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Estudos no Novo Testamento 1 1

Estudos no Novo Testamento I

Evangelhos e Atos

1º. Semestre de 2.017

Prof. Me. Sandro Pereira

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Estudos no Novo Testamento 1 2

SUMÁRIO

I. A PALESTINA DO SÉCULO I a.C. ...................................................................................4


I.1. Contexto político e social do Novo Testamento ................................................................5
I.1.1. Antecedentes do século I d.C. .....................................................................................5
I.1.1.1. Período Grego .........................................................................................................6
I.1.1.2. Os Macabeus ...........................................................................................................7
I.1.1.3. Período Romano ......................................................................................................8
I.1.2. O século I d.C. ...........................................................................................................9
I.1.2.1. A política romana da Judeia ................................................................................... 11
I.1.2.2. Aspectos Econômicos ............................................................................................ 12
I.1.2.2.1. A pirâmide social................................................................................................ 12
I.1.2.3. Aspectos do Mundo Religioso ...............................................................................14
I.1.2.4. Filosofias greco-romanas ....................................................................................... 15
I.2. As Instituições religiosas e os partidos político-religiosos ...............................................16
I.2.1. O Templo ................................................................................................................. 16
I.2.2. A sinagoga ...............................................................................................................17
I.2.3. O Sinédrio ................................................................................................................ 19
I.2.4. Fariseus .................................................................................................................... 20
I.2.5. Saduceus .................................................................................................................. 20
I.2.6. Zelotes ..................................................................................................................... 21
I.2.7. Essênios ................................................................................................................... 21
I.2.8. Samaritanos ..............................................................................................................22
II. EVANGELHOS: QUESTÕES INTRODUTÓRIAS ......................................................... 23
II.1. Conceito teológico ........................................................................................................ 23
II.2. Estágios da formação do evangelho ...............................................................................24
II.3. A Crítica das Formas ..................................................................................................... 26
II.3.1. Categorias ou Gêneros ............................................................................................ 27
III. A QUESTÃO DOS EVANGELHOS SINÓTICOS ......................................................... 31
III.1. A Crítica das Fontes ..................................................................................................... 31
III.2. As semelhanças nos Sinóticos ...................................................................................... 33
III.3. As diferenças nos Sinóticos .......................................................................................... 33
III.4. Inventário .................................................................................................................... 34
III.5. A Crítica dos Evangelhos ............................................................................................. 36
III.5.1. Hipóteses de origem dos Evangelhos canônicos ..................................................... 36
III.5.1.1. Hipótese de que Mateus foi o primeiro Evangelho e foi usado por Lucas ............ 36
III.5.2. Hipótese baseada na prioridade de Marcos ............................................................. 36
III.5.3. A Crítica da Redação ............................................................................................. 38
III.5.3.1. Propósitos da Crítica da Redação ........................................................................ 38
III.5.3.2. Principais Características .................................................................................... 38
IV. O EVANGELHO SEGUNDO MARCOS ....................................................................... 40
IV.1. Questões Históricas ..................................................................................................... 40
IV.1.1. Autoria .................................................................................................................. 40
IV.1.2. Data....................................................................................................................... 41
IV.1.3. Lugar de Composição ............................................................................................ 42
IV.1.4. Propósito ...............................................................................................................42
IV.2. Questões Literárias ......................................................................................................42
IV.2.1. Crítica Textual ....................................................................................................... 42
IV.2.2. Linguagem e Estilo ................................................................................................ 43
IV.2.3. Estrutura Literária.................................................................................................. 44

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IV.3. Questões Teológicas .................................................................................................... 45


IV.3.1. Jesus é o Messias, o Cristo ..................................................................................... 45
IV.3.1.1. Jesus: Messias investido com poder .................................................................... 45
IV.3.1.2. O segredo messiânico ......................................................................................... 46
IV.3.2. Jesus é o Filho do Homem ..................................................................................... 46
IV.3.3. Jesus é o Filho de Deus .......................................................................................... 47
V. O EVANGELHO SEGUNDO MATEUS ......................................................................... 49
V.1. Questões Históricas ....................................................................................................... 49
V.1.1. Autoria ................................................................................................................... 49
V.1.2. Data ........................................................................................................................ 50
V.1.3. Lugar de Composição ............................................................................................. 51
V.1.4. Propósito ................................................................................................................ 51
V.2. Questões Literárias ....................................................................................................... 52
V.2.1. Crítica Textual ........................................................................................................ 52
V.2.2. Linguagem e Estilo ................................................................................................. 54
V.2.3. Estrutura Literária ................................................................................................... 55
V.3. Questões Teológicas ..................................................................................................... 56
V.3.1. Núcleo do pensamento mateano ..............................................................................56
V.3.1.1. Dimensão Eclesiológica ....................................................................................... 56
V.3.1.2. Dimensão Cristológica ......................................................................................... 58
V.3.1.3. Dimensão Ética e Moral ....................................................................................... 59
V.3.2. O Reino de Deus ..................................................................................................... 60
V.3.3. Escatologia .............................................................................................................60
VI. O EVANGELHO SEGUNDO LUCAS...........................................................................62
VI.1. Questões Históricas ..................................................................................................... 62
VI.1.1. Autoria .................................................................................................................. 62
VI.1.2. Data....................................................................................................................... 63
VI.1.3. Lugar de Composição ............................................................................................ 64
VI.1.4. Propósito ...............................................................................................................64
VI.2. Questões Literárias ......................................................................................................64
VI.2.1. Crítica Textual ....................................................................................................... 65
VI.2.2. Linguagem e Estilo ................................................................................................ 67
VI.2.3. Estrutura Literária.................................................................................................. 68
VI.3. Questões Teológicas .................................................................................................... 69
VI.3.1. A salvação .............................................................................................................69
VI.3.2. O universalismo da salvação .................................................................................. 70
VI.3.3. A paixão de Cristo ................................................................................................. 70
VI.3.4. O Espírito Santo .................................................................................................... 71
VI.3.5. A oração ................................................................................................................ 71
VI.3.6. O louvor, a gratidão e a alegria ..............................................................................72
VI.3.7. A importância das mulheres ................................................................................... 72
VI.3.8. O Evangelho para os pobres................................................................................... 73
VII. O EVANGELHO SEGUNDO JOÃO ............................................................................ 74
VII.1. Questões Históricas .................................................................................................... 74
VII.1.1. Autoria ................................................................................................................. 74
VII.1.2. Data ..................................................................................................................... 76
VII.1.3. Lugar de Composição ........................................................................................... 77
VII.1.4. Propósito ..............................................................................................................77
VII.2. Questões Literárias ..................................................................................................... 78
VII.2.1. Crítica Textual ..................................................................................................... 78

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VII.2.2. Linguagem e Estilo .............................................................................................. 78


VII.2.3. Estrutura Literária ................................................................................................ 80
VII.3. Questões Teológicas ................................................................................................... 81
VII.3.1. Deus ..................................................................................................................... 81
VII.3.2. Jesus .................................................................................................................... 82
VII.3.3. Espírito Santo ....................................................................................................... 83
VII.3.4. Espírito Santo: fonte da vida eterna e princípio de adoração ao Pai ....................... 84
VII.3.5. O universalismo da salvação ................................................................................ 84
VII.3.6. A eficácia da oração ............................................................................................. 85
VII.3.7. Perseverança final e ressurreição futura ................................................................ 85
VII.3.8. O dualismo Joanino .............................................................................................. 85
VIII. ATOS DOS APÓSTOLOS .......................................................................................... 87
VIII.1. Questões Históricas ................................................................................................... 87
VIII.1.1. Autoria................................................................................................................ 87
VIII.1.2. Data .................................................................................................................... 88
VIII.1.3. Lugar de Composição ......................................................................................... 88
VIII.1.4. Propósito.............................................................................................................89
VIII.2. Questões Literárias .................................................................................................... 90
VIII.2.1. Crítica Textual .................................................................................................... 90
VIII.2.2. Linguagem e Estilo ............................................................................................. 91
VIII.2.3. Estrutura Literária ............................................................................................... 92
VIII.3. Questões Teológicas ................................................................................................. 92
VIII.3.1. A importância da ressurreição de Cristo .............................................................. 93
VIII.3.2. O Espírito Santo .................................................................................................. 93
VIII.3.3. A universalidade da salvação ..............................................................................94
VIII.3.4. Os marginalizados............................................................................................... 94
VIII.3.5. A Igreja ...............................................................................................................95
VIII.3.6. A importância da oração ..................................................................................... 95
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................. 97

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I. A PALESTINA DO SÉCULO I a.C.

Antes de passarmos ao estudo dos textos bíblicos propriamente ditos, nos convém
conhecer alguns aspectos relevantes da Palestina 1 do século I. a.C. Isto se deve ao fato de que
devemos ter um conhecimento, ainda que introdutório, das situações política, econômica,
social e religiosa que configuravam o ambiente no qual Jesus nasceu, viveu, desenvolveu o
seu ministério, morreu e ressuscitou. De igual modo, devemos compreender o ambiente onde
seus seguidores deram sequência ao movimento iniciado por Jesus de Nazaré dentro do
judaísmo da época.
Sabemos que Jesus pertencia ao povo judeu. Nasceu e morou na região que, a partir
do século II d.C., ficou conhecida como Palestina. De acordo com os relatos nos Evangelhos,
Jesus atuou em várias regiões da Palestina, desde a região da Galileia até a capital Jerusalém.
Ele atravessou fronteiras indo à Síria e Samaria. Para uma melhor compreensão dos
Evangelhos é importante que tenhamos ao menos uma visão panorâmica desse mundo em que
Jesus viveu.

I.1. Contexto político e social do Novo Testamento

Aqui iremos nos concentrar no Império Romano, em geral, e na Palestina, em


particular. Começaremos por averiguar a situação que precedeu o século I d.C. ou seja, os
antecedentes históricos que propiciaram o surgimento do mundo que encontramos em O Novo
Testamento.

I.1.1. Antecedentes do século I d.C.

Israel foi dominado por vários impérios estrangeiros quando ainda não havia se
constituído como povo, no tempo do Novo Império egípcio (1552-1070 a.C.). A Assíria, a
partir de 722 a.C., arrasou o reino de Israel (Reino do Norte). Depois a Babilônia, em 587/586
a.C., destruiu o reino de Judá (Reino do Sul), sendo sucedida pela Pérsia em 538 a.C. Um
pouco mais de 200 anos e Israel experimentou o domínio dos gregos em 333 a.C. Foi um
período marcado pela sucessão de dominadores, cada um querendo dominar aquela terra. O
povo ficou como que sendo jogado, ora na mão de um, ora na mão de outro. Com a morte de
Alexandre Magno, em 323 a.C, Israel passou para as mãos dos generais: primeiro foram os
Ptolomeus ou Lágidas do Egito; depois, em 198 a.C., os Selêucidas da Síria. E, por último,
Israel caiu nas mãos dos romanos.2

1
Falar em Palestina no século I a.C. é um anacronismo. A região só ganhou esse nome no tempo do imperador
Adriano (117-138 d.C.). Esse imperador transformou Jerusalém em um importante centro de adoração gentia
chamado Aeolia Capitolina em cerca de 135 d.C.. Os judeus foram despejados de Jerusalém e proibidos de
entrar. A partir de então eles podiam entrar apenas um dia por ano, para lamentar seu destino no Muro das
Lamentações. Veja BLOMBERG, Craig L. Jesus e os Evangelhos: uma introdução ao estudo dos 4
evangelhos. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 42.
2
MESQUITA, Antônio Neves de. Povos e nações do mundo antigo: uma história do Velho Testamento. Rio
de Janeiro: JUERP, 1995, pp. 283-318.

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I.1.1.1. Período Grego

Mesmo sabendo que os contatos comerciais entre as terras gregas e a Palestina


tenham existido durante séculos, precisamos admitir que a partir de 332 a.C. tem início um
novo período. Alexandre Magno, após haver conquistado os territórios de Tiro, na Fenícia,
acabou por estender seu domínio por toda a Samaria e Judeia. Estas regiões eram, no período
anterior, dominadas pelo regime persa. 3 Sabemos que este domínio foi além de uma conquista
militar. Os judeus da região siro-palestinense tornaram-se parte da grande massa que
compunha a civilização grega oriental, conhecida como mundo helênico.4
Depois da morte de Alexandre Magno, o Império Grego foi dividido entre seus seis
generais. 5 O território da Síria ficou sob posse de Laomedon; o Egito foi dado a Ptolomeu
Lagus (Soter), enquanto a Babilônia ficou debaixo do governo de Selêuco. Os demais não
tiveram relação com o povo judeu. Dentro de um breve período de dois anos, os generais
Ptolomeu e Selêuco acabaram por derrotar Laomedon e, ao final, dividiram o território da
Síria. A Palestina ficou sob o domínio de Ptolomeu.
Dessa forma, politicamente, os Sumos Sacerdotes na Judeia ficaram aprisionados
entre as ambiciosas dinastias no Egito – os ptolomeus – e na Síria – os selêucidas. Os
ptolomeus dominaram toda a Judeia durante os primeiros cem anos. Todavia, através de
acordos com os governantes do Egito, a família mercante judaica dos Tobias atingiu o auge na
Transjordânia e, por intermédio de uma estratégia de cooperação política e financeira, os
Sumos Sacerdotes de Jerusalém conseguiram evitar a interferência ptolomaica na religião
durante a maior parte deste período.6
Essa situação praticamente prevaleceu no período de 323 – 175 a.C. Entretanto,
ainda nesta etapa da história, entre 223 e 200 a.C., o general selêucida sírio Antíoco III
humilhou os ptolomeus e assumiu o controle de toda a Palestina. Durante esse período de
conflitiva fidelidade, os judeus sentiram-se perseguidos pelos ptolomeus. De início, Antíoco
parecia menos opressivo nas exigências financeiras. Todavia, após ter sido derrotado pelos
romanos em 190 a.C. teve de aumentar suas exigências, uma vez que exigiram-lhe o
pagamento de enormes indenizações de guerra aos romanos. É assim que, Heliodoro, o
general sírio ficou na lembrança por ter saqueado o tesouro do Templo de Jerusalém no
governo de Seleuco IV (187-175), filho de Antíoco.7

3
Veja em HALE, Broadus David. Introdução ao estudo do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2001. pp. 8
– 11.
4
BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cuestiones preliminares, evangelios y obras
conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 119.
5
Chamados diádocos.
6
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 120.
7
Idem, p. 120, 121.

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Impérios Antes de Cristo8

No período seguinte, 175 – 163 a.C., ocorre a revolta macabaica. Por causa da
situação ocasionada pelos selêucidas, sob Antíoco IV Epifânio9 (175-164), a situação tornou-
se bastante difícil. Antíoco deu continuidade na obtenção da unidade entre seus subjugados e
os fez partilhar a cultura e a religião gregas. A corrupção e o coração ambicioso dos Sumos
Sacerdotes em Jerusalém serviam bem a esses propósitos. Antíoco IV ataca Jerusalém em 169
e 167 a.C., massacra a população e erige uma estátua a Zeus no altar do holocausto do
Templo.10 Além disso, ele instalou uma guarnição síria permanente em uma fortaleza na
cidade – a Acra.

I.1.1.2. Os Macabeus

Na luta dos Macabeus combinaram-se a grandeza e a tragédia. As suas decisões e


lutas eram inspiradas no zelo e na Lei do Deus de Israel. Eles salvaram a Lei e o culto divino
no Templo da mais grave crise produzida até então pela helenização. Os Selêucidas eram
fortes no poder militar e na política, mas nunca conseguiram impor-se de forma estável na
Judeia, diante da resistência dos judeus observantes. Os Macabeus foram além dos interesses
religiosos. Viram-se obrigados a passar do zelo pela Lei à política do poder. Só a indecisão e a

8
Bíblia Online – Módulo Avançado – V. Versão: 3.0, Oct. 7, 2002. Sociedade Bíblica do Brasil.
9
Como um substituto para Epifânio (manifesto) – manifestação como um deus – o historiador antigo Políbio
comentou que os detratores do imperador se referiram a ele como Epimânio: o “louco”. BLOMBERG, Craig L.
Op Cit., p. 28.
10
Aqui encontramos a referência à abominação da desolação de Daniel 11.31; 12.11.

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debilidade do governo central sírio poderiam permitir aos Macabeus alcançar seu objetivo
religioso e sua independência política. 11
Em 167 a.C. irrompe uma revolta judaica, liderada por Matatias, um sacerdote que
vivia ao noroeste de Jerusalém, em Modin. Esta revolta se alargou por trinta e cinco anos,
levada a cabo por Judas Macabeu, Jônatas e Simão, filhos de Matatias. 12 Nesta ocasião,
alguns piedosos – os assideus – uniram-se à revolta, esperando que uma vitória pusesse fim à
corrupção do culto do Templo pelos reis selêucidas. Momentos-chaves incluem a vitória
judaica em 164, que conduziu à purificação e reinauguração – Hanuká – do lugar do altar.
Ocorre a indicação de Jônatas para o cargo de Sumo Sacerdote em 152 a.C.; a Acra é tomada
e em 142 a.C. a guarnição síria acaba expulsa. 13
Roma acabou reconhecendo a independência judaica durante o reinado do Sumo
Sacerdote João Hircano – 135/134 – 104 a.C. Hircano destrói o santuário no Monte Gerizim,
o que faz aumentar o ódio entre samaritanos e judeus. Aristóbulo, seu filho, assume o título de
rei, permanecendo de 104 a 103 a.C., somente. Aqui ocorre uma combinação entre Sumo
Sacerdócio e realeza, sendo mantida, por seus sucessores, por um período de 40 anos.14

I.1.1.3. Período Romano

Desde 148 a.C. os romanos já vinham transformando as antigas nações, antes


dominadas pelo império helênico, em províncias romanas. Assim foi com a Macedônia (148
a.C.), a Ásia (Pérgamo), com o centro-oeste da atual Turquia (129 a.C.), com Creta, no
Mediterrâneo, e Cirene, na África (67 a.C.). Pompeu conquistou o Ponto e a Bitínia, no norte
da atual Turquia (66-65 a.C.) e a própria Síria (64 a.C.), transformando-as em províncias
romanas. Por fim, em 63 a.C., chegou a vez de Israel.
Dessa forma, podemos afirmar que entre os anos 63-64 a.C., aproximadamente,
inicia o domínio romano. Antípater II emerge como uma força de grande importância na
Palestina. Iniciando como conselheiro de Hircano, com a aprovação de Júlio César passa a
procurador ou superintendente com direito próprio. Seu filho, Herodes o Grande, argutamente
forjou submissão durante as guerras romanas subsequentes ao assassinato de César em 44 a.C.
Em torno de 37 a.C., por intermédio da atrocidade e da rápida aliança com a família
asmonéia, Herodes torna-se rei da Judeia, sendo aprovado por Otaviano em 31/30 a.C. 15
Herodes tinha bastante afinidade com a cultura Greco-romana. Realizou muitos
projetos de construção, dentre os quais incluem, em Jerusalém, a Fortaleza Antônia, um
palácio real e uma grandiosa expansão do Templo. Sua grande desconfiança levou-o ao
assassinato de alguns de seus próprios filhos. Em 29 a.C. executou sua própria esposa,
Mariana I. Nos anos 9-8 a.C. ele quis capturar um grupo de rebeldes da Traconítide que tinha
sido acolhido pelo ministro Sileu, da Nabatéa. Entrou no território nabateu, causando a revolta
de Sileu, que se queixou a Augusto e do qual recebeu apoio. Herodes mandou estrangular

11
MESQUITA, Antônio Neves de. Op Cit., p. 301.
12
Os irmãos são normalmente conhecidos como os Macabeus. A dinastia que iniciou com João Hircano, filho de
Simão, ainda que da mesma família, é mais frequentemente chamada asmonéia. Talvez isto se deva ao nome do
bisavô de Matatias – Asamonaios.
13
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 109.
14
Ibidem.
15
DOCKERY, David S. Manual Bíblico Vida Nova. São Paulo: Vida Nova, 2001. p. 546.

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Aristóbulo e Alexandre, os dois filhos que teve com Mariana I. Essa crueldade só é explicada
pela ganância do poder. É dele a brutal crueldade encontrada na narrativa de Mateus a
respeito da disposição de massacrar todas as crianças do sexo masculino até dois anos de
idade, em Belém, como parte de seu desejo de matar Jesus.16

Império Romano nos Tempos de Cristo17

I.1.2. O século I d.C.

No século I d.C. o domínio da Palestina estava totalmente nas mãos do Império


Romano. Neste período o Império se estendia desde o Oceano Atlântico até o rio Eufrates no
Oriente (Leste-Oeste). Desde a região próxima à atual Inglaterra alcançando o rio Danúbio, o
Mar Negro até o Mar Cáspio, até a África dominando todos os povos que habitavam as
margens do Mar Mediterrâneo até o Mar Vermelho.18
Não podemos nos esquecer, contudo, que Roma herdou este “mundo” do legendário
Alexandre Magno que em treze anos no poder (336-323 a.C.) dominou o Império Persa e
estendeu-o , estabelecendo um vasto império que deixaria suas marcas séculos depois.
Alexandre Magno sonhava com a possibilidade de toda a terra ser unida num único estado em
que todos participariam da mesma cultura.19

16
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 110, 111.
17
Bíblia Online – Módulo Avançado – V. Versão: 3.0, Oct. 7, 2002. Sociedade Bíblica do Brasil.
18
MAINVILLE, Odette (org). Escritos e ambiente do Novo Testamento: uma introdução. Petrópolis: Vozes,
2002, p. 20.
19
MAINVILLE, Odette (org). Op Cit., p. 19.

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Os gregos tinham um modo particular de conceber a vida em família e na sociedade,


muito menos marcada pela tradição e pela dimensão comunitária. Tinham diferentes formas
de organização social, de tradições culturais e de vivências religiosas. É com essa realidade
que o povo de Israel teve que conviver por muitos anos e em constante conflito. 20
O movimento iniciado por Alexandre, que ficou conhecido como “helenismo”, ainda
que no século I o império fosse o romano, prevaleceu na cultura e ainda dominava durante
este período. Tal era seu domínio que a língua grega era uma das principais na parte oriental
do Império Romano. As diversas regiões podiam conservar seus idiomas ou dialetos locais. A
Síria utilizava o aramaico, a Palestina o hebraico. Contudo, no mundo dos negócios, política e
cultura seguramente utilizavam o grego. Dessa forma, podemos dizer que qualquer pessoa na
Palestina era de fala bilíngue, ou talvez até trilíngue, em virtude da necessidade. Todavia, a
língua oficial do império era o latim, o que fazia que pelo menos as pessoas que tinham mais
acesso as autoridades romanas também conhecessem a língua do imperador.21
Retomando o período um pouco anterior, podemos dizer que Antíoco IV Epifânio foi
quem promoveu a helenização na Judeia. Como ele não era aceito em Jerusalém, mandou
Apolônio para helenizar a cidade e tomar as medidas necessárias para sua segurança militar.
Em todos os seus empreendimentos encontrou grande apoio nos Sumos Sacerdotes
helenizados. Mandou construir ao lado do Templo, na colina ocidental, Acra, a cidade alta,
também conhecida com o nome de “Antioquia de Jerusalém”. Não era muito grande, mas
servia para abrigar a guarnição sírio-macedônica e refugiar os judeus helenizantes, até ser
conquistada, como vimos, por Simão Macabeu (1Mc 1.29; 1.33-35; 13.49-51).
Logo após ter derrotado Marco Antonio e Cleópatra na batalha naval Actium, no ano
31 a.C. Augusto tornou-se imperador de Roma. Em seguida houve um período de expansão e
de paz conhecido como Pax Romana. Foi nesta época que Otaviano recebeu o nome de
Augusto e reinou até o ano 14 d.C. O Império Romano dividia os extensos territórios em
províncias, as quais estavam sujeitas ao governo central.22 Todas elas eram tributárias de
Roma. Essas províncias eram de duas espécies: Províncias Senatoriais e Províncias
Imperiais.23
Vejamos em primeiro lugar as Províncias Senatoriais. Com a paz estabelecida e a
lealdade declarada a Roma, estavam sob a tutela do Senado romano, e eram governadas por
procônsules. Alguns deles, inclusive, são mencionados em O Novo Testamento (At 13.7;
18.12, por exemplo). Uma província podia incluir várias nacionalidades (At 14.6,11). O
apóstolo Paulo menciona várias dessas províncias ao longo de suas cartas (Rm 15.19,24,26;
2Tm 4.10; Gl 1.21). Sabemos que havia relativa liberdade religiosa e política nessas
províncias. Algumas delas, até mesmo tinham conselhos (At 19.31).24
As Províncias Imperiais eram as que apresentavam maior risco de turbulências. O
imperador indicava procuradores que exerciam autoridade civil e militar através de um
exército para a repressão de rebeliões e o estabelecimento da paz. Alguns desses procuradores

20
GUSSO, Antônio Renato. Panorama Histórico de Israel para Estudantes da Bíblia. Curitiba: A. D.
SANTOS EDITORA, 2003, pp. 171-184.
21
MAINVILLE, Odette (org). Op Cit., pp. 39-41.
22
MAINVILLE, Odette (org). Op Cit., p. 20-21.
23
COLLI, Gelci André. Evangelhos e Atos. Curitiba: Unidade, 2010, p. 22.
24
Ibidem, p. 22.

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também são mencionados em O Novo Testamento (Mt 27.11; At 23.24-24.27; 25.1-26.32).


Este era o caso da província imperial da Síria e da região procuratoriana da Judeia.25

I.1.2.1. A política romana da Judeia

Herodes, o Grande, foi durante muitos anos o braço de ferro do Império Romano, na
Judeia. Com a sua morte, os filhos deram continuidade à dinastia herodiana e à política da
vassalagem ao então grande senhor do mundo, Otaviano, o Augusto, de Roma. Herodes
morreu na residência de Jericó, em fins de março ou começo de abril do ano 4 a.C. Seu filho
Arquelau transladou seu corpo para o Herodion. No fim desse mesmo ano, Augusto
confirmou o testamento de Herodes, mas não deu a Arquelau o título de rei. Ele tornou-se
etnarca, ou seja, o governador da Judeia, da Iduméia e da Samaria, de 4 a.C. a 6 d.C. Seu
irmão Herodes Antipas foi nomeado tetrarca (governador de uma quarta parte da província
(da Galileia e da Peréia, e leste do Jordão (4 a.C. – 39 d.C.) Filipe II, por sua vez, foi tetrarca
da Gaulanítide, Batanéia, Traconítide e Auranítide, bem como do distrito de Panéias (Ituréia),
de 4 a.C. a 34 d.C.26

Palestina nos tempos de Jesus27

25
Idem, p. 23.
26
DOCKERY, David S. Op Cit., p. 549.
27
Bíblia Online – Módulo Avançado – V. Versão: 3.0, Oct. 7, 2002. Sociedade Bíblica do Brasil.

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Arquelau, filho de Herodes, o Grande, acabou sendo deposto do cargo pelo


imperador Augusto, em 6 d.C. e seus territórios passaram para o regime dos procuradores
imperiais. Este regime de procuradoria vigorou até o ano 41 d.C. e, foi durante esse período
que Pôncio Pilatos assumiu o governo da Judeia entre 26 e 36 d.C. no tempo de Jesus. Foi
este Antípas, que governou a Galileia e Peréia até o ano 39 d.C., que João Batista repreendeu,
e com quem Jesus se encontrou, por ocasião do seu julgamento (Lc 23.8-12). Portanto,
Herodes Antípas, por governar a Galileia, foi o governador que mais teve contato com a
atuação de Jesus de Nazaré.28

I.1.2.2. Aspectos Econômicos

Jesus nasceu num contexto concreto, a Judeia (Galiléia), segundo a tradição cristã.
Terra pobre em minério, com uma pequena produção agrícola, pecuária, pesqueira, industrial
e comercial. Como vimos, era dominada pelo Império Romano e, por isso, pagava impostos
como os demais povos subjugados.29
A estrutura piramidal do poder se reproduzia na estrutura social e econômica. No
topo da pirâmide social romana estavam os nobres: a corte imperial, os altos funcionários do
Estado como os senadores e os generais do exército. Esta era também a classe rica do
Império. Na base da pirâmide estavam os escravos, que praticamente eram todos os que não
detinham o direito de cidadão romano. Aí se incluíam os povos conquistados, inclusive Israel.

I.1.2.2.1. A pirâmide social

Em primeiro lugar, no topo da pirâmide estavam os ricos que, como sempre, eram os
donos do poder. No tempo de Jesus, a corte contituía-se pela família de Herodes e de seus
partidários, que detinham grande parte da riqueza em suas mãos. Conseguiam manter os
privilégios e interesses porque apoiavam o sistema de dominação romana. Ocupavam espaços
e áreas reservadas junto ao palácio e ao Templo, e em lugares bem situados.30
A aristocracia leiga formava-se pelos grandes comerciantes, donos de grandes
mercados, pelos chefes do sistema de arrecadação de impostos para o Império e pelos grandes
proprietários de terras.31 Para o povo judeu era difícil conviver com essa realidade, por não
corresponder aos seus princípios religiosos. Eles viam a terra como propriedade de Deus e
devia servir para o sustento de todos. Nos Evangelhos conhecemos alguns nomes dos que
pertenciam à aristocracia leiga: Zaqueu (Lc 19.2); Nicodemos e José de Arimatéia, membros
do Sinédrio (Jo 3.1; Mc 15.43).32
A aristocracia sacerdotal era formada pelo Sumo Sacerdote e pelos chefes dos
sacerdotes. Este era o alto clero. Também eram proprietários de terras e donos do comércio de
animais para os sacrifícios. Em diversos momentos Jesus entrou em conflito com os
sacerdotes, pelo modo como julgavam e discriminavam as pessoas de acordo com as leis do
28
COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 24.
29
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 117.
30
JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no tempo de Jesus: pesquisa de história econômico-social no período
neotestamentário. São Paulo: Paulus, 1983, pp. 127-134.
31
TENNEY, Merryl C. O Novo Testamento: sua origem e análise. São Paulo: Vida Nova, 1972, p. 78.
32
JEREMIAS, Joachim. Op Cit., p. 139.

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puro e do impuro (Mc 1.44; 7.1-19; Lc 17.14). Jesus relativiza os seus privilégios (Mc 2.26) e
opõe o comportamento deles (Lc 10.31) com as exigências das Escrituras (Mt 12.7). Os mais
influentes faziam parte dos que condenaram Jesus à morte.33
Os remediados eram, naquele tempo, os que hoje constituem a nossa classe média.
São os artesãos, os pequenos proprietários de oficinas e de casas de comércio.34 Entre eles
encontrava-se também o baixo clero, que recebia uma parte das vítimas oferecidas em
sacrifício no Templo (Lc 2.24). Podemos mencionar ainda os alfaiates, padeiros, perfumistas,
carpinteiros, tecelães e outros.35
Em seguida vinham os pobres. Estes estavam mais próximos a Jesus. Os diaristas
faziam parte dos empregados pobres dos mercados e das fábricas de artesanato e carregadores
de água e lenha. Entre eles havia, ainda, os pobres “profissionais” que sobreviviam em virtude
da caridade e da esmola dos outros, e eram os escribas e os mendigos. Os escribas eram
também conhecidos como mestres ou rabinos. Ensinavam a lei e as Escrituras sem serem
pagos pelo trabalho, mas viviam do que os alunos e o povo lhes ofereciam. A família de Jesus
era modesta. José exercia a profissão de carpinteiro (Mc 6.3). Na apresentação de Jesus ao
Templo, eles deram a oferenda dos pobres, “um par de rolas e dois pombinhos” (Lc 2.24). Os
ricos costumavam oferecer um cordeiro (Lv 1.3). Jesus recomenda a pobreza e exalta os
pobres porque estes acolhem sua mensagem. Jesus e seus discípulos pertenciam ao grupo dos
pobres.36
Descendo um pouco mais na escala piramidal nós encontramos os escravos. Muitos
se tornavam escravos por serem prisioneiros de guerra, por causa de furto, de dívidas
contraídas sem possibilidade de pagamento, por empréstimos sem restrição e por outros
motivos.37 Esses perdiam sua liberdade e se tornavam escravos. Na tradição israelita só podia
tornar-se escravo o homem e a filha com menos de 12 anos de idade. O filho e a mulher não
podiam ser reduzidos à escravidão. A filha, quando atingia 12 anos, adquiria a liberdade, a
não ser que seu senhor quisesse casar-se com ela. O homem ficava escravo no máximo por
seis anos, depois era libertado pela lei do ano sabático (Ex 21.2; Jr 34.8-22). O escravo judeu,
juridicamente, era igual ao filho mais velho do seu senhor. O escravo pagão de um judeu era
considerado propriedade sua.38
Contudo, a base da pirâmide descia um pouco mais. Existiam os miseráveis: os
indesejáveis da sociedade. Havia muitos marginalizados e excluídos do convívio social pela
sua própria condição de extrema pobreza e falta de higiene, como os leprosos (Mc 1.40-45),
mendigos, possessos pelo demônio (Mc 1.32-34), doentes mentais, cegos e coxos.39 Jesus
acolheu as pessoas que levavam uma vida irregular, como as prostitutas, os criminosos e os
ladrões. Jesus era rodeado pelas pessoas marginalizadas, que viviam junto aos caminhos
pedindo esmola. Diversas vezes foi interrompido em sua caminhada pelos cegos e doentes
que gritavam por sua ajuda (Mc 10.46-52).40

33
Idem, p. 140.
34
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 78.
35
JEREMIAS, Joachim. Op Cit., pp. 145-155.
36
JEREMIAS, Joachim. Op Cit., p. 156.
37
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 79.
38
JEREMIAS, Joachim. Op Cit., p. 158.
39
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 79.
40
JEREMIAS, Joachim. Op Cit., p. 159, 160.

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Em meio a tudo isso, todavia, havia um espaço para a solidariedade. Havia algumas
práticas de caridade em favor dos mais pobres em Israel: uma parte do dízimo, as espigas e
feixes deixados pelos ceifadores, a permissão de apascentar o rebanho no próprio campo, a
coleta de lenha das florestas, o corte do capim no próprio prado, a pesca no lago de Genesaré.
Essas práticas não erradicavam o problema social da fome e da miséria, mas amenizavam as
necessidades imediatas de grande parte da população.
No tempo de Jesus conheciam-se duas instituições de beneficência pública: o cesto
dos pobres e o prato dos pobres. No cesto dos pobres eram recolhidos alimentos e roupas para
serem distribuídos, uma vez por semana, aos mais carentes. O prato dos pobres era a
distribuição diária de sopa aos necessitados. Estas duas instituições, em Jerusalém, eram
assumidas pelo Templo. Nele havia também um cofre onde se depositavam as ofertas para os
mais pobres (Mc 12.42). Mesmo assim podemos concluir que não havia condições, para a
maioria do povo, de ter sequer uma vida digna e justa.41

I.1.2.3. Aspectos do Mundo Religioso

Os judeus desta época deviam ter algum tipo de conhecimento a respeito das
religiões não judaicas dos povos com os quais mantinham contato. Também é verdade que
muitos desses povos tinham conhecimento da religião judaica. Na Palestina, inclusive em
regiões em que a maioria da população era judaica, havia uma forte influência do helenismo. 42
O mundo greco-romano no tempo de Jesus Cristo apresentava um vigoroso fluxo
religioso. Diversos cultos proliferavam. As misturas e as combinações de crenças
(sincretismo) e comportamentos criavam por vezes um pluralismo que era intolerante somente
com as religiões exclusivistas e fechadas, como o judaísmo e o cristianismo. 43
Diversos cultos de mistério acabaram por surgir derivados de antigas cerimônias
tribais e até de fertilidade. Alguns eram oriundos da Grécia, outros eram importações
estrangeiras, especialmente da Pérsia e do Egito. As práticas rituais podiam variar desde a
serenidade até o grotesco.44
Meditações a respeito da espiga de milho ou do ramo de trigo, no culto de Deméter
(deusa do milho), um calmo banho de rio como parte do culto de Ísis (deusa do Nilo) ou
refeições comunitárias com pão e água, no mitraísmo, eram bastante serenos.45
No extremo grotesco estava o “batismo de sangue” do culto de Cibele, em que o
Sumo Sacerdote ficava numa cova coberta por uma grade de madeira trançada, em cima da
qual um touro era morto, de forma que o sangue escorria e cobria a face e as vestes do
ministro.46 Os Sacerdotes de níveis inferiores que se dedicavam a Atargatis tinham o costume
de se castrar, e as orgias de embiraguez associadas à adoração de Dionísio (deus do vinho)
eram bem conhecidas e menos secretas ou misteriosas do que muitas das outras religiões ou
seitas religiosas. 47

41
JEREMIAS, Joachim. Op Cit., pp. 160-169.
42
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 129.
43
Idem, p. 141.
44
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 51.
45
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 52.
46
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 97, 98.
47
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 51, 52.

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O Império Romano era politeísta. De modo geral deixava que cada um adorasse e
cultuasse os deuses que quisesse. Mas, ideologicamente, obrigava os povos conquistados a
cultuar também os deuses romanos.48 A partir de Otaviano, que se intitulou Augusto (31 a.C.
a 14 d.C.), os imperadores romanos também passaram a considerar-se “divinos”, ou seja,
semideuses, merecendo por isso um culto à sua imagem. No caso de Israel, devido ao seu zelo
extremo pela religião monoteísta e a absoluta proibição de imagens como objeto de culto, os
romanos foram mais brandos na exigência do culto ao imperador. Impuseram, porém, o
oferecimento de um sacrifício diário ao imperador no Templo de Jerusalém, em substituição
ao culto a ele. 49
O Gnosticismo (de gnosis, “conhecimento”) é um termo de difícil definição, usado
para descrever um modelo de pensamento religioso, em geral com elementos judeus e
cristãos, defendido por grupos da parte oriental do Império Romano (Síria, Babilônia e
Egito).50 Em 1945, em Nag Hammadi, a 480 quilômetros ao sul do Cairo, no Egito, fez-se a
importante descoberta de treze códices coptos (contendo cinquenta tratados distintos),
enterrados por volta de 400 d.C. As origens do gnosticismo são discutidas até hoje: uma
helenização do cristianismo, ou uma helenização do judaísmo e de suas tradições acerca da
sabedoria; uma derivação do mito persa; uma combinação da filosofia grega com a mitologia
do Oriente Próximo; ou uma novidade radical derivada da experiência do mundo com um
lugar estranho..51

I.1.2.4. Filosofias greco-romanas

A cultura grega distinguiu-se por sua filosofia de vida e pela filosofia clássica, que
teve grande influência na cultura universal. Entre os primeiros filósofos helenistas estão os
cínicos, que surgiram por volta do ano 350 a.C. 52 Diógenes foi uma das figuras mais
representativas desse movimento, tornando-se conhecido pelo seu gesto de procurar, em pleno
dia, com uma lanterna acesa, um homem honesto. O objetivo maior de sua vida era o cultivo
da autossuficiência; cada um deveria encontrar dentro de si a capacidade de satisfazer suas
próprias necessidades.53
Nessa mesma época surgiram duas escolas, cada qual com sua filosofia de vida. A
primeira foi a escola de Epicuro, surgida por volta de 350 a.C. Ela deu origem ao epicurismo,
cujo princípio era o de alcançar níveis de prazer e felicidade tão elevados a ponto de a pessoa
não sentir mais medo da morte, dos deuses e ficarem insensíveis à dor. O ideal almejado era a
ausência total de perturbação, a ataraxia. 54
A segunda filosofia de vida da época nasceu como reação aos epicureus; é a escola
estóica de Zenão de Cício.55 Esta primava pelo rigorismo na observância da disciplina e das
regras do bem-viver. Trazia listas de virtudes que deviam ser seguidas e de vícios que

48
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 96, 97.
49
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 143, 144.
50
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 103.
51
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., pp. 53-56.
52
REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. São Paulo: Paulus,
2003, p. 253.
53
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 146, 147.
54
REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Op Cit., p. 259.

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deveriam ser evitados. Paulo, o apóstolo, sofreu influência da escola estóica. Nos seus escritos
encontramos, com certa frequência, lista de defeitos e virtudes (Rm 1.29-32; 1Co 5.10-11;
6.9-10; Gl 5.19-21 e outras).56 Contemporaneamente às filosofias de vida, havia a filosofia
clássica desenvolvida pelos grandes filósofos Platão, Sócrates, Aristóteles e outros. 57

I.2. As Instituições religiosas e os partidos político-religiosos

O Novo Testamento apresenta uma atmosfera religiosa bastante diferente quando


comparada com a do Antigo Testamento. Encontramos algumas instituições e grupos que até
o último livro da Bíblia Hebraica ainda não tínhamos tomado contato algum. Dessa forma, é
de extrema importância uma introdução ao ambiente religioso da época, bem como uma
abordagem dos partidos político-religiosos.

I.2.1. O Templo

Uma das primeiras atitudes do primeiro grupo de exilados, ao retornar para


Jerusalém, foi a reconstrução do Templo. Na verdade, podemos afirmar com segurança que
foi este o principal propósito para muitos dos que retornaram.58 Aqueles que permaneceram
na Babilônia, inclusive, deram apoio financeiro para o retorno, com o objetivo de que o
Templo fosse reconstruído. Sob a pregação dos profetas Ageu e Zacarias, o Templo –
conhecido como o Templo de Zorobabel – foi concluído e dedicado em 516 a.C. Com alguns
poucos acréscimos, para aumentar as áreas de reunião, o Templo de Zorobabel durou até a
época de Herodes, o Grande.59
Para os judeus do século I o Templo era o único lugar em que Yahweh podia ser
adorado de modo real e conveniente. Sabemos, contudo, que havia louvor e adoração no lar e
na sinagoga e, sem dúvida, muitas pessoas devotas, de temperamento místico mantinham
comunhão com Deus em devoções particulares. Todavia, a adoração em sentido rigoroso
como concebida pelo judeu só era possível no Templo. Assim este lugar ocupava um espaço
insubstituível na religião do judaísmo. Era o lugar no qual os judeus podiam ter o contato
mais próximo com as forças que determinavam sua vida e seu ser. Sua própria existência, a da
nação e, na verdade, até a do mundo inteiro dependiam das forças divinas que entravam na
esfera terrestre exatamente naquele ponto.60
Na época de Cristo o Templo havia sido reconstruído por Herodes. Era um belo
edifício de forma oblonga irregular, mais largo ao norte que ao sul. Situava-se no monte
Moriá, elevação existente no lado mais baixo, isto é, lado oriental da cidade de Jerusalém. A
área total era fortificada por uma muralha atravessada por vários portões. Era uma das obras

55
Idem, p. 288.
56
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 102.
57
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 148, 150.
58
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 120.
59
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 17.
60
DANA, Harvey Eugene. O Mundo do Novo Testamento: um estudo do ambiente histórico e cultural do
Novo Testamento. Rio de Janeiro: JUERP, 1990, p. 89.

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arquitetônicas mais imponentes que já produziu o engenho humano. Fora da cidade imperial
não existia em todo o Império Romano edifício maior.61
O Segundo Templo, como também ficou conhecido, foi terminado por volta da época
do nascimento de Jesus. Os alicerces de tamanho avantajado permitiram que o rei e seus
arquitetos remodelassem a área do velho Templo na parte sudeste de Jerusalém, dentro de
uma enorme plataforma – quase 500m x 300m que existe até os dias de hoje. O local da
construção do Templo, propriamente dito, acredita-se que seja mais ou menos onde hoje fica a
Mesquita Islâmica da Rocha.62
O Templo mesmo media aproximadamente 50m x 35m; era dividido em três partes
principais e seguia o mesmo projeto do Templo de Salomão: o Ulam, conhecido como
vestíbulo; o Hekal, mais tarde chamado Santo; e o Debir, que correspondia ao Santo dos
Santos. Esta última parte era o lugar sagrado, onde ficava a Arca da Aliança durante o período
do primeiro Templo (de Salomão).
Todo o espaço do Templo era bem ocupado. A área do pátio externo era reservada
aos pagãos. Nela ficavam instalados os comerciantes de bois, carneiros, cordeiros, pombos,
óleo, farinha, incenso e de outros produtos utilizados durante o culto. Na mesma área ficavam
ainda os cambistas, que trocavam as moedas que vinham de fora do país para a moeda local
de Jerusalém. Os pagãos não podiam ultrapassar seu espaço, sob pena de morte. Eram
separados por um muro interno.
Subindo as escadarias tinha-se acesso ao Templo, por meio de quatro portões ao
norte, quatro ao sul e mais um a leste. Eles davam acesso ao pátio das mulheres, depois ao dos
homens e, por fim, ao dos sacerdotes, que já circundava o altar dos sacrifícios. O vestíbulo
(Ulam) estava situado no pátio dos sacerdotes e propiciava acesso ao Santo, e este por sua vez
ao Santo dos Santos. O Santo tinha 15 metros de comprimento, 5 de largura e 5 de altura. No
seu centro havia o altar dos perfumes ou do incenso, a mesa dos pães da proposição e o
candelabro de sete braços. O Santo dos Santos ficava totalmente vazio. Nele não havia porta,
mas era fechado com uma cortina dupla, conhecida como “véu do Santuário” (Mc 15.38).
Media 20 côvados quadrados – aproximadamente 9 m2. Apenas o Sumo Sacerdote podia
entrar nele uma vez por ano no Dia da Expiação, porque era o lugar sagrado onde se
encontrava Deus, o único Santo.63
O culto era realizado todos os dias do ano. Neste culto diário, o aspecto mais
acentuado, e, sem dúvida, o mais importante, era o sacrifício oferecido pelo povo em seu
todo. Todos os dias imolavam-se dois cordeiros de um ano, um pela manhã e outro à tarde.
Esse era considerado o sacrifício perpétuo que se oferecia ao Deus de Israel. 64

I.2.2. A sinagoga

Desde o período do exílio, o povo de Israel, longe da terra, buscou solidificar sua
identidade por meio de algumas práticas que já existiam entre eles antes do exílio e que

61
DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 89.
62
OTZEN, Benedikt. O judaísmo na antiguidade: a história política e as correntes religiosas de Alexandre
Magno até o imperador Adriano. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 130-137.
63
OTZEN, Benedikt. Op Cit., pp. 130-137.
64
DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 91.

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perduram até hoje: a circuncisão, a observância do sábado, das regras alimentares e,


fundamentalmente, a leitura da Lei de Moisés ou Toráh. Esses sinais externos os
identificavam diante dos outros povos.65
Ainda não está muito claro quando e onde a instituição da sinagoga surgiu. A maioria
das evidências aponta para a diáspora egípcia – alguns apontam a Babilônia-, onde podemos
encontrar referências às sinagogas existentes já em 225 a.C. Com todas as atividades
realizadas no Templo, seria razoável supor que os judeus da diáspora tinham necessidade de
um tipo de culto que não dependesse do Templo de Jerusalém. Acreditamos que tanto no
Egito quanto na Babilônia, na Pérsia e em outros lugares, já se desenvolvia nela o culto
religioso, uma vez que, como vimos, o Templo ficava muito distante. Para a maioria dos
judeus da diáspora era impossível ir a Jerusalém diversas vezes ao ano para as celebrações das
festas religiosas.66
No decorrer dos séculos seguintes, a sinagoga tornou-se comum em todas as
comunidades judaicas, tanto dentro quanto fora da Palestina. Além do mais, o fato de haver
sinagogas até mesmo em Jerusalém – na realidade, dentro da área do Templo – demonstra que
não se pensou no culto da sinagoga originalmente para substituir o culto do Templo, mas sim
para complementá-lo.67
O termo sinagoga é de origem grega e significa: “reunidos juntamente”, ou seja, em
assembleia; em hebraico se diz Bêit Knésset – casa da assembleia. Sua função principal era
prover um lugar para o culto, a oração, o canto, a leitura, o estudo da Lei e de outros escritos
do judaísmo. A sinagoga era, pois, um lugar de instrução, a instituição educacional do
judaísmo. Diversas pessoas são responsáveis por diferentes funções dentro da comunidade
sinagogal. O ensino era administrado por escribas ou rabinos, especialmente preparados para
este fim e separados para este serviço por meio de cerimônias especiais de ordenação. O
centro da sinagoga é a Toráh, guardada em um “armário sagrado”. Sobre esse armário
encontra-se uma lâmpada acesa dia e noite, e chama-se “luz eterna”. Há também uma mesa de
apoio para a leitura dos textos sagrados e uma pequena tribuna com um púlpito. 68
A liturgia era mais ou menos fixa. Em primeiro lugar vinham os serviços
preliminares que constavam de “bênçãos” (berakah) de abertura, e da recitação de um ritual
de confissão conhecido por “Shemá Yisra’el” “Escuta, Israel” (Dt 6.4-9; 11.13-21). Nessa
oração, o povo judeu professa a sua fé no Deus UM, reafirmando sua fidelidade a Ele. Essa
oração era realizada duas vezes ao dia, de manhã e à tarde.
Depois do Shemá vêm as dezenove bênçãos (Tefillah). São breves orações de
bênção. Provavelmente, já eram recitadas no tempo de Jesus com seu conteúdo principal. Em
seguida temos a parte didática. Esta parte compreende a leitura e explicação das Escrituras.
No tempo de Jesus e nas sinagogas atuais, ela só pode ser feita por homens maiores de idade.
A explicação é dada igualmente para todos que participam do culto: crianças, mulheres e
homens. Consiste na leitura e explicação de um texto da Toráh e dos Profetas. Faz-se a leitura
de um determinado trecho da Lei (Pentateuco ou Toráh); em seguida, geralmente outro dos
Profetas. A leitura é realizada do original hebraico traduzido contemporaneamente para a

65
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 122.
66
OTZEN, Benedikt. Op Cit., p. 138.
67
OTZEN, Benedikt. Op Cit., p. 138.
68
DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 88.

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língua falada no local onde se encontra a sinagoga. Após a leitura alguém faz um comentário
de caráter expositivo ou exortativo, podendo ser uma reflexão teológica para a formação do
povo, e no fim fazia-se o covite para se viver segundo a Toráh. A liturgia era concluída com a
bênção final. Em conexão com a sinagoga havia um grupo de oficiais, cujos mais importantes
eram os anciãos, escolhidos pela congregação para supervisionar a vida comunitária. Um
oficial subalterno, conhecido como “ministro” (no grego diákonos), atuava como auxiliar do
dirigente da sinagoga, e outro, que era o “recitador de orações” oficial, servia na qualidade de
secretário da sinagoga em suas transações com o mundo exterior.69
Cabe ressaltar que a adoração e o estudo na sinagoga assumiram formas que vieram a
se tornar centrais no desenvolvimento da Igreja cristã. O preceito do culto aos sábados era
amplamente aceito pelos primeiros adoradores cristãos. Orações e hinos abriam e fechavam
cada culto. Entre um e outro havia a leitura da Lei, Profetas e Salmos – por vezes num ciclo
de sermões fixos -, com o Targum e a homilia (sermão) sendo apresentados por um dos
anciãos da sinagoga, baseados nos textos do dia. Os assistentes dos anciãos podem mesmo ter
sido um modelo do que mais tarde inspiraria o ofício cristão do diácono. 70
A sinagoga ainda era utilizada para reuniões de vários tipos da comunidade, de modo
mais destacado para a educação primária de meninos com idades entre cinco a doze ou treze
anos. Não é verdade que a maioria dos homens judeus do século I era analfabeta – uma ideia
por vezes baseada na má compreensão de Atos 4.13, que apenas declara que os primeiros
discípulos não haviam sido instruídos formalmente por um rabino além da idade de treze
anos.71

I.2.3. O Sinédrio

O Sinédrio era constituído por um grupo de setenta e um (71) anciãos judeus e


presidido pelo Sumo Sacerdote – perfazendo um total de setenta e dois (72). Essa corporação
cumulava para si tanto o poder legislativo como o judiciário. Quando a Palestina foi unificada
em apenas uma província, o Sinédrio passou a ter jurisdição sobre toda a região, mas no
tempo de Jesus controlava apenas a Judeia. O nome vem do grego “Synedrion” e significa
“sentados juntos”. É citado pela primeita vez em conexão com os acontecimentos ocorridos
por volta de 55 a.C. Suas prerrogativas foram recebidas do governo romano pouco depois de
63 a.C.72
Esta corporação desempenhava um papel de crescente importância na vida judaica,
ao menos na Judeia. Era uma espécie de “corte suprema” e órgão legislativo; formava um
único conjunto. Ela incluía fariseus, saduceus e talvez outros anciãos não alinhados. Embora
os fariseus pareçam ter sido em geral superiores em número aos saduceus e mais populares
entre o povo, as nomeações no tribunal normalmente levavam a uma maioria de saduceus no
Sinédrio.73

69
Ibidem.
70
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 64.
71
Idem, p. 65.
72
DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 94.
73
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 65.

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Estudos no Novo Testamento 1 20

A partir da tradição rabínica, parece que essa corporação adquiriu o poder de legislar
regras de conduta para todos os judeus, em todos os lugares. Por causa de seu prestígio, suas
decisões eram honradas por toda a diáspora judaica.74

I.2.4. Fariseus

A origem dos fariseus parece estar nos assideus (1Mc 2.42), grupo de judeus
piedosos que zelavam pela observância da Toráh, diante da ameaça de helenização imposta
pela política intolerante dos Selêucidas, a partir do século II a.C. Os assideus uniram-se ao
movimento rebelde liderado pela família dos Macabeus, também desejosa de salvar o
judaísmo da torpe influência do helenismo e a ingerência política dos sírios (Selêucidas) na
vida dos judeus. 75
Os fariseus eram considerados especialistas nas Escrituras e na tradição, mas
combinavam o estudo permanente da Toráh com o exercício de uma profissão. Muitos
aprendiam um ofício. Havia, entre eles, curtidores; ganhava-se a vida com a confecção de
tendas – como Paulo e sua família, ou como carpinteiros – à semelhança de José e Jesus (cf.
Mt 13.55). Na literatura rabínica tardia, inclusive, os carpinteiros são elogiados por sua
habilidade e considerados especialistas no atento estudo dos mandamentos da Toráh.76
O matrimônio e a família desfrutavam de uma elevada estima nos círculos fariseus.
Eles não se afastavam do mundo e de suas ações cotidianos, como faziam os essênios, com os
quais definitivamente tinham relações de parentesco. Estes buscavam a solidão do deserto na
região do Mar Morto, a fim de poder observar os mandamentos da Toráh o mais estritamente
possível. Os fariseus, ao contrário, estavam firmemente estabelecidos na sociedade de seu
tempo e tinham de ganhar a vida. 77
Entre os anos 18 e 15 a.C. surgiram os fariseus Hillel e Shammai. Cada um fundou a
sua “escola”, que acabou se tornando rival uma da outra.78 Cada escola tinha os seus
discípulos que recebiam instrução sobre a Toráh, baseada na interpretação que os “mestres”
(rabi) faziam dela. Buscavam aplicar os seus preceitos aos mais diversos casos. Hillel era
mais liberal, enquanto Shammai era mais rigoroso. Eles deram origem ao rabinato, que
adquiriu mais importância no judaísmo posteriormente. 79

I.2.5. Saduceus

Formavam um partido religioso e político, cujo nome deve estar relacionado com
Zadoque, o Sumo Sacerdote colocado por Salomão em lugar de Abiatar (1Rs 2.35). Os
saduceus separaram-se dos fariseus quando Jônatas, irmão de Judas Macabeu, usurpou o
sacerdócio (152 a.C.).80 Desde então os saduceus se tornaram adversários dos fariseus, dos

74
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 18.
75
HEYER, C. J. den. Paulo: um homem de dois mundos. Coleção Bíblia e Sociologia. São Paulo: Paulus,
2009. p. 22.
76
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 138.
77
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 18.
78
OTZEN, Benedikt. Op Cit., pp. 153-166.
79
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 19.
80
OTZEN, Benedikt. Op Cit., pp. 147-153.

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Estudos no Novo Testamento 1 21

quais se distinguem pelas crenças religiosas. Suas convicções religiosas tendiam a negar o
sobrenatural (Mt 22.38; Mc 12.18; At 23.6-10).81 Eles só aceitavam estritamente a tradição
escrita, particularmente da Toráh, afirmando não encontrar aí a doutrina da ressurreição da
carne. Na política, os saduceus apoiavam a dominação romana e controlavam a nomeação dos
Sumos Sacerdotes. Constituíam, por isso, uma espécie de elite na sociedade judaica, pois se
associavam mais ao poder econômico. Eles não aceitavam as tradições orais judaicas,
apegando-se somente ao que está escrito na Lei. 82

I.2.6. Zelotes

Os zelotes ou zelotas eram extremistas religiosos. Esse nome vem do grego “zelos”
que significa zelo, ciúme, defesa extremada de uma convicção própria quando esta é
ameaçada. Eles teriam surgido na época da revolta de Judas Galileu e do fariseu Sadoc, no
ano 4 d.C., durante o governo de Arquelau.83 Seu zelo pela liberdade do povo diante dos
romanos e pela “limpeza” política expulsando os intromissores estrangeiros, levou-os a
assumir a rebelião armada como caminho de instauração do novo reino messiânico. Os zelotes
formavam um partido revolucionário e nacionalista. Seus membros eram fanáticos opositores
na dominação romana. Seu ideal era estabelecer uma teocracia, expulsando pela força os
dominadores estrangeiros (At 5.37). Por causa disso os zelotes foram duramente reprimidos e
massacrados pelos romanos, exatamente por representarem a forma mais perigosa de
movimento judaico contra os interesses do império. Simão, um dos doze apóstolos, era zelote
(Mt 10.4; Lc 6.15).84

I.2.7. Essênios

Por volta do ano 150 a.C., em plena efervecência do movimento macabeu, nascia
outro grupo dentro do judaísmo: os essênios. Eles eram uma espécie de monges judeus:
fundaram uma comunidade no deserto da Judeia, próximo ao Mar Morto, numa localidade
chamada Qumran.85 Ali viviam no mais absoluto respeito à Lei Mosaica, mas numa linha
divergente dos fariseus. De fato, alguns estudiosos situam sua origem também nos assideus
(1Mc 2.42). Contudo, esse grupo não é mencionado na Bíblia. Com a descoberta dos escritos
do Mar Morto (1947) e das ruínas de Qumran, tornaram-se conhecidos os costumes e a
doutrina dos essênios e seu possível relacionamento com os fariseus.86 A comunidade tinha
suas regras próprias, geralmente muito austeras, buscando o ascetismo. Os essênios 87 não
apoiavam a revolta doa Macabeus, por considerá-la apenas de cunho político, ou seja, uma

81
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 141.
82
DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 97, 98.
83
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 78.
84
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 19.
85
OTZEN, Benedikt. Op Cit., pp. 178-205.
86
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 140.
87
Os essênios eram ultrapiedosos e contestavam a usurpação do cargo de Sumo Sacerdote por parte de Antíoco
Epífanes IV; por isso, refugiaram-se na área do Mar Morto para fugir da profanação de Jerusalém. Houve um
período de interrupção ou dispersão do grupo no tempo de Herodes, o Grande, talvez provocada por um
terremoto. No início do século I se restabeleceram, mas não por muito tempo. Por volta do ano 68 d.C.
desapareceram definitivamente com a invasão do exército romano.

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Estudos no Novo Testamento 1 22

briga pelo poder. Consideravam-se o “resto” eleito de Israel, separado da sociedade “perdida”,
que, para eles, já não teria mais conserto. Esperavam a vinda do Messias levando uma vida de
vigilância oração e penitência. 88
O movimento dos essênios é muito importante sob diversos aspectos, mas,
sobretudo, para os estudos bíblicos, pois eles deixaram muitos escritos bíblicos, e sobre a vida
da comunidade.89 Nas grutas próximas ao mosteiro foram encontrados todos os livros do
cânon da Bíblia hebraica, exceto o livro de Ester, Targuns 90, escritos apócrifos e
pseudoepígrafes como o livro de Henoc e o Livro dos Jubileus. Também foram encontrados
comentários de Habacuque, Salmos, Isaías, Naum, entre outros. Além disso, a comunidade
compôs literatura própria, sendo que os textos mais conhecidos são: O Documento de
Damasco (CD, 4QD, 5QD, 6QD), a Regra da Comunidade (1QS, 4QS, 5QS), o Rolo da
Guerra (1QM, 4QM), Os Cânticos do Sacrifício Sabático, o Rolo do Templo, dentre outros.91
Embora, como dissemos acima, a seita não se apresente mencionada em O Novo
testamento, parece que podemos encontrar alguns reflexos de seus ensinos e costumes. Muitos
estudiosos afirmam com convicção que os essênios influenciaram profundamente muitas das
correntes de vida em circulação no tempo de Jesus e seus discípulos. 92

I.2.8. Samaritanos

Os samaritanos não pertenciam ao judaísmo originário da reforma de Esdras.


Contudo, eles formavam uma comunidade na Palestina no século I. De acordo com o relato
encontrado no Antigo Testamento a origem dos samaritanos deu-se com o assentamento de
grupos de estrangeiros pelos Assírios depois da destruição do Reino do Norte em 722 a.C.
Entretanto, a história política de Israel adiciona a informação de que os samaritanos
descenderiam das tribos de Efraim e de Manassés. Isto fazia com que eles reivindicassem
serem os únicos continuadores da fé israelita de acordo com a Toráh. Os samaritanos
aguardavam um Messias, como um novo Moisés, que chamavam de taheb “o restaurador”.93
A partir do momento em que os samaritanos se separaram da comunidade judaica e
construíram o seu templo sobre o monte Gerizim, sérias tensões surgiram entre judeus e
samaritanos. No início do século II a.C temos testemunhos de palavras cheias de ódio de Eclo
50.25-26: “Há duas nações que minha alma detesta e uma terceira que nem sequer é nação: os
habitantes da montanha de Seir, os filisteus e o povo estúpido que mora em Siquém”. Essa
oposição entre judeus e samaritanos continuava forte na época de Jesus.94

88
DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 98, 99.
89
BOCCACCINI, Gabriele. Além da hipótese essênia: a separação dos caminos entre Qumran e o judaísmo
enóquico. São Paulo: Paulus, 2.000, p. 251
90
São as traduções dos textos bíblicos do hebraico para o aramaico conhecidas no século II a.C. São importantes
para o estudo textual, porque representam um meio para reconstruir o texto hebraico através do aramaico.
91
NICKELSBURG, George W. E. Literatura judaica, entre a Bíblia e a Mixná: uma introdução histórica e
literária. São Paulo: Paulus, 2011, pp. 237-356.
92
DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 99.
93
COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 20.
94
JEREMIAS, Joachim. Op Cit., p. 464, 465.

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Estudos no Novo Testamento 1 23

II. EVANGELHOS: QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

Com Marcos surgiu um tipo de escrito que faria sucesso na literatura cristã: o
Evangelho. Ele foi imitado pelos outros três Evangelhos e por autores apócrifos até o século
IV. Ao reunir tradições esparsas em um relato de natureza biográfica consagrado à vida de
Jesus, Marcos fez uma obra inédita; até então, a tradição cristã só conhecia sequências
narrativas limitadas – a história da Paixão, por exemplo – coleções de ditos – logia, ou as
cartas de Paulo. O primeiro evangelista se descobre criador de um gênero literário. Pergunta-
se: o Evangelho é um gênero literário ímpar na literatura, é um fenômeno único, ou pode-se
afiliá-lo a outros gêneros literários que circulavam na época?95

II.1. Conceito teológico

Na origem, euvagge,lion – euanguélion (a boa-notícia) não designa um livro, mas um


anúncio favorável ou a mensagem transmitida por esse anúncio favorável. No grego extra
bíblico, euvagge,lion indica as vitórias militares e os grandes feitos do Império. Sua
significação religiosa intervém no contexto do culto do imperador. Uma inscrição de Priéne
(Ásia Menor), datada de 9 a.C., definiu assim o aniversário do imperador Augusto: “o dia do
nascimento do deus foi, para o mundo, o início das boas-novas (tw/n euvagge,liw/n – tôn
euanguélion) que chegaram através dele”. 96
No Antigo Testamento era significativa a forma verbal e não a nominal. O termo
hebraico bissár (evangelizar) já trazia em seu bojo o conteúdo alegre do anúncio
(frequentemente corroborada pelo adjetivo “bom”), como o nascimento de um filho (Jr
20.15), a vitória sobre os inimigos ou a morte do adversário (1Sm 31.9; 2Sm 1.20;
18.19,20,31). De forma muito rápida o verbo adquiriu um significado teológico, como
proclamação da salvação na assembleia de culto dado por Deus, que põe na boca daquele que
ora um cântico novo (Sl 40.4,10).97
A versão grega do Antigo Testamento (a LXX98) aplica o verbo “anunciar uma boa-
nova” (euvaggeli,zw - euanguelízo) à proclamação das vitórias de Deus para Israel. Isaías usa o
termo para designar o anúncio da salvação escatológica (Is 40.9; 52.7; 60.6; 61.1). Este último
texto é citado por Jesus na resposta à questão messiânica do Batista: “a boa-nova é anunciada
aos pobres” (Mt 11.5; Lc 7.22).99
O apóstolo Paulo herda um uso forjado pela tradição cristã helenista: euvagge,lion
designa a proclamação da boa-nova da salvação em Jesus Cristo (1Ts 1.5; 1Cor 15.1; Rm
1.1,9). Evangelho designa, portanto, o anúncio do kérygma e não o seu veículo literário; esse
anúncio é “poder de Deus para salvação de todo aquele que crê” (Rm 1.16). Toda a pregação
do apóstolo, aliás, pode ser concentrada na palavra euvagge,lion (Gl 1.11). Quando Marcos

95
MARGUERAT, Daniel. Novo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
p. 35. Cf. BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cuestiones preliminares, evangelios y
obras conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 172.
96
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 36.
97
MARCONCINI, Benito. Os Evangelhos sinóticos: formação, redação, teologia. São Paulo: Paulinas, 2012,
p. 5.
98
Septuaginta.
99
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 36.

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Estudos no Novo Testamento 1 24

inaugura sua narração com essa palavra: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de
Deus” (Mc 1.1), ele não indica o início de seu livro, mas o início da boa-nova. Nenhum dos
quatro Evangelhos se autodenomina por essa palavra.100
Na realidade, somente na metade do século II que euvagge,lion é aplicado ao escrito
portador da boa-nova. A Didaché designa assim o Evangelho Segundo Mateus (11.3; 15.3s.),
II Clemente 8.5 o de Lucas. Justino Mártir usa pela primeira vez a palavra no plural para
designar os escritos que guardam a memória das palavras e dos atos de Jesus, de sua Paixão e
de sua ressurreição (Apologia 1.66.3). As mais antigas notícias que temos da intitulação dos
Evangelhos, que emanam dos copistas e não dos autores, datam de fins do século II e são
provenientes de papiro (î66), dos escritos de Ireneu (Contra as heresias 3.11.10) ou do cânon
de Muratori10. O uso parece remontar mesmo ao fim do primeiro século, por causa da
multiplicação dos Evangelhos nas comunidades. É de notar que mesmo então os Evangelhos
foram denominados euvagge,lion kata. – euanguélion kata, Evangelho segundo (Mateus,
Marcos, ...). O uso singular (que contrasta com os evangelhos greco-romanos e o uso plural da
Septuaginta) e a modalidade kata (segundo) conservam traço do sentido inicial; o Evangelho
não é de Mateus ou Marcos, mas transmite a boa-nova na linguagem segundo Mateus ou
Marcos. A nuança é importante. Vai de par com o reconhecimento canônico de um Evangelho
quadriforme, em vez e no lugar dos quatro relatos concorrentes entre os quais a Igreja
primitiva teria tido de escolher.101
Junto à diversidade de literatura greco-romana dos séculos imediatamente anteriores
e posteriores ao Senhor Jesus Cristo, encontravam-se muitos tipos de biografias, como “a
Vida de gregos e romanos famosos, de Plutarco; A vida dos Césares, de Suetônio; A vida de
Apolônio de Tiana, de Filostrato; e A vida dos antigos filósofos, de Diógenes Laércio”. Essas
propostas como contraposição aos Evangelhos possuem tonalidades divergentes.102

II.2. Estágios da formação do evangelho

O primeiro estágio na formação do Evangelho pode ser identificado com o ministério


público ou a atividade de Jesus de Nazaré. Alguns autores chamam de “momento
histórico”.103 Desssa forma, este estágio está situado na primeira terça parte do século I d.C.
O Senhor Jesus realizou coisas notáveis, proclamou oralmente sua mensagem e
interagiu com outros, como João Batista, por exemplo, e outras figuras religiosas. Jesus
escolheu companheiros que viajaram com ele, viram e ouviram o que ele fez e disse. Tudo
aquilo que eles se recordavam de suas palavras e ações proporcionaram o “material sobre
Jesus” em estado bruto. Estas recordações eram já seletivas, uma vez que eles se
concentraram naquilo que dizia respeito à proclamação de Deus por parte de Jesus, e não às
muitas trivialidades da vida ordinária. Em um nível prático, é importante que tenhamos
sempre presente de que essas são memórias daquilo que foi dito e feito por um judeu que
viveu na Galileia e em Jerusalém na década dos anos 20 do século I. A maneira de falar de
Jesus, os problemas que ele enfrentou, seu vocabulário e suas perspectivas (estruturas de

100
Idem. p. 36.
101
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 37.
102
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 163.
103
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 37.

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Estudos no Novo Testamento 1 25

pensamento) eram próprios daquele tempo e lugar. Muitos erros nas tentativas de entender a
Jesus e muitas aplicações falsas de seus pensamentos provêm do fato de que os leitores dos
Evangelhos removem-no do espaço e do tempo, e imaginam que ele estava tratando de
problemas que, na verdade, nunca enfrentou. Podem dar-se formas eruditas de representar mal
a Jesus impondo sobre ele categorias que realmente não se aplicam a sua pessoa, por exemplo,
a do camponês ou a daquele que lutou pela liberdade política.104
O segundo estágio na formação do evangelho refere-se à pregação apostólica sobre
Jesus. É o momento da tradição. Trata-se do kérygma apostólico. Palavra que evoca o anúncio
solene do arauto depois de uma retumbante vitória, a espontaneidade e a difusão rápida de um
acontecimento, o grito forte para tornar pública a oficial notícia (At 2.36,24).105 Este estágio
situa-se na segunda terça parte do século I d.C.
Aqueles que haviam visto e seguido a Jesus viram confirmado o seguimento deles
pelas aparições após a ressurreição (1Co 15.5-7). Chegaram assim a ter uma fé plena no Jesus
ressuscitado como a pessoa através da qual Deus manifestou seu absoluto amor salvífico por
Israel e finalmente por todo o mundo – uma fé que verbalizaram por meio de títulos que
expressavam sua crença (Messias/Cristo, Senhor, Salvador, Filho de Deus, etc.). Aquela fé
pós-pascal iluminou as recordações do que eles tinham visto e ouvido antes da ressurreição;
assim, eles proclamaram as obras e as palavras de Jesus com mais plenitude de significado.
(Os leitores modernos, acostumados com uma informação factual, sem implicações pessoais,
necessitam reconhecer a atmosfera bem diferente da pregação cristã primitiva.) Dizemos que
esses pregadores são “apostólicos” porque se viram a si mesmos como enviados (avpeste,llein
- apostellein) pelo Jesus ressuscitado, e porque sua pregação muitas vezes é descrita como
proclamação querigmática (ke,rugma - kérygma), cuja finalidade era atrair outros à fé.
Finalmente, o círculo dos pregadores missionários alargou-se para além dos companheiros
originais de Jesus, e as experiências de fé dos novos convertidos, como Paulo, enriqueceram o
que foi recebido e proclamado.106
Outro fator que exerceu sua influência nesse estágio do desenvolvimento foi a
necessária adaptação da pregação aos novos ouvintes. Jesus foi um judeu Galileu da primeira
terça parte do século I, que falava aramaico; contudo, em meados desse século, seu evangelho
estava sendo pregado a judeus habitantes em grandes cidades e aos pagãos em grego. Essa
mudança de língua implicava tradução, no mais amplo sentido da palavra, isto é, uma
remodelação do vocabulário e dos padrões que faria a mensagem inteligível e viva para os
novos ouvintes. Por vezes, esta nova fraseologia (que deixou traços visíveis nos Evangelhos
escritos) afetou detalhes secundários. Por exemplo, em Lc 5.19 menciona-se um tipo de
telhado familiar aos leitores gregos em contraste com o telhado palestino no qual foi feita uma
abertura do qual se fala em Mc 2.4.107
O terceiro e último estágio na formação do evangelho refere-se aos Evangelhos
escritos. Trata-se do momento da redação, a última fase da formação do evangelho e diz

104
Idem. p. 169.
105
MARCONCINI, Benito. Op Cit., pp. 55-57.
106
Ibidem. p. 170.
107
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 170.

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Estudos no Novo Testamento 1 26

respeito ao trabalho do evangelista.108 Agora estamos na última terça parte do século I d.C.,
aproximadamente.
Ainda que na metade do período anterior, enquanto o material sobre Jesus era objeto
de pregação, devem ter aparecido algumas coleções primitivas escritas (perdidas atualmente),
e não obstante a pregação baseada na conservação e desenvolvimento oral do material sobre
Jesus tenha continuado até o século II109, a época entre 60 e 100, aproximadamente, foi o
momento em que se compuseram os quatro Evangelhos canônicos. Com respeito aos
evangelistas ou autores/redatores, conforme tradições provenientes do século II e refletidas
nos títulos que precedem os evangelhos, por volta do ano 200 ou até mesmo antes, dois destes
eram atribuídos a apóstolos (Mateus e João), e dois a homens apostólicos, ou seja,
companheiros dos apóstolos (Marcos [companheiro de Pedro] e Lucas [companheiros de
Paulo]).110
Resta dizer ainda que os Evangelhos foram organizados numa ordem lógica, não
necessariamente numa ordem cronológica. Os evangelistas se mostram como autores que dão
forma, desenvolvem, revisam o material transmitido sobre Jesus e, como teólogos, orientam
este material para um fim determinado. 111

II.3. A Crítica das Formas

O método da Crítica ou História das Formas se baseia no princípio de que a forma de


uma unidade literária corresponde a uma situação histórica determinada. Aplicado aos
Evangelhos, este princípio auxilia no conhecimento da obra de Jesus e da criatividade da
Igreja primitiva na transmissão desta obra.
O ceticismo dos resultados sobre Jesus de Nazaré, ao qual chegaram os primeiros
promotores deste método, é devido não ao método em si mesmo, mas aos seus
preconceitos.112
O pioneiro da nova escola foi o ilustre professor de Heidelberg, Martin Dibelius. No
ano de 1919 ele publicou a obra Die Formgeschichte des Evangeliums. Isto se refere ao
período da tradição oral e da imediata formação de algumas unidades primárias. Procura
determinar a natureza e o conteúdo da tradição oral, classificando as unidades individuais do
material escrito dos Evangelhos, de conformidade com a forma literária e o uso comum na
Igreja Primitiva. 113
Hermann Gunkel foi quem despertou a crítica alemã para as possibilidades da
História da Forma (Formgeschichte), quando aplicou esse método na tentativa de elucidar as
narrativas encontradas no livro de Gênesis. Gunkel começa por indagar a respeito do Sitz im
Leben, a situação geratriz ou geradora, das velhas narrativas do primeiro livro canônico. 114
108
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 69.
109
Por volta de 115 d.C. Papias, bispo de Hierápolis, procurava por aqueles que tinham estado com a geração
apostólica mais velha ou seus sucessores imediatos, buscando tradição oral independente dos evangelhos
escritos, que ele também conhecia (HE 3.39.3-4).
110
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 171.
111
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 172.
112
O‟CALLAGHAN, José. A formação do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 28.
113
COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 50.
114
BITTENCOURT, B. P. A Forma dos Evangelhos e a Problemática dos Sinóticos. São Paulo: Imprensa
Metodista, 1969, p. 24-26.

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Estudos no Novo Testamento 1 27

Martin Dibelius, Rudolf Bultmann, Karl Ludwig Schmidt, são alguns dos estudiosos
que contribuíram para a elaboração da critica dos Sinóticos115 estabelecendo alguns critérios e
padrões literários para a pesquisa.
A ênfase de Dibelius não está na tradição evangélica primitiva, mas sim na vida da
comunidade cristã, com o objetivo de determinar as condições e atividades da Igreja Primitiva
como fonte da tradição. O estudioso quer observar a pregação missionária e chega a esta
conclusão ao observar o prólogo do Evangelho Segundo Lucas ao lado de outros textos. 116
A seguir procuraremos apresentar, ainda que de forma resumida, as mais importantes
formas (categorias ou gêneros) e como elas ficaram conhecidas.

II.3.1. Categorias ou Gêneros

Uma leitura de Atos dos Apóstolos nos leva a pensar que o sermão, nos primórdios
da Igreja, possuía um plano definido: kérygma, ou mensagem curta, então a prova pelas
Escrituras e, finalmente, o chamado ao arrependimento. Foi assim que, os objetivos do sermão
criaram a Forma da história evangélica e um estilo definido para a divulgação das boas
notícias. Essas pequenas unidades em circulação receberam o nome de Paradigma (Dibelius),
Apotegmas (Bultmann), Relatos de pronunciamentos (Taylor): relatos que chegam a seu
ponto culminante com uma declaração de Jesus, p. ex.: ditos (Mc 2.1-12; 2.18-22; 2.23-28;
3.1-12; 3.20-30; 3.31-35; 10.13-16; Lc 9.51-56; 14.1-6).117
Como podemos observar nos textos mencionados, os paradigmas nada mais são do
que pequenas histórias que giram em torno de uma ou mais palavras de Jesus. Berger emprega
a designação “créia” (do grego, uso, emprego), sinalizando o emprego de determinado dito
para um caso concreto.118
Outro grupo de Dibelius é intitulado Histórias de Milagres. Em Bultmann este tópico
também é considerado sob o título Histórias de Milagres que são separadas em Milagres de
Cura, Milagres da Natureza e A Forma e a História dos Milagres. Tudo faz parte do material
narrativo. Depois de uma acurada análise individual Bultmann afirma ter encontrado uma
estrutura formal que compreende, em geral, uma introdução, uma exposição de motivos, uma
descrição do ato milagroso e um final. 119 Abaixo apresentamos alguns motivos que, de acordo
com Bultmann, são típicos desse gênero.120

A duração da enfermidade Mc 5.25ss: 12 anos; 9.21: desde a infância;


Lc 13.11: 18 anos; At 3.2, 4.22, 9.33, 14.8;
Jo 9.1
O caráter perigoso ou mortal da enfermidade Mc 5.3-5, 9.18, 22
A ineficácia do tratamento médico Mc 5.26
Dúvida ou zombaria do tratamento do Mc 5.40; 2 Rs 5.11
curador
115
Mais à frente iremos compreender melhor o significado deste termo.
116
BITTENCOURT, B. P. Op Cit., p. 26.
117
BITTENCOURT, B. P. Op Cit., p. 26, 27.
118
BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 1998, p. 78.
119
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. São Leopoldo: Sinodal, 1998, p.
232.
120
BITTENCOURT, B. P. Op Cit., p. 62, 63.

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Estudos no Novo Testamento 1 28

Operação da palavra miraculosa Mc 1.41, 2.11, 3.5, 10.52; Lc 8.54, 13.12,


17.14
O demônio pede um favor Mc 5.7
Demonstração da cura Mc 1.31, 44, 2.11ss, 5.43; Jo 5.8
Impressão causada pelo milagre sobre os Mc 1.27, 2.12, Lc 4.36, 5.26, 7.16; At 9.35,
circunstantes etc.

Temos ainda as Histórias a Respeito de Jesus. Um bom inventário de todas as


narrativas, tomado de Bultmann e Dibelius, nos é dado por Bittencourt. Abaixo apresentamos
um quadro resumo.121

Marcos Lucas
1.4 A pregação de João Batista 2.1-20 O nascimento de Jesus
1.9-11 O batismo de Jesus 2.22-40 A apresentação de Jesus no
templo
1.12-13 A tentação de Jesus 2.41-52 O menino Jesus no meio dos
doutores
1.16-20 A vocação dos discípulos 4.16-30 A visita a Nazaré
1.35-39 Jesus se retira para orar 5.1-11 A pesca maravilhosa
2.13-14 A vocação de Levi 7.36-50 A pecadora que ungiu os pés de
Jesus
3.13-19 A escolha dos doze e seus 8.1-3 As mulheres que serviram a
nomes Jesus
6.7-13 As instruções para os doze 9.52-56 Os samaritanos não recebem a
Jesus
7.24-30 A mulher sirofenícia 10.38-42 Marta e Maria
8.14-21 O fermento dos fariseus e o 19.1-10 Zaqueu, o publicano
de Herodes
8.27-30 A confissão de Pedro 19.39-40 O júbilo dos discípulos
9.2-8 A transfiguração 19.41-44 Jesus chora à vista de Jerusalém
11.1-6 A procura do jumento
11.7-10 A entrada triunfal
14.12-16 Os discípulos preparam a
páscoa

Mateus João
1.18-25 O nascimento de Jesus 1.45-51 O chamado de Natanael
2.1-23 Os Magos, fuga e retorno do 3.1-21 Nicodemos visita Jesus
Egito
3.22-30 Jesus e João Batista
Narrativas pascais 4.1-41 A mulher samaritana
Mc 16.1- A história do túmulo vazio 12.20-22 Os gregos e Jesus
8 par.
Mt 28.9s, As histórias das aparições 13.4-10 Jesus lava os pés aos discípulos
16-20; Lc do ressurreto.
24.13-
35,36-49;
121
Idem, p. 74-76.

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Estudos no Novo Testamento 1 29

Jo 20.14-
18, 19.23,
24-29;
21.1-14,
15-17
7.1-13 Visita à Festa dos tabernáculos
10.22-42 Visita à Festa da dedicação

Além do material narrativo encontramos ainda o material discursivo. Este gênero


compreende o conjunto de todos os ditos, parábolas e imagens usadas por Jesus em sua
pregação.
Em primeiro lugar vamos ver o que são os Ditos ou Lógia. Este gênero também é
conhecido como sentenças. “Sentenças” são ditados ou provérbios em que se expressa uma
experiência universal, em geral na forma descritiva e em pequenas frases. Alguns estudiosos
destacam que as principais características das sentenças são a brevidade, a construção simples
e evidente proximidade da linguagem falada. Por causa disso são muito difundidas e
funcionam como logia errantia (itinerantes).122
Podemos afirmar com relativa segurança que boa parte dos ditos (sentenças) foi
originalmente transmitida de forma isolada. Uma comparação entre as sentenças do Sermão
da Montanha em Mateus e Lucas demonstra isso com facilidade. Diversos ditos (lógia) do
Sermão da Montanha em Mateus reaparecem em contextos bastante diferentes em Lucas. A
título de exemplo podemos comparar Mt 5.17-20 (Jesus e a lei); 6.9-15 (o Pai-Nosso) e 7.7-11
(o atendimento da oração), que no Evangelho Segundo Lucas encontram-se, respectivamente,
em Lc 16.17 (cf. 21.33); 11.2-4 e 11.9-13.123
Segundo Bultmann podemos encontrar elementos da literatura judaica nos ensinos de
124
Jesus. Esse estudioso classifica os ditos de acordo com a forma da seguinte maneira:
Formulação material: onde algo material é objeto – 1 Sm 24.13; Pv 15.16; Mt
12.34b; 6.34b;
Formulação pessoal: Ez 16.44; Pv 11.22; Lc 10.7b; Mc 10.31;
Bênçãos: Pv 3.13-14; Lc 11.28;
Argumentos a maiore ad minus: Pv 15.11; Mt 6.23; 7.11;
Exortação: Pv 1.8-9; 3.11; Lc 4.23b; Mt 8.22;
Perguntas: Pv 6.27-29; Mt 6.27; Lc 6.39.
Ainda dentro das sentenças, lógias ou ditos, podemos encontrar material que alguns
autores denominam de poesia de Jesus. Aqui encontramos facilmente o paralelismo, o ritmo
e mesmo a rima. Vejamos os exemplos com as devidas definições.125
Paralelismos:
a) Sinonímico: “porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons e a chuva
desça sobre justos e injustos.” (Mt 5.45);
b) Antitético: “Assim, toda árvore boa produz bons frutos, e toda árvore má produz
frutos maus.” (Mt 7.17);

122
BERGER, Klaus. Op Cit., p. 61.
123
WEGNER, Uwe. Op Cit., p. 242.
124
BITTENCOURT, B. P. Op Cit., pp. 44-46.
125
Idem, pp. 47-60.

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Estudos no Novo Testamento 1 30

c) Sintético: “pois alargam os seus filactérios e alongam as suas franjas.” (Mt 23.5).
Também encontramos as formas em Ditos Proféticos e Apocalípticos. A ênfase
desses ditos é sobre “o Reino de Deus” e tem “Arrependei-vos”, como apelo (Mt 3.10-12; 24).
Ditos Legais e Regras Eclesiásticas: preceitos disciplinares e reguladores (Mt 5.27-28). Ditos
iniciados com “eu”. 126
Ainda dentro das narrativas temos de considerar o uso de Parábolas. Dentre os
diversos ditos do Senhor Jesus, os estudiosos afirmam que as parábolas são os únicos que
possuem forma. Esses pronunciamentos de Jesus consistem de uma verdade espiritual ou
moral que é enfatizada por meio de uma analogia ou comparação concreta, expressa ou
subentendida.
Na opinião de Reclich as parábolas contêm quatro características:
1) Comparação expressa ou implícita. Faz uso de expressões do tipo “como”,
“semelhante”, etc. (Mt 5.11-16);
2) Esta comparação deve ser simples, uma vez que o objetivo da parábola é ensinar
uma lição simples, de forma clara. Tomemos como exemplo a parábola da ovelha perdida (Lc
15.3-7), ou a do filho pródigo (Lc 15.11-32);
3) Outra característica é que a parábola deve ter somente uma aplicação. Isto
significa que não devemos descer aos pormenores para não convertermos a parábola em
alegoria. A parábola do amigo inoportuno (Lc 11.5-8) serve para exemplificar esta
característica. Já imaginou se tentarmos identificar o amigo inesperado, os filhos no leito, o
pai que já estava na cama com os filhos?
4) Em último lugar, a parábola deve ser objetiva. Seu propósito é convencer alguém
de uma realidade espiritual. Significa dizer que os ouvintes precisam tomar uma decisão (Mt
17.25 “Que te parece?”; 21.28 “E que vos parece?”). Observe que a pergunta exige uma
decisão imediata.127
Por fim128, temos de considerar a Narrativa da Paixão. Podemos assumir que ela teve
desde o início, a forma de um bloco orgânico e homogêneo, cujo texto encontra-se em cada
um dos quatro Evangelhos. Os estudiosos em geral lembram que era preciso, de alguma
forma, mostrar que uma ocorrência paradoxal e sem sentido para o pensamento humano– um
evento ignominioso como a morte de cruz – representava o início do tempo final, ou seja, uma
parte da consumação da salvação.129

126
Idem, p. 51.
127
BITTENCOURT, B. P. Op Cit., p. 55, 53.
128
Na realidade, o problema das formas é por demais extenso para ser tratado em uma obra introdutória como
esta. O estudante de exegese deve procurar maiores informações em obras especializadas. Remetemos o leitor à
obra de BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 1998.
129
WEGNER, Uwe. Op Cit., p. 240, 241.

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Estudos no Novo Testamento 1 31

III. A QUESTÃO DOS EVANGELHOS SINÓTICOS

Chamamos aos três primeiros Evangelhos pela designação “sinóticos”. A palavra foi
introduzida por J. J. Griesbach em 1776, porque sua grande semelhança permite “vê-los
juntos” (sunoyij – synópsis); desde então se dá o nome de sinopse ao manual que, dispondo o
texto de Mateus, Marcos e Lucas em colunas paralelas, permite a visão simultânea e a
comparação de suas formulações. Serve para, além de unir os três evangelhos, separá-los do
Evangelho Segundo João.130
O termo “sinótico”, como vimos, é de origem grega e significa “visão de conjunto”.
Aplicada aos Evangelhos, é, portanto, a visão de conjunto dos textos de Mateus, Marcos e
Lucas em uma sinopse. Nestes três Evangelhos encontramos muitas narrativas iguais de:
milagres, parábolas, discursos, paixão, morte, ressurreição e aparições, às vezes com
pequenas diferenças.
Podemos observar no quadro abaixo a quantidade de versículos comuns a três ou a
dois evangelistas e também os versículos próprios de cada um:

Mc Mt Lc
Comum aos três Evangelhos vv. 330 330 330
Comum a Marcos e Mateus vv. 178 178
Comum a Marcos e Lucas vv. 100 100
Comum a Mateus e Lucas vv. 230 230
Exclusivos de cada um vv. 53 330 500
Total de versículos em cada evangelista vv. 661 1.068 1.160

Os textos paralelos aos três evangelistas são conhecidos como tripla tradição; os
textos paralelos entre Mateus e Lucas, como dupla tradição; e os textos particulares de cada
um são chamados de tradição singular, particular, ou exclusiva.
É assim que, o problema sinótico consiste no seguinte: que relação esses três escritos
tem um com o outro? A Crítica das Fontes compreende essa questão de um ponto de vista
genealógico: a relação entre os três sinóticos é detectada na dependência que revelam de um
em relação ao outro; a pesquisa visa, portanto, a identificar que Evangelho tem prioridade
literária na relação de cada um com os outros.131

III.1. A Crítica das Fontes

Na seção anterior (Crítica das formas) tivemos a oportunidade de examinar a etapa


oral do desenvolvimento dos Evangelhos. Esta incluía, provavelmente, diversas tradições
escritas a respeito da vida e dos ensinos de Jesus. Precisamos admitir que alguns apóstolos
podem ter anotado os ensinamentos de Cristo durante o próprio ministério. Contudo, é
provável que somente mais tarde, o período da oralidade cedeu lugar ao da escrita, num
processo que levou ao surgimento dos Evangelhos canônicos. A Crítica das Fontes busca

130
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 1997, p. 19.
131
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 15.

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Estudos no Novo Testamento 1 32

entender que fontes, escritas ou orais, os redatores dos Evangelhos empregaram na


compilação de seus livros (Lc 1.1-4).132
Como principais propósitos da Crítica das Fontes nós podemos elencar: estabelecer o
quê dos Evangelhos foi escrito independentemente uns dos outros; a natureza das fontes,
comuns ou exclusivas; qual Evangelho é primário e se serviu de fonte para os outros; explicar
as diferenças até mesmo no material em comum; indicar a fonte de um material peculiar a um
Evangelho não primário.133
A solução da questão dos sinóticos tem procurado ser respondida ao longo dos
séculos e as mais variadas soluções têm sido dadas. A primeira tentativa de organizar uma
harmonia dos Evangelhos foi empreendida por Taciano, em seu Diatessaron – ainda dentro
do século II. Agostinho parte do princípio de que nenhum de nossos autores evangélicos
escreveu a obra desconhecendo seu predecessor, contudo, afirmava que a ordem de redação é
aquela encontrada em O Novo Testamento. Clemente de Alexandria, contrariamente, coloca
Mateus e Lucas antes de Marcos e de João. Agostinho afirmava ainda que Marcos resumiu o
Evangelho Segundo Mateus. Essa última afirmação entra em choque com o que disse Papias,
mencionado por Eusébio de Cesaréia. 134
A tradição de Agostinho foi quebrada no século XVIII por Lessing, que afirmou a
dependência comum. Lessing notou em Atos 24.5 que os cristãos eram chamados Nazarenos
e, a partir daí, aventa a possibilidade de um Evangelho original escrito em aramaico ou
hebraico e utilizado de forma independente pelos evangelistas.135
A proposta de Lessing foi adotada por outros, com leves modificações levadas a
efeito por Eichorn, foi postulada a existência de alguns Evangelhos perdidos como fontes dos
Evangelhos Sinóticos. J. G. Herder, por sua vez, propôs a dependência comum de um sumário
oral. Em seguida temos a formulação de F. Schleiermacher, que afirmou a dependência
comum de um número limitado de fragmentos escritos. Esta hipótese já não é mais defendida,
contudo, continua sendo relevante por haver sido a primeira a sustentar que os “lógia” de
Papias referiam-se a um desses fragmentos, ou seja, uma coleção dos ditos de Jesus.136
Interdependência. Outra solução propõe que dois dos evangelistas fizeram uso de um
ou mais Evangelhos para elaborarem o seu. Mateus foi o primeiro a ser escrito, Lucas o
segundo, e Marcos depende dos dois para sua redação.
A hipótese da primazia de Marcos foi aventada pela primeira vez na década de 1803
simultaneamente por Karl Lachmann e C. G. Wilke. A proposta completa das duas fontes foi
formulada por C. H. Weisse em 1838. Para este último, Marcos e uma fonte desconhecida
chamada “Q” (do alemão Quelle137 ou fonte – reconstruída inteiramente valendo-se de Mateus
e de Lucas), foram utilizados por Mateus e Lucas. B. H. Streeter defendeu a existência de
mais duas fontes além de Marcos e “Q”. Para Streeter (1951), devemos ainda considerar uma
132
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 28.
133
COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 53.
134
BITTENCOURT, B. P. Op Cit., p. 114, 115.
135
BITTENCOURT, B. P. Op Cit., p. 115, 116.
136
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 31, 32.
137
Q refere-se a uma coleção de palavras ou pronunciamentos de Jesus, conhecida como logia, palavra grega.
Mateus e Lucas devem ter obtido acesso a esta fonte independentemente um do outro. Eles copiaram muitos
textos iguais dessa fonte que forma a dupla tradição, comum só a Mateus e Lucas. Marcos parece não ter
conhecido esta fonte. OPORTO, Santiago Guijarro. Ditos primitivos de Jesus: Uma introdução ao “Proto-
evangelho de ditos Q”. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 12.

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Estudos no Novo Testamento 1 33

fonte “M”, contendo informações peculiares ao Evangelho Segundo Mateus e uma fonte “L”,
com informações peculiares ao Evangelho Segundo Lucas.138
Mais abaixo voltaremos a essa discussão. Aqui veremos brevemente as hipóteses
mais aceitas na atualidade. Antes, porém, é interessante destacar as semelhanças e as
diferenças existentes entre os Evangelhos Sinóticos.

III.2. As semelhanças nos Sinóticos

De posse de uma sinopse verificamos que Marcos, Mateus e Lucas têm basicamente
uma mesma estrutura, cronologia e geografia. Existem grandes semelhanças e podemos
destacar blocos distintos de capítulos “para o início da vida pública de Jesus após o batismo,
para o ministério de Jesus na Galileia, para o itinerário que Jesus fez da Galileia até Jerusalém
e a atividade de Jesus na própria Jerusalém”. 139
Nos três, podemos observar claramente que a história de Jesus é relatada na mesma
sequência. João Batista batiza o Senhor. Jesus é tentado. Jesus atua publicamente na Galileia.
Diferentemente do Evangelho Segundo João, Jesus realiza somente uma viagem até
Jerusalém, sofre e morre ali, para, em seguida ressuscitar dentre os mortos. Do mesmo modo,
em todos os três a história de Jesus está subdividida em muitas histórias curtas completas em
si (perícopes). Essas narrativas muitas vezes também se inserem na mesma sequência, ainda
que nem sempre possamos identificar claramente um nexo entre elas. Por fim, podemos
acrescentar que nos Sinóticos encontramos coincidências totais até na letra do texto, que são
mais exatas nos ditos do Senhor do que nas partes narrativas. Existem mesmo alguns
exemplos de coincidências literais (Mt 3.3; Mc 1.3; Lc 3.4 - Mt 11.10; Mc 1.2; Lc 7.27 - Mt
9.6; Mc 2.10; Lc 5.24 - Mt 16.28; Mc 9.1; Lc 9.27, por exemplo). 140
Desse modo observamos que Mateus e Marcos dão bastante destaque para a
atividade de Jesus realizada na Galileia. Enquanto isso, Lucas destaca o itinerário de Jesus
que parte da Galileia até chegar a Jerusalém. Notamos que toda a teologia lucana é voltada
para Jerusalém. 141

III.3. As diferenças nos Sinóticos

Além do que foi dito precisamos observar que encontramos diferenças em blocos
semelhantes nos três evangelistas sinóticos. A título de exemplo podemos destacar os relatos
da infância. Marcos não o tem; Mateus narra dentro de uma perspectiva masculina, dando
evidência ao papel de José; Lucas relata dentro de uma perspectiva feminina destacando a
figura de Maria. O mesmo se dá com as bem-aventuranças. Mais uma vez o Evangelho
Segundo Marcos não tem; Mateus relata oito bem-aventuranças (Mt 5.1-12), enquanto Lucas
menciona apenas quatro (Lc 6.20-23).142

138
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 35.
139
COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 49.
140
RIENECKER, F. O. O Evangelho de Mateus. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1998, p. 10, 11.
141
COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 49.
142
COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 49.

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Estudos no Novo Testamento 1 34

De igual modo é fácil perceber as diferenças nas genealogias. Mateus remonta até
Abraão fazendo três grupos de 14 gerações (Mt 1.1-17), com Davi sendo o décimo quarto. Em
hebarico, a gematria (a soma dos equivalentes numéricos das consoantes em uma palavra) de
Davi (David) resulta em 14 (D+V+D= 4+6+4). Em razão da poplaridade de vários usos
criativos da gematria no judaísmo antigo, Mateus pode muito bem ter utilizado deste
dispositivo para estilizar sua genealogia e realçar Jesus como Filho de Davi. 143 Lucas, por sua
vez, relaciona setenta e sete nomes chegando até Adão (Lc 3.20-38).
As diferenças mais fáceis de serem identificadas, com certeza, referem-se ao material
exclusivo de cada um dos Sinóticos. Sob material exclusivo entendemos aquilo que cada
evangelista apresenta sozinho. Isso compreende aproximadamente um terço do material todo.
Podemos destacar os seguintes materiais:
Material exclusivo de Marcos: A parábola da semente (4.26ss), a cura do surdo-
mudo (7.31ss), a cura do cego de Betsaida (8.22ss), prisão e fuga de um jovem (14.51s) etc.
Material exclusivo de Mateus: convite aos cansados e sobrecarregados (11.28ss), as
parábolas do joio entre o trigo, do tesouro, da pérola, da rede (cap. 13), o imposto do Templo
(17.24ss), as parábolas do credor incompassivo (18.23ss), dos trabalhadores na vinha (20.1ss),
dos filhos desiguais (21.28ss), das dez virgens e do julgamento do mundo (cap. 25), os
guardas do sepulcro (27.62ss) etc.
Material exclusivo de Lucas: o jovem de Naim (7.11ss) e a grande pecadora (7.36ss),
e depois, no assim chamado relato de viagem, no qual se encontra a maior parte do material
exclusivo: o bom samaritano (10.25ss), Maria e Marta (10.38ss), a parábola do agricultor rico
(12.16ss), a cura do hidrópico (14.1ss), as parábolas da moeda perdida (15.8ss), do filho
perdido (15.11ss), do administrador injusto (16.1ss), do rico e Lázaro (16.19ss), do
samaritano agradecido (17.11ss), do juiz iníquo (18.1ss), do fariseu e do publicano (18.9ss).
Dos capítulos finais: Zaqueu (19.1ss), Jesus diante de Herodes (23.8ss), os discípulos de
Emaús (24.13ss), a ascensão (24.50ss) etc.144
Para finalizar temos o relato do Jesus ressuscitado. Enquanto Marcos e Mateus
descrevem suas aparições na Galileia, Lucas as descreve em Jerusalém.145

III.4. Inventário

As narrativas de Mateus, Marcos e Lucas apresentam duas características que os


distinguem do Quarto Evangelho. O modo de composição narrativa, por um lado, é análogo:
consiste em uma sucessão de pequenas unidades literárias (lógia, parábolas, milagres,
controvérsias) articuladas mais ou menos firmemente uma à outra. Por outro lado, em número
apreciável, essas unidades literárias se encontram nos três Evangelhos, ou em dois. 146
O Quarto Evangelho, por seu lado, organiza o relato em grandes sequências
narrativas cujo texto coincide muito pouco com o dos Evangelhos Sinóticos.147

143
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 262.
144
RIENECKER, F. O. Op Cit., p. 11.
145
COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 49.
146
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 16.
147
Ibidem.

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Estudos no Novo Testamento 1 35

A pré-história das pequenas unidades literárias, antes de sua integração no texto dos
evangelhos, foi esclarecida pela Crítica das Formas (Formgeschichte): parábolas, relatos de
milagre, controvérsias, lógia da oralidade. A tradição de Jesus não foi guardada pelos
primeiros cristãos com interesse documentário, mas para responder às necessidades do ensino,
da proclamação missionária, da celebração litúrgica ou de codificação ética das primeiras
comunidades cristãs. Foi por isso que ela se fixou já oralmente em formas literárias ditadas
pelo meio da vida comunitária (Sitz im Leben), nas quais se inscreviam: catequese, culto,
debate com a Sinagoga, etc. Sua recepção nos Evangelhos Sinóticos não despojou essas
unidades literárias de suas características formais; a comparação de um Evangelho com outro
ficou, desde então, muito mais fácil. 148
Vamos retomar a observação estatística que já fizemos acima para enfatizar algo
mais. Essa observação estatística nos levará a descobrir que Mateus, Marcos e Lucas
apresentam, cada um, mas em proporção extremamente variáveis, dois tipos de materiais
narrativos: os materiais que eles têm em comum com um ou dois dos outros Evangelhos e os
que lhes pertencem como próprios. A repartição pode ser quantificada. Convém, entretanto,
ter em mente que esses números têm só um valor global, pois a atribuição de um versículo ou
de uma parte do versículo permanece, às vezes, duvidosa. Perceba que para esse quadro o
número de versículos varia um pouco em relação ao anterior. Isto se deve ao fato de que
certos autores assumem ou não determinados textos que a Crítica Textual julga incertos.
Portanto, não devemos nos aferrar a estes dados estatísticos como se isso fosse matéria de
fé.149

Estatísticas:150

Marcos 661 versículos


330 com Mateus/Lucas
325 com Mateus ou Lucas
26 provenientes de material próprio

Mateus 1.068 versículos


523 com Marcos e Lucas
235 só com Lucas
310 provenientes de material próprio

Lucas 1.149 versículos


364 com Marcos e Mateus
235 só com Mateus
550 provenientes de material próprio

Percebemos que Marcos e Lucas apresentam traços inversos: Marcos contém apenas
uma pequena quantidade de material próprio (26 versículos em um total de 661), ao passo que

148
Ibidem. p. 16.
149
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 16.
150
Esses números costumam variar de acordo com o manual que empregamos. Aqui tomamos a estatística de
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 17.

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Estudos no Novo Testamento 1 36

a parte específica de Lucas atinge quase a metade do texto (550 versículos em 1.149); a
repartição proporcional de Mateus situa-o entre esses dois Evangelhos. Por outro lado,
identificamos 80% do material de Marcos em Mateus e 55% em Lucas. O texto comum a
Mateus, Marcos e Lucas (tradição tríplice) cobre 330 versículos, enquanto o texto de tradição
dupla (Mateus-Lucas) comporta cerce de 235. As coincidências narrativas entre os Sinóticos
são, portanto, ao mesmo tempo grandes e múltiplas. 151

III.5. A Crítica dos Evangelhos

III.5.1. Hipóteses de origem dos Evangelhos canônicos

O número de semelhanças é grande demais. Percebemos que existe uma dependência


literária entre os escritos. Surge assim mais uma questão: que dependências e em que
sentido?152 Para isso voltemos ao problema das fontes.

III.5.1.1. Hipótese de que Mateus foi o primeiro Evangelho e foi usado por Lucas

Conforme vimos acima, durante longo tempo prevaleceu a opinião de Agostinho, um


dos pais da Igreja que, ao tentar responder às críticas relativas à contradição entre os
Evangelhos; publicou, no ano 400 De consensu evangelistarum. Sua tese era que os
Evangelhos tinham aparecido segundo a ordem canônica, Mateus primeiro, Marcos como uma
abreviação de Mateus (1.2) e Lucas para evidenciar a dimensão sacerdotal de Cristo (1.3). Sua
teoria exerceu enorme influência ao longo da história da Igreja. 153
Foi a partir do fim do século XVIII que a pesquisa, estimulada pela busca do Jesus
histórico, situou a questão da dependência entre os Sinóticos não mais no plano dogmático,
mas nos planos literário e histórico. Até hoje, as teorias explicativas se dividem em duas
categorias: a derivação de um modelo comum ou o estabelecimento de uma genealogia entre
os sinóticos.154

III.5.2. Hipótese baseada na prioridade de Marcos

Marcos foi escrito primeiro e, em seguida, Mateus e Lucas fizeram uso dele. Uma
vertente dessa teoria chega a postular que Lucas fez uso de Mateus também, mas enfrenta
certas dificuldades. A tese mais comum “argumenta que Mateus e Lucas dependem de
Marcos e escreveram independentemente um do outro”. O que eles têm em comum e não
derivou de Marcos é explicado com base em Q. Essa é conhecida como a Teoria das Duas
Fontes.155

151
Ibidem.
152
Ibidem. p. 19.
153
Ibidem.
154
Idem. p. 20.
155
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 178.

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Estudos no Novo Testamento 1 37

BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cuestiones


preliminares, evangelios y obras conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002,
p. 178.

A Teoria das Duas Fontes é resultante do desenvolvimento no fim do século XIX (C.
H. Weisse, 1838; H. J. Holtzmann, 1863; P. Wernle, 1899). Ela recebe atualmente a
aprovação de um grande número de pesquisadores.156
O argumento básico para a prioridade do Evangelho Segundo Marcos é que esta
resolve mais problemas do que qualquer outra teoria postulada. Além disso, ela oferece a
melhor explicação para o fato de Mateus e Lucas concordarem tão frequentemente com
Marcos na sequência e na construção das frases, e permite razoáveis conjecturas para o fato
de Mateus e Lucas diferirem de Marcos quando isso acontece independentemente. Podemos
observar, por exemplo, que nenhum dos evangelistas gostava das redundâncias de Marcos, de
suas expressões gregas deselegantes e da apresentação pouco lisonjeira dos discípulos. Ao
fazer uso de Marcos, ambos expandem as narrativas do primeiro evangelista à luz da fé pós-
pascal. O argumento básico contra a prioridade marcana assenta-se nas concordâncias
menores. Para muitas delas, podemos oferecer boas explicações, contudo, outras permanecem
muito difíceis de serem explicadas. 157
Podemos resumir afirmando que a Teoria das Duas Fontes trabalha com três
princípios:158
1. Marcos é o Evangelho mais antigo;
2. Uma fonte denominada Q está na origem da tradição dupla;
3. Mateus e Lucas se beneficiaram, cada um, de tradições particulares.
As quatro fontes. Como vimos, Streeter acrescenta às duas fontes, Marcos e “Q”, a
fonte “M” com material peculiar a Mateus, e a fonte “L” com material peculiar a Lucas.

Teoria das quatro Fontes

156
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 25.
157
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 179.
158
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 25.

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Estudos no Novo Testamento 1 38

III.5.3. A Crítica da Redação

A Crítica da Redação (Redaktiongeschichte), também Crítica da Composição


(Kompositionsgeschichte) surgiu como reação à Crítica das Formas (Formgeschichte), que
considerava os autores bíblicos meros compiladores do material transmitido pela tradição –
oral e escrita. A Crítica da Redação defende que os redatores bíblicos são verdadeiros autores.
Eles selecionaram, modificaram e organizaram o material proveniente da tradição; além disso,
eles acrescentaram novos textos e estabeleceram uma estrutura geral da obra. Isto fica
evidenciado ao percebemos que cada evangelista tem um estilo, habilidades literárias
diferenciadas, além, é claro, de sua teologia própria. 159

III.5.3.1. Propósitos da Crítica da Redação

A Crítica da Redação procura fazer distinção entre o que é tradição e o que é


redação. Para os críticos da redação, tradição é tudo, “desde longas fontes escritas até breves
relatos e declarações transmitidos oralmente”, que o redator de cada Evangelho tinha a
disposição na composição de seu texto final. Redação, por outro lado, refere-se ao processo de
modificar e ajustar tal tradição à medida que o Evangelho era de fato redigido.160

III.5.3.2. Principais Características

Podemos visualizar a atividade redatorial ou editorial dos evangelistas observando


diversas áreas.161
Em primeiro lugar podemos visualizar os dados que os evangelistas escolheram
incluir e excluir: O Sermão do Monte em Mateus (5-7) e Lucas (6.10-49).
Observamos atividade redatorial também ao verificar a disposição dos dados. É fácil
verificar que Mateus diverge de Marcos (4.35-5.23) e Lucas (8.22-56) na colocação de três
relatos significativos de milagres: a tempestade aquietada (8.18, 23-27), a cura do(s)
endemoninhado(s) gadareno(s) (8.28-34) e as duas histórias entremeadas da ressurreição da
filha de Jairo e da cura da mulher com fluxo de sangue (9.18-26).

159
SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia da exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2009.
160
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 44.
161
Idem, p. 45, 46.

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As “costuras” que o evangelista utiliza para juntar suas tradições também é uma área
tratada pela Crítica da Redação. A mais perceptível dela encontramos em Mateus que se
utiliza da repetida fórmula “Quando Jesus acabou de proferir estas palavras” (Mt 7.28; 11.1;
13.53; 19.1; 26.1).
Acréscimos aos dados. No relato a respeito do ministério de cura de Jesus e da
chamada dos 12 (Lc 6.12-19), que parece depender de Marcos 3.13-18, Lucas menciona o
fato, não registrado por Marcos, de que Jesus “retirou-se para o monte a fim de orar, e passou
a noite orando a Deus”. Percebem-se indícios de uma preocupação tipicamente lucana.
Omissão de dados. Alega-se com frequência que Lucas, ao redigir seu texto, omitiu a
referência a Jesus “vindo sobre as nuvens do céu” (22.63-71 cf. Mc 14.62 e Mt 26.64) na
resposta dada ao sumo-sacerdote (22.29) porque Lucas pretende evitar a ideia de uma
parousia iminente.
Por fim, temos as alterações do fraseado: a bem-aventurança sobre os pobres. De
acordo com Mateus são bem-aventurados os “pobres de espírito” (5.3); de acordo com Lucas,
“os pobres” (6.2).162
Concordamos com Carson que afirma a necessidade de tomar cuidado, contudo, com
as afirmações exageradas, pressuposições falsas e aplicações inadequadas. Se a utilizarmos de
forma adequada, na exegese dos textos, a Crítica da Redação pode ser de ajuda real na
interpretação dos Evangelhos. 163 Vale ressaltar que o mesmo se aplica para a Crítica das
Formas e para a Crítica das Fontes.

162
Para uma análise mais detalhada da Crítica da Redação sugerimos SILVA, Cássio Murilo Dias da.
Metodologia da exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2009.
163
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 52.

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Estudos no Novo Testamento 1 40

IV. O EVANGELHO SEGUNDO MARCOS

Desde que os Evangelhos passaram a ser estudados como documentos históricos


mais do que como simples tratados de edificação, o livro de Marcos saiu de um longo período
de injusto esquecimento para ocupar o seu lugar de primazia no que concerne à autoridade
sobre a vida e o ensino de Jesus. Na realidade, não é nova a posição de preeminência que os
modernos especialistas dão a este documento, visto como o que agora se faz é simplesmente
restaurar a situação original. Se as conclusões a que chegam os estudiosos do problema
Sinótico estão certas, Marcos desfrutava, naqueles dias antigos, quando os Evangelhos foram
escritos, de uma reputação muito semelhante à que hoje tem.
O primeiro passo ao considerar qualquer livro do Novo Testamento é lê-lo por inteiro
lenta e atentamente. A leitura cuidadosa deve preceder – e tornar compreensível – toda
especulação erudita sobre o livro. 164 Dessa forma, é de vital importância que cada um dos
livros canônicos estudados seja lido vagarosa e atentamente antes de proceder ao estudo do
material introdutório. Depois de estudar o material introdutório o livro canônico deve ser lido
novamente, desta vez de posse das informações históricas, literárias e teológicas aqui obtidas.
Para estudarmos o Evangelho Segundo Marcos faremos uma divisão em três seções:
questões históricas, questões literárias e questões teológicas. Ao término dessas seções o
estudante deverá obter uma compreensão panorâmica desse Evangelho e apontar caminhos
pelos quais poderá ler, interpretar e ensinar o conteúdo do livro. Faremos o mesmo com cada
um dos Evangelhos seguintes e também com o livro de Atos.
A razão de iniciarmos com o Evangelho Segundo Marcos é, como já vimos, a
aceitação generalizada pela erudição de que este foi o primeiro Evangelho canônico a ser
redigido. Sendo assim, procuraremos seguir uma ordem cronológica; apenas o bloco Lucas-
Atos deverá ser dividido ao meio com o objetivo de estudarmos o Evangelho Segundo João
antes do segundo volume de Lucas. Neste caso a razão é por causa do conteúdo e não por
causa da cronologia.

IV.1. Questões Históricas

Ao tratarmos desse Evangelho, trazemos de volta à memoria as informações


pertinentes ao período apostólico. Foram várias as realidades e necessidades que fizeram com
que grupos, comunidades ou indivíduos, reunissem as tradições orais em pequenas coleções,
escritas num texto que abrangesse essas diversas tradições e que fosse organizado com
determinado propósito editorial e teológico da referida comunidade ou indivíduo.
Nesta primeira seção analisaremos a origem, autor, data, lugar de composição,
destinatários e situação que motivou a obra e as fontes utilizadas. Iniciemos então com a
autoria.

IV.1.1. Autoria

164
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 193.

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Estudos no Novo Testamento 1 41

Da mesma forma como todos os Evangelhos que nós temos, para o Evangelho
Segundo Marcos, dependemos totalmente do testemunho externo para nomear o autor.
Contudo, ficamos tranquilos ao saber que a voz da antiguidade é unânime em atribuir este
Evangelho a João Marcos.165
O mais antigo e importante testemunho data do início do século II e foi registrado
por Eusébio no início dos anos 300. Trata-se do testemunho de Papias. No livro de Eusébio
podemos ler que:

[...] Marcos, que foi intérprete de Pedro, pôs por escrito, ainda que não com ordem,
o quanto recordava do que o Senhor havia dito e feito. Porque ele não tinha ouvido o
Senhor nem o havia seguido, mas, como disse a Pedro mais tarde, o qual transmitia
seus ensinamentos segundo as necessidades e não como quem faz uma composição
das palavras do Senhor, mas de tal forma que Marcos em nada se enganou ao
escrever algumas coisas tal como as recordava. E pôs toda sua preocupação em uma
só coisa: não descuidar nada de quanto havia ouvido nem enganar-se nisto o mínimo
(HISTÓRIA ECLESIÁSTICA, 3.39.15).166

Se pudermos entender que “não com ordem” diga respeito à sequencia cronológica,
esse testemunho tão antigo também confirma nossas observações a respeito da leitura crítica
dos Evangelhos. Contudo, nosso foco aqui recai sobre o testemunho da autoria. Além de
Papias, citado por Eusébio, sabemos que Justino, Irineu, o Cânon Muratoriano e o Prólogo
Anti-Marcionista também atribuem o Evangelho a Marcos, um intérprete de Pedro. 167
Esse Marcos é já no início do século II, identificado com João chamado Marcos, o
filho da Maria para cuja casa o apóstolo Pedro fugiu logo após escapar da prisão (At 12.12); o
mesmo Marcos que Paulo e Barnabé levaram na chamada Primeira Viagem Missionária (At
12.25). Ele também aparece em Colossenses 4.10 como sobrinho ou primo de Barnabé
(avneyio.j o vocábulo grego (anepsios) serve para os dois casos).168
Diversos estudiosos questionam a confiabilidade dessa tradição. Entretanto, somos
obrigados a observar que o colorido gentio do texto é suficiente para mostrar que os
destinatários eram principalmente gentios, e não que o autor era gentio. Observamos que
dificilmente alguém, exceto Pedro, pudesse dar um tratamento tão negativo a respeito dos
discípulos. Por fim, considerando-se que Marcos não fazia parte do círculo dos doze, é pouco
provável que alguém com pouco conhecimento seguro sobre o verdadeiro autor desse
Evangelho, mas disposto a dar-lhe uma credibilidade e um testemunho autorizados, tivesse
escolhido Marcos como tal autoridade.169170

IV.1.2. Data

A data em que foi escrito nosso Evangelho em estudo tem sido fixada entre 50-70
d.C. Isto concorda com a suposição de que Marcos escreveu depois da morte de Pedro –

165
BERKHOF, Louis. Introdução ao Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2014, p. 65.
166
CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica. São Paulo: Novo Século, 2002, p. 41.
167
EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Comentário Bíblico Beacon. Volume 6. Rio
de Janeiro: CPAD, 2015, p. 219.
168
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 73, 74.
169
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 163, 164.
170
O mesmo argumento servirá para o Evangelho Segundo Lucas.

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Estudos no Novo Testamento 1 42

ocorrida provavelmente durante a perseguição de Nero em 64-66 d.C., mas antes da


destruição de Jerusalém em 70 d.C. Precisamos levar em conta ainda que, o Evangelho
Segundo Lucas e o Livro de Atos, foram escritos antes da morte de Paulo – aproximadamente
em 66 d.C. Uma vez que, segundo a Crítica das Fontes, o Evangelho Segundo Lucas utiliza-se
de Marcos como uma de suas fontes, deveríamos recuar Marcos para antes do Evangelho
Segundo Lucas, pelo menos.171 Isto sugere uma data por volta do final dos anos 50.

IV.1.3. Lugar de Composição

A grande maioria das evidências externas associa o Evangelho Segundo Marcos a


Roma ou a “regiões da Itália”. João Crisóstomo (c. 400 d.C.) relaciona a escrita de Marcos ao
Egito. A origem romana é claramente aceita e ajusta-se bem à evidência interna do
Evangelho. O texto inclui diversos latinismos (quadrans; 4.1: modius; 5.9, 15: legion, por
exemplo) e inúmeras explicações de conceitos e termos judaicos (o ritual de lavar as mãos e a
corbã em 7.3-4,11). Tudo isso descarta uma origem e destinatários judeus. 172

IV.1.4. Propósito

Entre os estudiosos da Bíblia a conclusão é que os Evangelhos foram escritos com


um objetivo teológico. Ou seja, não se trata de biografia pura, mas sim de uma interpretação
teológica dos fatos que aconteceram na vida, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. João
Marcos escreve com a ênfase de que Jesus foi o Messias, o Filho do Homem e o Filho de
Deus. Parece que a comunidade cristã destinatária estava passando por uma crise. Talvez a
igreja estivesse sofrendo até mesmo uma perseguição “política” simplesmente por ser cristã.
Ela necessitava de uma declaração clara e abrangente sobre a pessoa de Jesus Cristo, que
morrera em uma condição ignominiosa numa cruz romana.

IV.2. Questões Literárias

Na segunda seção iremos analisar as questões literárias. Começaremos


desenvolvendo o tema da confiabilidade textual (crítica textual), depois analisaremos o estilo
e a forma. Ao final desta seção propomos uma estrutura geral da obra. A partir daqui já
poderemos tentar uma primeira leitura da obra como unidade literária.

IV.2.1. Crítica Textual

Segundo as conclusões da Crítica Textual o texto desse Evangelho chegou até nós de
uma forma completa e substancialmente boa, atestado em papiros, manuscritos, traduções,
lecionários e testemunhos de escritores eclesiásticos que remontam até os inícios do século
III. O texto contém 16 capítulos (1.1-16-8), com um apêndice (16.9-20). Apesar de a crítica

171
EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Op Cit., p. 219.
172
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 159.

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Estudos no Novo Testamento 1 43

afirmar que o apêndice seja um acréscimo tardio, temos indícios de sua existência já a partir
do ano 150.173
As denominações mais antigas que temos documentadas a partir dos manuscritos são
as seguintes:
KATA MARKON ¥ B pc
euaggelion kata Markon A D L W Q f13 1. 33. 2427 Û lat
to kata Markon agion euaggelion 209. 579. al (vgcl)
Ao códice ¥ acrescentamos que no final ele traz uma subscrição que é típica do
sistema livreiro da Antiguidade: EUANGGELION KATA MARKON.174
Uma vez que assumimos o estudo dos Evangelhos Sinóticos, talvez seja interessante
conhecermos quais são os textos exclusivos do Evangelho Segundo Marcos. Na tabela abaixo
estão dispostos os relatos que não são mencionados nem em Mateus nem em Lucas. 175

Textos em Marcos Conteúdo


sem paralelos
3.20,21 Temor dos familiares de que Jesus esteja fora de si
4.26-29 A parábola da semente que cresce por si
7.31-37 A cura de um surdo-mudo na Decápolis
8.22-26 A cura gradual do cego em Betsaida
13.33-37 Exortação à vigilância dos servos e porteiros
14.51-52 Homem jovem que fugiu nu
16.17-18 Os sinais que acompanham a fé
16.19,20 O Senhor exaltado e a atividade missionárias dos
apóstolos

Muitos estudiosos consideram o texto de 14.51-52 “Homem jovem que fugiu nu”
uma menção velada do próprio autor do Evangelho Segundo Marcos.

IV.2.2. Linguagem e Estilo

O Evangelho Segundo Marcos foi redigido em grego koiné com forte influência
semita, uma característica comum dos países semitas bilíngues do Oriente, como a Sírio-
Palestina e o Egito.
Estilisticamente caracteriza-se pelo pouco cuidado no uso do vocabulário, pela
liberdade no uso da sintaxe e pela vivacidade e realismo de seus relatos que, apesar das
incorreções gramaticais, captam a atenção do leitor desde o primeiro momento.
O vocabulário marcano é composto de 1.345 palavras, das quais 60 são nomes
próprios e 79 são hápax legomena, ou seja, únicas em O Novo Testamento. Repete
frequentemente uma série de palavras, tais como ter (ekho, 60 vezes), um (heîs, 38 vezes), de
novo (palin, 28 vezes). Contêm semitismos, especialmente aramaísmos, a maioria

173
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Evangelios sinópticos y echos de los
Apóstoles. Espanha: Editorial Verbo Divino, 1991, p. 149.
174
MAUERHOFER, Erich. Introdução aos Escritos do Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2010, p.
121, 122.
175
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 121.

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Estudos no Novo Testamento 1 44

relacionados com a topografia, onomástica e com as Instituições de Israel, como thalassa com
o sentido de lago, Barabbas, Bartholomaios, Bartimaios, Thomas, Satanas, Bethsaida,
Gennesaret, Golghota, Kafarnaoum, Paskha. Do mesmo modo, como antecipamos acima,
emprega latinismos oriundos da linguagem técnica militar, comercial e jurídica: denarion,
denário; kensos, censo; kentyríon, centurião; legion, legião; modius, módio medida; xestes,
estrangeiro; spekoulator, sentinela; fragelloun, açoitar. A sintaxe é própria da linguagem
popular, pouco trabalhada estilisticamente. Temos o predomínio da parataxe. Além disso, é
pobre em conjunções. Por fim, devemos ressaltar que o estilo é popular e vivo, próprio da
linguagem falada.176

IV.2.3. Estrutura Literária

O Evangelho Segundo Marcos não apresenta um estrutura harmônica como Mateus e


João. O autor queria fazer uma seleção de “palavras e obras” para pintar com eles um “retrato
vivo de Jesus”.
Observamos facilmente que o evangelista não se empenhou em escrever a “história”
de Jesus de acordo com os cânones da historiografia moderna. Dessa forma, o autor não
seguiu uma cronologia estrita. Isto já ficou evidenciado na citação de autoria dada por
Eusébio acima. Os comentaristas adotam diferentes critérios para descobrir a estrutura do
segundo Evangelho. Alguns propõem uma estrutura levando em conta os dados geográficos e
as viagens de Jesus. Há quem prefira fixar-se nos indícios literários e doutrinais. Outros
acreditam que Marcos escreveu seu Evangelho para combater algum tipo de heresia.
Nós adotaremos a estrutura que procura demonstrar as diversas etapas da vida de
Jesus de acordo com o texto mesmo.
Estrutura do Livro.
I. Preparação para o ministério de Jesus 1.1-13.
II. Ministério na Galileia 1.14-6.13.
III. Ministério além da Galileia 6.14-8.26.
IV. Interlúdio estrutural 8.27-30.
V. A Caminho de Jerusalém 8.31-10.52.
VI. Ministério de Jesus em Jerusalém 11.1–13.37.
VII. A última ceia 14.1-31.
VIII. A narrativa da paixão de Jesus 14.32–15.47.
IX. A ressurreição do Senhor 16.1-20.

Antes de encerrarmos este tópico, é interessante notar, contudo, a semelhança da


estrutura marcana com a pregação de Pedro. Observamos que depois de uma introdução, a
narrativa segue para o ministério na Galileia, seguida de um relato a respeito da atividade de
Jesus além da Galileia, da viagem para Jerusalém e do último ministério com o ápice da
paixão e ressurreição de Jesus. Certo estudioso conseguiu identificar esse mesmo arcabouço
em Atos dos Apóstolos, sobretudo em 10.34ss. Vejamos a comparação abaixo:

176
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., pp. 151-157.

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Estudos no Novo Testamento 1 45

At 10.34ss Marcos
v. 36 Anúncio do Cristo como Senhor sobre todos 1.1-3
v. 37-38a Batismo por João e começo da atuação na Galileia; preparação 1.4-37
com o Espírito Santo e poder
v. 38b Andou pela região, fazendo o bem, curou enfermos e expulsou 1.38-10-52
demônios
v. 39ª Atuação de Jesus na terra da Judeia 11.1-13.37
v. 39b Crucificação 14.1-15.47
v. 40-42 Ressurreição, aparições, ordem missionária 16.1-20

IV.3. Questões Teológicas

Nesta terceira e última seção continuamos a análise da obra sob o ponto de vista do
seu conteúdo. Não podemos jamais esquecer que a obra de Marcos, assim como a dos demais
evangelistas, é fundamentalmente teológica, tendo a cristologia como o lugar central.
A finalidade teológica do Evangelho Segundo Marcos fica claramente evidenciada
no título mesmo da obra: proclamar a Boa Notícia “o Evangelho de Jesus Messias, Filho de
Deus” (1.1).
O Evangelho em estudo, mais que apresentar sistematicamente a doutrina do Mestre,
põe em relevo os atos e palavras que apresentavam a Jesus como o Messias, como o Filho do
Homem e como o Filho de Deus. Tudo isto é uma verdade de fé aceita e vivida, que não tem a
intenção de provar, mas de manifestar.

IV.3.1. Jesus é o Messias, o Cristo

Tudo tem seu início no acontecimento do Jordão. Logo que sai da água os céus se
rasgam e Jesus vê que o Espírito, como pomba, desce sobre ele, e escuta-se a voz do céu: “Tú
és o meu Filho amaro, em quem me comprazo” (1.10-11). Jesus é, pois, o Ungido (Messias
em hebraico ou Cristo em grego) com o Espírito; é o Messias que vem para instaurar o Reino
de Deus (1.14-15).

IV.3.1.1. Jesus: Messias investido com poder

O Messias Jesus supera em grandeza aos profetas do Antigo Testamento. Ele é “o


santo de Deus” (1.24), vencedor sobre os demônios, senhor da natureza animada e inanimada,
que vem para resgatar os homens por meio de seu sacrifício na cruz do calvário (8.31; 10.45).
Disso resulta a importância dos exorcismos, dos milagres e das curas, que ostentam a
onipotência do Salvador (1.23-25; 4.39).
Em primeiro lugar podemos compreender que os exorcismos refletem a luta da
ordem espiritual e escatológica que opõe o Reino de Deus ao Reino de Satanás (sem cair no
dualismo cósmico). Esta luta, em geral invisível, manifesta-se no modo de agir e falar dos
demônios, a quem Jesus proíbe de falar e revelar mais coisas (1.24-25; 3.11-12; 5.7).
Em segundo lugar temos os milagres e as curas. Estes são forças ou atos de poder
(dynameis) que manifestam que o Reino de Deus chegou e está presente em Jesus. O Mestre

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Estudos no Novo Testamento 1 46

ordena aos curados que não falem da obra que realizou neles, contudo, isso é praticamente
impossível (7.36s).

IV.3.1.2. O segredo messiânico

Várias vezes, o Evangelho Segundo Marcos destaca o fato de Jesus pedir silêncio a
respeito de algum feito extraordinário que realizara (1.25,34,44; 3.12; 5.43; 7.36; 8.26). Nos
estudos e comentários exegéticos, convencionou-se chamar essa concepção teológica de
“segredo messiânico”, o que, uma vez percebido, tornou-se uma das características desse
Evangelho, que também foi acolhida pelos outros Evangelhos (Mc 8.30; Mt 16.20; Lc 9.21;
Mc 9.9; Mt 17.13, entre outros).177
O termo hebraico e aramaico mashiah não se refere nunca, no Antigo Testamento, a
uma figura salvadora do futuro, mas a uma personagem histórica presente, geralmente o rei e,
poucas vezes, aos sacerdotes, patriarcas e profetas. Só posteriormente o termo passa a ser
aplicado a tais figuras para designar a salvação escatológica. 178
No pensamento judaico, o termo “messianismo” se refere geralmente a dois
elementos: a espera de um tempo futuro caracterizado pela felicidade e pela justiça; e a crença
de que o mundo feliz será trazido não tanto pela ação de forças somente humanas – por
exemplo, pela observância estrita da Lei – como pela mediação de uma ou várias figuras
divinas, denominadas Messias.179
Na época de Jesus, o conceito de Messias era de um descendente de Davi, guerreiro
nacionalista, que reconquistaria a liberdade para o povo de Israel e reestabeleceria o reino aos
judeus (Mc 8.29-33; 12.35-37; Jo 6.15; At 1.6).
Todavia, este conceito era tão alheio ao messianismo de Jesus que ele mesmo não
gostava de ser chamado publicamente de Messias (1.34,44; 3.12; 5.43; 7.36; 8.26,30; 9.9).
Somente após a sua morte e ressurreição, depois da descida do Espírito Santo sobre a igreja,
os discípulos puderam compreender sua autêntica missão. Assim ele foi reconhecido e
proclamado como Messias-Cristo.
Dessa forma, observamos que o “segredo messiânico” encerra uma visão cristológica
muito profunda.

IV.3.2. Jesus é o Filho do Homem

O termo “Filho do Homem” aparece oitenta e duas (82) vezes bem distribuídas entre
os quatro Evangelhos. Observamos, em primeiro lugar, que esse título nunca aparece em
nenhum dos Evangelhos como uma designação de outras pessoas aplicada a Jesus. Em todas
as narrativas encontramos somente o próprio Cristo utilizando-se desse título. Ele demonstra
um particular interesse por essa designação.180 Esse título tem a vantagem de sugerir um papel

177
ZUCK, Roy B. Teologia do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2010, pp. 79-81.
178
SCHIAVO, Luigi. Anjos e messias: messianismos judaicos e origem da cristologia. São Paulo: Paulinas,
2006, p. 37.
179
Ibidem.
180
RIBEIRO, Jonas Celestino. Os ensinos de Jesus – O Evangelho de Marcos. Rio de Janeiro: JUERP, 2000,
p. 49.

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Estudos no Novo Testamento 1 47

messiânico, particular e misterioso (Dn 7.13-14; Mc 2.10,28; 8.31,38; 9.9,12,31; 10.33,45;


13.26; 14.21,41,62).
Paradoxalmente o título ressalta a condição débil e limitada do ser humano. O
evangelista destaca claramente os traços humanos de Jesus: é um trabalhador cuja família é
bem conhecida (6.3); não pode fazer milagres por causa da incredulidade de seus patrícios
(6.5s); mostra diversos sentimentos humanos (3.5; 6.34; 8.2,12; 10.14,16,21; 14.34); faz
perguntas (5.30; 8.5; 9.16-21).
Outro aspecto de Jesus como o Filho do Homem é que ele deve passar pela
humilhação, o sofrimento e a morte. Ele mesmo predisse (8.31; 9.31; 10.38s). Esse caminho
faz parte do desejo de Deus e foi anunciado pelas Escrituras (9.12; 14.21). A morte de Cristo
possui um caráter redentor (10.45; 14.24). A salvação, conquistada pelo preço de sua própria
vida, trará benefício a toda a humanidade (12.8-12; 13.10; 14.9).181
Mais um aspecto oculto e doloroso da pessoa de Jesus reflete-se em sua obra. O
Reino de Deus, que ele inaugura, possui origens modestas e difíceis. O capítulo das parábolas
traz esta afirmação (4.1-34). Seus discípulos somente podem segui-lo por um caminho de
humilhação, de desprendimento e de cruz (8.34s; 9.35; 10.15; 10.24s,29s,39; 13.9-13).
A narrativa marcana demonstra que os acontecimentos foram a confirmação deste
plano divino. Em Jesus, humanamente falando, encontramos somente contradições e
fracassos. É assim que Marcos destaca a insensibilidade das multidões (4.12; 5.40; 6.2s), as
hostilidades das autoridades judaicas (2.1-3,6; 3.22; 7.5; 14.1), a incompreensão de sua
própria família (3.21) e, por fim, a fraqueza de seus discípulos (6.52; 7.18; 8.17s.21,33;
9.19,32,34; 10.38; 14.4s,27,30,37s,66-72).
De outro lado, Jesus como “o Filho do Homem”, manifesta, como adiantamos acima,
um mistério mais profundo. Ele é o misterioso personagem messiânico de origem celeste
anunciado em Daniel (7.13-14), o qual padecerá, morrerá, mas ressuscitará (8.31; 9.9,31;
10.33-34) e virá na glória de seu Pai com os anjos (8.38), sentado à destra de Deus sobre as
nuvens e com grande poder (13.26; 14.62).
A chave para a compreensão desse Evangelho está na eminente dignidade de Jesus e
em sua condição menosprezada: Jesus é um Messias crucificado. Contudo, o escândalo da
cruz só pode ser compreendido através do fato de sua ressurreição gloriosa.

IV.3.3. Jesus é o Filho de Deus

Esse é o título que destaca mais nitidamente a divindade de Jesus. A confissão do


título aparece em momentos cruciais da vida de Jesus: na apresentação do evangelho (1.1);
depois do batismo no Jordão (1.11); na transfiguração (9.7); nos dias de sua pregação em
Jerusalém (13.32); na confissão do centurião (15.39).182
A realidade ontológica de ser “o Filho de Deus” se manifesta em poderes que
correspondem somente a Deus: perdoar os pecados (2.10-12); poder sobre o shabbát (2.28;
31.1-5); expulsa os demônios (1.28.34; 3.11), conhece os segredos do coração (2.8; 8.17;
12.15); prediz o futuro (8.31s; 10.39; 13.1ss); é Senhor das forças da natureza (4.41).183

181
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 526, 527.
182
RIBEIRO, Jonas Celestino. Op Cit., p. 48.
183
LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003, p. 212, 213.

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Por fim, Jesus se apresenta como o Filho amado, o Herdeiro, a quem Deus envia à
sua vinha (12.6); ele é superior aos anjos (1.13; 13.32); em sua pessoa vem o Reino de Deus
(1.15), que será instaurado de maneira definitiva quando vier na glória de seu Pai com os
anjos (8.38s).184

184
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 529.

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Estudos no Novo Testamento 1 49

V. O EVANGELHO SEGUNDO MATEUS

Na ordem tradicional, o Evangelho Segundo Mateus faz a abertura do Novo


Testamento. A justificativa e que ele é aquele dos quatro evangelhos que procura, mais
acentuadamente, estar dentro da linha do Antigo Testamento. Mateus lança uma ponte entre a
expectativa do reino messiânico, cuja vinda é proclamada nos livros proféticos do Antigo
Testamento, e o advento de Jesus Cristo, que O Novo Testamento apresenta como a resposta a
essa espera.185
Um olhar atento sobre a obra de Mateus pode nos ajudar a perceber, na experiência
de Jesus, o retrato da experiência de seu povo, que foi exilado, perseguido por causa de sua fé,
resistência aos seus profetas, morte de suas lideranças e, mesmo assim, tornou-se luz das
nações. Jesus é o herdeiro e, ao mesmo tempo, a concretização das promessas dessa fé.
Mateus demosntra como as promessas feitas a Israel se cumpriram em Jesus, filho de Davi,
filho de Abraão e filho de Maria de Nazaré. Toda a história do nascimento, vida, obra e morte
de Jesus evocam a caminhada do povo de Deus.
Do mesmo modo como fizemos com o Evangelho Segundo Marcos faremos com o
Evangelho Segundo Mateus, ou seja, dividiremos nossa abordagem em três seções: questões
históricas, questões literárias e questões teológicas. O objetivo também é o mesmo: o
estudante deverá obter uma compreensão panorâmica desse Evangelho e apontar caminhos
pelos quais poderá ler, interpretar e ensinar o conteúdo do texto.
Este evangelho – com cerca de 18.300 palavras em grego – é mais de 50% maior que
o de Marcos (11.300 palavras em grego). Grande parte deste aumento se explica pelos dois
capítulos que relatam a infância de Jesus e pelos longos sermões formados com base em ditos
e sentenças do Mestre ausentes em Marcos. A cura do jovem servo do centurião e a do
endemoninhado cego e mudo (Mt 8.5-13; 12.22-23), tomadas de Q são as únicas histórias de
milagres completamente não marcanas no ministério de Jesus segundo Mateus. Ademais,
estima-se que Mateus reproduza cerca de 80% de Marcos.186
Mais uma vez iniciaremos, então, com as questões históricas.

V.1. Questões Históricas

Como questões históricas estamos fazendo referência à origem, autor, data, lugar de
composição, destinatários e situação que motivou a obra e as fontes utilizadas.

V.1.1. Autoria

Já sabemos que todos os quatro Evangelhos, em sua origem, são anônimos. Isto
significa que os manuscritos originais não levaram o nome dos autores. Contudo, a tradição
da igreja primitiva os atribui respectivamente a Mateus, Marcos, Lucas e João.187
Eusébio de Cesareia menciona Clemente de Roma – morto em 101 d.C. – como
dizendo que “o primeiro dos quatro Evangelhos, que são inquestionáveis, foi compilado por

185
CULLMAN, Oscar. A formação do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2001, p. 20.
186
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 247.
187
EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Op Cit., p. 21.

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Estudos no Novo Testamento 1 50

Mateus, que „outrora fora coletor de impostos, mas posteriormente um apóstolo‟”. Também
Eusébio afirma: “Com efeito Mateus, que primeiramente tinha pregado aos hebreus, quando
estava a ponto de ir para outros, entregou por escrito seu Evangelho, em sua língua materna,
fornecendo assim por meio da escritura o que faltava de sua presença entre aqueles de quem
se afastava”.188 Se isto for um fato, uma edição grega acabou por substituir completamente a
hebraica (aramaica) uma vez que não encontramos nenhum fragmento de um Mateus em sua
língua materna.
Alguns estudiosos atuais contestam que o texto grego seja uma tradução do original
hebraico ou aramaico em virtude de que o texto não se parece com uma tradução. Contudo, as
passagens “Q” de Mateus demonstram regularmente um cuidadoso paralelismo semita, “o
evangelho não é desprovido de seus semitismos e não é necessário se argumentar que Mateus
[...] tenha traduzido literalmente”. 189
O nome próprio Mateus significa “dom de Deus, dádiva de Javé” e aparece em todas
as listas dos doze apóstolos (Mt 10.2-4; Mc 3.16-19; Lc 6.13-16; At 1.13). No primeiro
Evangelho, Mateus é identificado como um publicano, o que não ocorre nas demais listas. Na
narrativa da chamada, o primeiro Evangelho menciona “Mateus” (Mt 9.9); Marcos o chama
“Levi, filho de Alfeu” (2.14) e Lucas menciona simplesmente “Levi” (5.27). Sem dúvida os
três querem indicar a mesma pessoa. É bom lembrarmos que era bastante comum um judeu
ter dois nomes.190
Depois do texto de Atos 1.13, Mateus – Levi – não é mencionado outra vez em O
Novo Testamento. Pouco se sabe de sua vida e ministério. Novamente é Eusébio quem
preserva as tradições do século II acerca da autoria de Mateus, mas existe pouca coisa a
respeito de sua obra depois disso. Diversas histórias afirmam que ele evangelizou a Etiópia,
Macedônia, Síria, Pérsia e Média. Existe uma tradição sobre ele ter sofrido morte natural na
Etiópia ou na Macedônia. De outro lado, as Igrejas Grega e Romana celebram seu martírio. 191
Uma coisa deve ficar clara: a igreja primitiva é unânime em atribuir a Mateus a
autoria do primeiro Evangelho canônico. A razão de nos remetermos sempre à tradição da
igreja antiga é que as informações dela são muito precisas, de maneira que prometem
fornecer, ao menos, boas coordenadas para nossas indagações.

V.1.2. Data

A data máxima para composição final deste Evangelho deve ser colocada em 115
d.C., quando Inácio, Bispo de Antioquia da Síria, referiu-se a ele em sua carta à igreja de
Esmirna. Do mesmo modo, como vimos, Eusébio menciona Clemente de Roma como tendo
feto referência ao Evangelho Segundo Mateus. Como Clemente morreu por volta de 101 d.C.,
significa que este Evangelho não poderia de modo algum ter sido escrito depois desta data.
A data mais antiga depende da datação que fizemos do Evangelho Segundo Marcos,
uma vez que ele forma a estrutura de nosso Mateus. Precisamos conceder certo tempo para a

188
CESAREIA, Eusébio de. Op Cit., p. 65.
189
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 180.
190
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 87.
191
Idem, p. 88.

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composição e circulação de Marcos. Levando em conta esses diversos fatores uma época
antes de 60 d.C. seria difícil de ser defendida. 192
Há quem coloque a redação deste Evangelho para o início da década de 70 do
primeiro século.193 Outros advogam o surgimento do Evangelho entre os anos 80 a 90 d.C. Na
nossa compreensão fica difícil aceitar uma data posterior a 70 uma vez que Jerusalém já
estaria destruída e o Evangelho desenvolve toda a sua narrativa como se a cidade e o Templo
ainda existissem. Podemos assumir uma data entre 63 e 67 d.C.

V.1.3. Lugar de Composição

Com referência ao local em que foi escrito o Evangelho Segundo Mateus, também
temos diversas informações. Atanásio afirma que foi escrito em Jerusalém; Ebedjesu, diz que
foi na Palestina; e Jerônimo, na Judeia, para beneficiar os discípulos daquela região. 194
Atualmente grande parte dos estudiosos afirma que o local foi Antioquia da Síria. 195
Antioquia era capital da província romana da Síria e a terceira cidade do império,
depois de Roma e Alexandria. Uma cidade bastante cosmopolita que tinha o grego como
língua oficial e o helenismo como aglutinador de diversos povos. A colônia judaica dessa
cidade era muito importante, e nela a infiltração do helenismo era um fenômeno bastante
notável. 196

V.1.4. Propósito

Levando em conta o conteúdo do Evangelho podemos inferir que a comunidade de


Mateus era bastante heterogênea: tinha uma componente fundamentalmente judeo-cristã,
parcialmente judeo-cristão helenista – o texto está em grego e faz uso da LXX, mas também
parece abrigar cristãos procedentes do paganismo. A igreja de Mateus polemiza com o
judaísmo farisaico. É uma igreja estabelecida num centro urbano, com certa organização,
como se depreende por seus ministérios (23.8-10, 34) e seu procedimento disciplinar (18.15-
20).197
Uma leitura de todo o texto pode nos apontar pelo menos quatro finalidades básicas:
litúrgica, “kerygmática”, didática e apologética.198
Dessa forma, Mateus escreveu para atender as necessidades de adoração e leitura
pública; uma leitura casual demonstra que este é o mais fácil, dos evangelhos, de se ler.
Parece dispor o material por tópicos.
No que diz respeito ao kérygma Mateus propõe-se a preservar todos os elementos da
pregação apostólica primitiva. Seu interesse é evangelizar os judeus (15.24; 10.5,6), mas não
se limita a eles (8.11; 24.14; 28.20). O tema da morte de Jesus é desenvolvido através da

192
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 89.
193
CHAVES, Irênio Silveira. Mateus – o Evangelho do reino. Rio de Janeiro: JUERP, 2002, p. 25.
194
BERKHOF, Louis. Op Cit., p. 61.
195
EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Op Cit., p. 22.
196
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 343.
197
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 342.
198
HALE, Broadus David. Op Cit., pp. 93-98.

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demonstração do cumprimento das profecias, descendência davídica, nascimento, vida, morte,


ressurreição, ascensão e a promessa da volta de Jesus.
A estrutura do Evangelho também nos leva a concluir que seu propósito é instruir, ou
seja, didático. O texto está divido em cinco seções em torno dos discursos do Senhor.
Quanto ao caráter apologético, precisamos nos lembrar da crescente tensão entre o
cristianismo e o judaísmo; parece ter surgido certa indecisão, por parte de alguns judeus, em
entrarem completamente na justiça, que só pode ser recebido como um dom de Deus. Observe
que Mateus retrata a trágica rejeição, por parte de Israel, de seu Messias. A meta apologética
pode ser resumida na seguinte sentença: “Jesus é o Messias e nele a profecia judaica foi
cumprida”.199

V.2. Questões Literárias

Agora chegou o momento de analisar as questões literárias. Seguiremos o padrão


adotado para Marcos: crítica textual, conteúdo, linguagem e estilo. Depois, dentre inúmeras
opções, propomos uma estrutura geral do Evangelho Segundo Mateus. Mais uma vez
alertamos o estudante para a necessidade de uma primeira leitura da obra como um todo.
Trata-se de um reconhecimento inicial.

V.2.1. Crítica Textual

Podemos dizer que Mateus faz fundamentalmente uma síntese a partir de dois
projetos anteriores, o Evangelho Segundo Marcos e o documento Q (Quelle). Esse evangelista
assume o Evangelho Segundo Marcos como referencial, o que resulta, assim, em uma obra
essencialmente narrativa, mas na qual inclui material discursivo do documento Q. 200
A leitura mais bem documentada de Mt 1.16 é “Jacó gerou José, o esposo de Maria,
da qual nasceu Jesus chamado Cristo”. Existem leituras variantes desse versículo: uma
destinada a evitar chamar José de “esposo de Maria”, outra preservando o padrão usual de X
gerou Y, mas ainda assim chamando Maria de virgem.
Em Mateus 6.13 temos o término “do Maligno, do mal”. De acordo com o
testemunho de importantes e antigos manuscritos alexandrinos e ocidentais, dentre outros,
bem como de comentários sobre o Pai-Nosso escritos por diversos Pais da Igreja antiga, o
texto termina com ponerou. Para adaptar essa oração ao uso litúrgico na Igreja antiga,
copistas acrescentaram vários finais diferentes, com destaque para os seguintes: “pois teu é o
reino, e o poder, e a glória para sempre, Amém”; “pois teu é o reino e a glória para sempre.
Amém”; e “pois teu é o reino e o poder e a glória do Pai e do Filho e do Espírito Santo para
sempre. Amém”.201
As denominações mais antigas de que temos conhecimento a partir dos manuscritos
são as seguintes:
KATA MAQQAION ¥B

199
TASKER, R. V. G. Op Cit., p. 14.
200
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 149.
201
OMANSON, Roger L. Variantes textuais do Novo Testamento. Análise e avaliação do aparato crítico de
“O Novo Testamento Grego”. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010, p. 7, 8.

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euaggelion kata matqaion D f13 33 Û bo


euaggelion kata maqqaion W
agion euaggelion kata matqaion f1 al
arch sun qew tou maqqaion euaggelion 1241 al
ek tou kata maqqaion L al
A inscrição EUANGGELION KATA MAQQAION também foi preservada em uma
folha de papiros conexos î 4.64.67com fragmentos de Mateus e Lucas do final do século II.
Essa forma longa também é sustentada pela tradução latina antiga, que presumivelmente tenha
surgido no último quartel do século II.202
Na tabela abaixo estão dispostos os relatos que ocorrem exclusivamente no
Evangelho Segundo Mateus.203

Material Conteúdo
exclusivo
1.1-17 A genealogia real de Jesus
1.18-25 Anúncio do nascimento de Jesus a José
2.1-12 Visita dos astrólogos do Oriente
2.13-23 Fuga para o Egito e assassinato de crianças em Belém
5.4s, 7-10 Partes do Sermão do Monte
5.14, 16-24
5.27-29
5.31-37
6.1-18
7.6, 15
9.27-31 Cura de dois cegos e um mudo possesso
10.5-15 Envio dos discípulos exclusivamente aos israelitas
10.34-39 Condições do discipulado
10.40-42 O salário dos que auxiliam os mensageiros de Jesus
11.28-30 O convite de Jesus – Venham a mim
12.36-37 Advertência contra o falar inútil
13.24-30,36-43 Parábola do joio no trigo
13.44 Parábola do tesouro no campo
13.45, 46 Parábola da pérola preciosa
13.47-50 Parábola da rede de pesca
13.50-52 Comparação com um patrão
14.28-32 Pedro anda sobre a água
16.17-19 Resposta de Jesus à confissão de fé de Pedro
17.24-27 O imposto do templo
18.15-22 Sobre o perdão
18.23-35 A parábola do servo impiedoso
20.1-16 A parábola dos trabalhadores na vinha
21.14-16 Curas no templo e o louvor das crianças
21.28-32 Os dois filhos desiguais
22.1-14 As bodas reais

202
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 78, 79.
203
Idem, p. 77, 78.

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23.15-22 Contra os fariseus


25.1-13 Parábola das dez virgens
25.31-46 Discurso sobre o julgamento dos povos
27.3-10 O fim trágico do traidor Judas
27.19 O sonho da esposa de Pilatos
27.52,53 Ressurreição de muitos santos durante a crucificação de
Jesus
27.62-66 A guarda do sepulcro de Jesus
28.11-15 A fraude do Sinédrio
28.16-20 Aparição no monte da Galileia, ordem missionária e
promessa

Mateus modifica a ordem de suas fontes para obter composições de caráter temático,
diferente de Lucas, que respeita a ordem de Marcos, embora seja interrompido em alguns
momentos para introduzir o material do documento Q e o material próprio. 204

V.2.2. Linguagem e Estilo

Lembremo-nos de que os textos de O Novo Testamento surgem na encruzilhada


cultural do mundo helenístico e do mundo semítico. Podemos perceber isso de maneira nítida
no Evangelho Segundo Mateus, o mais judaico dos Evangelhos, que não obstante, escreve
num grego mais correto que o do Evangelho Segundo Marcos e que, contra o que se
acreditava em outros tempos, não pode mesmo ser mera tradução de um original aramaico ou
hebraico. Contudo, faz uso de diversos procedimentos estilísticos de origem semítica. Ao ler
Mateus descobrimos de imediato esses recursos estilísticos. Vamos destacar aqui os recursos
que mais se sobressaem ao longo do texto mateano:205
Inclusões. Trata-se da repetição de palavras ou expressões-chave no início e no fim
de uma seção que a delimita e a orienta sobre o conteúdo. No princípio do Evangelho, Jesus é
apresentado como o Emanuel (VEmmanouh,l), Deus-Conosco (1.23); ao final, o Senhor diz aos
apóstolos “eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos séculos” (28.20). Os
versículos 4.23 e 9.35 são uma inclusão que delimita a seção melhor construída de toda a obra
e indica seu conteúdo. As inclusões ocorrem com frequência em seções pequenas (pelos seus
frutos os conhecereis – 7.16,20; Reino dos céus na primeira e na oitava bem-aventurança,
5.3,10).
Outro recurso estilístico bastante comum em Mateus são os paralelismos e quiasmos.
Em 7.24-27 encontramos duas estrofes paralelas em tudo, mas com conclusões contrárias:
trata-se de um paralelismo antitético; o texto paralelo em Lucas 6.47-49 não apresenta essa
forma literária exata. Por vezes, o paralelismo tem forma circular, dando lugar ao quiasmo.
Veja a estrutura abaixo:

porque aquele que quiser salvar a sua vida (a)


perdê-la-á (b)

204
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 149, 150.
205
Idem, pp. 150-154.

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e quem perder a sua vida (b‟)


por amor de mim achá-la-á (a‟)

Outros exemplos podem sem encontrados em 10.39; 13.13-18; 18.10-14. O quiasmo


é um procedimento frequente no Antigo Testamento.
Devemos incluir aqui as citações de cumprimento: 1.22; 2.5; 2.15; 2.17; 2.23; 4.14;
8.17; 12.17; 13.14; 13.35; 21.4; 27.9. São citações do Antigo Testamento próprias de Mateus,
que se caracterizam por uma reflexão introdutória do evangelista, na qual se afirma
explicitamente o cumprimento do texto das Escrituras hebraicas em algum episódio da vida de
Jesus.
Temos ainda a fórmula que está no final dos discursos de Jesus em 7.28; 11.1; 13.53;
19.1 e 26.1. É evidente a importância dessas fórmulas mateanas; servem tanto para
fechamento como transição. Além disso, modifica o ambiente ou o assunto.
Existem diversos outros recursos estilísticos, mas eles podem ser verificados à
medida que lermos e estudarmos o texto mesmo.

V.2.3. Estrutura Literária

Enquanto Marcos termina seu relato de forma abruta, sem a descrição formal da
ressurreição, Mateus inclui um capítulo inteiro dedicado à volta de Jesus do mundo dos
mortos e à comissão final dada por ele aos discípulos. Mateus apresenta basicamente cinco
grandes blocos de material discursivo. A intensão de Mateus de que esses cinco principais
sermões de Cristo fossem vistos como unificados, intercalados ao longo de sua narrativa, fica
evidenciada por meio da repetição, já mencionada acima, com que encerra cada um dos
sermões: “Havendo Jesus concluído essas palavras”.
Aqui também adotaremos a estrutura que procura demonstrar as diversas etapas da
vida de Jesus de acordo com o desenvolvimento natural do texto.
Estrutura do Livro.
I. A origem e a infância de Jesus, o Messias 1.1-2.23.
II. Início do Ministério de Jesus, o Messias 3.1-4.25.
III. A Ética do Reino de Deus 5.1-7.29.
IV. As obras poderosas de Jesus 8.1-9.34.
V. Jesus e seus pregadores missionários 9.35-10.42.
VI. As prerrogativas de Jesus, o Messias 11.1-12.50.
VII. Sete parábolas do Reino do Céu 13.1-52.
VIII. A rejeição de Jesus em Nazaré
e o martírio de João Batista 13.53-14.12.
IX. Jesus se retira dos domínios de Herodes 14.13-17.27.
X. A vida na comunidade messiânica 18.1-35.
XI. A viagem para Jerusalém 19.1-20.34.
XII. O Messias desafia Jerusalém 21.1-22.46.
XIII. O Messias denuncia os escribas e fariseus 23.1-39.
XIV. A queda de Jerusalém
o aparecimento do Filho do Homem 24.1-51.

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XV. Três parábolas de julgamento 25.1-46.


XVI. A narrativa da paixão 26.1-27.66.
XVII. A ressurreição de Jesus 28.1-10.
XVIII. Narrativas pós-ressurreição 28.11-20.

Optamos por uma estrutura um tanto mais detalhada apenas por objetivos didáticos.

V.3. Questões Teológicas

Chegamos à última seção de nossa análise do Evangelho Segundo Mateus. Lembre-


se de que as obras dos evangelistas são fundamentalmente teológicas. Dessa forma, interessa-
nos saber qual a abordagem teológica mateana. Nisto consiste o grande diferencial no que diz
respeito ao conteúdo. Isso também é importante para as questões interpretativas.

V.3.1. Núcleo do pensamento mateano

O Evangelho Segundo Mateus desenvolve uma teologia da história em perspectiva


dupla: do passado, com as genealogias (1.1-7), as citações e as frases evocativas de amplos
contextos do Antigo Testamento, como a “Boa Nova do Reino” (4.23; 9.35; 24.14), palavra e
doutrina do Reino (13.19,52); do futuro, anunciando que todos os povos devem ser feitos
discípulos através do ministério da pregação dos enviados (28.16-20). Deus faz história com
os seres humanos de maneira única e decisiva em Jesus, o Cristo e Filho de Deus. 206
O trajeto terreno de Jesus proposto por Mateus é único. Pouco a pouco, Jesus foi se
revelando às multidões enquanto formava seus discípulos na construção progressiva de sua
Igreja – instrumento para o mundo da presença do Reino dos Céus (como ele chama o Reino
de Deus).
O ponto de partida desse trajeto aparece no evangelho da infância. Evocando as
profecias hebraicas, Mateus explicita a maneira como Jesus realiza as esperanças judaicas.
Mateus atribui-lhe os títulos messiânicos tradicionais. Segundo o anúncio profético, ele nasce
em Belém, cidade real: é verdadeiramente “Filho de Davi” (9.27). Contudo, Jesus não é o
Messias nacionalista esperado pelos seus contemporâneos. A fim de corrigir este equívoco,
Mateus apela para a figura do “Servo” de Deus (8.17); extraída de Isaías (Is 42.1-4 e 53.4); se
ele é rei (21.5), é um rei humilde, segundo a visão de Zacarias (9.9). De toda forma, são as
Escrituras que, incessantemente, legitimam sua identidade.
O núcleo do pensamento de Mateus é dividido em três dimensões fundamentais que
dão sustentação à teologia do Evangelho: a dimensão eclesiológica, a dimensão cristológica e
a dimensão ética e moral. Vejamos de forma introdutória cada uma dessas três dimensões.

V.3.1.1. Dimensão Eclesiológica

A primeira dimensão é Eclesiologia. Ela é profundamente enfatizada. O Evangelho


Segundo Mateus sempre foi considerado o evangelho eclesial por antonomásia, devido a duas

206
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 130.

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Estudos no Novo Testamento 1 57

razões fundamentais: em primeiro lugar, dos Sinóticos, Mateus é o único Evangelho em que
aparece a palavra ekklesia, três vezes. 207 Nas duas vezes que Jesus utiliza o termo, uma tem
conotação universal, referindo-se uma a todo o novo povo do Messias Jesus (16.18) e outra,
tem um sentido particular, como uma comunidade ou igreja local, com seus problemas
disciplinares (18.17); em segundo lugar, na obra inteira, sobretudo nas partes discursivas,
transparece a vida da Igreja. É possível descobrir mesmo os conflitos da comunidade e, até
certo ponto, seus ministérios.208
A dimensão eclesiológica desse Evangelho está centrada no discipulado daqueles que
são chamados a viver no “agora” o “ainda não”, ou seja, a viver no tempo presente os
ensinamentos do Mestre como se estivessem vivendo os tempos finais, do juízo. A
comunidade de Mateus, formada por judeo-cristãos, é chamada a viver no aqui o Reino de
Deus. A Igreja, neste Evangelho, é apresentada como uma realidade complexa na
multiplicidade de imagens que a representam: ora como a rede lançada ao mar, que acolhe
uma diversidade de peixes (13.47-50), ora é figurada no campo de um pai de família, que
plantou nele a boa semente e o inimigo nele semeou a cizânia. Ambos crescem juntos e a
colheita só pode ser feita no final (13.24-43).
Precisamos ressaltar que quando Jesus declarou que edificaria a Sua Igreja, não tinha
em mente a formação de uma estrutura como se tornou a Igreja posteriormente. Não podemos
afirmar categoricamente que Jesus queria formar a Igreja da maneira como a conhecemos
hoje. Naquele momento Jesus estava dando os fundamentos para o surgimento do novo
conjunto do povo de Deus, a partir da afirmação de Pedro: “tu és o Cristo, o filho de Deus
vivo” (16.16), do mesmo modo como estava estabelecendo a autoridade conferida a essa nova
comunidade (18.19). A vida da Igreja de Cristo deveria ser marcada pela comunhão e pela
unidade. 209
O Evangelho é um discipulado continuado referente à construção da comunidade,
constituída de regras próprias, o perdão, a oração, a correção fraterna (18) e que termina no
Reino. A Igreja está aberta para todos os povos, fazendo aí uma diferença com o Antigo Israel
(21.43).210
Lembre-se de que Jesus chamou pessoas para o seguirem, formando um grupo de
fiéis, a quem chamou de discípulos (maqhth,j - mathetes), servos ou escravos (dou/loj - doulos)
e serviçais da casa (oivkiako,j - oikiakós) (10.25).211
Em Mateus, a Igreja é uma continuidade de Israel, enquanto povo separado por Deus.
Como novo povo de Deus, a Igreja é o lugar para congregar pessoas vindas de todas as partes,
gentios e judeus, em torno do Reino dos Céus (8.11). A Igreja e o Reino de Deus são
expressões que estão muito próximas, mas dizem respeito a realidades distintas. O Reino é o
domínio total de Deus sobre tudo o que existe; a Igreja é a família composta pelas pessoas que
entram no Reino e estão submissas ao poder soberano de Deus. A Igreja, portanto, é o
verdadeiro povo de Deus, pertencente ao Messias. 212

207
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 54.
208
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 318.
209
CHAVES, Irênio Silveira. Op Cit., p. 42.
210
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 131.
211
CHAVES, Irênio Silveira. Op Cit., p. 43.

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Estudos no Novo Testamento 1 58

V.3.1.2. Dimensão Cristológica

A segunda dimensão é a Cristologia. Jesus é o fundamento da Igreja. A Igreja


pertence a Ele. Ele é o seu Senhor. Entre os vários títulos dados a Jesus, Filho de Deus (2.15)
unido a Senhor (ku,rioj - Kýrios) fortalece a imagem referencial para as comunidades em
formação.213 Talvez possamos afirmar com segurança que este seja o mais importante título
em Mateus dado para Jesus. Muitas pessoas chamavam Jesus de “Senhor” e, em diversos
casos, parece que isso queria significar pouco mais que “Mestre”. Todavia, em muitos
lugares, o contexto sugere que Senhor (Kýrios) é o título correto utilizado pelos discípulos
plenos, especialmente quando eles precisam da ajuda que apenas alguém que possua
prerrogativa e poder divinos pode oferecer (8.2,6,25; 9.28).214 Portanto, parece mesmo
apropriado falar de pessoas “adorando” (proskune,w - proskynéo: termo utilizado para o culto
a Deus) o Senhor durante a sua vida (2.2,8,11; 14.33).215. Observamos assim, que em Mateus,
muitas vezes, a expressão Senhor em si mesma não precisa indicar meramente cortesia
social. 216 Por esse, e os demais motivos que observaremos abaixo, a cristologia de Mateus é
“mais elevada” e mais explícita do que a de Marcos e de Lucas.
Observe que a primeira designação que aparece para Jesus é Messias (Cristo,j -
Christós) (1.1), título que se repete diversas vezes no início do Evangelho (1.16,17,18). Esse
título corresponde a uma preocupação fundamental dessa seção introdutória: apresentar a
Jesus como o Messias enviado a Israel e como cumprimento das promessas. No restante da
obra, esse título ocorre poucas vezes (11.2-3; 16.16; 26.63).217
Ainda na seção introdutória, junto ao título de Messias (Cristo), tem importância
fundamental o tema da descendência davídica de Jesus. Observamos isso em 1.1,6,17,20; 2.6.
O Evangelho Segundo Mateus é o texto de O Novo Testamento que mais faz uso da expressão
“Filho de Davi”; das nove vezes em que aparece no Evangelho, sete foram introduzidas pelo
seu redator, ou seja, por Mateus. O uso do título Filho de Davi confirma o caráter judeo-
cristão de Mateus.218
O ressuscitado ainda conserva a fisionomia do Mestre. Ele não envia os onze, como
aparece em Marcos e Lucas, Atos e João, como testemunhas da sua ressurreição, ou para
proclamar o evangelho. Jesus envia seus apóstolos para fazerem discípulos Seus em todas as
nações. Isto é, eles são enviados não apenas para ensiná-las, mas para torná-las seus
discípulos, ensinando-as a observarem tudo o que Jesus lhes havia ensinado a observar
(28.19s). O Jesus glorioso, ressuscitado, os reenvia para que recordem seus ensinamentos,
dados na condição terrena, antes da ressurreição.
Jesus é o único Mestre (23.10) capaz de iluminar, exortar, julgar e tornar leve o jugo
(11.28-30) da Igreja. Ele está constantemente presente, desde a encarnação, quando se
apresenta como Emanuel (VEmmanouh,l - Deus conosco, 1.23), no dia-a-dia, quando garante
“estar no meio” daqueles que se reúnem para orar (18.20), continuando a assistência também
212
Ibidem.
213
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 131.
214
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 27.
215
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 172, 173.
216
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 287.
217
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 311.
218
Ibidem.

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após a ressurreição (“estarei com vocês todos os dias até a consumação dos séculos”,
28.20).219
Para Mateus, em Jesus se realiza a presença de Deus (VEmmanouh,l) no meio de seu
povo e, consequentemente, esse novo povo de Deus se caracteriza por sua relação com Jesus.
Em 18.20, Jesus fundamenta o poder da comunidade e a eficácia de sua oração na promessa
de que, “onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (evkei/
eivmi evn me,sw| auvtw/n - ekei eimi em mesô autôn). Jesus, que por seu nascimento humano era
Deus-Conosco, continua agora desempenhando esse mesmo papel para além de sua vida
terrena. Mateus não diz que Jesus é Deus, mas fala de tal forma que insinua sua pertença
especial à esfera da divindade. Em 9.2 Jesus é acusado de blasfêmia por sua pretensão de
perdoar os pecados, do que não se retrata em absoluto.220

V.3.1.3. Dimensão Ética e Moral

A terceira dimensão é Ética e moral. O Evangelho Segundo Mateus coloca-se na


mesma linha de Tiago. Ele oferece indícios da ética e moral da comunidade cristã. O que
importa é agir (7.21). O juízo final, fortemente enfatizado, é levado a cabo com base nas obras
de caridade. Não basta pertencer fisicamente à comunidade: tem-se o chamado, mas ainda não
se é eleito. A condição de eleito transparece diante de ações cristãs concretas.221
Esse Evangelho traz cinco grandes discursos descritos em uma forma característica
de apresentação (Mt 5.1-2; 13.1-3, por exemplo). Ao terminar, Mateus faz a conclusão do
discurso com fórmulas fixas: “... concluindo Jesus este discurso” (7.28; 19.1) ou “... acabando
Jesus de dar instruções aos doze discípulos” (11.1; 13.53; 26.1). O conteúdo desses discursos
é a ética. Nesse enfoque entendemos melhor o sentido da afirmação de Jesus que veio para
levar ao cumprimento a Lei (5.17-19), a superação de certas normas mosaicas (5.21-48), isso
não para atenuar, antes, para realizar, de forma mais profunda, a vontade de Deus (19.8),
concentrando-se no amor que já era central no Antigo Testamento.222
Em Mateus, Jesus deixa claro que a fonte de todas as ações humanas, justas e boas,
consiste em três princípios elaborados em polêmica, contra uma religião superficial e
hipócrita: 1) a experiência religiosa dos discípulos de Jesus deve superar o comportamento
dos escribas e fariseus (5.20); 2) a experiência religiosa dos discípulos deve levá-los a uma
confiança tal no Pai dos céus, a ponto de acreditarem na recompensa daquilo que é feito em
segredo (6.4,6,18) e não se mostrarem religiosos e piedosos aos outros, apenas pelas
aparências (6.1,5,16); 3) essa experiência religiosa, deve levar os discípulos a consagrarem
sua vida, seguindo um só mandamento: amar a Deus totalmente, na experiência concreta do
amor aos irmãos (7.12) e não se deixarem aprisionar na gaiola dos preceitos e de normas
religiosas.223
Contudo, se quisermos tratar de normas, podemos resumí-las em quatro atitudes: o
amor (ágape); a justiça, a retidão, a piedade (dikaiôsyne); a misericórdia (heléos); o perdão

219
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 131.
220
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 314.
221
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 132.
222
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 50.
223
MARCONCINI, Benito. Op Cit., pp. 133-142.

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(afiémi). Essas quatro atitudes, como essência da religião, são aprofundamentos e princípios
norteadores da vida moral e espiritual.

V.3.2. O Reino de Deus

Em Mateus encontramos a declaração de que, juntamente com o advento de Jesus


Cristo, é chegado o Reino de Deus (basilei,a| tou/ qeou/ - Basileía tou Theoû) ou Reino dos
Céus (basilei,a tw/n ouvranw/n - Basileía tôn ouranôn). A expressão preferida por Mateus é
Reino dos Céus, empregada 32 vezes, enquanto Reino de Deus é empregada apenas quatro
vezes. 224
O Reino de Deus é apresentado em Mateus como um tesouro (13.44-46), como um
presente aos pequeninos (19.14) e como uma prioridade (6.33). O próprio Evangelho é a boa
nova do Reino (4.23). O Senhor Jesus nos convida para tomarmos parte de seu Reino como
quem convida para um baquete ou uma festa (8.11; 22.1-14).225 A entrada no Reino de Deus
se dá por meio do arrependimento (4.17). Isso implica em uma vida que deve ser marcada por
uma nova ética (conforme vimos acima) que Jesus Cristo veio ensinar, baseada na nossa
condição de sal da terra e luz do mundo (5.13-14). Desse modo, a nossa justiça deve exceder a
dos escribas e fariseus (5.20). Um dia prestaremos conta de nossas atitudes e pensamentos,
quando do juízo eterno (12.36). Portanto, Jesus exige a renúncia total a todo o tipo de apego
aos valores seculares (16.24).226

V.3.3. Escatologia

Mateus destaca a vinda de Cristo como Filho do Homem na função de juiz universal
e glorioso, que dará a cada um segundo as suas obras (16.27). Este é o único evangelista que
utiliza a expressão parousia (parousi,a - 24.3,27,37,39) para falar da vinda do Filho do
Homem.227 Também é Mateus quem dá mais destaque ao juízo futuro, com um anúncio de
juízo mais ou menos claro. O homem pode seguir o caminho largo que leva à perdição ou o
estreito que conduz à vida (7.13-14), pode edificar sua casa sobre rocha, de modo que possa
resistir sempre, ou sobre a areia, que acaba logo em ruínas (7.24-27). O discurso do capítulo
13 termina com a parábola da rede, que é tipicamente de juízo, sobre a separação dos peixes
bons e dos maus (13.47-50; cf. 13.36-43).228
Em Mateus o juízo será precedido pela ressurreição dos mortos. A segunda vinda de
Jesus será o evento escatológico marcante. O termo preferido por Mateus para descrevê-lo,
como vimos acima, é parousia, que significa presença. O sermão do monte das Oliveiras
concentra o maior conteúdo dos ensinos de Jesus a esse respeito. Aqui, fica evidente que a
segunda vinda de Cristo será iminente (24.24), repentina (24.27) e visível em poder e grande

224
CHAVES, Irênio Silveira. Op Cit., p. 39.
225
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 36.
226
CHAVES, Irênio Silveira. Op Cit., p. 40, 41.
227
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 63.
228
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 329, 330.

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glória (24.30). A incerteza do tempo em que acontecerá é comparada com a chegada do ladrão
da noite (24.43) e com os tempos de Noé (24.37-39).229

229
CHAVES, Irênio Silveira. Op Cit., p. 45.

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VI. O EVANGELHO SEGUNDO LUCAS

Lucas é o pesquisador dos fatos. Este Evangelho é o mais longo dos quatro. Contudo,
é apenas a metade da grande obra lucana, uma vez que originalmente estava unido aos Atos
como a primeira parte de uma obra em dois volumes, cuja extensão é maior que um quarto de
todo O Novo Testamento. Uma narrativa magnífica que conjuga a história de Jesus com a da
Igreja dos primórdios. Lucas se distancia de Marcos mais do que Mateus, e podemos dizer
que teologicamente está a meio caminho entre Marcos-Mateus e João. Certamente, ainda que
todos os evangelistas sejam teólogos, o número de obras sobre a teologia de Lucas é
surpreendente.230
O estudo do Evangelho Segundo Lucas também será feito em três seções: questões
históricas, questões literárias e questões teológicas. Os objetivos continuam sendo os mesmos.
Cabe ressaltar que durante o estudo de Lucas faremos algumas menções ao Livro de
Atos. Isto se justifica tendo em vista que, ao que tudo indica, trata-se de uma obra que
pretende dar continuidade ao Evangelho. Dessa forma, diversas questões tratadas aqui no
Evangelho Segundo Lucas servirão igualmente para o Livro de Atos e, por isso, devemos
aproveitar para trata-las em conjunto.
Vamos conhecer algumas questões históricas.

VI.1. Questões Históricas

Como já deve ser de conhecimento do leitor, as questões históricas irão tratar da


origem, autor, data, lugar de composição, destinatários e situação que motivou a obra. De
igual modo, trata também das fontes porventura utilizadas.

VI.1.1. Autoria

O Evangelho Segundo Lucas e o Livro de Atos dos Apóstolos são obras concebidas e
escritas para o serviço da comunidade cristã e, portanto, provavelmente foram escritas como
obras anônimas. No século II, quando foram sendo agrupados os diversos escritos apostólicos
e teve início a formação do cânon dos livros do Novo Testamento, foram colocados os títulos
nas duas obras, da mesma forma que nos outros escritos, para distingui-las das demais. A
primeira parte se chamou Evangelho Segundo Lucas, atribuindo-se assim a obra a tal
personagem. A segunda parte recebeu o título de Atos dos Apóstolos, sem aludir ao autor,
mas a tradição antiga sempre o atribuiu à mesma pessoa que escreveu o Evangelho, devido às
afinidades entre as duas obras, dedicadas, além disso, à mesma pessoa. 231
A tradição, desde Marcião e Irineu, no século II, identificou esse Lucas com o
companheiro de Paulo, médico, aquele de quem falam as cartas de Paulo (Cl 4.14; Fm 14;
2Tm 4.11), e até o século XIX não se duvidou dessa identificação. Irineu afirma que “Lucas,
o companheiro de Paulo, registra em um livro o Evangelho pregado por ele”. Do mesmo

230
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 311.
231
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 433.

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modo, os testemunhos de Orígenes, Eusébio, Atanásio, Gregório de Nazianzo, Jerônimo, e


outros condizem com isso.232
Na atualidade prevalece a ideia de que o autor se chamava Lucas, pois este nome
nunca foi discutido na tradição; além disso, não pode ser pseudoepígrafe, porque, neste caso,
seria mais sensato atribuir a obra a um personagem de maior relevância, como Pedro, Paulo,
ou outro nome de maior destaque na Igreja Primitiva. De igual modo, se aceita que o autor
não foi uma testemunha direta de Jesus (Lc 1-4), mas um cristão da segunda geração cristã;
pessoa culta, familiarizada com a cultura helenista e veterotestamentária, possivelmente
nascida fora da Palestina e de origem gentílica, relacionada com as igrejas paulinas, para as
quais escreve.233
O único conhecimento que temos sobre Lucas deriva de algumas passagens nas
epístolas paulinas (cf. acima). Das duas primeiras passagens (Cl 4.14; Fm 14) resulta o
seguinte: em primeiro lugar podemos afirmar que Lucas foi um dos colaboradores de Paulo
no trabalho missionário entre os gentios; em segundo lugar, uma vez que em Cl 4.10s Paulo
destaca os colaboradores da circuncisão de forma específica, sem arrolar Lucas entre eles,
podemos ter certeza de que ele era um gentio cristão; do título de médico (Cl 4.14) podemos
inferir que ele era cientificamente instruído. A partir do texto de 2Tm 4.11 descobrimos que
Lucas esteve com Paulo enquanto ele estava preso em Roma pela segunda vez (por volta do
ano 66). 234 As três vezes em que Lucas é mencionado, Marcos também aparece, o que nos
leva a crer que os dois evangelistas se conheciam muito bem.
Os patriarcas da Igreja, Eusébio e Jerônimo, afirmam que Lucas era de Antioquia, na
Síria, o que bem pode ser verdade; contudo, também é possível que esta afirmação se deva a
uma variação do entendimento de Lucas a partir do nome Lúcio (At 13.1) em vez de
considerar o nome Lucanus.235
A ligação de Lucas com Paulo parece ter sido tão forte que o testemunho antigo
chega a afirmar que “A compilação de Lucas é frequentemente atribuída a Paulo. E de fato é
comum um discípulo publicar o trabalho de seu mestre” (Tertuliano); e ainda “Lucas registrou
certa quantidade de coisas em seu Evangelho à medida que teve certeza delas através de seu
conhecimento e familiaridade profundos com Paulo, e sua ligação com outros apóstolos”
(Eusébio). Por fim, vale mencionar que Atanásio afirmou que o Evangelho Segundo Lucas foi
ditado pelo apóstolo Paulo.236

VI.1.2. Data

Se o Livro de Atos dos Apóstolos foi escrito por volta do final do primeiro cativeiro
de Paulo 62-63, o Evangelho deve ser situado antes disso. Se Lucas depende de Marcos, deve
ser situado depois da redação deste. Dessa forma, a redação do Evangelho Segundo Lucas
deve ficar situada depois do Evangelho Segundo Marcos e antes de Atos dos Apóstolos. É
provável que, durante os anos de prisão de Paulo em Cesareia, Lucas tenha realizado suas

232
BERKHOF, Louis. Op Cit., p. 79.
233
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 434.
234
RIENECKER, F. O. O Evangelho de Lucas. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2005, p. 11.
235
BERKHOF, Louis. Op Cit., p. 79, 80.
236
Idem, p. 80.

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Estudos no Novo Testamento 1 64

investigações intensivas. Essa prisão pode ser datada para os anos 57-59. Portanto, a redação
deste Evangelho deve ter acontecido ou durante esse período ou logo depois.237

VI.1.3. Lugar de Composição

Diversas fontes antigas citam como lugar da redação deste Evangelho a Acaia, ou
seja, a Grécia. Assim ocorre no prólogo monarquiano, Jerônimo e Gregório Nazianzo. Alguns
manuscritos sírios da Peshitta situam a redação em Alexandria. Barth sugere Antioquia. 238 Os
diversos estudiosos modernos têm sugerido Roma, Cesareia, Ásia Menor, Éfeso e Corinto. 239
Da leitura de Atos 21 depreendemos que Paulo foi acompanhado por Lucas quando
retornou da terceira viagem missionária para Jerusalém. Assim, Lucas presenciou a detenção
do apóstolo, acompanhando-o dois anos mais tarde até Roma. É provável que tenha ficado
junto de Paulo até o martírio dele (2Tm 4.11). Como alguns manuscritos já trazem Roma
como lugar da redação, podemos indicar Cesareia, a viagem para Roma ou a própria Roma. 240
Há ainda quem fique mesmo com Cesareia.241

VI.1.4. Propósito

Tanto o Evangelho quanto Atos são dirigidos ao mesmo destinatário: Teófilo (Lc 1.3;
At 1.1). Infelizmente, não temos nenhum meio de determinar quem foi esse Teófilo. Há quem
suponha que o nome seja uma generalização aplicada a todos os cristãos, como um ente
querido ou um amigo de Deus. Mas a opinião geral é, com razão, de que se trata mesmo de
um indivíduo.242
Percebemos facilmente que Teófilo é uma pessoa conhecida de Lucas, grego ou
romano. O fato de Lucas abordá-lo da mesma forma que Félix (At 23.26; 24.3) e Festo (At
26.25), nos leva a concluir que Teófilo era uma pessoa de posição elevada. Alguns sugerem
até mesmo que ele tenha patrocinado a redação das duas obras.
Lucas escreve primordialmente para que Teófilo tenha um conhecimento mais
completo e satisfatório a respeito de Jesus Cristo. Pode ser que o destinatário tivesse recebido
informações rudimentares e Lucas pensava que fossem necessárias mais instruções, ou
possivelmente o próprio Teófilo tenha pedido ao evangelista para lhe fornecer um relato mais
adequado. Contudo, não resta dúvida de que Lucas tinha em mente uma audiência mais
numerosa que um único e “excelentíssimo” indagador. Pode ser que o evangelista tenha
percebido que a Igreja, como um todo, precisava de um Evangelho mais completo do que
aquele que existia na ocasião.243

VI.2. Questões Literárias

237
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 191.
238
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 184.
239
BERKHOF, Louis. Op Cit., p. 84.
240
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 185.
241
EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Op Cit., p. 350.
242
BERKHOF, Louis. Op Cit., p. 82.
243
EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Op Cit., p. 350.

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Estudos no Novo Testamento 1 65

A unidade das duas obras, conforme mencionado no início deste capítulo, já


afirmada em 1679 por J. Lightfoot, foi claramente demonstrada por estudos da primeira
metade do século XX e hoje em dia é admitida pela maioria dos exegetas; apoiados
fundamentalmente na unidade da linguagem, estilo e teologia. As duas obras juntas
constituem um bloco de aproximadamente 37.778 palavras. O conjunto quantitativamente
mais completo de todo O Novo Testamento (32.303 palavras nas cartas paulinas) costuma ser
designado com a sigla Lc-At. Este conjunto representa o empreendimento literário mais
ambicioso do cristianismo primitivo, que pela primeira vez procurava autocompreender-se no
marco da História da Salvação.244

VI.2.1. Crítica Textual

O texto alexandrino do Evangelho é representado, entre outras testemunhas, pelos


papiros î4, î45 e especialmente pelo î75, todos eles do século III. Além disso, ele também
consta nos grandes manuscritos do século IV, Sinaítico (¥) e Vaticano (B); é um texto que
possivelmente remonta ao século II. O texto ocidental, contido no Codex Bezae
Cantabrigiensis (D), do século V, e na Vetus Latina, do século II/IV, oferece um texto
caracterizado por adições, omissões e trocas que explicam o texto, suavizam-no ou
harmonizam-no com os outros sinóticos e às vezes lhe dão um caráter antijudaico.245
Geralmente a Crítica Textual considera esse texto como secundário embora, em
casos concretos, possa conter leituras de maior valor do que o alexandrino. Existe ainda um
terceiro tipo de texto, o chamado Koiné ou Textos Receptus, que possui pouco valor. As atuais
edições dos manuais críticos usam fundamentalmente o texto alexandrino, suprimem como
não autênticos 9.55b-56a; 23.17, e duvidam da autenticidade de 22.43-44; 23.34 e dos textos
que Westcott e Hort chamaram de “não interpolações ocidentais”, ou seja, uma série de
fragmentos que não aparecem no texto ocidental, como 22.19b-20;
24.3,6a,12,26b,40,51b,52a. O estado atual da questão pode ser encontrado na quarta edição do
O Novo Testamento Grego, que duvida seriamente de 22.43-44; 23.24, apresentando o texto
entre colchetes, e admite a autenticidade das “não interpolações ocidentais”, apoiado na
autoridade de î75.246
Apesar de todas essas considerações não existem motivos para duvidar que nós
possuímos o texto de Lucas substancialmente como foi escrito.247
As denominações mais antigas de que temos conhecimento com base no acervo de
manuscritos são mencionadas abaixo.248
KATA LOUKAN ¥ B pc vgst boms
euaggelion kata Loukan ADLWQ X Y
33 Û lat samss bopt
to kata Loukan agion euaggelion 209. 579. al
arch tou kata Loukan agiou euaggelion 1241 pc

244
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 365.
245
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 135.
246
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., pp. 367-368.
247
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 137.
248
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 167.

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Estudos no Novo Testamento 1 66

No Evangelho Segundo Lucas do manuscrito ¥ também encontramos na subscriptio


a forma longa EUAGGELION KATA LOUKAN. Os mesmos dizeres constam na subscriptio
também em î75, o mais antigo exemplar de Lucas preservado do período entre 175 e 225.
Do mesmo modo como fizemos com Marcos e Mateus, iremos dispor em uma tabela
os relatos que ocorrem exclusivamente no Evangelho Segundo Lucas. 249

Material Conteúdo
exclusivo
1.1-4 Prólogo
1.5-25 Anúncio do nascimento de João Batista
1.26-38 O anjo anuncia a Maria o nascimento de Jesus
1.39-45 Visita de Maria a Isabel
1.46-56 Louvor de Maria
1.57-80 Nascimento de João Batista e louvor de Zacarias
2.1-7 Censo e nascimento na estrebaria
2.8-14 Anúncio do nascimento por meio de anjos e pastores no campo
2.15-20 Pastores visitam o recém-nascido Jesus
2.21-40 Circuncisão de Jesus; sua apresentação no templo
2.41-51 O menino Jesus no templo aos 12 anos
3.10-14 João Batista responde à pergunta: “O que devemos fazer?”
3.23-38 Genealogia de Jesus (de sua mãe Maria)
4.16-30 “Sermão inaugural” de Jesus em Nazaré
5.1-11 A pescaria de Pedro
6.24-26 Os quatro ais
7.11-17 Ressurreição do jovem de Naim
7.36-50 Unção de Jesus pela pecadora
8.1-3 Mulheres na companhia de Jesus
9.51-56 Rejeição pelos samaritanos
10.1-12 O envio dos 70 discípulos
10.17-20 Retorno dos 70 discípulos
10.21-24 Bem-aventuranças de Jesus aos discípulos
10.30-37 A parábola do samaritano misericordioso
10.38-42 Jesus com Maria e Marta
11.5-8 O amigo suplicante
11.27-28 Quem pode se dizer feliz
12.13-21 Parábola do rico agricultor
12.47,48 “A quem muito foi dado, muito será exigido”
13.1-5 Os galileus vitimados. Torre de Siloé
13.6-9 Parábola da figueira estéril
13.10-17 Cura, no sábado, da mulher encurvada
13.22-30 Conclamação para a decisão correta
13.31-33 Inimizade de Herodes
14.1-6 A cura de um hidrópico no sábado
14.7-14 Da ordem hierárquica e seleção dos convidados
14.15-24 A parábola da grande ceia

249
Idem, pp. 165-167.

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Estudos no Novo Testamento 1 67

14.28-32 Estimativa de custos para construir uma torre e para guerrear


15.8-10 A parábola da moeda perdida
15.11-32 A parábola do filho perdido
16.1-10 A parábola do administrador infiel
16.19-31 Lázaro e o homem rico
17.7-10 Trabalho indiscutível dos servos
17.11-19 A cura de dez leprosos
18.1-8 Parábola do juiz injusto e da viúva suplicante
18.9-14 A parábola do fariseu e do publicano
19.1-10 O publicano-mor Zaqueu
19.41-44 Jesus chora sobre Jerusalém
22.43,44 Um anjo fortalece Jesus no Getsêmani e agonia de morte
22.49-51 Pedro corta a orelha de um servo do sumo Sacerdote
23.7-12 Jesus perante Herodes
23.27-31 No caminho ao Calvário Jesus fala com as mulheres que o seguem
23.34,43,46 Três palavras proferidas na cruz
23.39-43 Diálogo na cruz com os dois criminosos
24.4 Dois anjos com as mulheres na manhã da Páscoa
24.13-35 Jesus com dois discípulos a caminho de Emaús
24.50-53 A ascensão de Jesus

O Evangelho Segundo Lucas tem um total de 1.149 versículos. Possui, em paralelo


com Marcos, cerca de 350 versículos e, além desses, 250 versículos em paralelo com Mateus.
Dessa forma, restam cerca de 520 versículos de material exclusivo em Lucas. Conforme pode
ser observado, são principalmente a introdução ao Evangelho e o relato de viagem (Lc 9.51-
19.27) que apresentam a maior parte de “material exclusivo”. 250251

VI.2.2. Linguagem e Estilo

Desde o período patrístico considera-se o grego de Lucas, junto ao de Hebreus, como


o mais cultivado e o mais elegante de todo O Novo Testamento. Utiliza com correção literária
o koiné, de uma forma superior ao uso vulgar do povo e de muitos escritos bíblicos, mas sem
chegar a ser um classicista ou aticista. O domínio que Lucas tem da linguagem aparece nos
mais diversos tipos de grego que utiliza em sua dupla obra, onde encontramos por uma parte o
grego literário aticista do prólogo do Evangelho e, por outra, os vários tipos de grego
semelhantes aos da LXX, o semitizante do evangelho da infância, o que aparece no restante
do Evangelho, semelhante ao de Marcos, mas melhorado, e o dos Atos, no qual escreve com
maior liberdade. Essa diversidade de estilos talvez seja devida ao uso de diversas fontes. Toda
a obra requer a utilização de uma linguagem sagrada, semelhante à que fora utilizada pela
LXX, para narrar a obra de Jesus e da primeira geração de cristãos, nas quais continuam as
maravilhas de Deus. Quem escreveu o prólogo poderia ter escrito toda a sua obra com um
estilo semelhante. Se não fez isso, foi porque preferiu imitar outro tipo de linguagem e porque
250
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 165.
251
Observe novamente as tabelas apresentadas anteriormente e perceba como existe sempre uma pequena
variação nos diferentes manuas estatísticos. Isto se deve, como dissemos, ao uso que fazem do texto grego, se
aceitam ou não determinados versículos duvidosos, etc.

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preferiu respeitar suas fontes. Lucas é, portanto, um verdadeiro historiador helenista menor, às
vezes elegante, às vezes vulgar, que não chega a alcançar a altura dos grandes literatos de sua
época.252
Há quem divida o Evangelho, linguisticamente, em três seções. O Prefácio (1.1-4)
escrito em estilo clássico. O resto do capítulo 1 e o capítulo 2 têm um sabor nitidamente
hebraico. A partir de 3.1, o Evangelho está escrito em um tipo de grego helenístico que
lembra fortemente a LXX. Às vezes a linguagem de Lucas contém hebraísmos e, às vezes,
aramaísmos. Além disso, sua linguagem é mais semítica em alguns trechos do que em
outros.253
O evangelho emprega 2.055 palavras diferentes com um total de 19.404 usos, o que
apresenta uma média de 9,44 usos por palavra. Destas, 971 são hápax legomena e 640 não são
usadas por Marcos nem por Mateus.254
Em geral, precisamos afirmar que Lucas-Atos não é a obra de um estilista, mas a de
um pastor. Para Lucas, a linguagem está a serviço da fé e somente levando em consideração
podem-se explicar adequadamente todos os recursos de seu estilo. Conhece os recursos
estilísticos dos semitas e helenistas e domina as técnicas que ajudam a uma apresentação viva
dos materiais, como estes facilitam uma adequada composição dos relatos. 255

VI.2.3. Estrutura Literária

Para determinar a estrutura de uma obra, podemos aplicar de modo especial critérios
objetivos que nos ajudem a descobrir a inteção do autor sem cair em subjetivismos. Os
critérios geralmente utilizados são: estilo, resumos redacionais, geografia, protagonistas,
temática, temas teológicos e sumários. Esses diversos critérios servem para ajudar no
descobrimento de uma possível leitura contínua, progressiva e com sentido de todo o texto.
O Evangelho Segundo Lucas apresenta uma estrutura clara, que podemos
desenvolver da seguinte forma:
I. Prólogo 1.1-4.
II. Nascimento e vida oculta de João Batista e de Jesus 1.5-2.52.
III. Pregação de João e apresentação de Jesus 3.1-4.13.
IV. Ministério de Jesus na Galileia 4.14-9.50.
V. Viagem a Jerusalém 9.51-19.27.
VI. Ministério de Jesus em Jerusalém 19.28-21.38.
VI. Última Ceia 22.1-38.
VII. A paixão de Jesus 22.39-23.56.
VIII. A ressurreição do Senhor 24.1-53.

Observe que se trata de uma estrutura simples que abarca as grandes cenas da
narrativa lucana.

252
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 374, 375.
253
MORRIS, Leon L. Lucas: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 25, 26.
254
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 375.
255
Idem, p. 378.

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VI.3. Questões Teológicas

Lucas se empenha em narrar a história de Jesus na perspectiva de uma história da


salvação (Heilsgeschichte), e esta história é vista em três etapas: 1) o período de Israel (16.16)
– preparação; 2) o período do ministério de Jesus (4.16ss: At 10.38) – acontecimento; 3) o
período desde a ascensão, ou seja, o período da igreja – realização.256 Há uma única história
de salvação em contínuo estar presente de Jesus nas diferentes economias de Deus. Assim,
para Lucas, a Igreja constitui o prolongamento da história da salvação.

VI.3.1. A salvação

A obra de Conzelmann resume admiravelmente em seu título a posição do autor – O


Centro do Tempo (Die Mitte der Zeit). Ele sustenta que Lucas vê Jesus como totalmente
central, e que escreve seu Evangelho baseado nesta convicção. 257
É por isso que Lucas é chamado de “teólogo da salvação”. Ele tem muito a dizer
sobre a história da salvação (Heilsgeschichte).258 Relacionando salvação e os eventos
históricos, Lucas traz à tona uma ideia nova sobre a teologia da salvação: a salvação divina
manifestada na vida, morte, ressurreição e ascensão de Jesus são perpetuadas na vida diária da
Igreja. Deus se faz presente na vida humana agindo em tudo o que Jesus disse e fez (cf. 2.1-2;
3.1).259
A libertação de toda a forma de mal, especialmente do pecado e da perdição eterna e
uma relação de amizade e comunhão com Deus está presente na forma como Lucas utiliza o
termo “salvar” (sozêin) 17 vezes no Evangelho e 13 vezes nos Atos dos Apóstolos.260 Outras
variantes da palavra “salvar” aparecem em Lucas-Atos: “salvador” (sóter), 4 vezes, e
“salvação” (sotería ou sotérion), 13 vezes. Estas citações revelam claramente a intenção do
autor.261
É importante destacarmos o fato de que O Novo Testamento emprega o vocábulo
salvação com diversos matizes. Em geral podemos resumir em dois blocos: 1) salvar do mal,
tirando de uma situação de ameaça: livrar de um mal que ameaça, livrar de um mal já
presente, manter-se fora desse mal (aspecto ontológico) e, consequentemente, nos três casos,
livrar da opressão psicológica que se sente diante do mal iminente ou presente (aspecto
psicológico); 2) dar um bem, situar num estado positivo; dar o bem plenamente ou começar a
dá-lo, com a esperança de chegar a recebê-lo plenamente; nos três, manter-se nesse situação
(aspecto ontológico) e, consequentemente, na alegria e na certeza dali derivadas (aspecto
psicológico). A salvação que Jesus oferece ao homem quer livrá-lo das trevas e na realidade
do pecado, de Satanás e seus demônios, da dor e da enfermidade, da morte, da incredulidade e
dos incrédulos e dos ídolos.262

256
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 30, 31.
257
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 31.
258
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 33.
259
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 161.
260
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 130.
261
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 161.
262
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 418, 419.

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Estudos no Novo Testamento 1 70

VI.3.2. O universalismo da salvação

Se os sistemas humanos de salvação são parciais, uma vez que não cobrem todas as
necessidades do homem, com frequência marginalizam aqueles que não têm meios salvadores
(dinheiro, poder, prestígio), com o que produzem dor; pelo contrário, a salvação que Jesus nos
oferece é total, pois cobre todas as necessidades do ser humano, e chega a todos, embora
privilegiando os marginalizados e, por isso, é motivo de alegria. É, portanto, universal por seu
conteúdo e por seus destinatários.263
O universalismo da salvação entra no plano de Deus como um elemento essencial,
desejado por si mesmo e não somente como consequência da rejeição que o povo eleito fez de
Jesus e de sua missão.264
Nesta perspectiva, Jesus não é somente descendente de Abraão, senão de Adão,
criado por Deus (3.38). Os anjos cantam lembrando-se do ser humano em geral (2.14); a razão
disto é que Jesus é um Salvador (2.11), e é uma luz para todas as nações (2.32). João Batista
prega que “toda carne verá a salvação de Deus” (3.6) e o evangelho será proclamado a todas
as nações (24.47). Diversos personagens não judeus se beneficiam da salvação trazida por
Jesus: o samaritano misericordioso (10.25-27); o leproso samaritano (17.11-19); o centurião
romano que tem fé em Jesus (7.9), ou o centurião que reconhece a inocência do crucificado
(23.47).265
Ainda temos a salvação oferecida aos pecadores, aos pobres e às mulheres.266

VI.3.3. A paixão de Cristo

Lembre-se de que o Evangelho Segundo Lucas, assim como os demais, não é uma
história ou biografia no sentido moderno da expressão. Lucas se propõe não somente fazer
referência aos feitos que narra, senão, dar-lhes uma interpretação teológica. Isto se realiza
projetando sobre eles a luz da paixão e da ressurreição. Lucas é o evangelista do Plano de
Deus: o mistério da Páscoa é seu foco, o Espírito Santo é seu autor e a comunidade universal
dos crentes é seu término.267
O evento pascoal ilumina todo o Evangelho de Lucas. A tríplice profecia sobre a
paixão e ressurreição, que Lucas faz questão de sublinhar (9.22,44; 18.31-34) quer
demonstrar:
1) Jesus como sinal de contradição (2.34);
2) Jesus, objeto de admiração e de ódio (4.16-30);
3) A transfiguração, durante a qual Jesus trata com Moisés e Elias de sua partida
que estava por realizar-se em Jerusalém (9.31);
4) Jesus arde em desejos de ser batizado em sua paixão (12.50);
5) Todo profeta deve morrer em Jerusalém (13.32-33);
6) O Filho do Homem tem que sofrer muito (17.24s);

263
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 422, 423.
264
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 97.
265
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 35.
266
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., pp. 419-421.
267
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 41.

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Estudos no Novo Testamento 1 71

Depois da ressurreição, Jesus recorda às mulheres, aos discípulos de Emaús e aos


discípulos reunidos no cenáculo, os anúncios que havia feito durante a sua vida
(24.7,25s,45s.).268

VI.3.4. O Espírito Santo

Lucas demonstra claramente que o propósito de Deus não cessa na cruz. Continua na
obra do Espírito Santo, que significava tanto na Igreja nos dias de Lucas como significa na
Igreja de todos os tempos.269
O Espírito Santo é a alma, o princípio vital, em toda a obra de Lucas (Evangelho e
Atos). Sem o Espírito Santo não existe nem Jesus-Messias, nem a Igreja. O Espírito Santo é o
poder (du,namij - dýnamis) do alto que está em plena atividade.
1) Ele é quem move aos pais de João Batista (1.41,67);
2) Ele enche o precursor do Messias (1.15,80);
3) O Espírito Santo opera na Virgem Maria a concepção de Jesus, o Filho de Deus
(1.35);
4) Ele ilumina a Simeão (2.25-27);
5) O Espírito Santo desce sobre Jesus para ungi-lo (3.22);
6) Impulsionado por Ele, Jesus foi levado ao deserto (4.1);
7) Sob sua ação soberana, Jesus inicia seu ministério (4.14);
8) O Espírito do Senhor repousa plenamente sobre Jesus-Messias, com a
finalidade de realizar o plano salvífico de Deus (4.18);
9) Na virtude do Espírito, Jesus expulsa os demônios (11.20);
10) Jesus exulta no Espírito (10.21);
11) O Espírito Santo é o dom de Deus por excelência (11.13);
12) Os discípulos serão instruídos pelo Espírito (12.12);
13) Lucas termina seu Evangelho anunciando que Jesus enviará sobre seus
discípulos a Promessa do Pai (24.49).270
Lucas tem mais a dizer acerca do Espírito Santo no seu Evangelho do que qualquer
um dos demais evangelistas. Isto forma um vínculo de continuidade. Tanto no ministério de
Jesus quanto na vida da Igreja primitiva, o Espírito de Deus está operante.271
Viver segundo o Espírito implica caminhar em um processo de crescimento e
fortalecimento. A ação do Espírito não é “mágica” como se ao invoca-lo Ele descesse do céu
sobre nós. Mas Ele está presente em nós. Ele irrompe na comunidade a partir das entranhas
dos fatos históricos.

VI.3.5. A oração

Se no ensino acerca do Espírito Santo Lucas nos mostra que Deus leva a efeito o Seu
propósito; esta operação exige uma atitude da parte do povo de Deus. 272 Dessa forma, no

268
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 34.
269
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 43.
270
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 35.
271
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 45.

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Estudos no Novo Testamento 1 72

Terceiro Evangelho encontramos o verbo “orar” até 19 vezes (1.10; 3.21; 5.16; 6.12,28;
9.18,28-29; 11.1,1,2; 18.1,10,11; 20.47; 22.40,41,44,46).
Lucas revela Jesus como “um homem de oração”, através da qual cultiva a
intimidade com o Pai. Ora no momento de seu batismo (3.21); durante seu ministério (5.16);
para escolha dos Doze (6.12); para multiplicação dos pães (9.16); antes da confissão
messiânica de Pedro (9.18); durante a transfiguração (9.28); durante a dolorosa agonia no
Getsêmani (22.39-44); e finalmente durante as horas em que esteve pendurado na cruz (23.34,
46).273

VI.3.6. O louvor, a gratidão e a alegria

No Evangelho Segundo Lucas podemos respirar constantemente em um ambiente de


louvor, de ação de graças, de bênção e de glorificação a Deus. 274 Nesta atitude aparecem
Zacarias, Maria, os anjos em Belém, os discípulos, o centurião ao pé da cruz (cf. 1.46,64,68;
2.13,20,28; 5.26; 7.16; 10.17; 13.13,17; 17.15; 18.43; 23.47; 24.41,53).275 Alguns dos grandes
hinos da fé cristã são registrados aqui: Magnificat, Benedictus e Nunc Dimitis (1.46ss., 68ss.;
2.29ss).276
O verbo “regozijar-se” e o substantivo “alegria” são encontrados com muita
frequência (1.14, 44, 47; 3.17; 10.21). Há alegria na recepção que Zaqueu fez para Jesus
(19.6); quando a ovelha perdida e a moeda perdida são achadas, e há jubilo no céu por causa
da recuperação de pecadores perdidos (15.6-7, 9-10). O Evangelho Segundo Lucas termina,
assim como começou, com regozijo (24.52; 1.14).277

VI.3.7. A importância das mulheres

É digno de nota o lugar que Lucas concede às mulheres através de seu Evangelho. As
mulheres ocupam lugar especial. No relato da infância de Jesus, mulheres (Maria e Isabel) são
as duas protagonistas. Em Lucas-Atos, mulheres são mencionadas mais do que pelos demais
autores de O Novo Testamento: Jesus as cura (8.43-48; 13.10-17), defende-as (7.36-50;
13.10-17) perdoa-as (7.36-50), ressuscita uma jovem (8.49-56; cf. At 9.36-39) e o filho de
uma viúva (7.11-17), e elogia uma viúva (21.14), aceita seus serviços materiais (8.1-3).
Contrariando o costume da época, Jesus admite mulheres em seu seguimento (24.1-11,22).
Elas estão presentes no grupo que persevera na oração, esperando o dom do Espírito Santo
(At 1.14).278
No século I as mulheres não tinham vez. Lucas, contudo, as vê como objetos do
amor de Deus, e escreve a respeito de muitas delas.279

272
Ibidem.
273
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 36.
274
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 177.
275
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 36.
276
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 45.
277
Ibidem.
278
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 421.
279
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 39.

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Estudos no Novo Testamento 1 73

VI.3.8. O Evangelho para os pobres

Maria canta à pobreza e à humildade (1.52); os anjos aparecem aos pastores pobres
(2.8); José e Maria são pobres (2.24). Jesus é pobre (9.58) e prega aos pobres (6.21). Os
apóstolos deixam tudo e se fazem pobres (5.11; 14.33; 18.22; cf. 2.24; 4.18; 6.20; 16.15,20;
21.3).280
No Evangelho Segundo Lucas os pobres não são espiritualizados, como em Mateus.
São carentes economicamente, marginalizados e excluídos socialmente. Não têm relevância
na sociedade. O contraste entre “ricos” e “pobres” transcende as dimensões socioeconômicas.
Os pobres forma um conjunto heterogêneo, que podemos separar em três grupos,
conforme o grau de carência de bens. O primeiro grupo é formado pelos pobres-miseráveis, os
anawim (~ywIn"[)] do Antigo Testamento (Am 2.7, por exemplo). O segundo grupo (6.20-23) se
refere aos cristãos perseguidos, que foram reduzidos à situação de miséria. O último grupo é
formado pelos que vivem na pobreza por austeridade.281
Fica evidenciado que Lucas escreveu com um propósito profundamente teológico. O
evangelista consegue enxergar Deus operando para trazer a salvação e tem prazer em ressaltar
uma variedade dos aspectos desta grande e universal obra salvífica. 282

Na concepção da história de Lucas, o acontecimento Cristo finca suas raízes na


história humana, com uma visão universalista. A cristologia lucana com ênfase na soteriologia
é uma das peças teológicas da sua obra. Lucas apresenta um Jesus eminentemente humano e,
por isso, divino.
Dante Alighieri, autor da Divina Comédia, descreveu Lucas como scriba
mansuetudinis Christi, isto é, “cronista da magnanimidade de Cristo”.283 De fato, as
qualidades de misericórdia, amor, atenção, alegria e delicadeza que confirugam a imagem de
Jesus no Terceiro Evangelho tendem a suavizar uma apresentação mais rude dos outros
Evangelhos.

280
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 37.
281
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 419.
282
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 45.
283
http://www.internetculturale.it/opencms/directories/ViaggiNelTesto/dante/print/c10.html Acesso em
06/02/2017.

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Estudos no Novo Testamento 1 74

VII. O EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

Conhecemos diversas comunidades cristãs iniciadas por Paulo e outras que ele
visitou e solidificou na fé cristã, em sua segunda viagem missionária: Neápolis, Filipos,
Anfípolis, Tessalônica, Bereia, Corinto e, no retorno dessa viagem passou por Éfeso. Paulo
transformou essa última cidade em seu centro missionário, aproximadamente por três anos.
Não muito tempo depois, por volta dos anos 80, algumas comunidades da Ásia Menor, por
onde Paulo passou, continuaram a caminhada cristã sob a orientação da escola joanina.
A realidade que essas comunidades viviam já não era a mesma do tempo de Paulo.
Ele abriu caminho para a fé cristã, enfrentou muitas dificuldades, sobretudo com os
judaizantes. João também enfrentou muitas dificuldades, porém de um novo teor. As
comunidades já haviam sido evangelizadas, já tinham recebido a fé cristã, mas estavam sendo
influenciadas por interpretações errôneas sobre Jesus e sua doutrina. Na região da Ásia Menor
cresciam com maior força os movimentos religiosos como a religião dos mistérios e a gnose.
Foi neste contexto que surgiu o Evangelho Segundo João.
Denominado de “espiritual” desde a Antiguidade (Clemente de Alexandria, segundo
Eusébio de Cesareia) e reconhecido pela riqueza de sua teologia, o Quarto Evangelho vale-se
de sua forte reputação. Para alguns estudiosos, o Evangelho Segundo João constitui a maior
prova do ministério de Jesus, espécie de “supra-evangelho”.
Assim como temos feito até aqui, estudaremos, em primeiro lugar, as questões
relativas à sua dimensão histórica. Depois nos centralizaremos em sua dimensão literária, para
concluir com alguns tópicos dedicados às questões teológicas.

VII.1. Questões Históricas

João tem características estilísticas significativas para as quais devemos chamar a


atenção do leitor desde o início. Nesta seção abordaremos os dados corriqueiros: autoria, data,
lugar de composição e propósito que motivou a obra.

VII.1.1. Autoria

O Quarto Evangelho é comumente denominado “Evangelho de João” ou “Evangelho


Segundo João”. Na verdade, o texto em si não traz o nome do autor. Como vimos isto também
ocorre com os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, e com o livro dos Atos dos Apóstolos.
No caso do Evangelho Segundo Lucas e dos Atos, o máximo que se sabe é o nome do
destinatário, certo Teófilo (Lc 1.1; At 1.1), mas nada se diz a respeito do nome do autor.
Somente no final do século II, na obra de Irineu, é que encontramos pela primeira vez as
designações dos autores a que estamos habituados: Mateus e João, que fazem parte do grupo
dos Doze; Marcos e Lucas, que não integram o colégio apostólico, mas têm autoridade em
virtude da relação com Pedro e Paulo, respectivamente. Dessa forma, o título “Segundo João”
foi acrescentado quando os quatro Evangelhos foram reunidos e começaram a circular como
uma coleção, para distingui-lo dos outros.284

284
BRUCE, F. F. João: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1987, p. 11.

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Estudos no Novo Testamento 1 75

O autor presumido do Quarto Evangelho é identificado com um dos personagens


mais familiares dos Evangelhos sinóticos: João, filho de Zebedeu, membro do colégio dos
Doze, mencionado com frequência ao lado de seu irmão, Tiago, e em companhia de Pedro.
Apesar de o Evangelho não mencionar o nome do autor, ele confessa sua dívida para com um
personagem misterioso, o Discípulo que Jesus amava. 285
O Discípulo que Jesus amava aparece três vezes na última parte da narrativa do
Evangelho. Ao final da última Ceia, surge como intermediador entre Pedro e Jesus (13.23-26).
Sua intimidade com Jesus é ressaltada duas vezes: ele não só está sentado ao lado de Jesus
(v.23), como ainda se reclina sobre seu peito, em uma atitude que lembra a do herdeiro no
momento em que recebe as últimas palavras do mestre ou do pai. Cabe a ele, portanto a honra
de fazer a Jesus a pergunta constrangedora, mas decisiva, a respeito da identidade do
traidor.286
A identificação do Discípulo amado com João, o filho de Zebedeu, tem sido
fundamentada em bases positivas e negativas. Do lado negativo, está a ausência do nome de
João neste Evangelho (e de seu irmão Tiago), exceção feita para a afirmação, no início do
Epílogo, de que os “filhos de Zebedeu” estavam entre os sete discípulos que se encontraram
com o Senhor ressurreto (21.2). Do lado positivo, está a presença do Discípulo amado na
última Ceia.
Se for correto concluir de Marcos 14.17 (e paralelos sinóticos) que somente os doze
estiveram com Jesus ali, então o Discípulo amado era um dos doze – certamente não Pedro,
de quem ele é distinguido em 13.24, e provavelmente nenhum dos outros discípulos
mencionados pelo nome em 13.17. Na mesa da Ceia (13.24), no túmulo vazio (20.2-10) e à
beira do lago (21.7,20) o Discípulo amado é associado de maneira especial com Pedro; João
consta repetidas vezes como companheiro de Pedro nos primeiros tempos da igreja (At 3.1-
4,23; 8.15-25; Gl 2.9).287
Como testemunho externo temos, como já foi mencionado, desde Irineu a afirmação
de que o autor do Quatro Evangelho é João, o filho de Zebedeu. 288 Em sua obra Contra as
heresias (III, 1.1) ele escreve: “Depois disso João, o discípulo do Senhor, que também jazia
em seu peito, publicou por sua vez o evangelho, enquanto residia em Éfeso na Ásia Menor”.
Em outra passagem, Ireneu afirma que João escreveu o evangelho contra o falso mestre
daquele tempo, Cerinto, e contra a heresia dos nicolaítas (III, 11.1).289
No Cânon de Muratori, a passagem dedicada ao Quarto Evangelho está assim
redigida: “O quatro evangelho é de João, um dos discípulos. Como o exortassem seus bispos e
condiscípulos, disse-lhes: „Jejuai comigo a partir de hoje durante três dias e narraremos uns
aos outros o que nos for revelado‟. Na mesma noite, revelou-se a André, um dos apóstolos,
que João deveria escrever tudo em seu próprio nome com o aval de todos”.290
Além disso, temos os testemunhos do Prólogo antimarcionista, Papias, Eusebio,
Taciano, Teófilo de Antioquia, Tertuliano, Orígenes e ainda o Prólogo monarquiano. Neste
último podemos ler: “Esse é o evangelista João, um dos discípulos de Deus [...] Escreveu,
285
BLACHARD, Yves-Marie. São João. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 12.
286
Idem, p. 14.
287
BRUCE, F. F. Op Cit., p. 13, 14.
288
BROWN, Raymond E. El Evangelio Según Juan. Madrid: Ediciones Cristandad S.A., 1999, p. 111.
289
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 234.
290
BLACHARD, Yves-Marie. Op Cit., p. 23, 24.

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porém, esse evangelho na província da Ásia, depois que havia escrito o Apocalipse na ilha de
Patmos [...] E é aquele João que, sabendo que havia chegado o dia de falecer, reuniu seus
discípulos em Éfeso e através de muitas demonstrações de milagres, revelando a Cristo,
desceu ao lugar escavado para seu sepultamento e, depois de fazer um discurso, foi reunido a
seus ancestrais [...] Embora tenha escrito seu evangelho depois de todos os outros, apesar
disso é colocado depois de Mateus na sequencia do cânon ordenado”.291
O período de vida do apóstolo João tem seu início perto do século I e vai até o século
II. Ele era galileu e, de acordo com a tradição, da cidade de Betsaida, que ficava na margem
ocidental do mar da Galileia, não muito longe de Cafarnaum e Corazim. Seu pai era Zebedeu;
sua mãe, Salomé (Mc 16.1; Mt 20.20), estava entre as mulheres que apoiaram o Senhor com
seus recursos (Lc 8.3) e compareceram à crucificação dele (Mc 15.40). Dessa forma, sua
família não era desprovida de recursos materiais. Zebedeu era um pescador e tinha
empregados contratados para ajuda-lo com seu trabalho (Mc 1.20). Salomé ministrava para
Jesus, e parece que João tinha sua própria casa (Jo 19.27). Tão logo conheceu Jesus, ele
tornou-se seu entusiástico discípulo. A tradição comumente recebida, conforme pode ser
observado acima, retrata-o encerrando sua carreira apostólica na Ásia e em Éfeso. 292

VII.1.2. Data

No que diz respeito à data da redação do Quarto Evangelho as estimativas têm


variado entre a metade do século I até a metade do século II. Fica difícil aceitar uma datação
tão antiga, assim como não é possível aceitar uma datação tão recente, como na metade do
século II. Os estudiosos que defendem a data mais antiga, o fazem com base nas descobertas
arqueológicas na antiga colônia grega de Pella. 293 Os estudiosos que defendem uma data mais
recente deveriam levar em conta o î52. Talvez o argumento mais decisivo contra uma datação
tardia tenha sido a descoberta de diversos papiros datados do início do século II.294 Roberts
publicou um dos papiros John Ryland, um fragmento de João 18.31-33, 37-38, que foi
paleograficamente datado por volta de 125 d.C. O período de circulação da cópia teria que ter
começado décadas antes desta data.295
Existem inúmeras comprovações na Igreja antiga de que a permanência de João na
ilha de Patmos deve ter ocorrido sob o imperador Domiciano (81-96) e que João viveu até o
período do imperador Trajano (98-117). Além disso, nos foram legadas muitas provas que
situam o Evangelho Segundo João claramente mais tarde que os Evangelhos Sinóticos. Em
João 21.19 já se pressupõe a morte de Pedro. João 21.23 parece ter sido escrito muito mais
tarde, do contrário teria sido necessária uma explicação.296

291
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 239, 240.
292
VINCENT, Marvin R. Estudo no vocabulário grego do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2013, p.
1, 2.
293
EARLE, Ralph; MAYFIELD, Joseph H. Comentário Bíblico Beacon. Volume 7. Rio de Janeiro: CPAD,
2015, p. 22.
294
BROWN, Raymond E. El Evangelio Según Juan. Madrid: Ediciones Cristandad S.A., 1999, p. 104.
295
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento no Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008,
p. 153.
296
Veja ainda BROWN, Raymond E. El Evangelio Según Juan. Madrid: Ediciones Cristandad S.A., 1999, pp.
100-109.

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Estudos no Novo Testamento 1 77

Ademais, o Evangelho Segundo João pressupõe que o leitor esteja familiarizado com
os Evangelhos Sinóticos. Pessoas conhecidas desses Evangelhos não são mais apresentadas de
forma especial, enquanto, por exemplo, para Nicodemos se tornou necessária uma descrição
precisa. Esses pensamentos possuem um peso muito grande para favorecer uma datação para
o último decênio do século I, isto é, em torno do ano de 95 d.C.297

VII.1.3. Lugar de Composição

Diversas introduções histórico-críticas situam a redação do Quarto Evangelho na


Síria. Já Efrem, no comentário ao Diatessaron de Taciano, cita Antioquia como lugar de
redação. A defesa atual dessa afirmação ocorre por causa da postulada proximidade de João
com o incipiente gnosticismo, cuja localização se presume, sobretudo, na Síria. Contudo, essa
proximidade teológica de João com o incipiente gnosticismo tem sido rejeitada, de modo que
a localização geográfica também cai por terra.298
Já Ireneu e outros testemunhos, conforme pode ser visto acima, citam como lugar de
redação do Evangelho Segundo João a cidade de Éfeso, na Ásia Menor. Nada contradiz essa
informação. Portanto, levando em conta as evidências mais antigas, este Evangelho foi
redigido na cidade de Éfeso, a pedido dos amigos mais íntimos de João, os quais queriam ter o
ensino oral dele registrado para o uso permanente da Igreja. 299

VII.1.4. Propósito

O Evangelho Segundo João é o único que anuncia claramente seu propósito. Para
definir os propósitos de João o texto de 20.30s pode ser a passagem-chave. Ali lemos que
“Jesus realizou na presença dos seus discípulos muitos outros sinais miraculosos, que não
estão registrados neste livro. Mas estes foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo,
o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome”. Devemos estar atentos aos
aspectos evangelísticos, bem como apologéticos ou polêmicos. 300
Como caráter apologético ele serve para defesa contra as objeções judaicas ao
evangelho. Os judeus aparecem no Quarto Evangelho como adversários de Jesus que o
perseguem com ódio fanático e o encaram. 301 Ademais ele ressalta os seguintes tópicos: 1) a
natureza e a missão messiânica de Jesus; 2) a singularidade de Jesus como “o Filho de Deus”,
isto é, a pessoa verdadeiramente divina cujos milagres atestam a realidade das ousadas
afirmações que João fez a Seu respeito no capítulo 1; 3) o escopo universal de Sua obra
redentora (3.16-17; 6.40). Dessa forma, João consegue ser ao mesmo tempo evangelístico,
polêmico e pastoral. 302 Ele quer despertar a fé e fortalecê-la. 303

297
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 268.
298
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 264.
299
VINCENT, Marvin R. Op Cit., p. 4.
300
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Op Cit., p. 155.
301
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 263.
302
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Op Cit., p. 156.
303
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 264.

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VII.2. Questões Literárias

Analisaremos aqui os diversos aspectos relativos ao texto, desde os manuscritos que


chegaram até nós, tais como se nos apresentam, veremos um pouco a respeito da linguagem e
do estilo do texto para, em seguida, propormos uma estrutura literária tendo como ponto de
partida a narrativa mesma.

VII.2.1. Crítica Textual

Os diversos manuscritos gregos que sobreviveram ao longo dos séclos variam


levemente quanto ao sobrescrito do Quarto Evangelho.
Nos manuscritos que dispomos as denominações mais antigas de que temos
conhecimento possuem as seguintes variantes. 304
KATA IWANNHN ¥B
euaggelion kata Iwannhn î66 î75A C D L Ws Q Y
f1 33 Û vgww
agion euaggelion kata Iwannhn (28) al
arch tou kata Loukan agiou euaggelion 1241 pc
Da mesma forma como ocorre nos Evangelhos de Marcos e Lucas, no Códice ¥
também encontramos na subscriptio a forma longa EUAGGELION KATA IWANNHN. A
mais antiga atestação segura do Novo Testamento, como vimos acima, refere-se de um recorte
de cinco versículos do Evangelho Segundo João (18.31-33, 37-38), trata-se do papiro î52
(fragmento John Ryland). Justamente o Evangelho mais atacado pelo método histórico-crítico
possui a atestação extraordinariamente antiga e sólida. Tudo o que consta nos manuscritos
refletem tradição antiga e forte da autoria apostólica da obra. 305
Cabe ressaltar aqui a perícope da adúltera (7.53-8.11). O trecho não consta em
importantes manuscritos antigos, sem que apresentem um indício dele ou uma lacuna: î66
î75¥ B T W X Y e muitos outros. Parece estar ausente em C. 306 As versões Almeida Revista
e Atualizada e a Bíblia na Linguagem de Hoje colocam estes versículos entre colchetes com a
observação de que “não fazem parte do texto grego original”. A Bíblia de Jerusalém
acrescenta a isto, em nota de rodapé a seguinte informação: “sua canonicidade, seu caráter
inspirado e seu valor histórico, no entanto, não sofrem contestação”.307

VII.2.2. Linguagem e Estilo

Nas primeiras décadas do século XX alguns comentaristas levantaram a hipótese de


que o Evangelho Segundo João havia sido escrito em aramaico. As investigações sobre esta
questão continuam, mas as provas para inclinar à convicção por um original aramaico não tem

304
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 234.
305
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Op Cit., p. 149.
306
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 256.
307
BRUCE, F. F. Op Cit., p. 351.

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Estudos no Novo Testamento 1 79

sido suficientemente fortes. Prevalece assim a convicção de que o Evangelho foi escrito
diretamente em grego.308
Acostumamo-nos a nos aproximar do Evangelho Segundo João com a convicção de
que se trata de uma obra de um cunho teológico pouco comum. Pode ser que isto justifique o
pensamento de que se trata de uma obra com uma linguagem sutil e de uma profundidade
pouco corrente. Todavia, a linguagem de João é sumamente simples e inclusive, sob o ponto
de vista literário, pobre. O grego do Evangelho Segundo João é extremamente simples.
Pertence à koiné, ou seja, a linguagem única e comum que nos tempos do Novo Testamento
era a herdeira da grande diversidade de dialetos gregos anteriores. Era uma espécie de língua
franca utilizada no território mediterrâneo como veículo de comunicação. 309
Podemos dizer ainda que o grego de João – em contraste com o de Lucas –
representa mais bem a koiné falada e popular do que a literária. Estamos mais próximos da
linguagem de uma criança do que da de um adulto instruído. Ainda que o grego do Evangelho
Segundo João seja correto, ele é bastante pobre do ponto de vista literário: encontramos
somente umas 1.000 (ou 1.011)310 palavras diferentes ao longo de todo o texto e a frase mais
longa do evangelho está em 13.1. Percebe-se assim que o vocabulário é escasso. As mesmas
expressões ocorrem continuamente. 311
Este evangelho tem um estilo direto e uma sintaxe bastante elementar. Abunda o
chamado presente histórico, mais do que no Evangelho Segundo Marcos, e as frases se ligam
muitas vezes através da conjunção kai, (kaí – e). Em outras ocasiões as frases simplesmente se
justapõem sem partícula alguma que as enlace. 312
Além de o vocabulário ser muito limitado, ele é muito unitário. Não encontramos
diferenças de estilos de acordo com os personagens. Há mais, não existe uma distinção clara
entre a linguagem do narrador ou do evangelista e a linguagem de Jesus. No Evangelho,
inclusive Jesus fala exatamente igual ao autor e também de forma muito parecida ao mundo
conceitual das cartas joaninas: utiliza os mesmos vocábulos, os mesmos movimentos, tem o
mesmo estilo. Por causa disso, em alguns fragmentos torna-se difícil saber se é Jesus quem
fala ou se é o evangelista ou mesmo outros personagens. Para comprovar isto basta uma
leitura atenta de João 3.313
Ao que já foi dito podemos acrescentar que em umas poucas seções os estudiosos
descobrem um estilo poético formal, caracterizado inclusive por estrofes, por exemplo, no
prólogo e, talvez, no capítulo 17. Encontramos também uma combinação particular de duplo
sentido e mal-entendido quando os adversários de Jesus formulam juízos sobre ele,
declarações sarcásticas, incrédulas ou, ao menos, inadequadas ao sentido que pretendiam.
Ironicamente, contudo, esses juízos muitas vezes são verdadeiros e tem mais sentido com um
significado que os interlocutores não chegam a captar.314

308
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 43.
309
TUÑI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joánicos y cartas católicas. Espanha: Editorial Verbo
Divino, 1995, p. 19, 20.
310
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 44.
311
VINCENT, Marvin R. Op Cit., p. 16.
312
TUÑI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Op Cit., p. 20.
313
Idem, p. 21.
314
BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cuestiones preliminares, evangelios y obras
conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 443, 447.

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O Evangelho oferece muitos vocábulos hebraicos e aramaicos, alguns dos quais o


autor traduz para seus leitores, que não conheciam essas línguas: Rabbi (1.38); Amém, amém
(1.51) (25 vezes); Messias (1.41; 4,25); Kéfas (1.42); Bethesda (5.2); Manná (6.31, 49);
Siloam (9.7); Thomas (11.6; 21.2); Hosanna (12.13); Gabbathá (19.13); Golgotha (19.17);
Rabbouni (20.16).315
O Evangelho Segundo João possui características peculiares facilmente
identificáveis. Uma vez lido em comparação com os sinóticos percebemos que existem
expressões que aparecem somente em João: “em verdade, em verdade... vos digo, te digo”;
“respondeu e disse”; “acreditar em”; “dar testemunho”; “dar a vida”, etc.316
Como conclusão, podemos perceber que se detecta uma pessoa que, pensando com
mentalidade semita, escrevia ou ditava em grego. 317

VII.2.3. Estrutura Literária

Existem diferentes propostas de organizar o Evangelho. Há os que dividem a partir


das grandes festas que culminam na Páscoa de Jesus. Outros o apresentam em duas grandes
partes: após o prólogo (1.1-18), a primeira conhecida como o Livro dos Sinais (1.19-12.50).
Nela aparecem sete narrativas de sinais, que são os milagres que Jesus realizou, confirmam a
missão de Jesus como o Enviado de Deus. A segunda parte é conhecida como o Livro da
Exaltação ou glorificação de Jesus (13.1-20.31). Nela revela-se o amor e a bondade de Deus,
na face do Pai. Por fim, o Epílogo (21.1-25) que apresenta ainda uma aparição de Jesus.
Vamos adotar essa perspectiva.
O Evangelho Segundo João prenuncia o plano no prólogo. Aquele que era o Verbo
estava com Deus desde o princípio, por meio de quem todas as coisas vieram à existência, era
vida e luz – a luz dos homens. O texto apresenta uma estrutura clara.
I. Prólogo 1.1-18.
II. O Livro dos Sinais 1.19-12.50.
1. A água convertida em vinho em Caná 2.1-11.
2. A cura a distância do filho de um funcionário real 4.46-54.
3. A cura do paralítico de Betesta em Jerusalém 5.1-15.
4. A multiplicação dos pães na Galileia 6.1-15.
5. O caminhar sobre as águas do lago de Tiberíades 6.16-21.
6. A cura do cego de nascimento em Jerusalém 9.1-41.
7. A ressurreição de Lázaro em Betânia 11.1-44; 12.18.
As alusões gerais aos sinais e as narrativas em particular aparecem ao longo de doze
temas maiores.
1. Semana inaugural: a epifania de Jesus 1.19-2.11,12.
2. O sinal do tempo 2.13-22.
3. Jesus e Nicodemos 2.23–3.21.
4. O último testemunho do Batista 3.22-36.
5. A revelação aos samaritanos 4.1-42.

315
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 44.
316
TUÑI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Op Cit., p. 23, 24.
317
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 44.

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6. A cura do filho de um funcionário real 4.43-54.


7. O sinal de Betesda 5.1-47.
8. O pão da vida 6.1-71.
9. A festa dos Tabernáculos 7.1–10.21.
10. A festa da Dedicação 10.22-42.
11. A ressurreição de Lázaro 11.1-54.
12. Os últimos dias 11.55–12.50.
III. O Livro da Exaltação 13.1-20.31.
1. A última Ceia, os discursos de despedida e a oração de Jesus ao Pai
13.1–17.26.
2. A narrativa da paixão de Jesus 18.1–19.42.
3. A semana da ressurreição 20.1-31.
IV. Epílogo 21.1-25

Até mesmo pela estrutura ficam flagrantes as diferenças entre o Evangelho Segundo
João e os Sinóticos. Isso também pode ser confirmado por meio do elevado percentual de
material exclusivo. O Evangelho Segundo João possui 879 versículos (incluindo a perícope da
adúltera). Disso cerca de 80% são material exclusivo.318
O único milagre que aparece em todos os quatro Evangelhos é o da multiplicação dos
pães para a alimentação dos cinco mil (Mt 14; Mc 6; Lc 9; Jo 6).

VII.3. Questões Teológicas

Alguns breves apontamentos sobre “a teologia do Quarto Evangelho”, em uma


introdução, não pretende aspirar a ser uma síntese completa da doutrina do evangelista. Por
esta razão, nos limitaremos a assinalar somente as pistas mais relevantes do pensamento
teológico deste Evangelho.

VII.3.1. Deus

Quem é Deus no Evangelho Segundo João?


O Evangelho Segundo João – podemos afirmar – é por antonomásia “O Evangelho
da revelação de Deus como Pai”, e Pai do Verbo encarnado: Jesus. 319
Desde o hino ao Verbo feito carne nós já encontramos a identificação de Deus com a
pessoa do Pai e Pai do Verbo, Jesus Cristo: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e
vimos a sua glória, como a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade” (1.14) e
“[...] a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (1.17).320
O prólogo do Quarto Evangelho tem mesmo o objetivo de proporcionar ao leitor uma
lente adequada para interpretar a narrativa que se segue. Neste prólogo são abordadas duas
questões de fundamental importância: 1) o relacionamento entre Deus e o Verbo (Jesus); e 2)
a possibilidade de um relacionamento próximo entre Deus e os seres humanos. O prólogo traz

318
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 233.
319
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 30.
320
Ibidem.

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Estudos no Novo Testamento 1 82

oito referências a theos (qeo,j) (1.1[bis],2,6,12,13,18[bis]). Destas, seis se referem a Deus-Pai


(1.1,2,6,12,13,18) e duas ao Verbo, ou Jesus Cristo (1.1,18). O vocábulo theos (qeo,j) é
conhecido dos leitores de João, que o usa em referência ao Deus revelado no Antigo
Testamento. O termo ocorre em Gênesis 1.1 em referência ao Criador. 321
A partir do primeiro capítulo, João vai desvelando pouco a pouco ao Deus das
Escrituras como “Pai” e “o Pai de Jesus”, até culminar sua revelação nos discursos de
despedida, aonde o título “Pai” é mencionado até 51 vezes (13.31-17.25).322
Intimamente vinculado com o Pai aparece no Evangelho “o Parákleto (para,klhtoj),
o Espírito da verdade, o Espírito Santo” que procede do Pai, e que o Pai dará e enviará aos
discípulos de Jesus (14.17,26; 15.26). A partir desta perspectiva, o Evangelho Segundo João
se revela essencialmente trinitario.323324

VII.3.2. Jesus

Uma vez tendo obtido uma compreensão inicial da pessoa do Pai no Evangelho,
precisamos tentar responder a uma segunda pergunta: Quem é Jesus?
O Quarto Evangelho se apresenta essencialmente como um Evangelho
“cristológico”. Todo ele constitui uma revelação de quem é Jesus. Sua pessoa está no centro
de sua teologia. O próprio evangelista declara o propósito de seus escritos dizendo que “foram
escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida
em seu nome” (20.31). João destaca a nota cristológica, em sua introdução, ao chamar Jesus
de “Logos” (lo,goj).325
Desde o hino inicial Jesus aparece como alguém em relação com Deus. Jesus é a
verdadeira e última manifestação de Deus.326 Com efeito, Jesus é o Verbo eternamente
existente em Deus, e ele mesmo é Deus (1.1); esse Verbo se fez carne para habitar (evskh,nwsen
– eskénosen, estendeu a sua tenda) em meio aos homens (1.14); é o Unigênito-Deus
(monogenh,j – monogenés) que está no seio do Pai (1.18).327
No corpo do texto do Evangelho, Jesus aparece antes de tudo como o Filho de Deus
(ui`o.j tou/ qeou/ - huiós tou Theoû). Na realidade, uma das diferenças mais marcantes entre os
Sinóticos e João é o papel distinto desempenhado pela filiação de Jesus a Deus. A primeira
referência a Jesus como Filho de Deus é feita por Natanael; a referência do Evangelista a
Jesus como Filho de Deus em 3.18 encontra seu complemento na declaração do propósito
final de seu Evangelho em 20.31. 328 Deus é nomeado “Pai” em relação a Jesus 106 vezes.329
Sendo o Filho um com o Pai-Deus, não é raro que em diversas ocasiões Jesus se proclame em
forma absoluta “Eu Sou”, (evgw, eivmi – egô eimi) atribuindo-se assim o equivalente do nome
321
KÖSTENBERGER, Andreas J. Pai, Filho e Espírito: a trindade e o evangelho de João. São Paulo: Vida
Nova, 2014, p. 61.
322
ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 30.
323
ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 30.
324
Para uma exposição completa a respeito da Trindade e o Evangelho de João veja KÖSTENBERGER,
Andreas J. Pai, Filho e Espírito: a trindade e o evangelho de João. São Paulo: Vida Nova, 2014.
325
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 356.
326
DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977, p. 27.
327
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 31.
328
KÖSTENBERGER, Andreas J. Op Cit., p. 103.
329
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 365, 366.

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Estudos no Novo Testamento 1 83

divino e situando-se no mesmo nível de Deus “Que É” (8.24,28,58; 13.19; Is 43.10,25;


45.18).330
Jesus também é o Filho do Homem (13 vezes). Da mesma forma que nos Sinóticos, a
expressão “Filho do Homem” é usada somente pelo próprio Jesus. Essa expressão, contudo,
nunca é aplicada a Ele, quer por seus discípulos quer pelo povo.331 Ele é o Messias-Rei332, o
Ungido-Cristo anunciado na Lei e nos Profetas (1.41,45; 4.26; 20.31); é o Mestre e o Senhor
(13.13; 20.28).333
Finalmente, ao longo do Evangelho Jesus se apresenta com sete títulos que
manifestam suas funções salvíficas em relação aos homens: “Eu sou o pão da vida” (6.35,51);
“Eu sou a luz do mundo” (8.12); “Eu sou a porta” (10.7,9); “Eu sou o bom pastor” (10.11,14);
“Eu sou a ressurreição e a vida” (11.25); “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (14.6); “Eu
sou a videira verdadeira” (15.1,5).334
Para completarmos esta visão do ministério de Jesus é necessário aludir a suas
relações com o Espírito de Deus. O Espírito Santo é mencionado treze vezes em estreita
relação com Jesus: o que o recebe, o que o promete, o que o entrega (1.32,33; 3.5,6,8,34;
7.39; 14.17,26; 15.26; 16.13; 19.30; 20.22).335

VII.3.3. Espírito Santo

Outra das diferenças mais marcantes entre os Evangelhos Sinóticos e o Quarto


Evangelho é o destaque que João dá ao Espírito Santo, especialmente no sermão no cenáculo
com seu ensino singular a respeito do Parákletos (para,klhtoj).336 Em João o Espírito Santo é
o princípio de purificação.
Como se purifica o pecado do mundo? Este ministério de purificação é manifestado
quando o evangelista escreve: “[...] o que me mandou a batizar com água, esse me disse:
Sobre aquele que vires descer o Espírito e sobre ele repousar, esse é o que batiza com o
Espírito Santo” (1.33). Batizar é lavar, limpar, purificar. Como Jesus purificará com o
Espírito?337
A resposta pode ser obtida em determinados textos-chaves do Antigo Testamento,
particularmente de Ezequiel, quem nos dá a formulação mais precisa (Ez 36.26-27; cf. Is
32.15-19; 44.3-5).338
É assim que, a missão do Jesus-Messias, o Servo de Deus, será purificar, lavar,
batizar aos homens nesse Espírito, com esse Espírito, mediante esse Espírito, com a dádiva
desse Espírito divino.339 A dádiva desse Espírito e a subsequente bênção aos homens
encontram-se refletida em outra declaração: “Quem crê em mim, como diz a Escritura, rios de
água viva correrão do seu ventre” (7.38). A explicação está no próximo versículo (7.39). O
330
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 31.
331
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 363.
332
Idem, p. 361.
333
ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 31.
334
Ibidem,
335
Ibidem.
336
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 416.
337
ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 32.
338
Ibidem.
339
Ibidem.

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Estudos no Novo Testamento 1 84

Espírito viria para assumir o lugar de Jesus e para capacitar os discípulos, a fim de que estes
fizessem o que não poderiam fazer por si mesmos, ou seja, levar os homens à fé e à vida
eterna.340
É assim que, na segunda metade do Evangelho as referências ao Espírito aumentam
drasticamente, tanto em número quanto em importância, em consonância com o papel
fundamental do Espírito na missão dos discípulos depois da partida de Jesus e de seu retorno a
Deus-Pai.341

VII.3.4. Espírito Santo: fonte da vida eterna e princípio de adoração ao Pai

A água que Jesus promete à samaritana é símbolo do Espírito Santo. Essa água viva,
misteriosa por sua origem, uma vez que não vem de um poço, mas que Jesus a dá, é também
misteriosa por sua natureza, pois é “o dom de Deus” que saciará a sede para sempre; mais
ainda, se converterá, naqueles que a beberem, em uma fonte a jorrar para a vida eterna (4.10-
14). Esse dom de Deus está no crente como principio dinâmico de um culto novo e autêntico,
próprio da era messiânica instaurada por Jesus. É o que anunciam as palavras de Jesus em
4.23.342

VII.3.5. O universalismo da salvação

A humanidade inteira é o objeto do amor do Pai e da obra salvífica de Jesus.


Distribuídas ao longo do Quarto Evangelho encontramos expressões que sublinham o
universalismo. João Batista disse ao apresentar a Jesus: “[...] Eis o Cordeiro de Deus, que tira
o pecado do mundo” (1.29), ou seja, o pecado enquanto tal, em sua totalidade e em sua
universalidade.343
Os samaritanos confessam: “[...] este é verdadeiramente o Cristo, o Salvador do
mundo” (4.42). Jesus mesmo disse: “[...] tenho outras ovelhas que não são deste aprisco;
também me convém agregar estas, e elas ouvirão a minha voz, e haverá um rebanho e um
Pastor” (10.16).344
Todavia, esse universalismo salvífico estava dependendo da doação de sua própria
vida. O Evangelista já descortina na palavra do Sumo Sacerdote: “[...] nos convém que um
homem morra pelo povo e que não pereça toda a nação” (11.50), uma profecia segundo a qual
“[...] Jesus devia morrer pela nação. E não somente pela nação, mas também para reunir em
um corpo os filhos de Deus que andavam dispersos” (11.51-52).345
O próprio Jesus faz esse anúncio quando diz: “[...] o pão que eu der é a minha crne,
que eu darei pela vida do mundo” (6.51). No domingo da festa (12.20) Jesus proclama
solenemente a fecundidade de seu sacrifício na cruz: “Na verdade, na verdade vos digo que,
se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto...

340
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 419.
341
KÖSTENBERGER, Andreas J. Op Cit., p. 121.
342
ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 34.
343
Idem, p. 37.
344
Ibidem.
345
Ibidem.

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Estudos no Novo Testamento 1 85

Agora, é o juízo deste mundo; agora, será expulso o príncipe deste mundo. E eu, quando for
levantado da terra, todos atrairei a mim” (12.24, 31-32).346
Todas essas passagens a respeito do futuro rebanho único e universal, unidas aos
textos sobre os discípulos enviados (4.35-38; 17.20-21) com o poder de perdoar os pecados
(20.21-23), fundamentam a eclesiologia do Quarto Evangelho. 347

VII.3.6. A eficácia da oração

A união entre os discípulos e Seu Senhor Jesus-Cristo por intermédio do Espírito


Santo é a fonte do êxito na oração: “Se vós estiverdes em mim, e as minhas palavras
estiverem em vós, pedireis tudo o que quiserdes, e vos será feito” (15.7). Essa oração na nova
economia é diferente. Na Antiga Aliança era dirigina a Deus-Yahweh; agora, a nova oração é
ao Pai em O Nome de Jesus, e sua eficácia está assegurada em virtude da obra que Ele
realizou: “[...] Na verdade, na verdade vos digo que tudo quanto pedirdes a meu Pai, em meu
nome, ele vo-lo há de dar. Até agora, nada pedistes em meu nome; pedi e recebereis, para que
a vossa alegria se cumpra” (16.23b-24).348
Entretanto, o próprio Jesus escutará a oração que se dirige ao Pai em nome do Filho.
E isto redundará em glória do Pai: “E tudo quanto pedirdes em meu nome, eu o farei, para que
o Pai seja glorificado no filho” (14.13; cf. 15.11).349

VII.3.7. Perseverança final e ressurreição futura

Por fim, essa mesma união é a garantia da perseverança final e da ressurreição futura.
Outra série de textos sublinha uma escatologia ainda por realizar-se (5.28-29; 6.40,44,54;
12.48; 14.2-3; 17.24).350
A união com Cristo é garantia de perseverança, porque estar em Jesus é estar no Pai,
e “[...] ninguém pode arrebata-las das mãos de meu Pai” (10.29), e é segurança de
ressurreição futura, porque “E a vontade do Pai, que me enviou, é esta: que nenhum de todos
aqueles que me deu se perca, mas que o ressuscite no último Dia. Porquanto a vontade
daquele que me enviou é esta: que todo aquele que vê o Filho e crê nele tenha a vida eterna; e
eu o ressuscitarei no último Dia”, (6.39-40).351

VII.3.8. O dualismo Joanino

Um dos problemas mais difíceis na teologia Joanina é seu dualismo aparentemente


diferente daquele apresentado nos Evangelhos Sinóticos. O dualiso nos Sinóticos é
primariamente horizontal: um contraste entre duas eras – a era presente e o século futuro. O

346
Idem, p. 38.
347
ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 43.
348
ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 38.
349
Ibidem.
350
Ibidem.
351
Ibidem.

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Estudos no Novo Testamento 1 86

dualismo Joanino é primariamente vertical: um contraste entre dois mundos – o superior e o


mundo inferior (Jo 8.23; 11.9; 13.1; 16.11; 18.16).352
O mundo inferior é o reino das trevas, mas o mundo de cima é o mundo da luz.
Nosso Senhor Jesus Cristo entrou no reino das trevas com o objetivo de trazer a luz. A luz e
as trevas são consideradas como dois princípios em conflito (1.5). Jesus é a própria luz
(8.12).353 Antes da vinda da luz, todos eram cegos. Os “videntes” são apenas aqueles que
imaginavam enxergar; os “cegos” são os que tinham consciência de sua cegueira ou a tem
agora, quando lhes aparece a luz.354
O kosmos (ko,smoj) é outro conceito dualístico importante. Algumas vezes João usa o
vocábulo paralelo ao modo sinótico, similar ao da linguagem filosófica grega, e pode designar
ou a ordem criada como um todo (Jo 17.5, 24), ou a terra em particular (Jo 11.9; 16.21;
21.25). Também pode designar aqueles que habitam no mundo: o gênero humano (12.19;
18.20; 7.4; 14.22).355 O mundo (kosmos) jaz no maligno; mas é da salvação que ele carece. 356
Com o objetivo de resumir o conceito de Dualismo Joanino, uma vez que o objetivo
deste trabalho não é o de uma “Teologia do Novo Testamento”, podemos salientar que a
forma estilística é a expressão para a concepção dualista básica; é a pressuposição dos
discursos de revelação. A ela também correspondem os termos antitéticos, que perpassam
esses discursos: luz e trevas, verdade e mentira, em cima e embaixo (ou celestial e terreno),
liberdade e escravidão.357

352
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 338.
353
Ibidem.
354
BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Editora Academia Cristã, 2008, p. 453.
355
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 339.
356
BULTMANN, Rudolf. Op Cit., p. 443.
357
BULTMANN, Rudolf. Op Cit., p. 439.

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Estudos no Novo Testamento 1 87

VIII. ATOS DOS APÓSTOLOS

Certo estudioso afirmou que é muito estranho ler um livro que traz em seu
encerramento um advérbio. É o que ocorre com o Livro de Atos que, em grego, encerra-se
com akolutos (avkwlu,twj), um advérbio que pode ser traduzido por “desimpedido”,
“desimpedidamente”. Segundo este mesmo estudioso, parece ser essa a ideia central do
segundo volume da obra de Lucas, mostrar que o evangelho alcançou a liberdade, mesmo a
muito custo.358
De todos os textos do Novo Testamento, o livro Atos dos Apóstolos – ou
simplesmente Atos, ocupa uma posição ímpar. É o único livro que tenta apresentar uma
narrativa histórica dos tempos imediatamente seguintes à ascenção de Cristo aos céus. Esse
segundo volume da obra de Lucas retoma a narrativa onde o primeiro terminou. É de extrema
importância o estudo desta obra, uma vez que muita coisa do Novo Testamento só é
compreensível quando vista à luz do pano de fundo histórico encontrado no segundo livro de
Lucas. 359
Conforme salientamos acima, durante o estudo de Lucas fizemos algumas menções
ao Livro de Atos. Deve ter ficado evidente que o estudo do Terceiro Evangelho está
necessariamente ligado a um estudo de Atos. Que o mesmo autor escreveu ambos os livros, é
amplamente aceito. As duas obras iniciam sendo endereçadas à mesma pessoa, Teófilo (Lc
1.1-4; At 1.1). No prefácio de Atos, o autor faz referência ao primeiro volume (tratado), a
respeito da vida de Jesus. Além disso, temos a semelhança de estilo e vocabulário.
Para encerrar com o mesmo padrão que iniciamos, vamos às questões históricas.

VIII.1. Questões Históricas

A estrutura de um livro revela, sem dúvida, algo da intenção do autor. Contudo,


informações externas à obra também podem nos auxiliar na compreensão dessa mesma
intenção. É o que estamos tentanto fazer ao procurar situar o leitor quanto à origem, autor,
data, lugar de composição, destinatários e situação que motivou a obra em destaque.

VIII.1.1. Autoria

Mesmo sabendo que estamos diante de duas obras com uma mesma autoria, tanto
Lucas quanto Atos são anônimos, no sentido estrito da palavra. Tomando por base o prefácio
de Lucas, com o qual o autor provavelmente pretendeu introduzir tanto seu Evangelho como
Atos, nós podemos concluir que o autor foi pessoa de boa cultura. O grego de Lucas 1.1-4,
como vimos, é grego literário de bom nível. Disso resulta que não deve ter sido um dos
apóstolos ou discípulos originais de Cristo – o próprio autor escreve das coisas que “nos
transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da
palavra” – mas mesmo assim pode ser alguém que participou de alguns dos eventos que narra
– “fatos que entre nós se realizaram”. Perecebemos que o autor tem conhecimento do Antigo
358
STAGG, Frank. Atos: a luta dos cristãos por uma igreja livre e sem fronteiras. Rio de Janeiro: JUERP,
1994, p. 15.
359
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 169.

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Estudos no Novo Testamento 1 88

Testamento na versão dos LXX, além de possuir um ótimo conhecimento das condições
políticas e sociais vigentes em meados do século I e tem o apóstolo Paulo em alta estima.360
Outra inferência bastante comum sobre o autor procede dos trechos que empregam o
pronome “nós” em Atos. São quatro trechos em que o autor passa da narrativa na terceira
pessoa “eles” para uma narrativa na primeira pessoa do plural (16.8-10 é a primeira delas).
Ademais, parece que o autor acompanhou Paulo até Roma e provavelmente esteve com o
apóstolo durante os dois anos em que este esteve sob prisão domiciliar em Roma. 361
Desde o segundo século afirma-se que Lucas, o médico amado (Cl 1.14) também foi
o autor de Atos. O prólogo antimarcionista de Lucas (160-180 d.C.) identifica o autor do
Evangelho como sendo Lucas, uma pessoa de Antioquia da Síria, e médico de profissão.
Além disso, adiciona que “o mesmo Lucas posteriormente escreveu os Atos dos Apóstolos”.
Do mesmo modo, o Cânon Muratori (170 d.C.) afirma que “Lucas compilou para „o mui
excelente Teófilo‟ aquelas coisas que se deram em detalhe em sua presença. Tanto Ireneu
quanto Clemente de Alexandria, de modo explítico, admitem Lucas como o autor de Atos. 362
Além dos testemunhos externos mencionados acima ainda temos Tertuliano (Adv.
Marc. 4.2) e Eusébio (H.E. 3.4; 3.24.25).363 Um pouco mais tarde também testemunham
Cosmas Indicopleustes e George Hamartolos. Jerônimo ainda acrescenta que a data da
redação deve ter ocorrido por volta do final da prisão de dois anos de Paulo.364
Não existe motivo para negar que o autor de Atos foi um companheiro de Paulo; de
igual modo o testemunho da Igreja antiga deveria ser suficiente para continuarmos afirmando
a autoria lucana.

VIII.1.2. Data

Conforme vimos ao estudar o Terceiro Evangelho, a sua datação dependeria do lugar


de composição que assumíssemos e da data em que Atos foi escrito. Na ocasião afirmamos
que o livro dos Atos dos Apóstolos foi escrito por volta do final do primeiro cativeiro de
Paulo 62-63. Podemos afirmar com absoluta certeza que só foi redigido depois de 62 d.C. (a
história termina em 62, com a primeira prisão de Paulo em Roma). A narrativa de Lucas
termina com Paulo preso (At 28.30-31). A maneira abrupta de encerrar pode ser mais bem
compreendida justamente pelo fato de Atos ter sido escrito antes do aparecimento de Paulo
perante Nero. Não seria natural um livro ser terminado assim, se o autor tivesse conhecimento
de que Paulo havia sido solto. Outra argumentação é que não há nenhuma insinuação de que a
Guerra Judaico-Romana (66-70 d.C.) já se havia iniciado ou de que Jerusalém havia sido
destruída (70 d.C.). Por causa de tudo isso nós sugerimos mesmo que o livro de Atos dos
Apóstolos deve ter sido redigido por volta de 62-63 d.C.

VIII.1.3. Lugar de Composição

360
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 208, 209.
361
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 209.
362
STAGG, Frank. Op Cit., p. 33.
363
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 210.
364
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 273.

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Estudos no Novo Testamento 1 89

Alguns estudiosos consideram insolúvel a questão do lugar de composição,


condicionados que são por sua rejeição da autoria do companheiro de viagens do apóstolo
Paulo. Lembremos mais uma vez que o Livro de Atos termina com uma breve menção do
primeiro cativeiro de Paulo em Roma (28.30s). Por isso, nós somos adeptos da convicção de
que Lucas escreveu este segundo volume em Roma. 365

VIII.1.4. Propósito

Precisamos admitir que, por vezes, uma obra pode abarcar uma diversidade de
propósitos. Atos talvez seja o melhor exemplo desta afirmação em O Novo Testamento. Com
certeza isso depende muito das pressuposições do leitor que, muitas vezes, podem extrapolar a
intenção do atutor. Devemos tomar cuidado com isso. Os leitores em geral enchergam em
Atos o livro da história da igreja primitiva. Devemos ter em mente novamente que se trata da
segunda parte de uma obra em dois volumes, e que, os propósitos de ambas podem estar
interligados. Na realidade, os estudiosos têm enfatizado em geral os seguintes propósitos:
apologético, teológico, didático, história dos começos do cristianismo, confirmação do
Evangelho e foco na salvação. Vejamos cada um desses propósitos ainda que de forma
resumida.
Alguns autores advogam a teoria de que Lucas pretendia defender o apostolado de
Paulo, complementando, assim, com base histórica, as defesas do próprio Paulo em tais cartas
como Gálatas e 2 Cortíntios. Além disso, muitas vezes acrescenta-se a ideia de que Lucas-
Atos tenha sido escrito como um dossiê jurídico para o primeiro julgamento de Paulo em
Roma, com o objetivo de demonstrar que o apóstolo não se envolvera com atividades anti-
romanas, uma vez que esta seria a principal acusação a ser levantada contra ele pelos seus
compatriotas judeus. 366
Veja na tabela abaixo as comparações que podem ser feitas entre o ministério
apostólico de Pedro e de Paulo.367

Atos poderosos de Pedro Atos poderosos de Paulo


3.1-11 Curou um homem paralítico de 14.8-18 Curou um homem paralítico de
nascença. nascença.
5.15-16 Sua sombra curava pessoas. 19.11-12 Lenços e aventais de Paulo
curava pessoas.
8.9-24 Lidou com Simão, um 13.6-11 Lidou com Bar-Jesus, um
ilusionista. feiticeiro.
9.32-35 Curou Enéias de paralisia. 28.7-9 Curou o pai de Públio e outros.
9.36-41 Trouxe Dorcas de volta à vida. 20.9-12 Trouxe Êutico de volta à vida.

Quanto ao propósito teológico, não resta dúvida de que uma obra do Novo
Testamento o tenha. Mas aqui se defende a ideia de que a afirmação teológica primária que
Lucas tentava fazer através de sua obra em dois volumes era a continuidade do Reino de Deus
no livro de Atos. De fato, o segundo volume começa com uma pergunta escatológica (1.6) e
365
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 287.
366
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Op Cit., p. 188.
367
Idem, p. 188.

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Estudos no Novo Testamento 1 90

encerra com terminologia escatológica (28.31). Afirma-se, portanto, que Lucas pretendia
explicar o relacionamento entre a Igreja e o Reino de Deus, ou seja, como a mensagem do
Reino soberanamente passara de um fenômeno principalmente judaico para um movimento
principalmente gentílico, com seu centro passando de Jerusalém para Roma. 368
Lucas, ao mencionar “o primeiro tratado” que compôs, referiu-se a esse propósito
declarado em seu Evangelho, isto é, apresentar um relato preciso e sistemático do
desenvolvimento do cristianismo. No Evangelho, ele narra as palavras e as obras de Jesus
Cristo, e em Atos, ele narra a obra do Cristo Ressurreto levada a cabo por meio dos Seus
apóstolos e discípulos. A intenção do evangelista era que Teófilo e outros leitores
conhecessem plenamente as coisas em que foram instruídos. Lucas escreve tendo em vistas o
fortalecimento e a edificação.369
Lucas parece que procurava escrever a história dos começos do cristianismo em
amplo sentido. O evangelista reúne juntamente a história de Jesus Cristo e a história da Igreja
primitiva. Além disso, ele considera que essas duas obras juntas formam a narrativa da
fundação da Igreja. Ele quer explicar como tiveram início as boas-novas, e como elas se
espalharam ao ponto de abarcar o mundo mediterrâneo, desde Jerusalém até Roma. 370
Lucas-Atos pode ser considerada uma obra evangelística que proclama aos seus
leitores a universalidade da salvação em Cristo Jesus. Ele demonstra que o evangelho tinha
em mira os gentios também, e não apenas os judeus. Ele evidencia que o que ocorreu na Igreja
primitiva estava em plena conformidade com as profecias (Lc 24.47; At 1.4-5, 20; 2.16-21;
3.24; 13.40-41, 47; 15.15-18; 28.25-28).371
Se quisermos adotar os diversos conceitos apresentados acima, temos de rejeitar a
ideia de que o Livro de Atos tenha sido redigido para providenciar algum tipo de apologética
política em prol do cristianismo ou mesmo de Paulo. Não queremos negar o interesse
apologético, mas de colocá-lo, contudo, como um alvo subordinado em comparação com o
tema principal da apresentação do fundamento histórico da fé cristã. 372

VIII.2. Questões Literárias

Nestes próximos tópicos tentaremos compreender alguns aspectos relativos ao texto.


Veremos quais são os principais manuscritos de que dispomos atualmente (Crítica Textual).
Introduziremos o estudo ao estilo e à linguagem do autor para, ao final sugerirmos uma
estrutura literária, um esboço mesmo da obra.

VIII.2.1. Crítica Textual

Nos diversos manuscritos que chegaram até nós, as denominações mais comuns
possuem as seguintes variantes.373
PRAXEIS ¥ 1175 pc
368
Idem, p. 189.
369
Idem, p. 190.
370
MARSHAL, I. H. Atos: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1991, p. 17.
371
MARSHAL, I. H. Op Cit., p. 18.
372
Idem, p. 19, 20.
373
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 272.

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Estudos no Novo Testamento 1 91

PRAXEIS APOSTOLWN B Y pc
PRAXIS APOSTOLWN D
ai praxeij twn apostolwn 323s.945 al
ai praxeij twn agiwn apostolwn 1505.1739s
praxeij twn agiwn apostolwn 453. 1884 pm
arch sun qew ai praxeij twn apostolwn 1241
Louka euaggelistou praxeij twn agiwn apostolwn
3. 189. 1891.2344 al
praxeij twn agiwn apostolwn suggrafeis para tou apostolou kai euaggelistou
Louka 614
praxeij twn agiwn apostolwn suggrafeis para tou agiou Louka tou apostolou
kai euaggelistou 1704
Conforme podemos observar, exceto alguns manuscritos tardios, não consta nenhum
nome de autor no título, “não porque se estivesse incerto quanto ao autor, mas porque o tíeulo
deve ser de uma época em que o evangelho de Lucas e Atos ainda eram transmitidos como
uma só obra dupla”. 374
Ainda que o título não seja preciso, uma vez que o livro se concentra nas atividades
de apenas dois dentre treze indivíduos reconhecidos como apóstolos, Pedro e Paulo, e dedica
porções consideráveis a não-apóstolos, como Estêvão e Filipe, o título é perfeitamente
aceitável, visto que os apóstolos foram os instrumentos através dos quais Jesus Cristo deu
prosseguimento na difusão da mensagem do Reino de Deus.375
O texto alexandrino é representado principalmente pelos papiros î45 (s. III), î74 (s.
VII) e pelos manuscritos Sinaítico (¥), Vaticano (B), Alexandrino 9ª), Ephraemi Rescriptus
(C) e outros. Trata-se de um texto breve que costuma ser considerado autêntico até mesmo
pela maioria dos críticos. O texto ocidental, a seu turno, é representado pelos papiros î38 (s.
IV), î48 (s. III) e especialmente pelo manuscrito Codex Bezae Cantabrigiensis (D), além da
Vetus Latina (s. II/IV). Possui um texto quase 1/10 mais amplo que o anterior, com
aproximadamente 400 adições nas quais atenua as dificuldades, corrige as inexatidões,
oferece detalhes pitorescos, inclusive textos litúrgicos. A linguagem, por vezes, é vulgar e
possui diversos semitismos; as citações bíblicas são tomadas de um texto bastante diferente da
LXX; teologicamente ressalta as figuras de Pedro e Paulo e, pelo contrário, apresenta de
forma negativa o povo judeu. É um texto bem difundido tanto no oriente quanto no ocidente,
remonta a meados do século II e parece ser tão antigo como o anterior. Atualmente, as edições
críticas dos manuais reproduzem o texto alexandrino e suprimem como não autênticos 8.37;
15.34; 24.6b-8a; 28.29.376

VIII.2.2. Linguagem e Estilo

Ao que já dissemos com relação à linguagem e estilo do Evangelho Segundo Lucas,


que também se aplica a Atos, podemos acrescentar as seguintes informações. A obra de Atos

374
W. Michaelis, p. 129, apud MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 272.
375
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Op Cit., p. 179.
376
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 283, 284.

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Estudos no Novo Testamento 1 92

emprega 2.036 palavras de um total de 18.374 usos, das quais 942 são hápax legomena; a
proporção entre vocabulário e total dos usos é de 9,01, quase igual à do Evangelho, uma boa
proporção numa obra literária. 377
As metáforas são frequentes, o estilo direto, os discursos, os sumários e os coros. O
texto oferece elementos psicológicos que evocam com maestria a presença do divino: além da
apresentação da transfiguração de Jesus (9.28), o rosto de Estêvão parece o de um anjo ao ver
a glória de Jesus (At 6.15, 56). Quanto à composição mesma, ele une os materiais
estreitamente, formando um todo coerente, mas evita formar blocos ininterruptos de
demasiado grandes, cuja leitura cansaria o leitor. Com objetivo de apresentar a sua história
como plano salvador de Deus, ele une acontecimentos com as categorias de promessa
(anúncio, pregação, projeto) e cumprimento (cf. citações do Antigo Testamento) (At 2.17-
21).378
Os resumos redacionais ajudam a descobrir as diversas etapas da narrativa, conforme
a intenção do autor. At 1.1-2 resume-o em fazer e ensinar, marcado entre um “começo” e a
subida de Cristo ao céu; At 1.8 explicita-se o campo do testemunho, concretizando-se em
Jerusalém, Judeia, Samaria e até os confins da terra. Em 14.27 apresenta o sentido desse
itinerário afirmando que a salvação também foi dada aos gentios, sugerindo assim duas
grandes partes: judeus e gentios.379

VIII.2.3. Estrutura Literária

O Segundo Volume da obra de Lucas apresenta uma estrutura consistente com o


conteúdo programático de 1.8.380 Dessa forma, a obra parece estruturada geograficamente:
I. Introdução: preparação para o recebimento do Espírito 1.1-26.
II. Missão em Jerusalém 2.1-8.1a.
III. Missão em Samaria e Judeia 8.1b-12.25.
IV. Missão de Barnabé e Saulo aos gentios, aprovação de Jerusalém
13.1-15.35.
V. Missão de Paulo até os confins da terra 15.36-28.31.

Observamos que, até o final da obra, o texto está muito bem travado por uma
sequência geográfica sem solução de continuidade, na qual os acontecimentos vão sendro
entrelaçados a partir da atividade missionária do apóstolo Paulo, livre, até a sua chegada em
Roma, aprisionado.381

VIII.3. Questões Teológicas

Ainda pensando que Lucas serviu a Paulo como seu fiel companheiro, seus escritos
parecem não ser dependentes das epístolas que o apóstolo enviou para várias igrejas e
377
Idem, p. 289.
378
Idem, p. 292.
379
Idem, p. 294, 295.
380
BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cuestiones preliminares, evangelios y obras
conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 378.
381
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 298.

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Estudos no Novo Testamento 1 93

pessoas. Quando Lucas escreveu Atos, Paulo já havia escrito muitas de suas cartas. Contudo,
em Atos, o propósito de Lucas parece ser escrever tanto como historiador quanto como
teólogo. Encontramos diversos aspectos da teologia que podemos dizer ser propriamente
lucana. 382
Já vimos um aceno à teologia da obra de Lucas quando analisamos o seu Evangelho.
Tudo o que foi dito acima vale também para o segundo volume da obra. Aproveitaremos o
espaço aqui para ressaltar melhor alguns pontos de interesse teológico.
Como vimos quanto aos propósitos, o livro de Atos quer fornecer um esboço da
história da Igreja desde seus primeiros dias, em Jerusalém, até a chegada de seu maior
personagem – Paulo – na principal cidade do Império Romano. Assim, teologicamente, Lucas
quer demonstrar como isso aconteceu através da atuação do Espírito Santo na vida dos
primeiros discípulos. Antes é claro, é vejamos a importância da ressurreição de Cristo nesta
obra lucana.

VIII.3.1. A importância da ressurreição de Cristo

Os discípulos de Jesus se apegaram firmemente à esperança do estabelecimento do


Reino de Deus dentro de um breve período de tempo. A morte de Jeeus, contudo, abalou todas
as esperanças. Quando Jesus foi aprisionado, seus discípulos o abandonaram e fugiram,
procurando colocar-se em segurança, a fim de não serem aprisionados também. 383
Em poucos dias, todavia, tudo mudou. Aqueles galileus que haviam ficado
desiludidos começaram a proclamar uma nova mensagem em Jerusalém. Afirmavam que
Jesus era de fato o Messias (At 2.36), que sua morte tinha sido a vontade e o Plano de Deus,
muito embora fosse, humanamente falando, um assassinato indesculpável (At 2.23). Com
ousadia eles asseveravam que aquele que os judeus tinham assassinado era o autor da vida (At
3.15), e que, por intermédio desse Jesus, Deus oferecia o arrependimento e o perdão dos
pecados e, além disso, cumpriria tudo o que havia prometido pelos profetas do Antigo
Testamento (At 3.21).384
Sabemos que a ressurreição é o cerne da mensagem cristã primitiva – o kérygma. O
primeiro sermão registrado refere-se a uma proclamação do fato e da importância da
ressurreição (At 2.14-36). Observamos que Pedro não declara quase nada a respeito da vida e
do ministério terreno de Jesus (At 2.22). O mais importante foi o fato de que Jesus, que fora
executado como criminoso, havia ressuscitado dentre os mortos (At 2.24-32). É assim que, a
função primária dos apóstolos na comunhão cristã primitiva não era dominar ou governar,
mas dar testemunho da ressurreição de Jesus (At 4.33).385

VIII.3.2. O Espírito Santo

O Espírito Santo é quem conduz a ação da comunidade cristã nos Atos dos
Apóstolos, guia os apóstolos enviados e irradia a Palavra de Deus de “Jerusalém até Roma”.

382
KISTEMAKER, Simon J. Exposicion de los Hechos de los Apóstoles. Espanha: Libros Desafío, 2001, p. 25.
383
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 454.
384
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 455.
385
Idem, p. 456.

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Estudos no Novo Testamento 1 94

Por 52 vezes o Espírito é mencionado como condutor da ação nos Atos dos Apóstolos. Aqui o
Espírito é “o grande personagem”. Na primeira parte de Atos (At 1.1-15.35), o Espírito Santo
é mencionado 19 vezes, enquanto na segunda parte (At 15.36-28.31) aparecem 11 referências.
A vida da Igreja foi dirigida por Deus em etapas cruciais. Às vezes o Espírito dirigia
a Igreja naquilo que deveria fazer (13.2; 15.28; 16.16). Em outras ocasiões, anjos falavam a
missionários cristãos (5.19-20; 8.26; 27.23), ou vieram mensagens através dos profetas
(11.28; 20.11-12). Em algumas ocasiões, o próprio Senhor aparecia aos Seus servos (18.9;
23.11).386

VIII.3.3. A universalidade da salvação

A salvação está disponível para todas as pessoas, judeus e gentios, mediante o


arrependimento. Os judeus, de certa forma, são considerados culpados pela morte de Jesus, e
os gentios são entendidos como pecadores.
O Evangelho pregado trata do que Jesus fez e ensinou até sua morte. Atos mostra o
Cristo ressuscitado, vivo e ativo como o Senhor que salva e doa o Espírito Santo aos crentes.
O conceito que Lucas tem da história da salvação (Heilsgeschichte) não cessa na ascensão de
Cristo. Os judeus têm um lugar especial da dispensação divina, e até ao fim é “a esperança de
Israel” que os pregadores do evangelho proclamam (At 28.20). Mas a recusa deles importou
em a Igreja ficar predominantemente gentia (At 13.36ss). Tiago especificamente inclui os
gentios em “um povo para o seu nome” (At 15.14). O evangelho é oferecido gratuitamente a
todos os homens, mas eles têm uma responsabilidade no sentido de se arrependerem, e serão
julgados no devido tempo (At 17.30-31).387

VIII.3.4. Os marginalizados

Assim como no Evangelho, em Atos os marginalizados encontram seu lugar.


“Cuidem dos enfraquecidos” (At 20.35); este é o apelo do apóstolo Paulo no seu testemunho
espiritual, escrito por Lucas, que conservava na mente e no coração a imagem de Paulo como
alguém que dava especial atenção aos empobrecidos. No discurso aos presbíteros (At 20.17-
35), encontramos o alerta para o cuidado com os pobres, porque provavelmente os presbíteros
estavam preocupando-se menos com aqueles.
Aqui, como no Evangelho, a mensagem é anunciada aos samaritanos (At 8.4), ao
“eunuco” etíope (At 8.27), aos judeus da cidade de Lida, da planície de Saron e da cidade de
Jope (9.32-43), e finalmente aos gentios (At 10.1-11-18).
Lucas menciona diversas mulheres nos Atos dos Apóstolos. Elas até lideram
comunidades cheias da força do Espírito. Além de Maria, a mãe de Jesus, Safira foi a primeira
mulher citada como membro efetivo e participante nas decisões da comunidade. Ela se
solidarizou com a comunidade ao consentir em vender bens e coloca-los a serviço da
comunidade. Lucas ressalta que o pecado de Safira não foi o mesmo do seu marido Ananias.
Ela pecou pelo fato de não ter reagido em público, na assembleia, ao sistema que regia o
casamento patriarcal, segundo o qual era muito difícil a mulher reagir de modo diferente do

386
MARSHAL, I. H. Op Cit., p. 23.

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Estudos no Novo Testamento 1 95

modo do marido. Safira acabou sendo conivente e coautora da traição feita à comunidade e
consequente traição ao Espírito Santo.388
Na tradicional “instituição da diaconia” (At 6.1-7), viúvas helênicas, pobres e
estrangeiras, aparecem reagindo contra a discriminação (At 6.1s). Lucas não diz que todas as
viúvas estavam sendo relegadas na assistência social, mas apenas as viúvas de origem grega.
Outra mulher que exerceu liderança libertadora nas primeiras comunidades cristãs foi Tabita
(At 9.36-43). Maria, a mãe de João Marcos (At 12.12-17) aparece como ponto de referência
para uma igreja, uma reunião da comunidade. Além disso, temos a escrava Rode (At 12.12-
17), Lídia (At 16.13-15-40) – líder de comunidade, Priscila (At 18.18,26-27), as quatro filhas
de Filipe, que eram profetisas (At 21.9).389

VIII.3.5. A Igreja

No dia de Pentecostes acontece algo de maravilhoso. Os discípulos experimentam


uma manifestação divina, acompanhada de certas manifestações visíveis e audíveis, que os
convenceu que Deus derramara seu Espírito Santo sobre eles. Aqui vemos mais uma vez a
importância do Espírito Santo na obra lucana. A vinda do Espírito manifestou-se de várias
formas, que foram evidentes às percepções físicas. Um som veemente e impetuoso; algo que
parecia com chama de fogo. Pedro esclarece que esse maravilhoso poder foi o sinal visível do
cumprimento da profecia de Joel, de que Deus derramara seu Espírito Santo. Pedro
interpretou o dom pentecostal com o cumprimento profético. Assim nasce a Igreja em
Jerusalém. 390
Contudo, a experiência pentecostal não levou os cristãos primitivos a romper com o
judaísmo e a formar uma comunidade separada e distinta. Mesmo assim, certos elementos
distintos são evidentes, os primeiros dos quais é “o ensinamento dos apóstolos” ou didaquê. O
batismo; a igreja recebia em sua comunhão todos os que aceitassem a proclamação de Jesus
como o Messias, se arrependessem e recebessem o batismo nas águas.
Os empregos do termo ekklêsia (evkklhsi,a) levam à compreensão de que a Igreja não
é meramente um número total de igrejas locais ou a totalidade de todos os crentes; antes, a
congregação local é a Igreja em sua expressão local. Somente podia haver uma Igreja; e essa
única Igreja de Deus se expressava de forma local na comunhão dos crentes. Um dos
elementos mais admiráveis na vida das igrejas primitivas era o sentido de comunhão (At 2.42;
2.44, 47). O sentimento de partilhar das bênçãos da era messiânica levou a um
compartilhamento real de suas posses. 391

VIII.3.6. A importância da oração

Segundo os Atos dos Apóstolos, uma das colunas mestras que sustentava a vida das
primeiras comunidades cristãs era a oração. Oravam juntos (12.12) e cultivavam um novo

387
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 34, 35.
388
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 39, 40.
389
Ibidem.
390
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 155.
391
LADD, George Eldon. Op Cit., pp. 488-502.

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Estudos no Novo Testamento 1 96

ambiente na vida em comum. Perseveravam na oração (1.14; 2.42; 6.4; 10.2) nas casas, no
Templo (3.1), às margens do rio (16.13), na praia (21.5) etc. Pela oração criava-se intimidade
com o Espírito Santo (4.31; 8.15; 10.30; 22.17) e consagravam-se líderes na comunidade a
serviço da Palavra e da assistência social (6.6; 9.11). Os visitantes também entravam no clima
da oração (16.13). Pela oração, os seguidores de Jesus permaneciam unidos entre si e a Deus
(5.12b), fortaleciam-se nas tribulações (4.23-31) e faziam discernimento crítico e criativo
(1.24; 13.3).
As orações eram libertadoras (28.8) e acolhidas por Deus (10.4,31). A comunidade
orava pelos que tinham sido presos na perseguição (12.5) e, muitas vezes, jejuava enquanto
orava (e vice-versa). Fazia como Jesus, que, pela oração, enfrentava as tentações (Mc 14.32;
At 8.24; 16.25).392

O acento posto sobre a atividade do Espírito Santo como motor da história da


salvação é praticamente único em todo O Novo Testamento. A escatologia lucana diz que a
parousia já começou com Jesus. Jesus não voltará somente no final dos tempos, pois já está
voltando desde sua encarnação.

392
MARSHAL, I. H. Op Cit., p. 30.

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