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COMUNIDADES TERAPÊUTICAS
Laura Fracasso
PONTOS-CHAVE
9 O objetivo específico da comunidade terapêutica é tratar o transtorno individual, transformando estilos de vida
e identidades pessoais.
9 O processo de recuperação começa quando os indivíduos aceitam a responsabilidade por suas ações,
independentemente da etiologia da substância psicoativa.
9 A permanência indefinida é substituída por uma duração planejada de permanência residencial orientada por
um plano e por um protocolo de tratamento.
N a segunda década do século XX, foi fundada uma A conversa entre os dois homens foi um momento fun-
organização religiosa, grupo de Oxford (por vezes dador para a irmandade de Alcoólicos Anônimos, pois a
chamado de “movimento”), por Frank Buchman, minis- troca de experiências desencadeou a missão de ajudar
tro evangélico luterano. Em seu primeiro nome, First outros dependentes de álcool.1
Century Christian Fellowship, transmitia sua mensa- Entre os princípios do AA, diretamente provenien-
gem essencial – um retorno à pureza e à inocência dos tes do grupo de Oxford, estão: confessar-se aos outros,
primórdios da Igreja Cristã. A missão de Oxford para reparar males feitos e a convicção de que a mudança
o renascimento espiritual dos cristãos acomodava, de individual envolve a conversão à crença no grupo. Mas,
modo amplo, todas as formas de sofrimento humano. na irmandade de AA, o membro individual pode se en-
Os transtornos mentais e o alcoolismo, embora não volver de forma particular com seu próprio conceito de
fossem o foco principal, eram contemplados pelas preo- Poder Superior, enquanto o membro do Oxford tem re-
cupações do movimento por serem sinais de destruição lação específica com o Deus Cristão. No entanto, há nas
espiritual.1 Parte das ideias e práticas incluía a ética do duas orientações a ênfase em um Poder Superior ao eu
trabalho, o cuidado mútuo, a orientação partilhada e os como a fonte espiritual de mudança pessoal.1
valores evangélicos da honestidade, da pureza, do altru- No campo psiquiátrico acontecia outra revolução:
ísmo e do amor, o autoexame, a reparação e o trabalho a experiência da comunidade terapêutica democrática
conjunto.2,3 Em 1935, em Akron, Ohio, foi fundada a para distúrbios mentais. A comunidade terapêutica (CT)
irmandade de Alcoólicos Anônimos (AA), por dois psiquiátrica prototípica foi desenvolvida a princípio na
dependentes de álcool em recuperação, Bill Wilson, cor- unidade de reabilitação social do Belmont Hospital
retor de Nova York, e o médico Bob Smith. (mais tarde chamado de Henderson), na Inglaterra, na
A influência do grupo de Oxford e a irmandade metade da década de 1940. Tratava-se de uma unidade
de AA associam-se a pessoas específicas. Ebby T., um de 100 leitos voltada para o tratamento de pacientes
dos convertidos pelo grupo de Oxford no final de 1934, com problemas psiquiátricos que apresentavam trans-
tentou ajudar Bill W., um antigo amigo dado a beber, tornos da personalidade duradouros.1
falando de religião e das ideias do grupo de Oxford. Mas Maxwell Jones e colaboradores4,5 esboçaram em
Bill W. passou por um verdadeiro despertar espiritual profundidade as várias características da CT psiquiá-
para manter a sobriedade, ao que parece influenciado trica. O Quadro 54.1 apresenta um breve resumo dessas
pelo livro de William James, Variedades da Experiência características.6
Religiosa, após uma hospitalização por desidratação.1 A natureza terapêutica do ambiente total (moti-
Em uma posterior viagem de negócios a Akron, Bill W. vação geral das CTs de Maxwell Jones) é precursora do
sentiu um forte desejo de beber, e Henrietta Sieberling, conceito fundamental de comunidade como método na
associada ao grupo de Oxford, indicou-lhe o nome de Bob CT de tratamento de substâncias psicoativas, que surgi-
S., outro dependente de álcool, para que o procurasse. ria mais tarde.
62 Diehl, Cordeiro, Laranjeira & cols.
termos psicológicos), de serviços especiais (p. ex., gru- A seguir, serão citados os principais desenvol-
pos familiares) e de variedade de temas terapêuticos e vimentos das CTs contemporâneas, comparadas ao
sociais abordados (p. ex., questões de violência domésti- protótipo da Synanon.1
ca, abuso sexual, de gênero e de cunho cultural).1
As gerações subsequentes de CTs conservaram Passagem de uma permanência indefinida na mesma
muitos dos elementos do protótipo da Synanon, porém comunidade residencial a uma duração planejada de
várias influências intervenientes levaram a algumas al- permanência residencial orientada por um plano e
terações que se evidenciaram de imediato, outras foram um protocolo de tratamento.
evoluções mais graduais. Retirada da ênfase em líderes carismáticos e aumento
É importante registrar que, em 1976, o National da importância da liderança pelos pares, dos funcio-
Institute on Drug Abuse (NIDA), nos Estados Unidos, pa- nários em geral como modelos e das decisões tomadas
trocinou a primeira conferência de planejamento das CTs, por várias pessoas.
em Crystal City, Virgínia, realizada pela Federação das Inclusão de uma crescente proporção de funcionários
Comunidades Terapêuticas das Américas (Therapeutic não recuperados em funções clínicas e administrativas
Communities of America, TCA). Profissionais reuniram- primárias, advindos de campos disciplinares variados.
-se para deliberar e esclarecer a natureza e o propósito Desenvolvimento de serviços de atendimento pós-
das CTs como tratamento para o abuso de substâncias -tratamento para quem termina a fase residencial.
psicoativas (SPA). Reintegração dos princípios e das tradições dos 12 Pas-
Ao longo das três últimas décadas, profissionais e sos da irmandade de AA no protocolo de tratamento
participantes de CTs de todo o mundo têm enfrentado de muitas CTs residenciais.
continuamente a tarefa de definir essa modalidade Gradual aproximação entre modelos e métodos da CT
de tratamento. Discussões marcam esses esforços em psiquiátrica e da CT de tratamento da dependência
conferências realizadas pelas Federações Nacionais, de substâncias psicoativas.
Internacionais e Mundial de Comunidades Terapêuticas, Adaptação da CT a populações e a ambientes espe-
para definir um modelo com base em evidências. No ciais, como instalações de saúde mental e instituições
Quadro 54.2, estão algumas considerações importan- para autores de atos infracionais dependentes de
tes de Elena Goti sobre a abordagem da comunidade substâncias psicoativas.
terapêutica:10 Desenvolvimento de uma base de conhecimentos de
pesquisa e de avaliação por equipes de pesquisa in-
dependentes e baseadas em programas específicos.
Codificação de requisitos de competência para a
formação e a certificação de funcionários e para o
QUADRO 54.2 credenciamento de programas.
Características da abordagem Desenvolvimento de organizações de CTs nos níveis
de comunidade terapêutica
regional, nacional e internacional.
Promulgação e disseminação mundiais das CTs de
1. Deve ser aceita voluntariamente. tratamento da dependência de substâncias psicoativas
2. Não se destina a todo tipo de dependente. Isso
ressalta a importância fundamental da triagem,
por meio de formação, desenvolvimento de progra-
como início do processo terapêutico. Muitas vezes, mas, assistência técnica e pesquisa.
algumas CTs, por meio de suas equipes, se sentem
onipotentes e “adoecem”, acreditando que, se No Brasil, existe um enfrentamento com a área da
o residente não quer ficar, é porque não quer saúde devido ao desconhecimento de toda essa evolução
recuperação. Não consideram que o residente tem
da abordagem de comunidade terapêutica e de seu não
o direito de escolher como e onde quer se tratar.
3. Deve reproduzir, o melhor possível, a realidade reconhecimento na política do Ministério da Saúde para
exterior para facilitar a reinserção. a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas,
4. Deve fornecer um modelo de tratamento mesmo diante do fato de as CTs estarem contempladas
residencial altamente estruturado. no eixo de tratamento da Política Nacional sobre Drogas
5. Atua por um sistema de pressões provocadas de
da Secretaria Nacional sobre Drogas (SENAD),11 revisa-
modo artificial.
6. Estimula a explicação da patologia do residente, da e construída coletivamente por meio de cinco fóruns
diante dos pares. regionais, em 2005.
7. Os pares servem de espelho da consequência Muito desse enfrentamento se deve ao fato de
social de atos do residente. grande parte das CTs, embora regulamentadas desde
8. Há um clima de tensão afetiva. 2001 pela RDC 101/01 da ANVISA,12 ainda não se te-
9. O residente é o principal ator do próprio
tratamento. A equipe oferece apenas apoio e rem adequado às normas mínimas de funcionamento e
ajuda. também de seu nome estar sendo utilizado indevida-
mente, o que prejudica os usuários e seus familiares.
Porém, não é correto que as CTs que estão cumprindo
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a regulamentação da RDC 101/01, procurando prestar 3. Critérios para o tratamento de pessoas com trans-
um serviço de qualidade, não sejam reconhecidas, incluí- tornos decorrentes de uso ou abuso de SPA. As
das e respeitadas na Rede de Serviço de Álcool e outras dimensões envolvidas para a definição do padrão
Drogas, já que o mapeamento das instituições governa- de comprometimento de dependência são:
mentais e não governamentais de atenção às questões Adesão: grau de resistência ao tratamento de
relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas no acordo com o comprometimento da pessoa em
Brasil em 2006/2007 apresenta os seguintes dados:13 avaliação.
Manutenção: grau de resistência à continuidade
Dos 1.642 questionários validados, 1.256 referem-se do tratamento.
às atividades ligadas ao tratamento. Comprometimento biológico.
Das 1.256 organizações governamentais e não gover- Comprometimento psíquico.
namentais relacionadas ao tratamento, 596 foram em Comprometimento social, familiar e legal.
comunidades terapêuticas. Critérios de elegibilidade: as pessoas em avalia-
Das 789 internações para o tratamento de depen- ção que apresentarem grau de comprometimen-
dência química (em hospital psiquiátrico e CTs), 596 to grave no âmbito biológico e/ou psíquico não
foram em CTs. são elegíveis para tratamento nesses serviços,
devendo ser encaminhadas a outras modalida-
des de atenção.
REGULAMENTO TÉCNICO (RDC 101/01) 4. Procedimentos do serviço de tratamento a pessoas
com transtornos decorrentes do uso ou abuso de
No Brasil, em 30 de maio de 2001, a Diretoria substâncias psicoativas.
Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 5. Recursos humanos dos serviços de atenção a pessoas
considerando a necessidade de normatização do fun- com transtornos decorrentes do uso ou abuso de
cionamento de serviços públicos e privados, de atenção substâncias psicoativas.
às pessoas com transtornos decorrentes do uso ou do 6. Infraestrutura física.
abuso de substâncias psicoativas, segundo o modelo 7. Monitoramento.
psicossocial, para o licenciamento sanitário, adotou a
Resolução de Diretoria Colegiada (RDC 101/01) que es- Ao encaminhar familiares ou dependentes de álcool
tabeleceu o Regulamento Técnico para o Funcionamento e outras drogas para a abordagem de comunidade tera-
das Comunidades Terapêuticas – Serviços de Atenção a pêutica, é importante certificar-se de que a CT seja filiada
Pessoas com Transtornos Decorrentes do Uso ou Abuso à Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas
de Substâncias Psicoativas (SPA), segundo o modelo (FEBRACT) e de que cumpre a RDC 101/01.
psicossocial.12
O regulamento oferece a seguinte conceituação so-
bre comunidade terapêutica: A ABORDAGEM DE COMUNIDADE TERAPÊUTICA
e de identidade. A comunidade como método significa quadro de disfunção e perturbação que afeta a pessoa
que os próprios membros estabelecem expectativas ou inteira e que vai além do abuso e da dependência de
padrões de participação e uso na comunidade. A partici- SPA. Diante de tal complexidade, é fundamental que, no
pação avalia o grau de atendimento dessas expectativas tratamento, haja uma compreensão biomédica, social
por parte dos indivíduos e responde a elas por meio de e psicológica da dependência de álcool e/ou drogas.1
estratégias que promovam a participação continuada. O indivíduo que é avaliado por uma triagem, como
preconiza a RDC 101/01, e recebe como indicação o
tratamento na CT, apresenta as seguintes condições:
Concepção da pessoa
Risco para a saúde
O centro do transtorno do abuso e da dependência
Crises sociais
de SPA é a “pessoa como ser social e psicológico” – o
Uso de SPA está ou esteve há pouco tempo fora de
modo como os indivíduos se comportam, pensam, ad-
controle
ministram emoções, interagem e se comunicam com os
Pouca ou nenhuma capacidade de manter a abstinên-
outros, bem como sua maneira de perceber e de viven-
cia por si só
ciar a si mesmos e o mundo. É nessa perspectiva que a
Redução da função social e interpessoal
comunidade terapêutica atua.1
Uso que faz de droga é parte de um estilo de vida
Os residentes de CTs demonstram uma variedade
socialmente excludente ou o degenerou a tal estilo.
de características cognitivas associadas a seus proble-
mas, como também a falta de capacidades educacionais,
Para a equipe de tratamento, a droga de escolha
vocacionais, sociais e interpessoais, e um número cres-
ou o padrão de uso não são mais importantes do que os
cente revela claras deficiências de aprendizagem.1
comportamentos, as atitudes, os valores e o estilo de vida
Entre eles, é quase universal a presença de uma per-
do usuário abusivo de SPA, porque esse uso/abuso é um
cepção negativa de si mesmos: têm problemas com a
sintoma, e não a essência do transtorno. Poderiam ser
maneira como veem a si mesmos e como membros da
citados vários motivos que levam as pessoas a fazer uso
sociedade. Apresentam também dificuldades de vivên-
abusivo de SPA, porém os próprios usuários negam ou
cia, de comunicação emocional e poucas fronteiras
não aceitam a própria contribuição para os problemas que
comportamentais em suas reações emocionais. Suas
têm, da mesma maneira como não reconhecem de modo
carências em termos de autoadministração emocional
pleno o potencial que têm para chegar às soluções. Os
estão associadas a seu comportamento social, indutor de
indivíduos apresentam incapacidade de assumir respon-
derrotismo.9 Comportamentos e atitudes problemáticos
sabilidade por suas decisões e ações. Os usuários abusivos
que perturbam suas relações pessoais com outras pessoas
de SPA sofrem uma redução da capacidade de tomar de-
ou com o mundo em geral estão muito presentes nos re-
cisões responsáveis, para não falar do compromisso com
sidentes da CT, e as características sociais que ela busca
a mudança de estilo de vida e com a sobriedade.9
tratar são: o sentido de direitos, a irresponsabilidade e
Grande parte das pessoas que recebem indicação
a falta de confiança.8 Diante de um confronto ou de um
de tratamento na CT apresenta um duplo transtorno
questionamento da parte de membros da família, amigos,
– um diagnóstico psiquiátrico e o abuso de SPA. Para
autoridades, ou outros, é comum os residentes recorre-
a CT, a presença de duplos transtornos (abuso de SPA
rem a formas conscientes e inconscientes de enganar os
e depressão, ansiedade, diagnóstico pós-traumático,
outros e a si mesmos. São habilidosos em encontrar meios
transtornos antissociais) acentua a validade de tratar a
para beneficiar seus próprios desejos imediatos.9
pessoa inteira.1
Alguns dos residentes de CT têm uma história de
problemas com a justiça. O grau e a gravidade desses
problemas revelam até que ponto o indivíduo está imer- Concepção de recuperação
so em um estilo de vida antissocial. Alguns residentes
tinham um comportamento e uma perspectiva antisso- Para funcionários e residentes de CTs, o processo
ciais antes de se envolverem seriamente com drogas. de recuperação começa quando os indivíduos aceitam a
Outros começaram a ter problemas com a justiça depois responsabilidade por suas ações e passam a responder
de iniciado o uso contínuo de substâncias psicoativas. por seu próprio comportamento, seja qual for a etiologia
Um grupo menor de residentes é formado por indivídu- do uso abusivo de SPA. A recuperação é considerada uma
os bem socializados, mas que tiveram prejudicado ou mudança de estilo de vida e de identidade e vai além de
perderam um estilo de vida pró-social devido ao uso de conseguir ou manter a abstinência. Essas mudanças fa-
drogas.1 zem parte de um processo evolutivo de aprendizagem
social que ocorre por meio de grupos de mútua ajuda
Concepção do transtorno em um contexto social1 (ver Capítulo 27).
Alguns residentes em CTs têm, em sua história de
A concepção do transtorno que os profissionais da vida, boa capacidade educacional, vocacional, vínculos
comunidade terapêutica têm no contexto atual é: um familiares e comunitários saudáveis, mas o abuso de
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SPA comprometeu esse estilo de vida pró-social. Nesses ambiente social, quanto externamente, com os devidos
casos, a recuperação envolve reabilitação, reaprendiza- cuidados e respeito às regras fundamentais (as fronteiras
gem ou restabelecimento da capacidade de manter um da CT devem ser protegidas, mas as informações devem
estilo de vida saudável, bem como a recuperação da entrar e sair).14 É claro que uma organização aberta está
saúde física e emocional. mais exposta a transformações e por isso é mais vulne-
Outros residentes não chegaram a adquirir estilos rável, envolvendo riscos, uma vez que dela participam
de vida funcionais, por estarem inseridos em um contex- pessoas buscando determinados resultados, mas sem
to mais amplo de disfunções biopsicossocial e espiritual, experiência suficiente para alcançá-los.15 Na CT, é pre-
com déficits sociais em educação, emprego e capacida- ciso considerar tudo o que possibilita a criação de um
des de interação. Nesses casos, a recuperação envolve a ambiente terapêutico e educativo, já que ela é um grupo
habilitação, ou a aprendizagem, pela primeira vez, de de mútua ajuda permanente, no qual os componentes
capacidades, atitudes e valores comportamentais asso- interagem a todo momento. É necessário considerar:
ciados à vida socializada.9
Número de residentes
Suas experiências
O tratamento e a recuperação Idade
Classe socioeconômica e cultural
A residência na CT é um período breve da vida Organização e regras
do indivíduo, e as influências “externas” insalubres são Valores
minimizadas até que esteja mais bem preparado para Divisão do trabalho e respectivas funções
lidar com elas. Por ser um período breve, é importante Administração da autoridade
que haja distinção entre um período de tratamento e Instrumentos terapêuticos
o processo geral de recuperação. O tratamento e a re- Estímulos educativos
cuperação não são necessariamente a mesma coisa. O O número e a qualificação da equipe transdisci-
tratamento é considerado como apenas uma contribui- plinar
ção ao processo de recuperação.
Fatores não associados ao tratamento podem con- É importante ressaltar que as três regras funda-
tribuir para o processo de recuperação, tais como os mentais são:
recursos sociais, a família, saúde, relacionamentos, etc.
As mudanças de estilo de vida que começam durante a) Não fazer uso de substâncias psicoativas.
o tratamento na CT têm de ser mantidas no processo b) Não à violência.
de recuperação depois que as pessoas terminam os es- c) Não ao sexo.
tágios de tratamento, para que a prática diária dessas
mudanças evolua na direção de um estilo de vida e de Sobre a regra de renunciar temporariamente às re-
identidade transformados.1 lações sexuais, é importante ressaltar que a sexualidade
é uma energia de comunicação, e a interrupção das rela-
ções sexuais pode estimular o residente a se comunicar
Recaída de outras maneiras, tendo a oportunidade de vivenciar
uma nova forma de aprendizado social. Permite tam-
É importante considerar a realidade da recaída bém desenvolver aquela parte da afetividade que pode
durante o tratamento e sua profunda importância no ter permanecido escondida e foi negada em razão de
desenvolvimento do processo da recuperação. A recaída experiências pessoais.8
pode se referir a um incidente único, discreto (isto é, um Além dessas regras fundamentais, são feitas duas
“deslize”), a um período temporário de alta frequência solicitações temporárias, para criar os pressupostos do
de uso (isto é, “compulsivo”) ou a um retorno completo trabalho pessoal e social sem jamais desrespeitar o direi-
aos níveis de uso anteriores ao tratamento. Pode não to fundamental à saúde e à liberdade de sair da CT no
significar uma total regressão no processo de recupera- momento em que a pessoa assim desejar:
ção e pode oferecer oportunidades de aprendizagem se
for feita uma revisão profunda das circunstâncias, dos Renunciar totalmente à liberdade de sair da CT sem,
elementos desencadeadores, dos antecedentes, etc. Na antes, falar com o grupo e com a equipe transdisci-
perspectiva da aprendizagem, a recaída é um elemento plinar.
integral da recuperação.8 Respeitar o contrato de mútua ajuda, participando
sempre de todas as atividades da CT.
participar de uma relação equilibrada. As regras devem tenham muita relação entre si, sua correlação não é per-
ser definidas, tanto morais quanto éticas, e elaboradas feita, porque o progresso clínico dos residentes ocorre
de acordo com as necessidades da CT. Podem ser discu- em diferentes ritmos. Alguns podem estar há muito tem-
tidas e alteradas, se necessário, a partir de um consenso po no programa, mas ainda não ter alcançado o estágio
entre residentes e equipe transdisciplinar. É importante final de tratamento, a reinserção social.1
compreender que as regras existem para serem respei-
tadas e que sua transgressão leva a consequências que
devem ser assumidas. A equipe transdisciplinar deve ga- Mútua ajuda
rantir a todo residente o conhecimento e a compreensão
das regras para poder exigir seu cumprimento.14 Na perspectiva da CT, a mútua ajuda é tanto uma
filosofia como um requisito para a recuperação, o que
significa que os indivíduos dão a principal contribuição
As cinco áreas ao processo de mudança.1 A eficácia da metodologia de-
pende da participação plena na rotina diária a fim de
Existem cinco áreas necessárias para que alguém beneficiar-se dela. Os indivíduos têm de usar o progra-
se relacione em determinado nível de equilíbrio. São ma, as pessoas, os ensinamentos e as atividades que o
elas: família, amigos, trabalho/escola, lei (regras so- compõem para aprender e manter a recuperação.
ciais) e espiritualidade. O desequilíbrio em uma dessas Mútua ajuda significa que os residentes assumem
áreas pode desencadear relações disfuncionais. Levando a responsabilidade pela recuperação dos companhei-
isso em consideração, é preciso ter presente que é mui- ros, com o intuito de manter a própria recuperação.
to provável que o residente apresente desequilíbrio em As principais mensagens de recuperação, de evolução
quase todas essas áreas, o que faz com que se relacione pessoal e do processo de mudança são transmitidas
de maneira completamente disfuncional consigo mes- por companheiros de recuperação por meio dos depoi-
mo e com os outros.8 Para ajudá-lo, é preciso criar na mentos pessoais em grupo. Esses companheiros servem
CT um ambiente em que ele possa se exercitar (como de modelos de comportamento e oferecem apoio, na
em uma academia de ginástica, na qual se exercita o qualidade de amigos que proporcionam estímulos nas
corpo) e ter a compreensão necessária de que a droga é interações diárias.1
apenas um sintoma de algo mais profundo que precisa
ser trabalhado e que sem dúvida tem ligação com essas
cinco áreas. O processo de recuperação está diretamen- Os companheiros
te relacionado ao trabalho a ser desenvolvido nas cinco
áreas, pois as questões relativas a família, espirituali- Os companheiros são os principais agentes de
dade e trabalho ou escola não podem ser abordadas e, mudança. Em seus variados papéis sociais e relaciona-
ao mesmo tempo, desconsideradas as áreas da lei e dos mentos interpessoais, os residentes são os mediadores
amigos, ou vice-versa. da socialização e do processo terapêutico.8 Os papéis são
A estrutura organizacional do programa de trata- um conjunto de comportamentos e atitudes relacionados
mento da CT pode ser descrita como uma pirâmide que socialmente e podem com frequência ser aprendidos de
representa a estratificação dos funcionários e dos resi- forma coletiva com maior rapidez do que por meio do
dentes. Os funcionários do programa ficam restritos ao treinamento em separado de elementos comportamen-
nível superior da pirâmide, enquanto residentes, em di- tais ou de atitudes distintas.
ferentes estágios na comunidade e funções de trabalho,
representam a maior parte da área que vai daí à base.1
Os funcionários dividem-se entre pessoal de Ambiente físico
administração do programa (também chamados de fun-
cionários clínicos ou de tratamento) e pessoal de apoio. As comunidades terapêuticas são projetadas, físi-
Além de suas funções específicas de trabalho, todos os ca e programaticamente, para aprimorar a experiência
membros do grupo de funcionários do programa de tra- de comunidade dos residentes. As CTs ocupam uma va-
tamento assumem vários outros papéis na comunidade.1 riedade de locais: algumas se situam em áreas rurais
Os residentes representam o mais numeroso compo- (chácaras, fazendas) e outras em áreas urbanas.
nente da estrutura organizacional. Na pirâmide, são Na perspectiva que a CT tem da recuperação, é
estratificados em níveis definidos de forma específica essencial deslocar o dependente de álcool e outras dro-
pelo trabalho que realizam e, em termos gerais, por sua gas de ambientes físicos, sociais e psicológicos antes
posição na comunidade. Os residentes também ocupam associados a sua perda de controle e seu estilo de vida
posições hierárquicas informais de status comunitário na disfuncional e negativo. Os residentes não têm apenas
organização social. Para isso, são considerados dois cri- de se afastar dos efeitos psicoativos do uso de substân-
térios: o período temporal de permanência no programa cias, mas também se distanciar de lugares, pessoas e
(tempo no programa) e o progresso clínico (estágio no coisas antes ligadas ao uso de drogas. As subculturas
programa). Ainda que o estágio e o tempo no programa das drogas são fortes concorrentes da cultura positiva
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de companheiros da CT. Assim, a separação do mundo sentido em comportamentos, atitudes e valores de cada
exterior é necessária para facilitar uma gradual adesão trabalhador.8
do novo residente à comunidade terapêutica.1 É impor- O trabalho tem como foco características da pes-
tante que os programas das CTs alcancem um equilíbrio soa e do transtorno. Essas características podem ser o
entre a separação do mundo exterior e a preparação resultado de anos de uso de drogas ou refletir traços de
para a reinserção nele, para que os residentes tenham personalidade preexistentes. Podem ser classificadas em
tanto a oportunidade de fortalecer seu sentido de comu- categorias inter-relacionadas: hábitos pessoais, de tra-
nidade e pertencimento longe de situações de alto risco, balho, relações de trabalho, autocontrole e valores do
como a chance de aprender, aos poucos, como lidar com trabalho.1
as influências do mundo real durante a reinserção.9 O trabalho também é usado para administrar e
aprimorar a comunidade. A mudança terapêutica e
educacional é medida não somente pelo trabalho, mas
Sistematização também por uma variedade de papéis ocupados por fun-
cionários e companheiros na organização social da CT.
A execução de praticamente todas as atividades na
CT é sistematizada por meio de procedimentos, passo
a passo. Desde uma função formal de trabalho (ou de Aprendizagem social
um pedido de mudança no trabalho) às operações nas
instalações (treinamento para combate a incêndios) e às Por meio da interação individual e do grupo, é pos-
atividades individuais (telefonemas pessoais, saídas mé- sível conseguir grande compreensão da problemática do
dicas).1 Manuais escritos apresentam procedimentos dos indivíduo, mas a aprendizagem pela experiência (er-
sistemas da CT a novos residentes, e aqueles com mais rando, acertando e experimentando as consequências)
tempo de residência também orientam os novos com re- corresponde à influência mais eficaz para atingir uma
lação a procedimentos, mediante instrução verbal. mudança duradoura (aprendizagem social).8 Além das
inúmeras possibilidades de aprendizagem social, a es-
trutura da CT deve ter certa flexibilidade para oferecer e
Comunicação estimular a iniciativa do residente, objetivando seu cres-
cimento. A conduta, o comportamento, é sempre algo
A comunicação na CT ocorre de maneira formal objetivo, observável, na qual podem ser identificados
e informal e em diferentes ambientes e contextos. No os progressos realizados pelo dependente. Na conduta
interior da estrutura, a via de comunicação formal é estão os frutos e se concretizam os sucessos e as difi-
vertical. As informações são passadas em uma ordem culdades do trabalho pessoal do residente nas áreas
prescrita, indo do topo para o último nível da pirâmide, biopsicossocial e espiritual. A solicitação gradativa de
e, de baixo, a partir dos residentes, para cima, aos prin- mudança na CT ajuda-o a responsabilizar-se por seu pró-
cipais funcionários. Ainda que se possam tomar decisões prio processo de crescimento e a participar ativamente
em níveis funcionais específicos, os passos organizados no processo dos outros residentes e da administração do
da transmissão têm de ser seguidos por todos os resi- processo terapêutico educativo da CT.9
dentes e funcionários.1
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Rotina diária
A comunidade terapêutica contemporânea desa-
A rotina diária é um componente tanto estru- fia o destino de seus protótipos históricos. A CT é uma
tural quanto sistêmico do modelo de tratamento. É experiência em desenvolvimento contínuo que vem
também um sistema de atividades planejadas inter- reconfigurando os ingredientes de tratamento e de
-relacionadas, projetadas para alcançar metas clínicas e formação das comunidades de mútua ajuda em uma
administrativas. metodologia sistemática de transformação de vidas.1
Hoje, é uma sofisticada abordagem de tratamen-
to, evidenciada pela variedade de recursos terapêuticos
O trabalho oferecidos e pela diversidade da demanda dos indiví-
duos atendidos. Por isso, necessita do desenvolvimento
A base da maioria das outras abordagens residen- constante de pesquisas e capacitação dos profissionais
ciais de tratamento do abuso de SPA é a ideia de que para oferecer aos dependentes de álcool e outras drogas
o indivíduo é um “paciente”. Na CT, o trabalho é um e aos familiares destes um atendimento com respeito e
elemento essencial. O objetivo primordial das funções profissionalismo, contribuindo para uma mudança ver-
de trabalho é facilitar o intercâmbio pessoal dotado de dadeira de estilos de vida.
Dependência química 69