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Evangelhos e Atos
SUMÁRIO
Antes de passarmos ao estudo dos textos bíblicos propriamente ditos, nos convém
conhecer alguns aspectos relevantes da Palestina 1 do século I. a.C. Isto se deve ao fato de que
devemos ter um conhecimento, ainda que introdutório, das situações política, econômica,
social e religiosa que configuravam o ambiente no qual Jesus nasceu, viveu, desenvolveu o
seu ministério, morreu e ressuscitou. De igual modo, devemos compreender o ambiente onde
seus seguidores deram sequência ao movimento iniciado por Jesus de Nazaré dentro do
judaísmo da época.
Sabemos que Jesus pertencia ao povo judeu. Nasceu e morou na região que, a partir
do século II d.C., ficou conhecida como Palestina. De acordo com os relatos nos Evangelhos,
Jesus atuou em várias regiões da Palestina, desde a região da Galileia até a capital Jerusalém.
Ele atravessou fronteiras indo à Síria e Samaria. Para uma melhor compreensão dos
Evangelhos é importante que tenhamos ao menos uma visão panorâmica desse mundo em que
Jesus viveu.
Israel foi dominado por vários impérios estrangeiros quando ainda não havia se
constituído como povo, no tempo do Novo Império egípcio (1552-1070 a.C.). A Assíria, a
partir de 722 a.C., arrasou o reino de Israel (Reino do Norte). Depois a Babilônia, em 587/586
a.C., destruiu o reino de Judá (Reino do Sul), sendo sucedida pela Pérsia em 538 a.C. Um
pouco mais de 200 anos e Israel experimentou o domínio dos gregos em 333 a.C. Foi um
período marcado pela sucessão de dominadores, cada um querendo dominar aquela terra. O
povo ficou como que sendo jogado, ora na mão de um, ora na mão de outro. Com a morte de
Alexandre Magno, em 323 a.C, Israel passou para as mãos dos generais: primeiro foram os
Ptolomeus ou Lágidas do Egito; depois, em 198 a.C., os Selêucidas da Síria. E, por último,
Israel caiu nas mãos dos romanos.2
1
Falar em Palestina no século I a.C. é um anacronismo. A região só ganhou esse nome no tempo do imperador
Adriano (117-138 d.C.). Esse imperador transformou Jerusalém em um importante centro de adoração gentia
chamado Aeolia Capitolina em cerca de 135 d.C.. Os judeus foram despejados de Jerusalém e proibidos de
entrar. A partir de então eles podiam entrar apenas um dia por ano, para lamentar seu destino no Muro das
Lamentações. Veja BLOMBERG, Craig L. Jesus e os Evangelhos: uma introdução ao estudo dos 4
evangelhos. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 42.
2
MESQUITA, Antônio Neves de. Povos e nações do mundo antigo: uma história do Velho Testamento. Rio
de Janeiro: JUERP, 1995, pp. 283-318.
3
Veja em HALE, Broadus David. Introdução ao estudo do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2001. pp. 8
– 11.
4
BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cuestiones preliminares, evangelios y obras
conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 119.
5
Chamados diádocos.
6
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 120.
7
Idem, p. 120, 121.
No período seguinte, 175 – 163 a.C., ocorre a revolta macabaica. Por causa da
situação ocasionada pelos selêucidas, sob Antíoco IV Epifânio9 (175-164), a situação tornou-
se bastante difícil. Antíoco deu continuidade na obtenção da unidade entre seus subjugados e
os fez partilhar a cultura e a religião gregas. A corrupção e o coração ambicioso dos Sumos
Sacerdotes em Jerusalém serviam bem a esses propósitos. Antíoco IV ataca Jerusalém em 169
e 167 a.C., massacra a população e erige uma estátua a Zeus no altar do holocausto do
Templo.10 Além disso, ele instalou uma guarnição síria permanente em uma fortaleza na
cidade – a Acra.
I.1.1.2. Os Macabeus
8
Bíblia Online – Módulo Avançado – V. Versão: 3.0, Oct. 7, 2002. Sociedade Bíblica do Brasil.
9
Como um substituto para Epifânio (manifesto) – manifestação como um deus – o historiador antigo Políbio
comentou que os detratores do imperador se referiram a ele como Epimânio: o “louco”. BLOMBERG, Craig L.
Op Cit., p. 28.
10
Aqui encontramos a referência à abominação da desolação de Daniel 11.31; 12.11.
debilidade do governo central sírio poderiam permitir aos Macabeus alcançar seu objetivo
religioso e sua independência política. 11
Em 167 a.C. irrompe uma revolta judaica, liderada por Matatias, um sacerdote que
vivia ao noroeste de Jerusalém, em Modin. Esta revolta se alargou por trinta e cinco anos,
levada a cabo por Judas Macabeu, Jônatas e Simão, filhos de Matatias. 12 Nesta ocasião,
alguns piedosos – os assideus – uniram-se à revolta, esperando que uma vitória pusesse fim à
corrupção do culto do Templo pelos reis selêucidas. Momentos-chaves incluem a vitória
judaica em 164, que conduziu à purificação e reinauguração – Hanuká – do lugar do altar.
Ocorre a indicação de Jônatas para o cargo de Sumo Sacerdote em 152 a.C.; a Acra é tomada
e em 142 a.C. a guarnição síria acaba expulsa. 13
Roma acabou reconhecendo a independência judaica durante o reinado do Sumo
Sacerdote João Hircano – 135/134 – 104 a.C. Hircano destrói o santuário no Monte Gerizim,
o que faz aumentar o ódio entre samaritanos e judeus. Aristóbulo, seu filho, assume o título de
rei, permanecendo de 104 a 103 a.C., somente. Aqui ocorre uma combinação entre Sumo
Sacerdócio e realeza, sendo mantida, por seus sucessores, por um período de 40 anos.14
11
MESQUITA, Antônio Neves de. Op Cit., p. 301.
12
Os irmãos são normalmente conhecidos como os Macabeus. A dinastia que iniciou com João Hircano, filho de
Simão, ainda que da mesma família, é mais frequentemente chamada asmonéia. Talvez isto se deva ao nome do
bisavô de Matatias – Asamonaios.
13
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 109.
14
Ibidem.
15
DOCKERY, David S. Manual Bíblico Vida Nova. São Paulo: Vida Nova, 2001. p. 546.
Aristóbulo e Alexandre, os dois filhos que teve com Mariana I. Essa crueldade só é explicada
pela ganância do poder. É dele a brutal crueldade encontrada na narrativa de Mateus a
respeito da disposição de massacrar todas as crianças do sexo masculino até dois anos de
idade, em Belém, como parte de seu desejo de matar Jesus.16
16
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 110, 111.
17
Bíblia Online – Módulo Avançado – V. Versão: 3.0, Oct. 7, 2002. Sociedade Bíblica do Brasil.
18
MAINVILLE, Odette (org). Escritos e ambiente do Novo Testamento: uma introdução. Petrópolis: Vozes,
2002, p. 20.
19
MAINVILLE, Odette (org). Op Cit., p. 19.
20
GUSSO, Antônio Renato. Panorama Histórico de Israel para Estudantes da Bíblia. Curitiba: A. D.
SANTOS EDITORA, 2003, pp. 171-184.
21
MAINVILLE, Odette (org). Op Cit., pp. 39-41.
22
MAINVILLE, Odette (org). Op Cit., p. 20-21.
23
COLLI, Gelci André. Evangelhos e Atos. Curitiba: Unidade, 2010, p. 22.
24
Ibidem, p. 22.
Herodes, o Grande, foi durante muitos anos o braço de ferro do Império Romano, na
Judeia. Com a sua morte, os filhos deram continuidade à dinastia herodiana e à política da
vassalagem ao então grande senhor do mundo, Otaviano, o Augusto, de Roma. Herodes
morreu na residência de Jericó, em fins de março ou começo de abril do ano 4 a.C. Seu filho
Arquelau transladou seu corpo para o Herodion. No fim desse mesmo ano, Augusto
confirmou o testamento de Herodes, mas não deu a Arquelau o título de rei. Ele tornou-se
etnarca, ou seja, o governador da Judeia, da Iduméia e da Samaria, de 4 a.C. a 6 d.C. Seu
irmão Herodes Antipas foi nomeado tetrarca (governador de uma quarta parte da província
(da Galileia e da Peréia, e leste do Jordão (4 a.C. – 39 d.C.) Filipe II, por sua vez, foi tetrarca
da Gaulanítide, Batanéia, Traconítide e Auranítide, bem como do distrito de Panéias (Ituréia),
de 4 a.C. a 34 d.C.26
25
Idem, p. 23.
26
DOCKERY, David S. Op Cit., p. 549.
27
Bíblia Online – Módulo Avançado – V. Versão: 3.0, Oct. 7, 2002. Sociedade Bíblica do Brasil.
Jesus nasceu num contexto concreto, a Judeia (Galiléia), segundo a tradição cristã.
Terra pobre em minério, com uma pequena produção agrícola, pecuária, pesqueira, industrial
e comercial. Como vimos, era dominada pelo Império Romano e, por isso, pagava impostos
como os demais povos subjugados.29
A estrutura piramidal do poder se reproduzia na estrutura social e econômica. No
topo da pirâmide social romana estavam os nobres: a corte imperial, os altos funcionários do
Estado como os senadores e os generais do exército. Esta era também a classe rica do
Império. Na base da pirâmide estavam os escravos, que praticamente eram todos os que não
detinham o direito de cidadão romano. Aí se incluíam os povos conquistados, inclusive Israel.
Em primeiro lugar, no topo da pirâmide estavam os ricos que, como sempre, eram os
donos do poder. No tempo de Jesus, a corte contituía-se pela família de Herodes e de seus
partidários, que detinham grande parte da riqueza em suas mãos. Conseguiam manter os
privilégios e interesses porque apoiavam o sistema de dominação romana. Ocupavam espaços
e áreas reservadas junto ao palácio e ao Templo, e em lugares bem situados.30
A aristocracia leiga formava-se pelos grandes comerciantes, donos de grandes
mercados, pelos chefes do sistema de arrecadação de impostos para o Império e pelos grandes
proprietários de terras.31 Para o povo judeu era difícil conviver com essa realidade, por não
corresponder aos seus princípios religiosos. Eles viam a terra como propriedade de Deus e
devia servir para o sustento de todos. Nos Evangelhos conhecemos alguns nomes dos que
pertenciam à aristocracia leiga: Zaqueu (Lc 19.2); Nicodemos e José de Arimatéia, membros
do Sinédrio (Jo 3.1; Mc 15.43).32
A aristocracia sacerdotal era formada pelo Sumo Sacerdote e pelos chefes dos
sacerdotes. Este era o alto clero. Também eram proprietários de terras e donos do comércio de
animais para os sacrifícios. Em diversos momentos Jesus entrou em conflito com os
sacerdotes, pelo modo como julgavam e discriminavam as pessoas de acordo com as leis do
28
COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 24.
29
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 117.
30
JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no tempo de Jesus: pesquisa de história econômico-social no período
neotestamentário. São Paulo: Paulus, 1983, pp. 127-134.
31
TENNEY, Merryl C. O Novo Testamento: sua origem e análise. São Paulo: Vida Nova, 1972, p. 78.
32
JEREMIAS, Joachim. Op Cit., p. 139.
puro e do impuro (Mc 1.44; 7.1-19; Lc 17.14). Jesus relativiza os seus privilégios (Mc 2.26) e
opõe o comportamento deles (Lc 10.31) com as exigências das Escrituras (Mt 12.7). Os mais
influentes faziam parte dos que condenaram Jesus à morte.33
Os remediados eram, naquele tempo, os que hoje constituem a nossa classe média.
São os artesãos, os pequenos proprietários de oficinas e de casas de comércio.34 Entre eles
encontrava-se também o baixo clero, que recebia uma parte das vítimas oferecidas em
sacrifício no Templo (Lc 2.24). Podemos mencionar ainda os alfaiates, padeiros, perfumistas,
carpinteiros, tecelães e outros.35
Em seguida vinham os pobres. Estes estavam mais próximos a Jesus. Os diaristas
faziam parte dos empregados pobres dos mercados e das fábricas de artesanato e carregadores
de água e lenha. Entre eles havia, ainda, os pobres “profissionais” que sobreviviam em virtude
da caridade e da esmola dos outros, e eram os escribas e os mendigos. Os escribas eram
também conhecidos como mestres ou rabinos. Ensinavam a lei e as Escrituras sem serem
pagos pelo trabalho, mas viviam do que os alunos e o povo lhes ofereciam. A família de Jesus
era modesta. José exercia a profissão de carpinteiro (Mc 6.3). Na apresentação de Jesus ao
Templo, eles deram a oferenda dos pobres, “um par de rolas e dois pombinhos” (Lc 2.24). Os
ricos costumavam oferecer um cordeiro (Lv 1.3). Jesus recomenda a pobreza e exalta os
pobres porque estes acolhem sua mensagem. Jesus e seus discípulos pertenciam ao grupo dos
pobres.36
Descendo um pouco mais na escala piramidal nós encontramos os escravos. Muitos
se tornavam escravos por serem prisioneiros de guerra, por causa de furto, de dívidas
contraídas sem possibilidade de pagamento, por empréstimos sem restrição e por outros
motivos.37 Esses perdiam sua liberdade e se tornavam escravos. Na tradição israelita só podia
tornar-se escravo o homem e a filha com menos de 12 anos de idade. O filho e a mulher não
podiam ser reduzidos à escravidão. A filha, quando atingia 12 anos, adquiria a liberdade, a
não ser que seu senhor quisesse casar-se com ela. O homem ficava escravo no máximo por
seis anos, depois era libertado pela lei do ano sabático (Ex 21.2; Jr 34.8-22). O escravo judeu,
juridicamente, era igual ao filho mais velho do seu senhor. O escravo pagão de um judeu era
considerado propriedade sua.38
Contudo, a base da pirâmide descia um pouco mais. Existiam os miseráveis: os
indesejáveis da sociedade. Havia muitos marginalizados e excluídos do convívio social pela
sua própria condição de extrema pobreza e falta de higiene, como os leprosos (Mc 1.40-45),
mendigos, possessos pelo demônio (Mc 1.32-34), doentes mentais, cegos e coxos.39 Jesus
acolheu as pessoas que levavam uma vida irregular, como as prostitutas, os criminosos e os
ladrões. Jesus era rodeado pelas pessoas marginalizadas, que viviam junto aos caminhos
pedindo esmola. Diversas vezes foi interrompido em sua caminhada pelos cegos e doentes
que gritavam por sua ajuda (Mc 10.46-52).40
33
Idem, p. 140.
34
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 78.
35
JEREMIAS, Joachim. Op Cit., pp. 145-155.
36
JEREMIAS, Joachim. Op Cit., p. 156.
37
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 79.
38
JEREMIAS, Joachim. Op Cit., p. 158.
39
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 79.
40
JEREMIAS, Joachim. Op Cit., p. 159, 160.
Em meio a tudo isso, todavia, havia um espaço para a solidariedade. Havia algumas
práticas de caridade em favor dos mais pobres em Israel: uma parte do dízimo, as espigas e
feixes deixados pelos ceifadores, a permissão de apascentar o rebanho no próprio campo, a
coleta de lenha das florestas, o corte do capim no próprio prado, a pesca no lago de Genesaré.
Essas práticas não erradicavam o problema social da fome e da miséria, mas amenizavam as
necessidades imediatas de grande parte da população.
No tempo de Jesus conheciam-se duas instituições de beneficência pública: o cesto
dos pobres e o prato dos pobres. No cesto dos pobres eram recolhidos alimentos e roupas para
serem distribuídos, uma vez por semana, aos mais carentes. O prato dos pobres era a
distribuição diária de sopa aos necessitados. Estas duas instituições, em Jerusalém, eram
assumidas pelo Templo. Nele havia também um cofre onde se depositavam as ofertas para os
mais pobres (Mc 12.42). Mesmo assim podemos concluir que não havia condições, para a
maioria do povo, de ter sequer uma vida digna e justa.41
Os judeus desta época deviam ter algum tipo de conhecimento a respeito das
religiões não judaicas dos povos com os quais mantinham contato. Também é verdade que
muitos desses povos tinham conhecimento da religião judaica. Na Palestina, inclusive em
regiões em que a maioria da população era judaica, havia uma forte influência do helenismo. 42
O mundo greco-romano no tempo de Jesus Cristo apresentava um vigoroso fluxo
religioso. Diversos cultos proliferavam. As misturas e as combinações de crenças
(sincretismo) e comportamentos criavam por vezes um pluralismo que era intolerante somente
com as religiões exclusivistas e fechadas, como o judaísmo e o cristianismo. 43
Diversos cultos de mistério acabaram por surgir derivados de antigas cerimônias
tribais e até de fertilidade. Alguns eram oriundos da Grécia, outros eram importações
estrangeiras, especialmente da Pérsia e do Egito. As práticas rituais podiam variar desde a
serenidade até o grotesco.44
Meditações a respeito da espiga de milho ou do ramo de trigo, no culto de Deméter
(deusa do milho), um calmo banho de rio como parte do culto de Ísis (deusa do Nilo) ou
refeições comunitárias com pão e água, no mitraísmo, eram bastante serenos.45
No extremo grotesco estava o “batismo de sangue” do culto de Cibele, em que o
Sumo Sacerdote ficava numa cova coberta por uma grade de madeira trançada, em cima da
qual um touro era morto, de forma que o sangue escorria e cobria a face e as vestes do
ministro.46 Os Sacerdotes de níveis inferiores que se dedicavam a Atargatis tinham o costume
de se castrar, e as orgias de embiraguez associadas à adoração de Dionísio (deus do vinho)
eram bem conhecidas e menos secretas ou misteriosas do que muitas das outras religiões ou
seitas religiosas. 47
41
JEREMIAS, Joachim. Op Cit., pp. 160-169.
42
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 129.
43
Idem, p. 141.
44
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 51.
45
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 52.
46
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 97, 98.
47
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 51, 52.
O Império Romano era politeísta. De modo geral deixava que cada um adorasse e
cultuasse os deuses que quisesse. Mas, ideologicamente, obrigava os povos conquistados a
cultuar também os deuses romanos.48 A partir de Otaviano, que se intitulou Augusto (31 a.C.
a 14 d.C.), os imperadores romanos também passaram a considerar-se “divinos”, ou seja,
semideuses, merecendo por isso um culto à sua imagem. No caso de Israel, devido ao seu zelo
extremo pela religião monoteísta e a absoluta proibição de imagens como objeto de culto, os
romanos foram mais brandos na exigência do culto ao imperador. Impuseram, porém, o
oferecimento de um sacrifício diário ao imperador no Templo de Jerusalém, em substituição
ao culto a ele. 49
O Gnosticismo (de gnosis, “conhecimento”) é um termo de difícil definição, usado
para descrever um modelo de pensamento religioso, em geral com elementos judeus e
cristãos, defendido por grupos da parte oriental do Império Romano (Síria, Babilônia e
Egito).50 Em 1945, em Nag Hammadi, a 480 quilômetros ao sul do Cairo, no Egito, fez-se a
importante descoberta de treze códices coptos (contendo cinquenta tratados distintos),
enterrados por volta de 400 d.C. As origens do gnosticismo são discutidas até hoje: uma
helenização do cristianismo, ou uma helenização do judaísmo e de suas tradições acerca da
sabedoria; uma derivação do mito persa; uma combinação da filosofia grega com a mitologia
do Oriente Próximo; ou uma novidade radical derivada da experiência do mundo com um
lugar estranho..51
A cultura grega distinguiu-se por sua filosofia de vida e pela filosofia clássica, que
teve grande influência na cultura universal. Entre os primeiros filósofos helenistas estão os
cínicos, que surgiram por volta do ano 350 a.C. 52 Diógenes foi uma das figuras mais
representativas desse movimento, tornando-se conhecido pelo seu gesto de procurar, em pleno
dia, com uma lanterna acesa, um homem honesto. O objetivo maior de sua vida era o cultivo
da autossuficiência; cada um deveria encontrar dentro de si a capacidade de satisfazer suas
próprias necessidades.53
Nessa mesma época surgiram duas escolas, cada qual com sua filosofia de vida. A
primeira foi a escola de Epicuro, surgida por volta de 350 a.C. Ela deu origem ao epicurismo,
cujo princípio era o de alcançar níveis de prazer e felicidade tão elevados a ponto de a pessoa
não sentir mais medo da morte, dos deuses e ficarem insensíveis à dor. O ideal almejado era a
ausência total de perturbação, a ataraxia. 54
A segunda filosofia de vida da época nasceu como reação aos epicureus; é a escola
estóica de Zenão de Cício.55 Esta primava pelo rigorismo na observância da disciplina e das
regras do bem-viver. Trazia listas de virtudes que deviam ser seguidas e de vícios que
48
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 96, 97.
49
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 143, 144.
50
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 103.
51
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., pp. 53-56.
52
REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. São Paulo: Paulus,
2003, p. 253.
53
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 146, 147.
54
REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Op Cit., p. 259.
deveriam ser evitados. Paulo, o apóstolo, sofreu influência da escola estóica. Nos seus escritos
encontramos, com certa frequência, lista de defeitos e virtudes (Rm 1.29-32; 1Co 5.10-11;
6.9-10; Gl 5.19-21 e outras).56 Contemporaneamente às filosofias de vida, havia a filosofia
clássica desenvolvida pelos grandes filósofos Platão, Sócrates, Aristóteles e outros. 57
I.2.1. O Templo
55
Idem, p. 288.
56
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 102.
57
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 148, 150.
58
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 120.
59
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 17.
60
DANA, Harvey Eugene. O Mundo do Novo Testamento: um estudo do ambiente histórico e cultural do
Novo Testamento. Rio de Janeiro: JUERP, 1990, p. 89.
arquitetônicas mais imponentes que já produziu o engenho humano. Fora da cidade imperial
não existia em todo o Império Romano edifício maior.61
O Segundo Templo, como também ficou conhecido, foi terminado por volta da época
do nascimento de Jesus. Os alicerces de tamanho avantajado permitiram que o rei e seus
arquitetos remodelassem a área do velho Templo na parte sudeste de Jerusalém, dentro de
uma enorme plataforma – quase 500m x 300m que existe até os dias de hoje. O local da
construção do Templo, propriamente dito, acredita-se que seja mais ou menos onde hoje fica a
Mesquita Islâmica da Rocha.62
O Templo mesmo media aproximadamente 50m x 35m; era dividido em três partes
principais e seguia o mesmo projeto do Templo de Salomão: o Ulam, conhecido como
vestíbulo; o Hekal, mais tarde chamado Santo; e o Debir, que correspondia ao Santo dos
Santos. Esta última parte era o lugar sagrado, onde ficava a Arca da Aliança durante o período
do primeiro Templo (de Salomão).
Todo o espaço do Templo era bem ocupado. A área do pátio externo era reservada
aos pagãos. Nela ficavam instalados os comerciantes de bois, carneiros, cordeiros, pombos,
óleo, farinha, incenso e de outros produtos utilizados durante o culto. Na mesma área ficavam
ainda os cambistas, que trocavam as moedas que vinham de fora do país para a moeda local
de Jerusalém. Os pagãos não podiam ultrapassar seu espaço, sob pena de morte. Eram
separados por um muro interno.
Subindo as escadarias tinha-se acesso ao Templo, por meio de quatro portões ao
norte, quatro ao sul e mais um a leste. Eles davam acesso ao pátio das mulheres, depois ao dos
homens e, por fim, ao dos sacerdotes, que já circundava o altar dos sacrifícios. O vestíbulo
(Ulam) estava situado no pátio dos sacerdotes e propiciava acesso ao Santo, e este por sua vez
ao Santo dos Santos. O Santo tinha 15 metros de comprimento, 5 de largura e 5 de altura. No
seu centro havia o altar dos perfumes ou do incenso, a mesa dos pães da proposição e o
candelabro de sete braços. O Santo dos Santos ficava totalmente vazio. Nele não havia porta,
mas era fechado com uma cortina dupla, conhecida como “véu do Santuário” (Mc 15.38).
Media 20 côvados quadrados – aproximadamente 9 m2. Apenas o Sumo Sacerdote podia
entrar nele uma vez por ano no Dia da Expiação, porque era o lugar sagrado onde se
encontrava Deus, o único Santo.63
O culto era realizado todos os dias do ano. Neste culto diário, o aspecto mais
acentuado, e, sem dúvida, o mais importante, era o sacrifício oferecido pelo povo em seu
todo. Todos os dias imolavam-se dois cordeiros de um ano, um pela manhã e outro à tarde.
Esse era considerado o sacrifício perpétuo que se oferecia ao Deus de Israel. 64
I.2.2. A sinagoga
Desde o período do exílio, o povo de Israel, longe da terra, buscou solidificar sua
identidade por meio de algumas práticas que já existiam entre eles antes do exílio e que
61
DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 89.
62
OTZEN, Benedikt. O judaísmo na antiguidade: a história política e as correntes religiosas de Alexandre
Magno até o imperador Adriano. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 130-137.
63
OTZEN, Benedikt. Op Cit., pp. 130-137.
64
DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 91.
65
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 122.
66
OTZEN, Benedikt. Op Cit., p. 138.
67
OTZEN, Benedikt. Op Cit., p. 138.
68
DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 88.
língua falada no local onde se encontra a sinagoga. Após a leitura alguém faz um comentário
de caráter expositivo ou exortativo, podendo ser uma reflexão teológica para a formação do
povo, e no fim fazia-se o covite para se viver segundo a Toráh. A liturgia era concluída com a
bênção final. Em conexão com a sinagoga havia um grupo de oficiais, cujos mais importantes
eram os anciãos, escolhidos pela congregação para supervisionar a vida comunitária. Um
oficial subalterno, conhecido como “ministro” (no grego diákonos), atuava como auxiliar do
dirigente da sinagoga, e outro, que era o “recitador de orações” oficial, servia na qualidade de
secretário da sinagoga em suas transações com o mundo exterior.69
Cabe ressaltar que a adoração e o estudo na sinagoga assumiram formas que vieram a
se tornar centrais no desenvolvimento da Igreja cristã. O preceito do culto aos sábados era
amplamente aceito pelos primeiros adoradores cristãos. Orações e hinos abriam e fechavam
cada culto. Entre um e outro havia a leitura da Lei, Profetas e Salmos – por vezes num ciclo
de sermões fixos -, com o Targum e a homilia (sermão) sendo apresentados por um dos
anciãos da sinagoga, baseados nos textos do dia. Os assistentes dos anciãos podem mesmo ter
sido um modelo do que mais tarde inspiraria o ofício cristão do diácono. 70
A sinagoga ainda era utilizada para reuniões de vários tipos da comunidade, de modo
mais destacado para a educação primária de meninos com idades entre cinco a doze ou treze
anos. Não é verdade que a maioria dos homens judeus do século I era analfabeta – uma ideia
por vezes baseada na má compreensão de Atos 4.13, que apenas declara que os primeiros
discípulos não haviam sido instruídos formalmente por um rabino além da idade de treze
anos.71
I.2.3. O Sinédrio
69
Ibidem.
70
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 64.
71
Idem, p. 65.
72
DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 94.
73
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 65.
A partir da tradição rabínica, parece que essa corporação adquiriu o poder de legislar
regras de conduta para todos os judeus, em todos os lugares. Por causa de seu prestígio, suas
decisões eram honradas por toda a diáspora judaica.74
I.2.4. Fariseus
A origem dos fariseus parece estar nos assideus (1Mc 2.42), grupo de judeus
piedosos que zelavam pela observância da Toráh, diante da ameaça de helenização imposta
pela política intolerante dos Selêucidas, a partir do século II a.C. Os assideus uniram-se ao
movimento rebelde liderado pela família dos Macabeus, também desejosa de salvar o
judaísmo da torpe influência do helenismo e a ingerência política dos sírios (Selêucidas) na
vida dos judeus. 75
Os fariseus eram considerados especialistas nas Escrituras e na tradição, mas
combinavam o estudo permanente da Toráh com o exercício de uma profissão. Muitos
aprendiam um ofício. Havia, entre eles, curtidores; ganhava-se a vida com a confecção de
tendas – como Paulo e sua família, ou como carpinteiros – à semelhança de José e Jesus (cf.
Mt 13.55). Na literatura rabínica tardia, inclusive, os carpinteiros são elogiados por sua
habilidade e considerados especialistas no atento estudo dos mandamentos da Toráh.76
O matrimônio e a família desfrutavam de uma elevada estima nos círculos fariseus.
Eles não se afastavam do mundo e de suas ações cotidianos, como faziam os essênios, com os
quais definitivamente tinham relações de parentesco. Estes buscavam a solidão do deserto na
região do Mar Morto, a fim de poder observar os mandamentos da Toráh o mais estritamente
possível. Os fariseus, ao contrário, estavam firmemente estabelecidos na sociedade de seu
tempo e tinham de ganhar a vida. 77
Entre os anos 18 e 15 a.C. surgiram os fariseus Hillel e Shammai. Cada um fundou a
sua “escola”, que acabou se tornando rival uma da outra.78 Cada escola tinha os seus
discípulos que recebiam instrução sobre a Toráh, baseada na interpretação que os “mestres”
(rabi) faziam dela. Buscavam aplicar os seus preceitos aos mais diversos casos. Hillel era
mais liberal, enquanto Shammai era mais rigoroso. Eles deram origem ao rabinato, que
adquiriu mais importância no judaísmo posteriormente. 79
I.2.5. Saduceus
Formavam um partido religioso e político, cujo nome deve estar relacionado com
Zadoque, o Sumo Sacerdote colocado por Salomão em lugar de Abiatar (1Rs 2.35). Os
saduceus separaram-se dos fariseus quando Jônatas, irmão de Judas Macabeu, usurpou o
sacerdócio (152 a.C.).80 Desde então os saduceus se tornaram adversários dos fariseus, dos
74
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 18.
75
HEYER, C. J. den. Paulo: um homem de dois mundos. Coleção Bíblia e Sociologia. São Paulo: Paulus,
2009. p. 22.
76
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 138.
77
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 18.
78
OTZEN, Benedikt. Op Cit., pp. 153-166.
79
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 19.
80
OTZEN, Benedikt. Op Cit., pp. 147-153.
quais se distinguem pelas crenças religiosas. Suas convicções religiosas tendiam a negar o
sobrenatural (Mt 22.38; Mc 12.18; At 23.6-10).81 Eles só aceitavam estritamente a tradição
escrita, particularmente da Toráh, afirmando não encontrar aí a doutrina da ressurreição da
carne. Na política, os saduceus apoiavam a dominação romana e controlavam a nomeação dos
Sumos Sacerdotes. Constituíam, por isso, uma espécie de elite na sociedade judaica, pois se
associavam mais ao poder econômico. Eles não aceitavam as tradições orais judaicas,
apegando-se somente ao que está escrito na Lei. 82
I.2.6. Zelotes
Os zelotes ou zelotas eram extremistas religiosos. Esse nome vem do grego “zelos”
que significa zelo, ciúme, defesa extremada de uma convicção própria quando esta é
ameaçada. Eles teriam surgido na época da revolta de Judas Galileu e do fariseu Sadoc, no
ano 4 d.C., durante o governo de Arquelau.83 Seu zelo pela liberdade do povo diante dos
romanos e pela “limpeza” política expulsando os intromissores estrangeiros, levou-os a
assumir a rebelião armada como caminho de instauração do novo reino messiânico. Os zelotes
formavam um partido revolucionário e nacionalista. Seus membros eram fanáticos opositores
na dominação romana. Seu ideal era estabelecer uma teocracia, expulsando pela força os
dominadores estrangeiros (At 5.37). Por causa disso os zelotes foram duramente reprimidos e
massacrados pelos romanos, exatamente por representarem a forma mais perigosa de
movimento judaico contra os interesses do império. Simão, um dos doze apóstolos, era zelote
(Mt 10.4; Lc 6.15).84
I.2.7. Essênios
Por volta do ano 150 a.C., em plena efervecência do movimento macabeu, nascia
outro grupo dentro do judaísmo: os essênios. Eles eram uma espécie de monges judeus:
fundaram uma comunidade no deserto da Judeia, próximo ao Mar Morto, numa localidade
chamada Qumran.85 Ali viviam no mais absoluto respeito à Lei Mosaica, mas numa linha
divergente dos fariseus. De fato, alguns estudiosos situam sua origem também nos assideus
(1Mc 2.42). Contudo, esse grupo não é mencionado na Bíblia. Com a descoberta dos escritos
do Mar Morto (1947) e das ruínas de Qumran, tornaram-se conhecidos os costumes e a
doutrina dos essênios e seu possível relacionamento com os fariseus.86 A comunidade tinha
suas regras próprias, geralmente muito austeras, buscando o ascetismo. Os essênios 87 não
apoiavam a revolta doa Macabeus, por considerá-la apenas de cunho político, ou seja, uma
81
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 141.
82
DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 97, 98.
83
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 78.
84
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 19.
85
OTZEN, Benedikt. Op Cit., pp. 178-205.
86
TENNEY, Merryl C. Op Cit., p. 140.
87
Os essênios eram ultrapiedosos e contestavam a usurpação do cargo de Sumo Sacerdote por parte de Antíoco
Epífanes IV; por isso, refugiaram-se na área do Mar Morto para fugir da profanação de Jerusalém. Houve um
período de interrupção ou dispersão do grupo no tempo de Herodes, o Grande, talvez provocada por um
terremoto. No início do século I se restabeleceram, mas não por muito tempo. Por volta do ano 68 d.C.
desapareceram definitivamente com a invasão do exército romano.
briga pelo poder. Consideravam-se o “resto” eleito de Israel, separado da sociedade “perdida”,
que, para eles, já não teria mais conserto. Esperavam a vinda do Messias levando uma vida de
vigilância oração e penitência. 88
O movimento dos essênios é muito importante sob diversos aspectos, mas,
sobretudo, para os estudos bíblicos, pois eles deixaram muitos escritos bíblicos, e sobre a vida
da comunidade.89 Nas grutas próximas ao mosteiro foram encontrados todos os livros do
cânon da Bíblia hebraica, exceto o livro de Ester, Targuns 90, escritos apócrifos e
pseudoepígrafes como o livro de Henoc e o Livro dos Jubileus. Também foram encontrados
comentários de Habacuque, Salmos, Isaías, Naum, entre outros. Além disso, a comunidade
compôs literatura própria, sendo que os textos mais conhecidos são: O Documento de
Damasco (CD, 4QD, 5QD, 6QD), a Regra da Comunidade (1QS, 4QS, 5QS), o Rolo da
Guerra (1QM, 4QM), Os Cânticos do Sacrifício Sabático, o Rolo do Templo, dentre outros.91
Embora, como dissemos acima, a seita não se apresente mencionada em O Novo
testamento, parece que podemos encontrar alguns reflexos de seus ensinos e costumes. Muitos
estudiosos afirmam com convicção que os essênios influenciaram profundamente muitas das
correntes de vida em circulação no tempo de Jesus e seus discípulos. 92
I.2.8. Samaritanos
88
DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 98, 99.
89
BOCCACCINI, Gabriele. Além da hipótese essênia: a separação dos caminos entre Qumran e o judaísmo
enóquico. São Paulo: Paulus, 2.000, p. 251
90
São as traduções dos textos bíblicos do hebraico para o aramaico conhecidas no século II a.C. São importantes
para o estudo textual, porque representam um meio para reconstruir o texto hebraico através do aramaico.
91
NICKELSBURG, George W. E. Literatura judaica, entre a Bíblia e a Mixná: uma introdução histórica e
literária. São Paulo: Paulus, 2011, pp. 237-356.
92
DANA, Harvey Eugene. Op Cit., p. 99.
93
COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 20.
94
JEREMIAS, Joachim. Op Cit., p. 464, 465.
Com Marcos surgiu um tipo de escrito que faria sucesso na literatura cristã: o
Evangelho. Ele foi imitado pelos outros três Evangelhos e por autores apócrifos até o século
IV. Ao reunir tradições esparsas em um relato de natureza biográfica consagrado à vida de
Jesus, Marcos fez uma obra inédita; até então, a tradição cristã só conhecia sequências
narrativas limitadas – a história da Paixão, por exemplo – coleções de ditos – logia, ou as
cartas de Paulo. O primeiro evangelista se descobre criador de um gênero literário. Pergunta-
se: o Evangelho é um gênero literário ímpar na literatura, é um fenômeno único, ou pode-se
afiliá-lo a outros gêneros literários que circulavam na época?95
95
MARGUERAT, Daniel. Novo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
p. 35. Cf. BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cuestiones preliminares, evangelios y
obras conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 172.
96
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 36.
97
MARCONCINI, Benito. Os Evangelhos sinóticos: formação, redação, teologia. São Paulo: Paulinas, 2012,
p. 5.
98
Septuaginta.
99
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 36.
inaugura sua narração com essa palavra: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de
Deus” (Mc 1.1), ele não indica o início de seu livro, mas o início da boa-nova. Nenhum dos
quatro Evangelhos se autodenomina por essa palavra.100
Na realidade, somente na metade do século II que euvagge,lion é aplicado ao escrito
portador da boa-nova. A Didaché designa assim o Evangelho Segundo Mateus (11.3; 15.3s.),
II Clemente 8.5 o de Lucas. Justino Mártir usa pela primeira vez a palavra no plural para
designar os escritos que guardam a memória das palavras e dos atos de Jesus, de sua Paixão e
de sua ressurreição (Apologia 1.66.3). As mais antigas notícias que temos da intitulação dos
Evangelhos, que emanam dos copistas e não dos autores, datam de fins do século II e são
provenientes de papiro (î66), dos escritos de Ireneu (Contra as heresias 3.11.10) ou do cânon
de Muratori10. O uso parece remontar mesmo ao fim do primeiro século, por causa da
multiplicação dos Evangelhos nas comunidades. É de notar que mesmo então os Evangelhos
foram denominados euvagge,lion kata. – euanguélion kata, Evangelho segundo (Mateus,
Marcos, ...). O uso singular (que contrasta com os evangelhos greco-romanos e o uso plural da
Septuaginta) e a modalidade kata (segundo) conservam traço do sentido inicial; o Evangelho
não é de Mateus ou Marcos, mas transmite a boa-nova na linguagem segundo Mateus ou
Marcos. A nuança é importante. Vai de par com o reconhecimento canônico de um Evangelho
quadriforme, em vez e no lugar dos quatro relatos concorrentes entre os quais a Igreja
primitiva teria tido de escolher.101
Junto à diversidade de literatura greco-romana dos séculos imediatamente anteriores
e posteriores ao Senhor Jesus Cristo, encontravam-se muitos tipos de biografias, como “a
Vida de gregos e romanos famosos, de Plutarco; A vida dos Césares, de Suetônio; A vida de
Apolônio de Tiana, de Filostrato; e A vida dos antigos filósofos, de Diógenes Laércio”. Essas
propostas como contraposição aos Evangelhos possuem tonalidades divergentes.102
100
Idem. p. 36.
101
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 37.
102
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 163.
103
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 37.
pensamento) eram próprios daquele tempo e lugar. Muitos erros nas tentativas de entender a
Jesus e muitas aplicações falsas de seus pensamentos provêm do fato de que os leitores dos
Evangelhos removem-no do espaço e do tempo, e imaginam que ele estava tratando de
problemas que, na verdade, nunca enfrentou. Podem dar-se formas eruditas de representar mal
a Jesus impondo sobre ele categorias que realmente não se aplicam a sua pessoa, por exemplo,
a do camponês ou a daquele que lutou pela liberdade política.104
O segundo estágio na formação do evangelho refere-se à pregação apostólica sobre
Jesus. É o momento da tradição. Trata-se do kérygma apostólico. Palavra que evoca o anúncio
solene do arauto depois de uma retumbante vitória, a espontaneidade e a difusão rápida de um
acontecimento, o grito forte para tornar pública a oficial notícia (At 2.36,24).105 Este estágio
situa-se na segunda terça parte do século I d.C.
Aqueles que haviam visto e seguido a Jesus viram confirmado o seguimento deles
pelas aparições após a ressurreição (1Co 15.5-7). Chegaram assim a ter uma fé plena no Jesus
ressuscitado como a pessoa através da qual Deus manifestou seu absoluto amor salvífico por
Israel e finalmente por todo o mundo – uma fé que verbalizaram por meio de títulos que
expressavam sua crença (Messias/Cristo, Senhor, Salvador, Filho de Deus, etc.). Aquela fé
pós-pascal iluminou as recordações do que eles tinham visto e ouvido antes da ressurreição;
assim, eles proclamaram as obras e as palavras de Jesus com mais plenitude de significado.
(Os leitores modernos, acostumados com uma informação factual, sem implicações pessoais,
necessitam reconhecer a atmosfera bem diferente da pregação cristã primitiva.) Dizemos que
esses pregadores são “apostólicos” porque se viram a si mesmos como enviados (avpeste,llein
- apostellein) pelo Jesus ressuscitado, e porque sua pregação muitas vezes é descrita como
proclamação querigmática (ke,rugma - kérygma), cuja finalidade era atrair outros à fé.
Finalmente, o círculo dos pregadores missionários alargou-se para além dos companheiros
originais de Jesus, e as experiências de fé dos novos convertidos, como Paulo, enriqueceram o
que foi recebido e proclamado.106
Outro fator que exerceu sua influência nesse estágio do desenvolvimento foi a
necessária adaptação da pregação aos novos ouvintes. Jesus foi um judeu Galileu da primeira
terça parte do século I, que falava aramaico; contudo, em meados desse século, seu evangelho
estava sendo pregado a judeus habitantes em grandes cidades e aos pagãos em grego. Essa
mudança de língua implicava tradução, no mais amplo sentido da palavra, isto é, uma
remodelação do vocabulário e dos padrões que faria a mensagem inteligível e viva para os
novos ouvintes. Por vezes, esta nova fraseologia (que deixou traços visíveis nos Evangelhos
escritos) afetou detalhes secundários. Por exemplo, em Lc 5.19 menciona-se um tipo de
telhado familiar aos leitores gregos em contraste com o telhado palestino no qual foi feita uma
abertura do qual se fala em Mc 2.4.107
O terceiro e último estágio na formação do evangelho refere-se aos Evangelhos
escritos. Trata-se do momento da redação, a última fase da formação do evangelho e diz
104
Idem. p. 169.
105
MARCONCINI, Benito. Op Cit., pp. 55-57.
106
Ibidem. p. 170.
107
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 170.
respeito ao trabalho do evangelista.108 Agora estamos na última terça parte do século I d.C.,
aproximadamente.
Ainda que na metade do período anterior, enquanto o material sobre Jesus era objeto
de pregação, devem ter aparecido algumas coleções primitivas escritas (perdidas atualmente),
e não obstante a pregação baseada na conservação e desenvolvimento oral do material sobre
Jesus tenha continuado até o século II109, a época entre 60 e 100, aproximadamente, foi o
momento em que se compuseram os quatro Evangelhos canônicos. Com respeito aos
evangelistas ou autores/redatores, conforme tradições provenientes do século II e refletidas
nos títulos que precedem os evangelhos, por volta do ano 200 ou até mesmo antes, dois destes
eram atribuídos a apóstolos (Mateus e João), e dois a homens apostólicos, ou seja,
companheiros dos apóstolos (Marcos [companheiro de Pedro] e Lucas [companheiros de
Paulo]).110
Resta dizer ainda que os Evangelhos foram organizados numa ordem lógica, não
necessariamente numa ordem cronológica. Os evangelistas se mostram como autores que dão
forma, desenvolvem, revisam o material transmitido sobre Jesus e, como teólogos, orientam
este material para um fim determinado. 111
Martin Dibelius, Rudolf Bultmann, Karl Ludwig Schmidt, são alguns dos estudiosos
que contribuíram para a elaboração da critica dos Sinóticos115 estabelecendo alguns critérios e
padrões literários para a pesquisa.
A ênfase de Dibelius não está na tradição evangélica primitiva, mas sim na vida da
comunidade cristã, com o objetivo de determinar as condições e atividades da Igreja Primitiva
como fonte da tradição. O estudioso quer observar a pregação missionária e chega a esta
conclusão ao observar o prólogo do Evangelho Segundo Lucas ao lado de outros textos. 116
A seguir procuraremos apresentar, ainda que de forma resumida, as mais importantes
formas (categorias ou gêneros) e como elas ficaram conhecidas.
Uma leitura de Atos dos Apóstolos nos leva a pensar que o sermão, nos primórdios
da Igreja, possuía um plano definido: kérygma, ou mensagem curta, então a prova pelas
Escrituras e, finalmente, o chamado ao arrependimento. Foi assim que, os objetivos do sermão
criaram a Forma da história evangélica e um estilo definido para a divulgação das boas
notícias. Essas pequenas unidades em circulação receberam o nome de Paradigma (Dibelius),
Apotegmas (Bultmann), Relatos de pronunciamentos (Taylor): relatos que chegam a seu
ponto culminante com uma declaração de Jesus, p. ex.: ditos (Mc 2.1-12; 2.18-22; 2.23-28;
3.1-12; 3.20-30; 3.31-35; 10.13-16; Lc 9.51-56; 14.1-6).117
Como podemos observar nos textos mencionados, os paradigmas nada mais são do
que pequenas histórias que giram em torno de uma ou mais palavras de Jesus. Berger emprega
a designação “créia” (do grego, uso, emprego), sinalizando o emprego de determinado dito
para um caso concreto.118
Outro grupo de Dibelius é intitulado Histórias de Milagres. Em Bultmann este tópico
também é considerado sob o título Histórias de Milagres que são separadas em Milagres de
Cura, Milagres da Natureza e A Forma e a História dos Milagres. Tudo faz parte do material
narrativo. Depois de uma acurada análise individual Bultmann afirma ter encontrado uma
estrutura formal que compreende, em geral, uma introdução, uma exposição de motivos, uma
descrição do ato milagroso e um final. 119 Abaixo apresentamos alguns motivos que, de acordo
com Bultmann, são típicos desse gênero.120
Marcos Lucas
1.4 A pregação de João Batista 2.1-20 O nascimento de Jesus
1.9-11 O batismo de Jesus 2.22-40 A apresentação de Jesus no
templo
1.12-13 A tentação de Jesus 2.41-52 O menino Jesus no meio dos
doutores
1.16-20 A vocação dos discípulos 4.16-30 A visita a Nazaré
1.35-39 Jesus se retira para orar 5.1-11 A pesca maravilhosa
2.13-14 A vocação de Levi 7.36-50 A pecadora que ungiu os pés de
Jesus
3.13-19 A escolha dos doze e seus 8.1-3 As mulheres que serviram a
nomes Jesus
6.7-13 As instruções para os doze 9.52-56 Os samaritanos não recebem a
Jesus
7.24-30 A mulher sirofenícia 10.38-42 Marta e Maria
8.14-21 O fermento dos fariseus e o 19.1-10 Zaqueu, o publicano
de Herodes
8.27-30 A confissão de Pedro 19.39-40 O júbilo dos discípulos
9.2-8 A transfiguração 19.41-44 Jesus chora à vista de Jerusalém
11.1-6 A procura do jumento
11.7-10 A entrada triunfal
14.12-16 Os discípulos preparam a
páscoa
Mateus João
1.18-25 O nascimento de Jesus 1.45-51 O chamado de Natanael
2.1-23 Os Magos, fuga e retorno do 3.1-21 Nicodemos visita Jesus
Egito
3.22-30 Jesus e João Batista
Narrativas pascais 4.1-41 A mulher samaritana
Mc 16.1- A história do túmulo vazio 12.20-22 Os gregos e Jesus
8 par.
Mt 28.9s, As histórias das aparições 13.4-10 Jesus lava os pés aos discípulos
16-20; Lc do ressurreto.
24.13-
35,36-49;
121
Idem, p. 74-76.
Jo 20.14-
18, 19.23,
24-29;
21.1-14,
15-17
7.1-13 Visita à Festa dos tabernáculos
10.22-42 Visita à Festa da dedicação
122
BERGER, Klaus. Op Cit., p. 61.
123
WEGNER, Uwe. Op Cit., p. 242.
124
BITTENCOURT, B. P. Op Cit., pp. 44-46.
125
Idem, pp. 47-60.
c) Sintético: “pois alargam os seus filactérios e alongam as suas franjas.” (Mt 23.5).
Também encontramos as formas em Ditos Proféticos e Apocalípticos. A ênfase
desses ditos é sobre “o Reino de Deus” e tem “Arrependei-vos”, como apelo (Mt 3.10-12; 24).
Ditos Legais e Regras Eclesiásticas: preceitos disciplinares e reguladores (Mt 5.27-28). Ditos
iniciados com “eu”. 126
Ainda dentro das narrativas temos de considerar o uso de Parábolas. Dentre os
diversos ditos do Senhor Jesus, os estudiosos afirmam que as parábolas são os únicos que
possuem forma. Esses pronunciamentos de Jesus consistem de uma verdade espiritual ou
moral que é enfatizada por meio de uma analogia ou comparação concreta, expressa ou
subentendida.
Na opinião de Reclich as parábolas contêm quatro características:
1) Comparação expressa ou implícita. Faz uso de expressões do tipo “como”,
“semelhante”, etc. (Mt 5.11-16);
2) Esta comparação deve ser simples, uma vez que o objetivo da parábola é ensinar
uma lição simples, de forma clara. Tomemos como exemplo a parábola da ovelha perdida (Lc
15.3-7), ou a do filho pródigo (Lc 15.11-32);
3) Outra característica é que a parábola deve ter somente uma aplicação. Isto
significa que não devemos descer aos pormenores para não convertermos a parábola em
alegoria. A parábola do amigo inoportuno (Lc 11.5-8) serve para exemplificar esta
característica. Já imaginou se tentarmos identificar o amigo inesperado, os filhos no leito, o
pai que já estava na cama com os filhos?
4) Em último lugar, a parábola deve ser objetiva. Seu propósito é convencer alguém
de uma realidade espiritual. Significa dizer que os ouvintes precisam tomar uma decisão (Mt
17.25 “Que te parece?”; 21.28 “E que vos parece?”). Observe que a pergunta exige uma
decisão imediata.127
Por fim128, temos de considerar a Narrativa da Paixão. Podemos assumir que ela teve
desde o início, a forma de um bloco orgânico e homogêneo, cujo texto encontra-se em cada
um dos quatro Evangelhos. Os estudiosos em geral lembram que era preciso, de alguma
forma, mostrar que uma ocorrência paradoxal e sem sentido para o pensamento humano– um
evento ignominioso como a morte de cruz – representava o início do tempo final, ou seja, uma
parte da consumação da salvação.129
126
Idem, p. 51.
127
BITTENCOURT, B. P. Op Cit., p. 55, 53.
128
Na realidade, o problema das formas é por demais extenso para ser tratado em uma obra introdutória como
esta. O estudante de exegese deve procurar maiores informações em obras especializadas. Remetemos o leitor à
obra de BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 1998.
129
WEGNER, Uwe. Op Cit., p. 240, 241.
Chamamos aos três primeiros Evangelhos pela designação “sinóticos”. A palavra foi
introduzida por J. J. Griesbach em 1776, porque sua grande semelhança permite “vê-los
juntos” (sunoyij – synópsis); desde então se dá o nome de sinopse ao manual que, dispondo o
texto de Mateus, Marcos e Lucas em colunas paralelas, permite a visão simultânea e a
comparação de suas formulações. Serve para, além de unir os três evangelhos, separá-los do
Evangelho Segundo João.130
O termo “sinótico”, como vimos, é de origem grega e significa “visão de conjunto”.
Aplicada aos Evangelhos, é, portanto, a visão de conjunto dos textos de Mateus, Marcos e
Lucas em uma sinopse. Nestes três Evangelhos encontramos muitas narrativas iguais de:
milagres, parábolas, discursos, paixão, morte, ressurreição e aparições, às vezes com
pequenas diferenças.
Podemos observar no quadro abaixo a quantidade de versículos comuns a três ou a
dois evangelistas e também os versículos próprios de cada um:
Mc Mt Lc
Comum aos três Evangelhos vv. 330 330 330
Comum a Marcos e Mateus vv. 178 178
Comum a Marcos e Lucas vv. 100 100
Comum a Mateus e Lucas vv. 230 230
Exclusivos de cada um vv. 53 330 500
Total de versículos em cada evangelista vv. 661 1.068 1.160
Os textos paralelos aos três evangelistas são conhecidos como tripla tradição; os
textos paralelos entre Mateus e Lucas, como dupla tradição; e os textos particulares de cada
um são chamados de tradição singular, particular, ou exclusiva.
É assim que, o problema sinótico consiste no seguinte: que relação esses três escritos
tem um com o outro? A Crítica das Fontes compreende essa questão de um ponto de vista
genealógico: a relação entre os três sinóticos é detectada na dependência que revelam de um
em relação ao outro; a pesquisa visa, portanto, a identificar que Evangelho tem prioridade
literária na relação de cada um com os outros.131
130
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 1997, p. 19.
131
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 15.
fonte “M”, contendo informações peculiares ao Evangelho Segundo Mateus e uma fonte “L”,
com informações peculiares ao Evangelho Segundo Lucas.138
Mais abaixo voltaremos a essa discussão. Aqui veremos brevemente as hipóteses
mais aceitas na atualidade. Antes, porém, é interessante destacar as semelhanças e as
diferenças existentes entre os Evangelhos Sinóticos.
De posse de uma sinopse verificamos que Marcos, Mateus e Lucas têm basicamente
uma mesma estrutura, cronologia e geografia. Existem grandes semelhanças e podemos
destacar blocos distintos de capítulos “para o início da vida pública de Jesus após o batismo,
para o ministério de Jesus na Galileia, para o itinerário que Jesus fez da Galileia até Jerusalém
e a atividade de Jesus na própria Jerusalém”. 139
Nos três, podemos observar claramente que a história de Jesus é relatada na mesma
sequência. João Batista batiza o Senhor. Jesus é tentado. Jesus atua publicamente na Galileia.
Diferentemente do Evangelho Segundo João, Jesus realiza somente uma viagem até
Jerusalém, sofre e morre ali, para, em seguida ressuscitar dentre os mortos. Do mesmo modo,
em todos os três a história de Jesus está subdividida em muitas histórias curtas completas em
si (perícopes). Essas narrativas muitas vezes também se inserem na mesma sequência, ainda
que nem sempre possamos identificar claramente um nexo entre elas. Por fim, podemos
acrescentar que nos Sinóticos encontramos coincidências totais até na letra do texto, que são
mais exatas nos ditos do Senhor do que nas partes narrativas. Existem mesmo alguns
exemplos de coincidências literais (Mt 3.3; Mc 1.3; Lc 3.4 - Mt 11.10; Mc 1.2; Lc 7.27 - Mt
9.6; Mc 2.10; Lc 5.24 - Mt 16.28; Mc 9.1; Lc 9.27, por exemplo). 140
Desse modo observamos que Mateus e Marcos dão bastante destaque para a
atividade de Jesus realizada na Galileia. Enquanto isso, Lucas destaca o itinerário de Jesus
que parte da Galileia até chegar a Jerusalém. Notamos que toda a teologia lucana é voltada
para Jerusalém. 141
Além do que foi dito precisamos observar que encontramos diferenças em blocos
semelhantes nos três evangelistas sinóticos. A título de exemplo podemos destacar os relatos
da infância. Marcos não o tem; Mateus narra dentro de uma perspectiva masculina, dando
evidência ao papel de José; Lucas relata dentro de uma perspectiva feminina destacando a
figura de Maria. O mesmo se dá com as bem-aventuranças. Mais uma vez o Evangelho
Segundo Marcos não tem; Mateus relata oito bem-aventuranças (Mt 5.1-12), enquanto Lucas
menciona apenas quatro (Lc 6.20-23).142
138
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 35.
139
COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 49.
140
RIENECKER, F. O. O Evangelho de Mateus. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1998, p. 10, 11.
141
COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 49.
142
COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 49.
De igual modo é fácil perceber as diferenças nas genealogias. Mateus remonta até
Abraão fazendo três grupos de 14 gerações (Mt 1.1-17), com Davi sendo o décimo quarto. Em
hebarico, a gematria (a soma dos equivalentes numéricos das consoantes em uma palavra) de
Davi (David) resulta em 14 (D+V+D= 4+6+4). Em razão da poplaridade de vários usos
criativos da gematria no judaísmo antigo, Mateus pode muito bem ter utilizado deste
dispositivo para estilizar sua genealogia e realçar Jesus como Filho de Davi. 143 Lucas, por sua
vez, relaciona setenta e sete nomes chegando até Adão (Lc 3.20-38).
As diferenças mais fáceis de serem identificadas, com certeza, referem-se ao material
exclusivo de cada um dos Sinóticos. Sob material exclusivo entendemos aquilo que cada
evangelista apresenta sozinho. Isso compreende aproximadamente um terço do material todo.
Podemos destacar os seguintes materiais:
Material exclusivo de Marcos: A parábola da semente (4.26ss), a cura do surdo-
mudo (7.31ss), a cura do cego de Betsaida (8.22ss), prisão e fuga de um jovem (14.51s) etc.
Material exclusivo de Mateus: convite aos cansados e sobrecarregados (11.28ss), as
parábolas do joio entre o trigo, do tesouro, da pérola, da rede (cap. 13), o imposto do Templo
(17.24ss), as parábolas do credor incompassivo (18.23ss), dos trabalhadores na vinha (20.1ss),
dos filhos desiguais (21.28ss), das dez virgens e do julgamento do mundo (cap. 25), os
guardas do sepulcro (27.62ss) etc.
Material exclusivo de Lucas: o jovem de Naim (7.11ss) e a grande pecadora (7.36ss),
e depois, no assim chamado relato de viagem, no qual se encontra a maior parte do material
exclusivo: o bom samaritano (10.25ss), Maria e Marta (10.38ss), a parábola do agricultor rico
(12.16ss), a cura do hidrópico (14.1ss), as parábolas da moeda perdida (15.8ss), do filho
perdido (15.11ss), do administrador injusto (16.1ss), do rico e Lázaro (16.19ss), do
samaritano agradecido (17.11ss), do juiz iníquo (18.1ss), do fariseu e do publicano (18.9ss).
Dos capítulos finais: Zaqueu (19.1ss), Jesus diante de Herodes (23.8ss), os discípulos de
Emaús (24.13ss), a ascensão (24.50ss) etc.144
Para finalizar temos o relato do Jesus ressuscitado. Enquanto Marcos e Mateus
descrevem suas aparições na Galileia, Lucas as descreve em Jerusalém.145
III.4. Inventário
143
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 262.
144
RIENECKER, F. O. Op Cit., p. 11.
145
COLLI, Gelci André. Op Cit., p. 49.
146
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 16.
147
Ibidem.
A pré-história das pequenas unidades literárias, antes de sua integração no texto dos
evangelhos, foi esclarecida pela Crítica das Formas (Formgeschichte): parábolas, relatos de
milagre, controvérsias, lógia da oralidade. A tradição de Jesus não foi guardada pelos
primeiros cristãos com interesse documentário, mas para responder às necessidades do ensino,
da proclamação missionária, da celebração litúrgica ou de codificação ética das primeiras
comunidades cristãs. Foi por isso que ela se fixou já oralmente em formas literárias ditadas
pelo meio da vida comunitária (Sitz im Leben), nas quais se inscreviam: catequese, culto,
debate com a Sinagoga, etc. Sua recepção nos Evangelhos Sinóticos não despojou essas
unidades literárias de suas características formais; a comparação de um Evangelho com outro
ficou, desde então, muito mais fácil. 148
Vamos retomar a observação estatística que já fizemos acima para enfatizar algo
mais. Essa observação estatística nos levará a descobrir que Mateus, Marcos e Lucas
apresentam, cada um, mas em proporção extremamente variáveis, dois tipos de materiais
narrativos: os materiais que eles têm em comum com um ou dois dos outros Evangelhos e os
que lhes pertencem como próprios. A repartição pode ser quantificada. Convém, entretanto,
ter em mente que esses números têm só um valor global, pois a atribuição de um versículo ou
de uma parte do versículo permanece, às vezes, duvidosa. Perceba que para esse quadro o
número de versículos varia um pouco em relação ao anterior. Isto se deve ao fato de que
certos autores assumem ou não determinados textos que a Crítica Textual julga incertos.
Portanto, não devemos nos aferrar a estes dados estatísticos como se isso fosse matéria de
fé.149
Estatísticas:150
Percebemos que Marcos e Lucas apresentam traços inversos: Marcos contém apenas
uma pequena quantidade de material próprio (26 versículos em um total de 661), ao passo que
148
Ibidem. p. 16.
149
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 16.
150
Esses números costumam variar de acordo com o manual que empregamos. Aqui tomamos a estatística de
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 17.
a parte específica de Lucas atinge quase a metade do texto (550 versículos em 1.149); a
repartição proporcional de Mateus situa-o entre esses dois Evangelhos. Por outro lado,
identificamos 80% do material de Marcos em Mateus e 55% em Lucas. O texto comum a
Mateus, Marcos e Lucas (tradição tríplice) cobre 330 versículos, enquanto o texto de tradição
dupla (Mateus-Lucas) comporta cerce de 235. As coincidências narrativas entre os Sinóticos
são, portanto, ao mesmo tempo grandes e múltiplas. 151
III.5.1.1. Hipótese de que Mateus foi o primeiro Evangelho e foi usado por Lucas
Marcos foi escrito primeiro e, em seguida, Mateus e Lucas fizeram uso dele. Uma
vertente dessa teoria chega a postular que Lucas fez uso de Mateus também, mas enfrenta
certas dificuldades. A tese mais comum “argumenta que Mateus e Lucas dependem de
Marcos e escreveram independentemente um do outro”. O que eles têm em comum e não
derivou de Marcos é explicado com base em Q. Essa é conhecida como a Teoria das Duas
Fontes.155
151
Ibidem.
152
Ibidem. p. 19.
153
Ibidem.
154
Idem. p. 20.
155
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 178.
A Teoria das Duas Fontes é resultante do desenvolvimento no fim do século XIX (C.
H. Weisse, 1838; H. J. Holtzmann, 1863; P. Wernle, 1899). Ela recebe atualmente a
aprovação de um grande número de pesquisadores.156
O argumento básico para a prioridade do Evangelho Segundo Marcos é que esta
resolve mais problemas do que qualquer outra teoria postulada. Além disso, ela oferece a
melhor explicação para o fato de Mateus e Lucas concordarem tão frequentemente com
Marcos na sequência e na construção das frases, e permite razoáveis conjecturas para o fato
de Mateus e Lucas diferirem de Marcos quando isso acontece independentemente. Podemos
observar, por exemplo, que nenhum dos evangelistas gostava das redundâncias de Marcos, de
suas expressões gregas deselegantes e da apresentação pouco lisonjeira dos discípulos. Ao
fazer uso de Marcos, ambos expandem as narrativas do primeiro evangelista à luz da fé pós-
pascal. O argumento básico contra a prioridade marcana assenta-se nas concordâncias
menores. Para muitas delas, podemos oferecer boas explicações, contudo, outras permanecem
muito difíceis de serem explicadas. 157
Podemos resumir afirmando que a Teoria das Duas Fontes trabalha com três
princípios:158
1. Marcos é o Evangelho mais antigo;
2. Uma fonte denominada Q está na origem da tradição dupla;
3. Mateus e Lucas se beneficiaram, cada um, de tradições particulares.
As quatro fontes. Como vimos, Streeter acrescenta às duas fontes, Marcos e “Q”, a
fonte “M” com material peculiar a Mateus, e a fonte “L” com material peculiar a Lucas.
156
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 25.
157
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 179.
158
MARGUERAT, Daniel. Op Cit., p. 25.
159
SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia da exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2009.
160
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 44.
161
Idem, p. 45, 46.
As “costuras” que o evangelista utiliza para juntar suas tradições também é uma área
tratada pela Crítica da Redação. A mais perceptível dela encontramos em Mateus que se
utiliza da repetida fórmula “Quando Jesus acabou de proferir estas palavras” (Mt 7.28; 11.1;
13.53; 19.1; 26.1).
Acréscimos aos dados. No relato a respeito do ministério de cura de Jesus e da
chamada dos 12 (Lc 6.12-19), que parece depender de Marcos 3.13-18, Lucas menciona o
fato, não registrado por Marcos, de que Jesus “retirou-se para o monte a fim de orar, e passou
a noite orando a Deus”. Percebem-se indícios de uma preocupação tipicamente lucana.
Omissão de dados. Alega-se com frequência que Lucas, ao redigir seu texto, omitiu a
referência a Jesus “vindo sobre as nuvens do céu” (22.63-71 cf. Mc 14.62 e Mt 26.64) na
resposta dada ao sumo-sacerdote (22.29) porque Lucas pretende evitar a ideia de uma
parousia iminente.
Por fim, temos as alterações do fraseado: a bem-aventurança sobre os pobres. De
acordo com Mateus são bem-aventurados os “pobres de espírito” (5.3); de acordo com Lucas,
“os pobres” (6.2).162
Concordamos com Carson que afirma a necessidade de tomar cuidado, contudo, com
as afirmações exageradas, pressuposições falsas e aplicações inadequadas. Se a utilizarmos de
forma adequada, na exegese dos textos, a Crítica da Redação pode ser de ajuda real na
interpretação dos Evangelhos. 163 Vale ressaltar que o mesmo se aplica para a Crítica das
Formas e para a Crítica das Fontes.
162
Para uma análise mais detalhada da Crítica da Redação sugerimos SILVA, Cássio Murilo Dias da.
Metodologia da exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2009.
163
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 52.
IV.1.1. Autoria
164
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 193.
Da mesma forma como todos os Evangelhos que nós temos, para o Evangelho
Segundo Marcos, dependemos totalmente do testemunho externo para nomear o autor.
Contudo, ficamos tranquilos ao saber que a voz da antiguidade é unânime em atribuir este
Evangelho a João Marcos.165
O mais antigo e importante testemunho data do início do século II e foi registrado
por Eusébio no início dos anos 300. Trata-se do testemunho de Papias. No livro de Eusébio
podemos ler que:
[...] Marcos, que foi intérprete de Pedro, pôs por escrito, ainda que não com ordem,
o quanto recordava do que o Senhor havia dito e feito. Porque ele não tinha ouvido o
Senhor nem o havia seguido, mas, como disse a Pedro mais tarde, o qual transmitia
seus ensinamentos segundo as necessidades e não como quem faz uma composição
das palavras do Senhor, mas de tal forma que Marcos em nada se enganou ao
escrever algumas coisas tal como as recordava. E pôs toda sua preocupação em uma
só coisa: não descuidar nada de quanto havia ouvido nem enganar-se nisto o mínimo
(HISTÓRIA ECLESIÁSTICA, 3.39.15).166
Se pudermos entender que “não com ordem” diga respeito à sequencia cronológica,
esse testemunho tão antigo também confirma nossas observações a respeito da leitura crítica
dos Evangelhos. Contudo, nosso foco aqui recai sobre o testemunho da autoria. Além de
Papias, citado por Eusébio, sabemos que Justino, Irineu, o Cânon Muratoriano e o Prólogo
Anti-Marcionista também atribuem o Evangelho a Marcos, um intérprete de Pedro. 167
Esse Marcos é já no início do século II, identificado com João chamado Marcos, o
filho da Maria para cuja casa o apóstolo Pedro fugiu logo após escapar da prisão (At 12.12); o
mesmo Marcos que Paulo e Barnabé levaram na chamada Primeira Viagem Missionária (At
12.25). Ele também aparece em Colossenses 4.10 como sobrinho ou primo de Barnabé
(avneyio.j o vocábulo grego (anepsios) serve para os dois casos).168
Diversos estudiosos questionam a confiabilidade dessa tradição. Entretanto, somos
obrigados a observar que o colorido gentio do texto é suficiente para mostrar que os
destinatários eram principalmente gentios, e não que o autor era gentio. Observamos que
dificilmente alguém, exceto Pedro, pudesse dar um tratamento tão negativo a respeito dos
discípulos. Por fim, considerando-se que Marcos não fazia parte do círculo dos doze, é pouco
provável que alguém com pouco conhecimento seguro sobre o verdadeiro autor desse
Evangelho, mas disposto a dar-lhe uma credibilidade e um testemunho autorizados, tivesse
escolhido Marcos como tal autoridade.169170
IV.1.2. Data
A data em que foi escrito nosso Evangelho em estudo tem sido fixada entre 50-70
d.C. Isto concorda com a suposição de que Marcos escreveu depois da morte de Pedro –
165
BERKHOF, Louis. Introdução ao Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2014, p. 65.
166
CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica. São Paulo: Novo Século, 2002, p. 41.
167
EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Comentário Bíblico Beacon. Volume 6. Rio
de Janeiro: CPAD, 2015, p. 219.
168
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 73, 74.
169
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 163, 164.
170
O mesmo argumento servirá para o Evangelho Segundo Lucas.
IV.1.4. Propósito
Segundo as conclusões da Crítica Textual o texto desse Evangelho chegou até nós de
uma forma completa e substancialmente boa, atestado em papiros, manuscritos, traduções,
lecionários e testemunhos de escritores eclesiásticos que remontam até os inícios do século
III. O texto contém 16 capítulos (1.1-16-8), com um apêndice (16.9-20). Apesar de a crítica
171
EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Op Cit., p. 219.
172
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 159.
afirmar que o apêndice seja um acréscimo tardio, temos indícios de sua existência já a partir
do ano 150.173
As denominações mais antigas que temos documentadas a partir dos manuscritos são
as seguintes:
KATA MARKON ¥ B pc
euaggelion kata Markon A D L W Q f13 1. 33. 2427 Û lat
to kata Markon agion euaggelion 209. 579. al (vgcl)
Ao códice ¥ acrescentamos que no final ele traz uma subscrição que é típica do
sistema livreiro da Antiguidade: EUANGGELION KATA MARKON.174
Uma vez que assumimos o estudo dos Evangelhos Sinóticos, talvez seja interessante
conhecermos quais são os textos exclusivos do Evangelho Segundo Marcos. Na tabela abaixo
estão dispostos os relatos que não são mencionados nem em Mateus nem em Lucas. 175
Muitos estudiosos consideram o texto de 14.51-52 “Homem jovem que fugiu nu”
uma menção velada do próprio autor do Evangelho Segundo Marcos.
O Evangelho Segundo Marcos foi redigido em grego koiné com forte influência
semita, uma característica comum dos países semitas bilíngues do Oriente, como a Sírio-
Palestina e o Egito.
Estilisticamente caracteriza-se pelo pouco cuidado no uso do vocabulário, pela
liberdade no uso da sintaxe e pela vivacidade e realismo de seus relatos que, apesar das
incorreções gramaticais, captam a atenção do leitor desde o primeiro momento.
O vocabulário marcano é composto de 1.345 palavras, das quais 60 são nomes
próprios e 79 são hápax legomena, ou seja, únicas em O Novo Testamento. Repete
frequentemente uma série de palavras, tais como ter (ekho, 60 vezes), um (heîs, 38 vezes), de
novo (palin, 28 vezes). Contêm semitismos, especialmente aramaísmos, a maioria
173
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Evangelios sinópticos y echos de los
Apóstoles. Espanha: Editorial Verbo Divino, 1991, p. 149.
174
MAUERHOFER, Erich. Introdução aos Escritos do Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2010, p.
121, 122.
175
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 121.
relacionados com a topografia, onomástica e com as Instituições de Israel, como thalassa com
o sentido de lago, Barabbas, Bartholomaios, Bartimaios, Thomas, Satanas, Bethsaida,
Gennesaret, Golghota, Kafarnaoum, Paskha. Do mesmo modo, como antecipamos acima,
emprega latinismos oriundos da linguagem técnica militar, comercial e jurídica: denarion,
denário; kensos, censo; kentyríon, centurião; legion, legião; modius, módio medida; xestes,
estrangeiro; spekoulator, sentinela; fragelloun, açoitar. A sintaxe é própria da linguagem
popular, pouco trabalhada estilisticamente. Temos o predomínio da parataxe. Além disso, é
pobre em conjunções. Por fim, devemos ressaltar que o estilo é popular e vivo, próprio da
linguagem falada.176
176
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., pp. 151-157.
At 10.34ss Marcos
v. 36 Anúncio do Cristo como Senhor sobre todos 1.1-3
v. 37-38a Batismo por João e começo da atuação na Galileia; preparação 1.4-37
com o Espírito Santo e poder
v. 38b Andou pela região, fazendo o bem, curou enfermos e expulsou 1.38-10-52
demônios
v. 39ª Atuação de Jesus na terra da Judeia 11.1-13.37
v. 39b Crucificação 14.1-15.47
v. 40-42 Ressurreição, aparições, ordem missionária 16.1-20
Nesta terceira e última seção continuamos a análise da obra sob o ponto de vista do
seu conteúdo. Não podemos jamais esquecer que a obra de Marcos, assim como a dos demais
evangelistas, é fundamentalmente teológica, tendo a cristologia como o lugar central.
A finalidade teológica do Evangelho Segundo Marcos fica claramente evidenciada
no título mesmo da obra: proclamar a Boa Notícia “o Evangelho de Jesus Messias, Filho de
Deus” (1.1).
O Evangelho em estudo, mais que apresentar sistematicamente a doutrina do Mestre,
põe em relevo os atos e palavras que apresentavam a Jesus como o Messias, como o Filho do
Homem e como o Filho de Deus. Tudo isto é uma verdade de fé aceita e vivida, que não tem a
intenção de provar, mas de manifestar.
Tudo tem seu início no acontecimento do Jordão. Logo que sai da água os céus se
rasgam e Jesus vê que o Espírito, como pomba, desce sobre ele, e escuta-se a voz do céu: “Tú
és o meu Filho amaro, em quem me comprazo” (1.10-11). Jesus é, pois, o Ungido (Messias
em hebraico ou Cristo em grego) com o Espírito; é o Messias que vem para instaurar o Reino
de Deus (1.14-15).
ordena aos curados que não falem da obra que realizou neles, contudo, isso é praticamente
impossível (7.36s).
Várias vezes, o Evangelho Segundo Marcos destaca o fato de Jesus pedir silêncio a
respeito de algum feito extraordinário que realizara (1.25,34,44; 3.12; 5.43; 7.36; 8.26). Nos
estudos e comentários exegéticos, convencionou-se chamar essa concepção teológica de
“segredo messiânico”, o que, uma vez percebido, tornou-se uma das características desse
Evangelho, que também foi acolhida pelos outros Evangelhos (Mc 8.30; Mt 16.20; Lc 9.21;
Mc 9.9; Mt 17.13, entre outros).177
O termo hebraico e aramaico mashiah não se refere nunca, no Antigo Testamento, a
uma figura salvadora do futuro, mas a uma personagem histórica presente, geralmente o rei e,
poucas vezes, aos sacerdotes, patriarcas e profetas. Só posteriormente o termo passa a ser
aplicado a tais figuras para designar a salvação escatológica. 178
No pensamento judaico, o termo “messianismo” se refere geralmente a dois
elementos: a espera de um tempo futuro caracterizado pela felicidade e pela justiça; e a crença
de que o mundo feliz será trazido não tanto pela ação de forças somente humanas – por
exemplo, pela observância estrita da Lei – como pela mediação de uma ou várias figuras
divinas, denominadas Messias.179
Na época de Jesus, o conceito de Messias era de um descendente de Davi, guerreiro
nacionalista, que reconquistaria a liberdade para o povo de Israel e reestabeleceria o reino aos
judeus (Mc 8.29-33; 12.35-37; Jo 6.15; At 1.6).
Todavia, este conceito era tão alheio ao messianismo de Jesus que ele mesmo não
gostava de ser chamado publicamente de Messias (1.34,44; 3.12; 5.43; 7.36; 8.26,30; 9.9).
Somente após a sua morte e ressurreição, depois da descida do Espírito Santo sobre a igreja,
os discípulos puderam compreender sua autêntica missão. Assim ele foi reconhecido e
proclamado como Messias-Cristo.
Dessa forma, observamos que o “segredo messiânico” encerra uma visão cristológica
muito profunda.
O termo “Filho do Homem” aparece oitenta e duas (82) vezes bem distribuídas entre
os quatro Evangelhos. Observamos, em primeiro lugar, que esse título nunca aparece em
nenhum dos Evangelhos como uma designação de outras pessoas aplicada a Jesus. Em todas
as narrativas encontramos somente o próprio Cristo utilizando-se desse título. Ele demonstra
um particular interesse por essa designação.180 Esse título tem a vantagem de sugerir um papel
177
ZUCK, Roy B. Teologia do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2010, pp. 79-81.
178
SCHIAVO, Luigi. Anjos e messias: messianismos judaicos e origem da cristologia. São Paulo: Paulinas,
2006, p. 37.
179
Ibidem.
180
RIBEIRO, Jonas Celestino. Os ensinos de Jesus – O Evangelho de Marcos. Rio de Janeiro: JUERP, 2000,
p. 49.
181
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 526, 527.
182
RIBEIRO, Jonas Celestino. Op Cit., p. 48.
183
LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003, p. 212, 213.
Por fim, Jesus se apresenta como o Filho amado, o Herdeiro, a quem Deus envia à
sua vinha (12.6); ele é superior aos anjos (1.13; 13.32); em sua pessoa vem o Reino de Deus
(1.15), que será instaurado de maneira definitiva quando vier na glória de seu Pai com os
anjos (8.38s).184
184
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 529.
Como questões históricas estamos fazendo referência à origem, autor, data, lugar de
composição, destinatários e situação que motivou a obra e as fontes utilizadas.
V.1.1. Autoria
Já sabemos que todos os quatro Evangelhos, em sua origem, são anônimos. Isto
significa que os manuscritos originais não levaram o nome dos autores. Contudo, a tradição
da igreja primitiva os atribui respectivamente a Mateus, Marcos, Lucas e João.187
Eusébio de Cesareia menciona Clemente de Roma – morto em 101 d.C. – como
dizendo que “o primeiro dos quatro Evangelhos, que são inquestionáveis, foi compilado por
185
CULLMAN, Oscar. A formação do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2001, p. 20.
186
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 247.
187
EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Op Cit., p. 21.
Mateus, que „outrora fora coletor de impostos, mas posteriormente um apóstolo‟”. Também
Eusébio afirma: “Com efeito Mateus, que primeiramente tinha pregado aos hebreus, quando
estava a ponto de ir para outros, entregou por escrito seu Evangelho, em sua língua materna,
fornecendo assim por meio da escritura o que faltava de sua presença entre aqueles de quem
se afastava”.188 Se isto for um fato, uma edição grega acabou por substituir completamente a
hebraica (aramaica) uma vez que não encontramos nenhum fragmento de um Mateus em sua
língua materna.
Alguns estudiosos atuais contestam que o texto grego seja uma tradução do original
hebraico ou aramaico em virtude de que o texto não se parece com uma tradução. Contudo, as
passagens “Q” de Mateus demonstram regularmente um cuidadoso paralelismo semita, “o
evangelho não é desprovido de seus semitismos e não é necessário se argumentar que Mateus
[...] tenha traduzido literalmente”. 189
O nome próprio Mateus significa “dom de Deus, dádiva de Javé” e aparece em todas
as listas dos doze apóstolos (Mt 10.2-4; Mc 3.16-19; Lc 6.13-16; At 1.13). No primeiro
Evangelho, Mateus é identificado como um publicano, o que não ocorre nas demais listas. Na
narrativa da chamada, o primeiro Evangelho menciona “Mateus” (Mt 9.9); Marcos o chama
“Levi, filho de Alfeu” (2.14) e Lucas menciona simplesmente “Levi” (5.27). Sem dúvida os
três querem indicar a mesma pessoa. É bom lembrarmos que era bastante comum um judeu
ter dois nomes.190
Depois do texto de Atos 1.13, Mateus – Levi – não é mencionado outra vez em O
Novo Testamento. Pouco se sabe de sua vida e ministério. Novamente é Eusébio quem
preserva as tradições do século II acerca da autoria de Mateus, mas existe pouca coisa a
respeito de sua obra depois disso. Diversas histórias afirmam que ele evangelizou a Etiópia,
Macedônia, Síria, Pérsia e Média. Existe uma tradição sobre ele ter sofrido morte natural na
Etiópia ou na Macedônia. De outro lado, as Igrejas Grega e Romana celebram seu martírio. 191
Uma coisa deve ficar clara: a igreja primitiva é unânime em atribuir a Mateus a
autoria do primeiro Evangelho canônico. A razão de nos remetermos sempre à tradição da
igreja antiga é que as informações dela são muito precisas, de maneira que prometem
fornecer, ao menos, boas coordenadas para nossas indagações.
V.1.2. Data
A data máxima para composição final deste Evangelho deve ser colocada em 115
d.C., quando Inácio, Bispo de Antioquia da Síria, referiu-se a ele em sua carta à igreja de
Esmirna. Do mesmo modo, como vimos, Eusébio menciona Clemente de Roma como tendo
feto referência ao Evangelho Segundo Mateus. Como Clemente morreu por volta de 101 d.C.,
significa que este Evangelho não poderia de modo algum ter sido escrito depois desta data.
A data mais antiga depende da datação que fizemos do Evangelho Segundo Marcos,
uma vez que ele forma a estrutura de nosso Mateus. Precisamos conceder certo tempo para a
188
CESAREIA, Eusébio de. Op Cit., p. 65.
189
BLOMBERG, Craig L. Op Cit., p. 180.
190
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 87.
191
Idem, p. 88.
composição e circulação de Marcos. Levando em conta esses diversos fatores uma época
antes de 60 d.C. seria difícil de ser defendida. 192
Há quem coloque a redação deste Evangelho para o início da década de 70 do
primeiro século.193 Outros advogam o surgimento do Evangelho entre os anos 80 a 90 d.C. Na
nossa compreensão fica difícil aceitar uma data posterior a 70 uma vez que Jerusalém já
estaria destruída e o Evangelho desenvolve toda a sua narrativa como se a cidade e o Templo
ainda existissem. Podemos assumir uma data entre 63 e 67 d.C.
Com referência ao local em que foi escrito o Evangelho Segundo Mateus, também
temos diversas informações. Atanásio afirma que foi escrito em Jerusalém; Ebedjesu, diz que
foi na Palestina; e Jerônimo, na Judeia, para beneficiar os discípulos daquela região. 194
Atualmente grande parte dos estudiosos afirma que o local foi Antioquia da Síria. 195
Antioquia era capital da província romana da Síria e a terceira cidade do império,
depois de Roma e Alexandria. Uma cidade bastante cosmopolita que tinha o grego como
língua oficial e o helenismo como aglutinador de diversos povos. A colônia judaica dessa
cidade era muito importante, e nela a infiltração do helenismo era um fenômeno bastante
notável. 196
V.1.4. Propósito
192
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 89.
193
CHAVES, Irênio Silveira. Mateus – o Evangelho do reino. Rio de Janeiro: JUERP, 2002, p. 25.
194
BERKHOF, Louis. Op Cit., p. 61.
195
EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Op Cit., p. 22.
196
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 343.
197
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 342.
198
HALE, Broadus David. Op Cit., pp. 93-98.
Podemos dizer que Mateus faz fundamentalmente uma síntese a partir de dois
projetos anteriores, o Evangelho Segundo Marcos e o documento Q (Quelle). Esse evangelista
assume o Evangelho Segundo Marcos como referencial, o que resulta, assim, em uma obra
essencialmente narrativa, mas na qual inclui material discursivo do documento Q. 200
A leitura mais bem documentada de Mt 1.16 é “Jacó gerou José, o esposo de Maria,
da qual nasceu Jesus chamado Cristo”. Existem leituras variantes desse versículo: uma
destinada a evitar chamar José de “esposo de Maria”, outra preservando o padrão usual de X
gerou Y, mas ainda assim chamando Maria de virgem.
Em Mateus 6.13 temos o término “do Maligno, do mal”. De acordo com o
testemunho de importantes e antigos manuscritos alexandrinos e ocidentais, dentre outros,
bem como de comentários sobre o Pai-Nosso escritos por diversos Pais da Igreja antiga, o
texto termina com ponerou. Para adaptar essa oração ao uso litúrgico na Igreja antiga,
copistas acrescentaram vários finais diferentes, com destaque para os seguintes: “pois teu é o
reino, e o poder, e a glória para sempre, Amém”; “pois teu é o reino e a glória para sempre.
Amém”; e “pois teu é o reino e o poder e a glória do Pai e do Filho e do Espírito Santo para
sempre. Amém”.201
As denominações mais antigas de que temos conhecimento a partir dos manuscritos
são as seguintes:
KATA MAQQAION ¥B
199
TASKER, R. V. G. Op Cit., p. 14.
200
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 149.
201
OMANSON, Roger L. Variantes textuais do Novo Testamento. Análise e avaliação do aparato crítico de
“O Novo Testamento Grego”. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010, p. 7, 8.
Material Conteúdo
exclusivo
1.1-17 A genealogia real de Jesus
1.18-25 Anúncio do nascimento de Jesus a José
2.1-12 Visita dos astrólogos do Oriente
2.13-23 Fuga para o Egito e assassinato de crianças em Belém
5.4s, 7-10 Partes do Sermão do Monte
5.14, 16-24
5.27-29
5.31-37
6.1-18
7.6, 15
9.27-31 Cura de dois cegos e um mudo possesso
10.5-15 Envio dos discípulos exclusivamente aos israelitas
10.34-39 Condições do discipulado
10.40-42 O salário dos que auxiliam os mensageiros de Jesus
11.28-30 O convite de Jesus – Venham a mim
12.36-37 Advertência contra o falar inútil
13.24-30,36-43 Parábola do joio no trigo
13.44 Parábola do tesouro no campo
13.45, 46 Parábola da pérola preciosa
13.47-50 Parábola da rede de pesca
13.50-52 Comparação com um patrão
14.28-32 Pedro anda sobre a água
16.17-19 Resposta de Jesus à confissão de fé de Pedro
17.24-27 O imposto do templo
18.15-22 Sobre o perdão
18.23-35 A parábola do servo impiedoso
20.1-16 A parábola dos trabalhadores na vinha
21.14-16 Curas no templo e o louvor das crianças
21.28-32 Os dois filhos desiguais
22.1-14 As bodas reais
202
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 78, 79.
203
Idem, p. 77, 78.
Mateus modifica a ordem de suas fontes para obter composições de caráter temático,
diferente de Lucas, que respeita a ordem de Marcos, embora seja interrompido em alguns
momentos para introduzir o material do documento Q e o material próprio. 204
204
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 149, 150.
205
Idem, pp. 150-154.
Enquanto Marcos termina seu relato de forma abruta, sem a descrição formal da
ressurreição, Mateus inclui um capítulo inteiro dedicado à volta de Jesus do mundo dos
mortos e à comissão final dada por ele aos discípulos. Mateus apresenta basicamente cinco
grandes blocos de material discursivo. A intensão de Mateus de que esses cinco principais
sermões de Cristo fossem vistos como unificados, intercalados ao longo de sua narrativa, fica
evidenciada por meio da repetição, já mencionada acima, com que encerra cada um dos
sermões: “Havendo Jesus concluído essas palavras”.
Aqui também adotaremos a estrutura que procura demonstrar as diversas etapas da
vida de Jesus de acordo com o desenvolvimento natural do texto.
Estrutura do Livro.
I. A origem e a infância de Jesus, o Messias 1.1-2.23.
II. Início do Ministério de Jesus, o Messias 3.1-4.25.
III. A Ética do Reino de Deus 5.1-7.29.
IV. As obras poderosas de Jesus 8.1-9.34.
V. Jesus e seus pregadores missionários 9.35-10.42.
VI. As prerrogativas de Jesus, o Messias 11.1-12.50.
VII. Sete parábolas do Reino do Céu 13.1-52.
VIII. A rejeição de Jesus em Nazaré
e o martírio de João Batista 13.53-14.12.
IX. Jesus se retira dos domínios de Herodes 14.13-17.27.
X. A vida na comunidade messiânica 18.1-35.
XI. A viagem para Jerusalém 19.1-20.34.
XII. O Messias desafia Jerusalém 21.1-22.46.
XIII. O Messias denuncia os escribas e fariseus 23.1-39.
XIV. A queda de Jerusalém
o aparecimento do Filho do Homem 24.1-51.
Optamos por uma estrutura um tanto mais detalhada apenas por objetivos didáticos.
206
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 130.
razões fundamentais: em primeiro lugar, dos Sinóticos, Mateus é o único Evangelho em que
aparece a palavra ekklesia, três vezes. 207 Nas duas vezes que Jesus utiliza o termo, uma tem
conotação universal, referindo-se uma a todo o novo povo do Messias Jesus (16.18) e outra,
tem um sentido particular, como uma comunidade ou igreja local, com seus problemas
disciplinares (18.17); em segundo lugar, na obra inteira, sobretudo nas partes discursivas,
transparece a vida da Igreja. É possível descobrir mesmo os conflitos da comunidade e, até
certo ponto, seus ministérios.208
A dimensão eclesiológica desse Evangelho está centrada no discipulado daqueles que
são chamados a viver no “agora” o “ainda não”, ou seja, a viver no tempo presente os
ensinamentos do Mestre como se estivessem vivendo os tempos finais, do juízo. A
comunidade de Mateus, formada por judeo-cristãos, é chamada a viver no aqui o Reino de
Deus. A Igreja, neste Evangelho, é apresentada como uma realidade complexa na
multiplicidade de imagens que a representam: ora como a rede lançada ao mar, que acolhe
uma diversidade de peixes (13.47-50), ora é figurada no campo de um pai de família, que
plantou nele a boa semente e o inimigo nele semeou a cizânia. Ambos crescem juntos e a
colheita só pode ser feita no final (13.24-43).
Precisamos ressaltar que quando Jesus declarou que edificaria a Sua Igreja, não tinha
em mente a formação de uma estrutura como se tornou a Igreja posteriormente. Não podemos
afirmar categoricamente que Jesus queria formar a Igreja da maneira como a conhecemos
hoje. Naquele momento Jesus estava dando os fundamentos para o surgimento do novo
conjunto do povo de Deus, a partir da afirmação de Pedro: “tu és o Cristo, o filho de Deus
vivo” (16.16), do mesmo modo como estava estabelecendo a autoridade conferida a essa nova
comunidade (18.19). A vida da Igreja de Cristo deveria ser marcada pela comunhão e pela
unidade. 209
O Evangelho é um discipulado continuado referente à construção da comunidade,
constituída de regras próprias, o perdão, a oração, a correção fraterna (18) e que termina no
Reino. A Igreja está aberta para todos os povos, fazendo aí uma diferença com o Antigo Israel
(21.43).210
Lembre-se de que Jesus chamou pessoas para o seguirem, formando um grupo de
fiéis, a quem chamou de discípulos (maqhth,j - mathetes), servos ou escravos (dou/loj - doulos)
e serviçais da casa (oivkiako,j - oikiakós) (10.25).211
Em Mateus, a Igreja é uma continuidade de Israel, enquanto povo separado por Deus.
Como novo povo de Deus, a Igreja é o lugar para congregar pessoas vindas de todas as partes,
gentios e judeus, em torno do Reino dos Céus (8.11). A Igreja e o Reino de Deus são
expressões que estão muito próximas, mas dizem respeito a realidades distintas. O Reino é o
domínio total de Deus sobre tudo o que existe; a Igreja é a família composta pelas pessoas que
entram no Reino e estão submissas ao poder soberano de Deus. A Igreja, portanto, é o
verdadeiro povo de Deus, pertencente ao Messias. 212
207
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 54.
208
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 318.
209
CHAVES, Irênio Silveira. Op Cit., p. 42.
210
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 131.
211
CHAVES, Irênio Silveira. Op Cit., p. 43.
após a ressurreição (“estarei com vocês todos os dias até a consumação dos séculos”,
28.20).219
Para Mateus, em Jesus se realiza a presença de Deus (VEmmanouh,l) no meio de seu
povo e, consequentemente, esse novo povo de Deus se caracteriza por sua relação com Jesus.
Em 18.20, Jesus fundamenta o poder da comunidade e a eficácia de sua oração na promessa
de que, “onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (evkei/
eivmi evn me,sw| auvtw/n - ekei eimi em mesô autôn). Jesus, que por seu nascimento humano era
Deus-Conosco, continua agora desempenhando esse mesmo papel para além de sua vida
terrena. Mateus não diz que Jesus é Deus, mas fala de tal forma que insinua sua pertença
especial à esfera da divindade. Em 9.2 Jesus é acusado de blasfêmia por sua pretensão de
perdoar os pecados, do que não se retrata em absoluto.220
219
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 131.
220
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 314.
221
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 132.
222
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 50.
223
MARCONCINI, Benito. Op Cit., pp. 133-142.
(afiémi). Essas quatro atitudes, como essência da religião, são aprofundamentos e princípios
norteadores da vida moral e espiritual.
V.3.3. Escatologia
Mateus destaca a vinda de Cristo como Filho do Homem na função de juiz universal
e glorioso, que dará a cada um segundo as suas obras (16.27). Este é o único evangelista que
utiliza a expressão parousia (parousi,a - 24.3,27,37,39) para falar da vinda do Filho do
Homem.227 Também é Mateus quem dá mais destaque ao juízo futuro, com um anúncio de
juízo mais ou menos claro. O homem pode seguir o caminho largo que leva à perdição ou o
estreito que conduz à vida (7.13-14), pode edificar sua casa sobre rocha, de modo que possa
resistir sempre, ou sobre a areia, que acaba logo em ruínas (7.24-27). O discurso do capítulo
13 termina com a parábola da rede, que é tipicamente de juízo, sobre a separação dos peixes
bons e dos maus (13.47-50; cf. 13.36-43).228
Em Mateus o juízo será precedido pela ressurreição dos mortos. A segunda vinda de
Jesus será o evento escatológico marcante. O termo preferido por Mateus para descrevê-lo,
como vimos acima, é parousia, que significa presença. O sermão do monte das Oliveiras
concentra o maior conteúdo dos ensinos de Jesus a esse respeito. Aqui, fica evidente que a
segunda vinda de Cristo será iminente (24.24), repentina (24.27) e visível em poder e grande
224
CHAVES, Irênio Silveira. Op Cit., p. 39.
225
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 36.
226
CHAVES, Irênio Silveira. Op Cit., p. 40, 41.
227
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 63.
228
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 329, 330.
glória (24.30). A incerteza do tempo em que acontecerá é comparada com a chegada do ladrão
da noite (24.43) e com os tempos de Noé (24.37-39).229
229
CHAVES, Irênio Silveira. Op Cit., p. 45.
Lucas é o pesquisador dos fatos. Este Evangelho é o mais longo dos quatro. Contudo,
é apenas a metade da grande obra lucana, uma vez que originalmente estava unido aos Atos
como a primeira parte de uma obra em dois volumes, cuja extensão é maior que um quarto de
todo O Novo Testamento. Uma narrativa magnífica que conjuga a história de Jesus com a da
Igreja dos primórdios. Lucas se distancia de Marcos mais do que Mateus, e podemos dizer
que teologicamente está a meio caminho entre Marcos-Mateus e João. Certamente, ainda que
todos os evangelistas sejam teólogos, o número de obras sobre a teologia de Lucas é
surpreendente.230
O estudo do Evangelho Segundo Lucas também será feito em três seções: questões
históricas, questões literárias e questões teológicas. Os objetivos continuam sendo os mesmos.
Cabe ressaltar que durante o estudo de Lucas faremos algumas menções ao Livro de
Atos. Isto se justifica tendo em vista que, ao que tudo indica, trata-se de uma obra que
pretende dar continuidade ao Evangelho. Dessa forma, diversas questões tratadas aqui no
Evangelho Segundo Lucas servirão igualmente para o Livro de Atos e, por isso, devemos
aproveitar para trata-las em conjunto.
Vamos conhecer algumas questões históricas.
VI.1.1. Autoria
O Evangelho Segundo Lucas e o Livro de Atos dos Apóstolos são obras concebidas e
escritas para o serviço da comunidade cristã e, portanto, provavelmente foram escritas como
obras anônimas. No século II, quando foram sendo agrupados os diversos escritos apostólicos
e teve início a formação do cânon dos livros do Novo Testamento, foram colocados os títulos
nas duas obras, da mesma forma que nos outros escritos, para distingui-las das demais. A
primeira parte se chamou Evangelho Segundo Lucas, atribuindo-se assim a obra a tal
personagem. A segunda parte recebeu o título de Atos dos Apóstolos, sem aludir ao autor,
mas a tradição antiga sempre o atribuiu à mesma pessoa que escreveu o Evangelho, devido às
afinidades entre as duas obras, dedicadas, além disso, à mesma pessoa. 231
A tradição, desde Marcião e Irineu, no século II, identificou esse Lucas com o
companheiro de Paulo, médico, aquele de quem falam as cartas de Paulo (Cl 4.14; Fm 14;
2Tm 4.11), e até o século XIX não se duvidou dessa identificação. Irineu afirma que “Lucas,
o companheiro de Paulo, registra em um livro o Evangelho pregado por ele”. Do mesmo
230
BROWN, Raymond E. Op Cit., p. 311.
231
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 433.
VI.1.2. Data
Se o Livro de Atos dos Apóstolos foi escrito por volta do final do primeiro cativeiro
de Paulo 62-63, o Evangelho deve ser situado antes disso. Se Lucas depende de Marcos, deve
ser situado depois da redação deste. Dessa forma, a redação do Evangelho Segundo Lucas
deve ficar situada depois do Evangelho Segundo Marcos e antes de Atos dos Apóstolos. É
provável que, durante os anos de prisão de Paulo em Cesareia, Lucas tenha realizado suas
232
BERKHOF, Louis. Op Cit., p. 79.
233
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 434.
234
RIENECKER, F. O. O Evangelho de Lucas. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2005, p. 11.
235
BERKHOF, Louis. Op Cit., p. 79, 80.
236
Idem, p. 80.
investigações intensivas. Essa prisão pode ser datada para os anos 57-59. Portanto, a redação
deste Evangelho deve ter acontecido ou durante esse período ou logo depois.237
Diversas fontes antigas citam como lugar da redação deste Evangelho a Acaia, ou
seja, a Grécia. Assim ocorre no prólogo monarquiano, Jerônimo e Gregório Nazianzo. Alguns
manuscritos sírios da Peshitta situam a redação em Alexandria. Barth sugere Antioquia. 238 Os
diversos estudiosos modernos têm sugerido Roma, Cesareia, Ásia Menor, Éfeso e Corinto. 239
Da leitura de Atos 21 depreendemos que Paulo foi acompanhado por Lucas quando
retornou da terceira viagem missionária para Jerusalém. Assim, Lucas presenciou a detenção
do apóstolo, acompanhando-o dois anos mais tarde até Roma. É provável que tenha ficado
junto de Paulo até o martírio dele (2Tm 4.11). Como alguns manuscritos já trazem Roma
como lugar da redação, podemos indicar Cesareia, a viagem para Roma ou a própria Roma. 240
Há ainda quem fique mesmo com Cesareia.241
VI.1.4. Propósito
Tanto o Evangelho quanto Atos são dirigidos ao mesmo destinatário: Teófilo (Lc 1.3;
At 1.1). Infelizmente, não temos nenhum meio de determinar quem foi esse Teófilo. Há quem
suponha que o nome seja uma generalização aplicada a todos os cristãos, como um ente
querido ou um amigo de Deus. Mas a opinião geral é, com razão, de que se trata mesmo de
um indivíduo.242
Percebemos facilmente que Teófilo é uma pessoa conhecida de Lucas, grego ou
romano. O fato de Lucas abordá-lo da mesma forma que Félix (At 23.26; 24.3) e Festo (At
26.25), nos leva a concluir que Teófilo era uma pessoa de posição elevada. Alguns sugerem
até mesmo que ele tenha patrocinado a redação das duas obras.
Lucas escreve primordialmente para que Teófilo tenha um conhecimento mais
completo e satisfatório a respeito de Jesus Cristo. Pode ser que o destinatário tivesse recebido
informações rudimentares e Lucas pensava que fossem necessárias mais instruções, ou
possivelmente o próprio Teófilo tenha pedido ao evangelista para lhe fornecer um relato mais
adequado. Contudo, não resta dúvida de que Lucas tinha em mente uma audiência mais
numerosa que um único e “excelentíssimo” indagador. Pode ser que o evangelista tenha
percebido que a Igreja, como um todo, precisava de um Evangelho mais completo do que
aquele que existia na ocasião.243
237
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 191.
238
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 184.
239
BERKHOF, Louis. Op Cit., p. 84.
240
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 185.
241
EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Op Cit., p. 350.
242
BERKHOF, Louis. Op Cit., p. 82.
243
EARLE, Ralph; SANNER, A. Elwood; CHILDERS, Charles L. Op Cit., p. 350.
244
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 365.
245
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 135.
246
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., pp. 367-368.
247
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 137.
248
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 167.
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1.1-4 Prólogo
1.5-25 Anúncio do nascimento de João Batista
1.26-38 O anjo anuncia a Maria o nascimento de Jesus
1.39-45 Visita de Maria a Isabel
1.46-56 Louvor de Maria
1.57-80 Nascimento de João Batista e louvor de Zacarias
2.1-7 Censo e nascimento na estrebaria
2.8-14 Anúncio do nascimento por meio de anjos e pastores no campo
2.15-20 Pastores visitam o recém-nascido Jesus
2.21-40 Circuncisão de Jesus; sua apresentação no templo
2.41-51 O menino Jesus no templo aos 12 anos
3.10-14 João Batista responde à pergunta: “O que devemos fazer?”
3.23-38 Genealogia de Jesus (de sua mãe Maria)
4.16-30 “Sermão inaugural” de Jesus em Nazaré
5.1-11 A pescaria de Pedro
6.24-26 Os quatro ais
7.11-17 Ressurreição do jovem de Naim
7.36-50 Unção de Jesus pela pecadora
8.1-3 Mulheres na companhia de Jesus
9.51-56 Rejeição pelos samaritanos
10.1-12 O envio dos 70 discípulos
10.17-20 Retorno dos 70 discípulos
10.21-24 Bem-aventuranças de Jesus aos discípulos
10.30-37 A parábola do samaritano misericordioso
10.38-42 Jesus com Maria e Marta
11.5-8 O amigo suplicante
11.27-28 Quem pode se dizer feliz
12.13-21 Parábola do rico agricultor
12.47,48 “A quem muito foi dado, muito será exigido”
13.1-5 Os galileus vitimados. Torre de Siloé
13.6-9 Parábola da figueira estéril
13.10-17 Cura, no sábado, da mulher encurvada
13.22-30 Conclamação para a decisão correta
13.31-33 Inimizade de Herodes
14.1-6 A cura de um hidrópico no sábado
14.7-14 Da ordem hierárquica e seleção dos convidados
14.15-24 A parábola da grande ceia
249
Idem, pp. 165-167.
preferiu respeitar suas fontes. Lucas é, portanto, um verdadeiro historiador helenista menor, às
vezes elegante, às vezes vulgar, que não chega a alcançar a altura dos grandes literatos de sua
época.252
Há quem divida o Evangelho, linguisticamente, em três seções. O Prefácio (1.1-4)
escrito em estilo clássico. O resto do capítulo 1 e o capítulo 2 têm um sabor nitidamente
hebraico. A partir de 3.1, o Evangelho está escrito em um tipo de grego helenístico que
lembra fortemente a LXX. Às vezes a linguagem de Lucas contém hebraísmos e, às vezes,
aramaísmos. Além disso, sua linguagem é mais semítica em alguns trechos do que em
outros.253
O evangelho emprega 2.055 palavras diferentes com um total de 19.404 usos, o que
apresenta uma média de 9,44 usos por palavra. Destas, 971 são hápax legomena e 640 não são
usadas por Marcos nem por Mateus.254
Em geral, precisamos afirmar que Lucas-Atos não é a obra de um estilista, mas a de
um pastor. Para Lucas, a linguagem está a serviço da fé e somente levando em consideração
podem-se explicar adequadamente todos os recursos de seu estilo. Conhece os recursos
estilísticos dos semitas e helenistas e domina as técnicas que ajudam a uma apresentação viva
dos materiais, como estes facilitam uma adequada composição dos relatos. 255
Para determinar a estrutura de uma obra, podemos aplicar de modo especial critérios
objetivos que nos ajudem a descobrir a inteção do autor sem cair em subjetivismos. Os
critérios geralmente utilizados são: estilo, resumos redacionais, geografia, protagonistas,
temática, temas teológicos e sumários. Esses diversos critérios servem para ajudar no
descobrimento de uma possível leitura contínua, progressiva e com sentido de todo o texto.
O Evangelho Segundo Lucas apresenta uma estrutura clara, que podemos
desenvolver da seguinte forma:
I. Prólogo 1.1-4.
II. Nascimento e vida oculta de João Batista e de Jesus 1.5-2.52.
III. Pregação de João e apresentação de Jesus 3.1-4.13.
IV. Ministério de Jesus na Galileia 4.14-9.50.
V. Viagem a Jerusalém 9.51-19.27.
VI. Ministério de Jesus em Jerusalém 19.28-21.38.
VI. Última Ceia 22.1-38.
VII. A paixão de Jesus 22.39-23.56.
VIII. A ressurreição do Senhor 24.1-53.
Observe que se trata de uma estrutura simples que abarca as grandes cenas da
narrativa lucana.
252
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 374, 375.
253
MORRIS, Leon L. Lucas: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 25, 26.
254
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 375.
255
Idem, p. 378.
VI.3.1. A salvação
256
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 30, 31.
257
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 31.
258
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 33.
259
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 161.
260
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 130.
261
MARCONCINI, Benito. Op Cit., p. 161.
262
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 418, 419.
Se os sistemas humanos de salvação são parciais, uma vez que não cobrem todas as
necessidades do homem, com frequência marginalizam aqueles que não têm meios salvadores
(dinheiro, poder, prestígio), com o que produzem dor; pelo contrário, a salvação que Jesus nos
oferece é total, pois cobre todas as necessidades do ser humano, e chega a todos, embora
privilegiando os marginalizados e, por isso, é motivo de alegria. É, portanto, universal por seu
conteúdo e por seus destinatários.263
O universalismo da salvação entra no plano de Deus como um elemento essencial,
desejado por si mesmo e não somente como consequência da rejeição que o povo eleito fez de
Jesus e de sua missão.264
Nesta perspectiva, Jesus não é somente descendente de Abraão, senão de Adão,
criado por Deus (3.38). Os anjos cantam lembrando-se do ser humano em geral (2.14); a razão
disto é que Jesus é um Salvador (2.11), e é uma luz para todas as nações (2.32). João Batista
prega que “toda carne verá a salvação de Deus” (3.6) e o evangelho será proclamado a todas
as nações (24.47). Diversos personagens não judeus se beneficiam da salvação trazida por
Jesus: o samaritano misericordioso (10.25-27); o leproso samaritano (17.11-19); o centurião
romano que tem fé em Jesus (7.9), ou o centurião que reconhece a inocência do crucificado
(23.47).265
Ainda temos a salvação oferecida aos pecadores, aos pobres e às mulheres.266
Lembre-se de que o Evangelho Segundo Lucas, assim como os demais, não é uma
história ou biografia no sentido moderno da expressão. Lucas se propõe não somente fazer
referência aos feitos que narra, senão, dar-lhes uma interpretação teológica. Isto se realiza
projetando sobre eles a luz da paixão e da ressurreição. Lucas é o evangelista do Plano de
Deus: o mistério da Páscoa é seu foco, o Espírito Santo é seu autor e a comunidade universal
dos crentes é seu término.267
O evento pascoal ilumina todo o Evangelho de Lucas. A tríplice profecia sobre a
paixão e ressurreição, que Lucas faz questão de sublinhar (9.22,44; 18.31-34) quer
demonstrar:
1) Jesus como sinal de contradição (2.34);
2) Jesus, objeto de admiração e de ódio (4.16-30);
3) A transfiguração, durante a qual Jesus trata com Moisés e Elias de sua partida
que estava por realizar-se em Jerusalém (9.31);
4) Jesus arde em desejos de ser batizado em sua paixão (12.50);
5) Todo profeta deve morrer em Jerusalém (13.32-33);
6) O Filho do Homem tem que sofrer muito (17.24s);
263
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 422, 423.
264
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 97.
265
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 35.
266
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., pp. 419-421.
267
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 41.
Lucas demonstra claramente que o propósito de Deus não cessa na cruz. Continua na
obra do Espírito Santo, que significava tanto na Igreja nos dias de Lucas como significa na
Igreja de todos os tempos.269
O Espírito Santo é a alma, o princípio vital, em toda a obra de Lucas (Evangelho e
Atos). Sem o Espírito Santo não existe nem Jesus-Messias, nem a Igreja. O Espírito Santo é o
poder (du,namij - dýnamis) do alto que está em plena atividade.
1) Ele é quem move aos pais de João Batista (1.41,67);
2) Ele enche o precursor do Messias (1.15,80);
3) O Espírito Santo opera na Virgem Maria a concepção de Jesus, o Filho de Deus
(1.35);
4) Ele ilumina a Simeão (2.25-27);
5) O Espírito Santo desce sobre Jesus para ungi-lo (3.22);
6) Impulsionado por Ele, Jesus foi levado ao deserto (4.1);
7) Sob sua ação soberana, Jesus inicia seu ministério (4.14);
8) O Espírito do Senhor repousa plenamente sobre Jesus-Messias, com a
finalidade de realizar o plano salvífico de Deus (4.18);
9) Na virtude do Espírito, Jesus expulsa os demônios (11.20);
10) Jesus exulta no Espírito (10.21);
11) O Espírito Santo é o dom de Deus por excelência (11.13);
12) Os discípulos serão instruídos pelo Espírito (12.12);
13) Lucas termina seu Evangelho anunciando que Jesus enviará sobre seus
discípulos a Promessa do Pai (24.49).270
Lucas tem mais a dizer acerca do Espírito Santo no seu Evangelho do que qualquer
um dos demais evangelistas. Isto forma um vínculo de continuidade. Tanto no ministério de
Jesus quanto na vida da Igreja primitiva, o Espírito de Deus está operante.271
Viver segundo o Espírito implica caminhar em um processo de crescimento e
fortalecimento. A ação do Espírito não é “mágica” como se ao invoca-lo Ele descesse do céu
sobre nós. Mas Ele está presente em nós. Ele irrompe na comunidade a partir das entranhas
dos fatos históricos.
VI.3.5. A oração
Se no ensino acerca do Espírito Santo Lucas nos mostra que Deus leva a efeito o Seu
propósito; esta operação exige uma atitude da parte do povo de Deus. 272 Dessa forma, no
268
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 34.
269
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 43.
270
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 35.
271
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 45.
Terceiro Evangelho encontramos o verbo “orar” até 19 vezes (1.10; 3.21; 5.16; 6.12,28;
9.18,28-29; 11.1,1,2; 18.1,10,11; 20.47; 22.40,41,44,46).
Lucas revela Jesus como “um homem de oração”, através da qual cultiva a
intimidade com o Pai. Ora no momento de seu batismo (3.21); durante seu ministério (5.16);
para escolha dos Doze (6.12); para multiplicação dos pães (9.16); antes da confissão
messiânica de Pedro (9.18); durante a transfiguração (9.28); durante a dolorosa agonia no
Getsêmani (22.39-44); e finalmente durante as horas em que esteve pendurado na cruz (23.34,
46).273
É digno de nota o lugar que Lucas concede às mulheres através de seu Evangelho. As
mulheres ocupam lugar especial. No relato da infância de Jesus, mulheres (Maria e Isabel) são
as duas protagonistas. Em Lucas-Atos, mulheres são mencionadas mais do que pelos demais
autores de O Novo Testamento: Jesus as cura (8.43-48; 13.10-17), defende-as (7.36-50;
13.10-17) perdoa-as (7.36-50), ressuscita uma jovem (8.49-56; cf. At 9.36-39) e o filho de
uma viúva (7.11-17), e elogia uma viúva (21.14), aceita seus serviços materiais (8.1-3).
Contrariando o costume da época, Jesus admite mulheres em seu seguimento (24.1-11,22).
Elas estão presentes no grupo que persevera na oração, esperando o dom do Espírito Santo
(At 1.14).278
No século I as mulheres não tinham vez. Lucas, contudo, as vê como objetos do
amor de Deus, e escreve a respeito de muitas delas.279
272
Ibidem.
273
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 36.
274
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 177.
275
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 36.
276
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 45.
277
Ibidem.
278
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 421.
279
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 39.
Maria canta à pobreza e à humildade (1.52); os anjos aparecem aos pastores pobres
(2.8); José e Maria são pobres (2.24). Jesus é pobre (9.58) e prega aos pobres (6.21). Os
apóstolos deixam tudo e se fazem pobres (5.11; 14.33; 18.22; cf. 2.24; 4.18; 6.20; 16.15,20;
21.3).280
No Evangelho Segundo Lucas os pobres não são espiritualizados, como em Mateus.
São carentes economicamente, marginalizados e excluídos socialmente. Não têm relevância
na sociedade. O contraste entre “ricos” e “pobres” transcende as dimensões socioeconômicas.
Os pobres forma um conjunto heterogêneo, que podemos separar em três grupos,
conforme o grau de carência de bens. O primeiro grupo é formado pelos pobres-miseráveis, os
anawim (~ywIn"[)] do Antigo Testamento (Am 2.7, por exemplo). O segundo grupo (6.20-23) se
refere aos cristãos perseguidos, que foram reduzidos à situação de miséria. O último grupo é
formado pelos que vivem na pobreza por austeridade.281
Fica evidenciado que Lucas escreveu com um propósito profundamente teológico. O
evangelista consegue enxergar Deus operando para trazer a salvação e tem prazer em ressaltar
uma variedade dos aspectos desta grande e universal obra salvífica. 282
280
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Lucas. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2009, p. 37.
281
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 419.
282
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 45.
283
http://www.internetculturale.it/opencms/directories/ViaggiNelTesto/dante/print/c10.html Acesso em
06/02/2017.
Conhecemos diversas comunidades cristãs iniciadas por Paulo e outras que ele
visitou e solidificou na fé cristã, em sua segunda viagem missionária: Neápolis, Filipos,
Anfípolis, Tessalônica, Bereia, Corinto e, no retorno dessa viagem passou por Éfeso. Paulo
transformou essa última cidade em seu centro missionário, aproximadamente por três anos.
Não muito tempo depois, por volta dos anos 80, algumas comunidades da Ásia Menor, por
onde Paulo passou, continuaram a caminhada cristã sob a orientação da escola joanina.
A realidade que essas comunidades viviam já não era a mesma do tempo de Paulo.
Ele abriu caminho para a fé cristã, enfrentou muitas dificuldades, sobretudo com os
judaizantes. João também enfrentou muitas dificuldades, porém de um novo teor. As
comunidades já haviam sido evangelizadas, já tinham recebido a fé cristã, mas estavam sendo
influenciadas por interpretações errôneas sobre Jesus e sua doutrina. Na região da Ásia Menor
cresciam com maior força os movimentos religiosos como a religião dos mistérios e a gnose.
Foi neste contexto que surgiu o Evangelho Segundo João.
Denominado de “espiritual” desde a Antiguidade (Clemente de Alexandria, segundo
Eusébio de Cesareia) e reconhecido pela riqueza de sua teologia, o Quarto Evangelho vale-se
de sua forte reputação. Para alguns estudiosos, o Evangelho Segundo João constitui a maior
prova do ministério de Jesus, espécie de “supra-evangelho”.
Assim como temos feito até aqui, estudaremos, em primeiro lugar, as questões
relativas à sua dimensão histórica. Depois nos centralizaremos em sua dimensão literária, para
concluir com alguns tópicos dedicados às questões teológicas.
VII.1.1. Autoria
284
BRUCE, F. F. João: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1987, p. 11.
porém, esse evangelho na província da Ásia, depois que havia escrito o Apocalipse na ilha de
Patmos [...] E é aquele João que, sabendo que havia chegado o dia de falecer, reuniu seus
discípulos em Éfeso e através de muitas demonstrações de milagres, revelando a Cristo,
desceu ao lugar escavado para seu sepultamento e, depois de fazer um discurso, foi reunido a
seus ancestrais [...] Embora tenha escrito seu evangelho depois de todos os outros, apesar
disso é colocado depois de Mateus na sequencia do cânon ordenado”.291
O período de vida do apóstolo João tem seu início perto do século I e vai até o século
II. Ele era galileu e, de acordo com a tradição, da cidade de Betsaida, que ficava na margem
ocidental do mar da Galileia, não muito longe de Cafarnaum e Corazim. Seu pai era Zebedeu;
sua mãe, Salomé (Mc 16.1; Mt 20.20), estava entre as mulheres que apoiaram o Senhor com
seus recursos (Lc 8.3) e compareceram à crucificação dele (Mc 15.40). Dessa forma, sua
família não era desprovida de recursos materiais. Zebedeu era um pescador e tinha
empregados contratados para ajuda-lo com seu trabalho (Mc 1.20). Salomé ministrava para
Jesus, e parece que João tinha sua própria casa (Jo 19.27). Tão logo conheceu Jesus, ele
tornou-se seu entusiástico discípulo. A tradição comumente recebida, conforme pode ser
observado acima, retrata-o encerrando sua carreira apostólica na Ásia e em Éfeso. 292
VII.1.2. Data
291
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 239, 240.
292
VINCENT, Marvin R. Estudo no vocabulário grego do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2013, p.
1, 2.
293
EARLE, Ralph; MAYFIELD, Joseph H. Comentário Bíblico Beacon. Volume 7. Rio de Janeiro: CPAD,
2015, p. 22.
294
BROWN, Raymond E. El Evangelio Según Juan. Madrid: Ediciones Cristandad S.A., 1999, p. 104.
295
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento no Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008,
p. 153.
296
Veja ainda BROWN, Raymond E. El Evangelio Según Juan. Madrid: Ediciones Cristandad S.A., 1999, pp.
100-109.
Ademais, o Evangelho Segundo João pressupõe que o leitor esteja familiarizado com
os Evangelhos Sinóticos. Pessoas conhecidas desses Evangelhos não são mais apresentadas de
forma especial, enquanto, por exemplo, para Nicodemos se tornou necessária uma descrição
precisa. Esses pensamentos possuem um peso muito grande para favorecer uma datação para
o último decênio do século I, isto é, em torno do ano de 95 d.C.297
VII.1.4. Propósito
O Evangelho Segundo João é o único que anuncia claramente seu propósito. Para
definir os propósitos de João o texto de 20.30s pode ser a passagem-chave. Ali lemos que
“Jesus realizou na presença dos seus discípulos muitos outros sinais miraculosos, que não
estão registrados neste livro. Mas estes foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo,
o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome”. Devemos estar atentos aos
aspectos evangelísticos, bem como apologéticos ou polêmicos. 300
Como caráter apologético ele serve para defesa contra as objeções judaicas ao
evangelho. Os judeus aparecem no Quarto Evangelho como adversários de Jesus que o
perseguem com ódio fanático e o encaram. 301 Ademais ele ressalta os seguintes tópicos: 1) a
natureza e a missão messiânica de Jesus; 2) a singularidade de Jesus como “o Filho de Deus”,
isto é, a pessoa verdadeiramente divina cujos milagres atestam a realidade das ousadas
afirmações que João fez a Seu respeito no capítulo 1; 3) o escopo universal de Sua obra
redentora (3.16-17; 6.40). Dessa forma, João consegue ser ao mesmo tempo evangelístico,
polêmico e pastoral. 302 Ele quer despertar a fé e fortalecê-la. 303
297
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 268.
298
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 264.
299
VINCENT, Marvin R. Op Cit., p. 4.
300
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Op Cit., p. 155.
301
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 263.
302
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Op Cit., p. 156.
303
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 264.
304
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 234.
305
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Op Cit., p. 149.
306
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 256.
307
BRUCE, F. F. Op Cit., p. 351.
sido suficientemente fortes. Prevalece assim a convicção de que o Evangelho foi escrito
diretamente em grego.308
Acostumamo-nos a nos aproximar do Evangelho Segundo João com a convicção de
que se trata de uma obra de um cunho teológico pouco comum. Pode ser que isto justifique o
pensamento de que se trata de uma obra com uma linguagem sutil e de uma profundidade
pouco corrente. Todavia, a linguagem de João é sumamente simples e inclusive, sob o ponto
de vista literário, pobre. O grego do Evangelho Segundo João é extremamente simples.
Pertence à koiné, ou seja, a linguagem única e comum que nos tempos do Novo Testamento
era a herdeira da grande diversidade de dialetos gregos anteriores. Era uma espécie de língua
franca utilizada no território mediterrâneo como veículo de comunicação. 309
Podemos dizer ainda que o grego de João – em contraste com o de Lucas –
representa mais bem a koiné falada e popular do que a literária. Estamos mais próximos da
linguagem de uma criança do que da de um adulto instruído. Ainda que o grego do Evangelho
Segundo João seja correto, ele é bastante pobre do ponto de vista literário: encontramos
somente umas 1.000 (ou 1.011)310 palavras diferentes ao longo de todo o texto e a frase mais
longa do evangelho está em 13.1. Percebe-se assim que o vocabulário é escasso. As mesmas
expressões ocorrem continuamente. 311
Este evangelho tem um estilo direto e uma sintaxe bastante elementar. Abunda o
chamado presente histórico, mais do que no Evangelho Segundo Marcos, e as frases se ligam
muitas vezes através da conjunção kai, (kaí – e). Em outras ocasiões as frases simplesmente se
justapõem sem partícula alguma que as enlace. 312
Além de o vocabulário ser muito limitado, ele é muito unitário. Não encontramos
diferenças de estilos de acordo com os personagens. Há mais, não existe uma distinção clara
entre a linguagem do narrador ou do evangelista e a linguagem de Jesus. No Evangelho,
inclusive Jesus fala exatamente igual ao autor e também de forma muito parecida ao mundo
conceitual das cartas joaninas: utiliza os mesmos vocábulos, os mesmos movimentos, tem o
mesmo estilo. Por causa disso, em alguns fragmentos torna-se difícil saber se é Jesus quem
fala ou se é o evangelista ou mesmo outros personagens. Para comprovar isto basta uma
leitura atenta de João 3.313
Ao que já foi dito podemos acrescentar que em umas poucas seções os estudiosos
descobrem um estilo poético formal, caracterizado inclusive por estrofes, por exemplo, no
prólogo e, talvez, no capítulo 17. Encontramos também uma combinação particular de duplo
sentido e mal-entendido quando os adversários de Jesus formulam juízos sobre ele,
declarações sarcásticas, incrédulas ou, ao menos, inadequadas ao sentido que pretendiam.
Ironicamente, contudo, esses juízos muitas vezes são verdadeiros e tem mais sentido com um
significado que os interlocutores não chegam a captar.314
308
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 43.
309
TUÑI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joánicos y cartas católicas. Espanha: Editorial Verbo
Divino, 1995, p. 19, 20.
310
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 44.
311
VINCENT, Marvin R. Op Cit., p. 16.
312
TUÑI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Op Cit., p. 20.
313
Idem, p. 21.
314
BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cuestiones preliminares, evangelios y obras
conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 443, 447.
315
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 44.
316
TUÑI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Op Cit., p. 23, 24.
317
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 44.
Até mesmo pela estrutura ficam flagrantes as diferenças entre o Evangelho Segundo
João e os Sinóticos. Isso também pode ser confirmado por meio do elevado percentual de
material exclusivo. O Evangelho Segundo João possui 879 versículos (incluindo a perícope da
adúltera). Disso cerca de 80% são material exclusivo.318
O único milagre que aparece em todos os quatro Evangelhos é o da multiplicação dos
pães para a alimentação dos cinco mil (Mt 14; Mc 6; Lc 9; Jo 6).
VII.3.1. Deus
318
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 233.
319
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 30.
320
Ibidem.
VII.3.2. Jesus
Uma vez tendo obtido uma compreensão inicial da pessoa do Pai no Evangelho,
precisamos tentar responder a uma segunda pergunta: Quem é Jesus?
O Quarto Evangelho se apresenta essencialmente como um Evangelho
“cristológico”. Todo ele constitui uma revelação de quem é Jesus. Sua pessoa está no centro
de sua teologia. O próprio evangelista declara o propósito de seus escritos dizendo que “foram
escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida
em seu nome” (20.31). João destaca a nota cristológica, em sua introdução, ao chamar Jesus
de “Logos” (lo,goj).325
Desde o hino inicial Jesus aparece como alguém em relação com Deus. Jesus é a
verdadeira e última manifestação de Deus.326 Com efeito, Jesus é o Verbo eternamente
existente em Deus, e ele mesmo é Deus (1.1); esse Verbo se fez carne para habitar (evskh,nwsen
– eskénosen, estendeu a sua tenda) em meio aos homens (1.14); é o Unigênito-Deus
(monogenh,j – monogenés) que está no seio do Pai (1.18).327
No corpo do texto do Evangelho, Jesus aparece antes de tudo como o Filho de Deus
(ui`o.j tou/ qeou/ - huiós tou Theoû). Na realidade, uma das diferenças mais marcantes entre os
Sinóticos e João é o papel distinto desempenhado pela filiação de Jesus a Deus. A primeira
referência a Jesus como Filho de Deus é feita por Natanael; a referência do Evangelista a
Jesus como Filho de Deus em 3.18 encontra seu complemento na declaração do propósito
final de seu Evangelho em 20.31. 328 Deus é nomeado “Pai” em relação a Jesus 106 vezes.329
Sendo o Filho um com o Pai-Deus, não é raro que em diversas ocasiões Jesus se proclame em
forma absoluta “Eu Sou”, (evgw, eivmi – egô eimi) atribuindo-se assim o equivalente do nome
321
KÖSTENBERGER, Andreas J. Pai, Filho e Espírito: a trindade e o evangelho de João. São Paulo: Vida
Nova, 2014, p. 61.
322
ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 30.
323
ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 30.
324
Para uma exposição completa a respeito da Trindade e o Evangelho de João veja KÖSTENBERGER,
Andreas J. Pai, Filho e Espírito: a trindade e o evangelho de João. São Paulo: Vida Nova, 2014.
325
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 356.
326
DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977, p. 27.
327
ALDAY, Salvador Carrillo. El evangelio según san Juan. Espanha: Editorial Verbo Divino, 2010, p. 31.
328
KÖSTENBERGER, Andreas J. Op Cit., p. 103.
329
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 365, 366.
Espírito viria para assumir o lugar de Jesus e para capacitar os discípulos, a fim de que estes
fizessem o que não poderiam fazer por si mesmos, ou seja, levar os homens à fé e à vida
eterna.340
É assim que, na segunda metade do Evangelho as referências ao Espírito aumentam
drasticamente, tanto em número quanto em importância, em consonância com o papel
fundamental do Espírito na missão dos discípulos depois da partida de Jesus e de seu retorno a
Deus-Pai.341
A água que Jesus promete à samaritana é símbolo do Espírito Santo. Essa água viva,
misteriosa por sua origem, uma vez que não vem de um poço, mas que Jesus a dá, é também
misteriosa por sua natureza, pois é “o dom de Deus” que saciará a sede para sempre; mais
ainda, se converterá, naqueles que a beberem, em uma fonte a jorrar para a vida eterna (4.10-
14). Esse dom de Deus está no crente como principio dinâmico de um culto novo e autêntico,
próprio da era messiânica instaurada por Jesus. É o que anunciam as palavras de Jesus em
4.23.342
340
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 419.
341
KÖSTENBERGER, Andreas J. Op Cit., p. 121.
342
ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 34.
343
Idem, p. 37.
344
Ibidem.
345
Ibidem.
Agora, é o juízo deste mundo; agora, será expulso o príncipe deste mundo. E eu, quando for
levantado da terra, todos atrairei a mim” (12.24, 31-32).346
Todas essas passagens a respeito do futuro rebanho único e universal, unidas aos
textos sobre os discípulos enviados (4.35-38; 17.20-21) com o poder de perdoar os pecados
(20.21-23), fundamentam a eclesiologia do Quarto Evangelho. 347
Por fim, essa mesma união é a garantia da perseverança final e da ressurreição futura.
Outra série de textos sublinha uma escatologia ainda por realizar-se (5.28-29; 6.40,44,54;
12.48; 14.2-3; 17.24).350
A união com Cristo é garantia de perseverança, porque estar em Jesus é estar no Pai,
e “[...] ninguém pode arrebata-las das mãos de meu Pai” (10.29), e é segurança de
ressurreição futura, porque “E a vontade do Pai, que me enviou, é esta: que nenhum de todos
aqueles que me deu se perca, mas que o ressuscite no último Dia. Porquanto a vontade
daquele que me enviou é esta: que todo aquele que vê o Filho e crê nele tenha a vida eterna; e
eu o ressuscitarei no último Dia”, (6.39-40).351
346
Idem, p. 38.
347
ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 43.
348
ALDAY, Salvador Carrillo. Op Cit., p. 38.
349
Ibidem.
350
Ibidem.
351
Ibidem.
352
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 338.
353
Ibidem.
354
BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Editora Academia Cristã, 2008, p. 453.
355
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 339.
356
BULTMANN, Rudolf. Op Cit., p. 443.
357
BULTMANN, Rudolf. Op Cit., p. 439.
Certo estudioso afirmou que é muito estranho ler um livro que traz em seu
encerramento um advérbio. É o que ocorre com o Livro de Atos que, em grego, encerra-se
com akolutos (avkwlu,twj), um advérbio que pode ser traduzido por “desimpedido”,
“desimpedidamente”. Segundo este mesmo estudioso, parece ser essa a ideia central do
segundo volume da obra de Lucas, mostrar que o evangelho alcançou a liberdade, mesmo a
muito custo.358
De todos os textos do Novo Testamento, o livro Atos dos Apóstolos – ou
simplesmente Atos, ocupa uma posição ímpar. É o único livro que tenta apresentar uma
narrativa histórica dos tempos imediatamente seguintes à ascenção de Cristo aos céus. Esse
segundo volume da obra de Lucas retoma a narrativa onde o primeiro terminou. É de extrema
importância o estudo desta obra, uma vez que muita coisa do Novo Testamento só é
compreensível quando vista à luz do pano de fundo histórico encontrado no segundo livro de
Lucas. 359
Conforme salientamos acima, durante o estudo de Lucas fizemos algumas menções
ao Livro de Atos. Deve ter ficado evidente que o estudo do Terceiro Evangelho está
necessariamente ligado a um estudo de Atos. Que o mesmo autor escreveu ambos os livros, é
amplamente aceito. As duas obras iniciam sendo endereçadas à mesma pessoa, Teófilo (Lc
1.1-4; At 1.1). No prefácio de Atos, o autor faz referência ao primeiro volume (tratado), a
respeito da vida de Jesus. Além disso, temos a semelhança de estilo e vocabulário.
Para encerrar com o mesmo padrão que iniciamos, vamos às questões históricas.
VIII.1.1. Autoria
Mesmo sabendo que estamos diante de duas obras com uma mesma autoria, tanto
Lucas quanto Atos são anônimos, no sentido estrito da palavra. Tomando por base o prefácio
de Lucas, com o qual o autor provavelmente pretendeu introduzir tanto seu Evangelho como
Atos, nós podemos concluir que o autor foi pessoa de boa cultura. O grego de Lucas 1.1-4,
como vimos, é grego literário de bom nível. Disso resulta que não deve ter sido um dos
apóstolos ou discípulos originais de Cristo – o próprio autor escreve das coisas que “nos
transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da
palavra” – mas mesmo assim pode ser alguém que participou de alguns dos eventos que narra
– “fatos que entre nós se realizaram”. Perecebemos que o autor tem conhecimento do Antigo
358
STAGG, Frank. Atos: a luta dos cristãos por uma igreja livre e sem fronteiras. Rio de Janeiro: JUERP,
1994, p. 15.
359
HALE, Broadus David. Op Cit., p. 169.
Testamento na versão dos LXX, além de possuir um ótimo conhecimento das condições
políticas e sociais vigentes em meados do século I e tem o apóstolo Paulo em alta estima.360
Outra inferência bastante comum sobre o autor procede dos trechos que empregam o
pronome “nós” em Atos. São quatro trechos em que o autor passa da narrativa na terceira
pessoa “eles” para uma narrativa na primeira pessoa do plural (16.8-10 é a primeira delas).
Ademais, parece que o autor acompanhou Paulo até Roma e provavelmente esteve com o
apóstolo durante os dois anos em que este esteve sob prisão domiciliar em Roma. 361
Desde o segundo século afirma-se que Lucas, o médico amado (Cl 1.14) também foi
o autor de Atos. O prólogo antimarcionista de Lucas (160-180 d.C.) identifica o autor do
Evangelho como sendo Lucas, uma pessoa de Antioquia da Síria, e médico de profissão.
Além disso, adiciona que “o mesmo Lucas posteriormente escreveu os Atos dos Apóstolos”.
Do mesmo modo, o Cânon Muratori (170 d.C.) afirma que “Lucas compilou para „o mui
excelente Teófilo‟ aquelas coisas que se deram em detalhe em sua presença. Tanto Ireneu
quanto Clemente de Alexandria, de modo explítico, admitem Lucas como o autor de Atos. 362
Além dos testemunhos externos mencionados acima ainda temos Tertuliano (Adv.
Marc. 4.2) e Eusébio (H.E. 3.4; 3.24.25).363 Um pouco mais tarde também testemunham
Cosmas Indicopleustes e George Hamartolos. Jerônimo ainda acrescenta que a data da
redação deve ter ocorrido por volta do final da prisão de dois anos de Paulo.364
Não existe motivo para negar que o autor de Atos foi um companheiro de Paulo; de
igual modo o testemunho da Igreja antiga deveria ser suficiente para continuarmos afirmando
a autoria lucana.
VIII.1.2. Data
360
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 208, 209.
361
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 209.
362
STAGG, Frank. Op Cit., p. 33.
363
CARSON, Douglas. A.; MOO, D. J.; MORRIS, Leon. Op Cit., p. 210.
364
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 273.
VIII.1.4. Propósito
Precisamos admitir que, por vezes, uma obra pode abarcar uma diversidade de
propósitos. Atos talvez seja o melhor exemplo desta afirmação em O Novo Testamento. Com
certeza isso depende muito das pressuposições do leitor que, muitas vezes, podem extrapolar a
intenção do atutor. Devemos tomar cuidado com isso. Os leitores em geral enchergam em
Atos o livro da história da igreja primitiva. Devemos ter em mente novamente que se trata da
segunda parte de uma obra em dois volumes, e que, os propósitos de ambas podem estar
interligados. Na realidade, os estudiosos têm enfatizado em geral os seguintes propósitos:
apologético, teológico, didático, história dos começos do cristianismo, confirmação do
Evangelho e foco na salvação. Vejamos cada um desses propósitos ainda que de forma
resumida.
Alguns autores advogam a teoria de que Lucas pretendia defender o apostolado de
Paulo, complementando, assim, com base histórica, as defesas do próprio Paulo em tais cartas
como Gálatas e 2 Cortíntios. Além disso, muitas vezes acrescenta-se a ideia de que Lucas-
Atos tenha sido escrito como um dossiê jurídico para o primeiro julgamento de Paulo em
Roma, com o objetivo de demonstrar que o apóstolo não se envolvera com atividades anti-
romanas, uma vez que esta seria a principal acusação a ser levantada contra ele pelos seus
compatriotas judeus. 366
Veja na tabela abaixo as comparações que podem ser feitas entre o ministério
apostólico de Pedro e de Paulo.367
Quanto ao propósito teológico, não resta dúvida de que uma obra do Novo
Testamento o tenha. Mas aqui se defende a ideia de que a afirmação teológica primária que
Lucas tentava fazer através de sua obra em dois volumes era a continuidade do Reino de Deus
no livro de Atos. De fato, o segundo volume começa com uma pergunta escatológica (1.6) e
365
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 287.
366
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Op Cit., p. 188.
367
Idem, p. 188.
encerra com terminologia escatológica (28.31). Afirma-se, portanto, que Lucas pretendia
explicar o relacionamento entre a Igreja e o Reino de Deus, ou seja, como a mensagem do
Reino soberanamente passara de um fenômeno principalmente judaico para um movimento
principalmente gentílico, com seu centro passando de Jerusalém para Roma. 368
Lucas, ao mencionar “o primeiro tratado” que compôs, referiu-se a esse propósito
declarado em seu Evangelho, isto é, apresentar um relato preciso e sistemático do
desenvolvimento do cristianismo. No Evangelho, ele narra as palavras e as obras de Jesus
Cristo, e em Atos, ele narra a obra do Cristo Ressurreto levada a cabo por meio dos Seus
apóstolos e discípulos. A intenção do evangelista era que Teófilo e outros leitores
conhecessem plenamente as coisas em que foram instruídos. Lucas escreve tendo em vistas o
fortalecimento e a edificação.369
Lucas parece que procurava escrever a história dos começos do cristianismo em
amplo sentido. O evangelista reúne juntamente a história de Jesus Cristo e a história da Igreja
primitiva. Além disso, ele considera que essas duas obras juntas formam a narrativa da
fundação da Igreja. Ele quer explicar como tiveram início as boas-novas, e como elas se
espalharam ao ponto de abarcar o mundo mediterrâneo, desde Jerusalém até Roma. 370
Lucas-Atos pode ser considerada uma obra evangelística que proclama aos seus
leitores a universalidade da salvação em Cristo Jesus. Ele demonstra que o evangelho tinha
em mira os gentios também, e não apenas os judeus. Ele evidencia que o que ocorreu na Igreja
primitiva estava em plena conformidade com as profecias (Lc 24.47; At 1.4-5, 20; 2.16-21;
3.24; 13.40-41, 47; 15.15-18; 28.25-28).371
Se quisermos adotar os diversos conceitos apresentados acima, temos de rejeitar a
ideia de que o Livro de Atos tenha sido redigido para providenciar algum tipo de apologética
política em prol do cristianismo ou mesmo de Paulo. Não queremos negar o interesse
apologético, mas de colocá-lo, contudo, como um alvo subordinado em comparação com o
tema principal da apresentação do fundamento histórico da fé cristã. 372
Nos diversos manuscritos que chegaram até nós, as denominações mais comuns
possuem as seguintes variantes.373
PRAXEIS ¥ 1175 pc
368
Idem, p. 189.
369
Idem, p. 190.
370
MARSHAL, I. H. Atos: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1991, p. 17.
371
MARSHAL, I. H. Op Cit., p. 18.
372
Idem, p. 19, 20.
373
MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 272.
PRAXEIS APOSTOLWN B Y pc
PRAXIS APOSTOLWN D
ai praxeij twn apostolwn 323s.945 al
ai praxeij twn agiwn apostolwn 1505.1739s
praxeij twn agiwn apostolwn 453. 1884 pm
arch sun qew ai praxeij twn apostolwn 1241
Louka euaggelistou praxeij twn agiwn apostolwn
3. 189. 1891.2344 al
praxeij twn agiwn apostolwn suggrafeis para tou apostolou kai euaggelistou
Louka 614
praxeij twn agiwn apostolwn suggrafeis para tou agiou Louka tou apostolou
kai euaggelistou 1704
Conforme podemos observar, exceto alguns manuscritos tardios, não consta nenhum
nome de autor no título, “não porque se estivesse incerto quanto ao autor, mas porque o tíeulo
deve ser de uma época em que o evangelho de Lucas e Atos ainda eram transmitidos como
uma só obra dupla”. 374
Ainda que o título não seja preciso, uma vez que o livro se concentra nas atividades
de apenas dois dentre treze indivíduos reconhecidos como apóstolos, Pedro e Paulo, e dedica
porções consideráveis a não-apóstolos, como Estêvão e Filipe, o título é perfeitamente
aceitável, visto que os apóstolos foram os instrumentos através dos quais Jesus Cristo deu
prosseguimento na difusão da mensagem do Reino de Deus.375
O texto alexandrino é representado principalmente pelos papiros î45 (s. III), î74 (s.
VII) e pelos manuscritos Sinaítico (¥), Vaticano (B), Alexandrino 9ª), Ephraemi Rescriptus
(C) e outros. Trata-se de um texto breve que costuma ser considerado autêntico até mesmo
pela maioria dos críticos. O texto ocidental, a seu turno, é representado pelos papiros î38 (s.
IV), î48 (s. III) e especialmente pelo manuscrito Codex Bezae Cantabrigiensis (D), além da
Vetus Latina (s. II/IV). Possui um texto quase 1/10 mais amplo que o anterior, com
aproximadamente 400 adições nas quais atenua as dificuldades, corrige as inexatidões,
oferece detalhes pitorescos, inclusive textos litúrgicos. A linguagem, por vezes, é vulgar e
possui diversos semitismos; as citações bíblicas são tomadas de um texto bastante diferente da
LXX; teologicamente ressalta as figuras de Pedro e Paulo e, pelo contrário, apresenta de
forma negativa o povo judeu. É um texto bem difundido tanto no oriente quanto no ocidente,
remonta a meados do século II e parece ser tão antigo como o anterior. Atualmente, as edições
críticas dos manuais reproduzem o texto alexandrino e suprimem como não autênticos 8.37;
15.34; 24.6b-8a; 28.29.376
374
W. Michaelis, p. 129, apud MAUERHOFER, Erich. Op Cit., p. 272.
375
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Op Cit., p. 179.
376
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 283, 284.
emprega 2.036 palavras de um total de 18.374 usos, das quais 942 são hápax legomena; a
proporção entre vocabulário e total dos usos é de 9,01, quase igual à do Evangelho, uma boa
proporção numa obra literária. 377
As metáforas são frequentes, o estilo direto, os discursos, os sumários e os coros. O
texto oferece elementos psicológicos que evocam com maestria a presença do divino: além da
apresentação da transfiguração de Jesus (9.28), o rosto de Estêvão parece o de um anjo ao ver
a glória de Jesus (At 6.15, 56). Quanto à composição mesma, ele une os materiais
estreitamente, formando um todo coerente, mas evita formar blocos ininterruptos de
demasiado grandes, cuja leitura cansaria o leitor. Com objetivo de apresentar a sua história
como plano salvador de Deus, ele une acontecimentos com as categorias de promessa
(anúncio, pregação, projeto) e cumprimento (cf. citações do Antigo Testamento) (At 2.17-
21).378
Os resumos redacionais ajudam a descobrir as diversas etapas da narrativa, conforme
a intenção do autor. At 1.1-2 resume-o em fazer e ensinar, marcado entre um “começo” e a
subida de Cristo ao céu; At 1.8 explicita-se o campo do testemunho, concretizando-se em
Jerusalém, Judeia, Samaria e até os confins da terra. Em 14.27 apresenta o sentido desse
itinerário afirmando que a salvação também foi dada aos gentios, sugerindo assim duas
grandes partes: judeus e gentios.379
Observamos que, até o final da obra, o texto está muito bem travado por uma
sequência geográfica sem solução de continuidade, na qual os acontecimentos vão sendro
entrelaçados a partir da atividade missionária do apóstolo Paulo, livre, até a sua chegada em
Roma, aprisionado.381
Ainda pensando que Lucas serviu a Paulo como seu fiel companheiro, seus escritos
parecem não ser dependentes das epístolas que o apóstolo enviou para várias igrejas e
377
Idem, p. 289.
378
Idem, p. 292.
379
Idem, p. 294, 295.
380
BROWN, Raymond E. Introducción al Nuevo Testamento I: cuestiones preliminares, evangelios y obras
conexas. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 378.
381
MONASTERIO, Rafael Aguirre; CARMONA, Antonio Rodriguez. Op Cit., p. 298.
pessoas. Quando Lucas escreveu Atos, Paulo já havia escrito muitas de suas cartas. Contudo,
em Atos, o propósito de Lucas parece ser escrever tanto como historiador quanto como
teólogo. Encontramos diversos aspectos da teologia que podemos dizer ser propriamente
lucana. 382
Já vimos um aceno à teologia da obra de Lucas quando analisamos o seu Evangelho.
Tudo o que foi dito acima vale também para o segundo volume da obra. Aproveitaremos o
espaço aqui para ressaltar melhor alguns pontos de interesse teológico.
Como vimos quanto aos propósitos, o livro de Atos quer fornecer um esboço da
história da Igreja desde seus primeiros dias, em Jerusalém, até a chegada de seu maior
personagem – Paulo – na principal cidade do Império Romano. Assim, teologicamente, Lucas
quer demonstrar como isso aconteceu através da atuação do Espírito Santo na vida dos
primeiros discípulos. Antes é claro, é vejamos a importância da ressurreição de Cristo nesta
obra lucana.
O Espírito Santo é quem conduz a ação da comunidade cristã nos Atos dos
Apóstolos, guia os apóstolos enviados e irradia a Palavra de Deus de “Jerusalém até Roma”.
382
KISTEMAKER, Simon J. Exposicion de los Hechos de los Apóstoles. Espanha: Libros Desafío, 2001, p. 25.
383
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 454.
384
LADD, George Eldon. Op Cit., p. 455.
385
Idem, p. 456.
Por 52 vezes o Espírito é mencionado como condutor da ação nos Atos dos Apóstolos. Aqui o
Espírito é “o grande personagem”. Na primeira parte de Atos (At 1.1-15.35), o Espírito Santo
é mencionado 19 vezes, enquanto na segunda parte (At 15.36-28.31) aparecem 11 referências.
A vida da Igreja foi dirigida por Deus em etapas cruciais. Às vezes o Espírito dirigia
a Igreja naquilo que deveria fazer (13.2; 15.28; 16.16). Em outras ocasiões, anjos falavam a
missionários cristãos (5.19-20; 8.26; 27.23), ou vieram mensagens através dos profetas
(11.28; 20.11-12). Em algumas ocasiões, o próprio Senhor aparecia aos Seus servos (18.9;
23.11).386
VIII.3.4. Os marginalizados
386
MARSHAL, I. H. Op Cit., p. 23.
modo do marido. Safira acabou sendo conivente e coautora da traição feita à comunidade e
consequente traição ao Espírito Santo.388
Na tradicional “instituição da diaconia” (At 6.1-7), viúvas helênicas, pobres e
estrangeiras, aparecem reagindo contra a discriminação (At 6.1s). Lucas não diz que todas as
viúvas estavam sendo relegadas na assistência social, mas apenas as viúvas de origem grega.
Outra mulher que exerceu liderança libertadora nas primeiras comunidades cristãs foi Tabita
(At 9.36-43). Maria, a mãe de João Marcos (At 12.12-17) aparece como ponto de referência
para uma igreja, uma reunião da comunidade. Além disso, temos a escrava Rode (At 12.12-
17), Lídia (At 16.13-15-40) – líder de comunidade, Priscila (At 18.18,26-27), as quatro filhas
de Filipe, que eram profetisas (At 21.9).389
VIII.3.5. A Igreja
Segundo os Atos dos Apóstolos, uma das colunas mestras que sustentava a vida das
primeiras comunidades cristãs era a oração. Oravam juntos (12.12) e cultivavam um novo
387
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 34, 35.
388
MORRIS, Leon L. Op Cit., p. 39, 40.
389
Ibidem.
390
ZUCK, Roy B. Op Cit., p. 155.
391
LADD, George Eldon. Op Cit., pp. 488-502.
ambiente na vida em comum. Perseveravam na oração (1.14; 2.42; 6.4; 10.2) nas casas, no
Templo (3.1), às margens do rio (16.13), na praia (21.5) etc. Pela oração criava-se intimidade
com o Espírito Santo (4.31; 8.15; 10.30; 22.17) e consagravam-se líderes na comunidade a
serviço da Palavra e da assistência social (6.6; 9.11). Os visitantes também entravam no clima
da oração (16.13). Pela oração, os seguidores de Jesus permaneciam unidos entre si e a Deus
(5.12b), fortaleciam-se nas tribulações (4.23-31) e faziam discernimento crítico e criativo
(1.24; 13.3).
As orações eram libertadoras (28.8) e acolhidas por Deus (10.4,31). A comunidade
orava pelos que tinham sido presos na perseguição (12.5) e, muitas vezes, jejuava enquanto
orava (e vice-versa). Fazia como Jesus, que, pela oração, enfrentava as tentações (Mc 14.32;
At 8.24; 16.25).392
392
MARSHAL, I. H. Op Cit., p. 30.
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