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Ética Médica

bsbm Tecnologia: como avançar no conhecimento sem


prejuízo da relação médico-paciente?
brasíliamédica Julio Cezar Meirelles Gomes*

RESUMO
O autor faz um apanhado histórico sobre a introdução do conhecimento organizado no âmbito da saúde,.
discorre sobre os beneficios introduzidos no cuidado ao semelhante ao longo da história da medicina e os efeitos
adversos decorrentes da intermediação tecnológica, do uso abusivo da ciência ou descuido humanitário em favor
do instrumental técnico com repercussões na relação médico-paciente (M/P); aponta as principais desvantagens
e perfila recomendações ético-normativas essenciais à preservação do escopo humanitário da medicina como
profissão erudita, arte e oficio.
Palavras-Chave. Tecnologia; saúde; relação médico-paciente.

ABSTRACT
Technology: how to put knowledge forward without a damage to 1he relationship
between doctor-patient.

The author makes a brief historical overview about the introduction of knowledge in the field of health care; he
describes those benefits which were introduced to the care of human being throughout the history of Medicine as well
as the adverse effects from the technological intermediation, the abusive use of science or the lack of humanitarian
care in favor of the technical instruments affecting negatively the relationship doctor-patient; he also points out the
disadvantages of that process and gives ethical and normative recommendations that he considers essentials to the
preservation of the humanitarian scope of medicine as an erudite profession, an art and a duty .
Keywords. Technology, health, relationship doctor-patient.

Tecnologia médica A técnica por sua vez configura uma relação ins-
a aplicação sistemática do conhecimento trumental ou artesanal da pessoa com o mundo; é a
É científico e de diversas competências técnicas
para controle da matéria, da energia, ou para promoção
intervenção humana no ambiente mediante acessórios
ou procedimentos e com base científica, dispondo-se,
de habilidades em favor da saúde e do bem-estar da portanto de algo mais do que apenas “duas mãos e o sen-
humanidade. A técnica em si configura sensu strictu timento do mundo” (Carlos Drummond de Andrade). É
uma relação instrumental da pessoa com o mundo; é o prolongamento ou aumento da potência do corpo e da
o prolongamento, o aumento da potência do próprio inteligência humana e, com isso, o cérebro tem ampliada
corpo; com isso, o cérebro humano tem sua capa- sua capacidade de intervir no ambiente, graças à máquina,
cidade aumentada pela máquina; “é o conjunto de ao uso de ferramentas ou simples operações especiais.
conhecimentos, especialmente princípios científicos No período paleolítico, ao empunhar um pedaço de ma-
que se aplicam a um ramo de atividade profissio- deira, um bastão, para se defender ou atacar, o ser hu-
nal”;1 tecnologia médica, de per si, é o conjunto de mano primitivo, sem saber, inaugurou a tecnologia.
conhecimentos, especialmente princípios científicos É ainda vista numa linguagem mais simples a
aplicáveis à medicina, vista como um determinado aplicação das descobertas da ciência aos objetivos da
ramo da atividade humana. vida prática.

*Médico pneumologista, Setor de Provas de Função Pulmonar do Hospital Universitário de Brasília, UnB. Ensaísta, escritor, mestre em Medicina Interna
pela UnB. Correspondência: SQN 106, bloco G, ap. 305, CEP 70742-070, Brasília, DF. Internet: juliomeirelles@hotmail.com
Recebido em 17-10-200. Aceito em 20-1-2007.

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conhecimentos, às vezes na fronteira do desconheci-


do, para a cultura ou a ideologia dominante. Babini
oferece um esplêndido roteiro sobre o caminho per-
corrido pelo conhecimento em medicina, configuran-
do o que chama de especialidades médicas.2
Muito ilustrativo se afigura o episódio relatado na
Bíblia Sagrada, sobre a Gênesis em que Adão após
alimentar-se de frutos da árvore do conhecimento e
tornar-se iluminado na compreensão do mundo, opta
pelo conhecimento e pelo autodiscernimento, sendo
então, a partir daí, instado a se retirar do Paraíso.3
Figura 1. Tecnologia como simples exemplo de ampliação dos sentidos
Perde assim a tutela divina, a plena gratuidade pela
existência, à expensa do Ente criador, mas adquire
A técnica, pelo visto, não se limita ao uso de liberdade e autonomia como ente criado; ao que
ferramentas, conhecimentos ou aparelhos, mas parece, a tutela estaria indexada à alienação, como
pode ser também um procedimento especial, requisito do encantamento e da inocência absoluta. A
construído sempre com conhecimentos especiais, Sagrada Escritura neste sentido mostra-se inflexível
como a percussão do abdômen para detectar zonas diante da opção pela ciência universal, como fruto
de macicez ou vacuidade. Nesse caso, seria mais da inteligência humana, desalienação ou então, o
adequado falar apenas em técnica. direito de permanecer no Paraíso, na mais perfeita
A relação médico-paciente vem a ser um acervo inocência, ao sabor de fluídos etéreos e verdades
de atitudes e procedimentos inerentes à relação di- intangíveis. O livro sagrado já apontava um temor
reta entre as partes, no caso de escopo profissional pelo mau uso do conhecimento científico? Parece que
e destinado a prevenção, diagnóstico e tratamento sim. Mas há que se ter bem claro que o fruto proibido
das doenças. É a missa solene da medicina, rezada não era necessariamente a conjunção carnal entre
sempre de corpo presente. Considera o homem Adão e Eva e a perda da inocência sexo-reprodutiva,
como medida das coisas e epicentro do universo. mas sim a auto-suficiência pelo conhecimento, que
Similibus curatur similibus, proclama o brocardo, poderia resultar no próprio controle dos meios de
que pode ser considerado como o semelhante que procriação, como ademais promover a independência
compreende e cura o semelhante. A parte pulsátil da espécie humana, até aqui sob tutela dos deuses.
e pensante da matéria organizada o homem está Aliás, a tentação que leva Ulisses a se amarrar no
inserido na condição de médico na relação profis- mastro do navio com o fito de resistir, não era como
sional com o seu semelhante possuído ou não de se presume, resistir ao assédio sexual das sereias,
instrumentos ou técnicas específicas. A simples mas sim à oferta de um conhecimento inovador e
manobra de Valsalva, até o uso do aparelho de total que poderia libertá-lo para sempre.
ressonância nuclear magnética ou de litotripsia Outro episódio muito interessante é relatado no
na atualidade configuram em seu conjunto uma livro O século dos cirurgiões, de Jürgen Thorwald.4 J.
unidade investigativa ou cognitiva, um ato típico Simpson, famoso cirurgião, mostrou-se entusiasmado
na cena da relação médico-paciente. com a utilização do clorofórmio para anestesia do
parto. Correntes religiosas muito conservadoras na
Breve história das primeiras inovações Inglaterra contestaram esse procedimento a ponto de
tecnológicas invocar textos bíblicos para lançar maldição sobre a
Há episódios históricos que apontam com pro- novidade científica e derrotar Simpson em sua obstina-
priedade o aparecimento de técnicas modernas, assim ção quase herética de suprimir a dor do parto. Grupos
como, o impacto ocorrido com a utilização de novos médicos e religiosos contrários à inovação técnica

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apresentaram como principal argumento a citação pressão arterial torna-se mensurável a partir de 1880,
bíblica: “Darás a luz com dores a teus filhos”, ao que na Alemanha, graças a S. von Basch (1837–1905);
Simpson respondeu de forma fulgurante: “E o Senhor Scipione Riva-Rocci idealizou o manguito para subs-
mergulhou Adão em profundo sono. Ele dormiu e o tituir a bolsa. Seu trabalho foi publicado com o título
Senhor tirou-lhe uma costela...” Pronto, fazer Adão Uno nuovo sfigimomanometro em Gaz Med Torino,
mergulhar em sono profundo, conforme relatava a 1896;47:981-996. Bacci, na Itália, substitui a bolsa de
própria Bíblia, era o reconhecimento e aceitação plena borracha peribraquial por um manguito e, finalmente,
da lisura do procedimento anestésico. N. Korotkoff, Rússia, 1905, percebe um ruído que re-
Platão dispunha com ênfase na sua obra De File- presenta a pressão diastólica graças à ausculta direta
bo que a felicidade não emanava do prazer apenas, da artéria braquial, quando descomprimida. Pasteur e
tampouco da sabedoria isoladamente. Era uma feliz Koch, com o uso do microscópio, revelam ao mun-
conjugação de ambos, numa relação harmoniosa e do o fantástico universo da microbiologia, pondo a
adaptada às circunstâncias. Sabedoria, como fruto descoberto formas de vida imperceptíveis a olho nu
da inteligência, temperada e modulada pela busca e sua relação com as doenças da humanidade.5
do prazer, como a degustação da própria vida liga- J. Hutchinson (1828–1913), na Inglaterra, em
da aos valores essenciais do homem, dos valores 1846, concebe o espirômetro para medir o volume
morais, atributos de qualidade da consciência. Em de ar exalado pelos pulmões. Ao fim do século XIX,
suma, o bem contemplativo de Aristóteles. 1896, W. Roentgen (1845–1923) percebe a estrutura
O microscópio, aparelho tão essencial ao pro- óssea da própria mão, projetada numa película com
gresso dos conhecimentos médicos, à pesquisa, sais de prata, após exposição aos raios X. Em 1905,
surge no fim do século XVI, graças ao holandês A. W. Einthovem (1860–1927), na Holanda, constrói
van Leeuwenhoek (1632–1723), que o aperfeiçoou, o primeiro eletrocardiógrafo e Hans Berger (1873–
desvendando pela primeira vez diante da História, o 1941), na Holanda em 1920, concebe o primeiro
absurdo mundo animal, até ali invisível aos olhos. aparelho de eletroencefalografia. O sonar, utilizado
No princípio do século XIX, vem à cena o es- na Segunda Guerra Mundial para detecção de corpos
tetoscópio concebido por R. Laennec (1781–1826), submarinos, é aplicado à medicina, resultando nos
médico francês. Em 1816, L. Traube, de Berlim, e K. modernos aparelhos de ultra-sonografia.
A. Wunderlich, de Leipzig, introduzem na medicina
o gráfico de temperatura corporal, com o uso do ter- As mais recentes inovações
mômetro clínico, conhecido desde o século XVII. A A decifração do código genético da espécie
humana, mercê o projeto genoma recém-con-
cluído, configura sem dúvida a descoberta mais
importante do último século; fruto de avanços
extraordinários em ciências conjugadas, como
química, informática, física, óptica e eletrônica,
que facultaram ao homem bisbilhotar o grande
segredo, a possibilidade do oitavo dia6 da criação
ou simplesmente a possibilidade de mexer, sem
autorização do Criador, nos complexos circuitos
proibidos da máquina humana. Algo terrível, sem
dúvida. Ao lado da fissão nuclear que resultou por
um lado na construção de estúpidos artefatos de
destruição em massa, tão nocivos à espécie huma-
Figura 2. Figuras ilustrativas que marcaram os trabalhos pioneiros de Hutchin-
na, mas também, por outro lado na aplicação par-
son, incluindo um modelo de espirômetro utilizado naquela época (1846).

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cimoniosa em tecidos sob reprodução anárquica, Quadro 1. Vantagens da tecnologia


radioterapia, tão benéfica à espécie. Transplantes
A descoberta do código genético parece ser o Controle de infecções

fruto mais ilustrativo da curiosidade humana. O Suporte funcional do colapso de órgãos e sistemas
Crio e biopreservação
próprio ser humano, buscando coisas essenciais
Engenharia genética
escondidas no sótão do universo, como menino Ausência de dor
planetário que vai mexer em gavetas na ausência Próteses e órteses
dos donos da casa. Prevenção de defeitos genéticos
Controle sanitário
Aspectos éticos da tecnologia médica Operacional: velocidade, qualidade, acesso, ferramentas
Um interessante artigo de Francisconi7 mostra Multiplicação de recursos

uma versão cautelosa, mas otimista, sobre a tecno-


logia médica, apontando com propriedade alguns diversas, produzir seres excepcionais ou pequenos
itens para uso seguro e eficaz da tecnologia, em monstros, selecionar espécies e praticar a eugenia
seu conjunto uma espécie de normas de segurança. em favor de raças já favorecidas pela natureza,
Fundamental, diria, com vista à não-maleficência, quem sabe em direção às raças superiores!
no sentido de evitar seus efeitos colaterais e reações A nova competência técnica pode promover
adversas, inadmissíveis por natureza. A busca da danos ou fissuras não apenas na relação médico-
evidência científica e o uso racional vêm em segun- paciente, sobretudo na relação do médico com a
do lugar na hierarquia do pensamento do autor. sociedade humana. Algo terrível!
Em terceiro lugar, o autor recomenda aferir com Quase escusado comentar, mas o princípio
o máximo rigor a real e indiscutível necessidade da básico da questão é que toda vitória como expres-
técnica ou do método pretendidos, o que atende ao são positiva do conhecimento, como a própria
princípio de beneficência e até da justiça. Em quarto inovação tecnológica, tem um preço, além do risco
lugar, destaca que o médico não pode perder de vista inerente da derrota; toda conquista tem seu ônus,
a repercussão social do novo procedimento, sua como a própria felicidade tem um custo crítico,
aplicabilidade, seu custo e sua facilidade de acesso, senão até adverso, sendo a vantagem efetiva o
antes de incorporá-lo à medicina, enfim, a possibili- resultado final da relação custo-benefício. Nem
dade do uso democrático e equânime da inovação. poderia ser de outra forma. As vantagens e possibi-
Sem essa preocupação, a técnica mostra-se eficaz,
mas injusta com os excluídos ou carentes. Conclui
o artigo advogando a necessidade da competência
ética do médico para controle e uso judicioso da
tecnologia. Aqui está o centro da questão.

Impactos da revolução tecnológica


O domínio ou o conhecimento do seqüencia-
mento do genoma humano, constituiu, sem dúvi-
da, na transição do século, o fato científico mais
importante, agora no âmbito da biologia, trouxe
graves preocupações e implicações para o controle
e a qualidade da reprodução do gênero humano. É
possível copiar um ser humano ou, o que soa mais
gravemente, fabricar um ser nos laboratórios de
engenharia genética, misturar naturezas biológicas Figura 3. A: Máscara da válvula dupla; B: gasômetro do tipo Tissot

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lidades diagnósticas superam de muito as possibi- da família, dá-lhe continuação como sujeito bio-
lidades terapêuticas, o que configura desvantagem lógico e cidadão, o faz permanecer em atividade
ética (quadro 1). No entanto, é lícito admitir que o na sociedade e no seio dos entes queridos! Ora,
rigoroso controle da dor, por exemplo, fato nem um procedimento tão razoavelmente simples,
tão recente (1846, Wells Horace), a circulação hoje praticado em larga escala, com resultados
extracorpórea, os equipamentos de ventilação desproporcionais e dramáticos.
artificial, a hemodiálise, a litotripsia e as técnicas Vê-se por aí como tem sido simplesmente notá-
invasivas com sondas e cateteres, além do acervo vel a capacidade da medicina em incorporar novas
farmacológico, tornaram os procedimentos médi- tecnologias, processar descobertas científicas e trans-
cos mais seguros e confortáveis, e ainda a rapidez formar a novidade técnica de ontem em qualidade
espantosa da intervenção, deixando a descoberto de vida hoje, aqui e agora. Ótimo! A vida tem pressa
a perícia do médico, sua habilidade e destreza, em aprimorar seu encanto e reinventar regalias, não
como possível fator de insucesso. dá mais para evoluir ao sabor das leis da natureza
Por outro aspecto, a qualidade da vida do ser e aguardar que as mutações naturais ao sabor das
humano moderno, a longevidade humana, o di- eras se alojem no gene. Mas isso tem um preço, a
reito adquirido de não morrer por causas banais exemplo da pavimentação da pequena e bucólica
e pequenos acidentes, por infecções primárias e cidade do interior, até então isolada por estradas de
epidemias de fácil controle mostram o caráter terra, de difícil acesso. O progresso traz em seu bojo
extraordinário da tecnologia, fruto da inteligência a facilidade de deslocamento de pessoas, mercado-
humana voltada para a promoção do bem. Milagre, rias e serviços de saúde, mas na sua esteira, assaltos
por exemplo, é desobstruir a artéria coronariana a bancos, epidemias, hábitos desproporcionais aos
mediante angioplastia, um pequeno desentupidor costumes e por aí se vai a doçura do isolamento
na verdade, ou apenas mantê-la pérvia com uma rural! Portanto, até o supremo bem da vida tem seu
minúscula mola chamada stent? A pequena mola valor adverso. Millor Fernandes sustenta com muita
que prorroga a permanência do homem ao lado propriedade que a principal causa de mortalidade
ainda é a natalidade.8 Mas vale a pena viver, vale a
Quadro 2. Desvantagens da tecnologia
pena tentar a aventura da vida, mesmo que o preço
Custo elevado
final seja a morte.
Intermediação lucrativa
Seguem proposições para amenizar os afeitos
Socialização da medicina
Tecnologia de alta complexidade
adversos da tecnologia.
Modelo hospitalocêntrico – Abolir o abismo da burocracia.
Redução da mão-de-obra em saúde – Preservar a vida acima dos interesses comer-
Expectativa do leigo fomentada pela mídia ou de origem ciais da patente.
mítico-emocional – Ter o ser humano como medida das coisas,
Sujeição do médico e redução da autonomia fim e princípio da medicina; o homem como um
Envolvimento e intromissão do mercado
fim em si mesmo (I. Kant).
Dependência do capital lucrativo
– Considerar a medicina como prática profis-
Iatrogenia
Prejuízo na relação médico-paciente
sional voltada para a multiplicação dos bens de
Injustiça, elitização, discriminação saúde.
Consumismo – Ter o dever cumprido, promover o empenho
Elevação de custos de meios e o bem do doente como fontes princi-
Demanda social in: classes favorecidas pais de satisfação no trabalho, sem prejuízo da
out: medicina alternativa recompensa financeira.
Embalsamamento tecnológico e distanásia
– Evitar o uso da medicina para multiplicar
Efeitos adversos sobre o meio ambiente
bens de capital.

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– Considerar a medicina como bem público, o


médico como promotor da saúde, o paciente como
beneficiário da ciência e da arte médica.
– Considerar o doente como um cidadão em
sofrimento.
– Ter a vida como bem supremo sem valor de
mercado.
– Considerar os equipamentos e aparelhos
como mera extensão dos sentidos ou do intelecto;
a máquina como acessório.
– Corrigir o desbalanço entre as possibilidades
de diagnóstico e a necessidade da cura, com reper- Figura 4. Ilustração da relação médico-paciente mediante semiologia do
cussões adversas na relação médico-paciente. contato

– Promover a detecção precoce de afecções custo da medicina de alta tecnologia, inacessível ao


incuráveis ou enfermidades incontroláveis no paciente como pessoa física, induzindo um mercado
embrião, criando um desconforto moral prematuro singular, excludente e chamando para o sistema o
e dilemas atrozes para médico e paciente. capital financeiro, oneroso para o estado, eivado de
– Evitar expectativas desproporcionais de exclusões, discriminações e prerrogativas odiosas. A
diagnóstico e cura, induzidas na população leiga iatrogenia de alta tecnologia é difícil de identificar e
pelo fascínio da tecnologia na medicina e fora as vezes sem volta. Como ademais uma dificuldade
dela. do controle de qualidade nos insumos de produção
– Ter cuidado com a complexidade da tecnolo- industrial de larga escala.
gia de ponta que foge ao controle do médico, além
de elevar custos e com equipamentos sofisticados Da pesquisa a olho nu à lupa
de bioengenharia que transferem para técnicos Desde o Renascimento, quando a pesquisa médica
não-médicos o poder de decisão sobre a máquina, decide romper a barreira visual da pele e da forma
além do seu controle operacional. exterior do organismo humano e passa a observar a
De outro lado, a presença na medicina de interes- olho nu a intimidade do corpo humano, o que se pode
ses corporativos industriais, selvagens ou descontro- chamar de observação invasiva, está inaugurada a
lados podem promover o balcão de compra e venda incorporação das técnicas de estudo compatíveis
de insumos e equipamentos para a saúde à mercê da com o conhecimento do ser humano. A tecnologia,
lógica do capital. A perda progressiva do controle do portanto, pode ser operacional, instrumental ou mis-
ato profissional médico por conta da tecnodepen- ta. O instrumento ou meio usado para operar sobre
dência, intromissão de outras atividades correlatas o organismo pode ser uma simples extensão dos
e intermediação do capital financeiro na prestação sentidos ou intervenção no meio interno por meio
de serviços podem, sem dúvida, criar desconforto e de agentes químicos ou físicos. Enfim, a tecnologia
gravames na relação médico-paciente. A pressão de na cena médica configura um acervo de operações
demanda por exames sofisticados, oriunda de pacien- (atos), manipulação de equipamentos, instrumentos,
tes e sistemas de diagnóstico complementar, além utilização de agentes físicos ou químicos (antibióti-
da contra-pressão para redução de custos, feita por cos e contrastes) pelos quais o médico atua sobre o
empresas ou planos de saúde, a tecnolatria, colocan- semelhante, modifica seu meio interno ou sua forma.
do máquinas e equipamentos acima da competência A própria maneira singular de conversar com o
humana, fazendo do médico um piloto comissionado doente, a anamnese, não passa de uma técnica espe-
ou operador de máquinas, com riscos e falsa quali- cial de colher informações destinadas à realização do
dade de serviços. É preciso ter em mente o elevado diagnóstico.

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É evidente que nos interessa por aqui exami- lizmente, o médico tem sido refém de um sistema
nar o acervo de tecnologias de última geração; de locação de serviço, por via da aparelhagem,
aquelas tecnologias que possam molestar a boa e uma forma disfarçada de expropriação da força
eficaz relação entre médico e paciente, conjuntura de trabalho. Torna-se assim o profissional parte
indispensável ao êxito da promoção de saúde. da máquina, privando o paciente de uma relação
A relação médico-paciente pode representar amena e prazerosa.
uma relação voltada para a proteção do indivíduo, O paciente busca sempre a atenção do médico,
plena de solidariedade e respeito pelo semelhan- ainda que sugira a realização de um tipo de exame,
te no seu estado de sofrimento ou de ameaça de busca sim uma parceria informal de súdito para
extinção. alteza, mas ao nosso alcance.
Importa considerar que, inobstante a excelên- A máquina cura ou decifra sem sorrir e profere
cia da tecnologia, sua aplicação quase imediata sentenças de vida ou de morte com a frieza das
no âmbito da medicina, ela deve ser submissa supremas cortes.
ao médico, uma espécie de ampliação dos seus A tecnologia de ponta mexe com o bolso do
sentidos e da sua competência, de baixo custo, médico, classifica os pacientes entre primeira e
accessível ao conjunto da sociedade, benéfica e segunda classe, excita a imaginação do doente,
se possível desprovida de efeitos colaterais ou mas sobretudo engorda a conta dos fabricantes de
efeitos adversos. A segurança máxima e a adver- insumos e equipamentos. “Nas últimas décadas as-
sidade mínima. sistiu-se ao desenvolvimento acelerado de técnicas
A tecnologia de alta complexidade, com in- com abrangência de todos os aspectos da atividade
formações sofisticadas e processadas, em caráter médica. A tal ponto que acarretou o exagero de
inter- ou supra-sensoriais e obtidas por equipa- pensar que tais técnicas poderiam resolver por si
mentos que fogem ao domínio e à competência do todos os problemas, dando como ultrapassado o ra-
médico como profissional, trazem o desconforto ciocínio clínico a que nos habituamos desde Osler.”
de uma relação assimétrica, trazendo perda do Ledo engano, como aponta Morais, em chamativo
controle operacional e sujeição técnica adversa. artigo publicado na revista do CREMESP.9
A parceria obrigatória com interventores, su- A indústria que abastece a medicina e outras
jeitos externos ao sistema de saúde, técnicos de profissões assistenciais, não distingue entre se-
informática ou engenharia de sistemas, agentes co- tores lucrativos ou não-lucrativos, públicos ou
merciais, proprietários dos meios de investigação privados. Trata a todos igualmente com a frieza
ou produção científica, dos meios de financiamen- e a arrogância do fornecedor do sistema, que não
to da atividade de pesquisa e semelhantes transfere tem compromisso aparente com a gravidade e
o centro de gravidade perigosamente para fora dos o estádio de um doente renal, do fulano de tal,
domínios da medicina, da sua ética e da sua lógica egresso de uma comunidade carente; esse tipo de
não-comercial. Há que se mencionar como exem- paciente não tem rosto para grande empresa. É
plo a existência de sofisticados equipamentos de virtual. Sua estimativa numérica é considerada no
espirometria dotados de programas tão especiais planejamento de produção da empresa, na análise
que oferecem um diagnóstico funcional e apontam de mercado e demanda estimada. Nada além. A
para a dispensa da leitura ou estudo e interpreta- empresa, deveras preocupada com a regularidade
ção do médico quanto ao laudo. A realização do do fornecimento e até a qualidade, sem dúvida, dos
exame, é bom lembrar, não dispensa a presença insumos, repõe ou não os filtros de hemodiálise
e a participação direta do médico para assistir em função do pagamento já reajustado em dólares,
uma eventual intercorrência clínica, mas também mas depois da quitação da última fatura. Não faz
para confrontar o resultado obtido com a suspeita caridade com o sistema, não dá desconto, até por-
clínica, um ato típico da soberania médica. Infe- que, na maioria das vezes, não tem concorrente, o

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refill é exclusivo, ou vem lacrado de origem, sem A medicina tem sido invadida, esse pode ser
esquema, para evitar piratarias ou violações de bem o termo, pela indústria de insumos e equipa-
patente. Curioso como até empresas do Estado mentos sofisticados, além de uma aparelhagem de
sem fim lucrativo específico cobram serviços ou alta tecnologia até fora do alcance do nosso siste-
fornecimentos aos hospitais públicos, também ma industrial, criando forte dependência técnica
desprovidos de carácter lucrativo! e sujeição ao capital estrangeiro.10
A tecnologia não alcança apenas o diagnóstico A lógica da excelência técnica para superar
ou a propedêutica, mas um conjunto de atividades- o concorrente e fascinar o mercado de consumo,
meio na cena médico-hospitalar, hoje indispensá- não é necessariamente pelo benefício em oferecer
vel à boa medicina. o melhor. Ademais, a barreira do preço ou do custo
Não há como demonizar a tecnologia. Nem financeiro restringe seu uso às camadas incluídas
há por quê. Diz-se que a ciência é neutra. Ledo no extrato econômico privilegiado, tipo classe “A”.
engano. Ela tem a cor e a polaridade da ideologia Ora, um bem de serviço tão importante para a saúde
dominante, o perfil do aplicador ou detentor dos humana não pode ficar confinado às elites financei-
meios de produção e controle. De modo geral, a ras, isso além de não parecer, não soa ético.
lógica corporativa ou a estratégia financeira de O médico não pode correr o risco do reducionismo
obtenção de lucros no mercado de saúde é que funcional ou profissiográfico na condição de piloto ou
vai determinar seu escopo e o caráter humanitário de simples operador de máquina. Nessa situação, ele
ou não da tecnologia e do capital empregado. As perde em grandeza, embaça sua imagem inteira e sua
multinacionais fabricantes de insumos, como soberana diante do doente, tornando-se menor, parcial
gaze e esparadrapo, por exemplo, não conhecem e provisório; perde em humanidade o que eventual-
a cena dramática no centro cirúrgico, nem fazem mente ganha em unidades de serviço. Às vezes, assu-
plantões nos setores de urgência dos hospitais me a compleição de serviçal do equipamento ou refém
públicos, não ouvem gemidos na enfermaria; da máquina, uma espécie de caça-níquel, utilizada em
vendem seus produtos por fax ou por e-mail; no regime de aluguel ou leasing, sendo obrigado como
máximo, comparecem à tesouraria dos grandes profissional a rodar a manivela para acompanhar as
hospitais ou do setor de compras para apresentar flutuações da faixa cambial.
faturas.
Da mesma forma que a indústria farmacêutica, Conclusão
não passa pelo constrangimento de receber de Luis Decourt, em artigo sobre o tema, publi-
volta a receita amassada e suja do paciente, que cado na revista do Incor, maio de 1995, chamou
retorna à consulta e declara de forma patética que a atenção para a relação entre o doente e a técnica
não teve recursos para a compra do medicamento. na medicina atual, sugeriu providências com vis-
Com certeza, esta cena configura um doloroso tas a sanar as distorções, além de advertir sobre
“privilégio” para o profissional de saúde. atitudes indesejáveis do médico na utilização das
Esse é sem dúvida um momento muito espe- técnicas.11
cial na relação médico-paciente, um momento Como primeiro ponto da sua reflexão, mostra
de tensão e desconforto moral. O médico sente- a avaliação superficial e tantas vezes incompleta
se acuado em sua índole humanitária, frustrado do enfermo. Depois, aponta a postura de adoração
pelo resultado adverso do seu trabalho e, quase (tecnolatria) dos métodos propedêuticos sofisti-
sempre, é instado a modificar o receituário ou, cados, usados de maneira abusiva ou irracional,
senão, vasculhar gavetas e armários em busca de colocando a máquina acima do próprio doente a
amostra-grátis. Na maioria das vezes, o médico imagem do doente como melhor do que a imagem
volta para casa, encerra seu dia de trabalho, com viva do enfermo e, a doença, suprema loucura
a sensação amarga do dever não-cumprido. – acima do doente! Sublinhou o abuso na utiliza-

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Tecnologia: como avançar no conhecimento

ção de medidas técnicas desnecessárias, aconse- aprimorar seus conhecimentos e usar o melhor
lhou que as experiências clínicas ou as pesquisas progresso científico em favor do paciente e, assim
em favor da coletividade pautassem pelo mais nos fala, como se uma Zaratrusta normativa dos
rigoroso respeito à condição humana, sob pena tempos modernos.
de rasurar a relação médico-paciente e molestar a Portanto, inovar é preciso, descortinar novos
dignidade das pessoas envolvidas.11 tempos, buscar a promissão e o encantamento,
A tecnologia em medicina não pode se con- mas sem rasurar a relação sagrada entre médico
verter em tecnocracia ou fator de dominação e e paciente, porque rasurar não é preciso, sem
tecnolatria a ponto de ameaçar a supremacia da perder o controle do ato médico, sem inverter a
condição humana,12 o engenho e a competência ascendência moral sobre a ciência como pregou
médica, a soberania clínica na acepção do termo, Galileo: “A função da ciência é aliviar as penas
ou sujeitá-las às leis do mercado de capitais, cuja da condição humana”.
lógica é, no mínimo, incompatível com a lógica
humanitária, quando não for conflitante. A relação Referências
médico-paciente é sagrada e intocável, não pode 1. Ferreira ABH. Novo Aurélio Século XXI, 3.a ed., Rio de Janei-
ser perturbada por equipamentos ou técnicas in- ro: Nova Fronteira; 1999
tervenientes. O princípio da justiça e do benefício 2. Babini J. História de la Medicina. 2.a ed. Barcelona: Edi-
tangível são pilares no controle da tecnologia. torial Gedisa, 2000. 172 p.
A tecnologia médica que no futuro implantará 3. Buey F. Sobre tecnociência y bioética: los árboles del
chips para localização, por satélite, de indivíduos paraíso. Bioética 2000;8:13-27.
de alta periculosidade, mesmo em benefício da 4. Thorwald J. Século dos cirurgiões: conforme documen-
maioria dos homens de bem, deverá discutir eti- tos do meu avô, o cirurgião H. E. Hartmann. Trad. de Ma-
rina Guaspari. São Paulo: Hemus, s.d. 350p.
camente esse tipo de procedimento. Um dilema
típico da autonomia. 5. Rezende JM. O papel do exame clínico na prática médi-
ca. Goiânia. Seminário apresentado na Unimed/GO. 1992.
Vale deixar bem claro, no entanto, que a tec-
nologia e seu formidável acervo de excelências 6. Drumond JG. Clonagem humana. Montes Claros: Uni-
montes, 2002.
é bem-vinda ao reduto da medicina, tal como se
acolhe o visitante ilustre em nossa casa, mesmo 7. Francisconi CF. Aspectos éticos da tecnologia médica.
Medicina: Conselho Federal 1997:10(83):8-9.
que cheio de novidades e atualidades; mas há re-
8. Fernandes M. A bíblia do caos: Millôr definitivo, São Pau-
gras, a tecnologia deve ser moralmente adequada lo: L&PM Editora; 1994. v.62.
pelo médico em benefício do paciente, sendo essa
9. Moraes CR. Sintonia: alta tecnologia em Medicina. Ser
uma responsabilidade crítica da medicina,13 deve Médico 2003;(23):6-10.
derramar as bençãos do progresso científico na
10. Dalla Costa EMO. Tecnociência, dilemas éticos e o en-
fronte humilde do ser em estado de sofrimento, sino da Bioética para farmacêuticos. In: Siqueira JE, Prota
evitar novos padecimentos e sobretudo não levan- L, Zancanaro L (Org.). Bioética: estudos e reflexões. Lon-
drina: Editora Londrina Uel; 2000. p. 243-62.
tar adversidades (primum non nocere). A medicina
precisa, mais do que qualquer outra profissão 11. Decourt L. O doente e a técnica na Medicina atual. Re-
vista do Incor 1995;2:3-4.
erudita das inovações tecnológicas,14 talvez até
em primeira mão, porque daí resulta o benefício 12. Ishay R. High technology in medicine: ethical aspects.
Isr J Med Sci 1989;25:274-8.
do ser humano na preservação da vida, mas com
segurança, porque se trata de uma ferramenta e 13. Wyngarden, James B, Smith, Lloyd H, McDermott W.
In: Cecil Loeb. Textbook of Medicine. Interamericana;1984.
não de uma dádiva com leis próprias. O artigo 5.o p. 29-39.
do Código de Ética Médica de 1988 é muito claro 14. Silva AL. Ética Médica: perspectivas na sociedade do
e sábio na recomendação que faz ao médico para futuro. Ars Curandi 1996:29:109-11.

Brasília Med 2007;44(1):53-61 61

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