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A CRIANÇA INTERPRETADA

Colette Soler

Este título, “A criança interpretada”, não foi calculado (1)*. Quando


Marga Mendelenko-Karsz me perguntou sobre o que eu falaria, eu não sabia
ainda exatamente e respondi: a criança interpretada. A expressão me veio,
num momento, devo dizer, em que tomava conhecimento de um caso de
criança em análise, e não deixou de me embaraçar depois, um pouco, mas a
aceitei já que é de uso em psicanálise levar em conta as palavras que vêm, que
se impõem sem que se as busque. Posso pois questionar a expressão.
Vou fazer três desenvolvimentos: de início alguns comentários sobre a
expressão “a criança interpretada”, depois algumas palavras sobre as neuroses
infantis e, enfim, tomarei o caso desta menininha que se chama “a pequena
Piggle”(2)

A criança, interpretação encarnada

Que a criança seja interpretada muito cedo em sua vida é uma


evidência. Quem é pois o intérprete? O Outro, imediatamente sem dúvida,
depois o inconsciente, muito depressa. Mas poder-se-ia dizer outra coisa: a
criança é também intérprete, e talvez mesmo... interpretação. De fato, se vocês
refletem nisso, é a tese implícita de Lacan nas suas duas notas à Jenny Aubry -
que todas as pessoas que trabalham aqui com crianças conhecem, suponho -
quando ele diz que a criança representa, seja a verdade do casal, seja a verdade
da mãe sozinha. Eis aí uma grande distinção que, por estar formulada de modo
condensado e nos termos os mais simples, não deixa de reenviar a uma
oposição de estrutura que buscaria se inscrever com os dois significantes da
metáfora paterna, a saber, a oposição entre de, um lado, o face a face, mãe-
criança e, do outro, o triângulo “edípico” onde a mãe se inscreve como
mulher.Dizer que a criança representa uma verdade que não é a sua, mas sim
do Outro, quer seja do casal ou da mãe, não é dizer que ela é uma
interpretação
1 InItervenção pronunciada em 22 de março de 1996, em-Soirées du Groupe Petite Enfance- na
E.C.F. Texto estabelecido, em francês, por Olívia Dauverchain e Silvia Mc Closkey.
2 Winnicott., La petite “Piggle”. Paris, Payot,1985
* Nota da autora: La Lettre Mensuelle deu este título,com a minha autorização, ao seu n. 150.

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encarnada, aquilo que, nem a mãe nem o casal decifram de seu
inconsciente e de sua união, e que seu sintoma a faz aparecer no real, sob uma
forma gozada?
Para dizer de outra maneira, utilizando as fórmulas posteriores de
Lacan: como os adultos, as crianças tem sintomas, e muito polimorfos mesmo
e muitas vezes transitórios - daí uma dificuldade diagnóstica redobrada - mas
por seus sintomas, pelos sintomas que elas têm, elas são sintomas, sintomas do
Outro, emprestando seus corpos ao que a verdade do Outro se goza, tal como
Lacan pode dizer de uma mulher que ela é um sintoma para um homem, ou
que o próprio analista é um sintoma. Evidentemente, a questão desde então é
de saber como se articula para cada criança, em cada etapa, seu “ser-sintoma”
e o sintoma, sintoma que seria o seu, dando seu nome de gozo.
Volto à criança interpretada. Quando é que isso começa?
Não esqueçamos que a criança aparece inicialmente como um objeto. A
criança pode ser causa de um desejo sem dúvida mas, em sua vinda ao mundo,
ela é de início objeto gozado, boneca viva, pequena coisa erótica, corpo
gozado pelo outro. Isto vai mesmo longe, e pode fazer até exceção ao “não há
relação sexual”. Lacan enunciou uma vez, no fim mesmo de seu ensino, esta
frase que me pareceu verdadeiramente espantosa, e que ainda guarda para
mim uma parte de enigma: “Não há relação sexual - ele o repetia uma vez
mais -, salvo entre as gerações”. Não estou absolutamente segura do que ele
tinha na cabeça nesse momento aí, nem do que ele queria dizer mas, em todo
caso, parece-me que a criança, enquanto corpo gozante e gozado pela mãe, faz
limite à famosa fórmula “não há gozo do corpo do Outro”. Pelo menos é
assim que eu entendo o “salvo entre gerações”.
Aqui, poder-se-ia se esboçar toda uma clínica do cotidiano da
maternidade, que se inclinaria sobre o modo como as mulheres vivem a sua
gravidez e a terminam. Conhece-se daí os polos: isso vai, de um lado, da
euforia a um êxtase beato, e, de outro, do horror de parasitagem à mutilação
das depressões pós-partum, sem falar ainda das psicoses puerperais. Há aí
toda uma série, toda uma gama de fenômenos que testemunham sem
contestação que o corpo a corpo da mãe e de sua criança abriga uma relação
de gozo. Não se esgota, aliás, o estatuto de objeto que é o da criança. Há
também a criança-imagem, imagem tão comovente para uns, tão repulsiva
para outros - aliás, tive ocasião de evocar a propósito de Winnicott! Pensem
com que paixão se fotografa o recém-nascido, todos esses filmes que muitas
vezes seguem seu crescimento passo a passo e que se pode passar vinte anos
depois! Precisar-se-ia, enfim, rever o que é esse significante gozado que é
também a criança no seu valor fálico.

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No entanto não é esta criança objeto que é interpretada. A interpretação
supõe um elemento faltante, e, portanto, se se tenta datar na estrutura o
aparecimento da criança interpretada, eu diria mesmo interpretável, e não mais
a criança objeto-gozado, real, imaginário ou simbolicamente, é o primeiro
aparecimento do menos-um do sujeito que aí marca o umbral. Vocês
conhecem a tese de Lacan: ele a articula ao grito. O grito, primeira
manifestação do ser - não digo do sujeito - pelo qual ele cava o seu furo no
Outro, que, inscrevendo um vazio no stock dos significantes que recobrem a
criança antes mesmo que ela nasça, põe em ordem o lugar do sujeito como
vazio, e que funciona como um x que a resposta do Outro ... interpreta. O ser
interpretado da criança começa aí, e se manifesta claramente na clínica da
maternagem onde se constata no quotidiano a atividade interpretativa das
mães emprestando suas vozes e suas palavras às manifestações ainda
inarticuladas do bebê que elas elevam a significantes.
Enfim, enquanto sujeito, a criança é também o intérprete, o decifrador.
Precisa-se ainda para isso que ela entre na estrutura da fala, e que o intervalo
significante se cave aí bastante para fazer a sua oferta à interpretação, se posso
dizer. Lacan nos ensinou que o encontro com o enigma do Outro é aqui
decisivo. Por mais que ele esteja saturado, cada criança, efetivamente, se faz
intérprete, se agarra em estabelecer sua própria leitura do dizer do Outro, e da
mãe principalmente. Sabe-se a atenção que as crianças mais jovens prestam
aos ditos do Outro, mas também aos silêncios, às contradições, às mentiras,
em suma a todas as hiâncias de seu discurso. Ela está evidentemente
interessada em seu próprio ser já que o que busca perfurar aí é tanto o mistério
de sua concepção quanto o de seu sexo. O interpretado se torna pois intérprete,
e é neste nó das interpretações que jaz o segredo de todas as suas
interpretações. Vê-se aí o que falta à criança na síndrome do hospitalismo
evocado no fim das duas notas à Jenny Aubry. As necessidades vitais podem
se satisfazer com cuidados relativamente anônimos mas na falta deste
“interesse particularizado” que Lacan evoca, a criança permanece em falta do
Outro intérprete, tanto quanto do Outro a interpretar pelo qual vem o ser da
significância.

Procurem a neurose infantil

Para comentar um pouco esta questão da criança intérprete-interpretada,


escolhi um caso no qual não se observa a psicose infantil, bastante frequente,
aliás. Por que? É que tenho a impressão que na atualidade de nosso campo,
negligencia-se um pouco a neurose infantil. Há razões para isso, que não são
teóricas porém de preferência factuais, a partir de que nas instituições para

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crianças os analistas lidam com freqüência com crianças nas quais não se
observa a neurose.
No entanto, eu creio que, quanto à assegurar a estrutura, a neurose
infantil permanece essencial, inclusive no que diz respeito ao diagnóstico
adulto, muitas vezes tão espinhoso. De fato, em todos os casos de adultos em
que há problemas de diagnóstico, onde não se chega a dizer com certeza se
são psicoses ou neuroses, o que se concebe desde então é que numa neurose a
consistência de uma fantasia pode saturar a questão do sujeito, e que uma
psicose pode não ser desencadeada Em todos esses casos, portanto, que
justificam a promoção, num outro meio que o nosso, do termo de boderline,
esses casos que não apresentam efeitos paradigmáticos de forclusão, nem de
fenômenos de linguagem maior, nem de desencadeamento patognomônico,nos
perguntamos não só se há fenômenos de divisão subjetiva sob transferência,
mas, também procuramos os traços, as cicatrizes, é o termo de Freud, da
neurose infantil. Nas dúvidas diagnósticas quanto ao adulto eu teria de
preferência, como palavra de ordem: “procurem a neurose infantil”, como,
aliás, se diz “procurem a mulher”.
Procurar a neurose infantil quer dizer “procurar o complexo de
castração”, o qual, como se sabe, é toda uma organização que está bem longe
de se reduzir à presença das imagens de mutilação. O complexo de castração é
uma elaboração do afeto maior que é a angústia de castração e se confunde
com o que Freud chamou a neurose infantil. Sobre esse ponto estou de acordo
com a tese que Michel Silvestre desenvolveu, há muito tempo: a neurose
infantil e a neurose do adulto não são homogêneas, não são simétricas. Como
ele dizia, a segunda não poderia se resolver, pois ela supre o impossível da
relação sexual. Ao contrário, a primeira é quase uma passagem obrigatória
para todos os sujeitos que não serão loucos, nos quais não se observa a
psicose, e para cada um desses sujeitos, deve se poder encontrar tanto os
estigmas como a solução. Dizer que é uma passagem obrigatória indica
também que é uma fase evolutiva. Não empregamos mais o termo de
desenvolvimento, mas há, no entanto, uma diacronia, e fases típicas.
Lembro, portanto, para começar, o efeito estrutural e separador do
complexo de castração. É uma tese clássica. Lacan certamente repensou e
ultrapassou o Édipo, mas não questionou a castração, longe disso.
Marga Mendelenko-Karsz evocava com justa razão, em sua introdução
à tese de Lacan no Seminário IV que, quase ironicamente, já que se trata da
noção então em voga das relações chamadas de objeto, ele colocava ênfase na
falta de objeto na mãe. O complexo de castração é a resposta da criança a seu
encontro com a falta fálica da mãe. A castração não se registra diretamente do

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lado da criança: ela só atinge o seu ápice a partir da atualização da falta do
Outro, aqui a mãe, e a questão sobre o objeto que responde a essa falta.
Escolhi pois, o caso de uma menininha no ápice do complexo de
castração: a pequena Piggle de Winnicott. Reestudando este caso, constatei
que Piggle me interessava mais até que ao próprio Winnicott, porque, com ela,
encontro o que é, de algum modo, a essência desse caso.

Piggle e Hans

Piggle e Hans podem ser relacionados em muitos aspectos. Há entre


eles muitas analogias e algumas diferenças também. Inicialmente uma
analogia: são duas crianças que se poderia chamar ... normais, se vocês me
permitem este termo do qual não se gosta muito hoje em dia. O próprio
Winnicott o emprega e não está longe de pensar, para a pequena Piggle, que
com rigor ela teria podido prescindir do psicanalista. Ele considera que, no
seu caso, e ele o diz textualmente, ter-se-ia podido contar com as capacidades
evolutivas. Eu traduzo assim: ter-se-ia podido contar com o dinamismo do
trabalho do inconsciente para resolver a questão que se apresentava. O
pequeno Hans, ele também, no fundo, tem um pequeno sintoma bem banal,
frequente nas crianças pequenas. Era até aí um menininho com o qual todo
mundo estava encantado, que não tinha nada de particular.
Há também um outro ponto comum, é que eles não tem a ver com a
análise senão através dos seus pais que são adeptos da psicanálise. O pai de
Hans é um adepto de Freud, muito feliz de dizer ao Professor: enfim, eis uma
criança que se presta à sua doutrina e que a confirma. Os pais da pequena
Piggle também são convertidos. Aliás, eles próprios falam “winnicotiano”. É
muito espantoso! Faz-se a experiência, como eu o fiz: se lê o caso uma
primeira vez, e se retoma em seguida para trabalhar: guarda-se na memória as
observações, mas não se sabe mais se elas são ou não de Winnicott, é preciso
verificar se elas se encontram nas cartas dos pais ou no texto do próprio
Winnicott. Verdadeiramente, aí se fala uma única língua, percebe-se uma
transferência a Winnicott que é tão poderosa quanto a do pai de Hans a Freud,
e aliás, como se dizia o Professor Freud, se diz o Doutor Winnicott. Esta
nuance não escapa a Piggle que, no momento em que sua transferência
começa a ser recortada por algumas dúvidas, questiona e pergunta: “Por que
Doutor?”, “É verdadeiramente doutor, esse Doutor Winnicott?”.
Outra coisa aproxima ainda os dois casos. É a intervenção dos pais na
cura, por suas explicações, por suas questões à criança e pela coleta de grande
parte dos dados. Para o pequeno Hans, isto é muito nítido. Pode-se perguntar
qual é a analise desta criança que não viu o psicanalista senão uma vez, creio.

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Para a pequena Piggle é diferente, ela o viu umas dezesseis vezes, numa
duração de dois anos e meio, mas que não é também extremamente intensiva.
Aliás, Winnicott coloca a questão no seu breve prefácio: ele se pergunta se em
um dispositivo tão pouco clássico se poderia falar de psicanálise. Eis aí, eu
creio, uma questão que nós não colocamos porque não temos dispositivo
clássico. Para nós é uma análise: Winnicott duvida, mas nós não duvidamos.
Ele considera como uma audácia o fato de que não tenha feito três ou quatro
sessões por semana, regulares e obrigatórias. Não apenas as sessões são muito
espaçadas, por razões de distância, diz ele, mas além disto são sessões sob
demanda. É preciso que a criança insista para ir ver o Doutor Winnicott. Isso,
durante um certo tempo. É preciso que ela diga de início: “Leve-me até o
Doutor Winnicott”, e que, então a mamãe diga: “Sim, logo” e ela espera que a
criança peça uma outra vez. Depois ela escreve ao Doutor Winnicott: Doutor,
ela pediu duas vezes,” etc., e finalmente, tem a entrevista. Portanto é um
dispositivo particular, onde se quer que a criança aí coloque algo seu. É claro,
compreende-se que a demanda da criança, mesmo se ela é perfeitamente
autêntica, no entanto, sobretudo no começo, é uma repercussão da demanda
dos pais por efeito de sugestão: faz-se dizer pela boca da criança bem que se
gostaria que Winnicott recebesse a menininha.
São, portanto, dezesseis sessões que se instalam entre 3 de fevereiro de
1964 e 28 de outubro de 1966. Observem que isso começa no ano mesmo da
criação da École Freudienne de Paris, não é tão distante assim. A pequena
Piggle tem dois anos e quatro meses. Seu problema maior, ela o divide ainda
com Hans, é a angústia. Há muitos outros sintomas infantis possíveis, a
anorexia, a enurese, a agitação, a insônia, etc., mas para ambos o problema
está centrado sobre o pivô da angústia. As circunstâncias disto são
perfeitamente identificadas por Piggle: é o nascimento da sua irmãzinha. Em
Hans há outros fatôres situáveis na conjuntura do desencadeamento. Aí, é
apenas o nascimento da irmãzinha, isto é, a aparição de um novo objeto do
Outro. Vê-se, de imediato, que a castração materna não é evocada
diretamente, mas indiretamente como a implicação desse novo objeto do qual
se deduz por, assim dizer, que lhe faltava alguma coisa.
Há um outro ponto comum na curva da cura: de onde ela parte e onde
ela chega. Eu voltarei a isso..
Não esqueço também que há diferenças. De início, a idade: cinco anos
para um, dois anos e quatro meses para a outra; é muito, muito diferente; o
sexo, certamente, e, depois, sobretudo, o sintoma. Piggle não tem fobia,
enquanto que Hans, com sua fobia do cavalo montou sua angústia em sintoma
O que é que vem nesse lugar para Piggle? Pesadelos que fazem com que
ela não queira mais ir se deitar, não queira mais dormir, que desperte gritando

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e que as noites sejam especialmente movimentadas. Evidentemente isto a
coloca, de uma certa forma, mais ainda em dificuldade. A fobia como
elaboração sintomática da angústia, alivia, não apenas porque localiza a
angústia, deslocando-a de seu lugar de origem, a saber, o face a face com a
mãe , mas cai sobre um objeto mais distante, possível de evitar. É um
benefício muito grande para o sujeito. Quanto à pobre Piggle, de seus
pesadelos, ela não pode fugir, eles a seguem. Aliás, ela tem manifestações
complementares à angústia que os pais diagnosticam no nível do humor:
tristeza, apatia, choros, fragilidade, numa menininha descrita como
transbordante de vitalidade e que não temia nada, até o nascimento da
irmãzinha.
Há, ainda, uma outra grande diferença com Hans: são os pais. Para a
pequena Piggle, dizemos: “os pais”. Quanto ao pequeno Hans, há o pai e a
mãe, bem separados em todos os sentidos do termo. Dizemos “os pais”
porque, ainda que houvesse desacordo entre os pais do pequeno Hans, há, aí,
um acordo patente ainda que, de passagem, um momento de tensão seja
evocado pela mãe. Ocasião que nos é dada para constatar que isto não é o
melhor, que, finalmente, não é neste nível que as coisas se situam! Não é o
elemento estrutural determinante.Winnicot, aliás, está de tal forma, ele
próprio, de acordo com os pais, fenômeno impressionante apesar de tudo,
nota: “carta dos pais...escrita pela mãe”, e apenas uma vez há uma palavra do
pai. Eu considero isto um pequeno traço sintomático do casal, talvez de
Winnicott também. São pais um pouco fundidos, pelo menos no relato. Talvez
mesmo, isto vá mais longe ainda, porque, apesar de algumas advertências que
Piggle lhe lança, pelo menos seu inconsciente, Winnicott considera que o pai,
em certos momentos, faz a mãe, fale pela mãe. É impressionante constatar, de
fato, que ambos emprestam seus corpos. Não sei se é o efeito de uma
inclinação ou de suas formações winnicotianas, porém ambos consentem em
um certo tipo de corpo a corpo com esta criança. E nós a vemos pedir para
mamar os “miams” como ela chama os seios de sua mãe, e termina-se por
permitir-lhe isso depois de hesitar um pouco, porque não se sabe se é bem
ortodoxo. De maneira homóloga, ela quer sugar o polegar de seu pai, e nos
descreve uma viagem, onde todo o tempo, ela sugou o polegar do pai. Este
fato tem a sua importância. No caso do pequeno Hans, o elemento falóforo
estava minorado pela relação de desacordo entre os pais, pela impotência do
pai de se fazer ouvir por sua mulher que não o amava e não o desejava. Mas,
vê-se aí que com esta boa acomodação, o elemento falóforo não é menos
elidido. Ele não está ausente porém um pouco minorado, e quando ele é às
vezes evocado em certas interpretações, não é jamais sem confusão.

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Piggle pré-interpretada

Antes de vir ver o Doutor Winnicott, eu diria que Piggle já está


interpretada, em termos de Édipo, no sentido comum, do Édipo tal como ele
circula em toda parte agora, a saber, que se a descreve no começo de sua vida
como uma menininha muito agarrada a seu papai e indispondo-se com a sua
mãe. Interpreta-se, também, a mudança que foi constatada no nível edípico em
termos de distância em relação ao pai. Interpreta-se a mudança, a angústia
surgida, como efeito de uma decepção em relação ao pai, que, sub-entende-se,
deu à mãe um filho ( como não vai tardar de lhe dizer com todas as letras ).
No total, toma-se o aparecimento da angústia e seus transtornos de humor
como uma regressão ao estado bebê. Vocês vêem que há nos primeiros textos
da mãe uma resposta. À questão: “O que se passa?”, ela responde que sofre do
abandono de seus objetos edípicos, e que ela quer regressar na rivalidade com
o bebê, até o estado de aleitamento. A mãe está muito tocada, sente-se, pelo
fato de que sua filhinha perdeu a sua alegria aparente, sua autonomia, seu
equilíbrio. Ela diz “agora ela se bate, ela cai, jamais se batia, jamais caía”.
Como entra, portanto, em Winnicott esta Piggle já interpretada,
doutrinada mesmo? Vejam seu vocabulário: uma menininha tão jovem que
diz: “Tenho tormentos!” Mas, viu-se nos textos da mãe: “Ela está muito
atormentada”. Ela chega, pois, em Winnicott com a idéia de que Winnicott
sabe sobre o babacar e a mamãe negra. Isto lhe foi dito, se lhe insuflou a
transferência. E o que é que ela faz quando entra? Primeira sessão: ela começa
a pegar os brinquedos que estão em uma caixa e diz: “Um outro, um outro, um
outro...” Winnicott, justificadamente, lhe diz: “Um outro bebê?”. O contexto
pedia esta observação, porque não? Ela não dá importância, replica, e pegando
outro brinquedo, diz: “De onde vem isto?” Então Winnicott reconhece aí,
evidentemente, a questão freudiana por excelência, que sabemos estar ligada à
angústia de castração: “De onde vem as crianças?” É verdadeiramente a
questão da simbolização da existência diante da qual Hans tropeça também,
além desta, com a questão de seu sexo.
Faço aqui uma observação, que vem se juntar, aliás, à observação de
Marga Mendelenko-Karsz, é que a questão da pequena Piggle é uma questão,
de fato, de fundamento. Ela entra com uma questão epistêmica, ela não entra
com uma queixa. Não sei se se pode dizer que “nada é sem razão”, esta seria
uma tese hegeliana por excelência, em todo caso para nós o “sem razão” não é
sem estar inserido nas razões e aí, vocês tem perfeita razão, tem a ver com um

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sujeito que busca razões. O que é espantoso, assombroso, é com que
confiança, com que ingenuidade intelectual, é preciso dizê-lo, Winnicott não
hesita a dar a resposta. À questão se resposta: “De onde vem os bebês?”,
Winnicott responde. Responde como empirista, que o homem coloca algo na
mulher e isto faz um filho. Há, pois, uma resposta que implica três termos: o
homem, a mulher e algo. Piggle interpretada por seus pais, o é agora por
Winnicott, e de uma maneira extremamente... ingênua. Quanto à Piggle, ela se
mantém por ora do lado da questão, à espera.

As palavras do inconsciente

Piggle porém já tem as palavras do inconsciente - é o meu segundo


desenvolvimento. Ela não dorme, ela não quer ir dormir, se agita, desperta,
fala à noite. Não são o que se chama terrores noturnos clássicos. Ela tem
pesadelos que falam. E no fundo, muito rapidamente, antes mesmo que ela
chegue, pode-se dizer há um texto mínimo. Nada de equivalente ao cavalo de
Hans, mas de qualquer forma as palavras da angústia. Uma palavra, de
preferência, e depois uma espécie de fantasmagoria noturna. A palavra, é “o
babacar”, espécie de neologismo infantil. Interroga-se: isso poderia fazer
pensar à “carro”, “bebé”. Mas enfim, não é isto; o “babacar” é uma palavra
que não quer dizer nada. E a pequena Piggle precisa: “... por causa do
babacar”. Vocês se lembram da fórmula que Lacan tão bem sublinhou “por
causa do cavalo...” Aí é “por causa do babacar”. Bem entendido esse babacar
surge num diálogo com os pais, porque, quando se lê o texto, vê-se que os pais
pressionam a criança, observam-na, fazem escrutínio, questionam: “O que é
que há?... Por que?...” Portanto, isso surge num diálogo. Ela os faz passear um
pouco, como Hans os faz passear com o cavalo. Contudo, isto é sério, o
“babacar”: é o significante sem significado, sem outro significado que o
enigma, sem significação para-angústia. Não tem a eficácia do cavalo da Hans
porque o “babacar,” é alguma coisa que tem a virtude da ubiquidade, ele está
em toda parte, sempre. Evidentemente, “babacar”é o nome da causa da
angústia, não da causa do desejo, mas da causa da angústia, e é alguma coisa
que jamais a abandona. Não digo que Piggle jamais esqueça, é o “babacar”
que não a esquece. Os pais notam, de passagem, que quando tudo vai bem, em
um momento dado, de súbito, ela se imobiliza e diz “o babacar”, e tudo está
estragado. Aliás ela tem espantosas réplicas. Uma vez sua mãe lhe diz: “Não
faça isto!”, ela responde: “Mas eu não quero fazer isso!” O outro elemento
verbal, é uma frase. Há algumas variantes, mas a matriz disto é: “a mamãe
negra reclama seus miams”. É poderoso como fórmula, há muitas coisas nesta
frase produzida pelo inconsciente de uma menininha de dois anos e quatro

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meses. “Mamãe negra”, é muito claramente, se posso dizê-lo, o nome do
Outro barrado, ameaçador. Há toda uma semântica do negro na cultura, do
romance negro, do humor negro etc. Digamos que é a cor do Kakon, o negro,
a cor do luto também. Vê-se aqui que é o nome do Outro mau, perigoso. Aliás,
se verá ao longo do caso, que o negro pode circular, é metonímico. A mamãe
negra guardará esta identidade negativa, mas o negro circulará e,
sucessivamente, se verá surgir o bebê Suz, é o nome da irmãzinha, tornada
negra, Piggle negra, certamente, e isto quer dizer em cada caso, mau.
“A mamãe negra reivindica seus miams”: pode-se encontrar algo mais
condensado para ilustrar o sonho que interpreta, e mais simples como nome do
Outro barrado que “mamãe negra?” O sonho diz que ela quer: seus “miams”.
O sonho interpreta aqui o desejo em termos de objeto oral, os “miams” dando
o nome do objeto do desejo enquanto desejo do Outro. Muito simplesmente.
Farei alguns comentários. Não há dúvida que este objeto - que a mamãe
negra reivindica como um ter, como alguma coisa que lhe foi tomado,
escondido -, designa o próprio ser da pequena Piggle. Tem-se no caso um
índice preciso, é que no momento em que aparecem o “babacar” e “a mamãe
negra” que “ reivindica seus miams”, os pais - e é isso que mais os inquieta -
indicam de maneira absolutamente incontestável o aparecimento dos
problemas de identidade. Há toda uma parte da interpretação dos pais que se
formula em termos de ciúme infantil, em termos do que Lacan chama la
jalouissance, o ciúme pelo outro objeto, situado sobre o eixo imaginário. Mas
não há senão isso. Há a observação que a partir do momento onde surgem com
a irmãzinha o “babacar” e “a mamãe negra”, Piggle não quer mais ser ela
mesma, ela não quer mais em todo caso que a chamem pelo seu nome. Ela
pretende ser a mamãe, o bebê, mas jamais Piggle. E além disso, sua mãe
observa que ela muda de voz, de intonação, que ela se concede uma vozinha
aguda, artificial, que inquieta os pais. Percebe-se precisamente aqui como o
nascimento de uma outra criança abalou o que se pode chamar a segurança do
filho único, que não é ainda sem dúvida uma segurança da fantasia, mas que
dela é certamente o embrião. Isto a abalou a ponto de produzir o que muito
bem se pode chamar um efeito de despersonalização. A pequena Piggle não
sabe mais quem ela é. Portanto, quando o sonho interpreta o desejo do Outro,
em termos, oral, é também uma maneira de nomear seu ser de objeto em “sua
ereção de vivo”, segundo a expressão de Lacan. Aliás Winnicott o
compreende nesses termos. Não tem a mesma língua que nós, se se quer, mas
ele o toma como tal.
Mas há a mais. Ele não duvida que esses “miams” designam também o
objeto dela, e interpretam seu desejo e uma parte de seu gozo. Tem-se no
relato da pequena Piggle o que vou chamar dois transes orais. Um sobre o qual

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Winnicott coloca de preferência a ênfase: ele diz “é um orgasmo oral
generalizado”. Isso se produz na nona sessão, mas desde a segunda sessão,
Winnicott e ela tinham começado a se comunicar, como ele diz, por barulhos
de boca e movimentos de sensualidade oral. Winnicott precisa: “Ela começou
a fazer caretas, a fazer girar sua língua na sua boca, eu a imitei, é assim que
nós nos temos comunicado a propósito da fome, do saborear, barulhos com a
boca, da sensualidade oral em geral. É satisfatório”. Isto era a primeira
ocorrência, bastante discreta, e depois houve a nona sessão, onde ele diz que é
um orgasmo generalizado.

A transferência

Qual é o significante da transferência? Não há a menor dúvida me


parece, é o “babacar”. Ela chega com seu “babacar”, apresenta-o à Winnicott,
que é aquele do qual se lhe disse que é conhecedor em matéria de “babacar” e
“mamãe negra”. Este “babacar” é, pois, significante do enigma, que
representa junto a Winnicott o pequeno s do sujeito desconhecido, espera-se
saber o que ele é, o parêntese do saber suposto estando ainda vazio. Pode-se
escrevê-lo sem se forçar no matema da transferência:

Babacar → Winnicott
----------
s (........)

Aliás, isso é muito surpreendente, após a primeira sessão , quando


chega, ela comenta: “O Doutor Winnicott não sabe nada do babacar”. É
verdadeiramente extraordinário! Na segunda sessão, Winnicott lhe pergunta
sobre o “babacar”, colocando-a como o sujeito-sabedor do babacar, depois ele
tenta uma interpretação: seria o negro que dá mêdo, o resultado não é muito
claro, mas na terceira sessão, ela precisa novamente sua posição: “Tomei o
trem para Londres, para ver Winnicott”, “eu quero saber por que a mamãe
negra e o babacar”. Ele responde: “Tentaremos encontrar”.
Tem-se verdadeiramente aí como um traçado da entrada na
transferência, e pode-se seguí-lo ao longo da evolução. Winnicott a comenta,
muito no nível da confiança, do amor, mas as coisas se passam, de fato, num
outro nível. Quando da sessão maior, que é a virada da cura, a nona, esta que
abre também em direção à saída da cura, tem-se o testemunho preciso do
abalo do sujeito suposto saber, em relação a Winnicott.

“Nós as meninas...”

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Qual é a curva desta análise? Sublinhei alguma coisa de análogo com o
caso do pequeno Hans: isto começa com as palavras do inconsciente, o
“babacar”, “a mamãe negra” e, finalmente, termina com um pequeno romance
familiar. Tinha-se partido, também no caso do pequeno Hans, do cavalo da
angústia, no fim, sugestionado um pouco por Freud, sem dúvida, mas ele
inventou sua ficção resolutiva dos impasses edipicos: a avó para o pai, e a mãe
para ele. Vê-se que a pequena Piggle também fabricou sua pequena ficção.
Isto começa na oitava sessão mas culmina na nona. Não destaco aqui senão o
que parece determinante para a minha proposta. Winnicott fez diversas
interpretações, sobre a voracidade oral de um lado, e sobretudo sobre a
rivalidade com a irmã. Chega-se à oitava sessão. Viu-se circular o negro entre
todos os personagens, e ela fala de novo da irmãzinha, e ele interpreta em
termos de amor-ódio, sobre o eixo imaginário a---a’, dizendo-lhe: “Tu detestas
Suzanne, mas ao mesmo tempo tu a amas”. Então, ela lhe dá uma pequena
lição, numa réplica imediata ela lhe explica que ela e sua irmã são
semelhantes, ela distingue o que é amar bem e amar. Ela lhe diz: “ Nós duas
nos banhamos na lama, mudam as nossas roupas”, e depois - é a passagem
central - diz: “Eu gosto muito de Suzanne, papai gosta da mamãe, a mamãe, é
de Suzanne que ela gosta mais, e é de mim que papai gosta mais”. É de
qualquer forma muito preciso e espantoso. Não vou avançar que é uma
metáfora paterna invertida, seria dizer demais, mas enfim, se construísse o
gráfico dos vetores amorosos que ela designa, há um aí que falta, aquele que
iria da mãe em direção ao pai. Para a pequena Piggle, é claro, o amor do pai
vai em direção à mãe, e secundariamente em direção a ela mas o amor da mãe
vai em direção à criança e mais precisamente em direção à irmã. Encontra-se
aí uma segunda interpretação do desejo da mãe, que não é mais os “miams”.
A nona sessão confirma. Ela já está menos angustiada, tudo vai melhor.
Na sessão ela começa a descrever uma espécie de pugilato com a “mamãe
negra” porém não mais no clima de angústia, é um afrontar-se, do gênero:
“retira-te que eu quero me colocar ”. Ela diz: “A mamãe negra vem, ela quer
tomar minha cama, eu tenho uma bela cama, eu quero guardá-la, etc.” Há uma
página e meia sobre o pugilato com “a mamãe negra”, tudo isto é
relativamente lúdico, ela resmunga, ela brinca. Winnicott diz: “Isso se torna
confuso”, ele se sente adormecido, e vocês sabem que ele sempre toma seus
adormecimentos como sinais muito importantes do que se passa do lado do
paciente. É aí que Piggle extrai seu pequeno romance, seu romance familiar de
futuro, com suas promessas, como Hans, que dizia: “Tu vais viver com a
vovó, eu viverei com a mamãe”. Estas promessas de futuro são precedidas de
um pequeno preâmbulo, que tem seu preço. Ela diz: “Durante muito tempo

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mamãe não queria bebê, depois ela queria um menino, mas teve uma menina”.
A mãe está muito aborrecida, ela coloca aí uma nota de protesto. Sabe muito
bem, diz ela, que para a primeira criança tanto fazia menino ou menina, isso
era igual, para a segunda ela teria querido um menino, mas não para a
primeira. A pequena Piggle em todo caso não crê nisso absolutamente, ela
continua, e é aí que começa o romance que diz: “Suz e eu, teremos um menino
quando formos grandes. Eu e Suzanne, deveremos encontrar um senhor papai
e casarmos”. Eis o romance: as meninas terão um menino mas a condição
necessária prévia será encontrar um senhor papai para desposar.
Aí se pode fazer de qualquer maneira um certo número de comentários.
De início este romance confirma e precisa o que se dizia na oitava sessão:
papai gosta da mamãe, que gosta da criança... menino. Vê-se que o falo está
no lance. Ela tem, portanto sua interpretação da mulher, muito clara: é uma
mãe, o homem estando no lugar do instrumento. É mais preciso ainda: uma
mãe que quer um menino. Dito de outra forma, o falo, não é no homem que se
o procura mas no filho. O homem é “um senhor papai a esposar”. A expressão
me interessa, ela merece que nos detenhamos. Ela vem, talvez do próprio
Winnicott, porque num certo momento, ele diz: “Na transferência, eu sou um
senhor bem papai”. Conhece-se, é um clássico do inconsciente, a divisão da
mulher entre a mulher-mãe e a mulher-mulher, mas a divisão do homem, em
homem-papai e homem apenas, isto é uma novidade do caso da pequena
Piggle e do texto de Winnicott. Aparentemente, ele se esforça, sempre, por
restabelecer a igualdade dos sexos, é muito claro, a cada um, pois, suas duas
faces! O modo como ele aborda a castração mereceria, aliás, um estudo em si
mesmo.
Resumo o romance de Piggle: “Nós, as meninas, teremos um menino”.
E eis aí a solução para a inveja do pênis. Winnicott não vacila, ele diz, ele
cochila. Ela, lúdica: “Escutou o que eu disse, Doutor Winnicott?” Como ela o
interpela: “Escutou o que eu disse?”, ele interpreta. E de uma maneira que
verdadeiramente me surpreende: eu tenho uma boa ocasião para observar que
não compreendo isso que a fundamenta. Quando ela diz: “Terei um filho”, e,
mesmo, “nós as meninas, teremos um menino na condição de encontrarmos
um pai”, ele lhe diz que ela toma a posição de menino em relação à sua irmã e
lhe dá uma significação: “Tu és o homem de tua irmã”. Não é o que o material
impõe neste momento. Ela não replica explicitamente, mas é aí que se vê
aparecer o que eu lhes tinha anunciado, há pouco, a dúvida transferencial da
pequena Piggle. De início, ela havia começado a sessão dizendo-lhe que se
calasse, que a escutasse e que isso iria bem. Aí, ela continua seu jogo, falando
sozinha, e diz: “Isto é meu leito, não posso ir de trem para o Sr. Winnicot, tu
não podes ir de trem para a casa do Sr. Winnicot, ele sabe verdadeiramente o

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que é o mau sonho, não, ele não o sabe, sim, ele o sabe, ele não o sabe...” E
assim, a seguir, ela tem toda uma conversa sobre o saber duvidoso do Senhor
Winnicot. Ela lhe escreve, mesmo, em seguida, no seu aniversário: “Vai-se
enviar para ti uma faca para cortar os sonhos”, assim como outras réplicas de
transferência gentilmente negativas, isto é, de dessuposição de saber. Piggle,
em todo caso, encontrou uma solução para o desejo: passou-se de sua
interpretação pelo objeto oral, os “miams”, para a interpretação pelo objeto
fálico( cf. o menino portador do falo) e, no fundo, ela tem,a partir daí, sua
fórmula do homem e da mulher. O homem, o pai, gosta da mamãe. Eu traduzo
isso dizendo: o homem procura uma mulher. E a mulher, a mãe, bem, ela
busca um filho, isto é muito claro.
Vejamos agora os resultados. Neste caminho que vai das palavras do
inconsciente à solução romanceada, “teremos um filho” em que se tornaram as
angústias? Elas foram reduzidas. Desembaraçou-se da “mamãe negra” e do
“babacar”. No que diz respeito a este último, ele simplesmente desapareceu do
discurso, sem ter tomado sentido, simplesmente não se fala mais dele. É uma
maneira de resolver o enigma. A “mamãe negra” desaparece também , mas de
outro modo: matando-a. A pequena Piggle contou que ela sonhou que matava
a mamãe negra. Ela viu assassinatos na televisão, com fuzis e tudo isso. Ela
estava um pouco angustiada antes de dizê-lo, mas, enfim, tudo vai bem, ela
está morta. Há esta frase: “Ela estava morta no sonho”. Antes disto, já tinha
havido uma mudança, ela tinha se tornado menos real. Winnicott diz: isto não
é a mesma coisa, antes ela estava lá, e agora é como se ela estivesse somente
no sonho, quer dizer que se percebe que um efeito de simbolização se
produziu. Um traço clínico assinala esse efeito de simbolização: bem no
começo, um dia sua mãe lhe faz uma pergunta: “A mamãe negra veio?” Ela
responde: “ A mamãe negra não vem, ela está em mim”, isto é, sempre aí.
Nesta sessão, pelo contrário, ela precisa: “A mamãe negra não vem mais”. Ela
começou, portanto, um movimento de presença-ausência e, finalmente a mata
o que é verdadeiramente um modo de singnificantizá-la: dela não restará mais,
daí por diante, senão a lembrança, sua consistência de angústia estando riscada
do mapa. O benefício sintomático é, pois, muito nítido também, é o ganho
sobre a angústia e a pontuação de uma posição antecipada do ser mulher-mãe.
Ela ainda tem momentos de angústia, mas, enfim, não é mais absolutamente
maciça. Há um outro efeito maior situável, é a queda do efeito - supereu.

O Supereu

Um dos grandes interesses deste caso diz respeito, me parece, à


emergência do supereu. A “mamãe negra” que reivindica seus “miams” é uma

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figura do supereu, uma voz que vem exigir um objeto, que pede que lhe ceda o
que é para esta criança o objeto de gozo. É impressionante, e os pais o
constatam com dor, ver aparecer numa menininha tão jovem, culpabilidade,
auto-acusação e auto-censura.
Vê-se verdadeiramente neste caso da pequena Piggle o quanto o supereu
está ligado ao objeto de amor, surgindo quando o enigma do Outro barrado
emerge do amor. A figura obscena e feroz do supereu não é engendrada pela
violência do Outro da qual ela seria uma transposição - Freud o observou há
muito tempo. Ele está ligado, ao contrário, à doçura do amor que, justamente,
engana o desejo. Aí, na pequena Piggle, percebe-se de maneira patente:
quando a barra sobre o Outro se faz presente por causa do aparecimento da
irmã, então a perseguição começa, o supereu profere suas exigências e a
culpabilidade gera raiva. De início ela tenta ser uma menininha modelo, ela
arruma, ela escova, ela limpa, enquanto que a mãe não exige coisa alguma e
não o faz ela mesma. Depois se arrepende: “Não o farei mais...” e inventa
faltas para si mesma. A mãe nota que uma vez, há muito tempo numa loja,
Piggle levantou um pouco sua saia, a mãe se virou e teve de lhe dar um
tapinha. Alguns meses depois ela diz: “Mamãe, eu não levantarei nunca mais
a sua saia...” Ela se acusa de forma patética: “Eu sou má, eu sou vilã.
Finalmente, com a cura, a rolha superegoica se destampa. Winnicott
observa os progressos em relação a isto. De início, ela cessa de pôr ordem, ela
deixa tudo fora do lugar no seu consultório. Depois ela começa a sujar, a pôr
sujeira em toda parte com cola. Ele está muito contente, porque aí, são as
audácias da pulsão que prevalecem sobre o gozo das renúncias. E, finalmente,
há o grande transe oral onde a sucção de um objeto implica todo o seu corpo
no que Winnicott chama um orgasmo oral que vem justamente depois que ela
diz, falando da “mmãe negra”: “ela estava morta no meu sonho, eu a havia
matado”. Evidentemente, Winnicott reconhece aí o triunfo da pulsão sobre a
morbidez superegoica.

Winnicot intérprete

Agora, algumas observações finais. Vocês notarão que não falo muito
de Winnicot: seria tão fácil criticá-lo!
Eu não queria deixar passar este traço original , que lhe é próprio, isto é,
a interpretação encenada. Todos os psicanalistas de crianças utilizam o
brinquedo, sem dúvida, mas quase que só há Winnicot que pratique o que vou
chamar a interpretação encenada. Isto pode, aliás, dar lugar a cenas com um
aspecto ridículo. Um dia, ele se põe a fazer-se o bebê, ele é a Piggle negra que
está furiosa porque quer todos os “miams”para ele e se põe a sapatear , a saltar

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no chão, a dar pontapés. A pequena Piggle, por sua vez, está deslumbrada e
aterrorizada, depois ela fala disto para todo mundo : “O bebê Winnicot estava
muito encolerizado “... Isto é um traço de sua prática singular, a interpretação
encenada. O efeito de espelho é aqui patente mas serve para fazer aparecer ,
para designar as pulsões do sujeito, aí, Piggle. Evidentemente que ele tem,
também, as interpretações classicamente proferidas. Elas são diversas,
visando, seja o amor-ódio, sobre o eixo a-----a’, seja a pulsão, sobretudo o
furor da voracidade oral, seja, enfim, o referente fálico.
Eis aí o ponto fraco de Winnicot: sua maneira de tratar o problema da
castração e do falo. O que mais lhe falta, se posso dizer, precisamente, é a
dimensão da falta de objeto que Lacan tanto martelou no Seminário IV.
Winnicot, no entanto, leu Freud e se refere a isto explicitamente falando da
inveja do pênis na menina, mas, dir-se-ia uma inveja do pênis sem falo, logo, é
um pouco difícil e vê-se, no entanto, muito bem o que se passa , é que,
minuciosamente, ele coloca uma equivalência, de uma certa maneira realista,
entre o que ele chama o zizi - pelo menos em francês é traduzido assim - e o
seio, tomados quase como objetos da realidade perceptível. O zizi e o seio são
tratados como dois objetos parciais equivalentes, tal como o pai e a mãe são,
exatamente, duas figuras em espelho que emprestam, igualmente, os seus
corpos, eu já disse. Assim, quando Piggle brinca de nascer entre as pernas do
pai, ele não tem idéia de que o significante do pai introduz alguma coisa aí.
Para ele é igual a nascer da mãe. Finalmente, ele termina por soltar uma
interpretação, propriamente escandalosa, do nosso ponto de vista. É uma
interpretação onde ele lhe dá sua versão do par sexual, disto que, para ele, está
no lugar da metáfora paterna. Ele lhe diz, em suma, que o homem toma os
“miams”da mulher mas que, depois, ele os devolve sob a forma de algo que
ele lhe dá para que ela tenha seu filho. Dito de outra forma, o homem é um
ladrão - Piggle o formula num certo momento- mas um ladrão arrependido! eu
digo que é verdadeiramente escandaloso como desconhecimento da função da
castração. Isto vai até a inversão: é a mãe quem tem, quando ela não tem, é
que lhe tomaram e, portanto, pode se lhe devolver. O rebatimento sobre o
registro da frustração é completo, explícito, formulado de maneira maciça e
tem por correlato uma verdadeira denegação da falta da mãe. O que há de
bom, de encorajador, é que isto não chega a fazer grandes estragos porque a
pequena Piggle já deu sua própria interpretação Pode-se dizer que é o
inconsciente quem ganha no fim, para retomar a expressão de Lacan em
“Télévision”: como “o chiste ganha do ínconsciente” , aqui, é o inconsciente
da pequenina Piggle quem ganha de Winnicot Eu tendo a ter a impressão, com
toda reserva, de que a interpretação de Winnicot não é tão nociva quanto vã,

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ainda que vá no mesmo sentido em relação a um ponto: à promessa de
recuperação.

Questões:

Resumo de algumas respostas de Colette Soler às questões propostas


pelo público.

* Há três intérpretes: dois estão na mesma onda, a família e Winnicot,


de um lado, e o inconsciente da pequena Piggle de outro. Situamo-nos melhor
nesta questão dos intérpretes se distinguirmos o inconsciente como texto e o
inconsciente como desejo. Quando dizemos o inconsciente intérprete, há
sempre uma ambiguidade. O inconsciente fornece o texto: o “babacar”, a
“mamãe negra que reivindica seus miams”, é o texto. Neste sentido, como
Lacan o diz, ele procede, exatamente, pela interpretação colocando
significante sobre o inominado da angústia. Em seguida, podemos colocar a
questão do desejo como significado deste texto, desejo que qualificamos
também de inconsciente. Há a produção do texto e depois a leitura do texto.
São duas operações diferentes.

* Eu não chego a dizer que Winnicot não sabe nada da castração. Mas,
seguramente, o falo como significante de uma falta de objeto lhe falta. Ele o
rebate sobre o pênis do qual faz um objeto parcial como um outro, tomado na
sequência suposta do desenvolvimento: de início se tem o seio, quando a
criança é pequena, e mais tarde, quando a questão do sexo se coloca, então,
vem o objeto pênis.Não é, nem mesmo, kleineano neste aspecto, na medida
em que Melanie Klein faz entrar o pênis no circuito desde a origem.

* A despersonalização de Piggle é uma desidentificação selvagem,


como reação ao nascimento da irmã. Isto prova que, para ela, seu lugar no
desejo do Outro está, doravante, colocado. Antes, ela tinha, sem dúvida., a
garantia de um lugar único e podia se identificar à pequena maravilha da
família. Depois ela se depara com um outro objeto que faz com que ela não
saiba mais qual é o seu lugar nem o que ela vale. A despersonalização vem
junto com a desvalorização culpável, observem, e o enigma angustiante diz
respeito a seu próprio ser. De repente, o apelo à interpretação também é um
apelo a uma nova identificação.

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Tradução: Sonia Magalhães. Revisão: Jairo Gerbase

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