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ÁGORA Revista Eletrônica

Ano VIII nº 16 Jun/2013 ISSN 1809 4589 P. 31 – 42

NATUREZA E ANARQ UIA: ASPECTO S ENTRE NATUREZA E HISTÓ RIA


NA FILO SO FIA PO LÍTICA ANARQ UISTA DE PRO UDHO N E KRO PO TKIN

1
Munís Pedro Alves

Resumo
O presente texto pretende estabelecer um diálogo através das relações discursivas
entre Natureza e História na filosofia política anarquista. Seguindo o recorte temático
proposto, nosso estudo se deterá na descrição e na tentativa de com preensão de reflexões
feitas por dois autores específicos: Pierre-Joseph Proudhon e Piotr Kropotkin. Inicialmente,
farem os um a explanação circunstancial sobre o anarquism o, passando posteriormente às
considerações dos autores em torno do debate entre Natureza e História e seus contrapontos às
filosofias de Rousseau e Hobbes. Por últim o, buscaremos tecer breves apontam entos para a
contemporaneidade das disciplinas de Filosofia e História.

Palavras-chave: Natureza. História. Anarquism o. Filosofia.

Introdução

Embora não seja a pretensão principal deste trabalho, acreditam os ser necessária uma
sucinta abordagem descritiva da filosofia política anarquista, para situá-la historicam ente e
compreender m inim am ente as especificidades teóricas e as divergências internas entre os
autores.
Por conta das disputas internas sobre a legitimidade, a originalidade e a plausibilidade
do anarquism o, existe uma gama de pesquisadores que prefere usar o term o “anarquism os”
para designar a pluralidade do conjunto de pensamentos e de práticas políticas que às vezes
são divergentes e antagônicas entre si. Entretanto, podem os afirmar que o principal lim iar do
anarquism o moderno despontou com o filósofo francês Proudhon no livro O que é a
propriedade?, de 1840. Neste livro, dentre tantos outros enunciados importantes, Proudhon
1
Mestrando do curso de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal de Uberlândia, integrante do
Núcleo de Pesquisa em História Política e Imaginário (NEPHISPO/UFU) e bolsista pelo CNPq. Endereço
eletrônico: pedro.munhoz@hotmail.co m

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assum iu-se anarquista pela prim eira vez. Nesta época, a palavra anarquia era utilizada como
arma de ataque nos debates políticos e seu significado estava relativo à desordem e ao caos
(PRÉPOSIET, 2007, p. 89). Em defesa da anarquia, Proudhon travou uma batalha sem ântica
contra as práticas discursivas do período, quando disse que a anarquia significava a ordem e
não a desordem. Para o filósofo francês, a anarquia era a organização das coisas e dos seres no
m undo sem necessidade de autoridade externa, que pelo contrário, era a causa dos problem as
2
e da desorganização social que vigorava em sua época.
Proudhon, no livro seminal do anarquism o, em favor de sua proposta social
m utualista, fez questão de contrapor os projetos políticos tanto do liberalismo quanto do
comunism o, os quais ele acreditava ser respectivam ente a expressão da propriedade e da
autoridade que causavam m iséria e opressão. Bakunin foi o continuador reconhecido da obra
de Proudhon, m esm o tendo alterado significativam ente alguns postulados do francês. Por
volta de 1870, na Associação Internacional dos Trabalhadores, Bakunin foi a figura m ais
destacada no grupo que se intitulava coletivista-anarquista que se opunha às teses
consideradas autoritárias do socialismo marxista (JOLL, 1977, p. 95).
Após o fim da Primeira Internacional e a morte de Bakunin, Kropotkin e outros
retom arão e modificarão as teses anarquistas herdadas de Proudhon e Bakunin. Nos finais do
século 19, o russo Kropotkin se torna a figura m ais conhecida na representação do chamado
anarquism o-comunista, empenhando-se em várias campanhas em favor da propaganda deste
projeto filosófico social. É verdade que existem outras inúmeras vertentes dentro do
anarquism o, sobretudo a partir do início do século 20, porém nosso interesse neste trabalho é
focar na filosofia de Proudhon e de Kropotkin, especialmente na importância da natureza à
história da anarquia.

Proudhon em defesa da natureza humana

No livro O que é a propriedade?, o filósofo francês recorre a uma hipotética história


primitiva (assim como o “estado de natureza” na filosofia política de Hobbes ou Rousseau)
para elucidar seu leitor acerca do m odo como foi instituída a autoridade política de uns sobre
os outros. De acordo com Proudhon (1975, p. 235), pelo hábito e por um a questão de respeito

2
Para maiores detalhes sobre a “ ressignificação” de anarquia empreendida por Proudhon ver: ALVES, 2013.

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à experiência, o mais velho do grupo quase sempre era reconhecido com o líder e, conform e o
grupo aumentava, sua autoridade ficava ainda maior. Entretanto, por conta da pressão imposta
pela autoridade às individualidades humanas pertencentes a esta coletividade, num caso ou
noutro, aconteceram revoltas a partir das quais os mais jovens destronaram os líderes antigos,
no entanto, paulatinamente o hábito substituía novam ente a força. Com o passar do tempo, a
disputa pela autoridade foi se tornando mais complexa, sobretudo a partir de sua relação direta
3
com a religião.
Proudhon adverte que a religião, conjuntamente com a invenção do pecado original,
serviu para que o homem desconfiasse de sua natureza. Deste modo, por tem er seu gênio inato
para o m al, o homem crê na necessidade da constituição da autoridade de uns sobre os outros
para manter a estabilidade pacífica da sociedade. Existe neste aspecto do pensamento
proudhoniano, um diálogo e, acima de tudo, uma crítica voraz à filosofia política hobbesiana,
que de acordo também com outros anarquistas, foi desenvolvida para justificar a criação do
Estado m oderno.
Tanto a crença da necessidade do Estado quanto da autoridade baseada em Deus ou no
direito divino são constituições de um mesmo preconceito, segundo Proudhon. No entanto, o
autor coloca que este preconceito será facilm ente abolido através do uso da razão através da
observação da natureza. Pois, a razão desenvolvida através do processo evolutivo da ciência, é
o instrum ento necessário para que os hom ens enxerguem que a m elhor escolha para a
organização social é a anarquia.
É necessário considerar que a noção de história para Proudhon está ligada a um lento
progresso de evolução, às vezes acom panhada de processos abruptos chamados de revolução.
Contudo, diferentem ente de outros pensadores anarquistas, Proudhon (1975, p.12) não
defende a revolução pela força e imposição, pois considera que para a sociedade se
desenvolver é preciso que todos desejem espontaneamente de livre acordo. Destarte, pode-se
dizer então que a razão e a ciência encontram-se no ápice desta evolução histórica, “e esta
ciência envolve conjuntamente o homem e a natureza”.
A relação entre natureza e história pode ser vista a partir da própria concepção do
conceito de anarquia, da maneira como Proudhon a concebeu. Pois, a autoridade, como

3
Para Proudhon a questão do poder na realeza tem um vínculo direto com o direito divino. Pois, assim que se
começou a atribuir a responsabilidade de liderança ao mérito e à força, foi entendido que essas tais qualidades
eram dádivas de Deus àqueles mais preparados para governar, a partir de então o mais velho do grupo teve de lhe
ceder o lugar na chefia e deu início ao despotismo (1975, p. 236).

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produto da propriedade e da realeza, está em decadência desde os prim órdios da história do


m undo e encontrará seu fim a partir do m om ento que em que todos descobrirem e se
convencerem de que a autoridade do hom em sobre o homem é inversa ao desenvolvimento
intelectual ao qual a sociedade chegou. O autor conclui que a duração provável dessa
autoridade pode ser calculada pelo desejo mais ou menos geral de um governo verdadeiro,
quer dizer, de um governo segundo a ciência. Da mesma maneira que a natureza do hom em
procura a justiça na igualdade, a natureza da sociedade procura a ordem na anarquia
(PROUDHON, 1975, p. 238).
Os postulados do autor nos possibilitam aferir que ao longo da história a autoridade se
constituiu como um em pecilho para a harmonia na organização social entre os hom ens e que,
então agora, com o uso da razão para observar cientificam ente como se deu este processo
histórico, o hom em concluirá que a anarquia é a condição propícia para seu desenvolvimento
4
natural, a qual durante m uito tempo lutou-se inconscientem ente em seu favor.
É possível nessa altura do texto estabelecer um contraponto com um a reflexão teórica
de outra corrente. Rousseau ficou conhecido com o o filósofo político defensor da natureza
boa do homem, quando este se encontrava num a priori social hipotético (o bom-selvagem).
Porém , a sociedade corrom peria sua bondade, sendo necessário, portanto, recursos externos
educativos que o encam inhasse para o cam inho do bem (FLORESTA, 1999, p. 143-4). Além
disso, Rousseau vê com bons olhos a “alienação” da vontade individual pela “vontade geral”
que seria resultado correlato do bem comum . Entretanto, Proudhon discorda de Rousseau
neste último ponto, e vai além pela defesa da natureza humana com o base de um corpo social
harm ônico. Ele diz o seguinte:

Nem a hereditariedade, nem a eleição, nem o sufrágio universal, nem a excelência


do soberano, nem a consagração da religião e do tempo fazem a realeza legítima.
Sob qualquer forma que se apresente monárquica, oligárquica, democrática, a
realeza ou o governo do homem pelo homem, é ilegal e absurdo (PROUDHON,
1975, p. 237).

4
“ Anarquia, ausência de mestre e soberano, tal é a forma de governo de que todos os dias nós nos aproximamos
e que o hábito inveterado de tomar o homem por regra e sua vontade por lei nos faz olhar como o cúmulo da
desordem e a expressão do caos” (PROUDHON, 1975, p. 239). Como podemos notar nesta citação, Proudhon
compreende a ordem instituída pela autoridade como a constituição da desordem, sendo o inverso da ordem
natural pela anarquia.

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Proudhon advoga em favor da liberdade negativa, no sentido de ausência de


intervenção sobre o indivíduo e de intermediários nas relações políticas, pois as vontades
nunca podem ser representadas, elas devem ser exprimidas pelos próprios cidadãos
(PROUDHON, 2008, p. 88-94). A filosofia proudhoniana é um a defesa radical da natureza
humana, pois acredita que a autoridade e a coerção são elem entos que a arruínam , e sem as
5
quais, o desenvolvim ento dos seres humanos se daria de m aneira espontânea e plena. No
anarquism o de Proudhon, o qual ele cham a de m utualismo neste livro, haverá igualdade de
condições sociais e os hom ens poderão exercer livremente suas faculdades naturais. O auxílio
ao próximo não será m ais um a obrigação como no autoritarism o com unista, fechado sob o
m ito da “vontade geral”, m as o homem o fará por puro sentimento social de fraternidade e de
simpatia. A propriedade do capitalism o será substituída pela posse, ou seja, pelo uso daquele
que trabalha, e as trocas serão feitas por com unicação e reciprocidade, não mais por lucro e
vantagem sobre o outro. Os m embros da sociedade se ajudarão m utuamente por sim ples gosto
e am or espontâneo de uns pelos outros. Podem os dizer que este é o fim da História a partir da
natureza social do homem quando não mediada por autoridade, segundo Proudhon.
Sem dúvida tal exposto nos apresenta como um otimismo rom ântico do autor, m as não
será isso que a hum anidade mais carece atualmente, ou seja, acreditar-se em si mesma e em
sua capacidade de reverter à situação política contem porânea que parece tão adversa e
apocalíptica? Acreditam os, inclusive, que o incomodo causado pelas proposições de
Proudhon é provocado justam ente pelo choque com nossa desesperança contemporânea.
Então, que o antagonismo das duas nos proponha um m om ento de transformação subsidiada
pela reflexão. Passarem os agora a analisar alguns aspectos da filosofia de outro autor
anarquista, Piotr Kropotkin.

Kropotkin e a ciência da solidariedade natural entre os seres vivos

O russo Kropotkin, além de filósofo anarquista, foi geografo e etnólogo. Notadamente


inspirado pelo positivismo científico de sua época, além de escrever diversos textos
panfletários, também produziu obras teóricas importantes e apresentou conferências e

5
Na visão naturalista de Proudhon “homem e natureza estão intrinsecamente ligados, não havendo oposição
entre eles. Pelo contrário, o homem é visto como parte integrante da natureza e só se realiza em fusão com ela
[...]. O homem possui todas as qualidades que o tornam um ser capaz de viver em harmonia e liberdade, sem
necessidade de contrato para regulamentar e constranger suas relações” (FLORESTA, 1999, p. 142).

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palestras sobre literatura russa. Em vida, sua produção escrita sobre anarquism o se estendeu
de meados da década de 1870 até sua m orte em 1921.
As ideias políticas de Kropotkin são um pouco diferentes das de Proudhon. Enquanto
o último é defensor da posse individual sobre os meios de produção e da transação comercial
como comunicação entre os homens, trocando um produto por outro de valor igual, o primeiro
acredita que no ideal final da sociedade anarquista deverá haver a distribuição livre dos
produtos de consumo e a abolição de qualquer tipo de propriedade ou de posse sobre os meios
6
de produção. O russo afirm a que a anarquia é, portanto, sinônima de com unismo. Mas não
significa que seja um com unismo autoritário e centralista que pretende tom ar o Estado e
instaurar um suposto governo revolucionário até a dissolução completa das classes sociais.7 A
completa supressão do Estado e de qualquer tipo de governo político representativo se dará
assim que a revolução, com o necessidade histórica de transformação social, estiver concluída.
Entretanto, do mesmo modo com o Proudhon, Kropotkin acredita que a sociedade
procura naturalm ente ou instintivamente a ordem social na anarquia, que é sinônima de
ausência de coerção e de autoridade externa, com o também , expressão da presença de
solidariedade e cooperação entre os mem bros do coletivo. Para o autor, a anarquia não é
somente um princípio filosófico, m as tam bém a visão dinâm ica e com pleta dos fatos sociais
do processo histórico da hum anidade, que exprime as verdadeiras causas do seu progresso.
Sobre sua compreensão da anarquia, ele diz o seguinte:

A ideia anarquista teve de combater todos os preconceitos sociais, impregnar-se a


fundo de todos os conhecimentos humanos a fim de poder demonstrar que suas
concepções condiziam com a natureza fisiológica e psicológica do homem, e
observavam as leis naturais, enquanto a organização atual estava estabelecida contra
toda lógica, o que faz com que nossas sociedade sejam instáveis, transtornadas por
revoluções que são, elas próprias, ocasionadas pelos ódios acumulados daqueles que
são esmigalhados por instituições arbitrárias (KROPOTKIN, 2007, p. 70).

6
A máxima “ de cada um segundo suas capacidades e a cada um segundo suas necessidades” criada pelos
socialistas, entre o final do século 18 e início do século 19, recebeu a crítica de Proudhon, que entendia que
comunidade não sabia o quanto cada indivíduo poderia trabalhar e consumir, sendo impossível uma lei ou uma
autoridade (individual ou coletiva) neutra que fosse justa. Por outro lado, Kropotkin retoma e defende essa
máxima, acreditando que o próprio indivíduo terá consciência e responsabilidade sobre o quanto pode trabalhar
para a sociedade libertária e o quanto necessita consumir.
7
Respondendo aos comunistas marxistas, Kropotkin diz que o governo revolucionário é um contrassenso, pois
todos os governos, sejam de um indivíduo ou de um grupo são despóticos e autoritários, não combinam com
revolução, no máximo querem fazer um remendo da concepção burguesa de sociedade. Assim que toma o poder
político o grupo ou o partido deixa de ser revolucionário para ser reacionário e conter através da força tudo
aquilo que vai contra seus interesses particulares (KROPOTKIN, 2005, p. 185-188).

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Assim , a busca da sociedade anarquista seria, como para Proudhon, a assistência às


necessidades naturais dos seres hum anos, que são integrados num organism o social ordenado.
Todavia, apesar de estável, a sociedade no anarquismo não seria imutável, pelo contrário, sua
flexibilidade, reajustamento e m udança atenderiam o equilíbrio de m últiplas forças e
influências conform e o conjunto da vida orgânica, de maneira natural, sem que nenhuma
dessas forças atuantes recebesse a proteção do poder estatal (KROPOTKIN, 1987, p. 20).
Essa proposição é bastante im portante para o autor, pois ela é básica para assegurar que no
anarquism o com unista haverá o pleno desenvolvim ento da individualidade de todos, tendo em
vista que é pelo grau de sociabilidade e pela exiguidade de intervenção coercitiva que o
indivíduo demonstra plenam ente suas qualidades.
A espontaneidade individual que luta contra o autoritarism o em favor de sua completa
libertação é descrita desde os prim eiros relatos da História hum ana. Kropotkin adverte que
todas as revoltas na antiguidade e no m edievo expressam a luta histórica pela anarquia (1987,
p. 23). Mas, nem só de revolta vive o princípio histórico do anarquismo. O prim eiro momento
é sim de negação e de força contra o autoritarismo, porém existe determ inado aspecto ligado à
afirm ação da vida e da sobrevivência social que constitui tam bém um exercício anarquista
(com unista): o instinto natural de ajuda mútua entre os seres vivos.
Para dar conta da compreensão desse princípio básico de com unidade e da tentativa de
comprová-lo em piricam ente, Kropotkin escreveu, em 1902, um a obra teórica bastante
interessante (Ajuda m útua: um fator de evolução) onde o autor passa a observar o
comportamento das espécies anim ais desde os menores seres vivos até os homens nas
sociedades primitivas, m edievais e modernas. O russo vai contra as teses dos darwinistas que
afirm avam que a competição é o principal fator de evolução das espécies e, por tabela, contra
Hobbes que (segundo sua leitura) defendeu a necessidade do contrato social instaurador do
8
Estado baseado na justificativa da natureza im inentem ente perversa do homem em sociedade.

8
Kropotkin condena as visões pessimistas da humanidade, as caracterizando como superficiais e insuficientes. O
autor escreve o seguinte: “ Essa foi a posição adotada por Hobbes. Embora alguns de seus seguidores do século
18 tenha se empenhado em provar que, em nenhuma época de sua existência – nem mesmo na mais primitiva –,
a humanidade viveu num estado de guerra perpétua, que os seres humanos foram sociáveis mesmo no ‘estado de
natureza’ e que foi a falta de conhecimento, e não a má índole natural humana, a responsável por levá-los a
todos os horrores da história [...]. Mas a filosofia hobbesiana ainda tem muitos admiradores; e ultimamente
surgiu uma tendência que, adotando a terminologia de Darwin, e não suas ideias principais, construiu um
argumento em favor da visão de Hobbes sobre o homem primitivo e conseguiu até mesmo dar-lhe uma aparência
científica” (KROPOTKIN, 2009, p. 73). O autor se dirige especificamente a Thomas Henry Huxley e também a
Herbert Spencer, defensores de uma tendência chamada de “ darwinismo social”.

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De acordo com o anarquista, o fator determinante para a m anutenção das espécies e também
da vida em comunidade é a cooperação. Neste sentido, ele lutará contra as teses que
defendiam a natureza competitiva do homem:

[...] quando as relações entre o darwinismo e a sociologia me chamaram a atenção,


não pude concordar com nenhuma das obras e panfletos escritos sobre esse tema tão
importante. Todos eles tentavam provas que os seres humanos, devido à
superioridade de sua inteligência e de seus conhecimentos, podiam mitigar entre si a
dureza da luta pela vida. Mas, ao mesmo tempo, todos eles concordavam que a luta
pelos meios de subsistência, a luta de todo animal contra seus semelhantes, e de cada
ser humano contra todos os outros, era uma “ lei da Natureza”. Eu não podia aceitar
esse ponto de visa, porque estava convencido de que admitir uma implacável guerra
interna pela vida no seio de cada espécie – e ver nessa guerra uma condição de
progresso – era admitir algo que não só não havia sido provado, como também não
fora confirmado pela observação direta (KROPOTKIN, 2009, p. 12; grifos do
autor).

Enquanto para Proudhon, o sentim ento humano de sim patia e de equidade é gerado
pela sociabilidade, ou seja, é algo cultural quando lhe é espontaneam ente apresentado às
condições de seu desenvolvim ento cognitivo através da anarquia, para Kropotkin, a
solidariedade e a cooperação é da natureza do hom em em favor de sua própria sobrevivência,
independentemente das condições sociais.
Em torno deste enunciado, Kropotkin, em vez de construir um estado de natureza
hipotético do hom em, empreendeu a observação e a descrição do comportamento de
“sociedades tribais” para dem onstrar a cooperação nas form as sociais conhecidas como
primitivas para os pesquisadores da época. Em diversos pontos do globo terrestre são
conhecidos povos (com o os bosquímanos e os hotentotes africanos, os esquimós e os aleutas
nas regiões de frio intenso, os papuas na Indonésia e os daiaques na Oceania) que mesmo
numa vida rudim entar buscaram a sobrevivência no apoio mútuo. Inclusive, era raro nessas
sociedades, segundo Kropotkin, existir um a chefia suprema ou haver a constituição de um
corpo estrutural que se parecesse com nosso Estado. Geralmente, quando existiam, as
lideranças apenas expressavam os costumes dos mem bros do grupo. Contudo, o interesse do
autor em fazer este estudo não foi para dizer de onde partim os e para onde devem os voltar,
m as para m ostrar que a cooperação é o fator de evolução que manteve os diferentes grupos

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humanos vivos durante tanto tempo. Assim, ele descreverá igualm ente nas sociedades
m odernas o mesmo fator evolutivo.
Para Kropotkin, não há, absolutamente, nenhum instinto que desencadeia batalhas
sangrentas entre os membros de uma determ inada comunidade. As guerras são concatenadas
pelos líderes políticos e intelectuais que manipulam os participantes dos exércitos, enquanto o
povo não toma parte em nada. Aliás, diante das desgraças em batalhas históricas, muitas
pessoas, com o enfermeiros e cidadãos com uns, ajudaram os chamados “inimigos de sua
nação”, socorrendo-os, sem fazer distinção entre um e outro (KROPOTKIN, 2009, p. 7). O
autor não acredita que estes fatos sejam a generosidade cultural hum ana, diante do infortúnio
dos outros, porém o instinto de sobrevivência da espécie em atuação:

Não é o amor por meu vizinho – que muitas vezes nem conheço – que me induz a
pegar um balde de água e correr em direção a sua casa quando vejo pegando fogo; é
um sentimento ou instinto muito mais amplo de solidariedade humana que me
mobiliza. O mesmo acontece com os animais. Não é o amor, nem mesmo simpatia
(compreendida em seu sentido literal), o que leva um rebanho de ruminantes ou de
cavalos a fazer um círculo a fim de resistir ao ataque dos lobos; ou lobos a formar
uma alcateia para caçar; ou gatinhos ou cordeiros a brincar; ou os filhotes de uma
dezena de espécies de aves a passarem os dias juntos no outono. [...] É um
sentimento infinitamente mais amplo que o amor ou a simpatia pessoal – é um
instinto que vem se desenvolvendo lentamente entre os animais e entre seres
humanos no decorrer de uma evolução extremamente longa e que ensinou a força
que podem adquirir com a prática da ajuda e do apoio mútuos, bem como os
prazeres que lhe são possibilitados pela vida social (KROPOTKIN, 2009, p. 14;
grifos nossos).

É im portante salientar que com um ente diversos autores e historiadores do anarquismo


buscaram o germe da anarquia nas filosofias, nas revoltas e nos movimentos sociais m ais
10
antigos ao longo de todo curso da História humana escrita. Contudo, da m aneira

9
Pois, apesar do surgimento no século 20 de uma determinada vertente primitivista no anarquismo, que ataca a
civilização moderna e prega a volta às “ origens”, a proposta de Kropotkin não é essa. Muito pelo contrário, em
outros escritos ele diz que a observação das chamadas sociedades “ selvagens” era apenas para mostrar o apoio
mútuo em diversos âmbitos de organização social. O russo defende que “ o homem não é um ser que possa viver
exclusivamente para comer, beber e procurar abrigo”. Então, assim que tiver conseguido realizar essas
necessidades sua vida buscará a sofisticação e o luxo. A busca pela revolução social é em primeiro lugar para
assegurar o pão a todos, contudo, não sendo mais explorado no trabalho e tendo o pão assegurado, o homem
disponibilizará de tempo necessário para promover seus dotes artísticos, suas capacidades intelectuais e
científicas (KROPOTKIN, 1953, p. 44-46).
10
Max Nettlau, por exemplo, um reconhecido historiador anarquista do começo do século 20, procura em suas
análises uma determinada essência da anarquia desde a filosofia de Zenão, outros ainda veem no roubo do fogo
por Prometeu (para dar aos homens) na mitologia grega como a primeira tendência de revolta “ anarquista”.
Nettlau (2008) assegura que as revoltas no passado e as filosofias antiautoritário, no entanto, não tinha a
completa consciência da ideia anarquista, pois logo que conseguiam seus objetivos voltavam a impor novas

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empreendida por Kropotkin nenhum outro autor o fez tão bem, pois o russo não se reduziu a
pensar o com portamento humano em sua cultura social, m as procurou com provar
cientificamente, ao seu modo, com o o princípio da anarquia e da cooperação está presente na
natureza de todos os animais e tem atuado por toda a história no convívio com os mesmos de
sua espécie. Desta maneira, o comunism o anarquista de Kropotkin, não é uma proposta
política inovadora que pretende manipular metodicam ente as estruturas da organização
societária, porém é som ente a adequação à natureza humana e social. Em última instância, é a
defesa de uma sociedade que formará agrupam entos espontâneos de baixo para cima de
acordo com seus hábitos sociais e naturais, agora intrínsecos.

C onsiderações finais

Obviamente, é necessário considerar que os postulados de Proudhon e de Kropotkin


são produtos de um discurso ideologicamente conduzido, em favor de suas bandeiras
políticas. Entretanto, qual discurso não é ideológico? Foucault (2010) afirma que todos o são,
até m esm os os científicos e historiográficos. A im portância das proposições expostas por
estes dois pensadores está justamente no desafio de pensarmos o quanto algumas verdades
“prontas” nos chegaram e, de certa m aneira, se encontram atualmente cristalizadas e
inquestionáveis. Um exemplo: nas escolas brasileiras, as teses darwinistas sobre a competição
inerente ao progresso humano e anim al são apresentadas como com provadas empiricamente
acima de qualquer objeção, não havendo questionam ento ou abertura para o debate
divergente. Kropotkin e outros cientistas contrários a estas ideias são esquecidos. Do mesmo
m odo, a constituição do Estado moderno tam bém é narrada diversas vezes com o um a verdade
que se apoia numa justificativa indubitável (“o hom em é lobo do hom em ”). Neste sentido,
enquanto pesquisadores e professores de História e Filosofia, podem os pensar em que medida
estes discursos representam interesses ideológicos e políticos, independentemente de serem
verdadeiros ou falsos. Quanto eles foram historicamente uteis para assegurar uma
determinada verdade histórica?
Neste sentido, acreditamos que os discursos políticos produzidos pelos pensadores
anarquistas são pontos de contraposição im portantes para refletirm os acerca de certas

ordens autoritárias para assegurar tais conquistas, por isso, foi somente no século 19 que a consciência de uma
sociedade fundada sobre a base da anarquia se tornou clara na cabeça de alguns homens e movimentos sociais.

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Ano VIII nº 16 Jun/2013 ISSN 1809 4589 P. 31 – 42

verdades consideradas hegem ônicas atualm ente. Se concordarmos que a filosofia se propõe à
reflexão, à dúvida e ao questionam ento, então esses discursos “desestabilizadores” são
ferram entas importantes para pensarm os com desconfiança a realidade e as verdades, que nos
são colocadas no presente com o expressões de determ inadas intenções políticas e sociais.
Compreender as intencionalidades discursivas, que se apresentam com o neutras, nos dá a
possibilidade de desconstruir as justificativas frágeis que legitim am o poder político, como
também transformar nosso meio social e nosso modo de vida.

Bibliografia

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