já mencionado princípio da especialidade 161.

“Para assegurar que as entidades da Administração Indireta observem o princípio da especialidade,


elaborou-se outro princípio: o do controle ou tutela, em consonância com o qual a Administração
Pública direta fiscaliza as atividades dos referidos entes, com o objetivo de garantir a observância de

158
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
159
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
160
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
161
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva.

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suas finalidades institucionais. Colocam-se em confronto, de um lado, a independência da entidade que


goza de parcela de autonomia administrativa e financeira, já que dispõe de fins próprios, definidos em
lei, e patrimônio também próprio destinado a atingir aqueles fins; e, de outro lado, a necessidade de
controle para que a pessoa jurídica política (União, Estado ou Município) que instituiu a entidade da
Administração Indireta se assegure de que ela está agindo de conformidade com os fins que justificam a
sua criação. A regra é a autonomia; a exceção é o controle; este não se presume; só pode ser exercido
nos limites definidos em lei”.162

Celso Antônio Bandeira de Mello ressalta que “enquanto os poderes do hierarca são presumidos, os
do controlador só existem quando previstos em lei e se manifestam apenas em relação aos atos nela
indicados”.163 Vale dizer, o poder hierárquico é implícito e decorre da própria existência da
relação de subordinação disposta na lei de organização administrativa. Assim, presume-se
que o órgão superior pode controlar o órgão subordinado em tudo aquilo que a lei não vede.
Já o poder de tutela somente pode ser exercido nas hipóteses explicitamente previstas na lei
que criou a entidade da Administração Indireta, pois o que se presume é a autonomia desta.

► Princípio da AUTOTUTELA

Não se confunde com a tutela acima comentada. A autotutela tem a ver com o controle
exercido pela Administração sobre os seus próprios atos. Não está expresso na CF/88; é um
princípio implícito.

A Súmula 473 do STF assim dispõe: “A Administração pode anular seus próprios atos, quando
eivados dos vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por
motivo de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os
casos, a apreciação judicial”.

Diógenes Gasparini ressalta que tal prerrogativa de invalidar ou revogar seus próprios atos
somente se aplica aos atos praticados sob o regime jurídico administrativo, não se
estendendo aos atos e contratos que a Administração praticar sob a égide do Direito
Privado164. Nesses casos a declaração de nulidade somente poderá ser obtida junto ao Poder
Judiciário.

“Enquanto pela tutela a Administração exerce controle sobre outra pessoa jurídica por ela mesma
instituída, pela autotutela o controle se exerce sobre os próprios atos, com a possibilidade de anular os
ilegais e revogar os inconvenientes ou inoportunos, independentemente de recurso ao Poder Judiciário.
É uma decorrência do princípio da legalidade; se a Administração Pública está sujeita à lei, cabe-lhe,
evidentemente, o controle de legalidade. (...) Também se fala em autotutela para designar o poder que
tem a Administração Pública de zelar pelos bens que integram o seu patrimônio, sem necessitar de título
fornecido pelo Poder Judiciário. Ela pode, por meio de medidas de polícia administrativa, impedir
quaisquer atos que ponham em risco a conservação desses bens” 165.

162
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
163
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros.
164
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
165
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.

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► Princípio da CONTINUIDADE da atividade administrativa

Como as necessidades públicas são contínuas, as funções essenciais à coletividade não


podem parar. Daí porque a greve no serviço público se cerca de requisitos especiais a serem
regulamentados em lei específica (CF, art.37, VII).

Da mesma forma, aquele que contrata com a Administração não poderá invocar a seu favor a
exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus), de que trata o
art.1092 do Código Civil. Ainda que a Administração não cumpra a sua parte no contrato
administrativo, o contratante deverá dar continuidade ao serviço contratado, buscando, se for
o caso, uma indenização pelos prejuízos sofridos.

Cretella Júnior afirma que a continuidade “não significa que todos os serviços devem funcionar de
maneira permanente, porque muitos deles são por natureza intermitentes, como, por exemplo, o serviço
público eleitoral, o serviço das comissões de bolsas de estudos, mas significa que o serviço deve
funcionar regularmente, isto é, de acordo com a natureza e conforme o que prescrevem os estatutos que
os organizam”166.

“Por esse princípio entende-se que o serviço público, sendo a forma pela qual o Estado desempenha
funções essenciais ou necessárias à coletividade, não pode parar. Dele decorrem consequências
importantes: 1. a proibição de greve nos serviços públicos; essa vedação, que antes se entendia absoluta,
está consideravelmente abrandada, pois a atual Constituição, no artigo 37, inciso VII, determina que o
direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica; também em outros
países já se procura conciliar o direito de greve com a necessidade do serviço público. Na França, por
exemplo, proíbe-se a greve rotativa que, afetando por escalas os diversos elementos de um serviço,
perturba o seu funcionamento; além disso, impõe-se aos sindicatos a obrigatoriedade de uma declaração
prévia à autoridade, no mínimo cinco dias antes da data prevista para o seu início; 2. necessidade de
institutos como a suplência, a delegação e a substituição para preencher as funções públicas
temporariamente vagas; 3. a impossibilidade, para quem contrata com a Administração, de invocar a
exceptio non adimpleti contractus nos contratos que tenham por objeto a execução de serviço público;
4. a faculdade que se reconhece à Administração de utilizar os equipamentos e instalações da empresa
que com ela contrata, para assegurar a continuidade do serviço; 5. com o mesmo objetivo, a
possibilidade de encampação da concessão de serviço público”167.

► Princípios da RAZOABILIDADE e da PROPORCIONALIDADE

Celso Ribeiro Bastos aponta que o princípio da razoabilidade “consiste na exigência de que os
atos administrativos não sejam praticados apenas com respeito aos ditames quanto a sua formação e
execução, mas que também guardem no seu conteúdo uma decisão razoável entre as razões que os
ditaram e os fins que se procura atingir” 168. Assim sendo, o princípio da razoabilidade impõe
limitações à discricionariedade administrativa, traduzindo o controle de decisões
manifestamente inadequadas para alcançar a finalidade legal.

"O princípio da razoabilidade ganha, dia a dia, força e relevância no estudo do Direito Administrativo
e no exame da atividade administrativa. Sem dúvida, pode ser chamado de princípio da proibição de

166
CRETELLA JUNIOR, José. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense.
167
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
168
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva.

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excesso que, em última análise objetiva aferir a compatibilidade entre os meios e os fins, de modo a
evitar restrições desnecessárias ou abusivas por parte da administração, com lesão aos direitos
fundamentais"169.

Pode-se dizer que a proporcionalidade está contida na razoabilidade; é um de seus


elementos, especificamente no tocante à relação entre meios e fins. É este o seu objeto
específico, de modo que, na prática de um ato administrativo, o Poder Público deverá utilizar
um meio adequado (razoabilidade) e na estrita medida do necessário (proporcionalidade)
para o alcance da finalidade a que se propõe.

“Não cabe, por exemplo, diante de mero início de tumulto administrativo, que pode ser facilmente
debelado com simples exibição de força policial, passar-se de logo a utilizar de instrumentos mortíferos,
como tiros de metralhadoras e coisas do gênero”170.

Nos termos do art. 2º, parágrafo único, VI, da Lei 9.784/99, a Administração deve buscar a
adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em
medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público.

A doutrina costuma apontar três aspectos (ou subprincípios) que compõem o princípio da
proporcionalidade: a adequação (deve haver uma relação de causalidade entre meio e fim,
isto é, o meio deve ser idôneo à produção do fim), necessidade (inexistência de outro meio
mais suave, isto é, menos restritivo a direitos individuais) e proporcionalidade em sentido
estrito (o meio deve produzir mais vantagens do que desvantagens).

“Embora a Lei n.9784/99 faça referência aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade,


separadamente, na realidade, o segundo constitui um dos aspectos contidos no primeiro. Isto porque o
princípio da razoabilidade, entre outras coisas, exige proporcionalidade entre os meios de que se utiliza
a Administração e os fins que ela tem que alcançar. E essa proporcionalidade deve ser medida não pelos
critérios pessoais do administrador, mas segundo padrões comuns na sociedade em que vive; e não pode
ser medida diante dos termos frios da lei, mas diante do caso concreto. Com efeito, embora a norma
legal deixe um espaço livre para decisão administrativa, segundo critérios de oportunidade e
conveniência, essa liberdade às vezes se reduz no caso concreto, onde os fatos podem apontar para o
administrador a melhor solução (cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, in RDP 65/27). Se a decisão é
manifestamente inadequada para alcançar a finalidade legal, a Administração terá exorbitado dos limites
da discricionariedade e o Poder Judiciário poderá corrigir a ilegalidade” 171.

Interessante registrar que o princípio da razoabilidade foi desenvolvido a partir da matriz


norte-americana, como o aspecto substantivo do devido processo legal (substantive due
process of law), que se extrai ao lado do aspecto procedimental (procedural due process of
law). Por isso, nos Estados Unidos, quando se diz que determinada disposição legal viola a
cláusula de razoabilidade, o fundamento para a declaração de sua inconstitucionalidade está
no devido processo legal (em seus aspecto substancial). Já no Brasil, por influência da
doutrina alemã, o aspecto substantivo do devido processo legal costuma ser estudado sob o
prisma do princípio da proporcionalidade.

169
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros.
170
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
171
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.

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Como explica Eduardo Appio, "a concepção de devido processo legal no Brasil é procedimentalista,
ou seja, o Estado deve assegurar ao cidadão a existência e fiel observância de princípios que lhe
garantam que não será privado de seus bens ou liberdade de forma arbitrária. A participação do cidadão
se revela fundamental. O contraditório e a ampla defesa - ambos previstos no art.5º da CF/88 - são uma
decorrência direta da aplicação da cláusula do devido processo procedimental. Já o devido processo
(substantivo) ingressa na jurisprudência dos tribunais brasileiros pela invocação do princípio da
proporcionalidade, o qual tem sido o objetivo de diversos estudos a partir da sua matriz alemã. Os
tribunais brasileiros, contudo, não estabelecem nenhuma distinção sobre a natureza do direito que está
sendo protegido ou mesmo se a proporcionalidade em sentido estrito (um dos subprincípios da
proporcionalidade) se equipara à razoabilidade". 172

Humberto Ávila, por sua vez, critica a doutrina e a jurisprudência que colocam a razoabilidade
e a proporcionalidade praticamente como sinônimos, sem mencionar os critérios de distinção
implicitamente adotados em cada situação. A razoabilidade tem um campo de aplicação mais
abrangente.

Vejamos os ensinamentos do autor:

“O postulado da razoabilidade aplica-se, primeiro, como diretriz que exige a relação das normas gerais
com as individuais do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a normas deve ser aplicada,
quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se
enquadrar na norma geral. Segundo, como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com
o mundo ao qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte empírico e
adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o
fim que ela pretende atingir. Terceiro, como diretriz que exige a relação de equivalência entre duas
grandezas”173.

“O postulado da proporcionalidade aplica-se nos casos em que exista uma relação de causalidade entre
um meio e um fim concretamente perceptível. A exigência de realização de vários fins, todos
constitucionalmente legitimados, implica a adoção de medidas adequadas, necessárias e proporcionais
em sentido estrito. Um meio é adequado quando promove minimamente o fim. Na hipótese de atos
jurídicos gerais a adequação deve ser analisada do ponto de vista abstrato, geral e prévio. Na hipótese de
atos jurídicos individuais a adequação deve ser analisada no plano concreto, individual e prévio. O
controle da adequação deve limitar-se, em razão do princípio da separação dos poderes, à anulação de
meios manifestamente inadequados. Um meio é necessário quando não houver outros meios
alternativos que possam promover igualmente o fim sem restringir na mesma intensidade os direitos
fundamentais afetados. O controle da necessidade deve limitar-se, em razão do princípio da separação
dos Poderes, à anulação do meio escolhido quando há um meio alternativo que, em aspectos
considerados fundamentais, promove igualmente o fim causando menores restrições. Um meio é
proporcional quando o valor da promoção do fim não for proporcional ao desvalor da restrição dos
direitos fundamentais. Para analisá-lo é preciso comparar o grau de intensidade da promoção do fim
com o grau de intensidade da restrição dos direitos fundamentais. O meio será desproporcional se a
importância do fim não justificar a intensidade da restrição dos direitos fundamentais” 174.

172
APPIO, Eduardo. Direito das minorias. São Paulo: RT.
173
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros.
174
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros.

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► Princípio da MOTIVAÇÃO

A Administração deve sempre indicar os fundamentos de fato e de direito de suas decisões


(art. 2o, parágrafo único, VII, da Lei 9.784/99), qualquer que seja a espécie o ato
administrativo (discricionário ou vinculado). Trata-se de formalidade necessária para se
permitir o controle de legalidade.

Celso Antônio Bandeira de Mello salienta que “a motivação deve ser prévia ou contemporânea à
expedição do ato. Em algumas hipóteses de atos vinculados, isto é, naqueles em que há aplicação quase
automática da lei, por não existir campo para interferência de juízos subjetivos do administrador, a
simples menção do fato e da regra de Direito aplicada pode ser suficiente, por estar implícita a
motivação”175.

Antigamente se considerava que o dever de motivação era excepcional e a regra seria a não
motivação, notadamente nos atos em que a autoridade administrativa detivesse certa
liberdade de escolha (atos discricionários). Essa ideia está ultrapassada.

“A motivação é necessária para todo e qualquer ato administrativo, consoante já decidiu o STF (RDP,
34:141). Hoje, com mais razão, essa afirmação é de todo pertinente, pois a Constituição Federal exige
que até as decisões administrativas dos Tribunais sejam motivadas (art.93, X). Daí a correta observação
de Lúcia Valle Figueiredo (Curso de direito administrativo, 3. ed., ver. E atual., São Paulo, Malheiros,
1998, p.43): ‘Ora, se, quando o Judiciário exerce função atípica – a administrativa – deve motivar, como
conceber esteja o administrador desobrigado da mesma conduta?’. Não obstante, tem-se apregoado que
a motivação só é obrigatória quando se tratar de ato vinculado (casos de dispensa de licitação) ou
quando, em razão da lei ou da Constituição, ela for exigida. Nesta última hipótese, não importa a
natureza vinculada ou discricionária do ato, ela é indispensável à sua legalidade. Em princípio, pode-se
afirmar que a falta de motivação ou a indicação de motivos falsos ou incoerentes torna o ato nulo,
conforme têm entendido nossos Tribunais (RDA, 46:189 e RDA 48:122). No âmbito federal essa
discussão não mais se coloca, pois a Lei 9784/99, em seu art.50, prevê a necessidade de motivação dos
atos administrativos sem fazer qualquer distinção entre os vinculados e os discricionários, embora
mencione nos vários incisos desse dispositivo quando a motivação é exigida. Referidos incisos, no
entanto, mencionam situações que podem estar relacionadas tanto a atos administrativos vinculados
como a discricionários, o que reforça o entendimento de que ambos devem ser motivados” 176.

Juarez Freitas considera o dever de motivação como um dos pilares da boa Administração
Pública, “verdadeiro escudo do cidadão contra arbitrariedades e desvios invertebrados”. 177

Somente não precisarão ser motivados os atos “de mero expediente, os ordinatórios de feição
interna e, ainda, aqueles que a Carta Constitucional admitir como de motivação dispensável”. 178 De
fato, os atos de mero expediente e os ordinatórios são aqueles mais simples da rotina
administrativa, sem maiores repercussões e que, portanto, não costumam atingir direitos de
terceiros, razão pela qual se lhes dispensa a motivação. Outrossim, há casos em que a CF/88
autoriza expressamente que o agente público promova escolhas sem precisar indicar as

175
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros.
176
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva.
177
FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. São Paulo: Malheiros.
178
FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. São Paulo: Malheiros.

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razões da sua decisão, como acontece v.g. na nomeação para cargo de confiança. Fora daí,
porém, a regra deve ser a motivação.

Maria Sylvia Di Pietro destaca que a motivação pode se dar de variados modos:

"A motivação, em regra, não exige formas específicas, podendo ser ou não concomitante com o ato,
além de ser feita, muitas vezes, por órgão diverso daquele que proferiu a decisão. Frequentemente, a
motivação consta de pareceres, informações, laudos, relatórios, feitos por outros órgãos, sendo apenas
indicados como fundamento de decisão. Nesse caso, eles constituem a motivação do ato, dele sendo
parte integrante"179.

Portanto, em alguns casos a motivação pode se dar de modo indireto, por simples referência
a algum parecer que tenha sido emitido. É a chamada motivação aliunde, que é “aquela que
ocorre quando a autoridade profere a decisão na qual a motivação consta de ato anterior no processo
administrativo, como um parecer de órgão consultivo, com o qual concorda. A Lei do Processo
Administrativo faz referência expressa a esse tipo de motivação (Lei 9.784/99, art.50, §1º)”. 180

► Princípio da SEGURANÇA JURÍDICA

No campo administrativo, o princípio da segurança jurídica busca permitir tornar previsível a


atuação estatal, garantindo a estabilidade da ordem jurídica.

O art. 2o, parágrafo único, XIII, da Lei 9.784/99 prevê que a interpretação da norma
administrativa deve ocorrer da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que
se dirige, vedada a aplicação retroativa de nova interpretação, em respeito à boa-fé dos
administrados.

Celso Antônio diz que, “por força mesmo deste princípio, (conjugadamente com os da presunção de
legitimidade dos atos administrativos e da lealdade e boa-fé), firmou-se o correto entendimento de que
as orientações firmadas pela Administração em dada matéria não podem, sem prévia e pública notícia,
ser modificadas em casos concretos para fins de sancionar, agravar a situação dos administrados ou
denegar-lhes pretensões, de tal sorte que só se aplicam aos casos ocorridos depois de tal notícia” 181.

Di Pietro também ressalta a importância deste princípio:

“O princípio se justifica pelo fato de ser comum, na esfera administrativa, haver mudança de
interpretação de determinadas normas legais, com a consequente mudança de orientação, em caráter
normativo, afetando situações já reconhecidas e consolidadas na vigência de orientação anterior. Essa
possibilidade de mudança de orientação é inevitável, porém gera insegurança jurídica, pois os
interessados nunca sabem quando a sua situação será passível de contestação pela própria
Administração Pública. Daí a regra que veda a aplicação retroativa. O princípio tem que ser aplicado
com cautela, para não levar ao absurdo de impedir a Administração de anular atos praticados com
inobservância da lei. Nesses casos, não se trata de mudança de interpretação, mas de ilegalidade
declarada retroativamente, já que os atos ilegais não geram direitos. A segurança jurídica tem muita
relação com a ideia de respeito à boa-fé. Se a Administração adotou determinada interpretação como a
correta e a aplicou a casos concretos, não pode depois vir a anular atos anteriores, sob o pretexto de que

179
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
180
PRADO, Leandro C.; TEIXEIRA, Patrícia Carla de Farias. 1001 questões comentadas de Direito Administrativo. São Paulo: Método.
181
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros.

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os mesmos foram praticados com base em errônea interpretação. Se o administrado teve reconhecido
determinado direito com base em interpretação adotada em caráter uniforme para toda a Administração,
é evidente que a sua boa-fé deve ser respeitada. Se a lei deve respeitar o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada, por respeito ao princípio da segurança jurídica, não é admissível que o
administrado tenha seus direitos flutuando ao sabor de interpretações jurídicas variáveis no tempo. Isso
não significa que a interpretação da lei não possa mudar; ela frequentemente muda como decorrência e
imposição da própria evolução do direito. O que não é possível é fazê-la retroagir a casos já decididos
com base em interpretação anterior, considerada válida diante das circunstâncias do momento em que
foi adotada”182.

Há inúmeros julgados do STF prestigiando o vetor de segurança jurídica, com diversos focos
de significação, por aplicação de vários institutos jurídicos nele inspirados: decadência;
prescrição; preclusão; coisa julgada; direitos adquiridos; ato jurídico perfeito;
imodificabilidade, por ato unilateral da Administração, de certas situações jurídicas subjetivas
previamente definidas em ato administrativo; adstrição às formas processuais; irretroatividade
da lei.

► Princípio da PROTEÇÃO À CONFIANÇA e BOA-FÉ OBJETIVA

Também denominado princípio da “confiança legítima”, decorre do princípio da segurança


jurídica examinado no tópico anterior.

Diz respeito à continuidade das leis, à confiança dos indivíduos na subsistência das normas.
Isso não protege genericamente os cidadãos contra qualquer alteração legal, pois cada
situação terá a peculiaridade para detectar, ou não, a confiança suscitada.

O STF já considerou que a segurança jurídica não obsta que lei nova ou ato administrativo
conforme situações jurídicas, desde que resguardado o princípio da legalidade, pois não
limita de modo absoluto o poder de conformação do legislador. Apresenta-se mais ampla que
a preservação dos direitos adquiridos, porque abrange direitos que não são ainda adquiridos,
mas se encontram em vias de constituição ou suscetíveis de se constituir; também se refere à
realização de promessas ou compromissos da Administração que geraram, no cidadão,
esperanças fundadas; visa, ainda, a proteger particulares contra alterações normativas que,
mesmo legais, são de tal modo abruptas e radicais que suas consequências revelam-se
chocantes.

René Chapus salienta que esse princípio, apesar de ainda não consagrado explicitamente no
direito francês, vem sendo aos poucos embasando a jurisprudência administrativa183. Judith
Martins-Costa ressalta que no Brasil o estudo do tema encontra importante contribuição em
Almiro do Couto e Silva, ao invocá-lo como vetor de limitação ao poder de revogar, bem como
de flexibilização dos efeitos da decretação de nulidade de atos administrativos, na linha do
que escreveu Hauriou já na década de 20, e, no Brasil, Miguel Reale (Revogação e
anulamento do ato administrativo)184.

“Tradicionalmente inserido no âmbito do direito privado, o princípio da boa-fé objetiva também se


estende ao direito público, atuado como cânone hermenêutico e como limite ao exercício de posições

182
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas.
183
CHAPUS, René. Droit administratif général. Paris: Montchrestien, t. 1.
184
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais.

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subjetivas. Nesse contexto, a atuação do poder público deve respeitar a boa-fé, pautando-se por
lealdade, confiança, moralidade, coerência e respeito às legítimas expectativas geradas para o cidadão.
(...) Caso de verifique a violação do princípio da boa-fé objetiva em determinada situação fática, será
possível, em tese, cogitar de eventual responsabilidade do Estado, a qual dependerá de uma análise
criteriosa do caso concreto e da comprovação dos danos que efetivamente foram causados por tal
violação, bem como a imputação destes danos ao Estado”.185

“Os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança passaram a constar de forma expressa
no art. 54, da Lei nº 9784, de 29.1.1999, nos seguintes termos: ‘O direito da Administração de anular os
atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em 5 (cinco) anos,
contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé’. A norma, como se pode observar,
conjuga os aspectos de tempo e boa-fé, mas se dirige essencialmente a estabilizar relações jurídicas pela
convalidação de atos administrativos inquinados de vício de legalidade. É certo que a jurisprudência
apontava alguns casos que foram convalidadas situações jurídicas ilegítimas, justificando-se a
conversão pela ‘teoria do fato consumado’, isto é, em certas ocasiões melhor seria convalidar o fato do
que suprimi-lo da ordem jurídica, hipótese em que o transtorno seria de tal modo expressivo que
chegaria ao extremo de ofender o princípio da estabilidade das relações jurídicas.” 186

“A segurança jurídica é entendida como um conceito ou princípio jurídico que se ramifica em duas
partes, uma de natureza objetiva e outra de natureza subjetiva. A primeira, de natureza objetiva, é
aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado até mesmo quando estes se
qualifiquem como atos legislativos. Diz respeito, portanto, à proteção ao direito adquirido, ao ato
jurídico perfeito e à coisa julgada. (...) A outra, de natureza subjetiva, concerne à proteção à confiança
das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de
sua atuação. Modernamente, no direito comparado, a doutrina prefere admitir a existência de dois
princípios distintos, apesar das estreitas correlações existentes entre eles. Falam os autores, assim, em
princípio da segurança jurídica quando designam o que prestigia o aspecto objetivo da estabilidade das
relações jurídicas, e em princípio da proteção à confiança, quando aludem ao que atentam para o
aspecto subjetivo. Este último princípio (a) ”impõe ao Estado limitações na liberdade de alterar sua
conduta e de modificar atos que produziriam vantagens para os destinatários, mesmo quando ilegais, ou
(b) atribui-lhe consequências patrimoniais por essas alterações, sempre em virtude da crença gerada nos
beneficiários, nos administrados ou na sociedade em geral de que aqueles atos eram legítimos, tudo
fazendo razoavelmente supor que seriam mantidos.”187

► Princípio do CONTROLE JUDICIAL dos Atos Administrativos

A legalidade de todos os atos administrativos pode ser objeto de controle não apenas pela
própria Administração Pública (princípio da autotutela), mas também pelo Poder Judiciário, a
quem cabe sempre a palavra final, com efeito de coisa julgada, nos litígios envolvendo a
Administração.

O art.5º, XXXV, da CF/88 reza que toda lesão ou ameaça de lesão a direito pode ser
apreciada pelo Judiciário. O direito brasileiro adotou o sistema inglês de jurisdição única,
segundo o qual apenas os órgãos que integram o Poder Judiciário detêm competência para
exercer tipicamente a função jurisdicional, não existindo, entre nós, e ao contrário do sistema
185
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de direito financeiro. São Paulo: RT.
186
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas.
187
COUTO E SILVA, Almiro do Couto. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da
administração pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo adminis trativo da
União. RDA nº 237.

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francês, tribunais administrativos com essa finalidade específica (contencioso administrativo).


Logo, as decisões da Administração Pública não fazem coisa julgada em relação aos
particulares por ela atingidos, podendo estes, querendo, acessar ao Poder Judiciário visando
à alteração do posicionamento da Administração.

“Todo ato administrativo, seja ele vinculado ou discricionário, está sujeito a controle de legalidade por
parte do Judiciário. Isso significa que vige entre nós o sistema da jurisdição única ou sistema inglês,
que se contrapõe ao sistema do contencioso administrativo ou sistema francês. No Direito brasileiro,
cumpre ao Poder Judiciário, em sede definitiva, o controle tanto dos atos dos particulares e como dos
atos administrativos”188.

► Princípio da OBRIGATORIEDADE DO DESEMPENHO da Atividade Administrativa

Os agentes da Administração não agem por direito, mas sim por dever, segundo a finalidade
legal que justifica o poder que exercem e as prerrogativas públicas. Não dispondo do
interesse público (princípio da indisponibilidade), os administradores não podem se esquivar
do cumprimento das suas obrigações funcionais.

“A atividade administrativa constitui um dever para os sujeitos da Administração Pública. É obrigatório


o desempenho da função ou atividade administrativa em razão da legalidade que conforma toda a
atuação da Administração Pública. Assim, esta deverá atuar, exercer a sua função, não podendo
escolher ou optar se atuará, ou não”189.

► Princípio da RESPONSABILIDADE do Estado

O art. 37, §6º, da Constituição Federal de 1988 prevê que “as pessoas jurídicas de direito público
e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderá pelos danos que seus agentes, nessa
qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo
ou culpa”.

Reconhece-se assim, como princípio constitucional expresso, a responsabilidade do Estado


por danos causados aos administrados.

O ilustre jurista português J. J. Gomes Canotilho assim discorre sobre o princípio da


responsabilidade da Administração:

“Os particulares lesados nos seus direitos, designadamente nos seus direitos, liberdades e garantias, por
ações ou omissões de titulares de órgãos, funcionários ou agentes do Estado e demais entidades
públicas, praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício, podem demandar o
Estado – Responsabilidade do Estado –, exigindo uma reparação dos danos emergentes desses atos”.190

Não se pode invocar a soberania do Estado a pretexto de não se admitir essa


responsabilidade, restando inteiramente superada a ideia de irresponsabilidade que vingou
na fase do absolutismo. A doutrina aponta a evolução das teorias que procuram delimitar os
parâmetros jurídicos dessa responsabilidade, desde as primeiras teorias civilistas calcadas na
responsabilidade subjetiva nos moldes do direito privado, passando pela teoria publicistas

188
CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de direito administrativo. Salvador: JusPodivm.
189
CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de direito administrativo. Salvador: JusPodivm.
190
CANOTILHO, J. J., Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina.

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baseadas na ideia de culpa administrativa, avançando até a teoria publicista do risco


administrativo, pregando a responsabilidade objetiva.

Celso Antônio Bandeira de Mello defende que a responsabilidade do Estado aplica-se


indistintamente a quaisquer das funções públicas, não estando restrita a danos provenientes
de atos administrativos. Para ele, aplica-se a responsabilidade objetiva para atos comissivos
e a subjetiva para atos omissivos, critério que se aplica também às pessoas jurídicas de
direito privado quando prestadoras de serviços públicos191. Mas o tema encontra divergências
doutrinárias, que serão oportunamente abordadas em tópico específico sobre o assunto.

► Princípio da PRECAUÇÃO

Oriundo do Direito Ambiental, o princípio da precaução vem sendo aplicado para se destacar
o dever do administrador público de adotar medidas de prevenção diante de potenciais danos
que possam ser causados aos administrados, notadamente em atividades de risco.

Acerca deste princípio, escreve Carvalho Filho:

"(...) em virtude de modernas tendências de estudiosos, de desenvolver a ideia de que é necessário


evitar a catástrofe antes que ela ocorra, parece-nos oportuno tecer breve comentário sobre o 'princípio
da precaução', que, embora não expresso tem sido reconhecido como inspirador das condutas
administrativas (...) atualmente, o axioma tem sido invocado também para a tutela do interesse público
em ordem a considerar que, se determinada ação acarreta risco a coletividade, deve a administração
adotar postura de precaução para evitar que eventuais danos acabem por concretizar-se. Semelhante
cautela é de todo conveniente na medida em que se sabe que alguns tipos de danos, por sua gravidade e
extensão são irreversíveis, ou no mínimo de dificílima reparação"192.

Deveras, há setores de atuação administrativa em que desponta um amplo dever objetivo de


cuidado por parte do Poder Público. No caso de danos ambientais, considerando-se o dever
da Administração Pública na fiscalização e repressão a condutas lesivas ao meio-ambiente
(CF/88, art. 225), a jurisprudência tem sido contundente no sentido de que a responsabilidade
objetiva por dano ambiental há de seguir a teoria do risco integral, sem abertura para
hipóteses excludentes, consoante linha de entendimento já consolidada pelo Superior
Tribunal de Justiça ao decidir, em sede de julgamento de recurso repetitivo, os Temas 438 e
707.

No Tema 438, discutiu-se a presença de culpa exclusiva de terceiro como excludente de


responsabilidade, o que importaria na não aplicação da teoria do risco integral em acidente
ambiental. O STJ firmou a seguinte tese: "A alegação de culpa exclusiva de terceiro pelo acidente
em causa, como excludente de responsabilidade, deve ser afastada, ante a incidência da teoria do risco
integral e da responsabilidade objetiva ínsita ao dano ambiental (art. 225, § 3º, da CF e do art. 14, § 1º,
da Lei nº 6.938/81), responsabilizando o degradador em decorrência do princípio do poluidor-
pagador"193.

No Tema 707, discutiu-se questão referente à responsabilidade civil em caso de acidente


ambiental (rompimento de barragem) ocorrido nos Municípios de Miraí e Muriaé, no Estado

191
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros.
192
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas.
193
STJ, REsp 1114398, rel. Min. Sidnei Beneti, DJ de 16/02/2012.

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de Minas Gerais. O STJ firmou a seguinte tese: "a) a responsabilidade por dano ambiental é
objetiva, informada pela teoria do risco integral, sendo o nexo de causalidade o fator aglutinante que
permite que o risco se integre na unidade do ato, sendo descabida a invocação, pela empresa
responsável pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade civil para afastar sua obrigação de
indenizar; b) em decorrência do acidente, a empresa deve recompor os danos materiais e morais
causados; c) na fixação da indenização por danos morais, recomendável que o arbitramento seja feito
caso a caso e com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa, ao nível socioeconômico do autor,
e, ainda, ao porte da empresa, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e
jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de sua experiência e bom senso, atento à realidade da
vida e às peculiaridades de cada caso, de modo a que, de um lado, não haja enriquecimento sem causa
de quem recebe a indenização e, de outro, haja efetiva compensação pelos danos morais experimentados
por aquele que fora lesado"194.

Dito entendimento tem sido comumente aplicado por juízes e tribunais a empresas privadas
que, explorando atividades econômicas com potencial risco de danos ambientais, atraem
para si a responsabilidade civil por força do princípio do poluidor-pagador. Ao lado disso, há
casos em que a lesão ao meio ambiente é imputada a pessoas jurídicas de direito público ou
a empresas prestadoras de serviços públicos, seja por ação ou por omissão dos seus
agentes. Nesse caso, o dano ambiental pode decorrer de fato diretamente causado pelo
Poder Público (quando, por exemplo, um ente federado executa obra sem o devido
licenciamento ambiental da competência de outro ente federado) ou, ainda, por conduta
omissiva consistente no descumprimento do dever de fiscalização.

194
STJ, RESP 1.374.284, rel. Min. Luís Felipe Salomão, DJ de 05/09/2014.

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