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A REFORMA, LUTERO
E OS ANABATISTAS:
INTOLERÂNCIA
RELIGIOSA?*
Wilhelm Wachholz**
Resumo: Em 1521, Lutero foi pressionado a se retratar de seus escritos sob a acusação
de heresia. Ele argumentou a partir de sua consciência cativa à Palavra de
Deus, razão pela qual não poderia renunciar aos seus escritos. Em 1536, os
reformadores protestantes de Wittenberg, Martim Lutero, Felipe Melanchthon,
João Bugenhagen e Caspar Cruciger assinaram o parecer “Se príncipes cris-
tãos têm o dever de coibir as seitas anabatistas com punição corporal e com a
espada” (1536), favorável à pena de morte de “anabatistas”. A Reforma Pro-
testante foi a “mãe da tolerância” ou foi ela tão intolerante quanto a Igreja
cristã medieval?
T
erá sido a Reforma Protestante a “mãe da tolerância” ou foi ela tão intolerante
quanto a Igreja cristã medieval? Respostas ao tema da tolerância e intolerância
da Reforma Protestante não são unânimes. Lindberg (2001, p. 239), por exem-
plo, afirma que “a tolerância não foi a especialidade ou o forte das Reformas”1.
Para Schultze (2013, p. 1-2), por um lado, o século XVI, tanto em contextos ca-
tólico-romanos quanto também já protestantes, ainda refletia a história das per-
seguições e intolerâncias medievais. Por outro lado, o tema da tolerância religio-
sa foi surgindo, propriamente, junto com a Reforma. O contexto da Reforma foi
o do humanismo e surgimento de diversos movimentos político-religiosos que
pleiteavam a pluralidade religiosa e os direitos à vida. Ainda assim, o pensamen-
–––––––––––––––––
* Recebido em: 07.10.2019. Aprovado em: 10.03.2020.
** Doutor em Teologia (Faculdades EST). Professor no Programa de Pós-Graduação em
Teologia (Faculdades EST). E-mail: wachholz@est.edu.br
Os “anabatistas” receberam este rótulo por defenderem o batismo de adultos, o que ti-
nha por consequência a invalidação do batismo de infantes. Eles constituíam, em
verdade, o ramo da Reforma Radical. A Reforma Radical era um movimento de
difícil caracterização e não encontra consenso na pesquisa2. Entre este ramo da
Reforma se encontravam grupos heterogêneos, como, por exemplo, os profetas
de Zwickau3, que rejeitavam o batismo de crianças e que iniciaram o movimen-
to iconoclasta em Wittenberg nos anos de 1521/1522 sob Andreas Bodelstein
(aprox. 1480-1541), conhecido como Karlstadt4. Incluídos ainda neste ramo da
Reforma podem ser os próprios dissidentes de Zurique combatidos por Zwínglio5
e que deram original ao anabatismo propriamente dito, os líderes que pretende-
ram assumir a cidade de Münster (1533/1535), provocando desfecho sangrento6,
e o nome de Menno Simons (1496-1561), cujos legados estão presentes na igreja
(menonita) marcadamente pacifista7. O próprio Lutero (apud LINDBERG, 2001,
p. 239) evidencia a grande pluralidade do movimento da Reforma Radical, ex-
pressando não ter clareza sobre o pensamento anabatista:
A menos que eu seja convencido pelo testemunho das Escrituras ou pela razão
manifesta [...], eu estou preso pelas passagens da Escritura que citei e minha
consciência é cativa da Palavra de Deus. Eu não posso e não irei retratar-me de
nada, pois não é seguro nem certo ir contra a própria consciência. [Não posso
de outro modo, cá estou.] que Deus me ajude. Amém” (LUTERO apud LIND-
BERG, 2001, p. 111).
O assunto na Assembleia de Worms, segundo Schultze (2013, p. 3), não foi propria-
mente sobre tolerância ou intolerância. A questão girava em torno do reco-
nhecimento dos argumentos de uma consciência cativa à Palavra de Deus e,
como tal, implicava em fomento à tolerância. Na Assembleia de Worms, as
maiores autoridades eclesiásticas e políticas foram confrontadas publicamen-
te. Portanto, não se tratou somente sobre o conteúdo teológico em debate, mas
da tolerância da exposição e confronto público das autoridades. O resultado foi
que as autoridades não aceitaram ser confrontadas, razão pela qual Lutero foi
considerado “passarinho livre”, ou seja, poderia ser caçado por qualquer ci-
dadão do Império, pois perdera as garantias cidadãs. Em consequência disso,
o próprio Lutero (1996, p. 103-104) escreveria sobre “Da autoridade secular,
até que ponto se lhe deve obediência” (1523), assim:
Aliás, nada melhor para fortalecer a fé e a heresia do que combatê-los com pura
violência, sem a palavra de Deus. Pois é certo que tal poder não se apóia em
causa justa e que age contra o direito, porque procede sem a palavra de Deus e
sabe apenas recorrer à força bruta, como o fazem os animais irracionais. Tam-
bém nos assuntos terrenos não se pode agir com a violência, sem que antes a
injustiça tenha sido comprovada em processo judicial. Quanto menos é possível
agir com violência nessas coisas espirituais, sem direito nem palavra de Deus.
[...] Com violência não mudarás nada, pelo contrário, somente a fortalecerás.
Que proveito terás se fortaleceres a heresia nos corações e a enfraqueceres
apenas exteriormente na língua, forçando [as pessoas] a mentir? A palavra de
Deus, porém, ilumina os corações, e com isso toda a heresia e erro saem do
coração por si mesmos.
O combate de Lutero, segundo Schultze (2013, p. 3-5), dizia respeito à corrupção na Igreja,
à comercialização da salvação através das indulgências, à falsificação do Evange-
lho através da liturgia da Santa Ceia. Mas, nestes casos, se tratavam de questões
[...] a heresia jamais pode ser combatida com a violência. Para isso se precisa
de outro jeito. Isso não é briga ou questão que se resolve com a espada. Aqui a
arma é a palavra de Deus. Se essa não tiver êxito, certamente o poder secular
também não o terá, mesmo que inunde o mundo de sangue. Assunto é assunto
espiritual que não se pode destruir com ferro, nem queimar pelo fogo, nem afo-
gar em água. Para isso existe apenas a palavra de Deus; esta o faz, como diz
Paulo em 2 Co 10.4s.10
No ano seguinte, em 1524, na polêmica com Tomás Müntzer (aprox. 1491-1525)11, Lu-
tero escreveria “Carta aos Príncipes da Saxônia sobre o Espírito Revoltoso”.
Também neste escrito, ainda que em tom bastante polêmico, não pleiteou por
consequências legais contra os “revoltosos”. Segundo Lutero (1996, p. 296)12:
‘Se Cristo está presente, se ele próprio fala e se ele batiza, por que a fé e o Espí-
rito não viriam a uma criança pelas palavras e pelo batismo que ele oferece, do
mesmo modo como aconteceu com João Batista?’ A palavra de Deus não retorna
a ele sem efeito. O próprio fato da fé das crianças pode ser estabelecido, segundo
Lutero, ‘ainda que nós não saibamos como elas crêem ou de que natureza é a sua
fé. A isso se adiciona a atitude de Jesus em relação às crianças. Acolheu-as e apre-
sentou-as como exemplo. As crianças foram conduzidas a Cristo’, para que a sua
palavra e a sua obra delas se apossassem. Nessa perspectiva, Lutero não deixou
de evocar o paralelismo com a circuncisão que também concernia às crianças.
No entanto, poder-se-ia objetar que Cristo não ordenou batizar crianças! Em
realidade, respondeu Lutero, ele não se limitou a uma categoria de pessoas, mas
ordenou batizar todos os gentios.
[...] em grau crescente dos escritos de Lutero a partir de 1520 [...] impõe-se, na
retrospectiva, a seguinte suposição: Depois que Lutero, em sua nova compreen-
são de palavra e sacramento, tomou consciência da mediação constitutivamente
secular – não apenas negativa, mas positiva – do espiritual, evidencia-se para
ele, em sentido positivo, o peso espiritual de tudo o que é secular [...]
A partir da fé por força do Batismo único de todos os cristãos, Lutero conside-
rava os estados [ofícios] seculares dotados de uma dignidade que eles, em todo
caso “ideologicamente”, não tinham antes disso e, por essa razão, também de
fato os tinhas apenas de modo restrito.
Schultze (2013, p. 10) observa que o Sacro Império Romano Germânico é concebido
como corpus Christianum, no qual judeus têm um status distintos e são tolera-
dos, mas não “pagãos” e “ateus”. Aparentemente, Lutero, mais do que Melan-
chthon, tinha consciência da inconsequência desta lógica. Os reformadores,
contudo, se mantiveram presos à lógica tradicional do corpus Christianum
como fundamento para a vida sócio-política. E, no contexto desta lógica, o que
era considerado doutrina falsa não era tratado como simples diferença doutri-
nária, mas ameaça ao consenso fundamental da sociedade cristã.
Um novo capítulo sobre o tema da tolerância e diversidade religiosa no contexto do
Império Alemão ocorreria somente em 1555 com o tratado de Paz Religiosa de
Augsburgo. Após várias décadas de tentativas de afirmação da Reforma, nem a
velha Igreja nem a nova doutrina prevaleceram. A Paz Religiosa de Augsburgo
definiu que deveria haver unidade confessional num mesmo território. Não
cabia, contudo, ao Império, mas a cada território estabelecer a unidade confes-
CONCLUSÃO
Lutero havia afirmado que não cabia ao Estado reger em questões de consciência. Com
isso, ele abriu as portas para a neutralidade por parte do Estado em questões de
religião. Os reformadores – ele próprio! – contudo, não se mantiveram coeren-
tes a este princípio. Nas palavras de Hermelink (1981, p. 42), podemos afirmar
que “também as igrejas da Reforma estavam convictas de que fundamental-
mente poderia haver só uma única forma de igreja – a qual se considerava
concretizada na respectiva igreja própria”. A exigência de liberdade religiosa
por parte dos anabatistas resultou em perseguições, e muitos se tornaram már-
tires. A muitos somente restou emigrarem para a Holanda, Polônia e Romênia
(SCHULTZE, 2013, p. 11).
Fischer (2006, p. 46) define como “injustiça que a Reforma – toda ela! cometeu contra
os batistas”. Conforme ele, “[...] segundo os critérios atuais, pode-se questio-
nar sua atitude em relação à minoria dos batistas, também a partir do Evange-
lho”. Hermelink (1981, p. 43), de forma semelhante, afirma que a “unidade em
Cristo” contrasta com a “discórdia como igrejas”, manifestado pelo “fardo da
separação” como “resultado de uma história cheia de tensões” que, como tal é
“pecado” e “contra o pecado apenas resolve o perdão”.
Esta “história cheia de tensões” move a perguntar: havia consciência possível de to-
lerância? Tentemos responder com dois exemplos, ainda que nosso objetivo
não seja o que avaliar o conhecimento e a força de seus argumentos à época da
Reforma. Em todo caso, à época da Reforma havia franceses que defendiam a
liberdade religiosa bem como movimentos espiritualistas que concebiam um
ecumenismo com base na experiência religiosa. Entre estes, pode ser desta-
cado Sebastião Franck (apud LINDBERG, 2001, p. 433), que afirmou: “Tenho
meus irmãos entre os turcos, judeus, papistas e sectários ou continuem sendo-o;
ao findar do dia eles serão chamados para dentro da vinha e receberão o mes-
mo salário como nós”. O outro exemplo pode ser buscado na Reforma de Ge-
nebra no caso de Miguel Serveto. Após a execução de Serveto sob acusação de
heresia, Calvino escreveu sua “Defesa da fé ortodoxa”, defendendo que, em
casos de heresia, sentimentos humanitários não podem sobrepor-se à defesa
da glória de Deus. Contra Calvino, o diretor da escola de Genebra Sebastião
Castellio (apud LINDBERG, 2001, p. 322) respondeu, através de “Acerca dos
Abstract: In 1521 Luther was pressured to retract his writings on charges of heresy. He
argued from his conscience captive to the Word of God, which is why he could
not renounce his writings. In 1536 Protestant Reformers of Wittenberg, Martin
Luther, Felipe Melanchthon, John Bugenhagen, and Caspar Cruciger signed
the position paper on “If Christian princes have a duty to restrain Anabaptist
sects with corporal punishment and the sword” (1536), favorable toward the
death penalty of “Anabaptists”. Was the Protestant Reformation the „mother
of tolerance“ or was it as intolerant as the medieval Christian church?
Notas
1 Veja também Bayer (2007, p. 433).
2 Hermelink (1981, p. 39-41) subdivide o grupo em três correntes principais: 1) Entusiastas,
isto é, místicos especulativos, indivíduos “cheios do Espírito”, que atua no ser humano pela
“luz interior; 2) Antitrinitários, isto é, que combatem a doutrina da Trindade, defendendo
em seu lugar a “unitária” (entre os líderes, se encontrava Miguel Serveto) e, 3) Anabatistas,
propriamente ditos, isto é, aqueles que realizavam rebatismo como sele da fé individual.
3 Zwickau era uma cidade ao sul do Saxônia Eleitoral, centro industrial do vestuário. A cidade
tinha história anterior de tensões sociais entre as classes ricas e pobres e da influência de
valdenses e hussitas, o que contribuiu para simpatia pelas ideias reformatórias de Lutero.
A partir de maio de 1520, Tomás Müntzer atraiu descontentes da cidade pela sua pregação.
Müntzer foi expulso da cidade em abril do ano seguinte. Durante o período que atuou em
Zwickau, Müntzer apoiou na difusão das ideias religiosas do fabricante de roupas Nicolau
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