Você está na página 1de 201

ESTUDOS DAS

RELIGIÕES

Professor Dr. José Adriano Filho


Professor Dr. Sérgio Gini
Professor Me. José Francisco de Souza

GRADUAÇÃO

Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor Executivo de EAD
William Victor Kendrick de Matos Silva
Pró-Reitor de Ensino de EAD
Janes Fidélis Tomelin
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Diretoria Executiva
Chrystiano Mincoff
James Prestes
Tiago Stachon
Diretoria de Design Educacional
Débora Leite
Diretoria de Graduação e Pós-graduação
Kátia Coelho
Diretoria de Permanência
Leonardo Spaine
Head de Produção de Conteúdos
Celso Luiz Braga de Souza Filho
Gerência de Produção de Conteúdo
Diogo Ribeiro Garcia
Gerência de Projetos Especiais
Daniel Fuverki Hey
Supervisão do Núcleo de Produção
de Materiais
Nádila Toledo
Supervisão Operacional de Ensino
Luiz Arthur Sanglard
Coordenador de Conteúdo
Roney de Carvalho Luiz
Designer Educacional
Agnaldo Lorca Ventura
Projeto Gráfico
Jaime de Marchi Junior
José Jhonny Coelho
C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação
Arte Capa
a Distância; FILHO, José Adriano; SOUZA, José Francisco de;
GINI, Sergio. Arthur Cantareli Silva
Ilustração Capa
Estudos das Religiões. José Adriano Filho; Sérgio Gini; José Bruno Pardinho
Francisco de Souza.
Editoração
Maringá-Pr.: UniCesumar, 2017.
201 p. Luís Ricardo P. Almeida Prado de Oliveira
“Graduação - EaD”. Qualidade Textual
Cíntia Prezoto Ferreira
1. Estudos. 2. Religiões. 3. Bíblia. 4. EaD. I. Título.
Ilustração
Bruno Cesar Pardinho
ISBN 978-85-459-0970-5
CDD - 22 ed. 200
CIP - NBR 12899 - AACR/2

Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário


João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828

Impresso por:
Em um mundo global e dinâmico, nós trabalhamos
com princípios éticos e profissionalismo, não so-
mente para oferecer uma educação de qualidade,
mas, acima de tudo, para gerar uma conversão in-
tegral das pessoas ao conhecimento. Baseamo-nos
em 4 pilares: intelectual, profissional, emocional e
espiritual.
Iniciamos a Unicesumar em 1990, com dois cursos
de graduação e 180 alunos. Hoje, temos mais de
100 mil estudantes espalhados em todo o Brasil:
nos quatro campi presenciais (Maringá, Curitiba,
Ponta Grossa e Londrina) e em mais de 300 polos
EAD no país, com dezenas de cursos de graduação e
pós-graduação. Produzimos e revisamos 500 livros
e distribuímos mais de 500 mil exemplares por
ano. Somos reconhecidos pelo MEC como uma
instituição de excelência, com IGC 4 em 7 anos
consecutivos. Estamos entre os 10 maiores grupos
educacionais do Brasil.
A rapidez do mundo moderno exige dos educa-
dores soluções inteligentes para as necessidades
de todos. Para continuar relevante, a instituição
de educação precisa ter pelo menos três virtudes:
inovação, coragem e compromisso com a quali-
dade. Por isso, desenvolvemos, para os cursos de
Engenharia, metodologias ativas, as quais visam
reunir o melhor do ensino presencial e a distância.
Tudo isso para honrarmos a nossa missão que é
promover a educação de qualidade nas diferentes
áreas do conhecimento, formando profissionais
cidadãos que contribuam para o desenvolvimento
de uma sociedade justa e solidária.
Vamos juntos!
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quando
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou
profissional, nos transformamos e, consequentemente,
Diretoria de
transformamos também a sociedade na qual estamos
Planejamento de Ensino
inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu-
nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de
alcançar um nível de desenvolvimento compatível com
os desafios que surgem no mundo contemporâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
Diretoria Operacional
este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
de Ensino
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica
e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con-
tribuindo no processo educacional, complementando
sua formação profissional, desenvolvendo competên-
cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em
situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado
de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal
objetivo “provocar uma aproximação entre você e o
conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento
da autonomia em busca dos conhecimentos necessá-
rios para a sua formação pessoal e profissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cresci-
mento e construção do conhecimento deve ser apenas
geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos
que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita.
Ou seja, acesse regularmente o Studeo, que é o seu
Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns
e enquetes, assista às aulas ao vivo e participe das dis-
cussões. Além disso, lembre-se que existe uma equipe
de professores e tutores que se encontra disponível para
sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de
aprendizagem, possibilitando-lhe trilhar com tranqui-
lidade e segurança sua trajetória acadêmica.
AUTORES

Professor Dr. José Adriano Filho


Doutorado em Teoria e História Literária (UNICAMP) e em Ciências da Religião
(UMESP). Mestrado em Ciências da Religião (UMESP). Licenciatura em Letras
(UEL). Graduação em Teologia (STJV/FLAM). Atualmente é professor da
Faculdade Unida de Vitória (ES). Tem experiência na área de Teologia, com
ênfase em exegese bíblica, atuando principalmente nos seguintes temas:
Judaísmo e Helenismo, Novo Testamento, Cristianismo dos primeiros séculos
e Hermenêutica.

Para saber mais, acesse: <http://lattes.cnpq.br/4072349375688174>.

Professor Dr. Sérgio Gini


Doutorado em Sociologia (UFPR). Mestrado em História (UEM). Graduado
em Teologia (convalidado pela Unicesumar) e em Ciências Sociais (UEM). Foi
professor assistente, com dedicação exclusiva, do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Estadual de Maringá (2009-2012). É ministro de
confissão religiosa ordenado pela Igreja Presbiteriana Independente do Brasil.
Pesquisa temas ligados à História Política e à Sociologia Política, entre eles elites
empresariais, ação coletiva do empresariado, estratégias de desenvolvimento
econômico e grupos de pressão e interesses. Também trabalha com temas
ligados à Teologia e à Sociologia da Religião, especificamente elites religiosas,
além de conflitos e interesses no campo protestante.

Para saber mais, acesse: <http://lattes.cnpq.br/3666962169868857>.

Professor Me. José Francisco de Souza


Mestre em Ciências da Religião (UMESP). Especialista em História do
Cristianismo (UMESP). Graduado em Teologia (FTBSP) e em Estudos Sociais
(Universidade Cruzeiro do Sul). Tem experiência na área de História, com
ênfase em História do Cristianismo. Atualmente é professor do Colégio
Evangélico de Maringá.

Para saber mais, acesse: <http://lattes.cnpq.br/6457410970479700>.


APRESENTAÇÃO

ESTUDOS DAS RELIGIÕES

SEJA BEM-VINDO(A)!
Caro(a) aluno(a), este trabalho tem como objetivo principal oferecer alguns recursos em
termos históricos e conceituais para uma abordagem interdisciplinar do fenômeno re-
ligioso. Eles poderão contribuir para a reflexão e construção teológica que você desen-
volverá ao longo de sua vida ministerial.
Da mesma forma, tais recursos serão somados consideravelmente à sua tarefa de aben-
çoar vidas, já que serão de suma importância para a construção do pensamento teoló-
gico e científico. Isto porque este é o primeiro passo para um discurso religioso bem ela-
borado e equilibrado, que alcance o coração e a mente do ouvinte com plausibilidade.
Assim, é possível contribuir para o enriquecimento do homem e crescimento do Reino
entre todos nós.
Afinal, nossa tarefa é aproximar as pessoas de Deus para que se tornem seres humanos
melhores, a fim de viver mais intensamente o presente da vida abundante disponibiliza-
da a nós pela graça. Para isso, quanto mais aprimorado nosso autoconhecimento, mais
eficaz será a nossa atuação. Portanto, conhecer o fenômeno religioso em suas diversas
dimensões nos faz conhecedores de nós mesmos.
O fato do ser humano crer, elaborar e organizar sistemas religiosos é algo que intriga o
próprio ser humano. É um verdadeiro desafio para todo estudante investigar e chegar a
conclusões razoáveis. A religião tem suas “delicadezas” por ser o espaço onde as pessoas
encontram o sentido de sua existência.
Onde há um grupo humano organizado em comunidade, há um sistema simbólico
com sentido próprio, com seus mitos, seus rituais e sua provável crença em algo trans-
cendente. Isso proporciona experiências pessoais e comunitárias que explicam e dão
o sentido para existência e para toda movimentação social e pessoal no mundo. Esses
sistemas são chamados “religião”. Sua diversidade é imensurável, a criatividade impressa
neles é algo fantástico e, provavelmente, inexplicável na sua plenitude.
Como compreender algo que não pode ser alcançado na sua totalidade? Algo que se
distingue de tudo por suster em si uma esfera íntima e pessoal? Não seria melhor não
discutir e simplesmente experimentar? Talvez essa característica tão intrínseca do fenô-
meno religioso explique o jargão popular “religião não se discute”. Contudo, por mais
obscuros que sejam os recônditos da experiência religiosa, não podemos perder a opor-
tunidade de compreender mais amplamente a nós mesmos.
Não podemos deixar de lado, sem qualquer consideração, a capacidade humana de
produzir símbolos e construir mundos que só existem em nossa imaginação, que são
transcendentes da experiência sensorial e empírica. Não podemos deixar de investigar
algo que só o ser humano possui e experimenta, sendo isso um dos caracteres que nos
diferenciam de todas as outras espécies de seres que existem.
APRESENTAÇÃO

Sistemas religiosos, em toda a sua complexidade, devem ser discutidos sim, em to-
das as formas que o ser humano tem de raciocinar, seja pelas ciências hermenêu-
ticas ou pelas empíricas descritivas, pois é certo que elas têm muito a nos ensinar
sobre religião.
Já há algum tempo, as ciências têm tratado do fenômeno religioso. Em certas oca-
siões, esse tratamento teve a intenção de desmerecer a religiosidade, rotulando-a
como algo infantil e fantasioso. Buscou-se, ainda, levantar a possibilidade de que a
explicação científica racionalista do mundo, de seus fenômenos e de suas leis iriam
“desmascarar” a religião, a ponto de torná-la algo obsoleto. Isso porque a explicação
do mundo por meio de mitos e crendices infundadas acontecia simplesmente em
função do desconhecimento da ciência.
Esse desmerecimento, em certa medida, teve sua razão por internalizar a pretensão
de livrar o pensamento das amarras de um mundo totalmente preso ao sistema
teocêntrico. Isto porque ele limitava os espaços para investigações mais audaciosas
que coubessem na mente humana e abrissem outros espaços de relações com o
universo.
A ciência tem explicado esse seu equívoco pela percepção da complexidade do fe-
nômeno religioso, que vai se expondo a cada investida dos pesquisadores na busca
de compreensão racional dos mistérios da fé.
Neste livro, apresentamos uma introdução aos estudos das Ciências da Religião.
Esta disciplina tem conquistado cada vez mais autonomia nos meios acadêmicos e
vai se mostrando muito eficaz para a Teologia quando ambas se propõem ao diálo-
go, visando à contribuição e troca mútua de conteúdos, ideias, valores, métodos etc.
Bom estudo! Esperamos que o aprendizado contribua positivamente para sua for-
mação de teólogo.
09
SUMÁRIO

UNIDADE I

RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

15 Introdução

16 O que é Religião?

20 A Religião em Outras Culturas e Épocas Históricas

24 A Religião e Sua Função Social

27 A Religião Como Objeto da Ciência

31 Por uma Nomenclatura Coerente

35 Considerações Finais

40 Referências

41 Gabarito

UNIDADE II

UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO

45 Introdução

46 O Contexto Histórico das Ciências da Religião

49 O Século das Luzes e a Religião Natural

51 Religião Pode ser Ciência? 

56 Teorias da Origem da Religião

66 Teologia Versus Ciências da Religião

70 Considerações Finais

74 Referências

75 Gabarito
10
SUMÁRIO

UNIDADE III

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO

79 Introdução

80 A Teoria Sociológica de Durkheim

83 As Contribuições da Psicanálise: Freud e Jung

88 A Alienação Marxista

90 A Reação Fenomenológica

107 As Críticas à Fenomenologia

115 Considerações Finais

120 Referências

122 Gabarito

UNIDADE IV

AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

125 Introdução

126 Estudo da Religião ou das Religiões?

131 A Contribuição de Max Weber Para o Estudo da Religião

135 História da Religião

138 Sociologia da Religião

142 Ciências da Religião e Teologia

148 Considerações Finais


11
SUMÁRIO

153 Referências

155 Gabarito

UNIDADE V

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES

159 Introdução

160 A Etimologia da Religião

163 A Vivência Humana do Ato Religioso

167 A Atitude Mítica

177 Metáfora e Alegoria

187 A Vitalidade do Sagrado

193 Considerações Finais

198 Referências

200 Gabarito

201 CONCLUSÃO
Professor Dr. Sérgio Gini
Professor Me. José Francisco de Souza

RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA

I
UNIDADE
RELIGIÃO

Objetivos de Aprendizagem
■■ Conceituar criticamente o termo “religião”.
■■ Verificar a apreensão do conceito de religião em outras culturas não
cristãs e em épocas anteriores ao Cristianismo.
■■ Conhecer como a religião ordena a vida social.
■■ Estabelecer a religião como objeto válido de avaliação científica.
■■ Entender as nomenclaturas que definem esse campo de estudo.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O que é religião?
■■ A religião em outras culturas e épocas históricas
■■ A religião e sua função social
■■ A religião como objeto da ciência
■■ Por uma nomenclatura coerente
15

INTRODUÇÃO

Caro(a) aluno(a), iniciamos a nossa primeira unidade sobre Estudos da Religião


com o objetivo de contribuir para as suas reflexões sobre o fenômeno religioso
em face dos estudos em Teologia. Aliás, os estudiosos do campo religioso costu-
mam afirmar que as Ciências da Religião são a “filha emancipada” da Teologia.
Assim sendo, um bom curso de Teologia não deve prescindir de um amplo debate
sobre os estudos em Ciências da Religião.
Assim como as outras ciências possuem um objeto de estudo visível, as
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Ciências da Religião têm como objeto a religião na dimensão social, política,


geográfica e histórica. Contudo, diferem-se de outras ciências de uma maneira
bem específica, pois a religião possui uma dimensão que transcende à materia-
lidade, ligada ao espiritual e ao divino.
Por conta de sua emancipação, as Ciências da Religião diferem da Teologia,
isso porque não há uma busca pela “verdade” ensinada por uma determinada
religião. Os cientistas do fenômeno religioso são profissionais competentes para
verificar se uma determinada religião é compreendida de forma correta ou não,
entretanto não atestam sua veracidade ou falsidade.
Com essas diferenciações preliminares e essenciais, iremos estudar, nesta
unidade, como é conceituado criticamente o termo “religião”, verificando, ainda,
como ele é apreendido em outras culturas, especialmente as não cristãs e as de
épocas anteriores ao Cristianismo.
Apresentaremos, também, o sentido funcionalista da religião, a qual atua
como ordenadora da vida social, e o seu confronto com a perspectiva de ser
objeto de avaliação científica. Por fim, iremos justificar a nossa opção pelo uso
da nomenclatura “Ciências da Religião”, sem detrimento dos autores e esco-
las que preferem “Ciência da Religião” ou “Ciência das Religiões”. Bom estudo!

Introdução
16 UNIDADE I

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O QUE É RELIGIÃO?

Caro(a) aluno(a), responder a indagação que dá título a este tópico é um enorme


desafio, pois o significado do termo “religião” não é exato, uma vez que está imbri-
cado nos sentidos que os seres humanos dão a si mesmos e à história. O filósofo
da religião Urbano Zilles (2004, p. 6) destaca que:
O problema religioso toca o homem em sua raiz ontológica. Não se trata de
fenômeno superficial, mas implica a pessoa como um todo. Pode caracte-
rizar-se o religioso como zona de sentido da pessoa. Em outras palavras, a
religião tem a ver com o sentido último da pessoa, da história e do mundo.

O termo “religião” e sua conceituação têm provocado um debate intenso, uma


vez que leva ao cerne dos estudos em Ciências da Religião. Já no início do século
XX, o psicólogo da religião James Leuba (1909, p. 1) afirmou que “há centenas
de definições diferentes de religião”.
Embora existam muitas definições de religião e novas sejam lançadas per-
manentemente, até hoje não se chegou ao resultado esperado, pois não há uma
definição que não seja rejeitada por, pelo menos, uma pessoa. Quando deter-
minado pensador afirma que a religião é caracterizada por seres espirituais, seu
crítico responde que não, afirmando que é caracterizada pela promessa de reden-
ção. Outro rebate dizendo que, se é assim, o marxismo teria que ser uma religião
(e de fato não é), portanto a discussão se arrasta.

RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO


17

Procurando por definições, pensadores cristãos têm em mente categorias cristãs.


Também se valem de suas categorias os cientistas adeptos ou não de outras religi-
ões, mas que têm seu universo de pensamento enraizados nelas. Sabendo disso,
será que chegaremos a um consenso? Será que veremos uma definição com a qual
todos concordarão? Para Greschat (2005, p. 20) isso seria “muito improvável”.
Contudo, segundo Klaus Hoch (2010), professor de História da Religião e Religião
e Sociedade da Universidade de Rostock, na Alemanha, e autor do livro Introdução
à Ciência da Religião, é importante abordar algumas questões fundamentais que
compõem o trabalho de definição do termo “religião”, para que se tenha orientação
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

no prosseguimento do estudo científico da(s) religião(ões). O trabalho de definição


de termos pode ser perigoso, pois carrega o que compreendemos sobre a questão,
estando certos ou errados. O antropólogo Clifford Geertz (1989, p. 104) já advertia:
Embora seja notório que as definições em si nada estabelecem, se fo-
rem cuidadosamente construídas elas podem, por elas mesmas, forne-
cer uma orientação ou reorientação útil do pensamento, de forma que
desenrolá-las pode ser um caminho efetivo para resolver e controlar
uma linha de pesquisa. Elas têm a virtude muito útil de serem explí-
citas: elas se comprometem de uma forma que a prosa discursiva não
assume, pois sempre está disposta a substituir o argumento por uma
retórica, especialmente neste campo.

Devidamente alertados, consideraremos, a seguir, algumas dessas questões.


Primeiramente, é preciso admitir que o termo “religião” se originou num con-
texto histórico específico, ou seja, pertence à história intelectual do Ocidente.
Quando necessária sua aplicação a outros contextos históricos e culturais, algu-
mas dificuldades se apresentam.
Em várias línguas do Continente Europeu, a palavra “religião” está profun-
damente enraizada, uma vez que a cultura europeia é marcada incisivamente
pelo Cristianismo. Quando europeus a ouvem, a associação à fé cristã é imediata.
O termo “religião” tem suas raízes na palavra latina religio, que descreve
a atuação com consideração ou a observância cuidadosa no serviço cúltico.
Para os romanos, significava a exatidão ritual, um desempenho exato no ato
religioso. Cícero fez uso do termo se referindo à sequência correta nos atos
do culto, no serviço de adoração a determinado deus ou aos deuses. Assim,
religio, no contexto latino, está para a ortopraxia e não caracteriza a ortodoxia,

O que é Religião?
18 UNIDADE I

(HOCH, 2010). Essa delimitação do termo no ambiente romano não dá exa-


tidão à sua interpretação.
Agostinho (354-430) fez uso da definição de Lactâncio (240-320), que deri-
vou o termo de religare (ligar, amarrar, ligar de novo, ligar de volta, levar de volta)
para descrever a religio vera, a “verdadeira religião”, incumbida de reconciliar a
alma que se desvencilhou de Deus. Esse é o sentido mais comum do termo nos
ambientes cristãos. Contudo, há algumas demonstrações de religio sendo, ainda,
aplicadas no sentido da “atuação correta”.
Quando seu conteúdo se opõe à superstitio (superstição), não se refere a

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
uma fé errada, mas à atuação errada, no sentido de um ato incorreto ou reali-
zado de modo exagerado, sem legitimação ou autorização. Outro exemplo pode
ser a referência que se faz ao monge, às freiras e aos outros membros de congre-
gações ou ordens como “religiosos”.
Esse status tem sua caracterização na atuação correta do serviço e no serviço
de culto, e não naquilo que é “crido”. Nessa simples demonstração, percebemos
que “o debate sobre a derivação certa do termo religio mostra que a sua defini-
ção não é possível nos moldes de uma definição objetiva, ‘dada’, mas permanece
vinculada a um contexto histórico-cultural específico” (HOCH, 2010, p. 18).

Lucio Célio Firmiano Lactâncio foi um autor entre os primeiros cristãos que
se tornou conselheiro do primeiro imperador romano cristão, Constantino I.
Ele guiou sua política religiosa, que começava a se desenvolver, e foi o tutor
de seu filho. Sua obra, Divinae Institutiones, marca uma etapa importante
no emprego da palavra e na elaboração do conceito de religião. Partindo da
ideia de que religião e sabedoria só podem ser verdadeiras na sua união, re-
jeitava tanto os cultos pagãos quanto a Filosofia. Para ele, o Cristianismo é a
verdadeira filosofia: a verdadeira sabedoria para os pensadores, a verdadeira
religião para os ignorantes.
Fonte: Azevedo (2010).

RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO


19

No final do século XV e início do século XVI, os humanistas passam a se relacio-


nar com o termo como sinônimo do que o senso comum tinha por “fé cristã” ou
“confissão”. Com a Reforma Protestante, passa a ter uma função crítica em dois
sentidos: contra superstição e magia e contra a atuação cúltica da Igreja Católica
Romana em seus serviços divinos, que, aos olhos dos reformadores, era errada.
Foi na Era das Luzes que o termo tomou para si uma forte tendência à gene-
ralização. Assim, conceitualmente, “religião” passa a estar por trás da diversidade
das religiões; terminologicamente, põe-se acima de toda a diversidade religiosa
(HOCH, 2010).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Nos séculos XIX e XX, por uma aliança entre o evolucionismo histórico e a
conceituação de religião como termo geral no singular, o conceito “religião” foi
profundamente relacionado à justificação da crítica ao Cristianismo em sua pre-
tensão de superioridade. Criticava-se também a fundamentação da sua exigência
de ser reconhecido como absoluto pela suposição de que a religião perpassaria
um processo de desenvolvimento linear e, desse modo, estaria se movendo em
direção à sua realização no mundo.
Nesse processo, o Cristianismo, como forma mais civilizada e mais altamente
desenvolvida de religião, estaria mais perto desse ideal do que as outras religiões
da humanidade. Assim, nesse tempo, segundo Hoch (2010), a “religião” aparece
como um todo ideal, que está presente nas religiões somente de forma truncada
e insuficiente, por essas não cumprirem, ainda, o seu processo evolutivo.
Portanto desde a era do Iluminismo estamos lidando com o problema
de que o termo religião, como um termo da história intelectual oci-
dental, deve sua origem e a definição de seu conteúdo ao contexto his-
tórico-cultural específico da Europa, por um lado, mas que ele, como
conceito geral por outro, reivindica a possibilidade de nomear também
em outros contextos histórico-culturais algo que corresponde àquilo
que ele também descreve no Ocidente (“cristão”) (HOCH, 2010, p. 20).

Caro(a) aluno(a), pense nas implicações de analisar a religião sob o ponto de


vista histórico-cultural da Europa.

O que é Religião?
20 UNIDADE I

Dentro desse contexto, o termo “religião cristã” é outra noção vaga, pois o
Cristianismo se apresenta como católico-romano, protestante, anglicano, evangé-
lico, batista, metodista, pentecostal, ortodoxo-russo, entre várias outras formas de
expressão. Assim, quando falamos em religião, do que mesmo estamos falando?
É importante ter esse questionamento em mente para seguir nosso estudo.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A RELIGIÃO EM OUTRAS CULTURAS E ÉPOCAS
HISTÓRICAS

Uma vez cientes de que o termo “religião” tem seu conteúdo enraizado num con-
texto histórico-cultural, cabe-nos compreender que em outras culturas e épocas
históricas não há um termo correspondente. Existem alguns que se aproximam,
como: eusébeia, do período clássico da Grécia, que designa temor e respeito não
apenas aos deuses, mas às pessoas importantes e aos objetos; latréia, que pode
se referir a um serviço de culto, tendo um sentido genérico e designando um
serviço prestado num sentido geral e profano; e threskéia, que descreve um ato
concreto, o cumprimento de um mandamento. Há algo em comum entre esses
termos e o nosso termo “religião”, contudo, eles vão além do que entendemos
como religião, segundo Hoch (2010).

RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO


21

Nada é facilitado quando se avalia a correspondência do termo em contextos his-


tórico-culturais distintos do universo ocidental cristão. No ambiente islâmico, a
palavra árabe dîn deriva da raiz semítica dâna, que significa, aproximadamente,
“acertar algo” (no sentido de pagar uma dívida, aquilo que se deve a Deus). Esse
sentido é estranho ao que se atribui à religião, desse modo não é possível fazer
uma associação desprovida de uma série de restrições e cuidados para uma cor-
respondência. O termo também descreve formas de vida, costumes e hábitos
ordenados conforme ordem e direito.
Em âmbito índico, dharma, do sânscrito, significa carregar e segurar, no sentido
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

de que os deuses seguram e mantêm unido o cosmo. Também tem sua abrangên-
cia alcançando a “lei” e a ordem de castas em tradições hindus, o que colocam em
evidência aspectos do sistema de ordenamento ritual e social. Nas tradições budis-
tas, o termo é relacionado com o ensinamento do Buda e alcança uma abrangência
como categoria ontológica, relacionada à existência (HOCH, 2010).
Esse também é um termo que se distancia, em seu significado e abrangência, do
termo “religião”, considerado no ambiente ocidental. A problemática da questão se
acentua quando consideradas outras regiões e povos. Ainda segundo Klaus Hoch:
Uma perda total de qualquer chão seguro há, por exemplo, no caso
das religiões africanas ou oceânicas, onde geralmente não encontra-
mos nada que se destaque como área parcial claramente distinguível de
“religião” dentro do complexo geral da cultura. Não é de admirar que,
antigamente, viajantes ou etnógrafos que se confrontaram com essas
culturas julgaram ou que ali não haveria religião alguma ou concluíram
que ali tudo era religião (HOCH, 2010, p. 22).

Essa realidade justifica o porquê da busca por padrões e regularidades que gover-
nam a vida religiosa da humanidade existir a séculos. Friedrich Max Müller, em
1870, quando sugeriu a criação de uma nova disciplina que chamou de “Ciência da
Religião”, tinha como um de seus alvos encontrar elementos padrões e princípios que
pudessem oferecer uniformidade a todas as religiões de todos os tempos e lugares.
Ele entendia que muito poderia ser ganho se os fatos, os costumes, os ritu-
ais e as crenças que compunham as diversas religiões “fossem investigados pelos
métodos científicos para que houvesse desenvolvimento de teorias e comparações”
(PALS, 2006, p. 4). Assim, seria possível compreender a complexidade, o cerne
e a natureza do fenômeno religioso e “poder explicá-lo em termos estritamente

A Religião em Outras Culturas e Épocas Históricas


22 UNIDADE I

racionais, exatamente como os cientistas procedem nas áreas de biologia ou quí-


mica para explicarem a natureza” (PALS, 2006, p. 4).

Friedrich Max Müller nasceu em Dessau (Alemanha) em 1823. Em seus estu-


dos, concentrou-se na filologia comparada das grandes obras orientais, pelo
que ficou conhecido como um grande defensor do orientalismo. Especiali-
zou-se no estudo das civilizações e línguas antigas e da Filosofia e criou o ter-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
mo “henoteísmo” para definir uma forma de religião em que se cultua um só
Deus, sem que se exclua a existência de outros. Da Alemanha, emigrou para
Paris, França, onde em 1845 começou a pesquisar a ciência da religião compa-
rativa e escreveu o Rig Veda, com base nos textos sagrados indianos. Em 1846,
foi para a Inglaterra, onde foi recebido pela Rainha Vitória e pelo príncipe con-
sorte, que o conduziram até a Universidade de Oxford, onde ele adquiriu fama
e fortuna. Em 1868, foi nomeado professor de Filosofia Comparativa. Sua mais
importante obra foi Sacred Books of the East (51 volumes publicados entre
1879 e 1910). Max Müller morreu em Oxford, na Inglaterra, em 1900.
Fonte: Bosch (2002).

O elemento comum, uma vez encontrado, imprimiria ao conceito de “religião”


a exatidão que tanto se almeja entre os pesquisadores do fenômeno religioso.
Assim, os esforços são constantes em duas vias: tenta-se encontrar esse elemento
comum nos conteúdos, uma “substância”, com a pretensão de chegar a “natureza”
e “essência” da religião, ou seja, aquilo que estaria na base de todas as religiões
distintas; outra via consiste em perguntar por aquilo que as religiões realizam,
ou seja, quais as funções que cumprem e a singularidade entre elas.
Para a compreensão essencialista, muitas vezes, Deus é o elemento funda-
mental constitutivo das definições que se caracterizam assim, seja de forma mais
concreta ou mais abstrata (uma divindade ou deuses no plural). Essa compreensão
segue a proposta de Edward Burnett Tylor (1832-1917), partindo do princípio de
que não podemos seguir o impulso natural para descrever a religião como sim-
plesmente a crença em Deus. Isso porque essa definição excluiria uma grande
porção da raça humana, pessoas que são plenamente religiosas, mas creem em

RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO


23

mais de um ou em outros deuses diferentes de cristãos e judeus. Portanto, sua


proposta, que procura por um lugar comum de onde se possa partir, é uma defi-
nição mínima: religião é “a fé em seres espirituais” (PALS, 2006, p. 26).
Contra essa definição essencialista e as demais que derivaram dela, impõe-
-se a objeção de que nem todas as religiões conhecem deus, deuses, nem mesmo
seres espirituais ou sobrenaturais, o exemplo mais incisivo é o Budismo, intitu-
lado como uma religião não teísta.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

O termo “não teísta” se refere à divergência entre o Budismo e as religiões


que partem da ideia de um deus eterno que existe fora do cosmo criado
por ele e, portanto, não é sujeito da impermanência que determina a vida
relativa. É importante ressaltar isso, uma vez que, no decorrer da sua his-
tória, o Budismo incluiu diversas divindades locais no seu panteão, porém
“desvalorizou” as figuras celestiais incorporadas do Hinduísmo e do Xama-
nismo tibetano, localizando esses seres supra-humanos dentro da roda de
vida (samsara).
Fonte: Usarski (2009).

Para contornar essa dificuldade, outras definições essencialistas se apegam a


fenômenos mais fundamentais como conteúdo ou objeto de religião. Na ver-
tente fenomenológica da religião, esse lugar foi ocupado pelo “sagrado”, definido
pelo teólogo protestante alemão Rudolf Otto (1869-1937) como categoria fun-
damental pela qual se capta a religião.
Outras definições essencialistas trabalham com outra abstração para definir
a essência fundamental da religião, a “transcendência” ou “experiência da trans-
cendência”. Por mais abrangente que seja a categoria transcendência, ainda resta
dúvida se ela pode resolver o problema do que seria comum a todas as religiões,
já que deixa dúvidas em que medida pode ser constitutiva para o Budismo pri-
mitivo, para o Confucionismo e para o Taoísmo.

A Religião em Outras Culturas e Épocas Históricas


24 UNIDADE I

O Deus dos filósofos seria um deus essencialista? O que é este ser? De que é
feito? Quais as suas causas e para que fim tende?
(Adaptado de Konings & Zilles, 1997).

Caro(a) aluno(a), sendo impossível determinar padrões de uniformidade sobre


o que é a religião, especialmente em culturas não europeias ou influenciadas
por esta e outras épocas históricas, resta-nos compreender que o objeto reli-
gião, utilizando um termo científico, pode se apresentar de modo muito diverso

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
dependendo do observador. Se a conceituação do termo não soa promissora, o
desafio para compreendê-lo cientificamente é instigante, como veremos a seguir.

A RELIGIÃO E SUA FUNÇÃO SOCIAL

Definições que abrem mão da essência, que não perguntam o que a religião é, prefe-
rem defini-la pelo que ela faz e o que causa, são funcionalistas, pois estão vinculadas
à suposição de que a religião reage a problemas humanos comuns e fundamentais,
que não podem ser solucionados tecnicamente (crises existenciais, dúvidas quanto
ao sentido último da vida etc.). Essa caracterização humana — uma essência que
não se acomoda, mas transpõe as respostas e soluções tecnicistas — descreve o ser
humano como ser religioso, fazendo, portanto, a religião parte da condição humana.
É discutível, porém, que as questões existenciais, as dúvidas quanto ao sen-
tido da vida e outras inconformidades a que os seres humanos estão sujeitos
ocorrem de forma independente, como simples produtos da natureza humana a
despeito da cultura. Por outro lado, caso esse funcionalismo resolvesse a questão,
as respostas pelo empenho da religião seriam muito diversificadas. Ficaríamos
expostos a uma multiplicidade de definições funcionais, uma para cada um dos
problemas humanos que não podem ser submetidos às soluções técnicas.

RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO


25

Uma tentativa de solucionar o problema das definições múltiplas da funcio-


nalidade é limitá-las ao âmbito social com a seguinte pergunta: o que se espera
da religião em vista da cultura em seu conjunto? A resposta com maior plau-
sibilidade é que, nessa perspectiva funcionalista, a função principal da religião
consiste na integração da sociedade.
Os principais representantes dessa corrente funcionalista da religião são
o sociólogo Émile Durkheim (1858-1917) e o etnólogo Bronislaw Malinowski
(1884-1942). Um modelo harmonizador de cultura está vinculado a essas teo-
rias e se fundamenta no funcionamento ideal da cultura em suas diferentes áreas
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

(ciência, economia, direito, religião etc.), as quais se complementam mutuamente


e estão em recíproca sintonia.
Nesse conjunto, a função da religião seria integrar as pessoas à sociedade,
acomodá-las ao seu meio social e torná-las agentes de harmonização. O equí-
voco aqui é a falta de atenção nas evidências históricas de que a religião pode ser
um fator de desintegração, tendo um efeito desestabilizador na harmonia social.

O polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942) é considerado um dos funda-


dores da Antropologia Social, destacando-se como o principal pensador da
escola funcionalista. Sua principal obra é Argonautas do Pacífico Ocidental
(1922), na qual relata suas impressões como observador das práticas dos
nativos das Ilhas Trobriand, onde permaneceu de 1915 a 1918. Entre os ritu-
ais dos trobriandeses, Malinowski dá atenção especial ao kula, uma prática
cultural e religiosa, cuja função é interpretada por ele como de preservação
da vida social.
Fonte: Malinowski (1976).

As definições funcionalistas da religião têm seus limites. Segundo Hoch (2010),


à semelhança das definições essencialistas, quanto mais genéricas se propõem,
mais alto o nível de abstração do elemento funcional da religião. O seguinte
exemplo evidencia sua tese:

A Religião e Sua Função Social


26 UNIDADE I

Um exemplo para um grau especialmente alto de abstração é a teoria de


religião do sociólogo da religião (falecido em 1998) Niklas Luhmann,
que define o empenho de religião aproximadamente assim: o mundo é
contingente — isto é, ele é como é por acaso, e poderia muito bem ser
diferente; diante dessa situação de insegurança e indefinição, a religião
torna o indefinível definível, ao reduzir a complexidade: seleciona entre
a infinidade de todas as possibilidades e, dessa maneira, produz “senti-
do”. Portanto o empenho particular da religião consiste em sua função
orientadora. Religião é a prática de como lidar com a contingência por
meio da redução da complexidade. Devido a seu alto grau de abstração,
a definição de Luhmann pode ser aplicada com relativa facilidade às
formas concretas e diferentes de religião (HOCH, 2010, p. 26).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A crítica a teses funcionalistas como essa é que elas ignoram os conteúdos espe-
cíficos da religião e tornam esses elementos não religiosos para responderem à
pergunta pelo empenho e função da religião.

As Ciências da Religião não questionam a “verdade” ou a “qualidade” de uma


religião, porque os sistemas religiosos têm sentido formalmente idênticos.
(Frank Usarski)

Vemos que tanto as definições essencialistas como as funcionalistas apresen-


tam seus problemas e suas limitações. Essa constatação nos deixa longe de uma
definição genérica e abrangente o suficiente para alcançar as singularidades das
diversas expressões religiosas existentes, bem como o fenômeno religioso em
seu possível elemento comum.

RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO


27
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A RELIGIÃO COMO OBJETO DA CIÊNCIA

Diante da impossibilidade de fechar uma definição de religião num conteúdo


inequívoco, propõe-se renunciar uma definição e deixar a questão em aberto.
Porém, essa proposta também apresenta seus problemas. Uma vez que é impos-
sível definir um objeto de pesquisa, como manter uma ciência para investigar
esse objeto? Pode ser que essa renúncia à definição seja equivalente à renúncia
à própria Ciência da Religião como uma disciplina independente.
Propõe-se, então, uma caracterização aproximativa de “religião”, nomeando
critérios que permitem definir mais concretamente o que se quer dizer, de modo
a não se limitar a uma definição estreita. Uma vez que as definições costumeiras
sejam caracterizadas por estabelecerem seu objeto de modo unidimensional, ou
seja, entre a grande variedade de fatores, são selecionados determinados aspectos,
como fé, experiência, ética, sistema de pensamento, ato (ritual), divindade etc., o
que permite observar que a religião compreende um conjunto de componentes.

A Religião Como Objeto da Ciência


28 UNIDADE I

Portanto, a conceituação do termo “religião” precisa se referir a uma gama de


diferentes elementos, critérios e dimensões que, em seu conjunto, apresentam um
quadro em que a Ciência da Religião encontra seu objeto. Esses elementos rela-
cionados entre si podem determinar o que é “religião”. Hans-Jürgem Greschat,
professor emérito da Universidade de Marburgo, na Alemanha, defendendo a
totalidade do objeto “religião” como um ideal para o cientista, afirma que:
Diferentemente das definições de religião, o objeto “religião” não
existe somente na cabeça dos pesquisadores. Ele está no mundo ex-
terior, onde pesquisadores realmente o enxergam. O objeto “religião”

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
é algo concreto, ou seja, é sempre uma determinada religião. Cada
uma das milhares de religiões que podem ser escolhidas e estudadas é
representada como uma totalidade passível de investigação de acordo
com quatro perspectivas: como comunidade, como sistema de atos,
como conjunto de doutrinas ou como sedimentação de experiências
(GRESCHAT, 2005, p. 24-25).

Vale citar, também, as dimensões de religiosidade desenvolvidas por Charles


Glock e Rodney Stark, que serviram a muitos estudos sobre a religião: a dimen-
são ideológica, a dimensão ritualista, a dimensão da experiência, a dimensão
intelectual e a dimensão pragmática (STARK; GLOCK, 1968). A partir delas,
Ursula Boos-Nünning (1972) acrescenta a dimensão do vínculo com a comuni-
dade, que incluiu uma nova perspectiva nessa relação.

As dimensões da religiosidade apontadas por Glock e Stark são: dimensão


ideológica, que se nota pela influência da Igreja nos conjuntos de ideias
assumidos pelos indivíduos; a dimensão ritualista, que é parte da práxis
da religião, estando associada ao seu próprio funcionamento; a dimensão
pragmática, que atende aos requisitos de formação e estruturação dos ritu-
ais e das influências dos povos ao redor; a dimensão da experiência, que é
ligada às individualidades dos sujeitos religiosos; e a dimensão intelectual,
que advém do estudo e das informações teológicas, ou seja, que superam a
fé, tentando racionalizá-la.
Fonte: adaptado de Stark e Glock (1968).

RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO


29

O professor Frank Usarski, em resposta a uma entrevista de alunos mestrandos


da PUC de São Paulo, em 2002, apresenta uma definição de religião que contem-
pla a abertura do conceito, considerando as dimensões do fenômeno religioso:
[...] não considero adequado pensar em uma definição fechada de reli-
gião e opto por um conceito aberto capaz de superar um entendimento
pré-teórico que generaliza fenômenos religiosos, [...]. A partir dessas
considerações meu conceito de religião contém quatro elementos:
primeiro, religiões constituem sistemas simbólicos com plausibilida-
des próprias. Segundo, [...], a religião caracteriza-se como a afirmação
subjetiva da proposta de que existe algo transcendental, [...]. Tercei-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ro, religiões se compõem de várias dimensões: particularmente temos


que pensar na dimensão da fé, na dimensão institucional, na dimensão
ritualista, na dimensão da experiência religiosa e na dimensão ética.
Quarto, religiões cumprem funções individuais e sociais. Elas dão sen-
tido para a vida, elas alimentam esperanças para o futuro próximo ou
remoto, sentido esse que algumas vezes transcende o da vida atual, e
com isso tem a potencialidade de compensar sofrimentos imediatos.
Religiões podem ter funções políticas, no sentido ou de legitimar e es-
tabilizar um governo ou de estimular atividades revolucionárias. Além
disso, religiões integram socialmente, uma vez que membros de uma
comunidade religiosa compartilham a mesma cosmovisão, seguem va-
lores comuns e praticam sua fé em grupos (USARSKI, 2006, p. 125).

Temos, também, a definição científica de Klaus Hoch, que é um tanto mais


minuciosa e tem uma complexidade que entendemos alcançar a completude do
fenômeno religioso como objeto de pesquisa. Para ele, “religião” é:
Um construto científico que abrange todo um feixe de definições de ca-
ráter funcional de conteúdo, através do qual podem ser captados, como
“religião”, num esquema, elementos relacionados entre si e formas de
expressão, como objeto e área de pesquisa científico- religiosa (e outra).
Pertencem a esses elementos e formas, entre outros, dimensões de éti-
ca e da atuação social (normas e valores, padrões de comportamento,
formas de vida), dimensões rituais (atos cúlticos e outros atos simbó-
licos), dimensões cognitivas e intelectuais (sistemas de doutrina e de
fé, mitologias, cosmologias etc., ou seja, todo o saber “religioso”), di-
mensões sociopolíticas e institucionais (formas de organização, direito,
perícia religiosa etc.), dimensões simbólico-sensuais (sinais e símbolos,
arte religiosa, música etc.) e dimensões da experiência (experiências
de vocação e de revelação, sentimentos de união mística, experiências
de cura e de salvação, experiências de comunidade e de unificação...)
(HOCH, 2010, p. 29).

A Religião Como Objeto da Ciência


30 UNIDADE I

Temos, então, um conceito aberto que deixa a questão da funcionalidade ou da


essência para um segundo plano, tornando possível a articulação dos dois conceitos
sem que o objeto seja comprometido em sua abrangência como fenômeno humano
real e existente. Também deixa aberto o espaço para que o fenômeno seja avaliado
cientificamente, com métodos e linguagem científicos, com conteúdo e resultado
distintos do próprio discurso religioso. Mesmo assim, o conceito de religião está
sob o escrutínio constante do movimento científico, por se tratar de um paradigma:
um ou paradigma é uma entidade dinâmica que se desenvolve com o
decorrer tempo. Kuhn propõe como uma regra que a disciplina passa

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
por movimento cíclicos de três fases: a subida de um paradigma, a fase
da ciência normal rotineira e o declínio de plausibilidade, ou seja, a
validade de um paradigma até a revolução científica mediante a qual um
novo paradigma se impõe como sujeito do mesmo processo histórico
(USARSKI, 2001, p. 77).

Este é o caso de Clifford Geertz, do ponto de vista da antropologia social, em


sua proposta de religião como sistema cultural:
Se o estudo antropológico das religiões está de fato num estado de es-
tagnação geral, eu digo que ele se possa pôr em movimento novamente
apresentando apenas pequenas variações sobre temas teóricos clássi-
cos. [...] Para conseguir isso não precisamos abandonar as tradições
estabelecidas da antropologia social nesse campo mas apenas ampli-
á-las. Pelo menos quatro dentre as contribuições dos homens [...] que
dominam nosso pensamento a ponto de paroquizá-lo — Durkheim
[...], Weber, Freud e Malinowski [...] — parecem-me pontos de partida
inevitáveis para que qualquer antropologia da religião seja útil. Mas
elas são apenas pontos de partida (GEERTZ, 1989, p. 65-66).

De forma mais sucinta, mas com profundidade e abrangência acentuadas, Geertz


apresenta uma das mais aceitas conceituações abertas de religião atualmente:
[...] um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, pene-
trantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da
formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo
essas concepções com tal aura de factualidade que as disposições e mo-
tivações parecem singularmente realistas (GEERTZ, 1989, p. 67).

RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO


31

“Qualquer tentativa de falar um idioma particular não tem maior fundamen-


to que a tentativa de ter uma religião que não seja particular [...] Assim, cada
religião viva e saudável tem uma idiossincrasia marcante.”
(George Santayana)

Prezado(a) aluno(a), o fenômeno religioso como objeto de pesquisa se situa em


uma dimensão estritamente humana e como expressão social. As categorias teó-
ricas pelas quais as Ciências da Religião estudam esse fenômeno não possuem a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

totalidade da verdade do fenômeno religioso e da religião enquanto instituição,


mas contribuem com aspectos analíticos válidos e comprovadamente científicos.

POR UMA NOMENCLATURA COERENTE

Caro(a) aluno(a), no âmbito de seu desenvolvimento e de sua luta por vali-


dade acadêmica, as Ciências da Religião têm sido designadas
de formas diferentes de acordo com os pressupostos epis-
temológicos das diferentes escolas que se apropriaram
do termo. Temos três variações que desig-
nam a mesma disciplina, porém com
algumas diferenças de interpretação
na defesa de uma nomenclatura em
detrimento de outra: “Ciências da
Religião”, como usamos neste livro;
“Ciência da Religião”, como a pro-
posta da escola alemã; e “Ciência
das Religiões”, como proposta dos
autores que se aproximam mais das inter-
seções com a Etnologia e a Antropologia.

Por uma Nomenclatura Coerente


32 UNIDADE I

Os estudiosos da religião na Alemanha preferem a designação “Ciência da


Religião”, no singular, em contraposição a “Ciências da Religião”, que tem sido
mais comumente utilizado. Usarski (2006, p. 73) esclarece que a opção por essa
nomenclatura é “para salientar a integridade substancial de sua disciplina e o seu
status particular no ambiente acadêmico”. Tais cientistas da religião entendem
que “por concentrar-se em um conteúdo determinado de forma mais profunda
e abrangente do que qualquer outra matéria” (USARSKI, 2006, p. 73), a nomen-
clatura mais coerente seria mesmo Ciência da Religião.
Em sua defesa pelo uso desse termo, Usarski (2006) relaciona a nomencla-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tura acadêmica que se faz na Pedagogia, por exemplo. Segundo o autor:
Embora essa disciplina também não possua uma metodologia e apare-
ça como ponto de interseção de diversas matérias, como a psicologia da
educação, a sociologia da educação, a filosofia da educação e assim por
diante, não está em pauta designá-las pedagogias. Em outras palavras: não
se questiona a mudança do nome pedagogia só porque concentra o tema
educação em um quadro acadêmico que, ao mesmo tempo, serve como
reservatório intelectual disposto a integrar qualquer resultado de pesqui-
sa direta ou indiretamente vinculado à educação, independentemente da
questão de um saber relevante ter sido produzido originalmente dentro
da própria disciplina ou em qualquer outra (USARSKI, 2006, p. 73-74).

Esse mesmo argumento, segundo Usarski (2006, p. 74), vale para a Ciência da
Religião, que se aproveita dos “conhecimentos e métodos de suas subdisciplinas
e disciplinas auxiliares mais importantes” (as filologias, a História, a Sociologia
da Religião e a Psicologia da Religião), bem como de “outros conjuntos acadê-
micos, por exemplo, da etnologia, da antropologia ou da geografia”. Por fim,
Usarski sela seu argumento destacando que:
Ante o fato de que se trata de uma ciência metodologicamente integrati-
va, a caracterização da disciplina como campo disciplinar perde relevân-
cia para a questão da nomenclatura adequada. Em outras palavras: a falta
de uma metodologia própria não é razão suficiente para negar a legitimi-
dade do singular no termo Ciência da Religião (USARSKI, 2006, p. 74).

RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO


33

Nos anos 1980 e início dos anos 1990, houve um debate sobre se o estudo
das religiões deveria ser considerado uma disciplina “histórica” ou “científi-
co-social”. A ala da história era defendida por aqueles que estavam engaja-
dos em vários tipos de estudos sobre o Oriente, enquanto a ala científico-so-
cial foi fortemente defendida por aqueles especializados em Antropologia
(no senso de Etnologia). Embora sem consenso, prevaleceu o uso de ambas
as abordagens de forma integrada nas Ciências da Religião.
Fonte: Pye (2011).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Os defensores do termo “Ciência das Religiões”, por sua vez, partem do mesmo
pressuposto elencado por Usarski ao se referir à integração das várias ciências
em uma única disciplina. Porém, enfatizam que “a razão para se usar o plural,
religiões, é bastante aparente. Há de fato, muitas religiões” (PYE, 2011, p. 17).
Nesse sentido, a “Ciência das Religiões” procura ampliar o seu campo disci-
plinar para além do ponto de vista religioso de teólogos cristãos ou de motivações
religiosas de outras tradições, como Hinduísmo ou Budismo. Essa ciência irá
produzir o estudo não religioso das religiões, liberto das motivações religiosas
e de manipulações políticas. Pye argumenta que:
Tal entendimento do estudo não religioso das religiões é agora bastante
difundido e tem uma tradição intelectual consistente. É nesse sentido que
considero a Ciência das Religiões como uma disciplina “autônoma”. Esse
termo não implica uma teoria em particular sobre a “realidade transcen-
dente” ou algo assim, significa simplesmente que a Ciência das Religiões
não deveria ser subordinada a alguma outra disciplina (PYE, 2011, p. 17).

Como há uma mudança constante no campo religioso e no seu desenvolvimento


enquanto disciplina acadêmica, os defensores dessa nomenclatura enfatizam que
a função básica da Ciência das Religiões é prover análises confiáveis de sistemas
religiosos com os quais possam trabalhar.
Alguns exemplos dessa atividade seriam: verificar como religiões específicas con-
tribuem, “através da formação de seus símbolos e padrões de comportamento, para a
harmonia social e integração, ou, por outro lado, para legitimar a desigualdade social,
instabilidade ou mesmo violência” (PYE, 2011, p. 22). Ancorando essas pesquisas,
estariam o diálogo entre as religiões, as políticas públicas concernentes à religião
(direitos humanos e harmonia civil) e o diálogo pela paz. Por fim, Pye esclarece que:

Por uma Nomenclatura Coerente


34 UNIDADE I

[...] a ciência das religiões não serve a um programa missionário ou


missiológico e que não intenciona servir à expansão de uma religião a
expensas de outra [...]. A ciência das religiões também não é um mo-
vimento pela unidade religiosa e não ensina nenhuma “unidade” das
religiões [...] (PYE, 2011, p. 23).

A independência ou autonomia das Ciências da Religião como uma disci-


plina deve ser mantida, pois de outra forma seu trabalho teria pouco valor.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
(Michael Pye)

Neste livro, entretanto, preferimos utilizar a nomenclatura “Ciências da Religião”. Com


isso, não estamos excluindo as ponderações dos que defendem as designações anterior-
mente citadas, mas apenas nos adequando a uma preferência da academia no Brasil.
Primeiro, a opção por “religião” e não “religiões” está fundamentada naquilo
que Rudolf Otto (1985), em seu livro O Sagrado, deduziu: há uma universalidade
do sagrado e uma relevância secundária nas expressões, que o encontro entre a
alma humana e o ser transcendental produziu.
Segundo, a preferência pelo termo “ciências” se refere a um campo disciplinar
aberto, dinâmico, com um pluralismo de técnicas de pesquisa e aproximações empíri-
cas, como defendem Filoramo e Prandi (1999). Fazem parte desse campo a Teologia,
a Filosofia, as Ciências Sociais, entre outras ciências, como está sintetizado a seguir:
As diversas ciências humanas (psicologia, sociologia, história, antropologia,
filosofia, etc.), ao abordarem os dois objetos (religião enquanto instituição e
experiência do Sagrado), constituem-se Ciências da Religião. Importa-lhes
compreender tanto a religião como o Sagrado e suas ramificações. Trata-se
de realidades e experiências que atravessam a história da humanidade até o
dia de hoje. Quanto mais ciências se debruçarem sobre elas, mais o espectro
das Ciências da Religião cresce (LIBÂNIO, 2011, p. 53).

Caro(a) aluno(a), para concluir este tópico, vale salientar que as Ciências da
Religião não são reféns da Teologia ou estão sob a tutela eclesiástica. Sua auto-
nomia enquanto disciplina acadêmica e científica está confirmada desde as três
últimas décadas do século XIX (USARSKI, 2006).

RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO


35

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caro(a) aluno(a), concluímos esta primeira unidade seguindo até aqui a orien-
tação de Klaus Hoch (2010). Abordamos algumas questões sobre as tentativas
de desenvolvimento de um conceito de religião e concluímos que um conceito
aberto, científico e que envolva a totalidade do objeto, como sugerem os pen-
sadores citados nos referidos tópicos, é o mais coerente com o que se propõe às
Ciências da Religião.
É claro que esse não é o melhor conceito para a Teologia ou para as igrejas
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

cristãs. Contudo, a proposta, que já está bem acentuada, é por uma conceitua-
ção científica do termo, para que se tenha um objeto de pesquisa empírica sujeito
à observação, experimentação, comparação e explicação concernentes com os
métodos das ciências humanas e sociais e com os resultados racionais que se
pretendem alcançar.
Compreender a religião como totalidade, segundo Greschat (2005, p. 24),
torna-se um divisor de águas entre cientistas da religião e outros cientistas que se
ocupam apenas esporadicamente da religião. Segundo o autor, “diferentemente das
definições de religião, o objeto ‘religião’ não existe apenas na cabeça dos pesqui-
sadores. Ele está no mundo exterior, onde pesquisadores realmente o enxergam”.
Dessa forma, qualquer religião que seja escolhida para estudo e análise será
representada como uma totalidade de acordo com quatro perspectivas: “como
comunidade, como sistema de atos, como conjunto de doutrinas ou como sedi-
mentação de experiências” (GRESCHAT, 2005, p. 24). Essa é a validade acadêmica
das Ciências da Religião e seu contraponto à Teologia.
Assim observado, podemos prosseguir agora para uma compreensão mais
elaborada do que se trata Ciências da Religião. Para isso, será importante que se
compreenda a trajetória histórica da disciplina. Dessa forma, é necessário verifi-
car em que contexto religioso político e acadêmico surgiu, quais suas primeiras
propostas e teorias e como se desenvolveram os métodos até que se chegasse aos
dias atuais como uma disciplina autônoma no ambiente universitário.

Considerações Finais
36

DEFINIÇÕES SOCIOLÓGICAS DA RELIGIÃO


Definições não podem ser por sua própria natureza, “verdadeiras” ou “falsas”; podem
apenas ser mais ou menos úteis. Por essa razão, não tem muito sentido discutir em torno
de definições. Porém, caso haja discrepâncias entre definições num dado campo, tem
sentido discutir suas respectivas utilidades. É o que propomos fazer aqui, com a brevida-
de apropriada a assuntos menores.
Na verdade, pode-se alegar, pelo menos no campo da religião, que mesmo definições
baseadas em pressupostos patentemente errôneos têm uma certa utilidade. Por exem-
plo, a concepção de Max Mueller da religião como uma “doença da linguagem” (Essay on
Comparative Mythology, 1856) está baseada em uma teoria racionalista da linguagem
muito inadequada, mas ainda é útil ao apontar a linguagem como o grande instrumen-
tal do homem para construir o mundo, que atinge seu máximo poder na construção de
deuses. Não obstante o que a religião possa ser além disso, ela é um universo de signifi-
cado construído pelo homem, e essa construção é feita por meios linguísticos.
Um outro exemplo: a teoria de Edward Tylor sobre o animismo e sua concepção da re-
ligião baseada nesta teoria (Primitive Culture, 1871) parte da noção inaceitável do ho-
mem primitivo como um tipo de filósofo imperfeito e, além disso, tem uma ênfase muito
estreita na alma como categoria religiosa básica. Todavia, ainda é útil relembrar que a
religião implica a busca pelo homem de um mundo que esteja relacionado com ele, e
que será “animado” neste sentido amplo. Em suma, a única atitude sensata com relação
a definições é a de tolerância. [...]
A tentativa mais convincente e ousada para definir a religião em termos de sua funciona-
lidade social é a de Thomas Luckmann (em seu Das Problem der Religion in der modernen
gesellschaft, 1963, versão inglesa, The Invisible Religion, 1967). Essa tentativa é claramen-
te de tradição durkheimiana, embora ampliada por considerações antropológicas gerais
que vão bem além de Durkheim. Além disso, Luckmann diferencia cuidadosamente sua
concepção de funcionalidade daquela do funcionalismo estrutural contemporâneo. A
funcionalidade se baseia em alguns pressupostos antropológicos fundamentais e não
em constelações institucionais particulares, historicamente relativas e que não podem
ser alçadas validamente a um status de universalidade (como fazem os sociólogos da
religião peculiar à cultura ocidental).
Sem descermos aos detalhes de uma discussão extremamente interessante, a essência
da concepção luckmanniana da religião é a capacidade de o organismo humano trans-
cender sua natureza biológica por meio da construção de universos de significados ob-
jetivos, que obrigam moralmente e que tudo abarcam. Consequentemente, a religião se
torna não apenas o fenômeno antropológico por excelência. Especificamente, a religião
é equiparada com autotranscendência simbólica.
37

Assim, qualquer coisa genuinamente humana é ipso facto religiosa e os únicos fenôme-
nos não religiosos na esfera humana são os baseados na natureza animal do homem ou,
mais precisamente, aquela parte de sua constituição biológica que ele tem em comum
com os outros animais.
Eu compartilho inteiramente dos pressupostos antropológicos de Luckmann (vide nos-
so esforço teórico conjunto em The Social Construction of Reality, 1966, no qual, logica-
mente, nós contornamos nossa diferença com relação à definição de religião) e também
concordo com sua crítica de uma sociologia da religião fixada na Igreja como institucio-
nalização historicamente relativa da religião.
Todavia, eu questiono a utilidade de uma definição que iguale religião e humano tout
court. Uma coisa é apontar os fundamentos antropológicos da religião na capacidade
humana de autotranscendência; outra, igualá-las. Afinal, existem formas de autotrans-
cendência e concomitantes universos simbólicos muito diferentes uns dos outros, não
obstante a identidade de suas origens antropológicas.
Assim, pouco se ganha, em minha opinião, ao se chamar a ciência moderna, por exem-
plo, de religião. Se se fizer isso, ter-se-á subsequentemente de definir de que forma a
ciência moderna é diferente daquilo que todos chamam de religião, inclusive as pessoas
engajadas na Religionswissenschaft, o que coloca de novo o mesmo problema de defi-
nição. Acho muito mais útil tentar uma definição explícita de religião desde o começo
e tratar as questões de suas raízes antropológicas e de sua funcionalidade social como
assuntos separados.
É por essa razão que, aqui, eu tentei operar com uma definição explícita de religião em
termos de postulação de um cosmos sagrado. A diferença nessa definição, é claro, é a
categoria do sagrado, que tomei essencialmente no sentido a que, desde Rudolf Otto, a
Religionswissenschaft lhe dá (e que, aliás, Luckmann considera como virtualmente inter-
cambiável com sua concepção do religioso, o que torna ainda mais difícil a diferenciação
entre as várias formas históricas de simbolização).
Isso não é apenas o caminho conceptualmente, mas, penso eu, permite distinções me-
nos complicadas entre cosmos empiricamente observáveis. Deve-se enfatizar, porém,
que a escolha de definições não implica diferenças na interpretação de desenvolvimen-
tos sócio-históricos particulares. Afinal de contas, suponho, definições são questão de
gosto e assim ficam sob a máxima de gustibus.
Fonte: Berger (1985, p. 181-184).
38

1. Como visto no primeiro tópico desta unidade, quais as funções sociais que você
poderia atribuir à religião?
2. A partir dos estudos sobre o termo “religião”, você concorda com o conceito
aberto e universalista das Ciências da Religião que vimos no segundo tópico?
Justifique sua resposta negativa ou afirmativa e faça comparações com o seu
conceito cristão.
3. Qual a sua opinião sobre o que se espera da religião em vista da cultura em seu
conjunto, de acordo com a visão funcionalista vista no terceiro tópico desta
unidade?
4. Cite e discorra brevemente sobre as dimensões da religiosidade desenvolvidas por
Charles Glock e Rodney Stark e apresentadas no quarto tópico desta unidade.
5. Conceitue e diferencie os termos “Ciência da Religião”, “Ciência das Religiões” e
“Ciências da Religião”.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Uma teoria da religião


Rodney Stark e William Sims Bainbridge
Editora: Paulinas
Sinopse: o livro representa a formulação mais pormenorizada e
consistente da teoria da escolha racional na área de Sociologia da
Religião. Os autores oferecem uma contribuição inestimável no
processo de demarcação epistemológica necessário para um estudo realmente científico da religião,
que não se confunde com esquemas de abordagem implicitamente teológicos.

A vida de Brian - 1979


Sinopse: o filme de Terry Jones é uma sátira, com Graham Chapman,
Terry Gilliam, John Cleese e Michael Palin, do famoso grupo de humor
inglês Monty Python, à visão hollywoodiana do nascimento de Jesus.
Brian Cohen é um judeu como outro qualquer, mas, em uma série de
eventos ridículos, foi confundido com o Messias desde que nasceu, e,
desde então, mantém essa fama e se torna líder de um movimento
religioso. Um dia, ele é levado até Pôncio Pilatos e condenado à
crucificação.
Comentário: após a apresentação do filme na Inglaterra, em um debate na TV, o ator John Cleese
discutiu com representantes religiosos sobre o “teor de blasfêmia” que A vida de Brian tinha. Cleese,
em uma só resposta, deixou os dois líderes religiosos que o sabatinavam sem reação. O ator
questionou sobre a fé de ambos quando levantou a questão de que se um filme abala a fé de alguém
é porque tem alguma coisa errada com a fé desse alguém.

Teologia, Ciência da Religião e Filosofia da Religião: definindo suas relações


Nesse texto, traduzido em português e publicado na Revista Veritas, da PUCRS, o professor de
Teologia Sistemática e Teologia Prática da Universidade de Hamburgo, Jörg Dierken, apresenta as
divergências e os pontos de intersecção das três disciplinas.
Confira o texto completo no link, disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.
php/veritas/article/viewFile/5071/3736>.

Material Complementar
40
REFERÊNCIAS

AZEVEDO, C. A. A procura do conceito de religio: entre o relegere e o religare. Reli-


gare, João Pessoa, v. 7, n. 1, p. 90-96, mar. 2010.
BERGER, P. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião. São
Paulo: Paulus, 1985.
BOOS-NÜNNING, U. Dimensionen der Religiosität. Zur Operationalisierung und
Messung religiöser Einstellungen. München: Kaizer, 1972.
BOSCH, L. Friedrich Max Müller: a life devoted to humanities. Leiden (Netherlands):
Brill, 2002 (Studies in the history of religions, livro 94).
FILORAMO, G.; PRANDI, C. As Ciências das Religiões. São Paulo: Paulus, 1999.
GEERTZ, C. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara/Koogan, 1989
(1973).
GRESCHAT, H. O que é Ciência da Religião? São Paulo: Paulinas, 2005.
HOCH, K. Introdução à Ciência da Religião. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
KONINGS, J.; ZILLES, U. Religião e Cristianismo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.
LEUBA, J. H. Psychological origin and the nature of religion. London: Archibald
Constable & Co Ltd, 1909.
LIBÂNIO, J. B. A religião no início do milênio. In: CRUZ, E. R.; MORI, G. Teologia e Ciên-
cias da Religião. A caminho da maioridade acadêmica no Brasil. São Paulo: Paulinas
/ Belo Horizonte: Editora PUCMinas, 2011.
MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
OTTO, R. O Sagrado: um estudo do elemento não racional na ideia do divino e a sua
relação com o racional. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985.
PALS, D. L. Eight theories of religion. New York: Oxford University Press, 2006.
PYE, M. O estudo das religiões: novos tempos, tarefas e opções. In: CRUZ, E. R.; MORI,
G. Teologia e Ciências da Religião. A caminho da maioridade acadêmica no Brasil.
São Paulo: Paulinas / Belo Horizonte: Editora PUCMinas, 2011.
STARK, R.; GLOCK, C. Y. American Piety. The Nature of Religious Commitment. Berke-
ley: University of California Press, 1968.
USARSKI, F. Constituintes da Ciência da Religião. Cinco ensaios em prol de uma
disciplina autônoma. São Paulo: Paulinas, 2006.
______. O Budismo e as outras: encontros e desencontros entre as grandes religi-
ões mundiais. Aparecida: Ideias e Letras, 2009.
______. Perfil paradigmático da Ciência da Religião na Alemanha. In: TEIXEIRA, F.
(Org.). A(s) Ciências da Religião no Brasil. Afirmação de uma área acadêmica. São
Paulo: Paulinas, 2001.
ZILLES, U. Filosofia da religião. São Paulo: Paulus, 2004.
41
REFERÊNCIAS
GABARITO

1. Nessa questão, o(a) aluno(a) deve abordar as funções sociais atribuídas à reli-
gião, tais como: agregar os indivíduos à sociedade, servindo de instrumento de
controle social, e manter a ordem, funcionando como um código moral, um mo-
delo a ser seguido por seus adeptos, dando ênfase, enquanto valor agregado,
à regularidade para a sociedade e possibilitando uma reflexão do ser humano
para além de si mesmo.
2. Não será analisado se o(a) aluno(a) concorda ou não com o conceito proposto,
e sim sua capacidade de justificar a resposta e agregar ao seu referencial cristão.
3. Na perspectiva funcionalista, já adiantada na primeira pergunta, a função prin-
cipal da religião consiste na integração da sociedade. A resposta desta questão
está contida na primeira, o que forçará o(a) aluno(a) a, obrigatoriamente, recor-
rer àquela.
4. As dimensões da religiosidade são: a dimensão ideológica, a dimensão ritualista,
a dimensão da experiência, a dimensão intelectual e a dimensão pragmática.
O(a) aluno(a) deverá discorrer brevemente sobre cada uma delas.
5. Nesta questão, o(a) aluno(a) deverá ser capaz de identificar as três propostas
distintas para o termo, enfatizando a questão multidisciplinar, a questão do sa-
grado e as diversas variações do fenômeno religioso.
Professor Dr. Sérgio Gini
Professor Me. José Francisco de Souza

UMA BREVE HISTÓRIA DOS

II
UNIDADE
ESTUDOS DA RELIGIÃO

Objetivos de Aprendizagem
■■ Compreender o contexto histórico em que há proposta de uma
Ciência da Religião.
■■ Apresentar como o Iluminismo influenciou positivamente o debate
sobre religião.
■■ Avaliar a validade das primeiras teorias da religião que deram início
ao estudo científico do fenômeno.
■■ Conhecer o desenvolvimento das primeiras teorias científicas da
religião.
■■ Organizar o debate que diferencia as Ciências da Religião da Teologia.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O contexto histórico das Ciências da Religião
■■ O século das luzes e a religião natural
■■ Religião pode ser ciência?
■■ Teorias da origem da religião
■■ Teologia versus Ciências da Religião
45

INTRODUÇÃO

Caro(a) aluno(a), nesta unidade, iremos estudar uma breve história das Ciências
da Religião, com o objetivo de compreender o contexto em que surge a proposta
de estudar a religião sob o prisma da ciência e com o auxílio de disciplinas cien-
tíficas das ciências humanas, como a Filologia, no início, e depois a Etnografia,
a Antropologia, entre outras.
O nascimento de uma nova ciência é sempre marcado por um processo de
ruptura; no caso das Ciências da Religião, a ruptura aconteceu com a Teologia.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Entretanto, o processo de emancipação foi demorado e, até hoje, embora seja


uma ciência autônoma, ainda paira sobre seus representantes o temor de que a
Teologia possa fazer cativa as Ciências da Religião.
Esse temor talvez possa ser justificado pelo fato de que o Iluminismo foi o
grande influenciador para o surgimento de uma ciência que estudasse o fenô-
meno religioso sem as pretensões de uma religião dominante ou totalitária. Pelo
contrário, o projeto iluminista dotou os teóricos que iniciaram os primeiros
estudos sobre as religiões de uma percepção holística, ou seja, de compreender
a religião como uma totalidade.
Assim, apresentaremos, também, quais foram as primeiras teorias da religião
que deram início ao estudo científico desse fenômeno, todas elas desvincula-
das das antigas tradições escolásticas e do movimento herdeiro da Reforma
Protestante. Essa particularidade irá dotar as Ciências da Religião de um esta-
tuto teórico próprio, diferente e separado da Teologia, embora muitos de seus
primeiros estudiosos tenham sido teólogos de formação.
Aliás, esse debate entre Teologia e Ciências da Religião ocupará o nosso
último tópico, para que possamos verificar como a relação entre as duas disci-
plinas acabou em tensões e conflitos na atualidade, muito mais em relação ao
aspecto sociológico dos seus ambientes de estudo, e como as Ciências da Religião
podem contribuir com a Teologia e vice-versa.
Bom estudo!

Introdução
46 UNIDADE II

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O CONTEXTO HISTÓRICO DAS CIÊNCIAS DA
RELIGIÃO

Caro(a) aluno(a), as ciências que tratam da religião são fruto da modernidade.


Antes do advento da era moderna, não se discutia o fenômeno religioso, seja por
conta da hegemonia do Cristianismo ou por conta da não presença ou penetra-
ção de outras religiões, com exceção do Islamismo, que sempre foi visto como
opositor ao Cristianismo.
Por volta do ano de 1500, época das grandes navegações e também da Reforma
Protestante, uma nova visão de mundo começou a tomar forma. As viagens dos
exploradores, comerciantes, missionários e aventureiros para o Novo Mundo e
para o Oriente levaram cristãos a um contato direto com povos que não eram
judeus nem muçulmanos, cujas religiões eram desprezadas (a primeira por ser
somente um prefácio do Cristianismo, a segunda por ser uma perversão daquela).
Missionários viajavam com os conquistadores e exploradores, sendo sua
contribuição trazer as nações pagãs para Cristo e para a Igreja e, portanto, fize-
ram muitos se converterem, mas esse processo apresentou muitas surpresas.
Quando Matteo Ricci (1552-1610) mudou-se para a China, o missionário rapi-
damente “se converteu”. Ele descobriu que os chineses tinham uma civilização real,
com arte, ética e literatura. Seus métodos eram racionais e seguiam uma impres-
sionante sabedoria moral de seu próprio “Moisés”, o antigo professor Confúcio.

UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


47

Um outro jesuíta, Roberto de Nobili (1577-1656), teve uma experiência similar


na Índia. A sabedoria espiritual da Índia capturou sua imaginação, e ele estu-
dou os textos sagrados tão intensamente que ficou conhecido como o “Brâmane
Branco”. Na América, missionários descobriram algo conhecido como o Supremo
Bem. Quando essas informações foram levadas para a Europa, ocorreu no cír-
culo de pensamento, a condenação dessas pessoas como discípulos do demônio
parecia algo inapropriado e desviado.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Entre os povos nativos da América do Norte, especialmente onde atualmente


se situam os Estados Unidos, havia uma crença comum em um ser supremo,
O Grande Criador, aquele que cuida de tudo na vida e controla o bem e o mal.
Fonte: os autores.

A China de Confúcio poderia não conhecer Cristo, mas, de alguma forma, sem
a Bíblia para guiá-los, produziram uma civilização pacífica e de moralidade ele-
vada. Se os apóstolos tivessem visitado a China ficariam admirados.
Ao mesmo tempo em que esses contatos aconteciam, a civilização cristã
encontrava-se envolvida numa sangrenta guerra. Liderados por Martinho Lutero
(na Alemanha), por Ulrico Zuínglio (na Suíça) e por João Calvino (em Genebra e
na França), os novos movimentos protestantes ao norte da Europa desafiavam o
poder da Igreja Romana e rejeitavam sua interpretação bíblica e autoridade papal.
Enquanto os exploradores viajavam, seus conterrâneos frequentemente se
inflamavam com o fogo das perseguições e das guerras. Comunidades eram divi-
didas pela ferocidade das querelas teológicas, primeiramente entre católicos e
protestantes, depois entre as denominações e vários outros diferentes grupos que
começaram a aparecer entre a cristandade.

O Contexto Histórico das Ciências da Religião


48 UNIDADE II

O reformador Zuínglio (1484-1531) foi um dos mais notáveis críticos e com-


batentes do papado e das doutrinas católicas romanas. Liderou um exército
contra as forças católicas em vários cantões da Suíça, além de lutar também
contra os defensores da “reforma radical”, os anabatistas. Morreu em com-
bate em 11 de outubro de 1531 e teve o corpo esquartejado e queimado.
Fonte: os autores.

Em meio à tempestade do conflito eclesiástico e ao combate político que emperraram

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
a Europa nos séculos XV e XVI, não surpreende que fiéis de todos os lados tinham
cada vez menos certeza de que a verdade final de Deus estava em suas mãos somente.
A mortal e destrutiva guerra religiosa, que persistiu por mais de cem anos
em alguns lugares, levava pessoas a acreditarem que a verdade sobre a religião
não poderia ser encontrada em vertentes preparadas para torturar e executar
seus oponentes, atribuindo tais aberrações à vontade de Deus.
Certamente, alguns entenderam que a verdade da religião deveria ser encon-
trada além das querelas da Igreja, além das torturas da estaca e do fogo. Para
estes, a fé da Europa encontraria uma forma pura e comum, uma estrutura mais
universal de fé e de valores.

Como povos que não conheciam a Bíblia e a Cristo podiam viver em uma
sociedade ordenada, pacífica e em completa sintonia com a natureza?

Prezado(a) aluno(a), as navegações, os descobrimentos, o surgimento da imprensa,


a Reforma e a Contrarreforma vão servir de base para novas interpretações sobre
o ser humano e a sua relação com o divino. Esse pano de fundo fará emergir uma
ciência que busca conhecer o fenômeno religioso.

UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


49
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

O SÉCULO DAS LUZES E A RELIGIÃO NATURAL

Diante do pano de fundo sangrento da era anterior, os pensadores do século


XVIII, a Era do Iluminismo, propuseram a busca por uma religião antiga pura
e natural, compartilhada pela humanidade inteira. A religião natural formou as
bases do Deísmo, como veio a ser chamada.
Na lista dos deístas estão as vozes mais articuladas e os nomes mais celebra-
dos daquela era: filósofos britânicos, como John Toland (1670-1722) e Matthew
Tindal (1657-1773); os americanos Thomas Jefferson (1743-1826) e Benjamin
Franklin (1706-1790); homens brilhantes, como Denis Diderot (1713-1784) e
Voltaire (1694-1778), na França; dramaturgos, como Gotthold Lessing (1729-
1781) e o filósofo Immanuel Kant (1724-1804), na Alemanha. Todos desse grupo
aderiram à ideia de uma religião universal e natural.
Essa ideia inclui a crença em um Deus criador, que fez o mundo e o deixou
livre para funcionar de acordo com as suas próprias leis naturais, paralelamente
com uma lei moral para guiar a conduta da humanidade. Ele fez, ainda, a pro-
messa de que os bons e obedientes a essa lei herdariam uma recompensa na vida
após a morte; caso contrário, haveriam de receber uma punição.
Para os deístas, esse simples e elegante credo havia sido a fé dos primeiros
seres humanos, eles atribuíam a ideia a um primeiro filósofo, o primeiro pensa-
dor entre todas as raças. A grande esperança de toda a humanidade era retornar
a esse credo original e viver em uma irmandade universal — cristãos, judeus,
muçulmanos, hindus, confucionistas e demais — sob seu único Deus Criador.

O Século das Luzes e a Religião Natural


50 UNIDADE II

Além desse trabalho de promover a tolerância, a noção deísta de uma religião


natural original abriu as portas para uma nova maneira de explicar as muitas for-
mas de religião, seus conflitos e confusões. Não importava a diferença de crença
dos vários grupos cristãos, o ritual dos índios americanos, os ritos aos ancestrais
chineses ou os ensinos dos mestres hindus, todos poderiam traçar um caminho
de volta para a religião natural dos primeiros seres humanos e, então, percebe-
rem como aquela sabedoria foi se dispersando gradualmente e se transformando
nas variantes até a modernidade. A China pôde mostrar prova desse ponto.
Conforme os navios do Oriente foram atracando nos portos europeus regu-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
larmente a partir dos anos 1700, a fascinação tomou conta dos ocidentais. Suas
invenções, especiarias, porcelanas, chás e móveis deram evidências da civilidade,
elegância, prosperidade e piedade dos chineses, tudo obviamente alcançado sem
qualquer ajuda da Bíblia. Essas produções culturais, aliadas especialmente à ética
de Confúcio, exibiam as virtudes da religião natural.

O pensador chinês Confúcio (551-479 a.C.) teria elaborado diversos concei-


tos de ética e filosofia moral que foram condensados num sistema filosófico
conhecido por Confucionismo. Entretanto, nenhum texto conhecido atual-
mente pode ser atribuído de fato a Confúcio. Os críticos alegam que esses
escritos teriam sido redigidos por volta de 221 a.C., quando foi fundado o
primeiro império chinês, e atribuídos a Confúcio.
Fonte: os autores.

É evidente na história como o contato do Ocidente com o Oriente e com o Novo


Mundo transformou o universo dos pensadores da religião da Europa, promo-
vendo grandes transformações no universo religioso daquele continente. Não
seria surpresa, em 1870, o alemão Friedrich Max Müller (1823-1900) propor um
caminho diferente para se pensar o fenômeno religioso, uma ciência da religião.
Paradigmas haviam sido quebrados e a Teologia já não respondia aos anseios de
um mundo em efervescente transformação.

UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


51

“O sagrado é uma categoria universal no mundo religioso mais essencial do


que a palavra Deus”.
(Nathan Söderblom).

Nasce, assim, a ciência da religião, como uma proposta de tornar o fenômeno


religioso um objeto de pesquisa empírica, fundamentado no método dedutivo, à
procura de um elemento comum que envolvesse todas as religiões. Dessa forma,
a pesquisa não se perde em parcialidades e apologias teológicas e filosóficas, mas
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

objetiva a produção de conhecimento de um fenômeno muito presente na huma-


nidade, porém pouco conhecido e compreendido.

RELIGIÃO PODE SER CIÊNCIA?

Prezado(a) aluno(a), em fevereiro de 1870, o linguista e filólogo alemão Friedrich


Max Müller apresentou uma palestra no renomado Instituto Real de Londres. Naquela
época, os professores alemães eram famosos por seu conhecimento profundo, e Müller
não era uma exceção. Ele havia chegado à Inglaterra para estudar em Oxford com
a intenção de investigar os textos antigos dos Vedas da Índia, seus livros sagrados.

Religião Pode ser Ciência?


52 UNIDADE II

Müller era admirado por seu conhecimento do Hinduísmo e também por ter
adquirido grau de mestre em escrita da língua inglesa. Seu conhecimento era
aplicado com grande maestria em seus escritos populares sobre Mitologia, o que,
por sinal, atraía muito a atenção dos leitores britânicos. Assim, naquela ocasião,
em Londres, ele se encorajou e propôs um objeto de pesquisa diferente, algo
novo que denominou “Ciência da Religião”.
Aquelas palavras faziam uma combinação duvidosa, que espantou a audi-
ência; afinal, se tratava de duas áreas extremas que, na razão da época, não
poderiam se combinar, já que eram opostas, ciência e religião. Müller falava

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
no final de uma década marcada pelo debate incisivo promovido pela polêmica
obra A Origem das Espécies (1859) de Charles Darwin (1809-1882) e sua pro-
posta teórica da evolução pela seleção natural. A mente e os ouvidos britânicos
estavam marcados por um discurso muito evidente da ciência, colocando-se
contrária à religião e vice-versa.
Assim, em princípio, não fazia qualquer sentido uma combinação daquela,
portanto, uma “Ciência da Religião” caiu naquele ambiente como algo que cau-
sou muito espanto e curiosidade, no mínimo. Algumas questões se sobressaíram
ali imediatamente: como as antigas certezas da fé poderiam se misturar com um
programa de estudos voltado para a experimentação, revisão e mudança? Como
as cosmovisões opostas desses dois inimigos mortais se encontrariam sem que
uma destruísse a outra? As respostas eram praticamente impossíveis, mas Müller
era uma mente diferente.
Sua certeza de que ambos universos poderiam se encontrar, e que um
verdadeiro estudo científico da religião teria muito a oferecer para ambos os
lados dessa controvérsia era evidente. Em sua palestra, a primeira de uma
série que foi publicada como Introdução à Ciência da Religião (1873), procu-
rou mostrar a possível conciliação entre as duas áreas: ciência e religião. Com
tom argumentativo, ele lembrou seus ouvintes de que as palavras do poeta
alemão Johann Goethe (1749-1832) para a linguagem humana poderiam,
também, ser aplicadas à religião: “Quem conhece uma, conhece nenhuma”.

UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


53

Sendo assim, aquele seria o momento oportuno para um olhar diferenciado


voltado para a religião. Ao invés de seguir os teólogos, treinados para provar a
veracidade de sua própria religião e a falsidade de todas as outras, havia che-
gado o tempo de deixar de lado a aproximação parcial e procurar por aqueles
elementos, padrões e princípios que poderiam ser encontrados uniformemente
em todas as religiões de todos os tempos e lugares.
Muito poderia se ganhar com esse procedimento, como um bom cientista, jun-
tando os vários fatos — os costumes, os rituais e as crenças – das religiões, a fim de
oferecer teorias descritivas e comparativas que alimentassem o ambiente científico.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

No seu sentido estrito, a palavra sânscrita Veda (cuja raiz é o verbo vid = sa-
ber) se refere ao conjunto de quatro compilações de textos (de acordo com
a pesquisa ocidental, escritos entre 1.500 e 1.200 a.C.) considerados pelos
hindus a base sagrada da sua religião.
Fonte: Greschat (2005, p. 49).

É claro que nem todos que estavam entre os estudiosos que ouviam Müller con-
cordaram com a ideia de que haveria algum valor a ser encontrado a partir do
estudo de várias religiões. Na Alemanha, o jovem Adolf von Harnack (1851-
1930), o mais famoso historiador da Igreja da época, insistia que somente o
Cristianismo interessava. As outras expressões de fé não tinham qualquer valor
em si para que se investisse nelas tempo de estudos para construções teóricas.
Para Harnack (2009, p. 19), “qualquer um que não conhecesse a religião cristã
não conhecia nenhuma”. Essas palavras foram a resposta para a visão de Müller.
Ele ainda disse “e qualquer um que conhecer a fé cristã e sua história, conhece a
todas” (Idem). Não havia, para o historiador, validade alguma ir aos índios, aos
chineses ou mesmo aos negros ou aos papuas para conhecer sua religião. A civi-
lização cristã seria a única destinada a prevalecer.

Religião Pode ser Ciência?


54 UNIDADE II

Harnack foi um dos poucos opositores que não se intimidaram em responder


diretamente às novas ideias, mas não eram poucos os que compartilhavam sua
discordância. Existia uma considerável parcela de consenso entre os teólogos e
historiadores da Europa de que a fé cristã em seus ideais e valores, que forma-
vam o centro espiritual da Europa Ocidental, expressava a mais alta realização
em termos de moral e cultura humanas. Como imaginar que algo significante
pudesse ser aprendido do conteúdo de outras religiões que eram concebidas
como inferiores à civilização cristã?
A falta de concordância com sua ideia não desencorajou Müller. De acordo

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
com Pals (2006, p. 3-4) “ele estava convencido de que estudos sérios mostrariam
como algumas intuições espirituais profundas poderiam relacionar sábios das
distantes Índia e China com mártires e santos da Igreja cristã”. É bem verdade
que a proposta de Müller não era tão nova assim, pelo menos sob alguns aspec-
tos. A crítica racional da religião no Ocidente era um empreendimento tão antigo
quanto a Filosofia grega, que havia debatido e investigado diversos aspectos.
Já no limiar da filosofia, o pré-socrático Xenófanes (570-475 a.C) subme-
teu o politeísmo grego a um ataque incisivo. Também Heródoto (484-425 a.C.)
descreveu diversas religiões antigas e as contrastou com os costumes e as práti-
cas dos gregos. A originalidade do projeto de Müller, porém, logo acompanhado
por outros pensadores britânicos — como Edward Burnett Tylor (1832-1917) e
James George Frazer (1854-1941) — era a natureza do projeto, o tipo de investi-
gação por eles proposta a partir de parâmetros construídos pela ciência moderna.
Estava à disposição desses autores um modelo de investigação com poder
e eficiência comprovados, construído pelas ciências naturais, que poderia ser
adaptado com sucesso para o campo de estudo do fenômeno religioso. Eles se
diferenciariam do que havia até então acontecido, com estudos caracterizados
por um sistema de opiniões baseadas em racionalizações, provenientes de pres-
supostos filosóficos ou teológicos e não da observação e coleta de dados objetiva.

UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


55

Além da comparação ampla capaz de produzir uma teoria universal para dar
conta do fenômeno religioso no espaço, uma das tarefas dessa ciência seria expli-
car as origens da religião, identificar as primeiras ideias e práticas religiosas e
sua evolução ao longo do tempo até os dias modernos. Para isso, a Ciência da
Religião teria de ser, então, uma ciência histórica.
O ambicioso programa proposto parecia factível para os seus idealizado-
res, pois o avanço de áreas do conhecimento, como a Arqueologia, História,
Antropologia e Crítica dos Textos poderia contribuir se fosse posto a serviço da
Ciência da Religião (FILHO, 2004).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Na Alemanha, no início do século XIX, o interesse pelas religiões não cristãs


inicialmente não levou a uma formação da Ciência da Religião, mas exigiu
esforços de pesquisa no contexto da Teologia.
Fonte: Usarski (2006).

Caro(a) aluno(a), a ideia e iniciativa de Müller têm suas raízes numa época em
que a Europa estava efervescente com novas descobertas, principalmente de novos
mundos, povos e religiões. Também era um contexto muito negativo quanto à
religião cristã. A Reforma havia acontecido, e as guerras que a sucederam cria-
ram dúvidas e frustrações. Além disso, a possibilidade de outra verdade levou
muitos a repensarem os paradigmas da fé.

Religião Pode ser Ciência?


56 UNIDADE II

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
TEORIAS DA ORIGEM DA RELIGIÃO

Caro(a) aluno(a), os estudiosos do final do século XIX, ao repensarem os seus


paradigmas de fé, apresentaram várias teorias sobre a origem da religião. Várias
foram aceitas e outras rejeitadas. Segundo Aldo Natale Terrin, professor da
Universidade Católica de Milão, há alguns motivos para conhecermos e pen-
sarmos nessas teorias atualmente, embora pertençam ao século XIX e estejam
ligadas à concepção evolucionista da religião:
Primeiramente porque o homem comum mesmo não conhecendo
muita coisa sobre o estudo de caráter religioso, muitas vezes nutre ain-
da hoje uma secreta suspeita de que a religião, no fundo nasceu de uma
realidade qualquer. [...] Ora é interessante ver que como o homem hoje,
que conhece algo mais que ontem sobre os mecanismos inconscien-
tes, tem sido largamente antecipado e ultrapassado em suas previsões e
suspeitas pela história das idéias e pela ciência da religião. Em segundo
lugar, [...] porque mediante o estudo dessas teses sustentadas por histo-
riadores e etnólogos, nos é possível ter uma síntese de todo um período
de investigação etnológica. Enfim, [...] nos ajuda a superar uma ten-
tação positivista que retorna sempre e que já está implícita quando se
aceita falar de religião como uma realidade humana derivada historica-
mente de alguma outra realidade e, portanto pretende-se considerá-la
como fenômeno “dependente” (TERRIN, 2003, p. 51).

UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


57

A TEORIA DO NATURALISMO OU DA MITOLOGIA DA NATUREZA


DE MÜLLER

Para Friedrich Max Müller, os deuses nada mais seriam do que a personificação
de grandes fenômenos da natureza. Seus pressupostos de partida são: a religião
deve começar por um conhecimento sensorial, deve ter origem na experiência
concreta; os homens sempre tiveram certa intuição do divino ou uma ideia do
infinito (TERRIN, 2003).
Por meio dessas premissas, a conclusão de Müller é que a ideia do infinito,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

presente no homem, tem sua explicação espontânea nos grandes fenômenos da


natureza: a aurora, a noite, a floresta, o sol, o fogo, a terra etc. Os fenômenos da
natureza provocam surpresa nos homens e interferem na sua visão de mundo,
produzindo certas conclusões que são internalizadas, como a condição de infinito.
De acordo com Müller, os fenômenos da natureza eram apenas símbolos das
divindades, mais tarde eles foram identificados como os próprios deuses. Isso se deu
por causa da perda da consciência simbólica. Ele identifica uma doença da linguagem
pela qual se chegou do simbólico à personificação do objeto ou fenômeno natural,
assim o nome dos fenômenos da natureza se tornaram os numes (nomia sunt numina).
Alguns exemplos: Agni, um dos principais deuses ao qual se dirigem os
hinos e orações nos Rig-Veda (antiga coleção de hinos e orações hindus), indi-
cava, no início, apenas o fato natural do fogo (agni = ignis). Mais tarde, chegou
a constituir uma divindade importante e popular na religião védica. Sua con-
clusão, então, é que o estudo dos mitos baseados na Filologia e na Etimologia
das palavras é o único meio prático para se entender a religião (TERRIN, 2003).
A teoria de Müller se tornou muito frágil, apesar de ter alguns fundamentos, pois
no nível filológico não existem os correspondentes que ele havia anunciado entre as
divindades e os fenômenos naturais. Isto é, nem todos os nomes das divindades védi-
cas têm o correspondente natural que lhes poderia ser atribuído. Segundo Terrin:
De modo geral, poder-se-ia observar que se essa teoria fosse verda-
deira, as divindades e os mitos seriam tão-só produto de um processo
verbal equivocado. Mas — poderíamos perguntar — como esse sistema
de imagens fictícias teria condições de durar por tanto tempo e dar ori-
gem a um fenômeno tão importante como é o fenômeno da religião?
(TERRIN, 2003, p. 54).

Teorias da Origem da Religião


58 UNIDADE II

Apresentamos um breve resumo da característica principal da Teoria do


Naturalismo ou da Mitologia da Natureza de Müller, que apreciada do presente,
à luz de todo desenvolvimento das Ciências da Religião, é fragilizada, não sendo
importante seus pormenores neste livro. Embora sua teoria não tenha se perpe-
tuado como base de estudos do fenômeno religioso, Müller é reconhecido como
um dos principais proponentes das Ciências da Religião. Seus trabalhos deram
insights para outras teorias sobre a religião, e conhecer esses trabalhos, como
diz Terrin, ainda nos permite transpor certas “inocências” e tentações das quais
poderíamos ser vítimas.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ANIMISMO DE EDWARD BURNETT TYLOR

Edward Burnett Tylor foi um autodidata inglês que tinha grande interesse pelos
estudos da cultura humana e pela organização social. Alguns até o consideram
como o fundador da Antropologia Social ou Cultural, como são praticadas agora
na Inglaterra e Estados Unidos. Embora descendente de uma próspera família
de Quakers — um forte ramo do protestantismo inglês muito conservador —,
Tylor preferiu uma posição religiosa mais liberal. Isso fica claro em seus traba-
lhos, que mostram uma grande aversão por todas as formas de tradicionalismo de
fé e prática cristãs, principalmente o Catolicismo Romano (PALS, 2006, p. 18-9).
Tylor ficou órfão quando ainda era jovem e procurou se preparar para
administrar os negócios de sua família, contudo, aos vinte e três anos, teve
de deixar a Inglaterra e os negócios da família para passar um tempo em um
lugar de clima quente, buscando a cura para sua tuberculose. Tylor se mudou
para a América Central em 1855.
Parece que a mudança foi promissora, pois combinava muito bem com seu
interesse em estudar culturas diferentes. Enquanto viajava, foi tomando nota
de tudo que se referia aos costumes e às crenças dos povos com os quais tinha
algum contato. O resultado de suas observações foi publicado quando ele vol-
tou à Inglaterra, num livro intitulado Anahuac: Ou Mexico and the mexicans,
ancient and modern (1861).

UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


59

Contudo, sua obra prima foi publicada em 1871: Primitive Culture. Um texto
editado em dois volumes pela sua densidade, nos quais ele desenvolve toda a
sua Teoria do Animismo. Esse se tornou o principal trabalho de sua carreira e
um marco no estudo da civilização humana. Esse importante texto entusiasmou
vários jovens estudantes a se tornarem discípulos de Tylor.
Em 1884, foi convidado pela Universidade de Oxford para ser o primeiro
palestrante do novo campo, Antropologia. Mais tarde, tornou-se o primeiro
professor da disciplina, tendo uma longa carreira que se estendeu até depois da
Primeira Guerra Mundial (PALS, 2006).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ACORDOS E DIFERENÇAS ENTRE M. MÜLLER E E. B. TYLOR

Müller e Tylor concordavam que o apelo ao sobrenatural deveria ser descartado


em suas discussões, mas discordavam radicalmente quanto à validade da pes-
quisa etnológica de Tylor. Como vimos acima, Müller entendia que a chave para
a compreensão da religião, dos mitos e dos outros aspectos da cultura estava na
linguagem. Ele e outros estudantes de Filologia haviam mostrado que formas de
expressões da Índia e da maioria dos povos da Europa pertenciam a um grupo
de línguas que se originou num povo antigo chamado ariano.
Comparando palavras paralelas por entre essas línguas, eles tentaram mostrar
que o padrão de pensamento de todos esses “Indo Europeus era praticamente o
mesmo, e que, nesta grande porção da raça humana, a religião começou quando
as pessoas reagiram aos grandes e poderosos atos da natureza” (PALS, 2006, p. 21).
Tylor não tinha um profundo conhecimento de línguas, mas entendeu que
algumas poucas ideias de Müller faziam algum sentido e as aceitou em seus
trabalhos. Ele discordava radicalmente do procedimento de Müller de desen-
volver quase que a totalidade de sua teoria em um pouco mais do que hábitos
linguísticos e palavras derivadas. Segundo Tylor, “é preciso muito mais do que
alguns erros de compreensão verbal dos eventos da natureza para se explicar
o início de um complexo sistema de crenças e rituais que recebe o nome de
religião” (PALS, 2006, p. 21).

Teorias da Origem da Religião


60 UNIDADE II

Um dos propósitos da obra de Tylor, Primitive Culture, era apresentar sua


abordagem diferenciada. Mesmo sem conhecer profundamente as línguas, ele
entendia que o caminho mais adequado era considerar as culturas em todas
as suas partes e seus componentes, para alcançar, de fato, os hábitos, as ideias
e os costumes que a linguagem descreve. Para ele, a Etnologia era certamente
melhor do que a Etimologia.
A Etnologia insiste que qualquer comunidade ou cultura organizada deve ser
compreendida de forma completa, como um conjunto formando uma unidade,
ou seja, um complexo sistema construído a partir de conhecimento, crenças,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
arte, moral, ferramentas, tecnologia, linguagem, leis, costumes, lendas, mitos e
outros, que formam o todo de uma singularidade. Para a Etnologia, esse com-
plexo deve ser investigado cientificamente (PALS, 2006).
Essas diferenças entre os dois proponentes dos estudos científicos do fenô-
meno religioso dão a Tylor maior evidência, pois sua Teoria Animista teve uma
história mais extensa e obteve consenso mais amplo. Sua base tem três pontos.
Em primeiro lugar, existe a ideia de alma, que está na origem da religião; da ideia
de alma, lentamente se passou à ideia de espírito, que, ao longo do tempo, torna-se
objeto de culto; enfim, a ideia de espírito teria se multiplicado, incluindo muitos
espíritos. “Em certo momento da história primitiva, um espírito teria se sobressa-
ído aos outros, sendo-lhe atribuído o título de Ser supremo” (TERRIN, 2003, p. 55).
Para Tylor, o caminho ideal para se obter a resposta quanto à origem da reli-
gião está na investigação dos mitos. Esse caminho deveria ser tomado a partir
do momento em que se soubesse exatamente o que é religião. Já vimos, ante-
riormente, seu conceito de religião: a fé em seres espirituais, fórmula que tem o
mérito de ser simples, franca e abrangente.
Embora se encontrem outras similaridades entre as religiões, Tylor concluiu
que uma característica compartilhada por todas as religiões, fossem elas gran-
des ou pequenas, antigas ou modernas, era a crença em espíritos que pensam,
agem e sentem como pessoas humanas. A essência da religião como mitologia é
o animismo (do latim anima, que significa espírito) — a crença em vida, pode-
res pessoais por trás de todas as coisas.

UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


61

Animismo seria a mais antiga forma de pensamento, encontrado em toda a


história da raça humana. Assim, Tylor sugere que, se realmente queremos expli-
car religião, a questão que precisamos responder é esta: como e por que a raça
humana passou a acreditar que coisas como seres espirituais realmente existem?
Algumas respostas podem ser simples, pessoas vão dizer que creem em seres
espirituais, porque esses seres realmente falaram com elas de forma sobrenatural,
por meio da Bíblia, do Corão ou outra escritura sagrada. Tal resposta é suficiente
e satisfaz um fiel dentro de uma confissão religiosa, mas para Tylor, bem como
para Müller e outros pensadores daquele momento, essa não era uma resposta
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

plausível para a ciência.


Ele insistia que qualquer tentativa de saber como um ser humano, ou a huma-
nidade inteira, veio a acreditar em seres espirituais deveria apelar a uma causa
natural. Essa tarefa deveria se valer dos mesmos métodos e das mesmas ferramen-
tas que cientistas e historiadores usam para qualquer outro objeto de pesquisa.

Que tipo de observação os seres humanos primitivos poderiam ter feito?


Quais as explicações ou conclusões a que eles chegaram? Para essas respos-
tas, Tylor procurou perscrutar minuciosamente o tempo pré-histórico, para
reconstruir o pensamento do mais primitivo ser humano:
Embora pareçam homens pensadores, ainda estavam num nível
preliminar de cultura, e eram profundamente impressionados por
dois grupos de problemas biológicos. Em primeiro lugar, o que é
isto que faz diferença entre um corpo vivo e um morto? O que pro-
voca movimento, sono, inconsciência, doenças, morte? Em segun-
do lugar, o que são aquelas silhuetas humanas que aparecem nos
sonhos e visões? Olhando para esses dois grupos de fenômenos,
os antigos filósofos selvagens provavelmente deram seu primeiro
passo pela inferência óbvia de que todo homem tem em si duas
pertenças, a vida e um espectro como se fosse sua imagem ou seu
outro eu; ambos são percebidos como sendo separados do corpo...
O segundo passo a ser dado, [...] é simplesmente combinar a vida
com o espectro... o resultado é o conceito que é bem conhecido...
a alma pessoal, ou espírito (TYLOR, 1903, p. 429).

Fonte: os autores.

Teorias da Origem da Religião


62 UNIDADE II

Haver-se-ia de presumir que os homens primitivos tiveram suas primeiras ideias


sobre religião por meio dos mesmos mecanismos de raciocínio empregados em
todos os outros aspectos da vida. Como nós, sem dúvida, eles observaram a dinâ-
mica do mundo e, então, procuraram alguma explicação para isso.
É claro que a teoria de Tylor tem base na observação de fatos. Certamente, o
homem primitivo construiu, a respeito da alma, o que viu em seus sonhos, isso
é confirmado pela Etnologia. Contudo, queremos aqui concordar com algumas
críticas interessantes de Terrin:
1 - A teoria funda-se sobre alguns fatos para chegar a uma construção

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
teórica que perde passo a passo o contato com a realidade, usando um
método de psicologia introspeccionista que certamente não pode ser
controlável. O etnólogo Evans Pritchard escreve a respeito disso, que se
trata de um exemplo refinado de construção hipotética, e que as ideias
da alma e espírito poderiam ter surgido na maneira descrita por Tylor,
mas não há evidências de que as coisas tenham passado desse modo;
2- mesmo admitindo que o sonho, com duplicidade que ele cria, tenha
origem à ideia de alma, resta a ser esclarecido o valor etnológico da
segunda passagem da alma para o espírito. Aqui, de fato parece que
encontramos o ponto fraco da teoria de Tylor, como apontam os etnó-
logos, por haver uma diferença muito grande entre ficar livre do corpo
e um espírito que se torna objeto de culto; 3- a terceira e última obje-
ção de sempre, de caráter geral. Como é possível que, a partir de uma
ilusão, tenha-se desenvolvido um mundo religioso que desde sempre
se apropriou de valores fundamentais reconhecidos por toda a huma-
nidade? Na realidade, se a teoria animista fosse verdadeira, as crenças
religiosas se reduziriam a simples ilusões, sem nenhum fundamento
objetivo, pelo fato de que na noção de espírito e de divindade nada mais
se vê a não ser a noção de “alma mais elevada”. Tudo isso não é admissí-
vel: não se pode admitir que as ideias de alma e espírito tenham surgido
de um simples erro de raciocínio que dizia respeito aos sonhos depois
de repercutido em toda a história da humanidade e na constituição da
própria religião (TERRIN, 2003, p. 57-58).

Embora mais coerente e mais aceita entre os estudiosos da religião de sua época
e os posteriores, a teoria do início da religião fundamentada no animismo tem
seus problemas e incoerências.

UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


63

Apesar de ter todo o cuidado para ser o mais científico possível, vemos que
Tylor foi vítima de uma forte tendência de seu tempo, basear suas pesquisas e as
suas conclusões em inferências que, embora se caracterizem como argumentos
intelectuais muito bem construídos, ainda assim não podem ser considerados
científicos pela falta de dados e experimentação.
Também os conceitos de alma e espírito que ele carrega compõem uma cons-
trução derivada do seu ambiente religioso proveniente da cultura judaico-cristã
e greco-romana.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

O RAMO DOURADO — MÁGICA EM JAMES GEORGE FRAZER

Desde cedo em sua carreira, quando era ainda um jovem estudante dos clássicos na
Universidade de Cambridge, James George Frazer se tornou um converso às ideias e
aos métodos de Tylor. Consequentemente, investiu seus esforços em pesquisas na área
de Antropologia e procurou ampliar e criar sua própria versão da Teoria Animista.
Sua principal obra foi The Golden Bough (Ramo Dourado), escrita entre 1890 e
1915. Trata-se de um estudo monumental de costumes e crenças primitivas. A publi-
cação desse livro ocupou a maior parte dos anos de sua vida adulta e se tornou sua
afirmação definitiva sobre a origem e natureza da religião. A obra teve três edições
e foi composta por doze volumes, o que lhe custou perto de vinte anos de sua vida.
O que, na primeira edição, era um livro em dois volumes se transformou
numa enciclopédia. Por sua obra, conteúdo e volume, Frazer se tornou um dos
mais conhecidos no campo da Etnologia, a própria escola francesa nas pessoas
de Durkheim e Lévy-Bruhl colheram material dela, assim como Freud. Contudo:
Se a importância de Frazer é incontestável sob vários pontos de vista,
não é assim tão fundamental no tocante a uma nova teoria da religião.
Para fazer com que a religião derivasse da magia ou de formas geral-
mente mais primitivas de experiência e de pensamento, bastava apenas
empregar o esquema clássico vigente no século XIX (e que vinha do
filósofo Auguste Comte), segundo o qual a humanidade teria passado
por três fases: a fase mitológica (ou mágica), a fase metafísica (ou te-
ológica) e a fase científica, que permitiria finalmente conhecer e levar
em consideração a maturidade do homem e a sua situação no mundo
(TERRIN, 2003, p. 59).

Teorias da Origem da Religião


64 UNIDADE II

Mágica e religião se tornam o principal tema da obra de Frazer, sendo elemen-


tos centrais em The Golden Bough. Para compreender a importância desses dois
elementos na vida das sociedades primitivas, é preciso dar atenção às condições
de vida na floresta, por exemplo, ou em qualquer outra paisagem da Terra e ao
fato de como deveria ser a luta pela sobrevivência nesses ambientes.
Os caçadores precisavam de animais para abater, os que cultivavam a terra
precisavam do sol e da chuva no tempo certo para a plantação. Quando a natu-
reza não os atendia nessas necessidades, possivelmente se colocavam a pensar
fazendo um esforço para que pudessem compreender a natureza e, se possível,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
transformá-la. O primeiro produto desse esforço se deu em forma de mágica.
A magia seria esclarecida mediante uma série de consequências que repousam
sobre falsas premissas. Essas premissas são dadas por dois princípios fundamen-
tais de associação de ideias: imitação, a mágica que conecta coisas no princípio
da similaridade; e contato, coisas que estão em contato ou que estiveram em
contato uma vez entre si continuam a agir também a distância.
Pelo primeiro princípio, temos a magia chamada analógica, e pelo segundo a
magia contagiosa. Quando os camponeses russos simulavam uma chuva, jogando
água numa tela para que ela gotejasse como chuva, acreditavam que essa semelhança
forçaria uma chuva realmente. Os bosquímanos do Kalahari (África), antes da caça,
desenham no chão os animais que se propõem a caçar e simbolicamente o abatem.
Esse também é um exemplo de magia analógica baseado no princípio de que
o semelhante produz o semelhante. Quanto à magia por contágio, o exemplo
pode ser do sacerdote vodu que finca um instrumento pontiagudo (um espi-
nho ou um espeto) no coração de um boneco que tenha uma unha ou um fio de
cabelo de seu inimigo, ele imagina que, pelo contato — pela transmissão de con-
tágio —, a morte de seu inimigo pode ser uma realidade imediata.
Assim, segundo a teoria de Frazer, magia seria a coerção direta das forças da
natureza por parte do homem, enquanto a religião, o ato de propiciação da divin-
dade por parte do crente. A atitude mágica é ditada pela vontade de obter exigindo
e obrigando, enquanto a atitude religiosa, pelo contrário, manifesta-se pela súplica,
pela prece, pelo sacrifício para obter algo que não está sujeito à vontade do fiel.

UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


65

Essas premissas nos mostram o lugar da magia e da religião nas teses de Frazer.
A magia fica para a origem do processo evolutivo, em seguida se transforma em
religião, até que se chega à ciência que apresenta a verdadeira explicação dos
fenômenos naturais.
A magia seria o momento de acentuada simplicidade, pois não exige qual-
quer reflexão para admitir algo sobre-humano, ainda não considera um ser como
deus. Quanto à religião, seria o estágio mais avançado e complexo, que exigiu a
reflexão em função do fracasso da atitude mágica, pois a conclusão é que a natu-
reza está sujeita a leis mais altas do que aquelas que o homem pode lhe impor.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Tylor e Frazer acreditavam que o principal parâmetro para se explicar a reli-


gião deveria ser pela descoberta de como ela começou, observando a partir
das formas mais simples e, então, seguir seus passos do passado até o tempo
presente.
Fonte: os autores.

Prezado(a) aluno(a), as teorias que foram consideradas aqui são as primeiras


após Müller lançar o desafio da Ciência da Religião. A originalidade de seus
autores está no método que se dispuseram a aplicar em seus estudos de religião.
Partem da decisão de serem científicos e assumem que qualquer explicação da
religião que se baseie em eventos sobrenaturais, como revelação, deve ser des-
considerada como ciência.
Somente as teorias com elementos naturais poderiam ser aceitas como expli-
cação da cultura dos povos religiosos ou não. Os estudos da cultura religiosa de
todos os povos deveriam ser fundamentados em vasta coleta de dados e de fatos,
seguidos de comparação e classificação e somente depois dessas fases da pes-
quisa se formularia uma teoria geral.

Teorias da Origem da Religião


66 UNIDADE II

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
TEOLOGIA VERSUS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

Caro(a) aluno(a), as propostas de uma religião vista como totalidade — por


conta da contribuição da Filologia em oferecer as traduções dos textos sagrados
de origem chinesa, zoroastriana, hinduísta e budista, e ser aberta ao escrutínio
científico — despertou imediatamente o interesse das escolas de Teologia já insti-
tucionalizadas nas maiores universidades europeias e, em especial, na Alemanha,
país de origem de Max Müller.
Em 1880, os departamentos de Teologia das universidades alemãs “ofereciam
vários seminários sobre outras religiões” (USARSKI, 2006, p. 26), mas a formação
de uma cadeira para a Ciência da Religião demorou algumas décadas, ao contrário
de outros países. Usarski (2006, p. 25) informa que a primeira cátedra de História
das Religiões fora da Teologia foi criada em 1873 na Universidade de Genebra. Em
1877, foram inauguradas as cátedras de História das Religiões “nas universidades de
Utrecht, Groningen, Leyden e Amsterdã”, com destaque para dois professores holan-
deses tidos como os “pais” das Ciências da Religião ao lado de Max Müller: Cornelius
Petrus Tiele (1830-1902) e Pierre Daniël Chantepie de la Saussaye (1848-1920).

UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


67

Na Inglaterra, a disciplina ganhou status oficial em 1904, com a primeira cátedra


em Religiões Comparadas dentro da Faculdade de Teologia da Universidade de
Manchester (USARSKI, 2006). Somente em 1910 é que foi constituída a primeira
cátedra da Ciência da Religião na Universidade de Berlim fora da Faculdade de
Teologia. Na Itália, apenas em 1924 é que a disciplina ganhou status independente
da Teologia. Usarski (2006) aponta que até 1925, além das cátedras em Genebra
(Suíça), Utrecht, Groningen, Leyden e Amsterdã (Holanda), foram estabelecidas as
de Paris (França), Bélgica, Itália, Suécia, Inglaterra, Alemanha, Dinamarca e Noruega.
É digno de nota o processo de secularização do ensino superior ocorrido na
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

França na segunda metade do século XIX, que propiciou o desenvolvimento das


Ciências da Religião voltadas para uma abordagem estritamente histórico-em-
pírica. De acordo com Usarski (2006, p. 25), desde 1879, no Collège de France,
em Paris, havia uma cátedra em história geral da religião, que se desenvolveu
em ritmo acelerado após o fechamento da Faculdade de Teologia na Sorbonne
por decreto do governo francês. No lugar da Faculdade de Teologia, foi institu-
ída a Seção de Ciências Religiosas da École de Hautes Études, “explicitamente
caracterizada como centro de pesquisa crítica” (USARSKI, 2006, p. 26). A pro-
cura pela nova disciplina foi intensa:
No início conteve dez subsessões, cada uma delas dedicada à investigação
de religiões em uma determinada região do mundo, por exemplo, da Índia,
do Extremo Oriente e do Egito. De acordo com esse modelo, foram poste-
riormente acrescentadas mais dez subsessões (USARSKI, 2006, p. 26).

O Colégio de Sorbonne foi fundado em 1257 pelo teólogo Roberto de Sor-


bon e dedicado ao ensino de Teologia. Passou a designar a antiga Univer-
sidade de Paris (1793) e depois a nova Universidade de Paris até 1971. Foi
fechado durante a Revolução Francesa e reorganizado posteriormente por
Napoleão Bonaparte (1806), ficando a Faculdade de Teologia da Sorbonne
como uma das mais respeitadas do mundo.
Fonte: os autores.

Teologia Versus Ciências da Religião


68 UNIDADE II

No entanto, Usarski (2006, p. 67) esclarece que a maioria dos professores e


pesquisadores das novas cátedras em Ciências da Religião, especialmente na
Holanda, eram teólogos, formados nos métodos da História e da Filologia,
“dos quais eles se aproveitaram para investigar as culturas antigas ao redor de
Israel com o objetivo de entender as influências dessas culturas no judaísmo
e no cristianismo”.
É comum entre os estudiosos em Ciências da Religião apontar a relação
problemática entre esta e a Teologia. Para Usarski (2006), essa tensão é mais rela-
cionada à dimensão sociológica da vida acadêmica.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A história da relação entre a Teologia e a Ciência da Religião é um
processo de tensões e animosidades. Tal situação é menos um resultado
das abordagens diferentes do que uma reação da Ciência da Religião
à história problemática da própria disciplina (USARSKI, 2006, p. 67).

No entanto, para Libânio (2011, p. 45) esse conflito tem na sua base o que ele chama
de “vingança do Sagrado” ou a reação teológica ao processo de secularização, “consi-
derada primeiro passo para o secularismo e o ateísmo”. Para o autor, ao contrário do
que foi apregoado pelos cientistas sociais do século XIX, a religião não acabou, antes se
tornou mais prolífica e ativa, com contornos diversos e que servem de pano de fundo
para as reflexões tanto das Ciências da Religião quanto da Teologia. Nessas reflexões:
A Teologia traz a dimensão específica da revelação de Deus, enquanto
as Ciências da Religião prescindem dela, sem pronunciar-se especifi-
camente sobre ela. Portanto, as Ciências da Religião estudam tanto as
religiões como a experiência religiosa, não enquanto se remetem a uma
Revelação de Deus. Não a afirmam nem a negam. Permanecem no âm-
bito do Sagrado, enquanto experimentam a ambivalência do Sagrado:
fascinans et tremendum (LIBÂNIO, 2011, p. 54).

Contudo, segundo Usarski (2006, p. 68) a “tensa relação entre Teologia e Ciência
da Religião traz preocupação aos cientistas da religião na Alemanha quanto ao
perigo do enfraquecimento do status institucional da disciplina”. Há um temor,
inclusive, de que a Teologia venha a dominar as Ciências da Religião, até mesmo
a partir de sua nomenclatura:

UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


69

Nos últimos anos tornou-se comum no público introduzir e apro-


veitar o plural “Ciências da Religião”. [...] Isto só pode se basear na
ignorância ou na tentativa premeditada de enterrar o caráter desta
disciplina sob o domínio da Teologia [...]. Dessa maneira, Teologia e
Ciência da Religião são institucionalizadas sob um único nome, sem
reflexão profunda (RUDOLPH apud USARSKI, 2006, p. 68).

Libânio (2011), compartilha, entretanto, a visão de que as duas disciplinas podem


seguir seus caminhos de forma independente com suas epistemes próprias, res-
peitando-se mutuamente. Para o autor:
A problemática da relação entre Teologia e Ciências da Religião provém
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

precisamente de situarem-se em nível de intelecção diferente e não sim-


plesmente na diferença de objeto formal do mesmo plano interpretati-
vo, como as diversas ciências da religião entre si (LIBÂNIO, 2011, p. 55).

Dessa forma, segundo Libânio (2011, p. 55) as “Ciências da Religião interpretam


o fato da religião e da experiência religiosa. A Teologia, ao apelar para a experi-
ência de Deus, aprofunda a realidade de quem se revela e não simplesmente de
quem a experimenta”.

“Quanto ao objeto material, as Ciências da Religião são mais precisas e limi-


tadas”.
(João Batista Libânio)

Caro(a) aluno(a), nesse debate entre Teologia e Ciências da Religião é impor-


tante aprendermos que cada ciência tem autonomia própria. Contudo, essa
autonomia se revela limitada, porque nenhuma delas dá conta da inteligibili-
dade total do dado estudado. Dessa forma, o ideal é que cada ciência se deixe
completar pela outra.

Teologia Versus Ciências da Religião


70 UNIDADE II

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caro(a) aluno(a), vimos nos tópicos desta unidade uma breve introdução da his-
tória das Ciências da Religião. Essas teorias nos mostram como a consideração
do fenômeno religioso pela ciência teve início e como as ciências sociais e huma-
nas, especialmente a Etnologia e Antropologia, foram aplicadas nessa avaliação.
Vimos também como as Ciências da Religião buscaram o seu afastamento
da Teologia, na procura por um espaço próprio de desenvolvimento das suas
condições científicas. Enquanto a tarefa do teólogo consiste em proteger e enri-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
quecer sua tradição religiosa, os cientistas da religião irão buscar compreender
uma outra religião que não a sua própria ou na que foi formado. De toda forma,
as Ciências da Religião lutaram desde o início por uma emancipação da Teologia.
A busca por uma evolução no pensamento e nos estudos dos fenômenos religio-
sos deu a direção para essa nova disciplina.
Por conta desse aspecto, as teses dos primeiros proponentes de uma ciên-
cia da religião tinham um caráter essencialista e evolucionista, ou seja, como
apresentado em nossa discussão do conceito de religião, elas partem de uma
essência comum para a explicação do fenômeno no geral. Isso porque a preo-
cupação principal desses autores era encontrar o cerne do fenômeno religioso,
para desvendá-lo em seu desenvolvimento, no papel que cumpriria no processo
evolutivo da sociedade até o seu final imposto pela ciência.
Porém, outro viés para a explicação do fenômeno religioso irá se expor nas
teses dos pensadores funcionalistas, que não se importaram com a essência do
fenômeno religioso, mas com a sua função social. Sua abordagem parte de um
reducionismo que minimiza a religião como um fator social que cumpre um
determinado papel. As teses funcionalistas e reducionistas haverão de ser com-
batidas pela fenomenologia. Esse embate será apresentado na unidade seguinte.

UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


71

DIFUSÃO DE NOVAS FORMAS DE RELIGIOSIDADE


É como acordar numa manhã e encontrar um mundo que não é mais o de sempre, fa-
miliar, conhecido. É assim que ocorre e está ocorrendo no mundo religioso a respeito
de nossas tradições, de nossos códigos convencionais estabelecidos e consolidados por
toda uma tradição. O mundo religioso era uma parte das nossas seguranças das nossas
conquistas históricas, tradicionais, culturais; até essa porção de mundo agora está mu-
dando e está se transformando com uma aceleração insuspeitada.
Trata-se de uma mudança que não é indolor: comporta amplas transformações em nos-
sos costumes; um pequeno choque psicológico para quem vivia de suas próprias certe-
zas assimiladas e induzidas por meio da própria biografia religiosa e da própria tradição
histórica. Estávamos acostumados a falar com os não crentes e os não praticantes, mas
não estávamos acostumados a ouvir outras linguagens religiosas ou pseudo-religiosas e
não se conheciam, por exemplo, comunidades como Findhorn ou personagens como o
Sai Baba de Puttaparthi. O mapa que mantinha fixa a nossa morada e assegurava certa
tranquilidade aos nossos sonhos não corresponde mais atualmente ao território ou, ao
menos, está mudando profundamente até criar uma sensação de vertigem e de vazio à
nossa volta. Não existe mais uma grande religião cristã católica na qual nos sentimos ou
nos sentíamos seguros, em nossa casa, uma religião cristã protestante que conhecemos
e respeitamos, uma muçulmana, uma hindu, uma judaica e uma religião budista, para
citar apenas algumas das grandes religiões que dominaram sem contrastes durante sé-
culos o nosso mundo. O tempo atual nos reserva surpresas bastante amargas, pois nos
sentimos quase defraudados no que sentíamos ser uma segurança, um refúgio, uma
última praia capaz de nos proteger contra o pluralismo invasor e efêmero das ideias que
nos obrigam a caminhar sempre mais sobre a areia movediça do deserto. Hoje, também
no campo religioso, somos obrigados a sofrer certa violência em nosso quadro simbó-
lico que antes nos prendia a ele tão estreitamente e agora está destinado a se tornar
sempre mais limitado de conteúdos e de referências ‘objetivas’. Hoje o efêmero da moda,
o do particular e o do experimental aliaram-se e passaram a dominar, com nossa grande
contrariedade, também naquele mundo que deveria levar os sinais do ‘eterno’, do ‘imu-
tável’, da verdade imortal. O presente, portanto, tornou-se ainda mais frágil: é somente
um ponto no tempo e na história, um ponto sem ancoragem até do ponto de vista reli-
gioso. E isso sobre tudo porque novos movimentos religiosos invadiram nosso terreno,
tendo quebrado a solidez de nosso quadro de referência.
Fonte: Berger (1985, p. 347-8)
72

1. Conforme vimos no Tópico primeiro, em que medida os movimentos da Reforma


e da Contrarreforma foram importantes para que a discussão sobre a religião
ganhasse novas luzes no Iluminismo?
2. Argumente sobre as bases do Deísmo e como esse pensamento filosófico in-
fluenciou o surgimento de uma ciência da religião, com base no conteúdo visto
no segundo tópico desta unidade.
3. Quais elementos de unificação da religião, segundo Max Müller e o que vimos no
tópico terceiro, poderiam ser encontrados em todas as religiões?
4. Discorra sobre a Teoria do Animismo de E. B. Tylor, conforme vimos no quarto
tópico desta unidade, e aponte seus problemas e incoerências.
5. Na sua avaliação e pelo que vimos no último tópico desta unidade, qual a contri-
buição (ou quais as contribuições) que a Teologia pode dar às Ciências da Religião?
MATERIAL COMPLEMENTAR

Teologia e Ciências da Religião. A caminho da


maioridade acadêmica no Brasil
Eduardo R. da Cruz e Geraldo de Mori (organizadores)
Editora: Paulinas e PUCMinas
Sinopse: o livro, composto de diversas e distintas contribuições, é o
testemunho privilegiado do atual debate entre Teologia e Ciências
da Religião no ambiente acadêmico brasileiro nesse início do século
XXI. Como se poderá perceber, muitas questões permanecem em aberto (e assim deve ser) tanto do
ponto de vista material quanto do formal. Isso acontece tanto por causa do objeto de estudo — a(s)
religião(ões), o sagrado, a crença etc.) —, quanto por causa dos caminhos tomados para compreendê-
lo — o da(s) Teologia(s), o da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões). O interessante desse percurso feito junto
é que a Teologia e as Ciências da Religião podem aprender muito uma com a outra, enriquecendo-se
mutuamente nesse encontro.

O Universo no Olhar - 2014


Sinopse: o Dr. Ian Gray (Michael Pitt) é um cientista que pesquisa
sobre a íris ocular. Obcecado por descobrir a origem da visão, ele
tenta provar que o desenvolvimento do olho humano faz parte
da evolução natural, dessa forma não seria preciso um “designer
inteligente”, ou seja, uma figura divina para criá-lo. Ele trabalha
com a ajuda de sua estagiária Karen (Brit Marling) e de Kenny
(Steven Yeun). Um dia, conhece Sofi (Astrid Berges-Frisbey), e
os dois se apaixonam, apesar da diferença de convicções. A aproximação dos dois fará Ian buscar
explicações além da ciência para os mistérios que o olho humano pode guardar.

Os Enganos sobre o Sagrado – Uma Síntese da Crítica ao Ramo ‘Clássico’ da


Fenomenologia da Religião e seus Conceitos-Chave
No artigo “Os Enganos sobre o Sagrado – Uma Síntese da Crítica ao Ramo ‘Clássico’ da
Fenomenologia da Religião e seus Conceitos-Chave”, o professor Frank Usarski apresenta uma
discussão sobre os enganos do sagrado, fazendo uma síntese a partir da crítica à fenomenologia.
Para ter mais informações sobre o conteúdo, acesse o link: <http://www.pucsp.br/rever/
rv4_2004/p_usarski.pdf>.

Material Complementar
74
REFERÊNCIAS

BERGER, P. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião.


São Paulo: Paulus, 1985.
FILHO, P. G. S. Considerações teóricas em torno do reducionismo funcionalista em
Ciências da Religião. Revista de Estudos da Religião (REVER), São Paulo, n. 4, p.
43-72, 2004.
GRESCHAT, H. O que é Ciência da Religião? São Paulo: Paulinas, 2005.
HARNACK, A. O que é cristianismo? São Paulo: Editora Reflexão, 2009.
LIBÂNIO, J. B. A religião no início do milênio. In: CRUZ, E. R.; MORI, G. Teologia e
Ciências da Religião. A caminho da maioridade acadêmica no Brasil. São Paulo:
Paulinas / Belo Horizonte: Editora PUCMinas, 2011.
PALS, D. L. Eight theories of religion. New York: Oxford University Press, 2006.
TERRIN, A. N. Introdução ao estudo comparado das religiões. São Paulo: Paulinas,
2003.
TYLOR, E. B. Primitive Culture: Researches into development of mythology, philo-
sophy, religion, language, art, and custom. London: John Murray, 1903.
USARSKI, F. Constituintes da Ciência da Religião. Cinco ensaios em prol de uma
disciplina autônoma. São Paulo: Paulinas, 2006.
75
REFERÊNCIAS
GABARITO

1. Nesta questão, o(a) aluno(a) deverá discorrer sobre as revoltas camponesas e as


guerras travadas entre protestantes e católicos que levaram os pensadores da
época a questionarem os ideais de uma religião dominante.
2. Neste item, o(a) aluno(a) deverá apontar as bases do Deísmo conforme explici-
tado no texto e refletir como esse pensamento auxiliou na observação de outras
crenças não ocidentais.
3. Os elementos de unificação da religião, segundo Max Müller, seriam os costu-
mes, os rituais e as crenças.
4. Nesta questão, o(a) aluno(a) deverá explicar como Tylor desenvolveu a sua Teoria
do Animismo. Depois dessa explicação, deverá apontar e discutir os seus proble-
mas e incoerências conforme explicitados no texto.
5. Neste quesito, o(a) aluno(a) deverá fazer uma avaliação pessoal sobre as contri-
buições que a Teologia pode dar às Ciências da Religião sob o seu ponto de vista.
Professor Dr. Sérgio Gini
Professor Me. José Francisco de Souza

A EPISTEMOLOGIA DOS

III
UNIDADE
ESTUDOS DA RELIGIÃO

Objetivos de Aprendizagem
■■ Compreender as teorias funcionalistas da religião.
■■ Conhecer a formulação da psicanálise nos estudos da religião.
■■ Avaliar a crítica materialista ao fenômeno religioso.
■■ Apreender a reação fenomenológica no estudo da religião.
■■ Entender a crítica feita ao sagrado.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ A Teoria Sociológica de Durkheim
■■ As contribuições da Psicanálise: Freud e Jung
■■ A Alienação Marxista
■■ A reação fenomenológica
■■ As críticas à Fenomenologia
79

INTRODUÇÃO

Caro(a) aluno(a), a unidade que iremos estudar agora diz respeito à epistemolo-
gia dos Estudos da Religião, ou seja, seus principais postulados, métodos e suas
principais conclusões, comparados com teses e teorias a respeito do fenômeno
religioso desde o início do século XIX.
A visão totalmente essencialista da religião passa a ser substituída por visões
que creditam a esse fenômeno a capacidade de organizar a vida social, funcio-
nando como uma espécie de sistema vivo, integrado e dinâmico. A religião passa
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

a ter uma função imprescindível na organização social, a despeito de questões


ligadas à fé confessional.
Contudo, a crítica que se faz a essa teoria funcional é que ela reduz significa-
tivamente o espectro da religião. Freud, com a sua Psicanálise focada nos estudos
da religião, e Marx, com o seu conceito de alienação, são exemplos de como esse
viés funcionalista pode levar ao reducionismo da religião.
Para superar os reducionismos, a Escola Fenomenológica se ocupará em
colocar a experiência transcendental da religião no âmbito das análises dos cien-
tistas do religioso. Recupera-se, reelabora-se e aprende-se o conceito de sagrado
como ponto focal das investigações das Ciências da Religião. Chamamos essa
volta ao sagrado de reação fenomenológica aos reducionismos propostos pelas
teses funcionalistas.
Entretanto, pelo seu caráter normativo enquanto disciplina acadêmica, as
Ciências da Religião também irão direcionar sua crítica à Fenomenologia ao
sagrado. A ideia é recuperar o debate acerca da religião como um objeto de
estudo empírico, valorizando os elementos culturais, sociais, filosóficos e práti-
cos, que constituem a multivariada faceta das religiões concretas, por meio da
interseção com as ciências humanas e sociais.
No bojo dessas questões, as Ciências da Religião se apresentam como uma
disciplina acadêmica autônoma, emancipada da Teologia, e em condições de
produzir cientificamente análises do fenômeno religioso que combatam toda e
qualquer tipo de ideologia.
Bom estudo!

Introdução
80 UNIDADE III

A TEORIA SOCIOLÓGICA DE DURKHEIM

Caro(a) aluno(a), vimos, na unidade


anterior, algumas das mais influentes
teorias da religião de caráter evo-
lucionista. Queremos, agora,
abordar aqui, ainda que de
forma mais breve, uma teo-
ria sociológica do século

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
XX que, na realidade, tem
pouco em comum com as
teorias precedentes.
Essa teoria socioló-
gica está ligada ao nome de
Émile Durkheim (1858-1917),
fundador da Escola Sociológica
francesa e, certamente, o autor que
mais influenciou e influencia a Sociologia
da Religião. Sua obra que trata do fenô-
meno religioso é As Formas Elementares da Vida
Religiosa, publicada em 1912.
É importante observarmos que a teoria de Durkheim tem um fundo etno-
lógico e se refere ao conceito de totemismo como sendo a religião primária dos
homens primitivos.
Totemismo é uma categoria etnológica-religiosa utilizada por quase todos
os estudiosos das culturas primitivas, contudo, segundo Terrin (2003), nunca
foi explicada. Frazer (1987), na tentativa de explicar, disse que o totemismo con-
siste na ligação existente entre um clã e uma classe de animais, razão pela qual há
uma consideração para com esse animal, certa reverência, acreditando-se num
parentesco remoto: o animal totêmico (totem = parente) é considerado o ante-
passado mítico do qual o clã descende.

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


81

O sociólogo francês Émile Durkheim foi o primeiro a definir o totemismo


como a primeira representação sistêmica que o homem fez do mundo e
de si mesmo, em que é possível obter uma visão do mundo. Como para
Durkheim a Filosofia e a Ciência se originaram da religião, o totemismo ofe-
receu rica contribuição para a organização das construções intelectuais do
ser humano moderno.
Fonte: adaptado de Durkheim (1915).

O uso que Durkheim faz do totem parte do pressuposto de que o totemismo é


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

uma das expressões básicas e mais elementares da cultura e da religião dos povos
primitivos. O totem cumpre uma variedade de funções. Ele é, antes de tudo, um
símbolo, um emblema do clã, é desenhado na frente das casas dos chefes e escul-
pido nos objetos que são considerados como os monumentos do clã. Tem um
caráter religioso, serve para classificar o que é sagrado em relação ao que é profano.
O totem é o tipo de tudo que é sagrado, é uma expressão eminente do sagrado.
A partir dessa conceituação, Durkheim pôde sistematizar sua tese: sendo
o totem a forma mais sensível de religião, ele é o próprio deus totêmico. Dessa
forma, sendo ao mesmo tempo o símbolo do clã e o emblema do grupo social,
significa que o símbolo principal da religião e o fundamental da sociedade são
a mesma coisa e que, definitivamente, o deus totêmico do clã nada mais é que o
próprio clã, porém personificado e compreendido em sua forma mais ideal. A
tese de Durkheim diz que a religião é o mito que a sociedade faz de si mesma. O
culto prestado ao totem é um culto prestado a própria sociedade.
Logicamente, é verdade que em seus rituais de culto, que são sempre em
comunidade, os membros dos clãs aborígenes, por exemplo, entendem que estão
prestando culto à divindade (um animal, uma planta) que está fora da comuni-
dade, em algum lugar do mundo, que pode controlar a chuva ou mesmo fazê-los
prosperar. O que realmente está acontecendo, porém, é algo que pode ser mais
bem compreendido em termos de função social.
A sociedade precisa do comprometimento individual dos seus membros.
Esse comprometimento, segundo Durkheim, “não pode existir senão através da
consciência do indivíduo; por isso que o princípio totêmico deve sempre pene-
trar e se organizar conosco” (DURKHEIM, 1915, p. 419).

A Teoria Sociológica de Durkheim


82 UNIDADE III

Além disso, podemos saber exatamente quando e como isso ocorre: naqueles
cerimoniais inspiradores e, ao mesmo tempo, intimidadores, que causam medo,
terror, respeito e reverência. São ocasiões em que a comunidade toda se reúne
para praticar seus ritos, seja o clã ou a tribo. Nessas grandes e inesquecíveis ceri-
mônias, os adoradores selam seu comprometimento com a própria comunidade:
No princípio, sagrado é nada mais, nada menos do que a sociedade trans-
figurada. Isto deveria ser possível interpretar em termos sociais. E, como
uma questão de fato, a vida social, tal como o ritual, move-se em um círcu-
lo. Por um lado, o indivíduo recebe da sociedade a melhor parte de si mes-
mo, tudo o que lhe dá um caráter distinto e lugar especial entre os outros

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
seres, sua cultura intelectual e moral [...] Mas por outro lado, a sociedade
existe e vive somente em/e através de indivíduos. Se a ideia da sociedade
fosse extinta em mentes individuais, as crenças, tradições e aspirações do
grupo não seriam mais sentidas e partilhadas pelos indivíduos, a socieda-
de iria morrer. [...] Vemos agora a verdadeira razão pela qual os deuses não
podem fazer, sem os seus adoradores, mais do que estes podem fazer sem
os seus deuses, é porque a sociedade, de quem os deuses são apenas uma
expressão simbólica, não pode prescindir de indivíduos mais do que estes
podem fazer sem a sociedade (DURKHEIM, 1915, p. 347).

Nesse parágrafo conclusivo, Durkheim deixa claro sua tese, que é o cerne de sua teo-
ria. A crença religiosa e os rituais são, em última análise, expressões simbólicas da
realidade social. O culto ao totem é, na realidade, a afirmação da fidelidade ao clã.

“Quanto mais irrefutável a percepção de que o totemismo constitui uma


fase regular de todas as culturas, mais premente a necessidade de chegar a
uma compreensão dele, de esclarecer o enigma de sua natureza.”
(Sigmund Freud)

Caro(a) aluno(a), embora Durkheim tenha se preocupado com a forma mais


primitiva de religião, sua busca principal não se fundamentava na descoberta
da origem do fenômeno religioso e seu elemento comum a todas as formas de
religião. Como sociólogo, ele preferiu direcionar sua teoria para esclarecer a fun-
cionalidade da religião como produtora de solidariedade social.

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


83
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE:
FREUD E JUNG

Prezado(a) aluno(a), a Teoria Psicanalítica da origem da religião de Sigmund


Freud (1856-1939) é outro exemplo do desenvolvimento dos estudos da religião
no final do século XIX e início do século XX. Segundo Terrin:
O plano de trabalho de Freud é muito ambicioso: na realidade tem a
pretensão de fazer com que os etnólogos entendam o que não conse-
guem compreender, fazendo que enxerguem primeiro uma analogia e
depois uma identidade de comportamento entre o homem primitivo
com os seus tabus e o seu totemismo, e o neurótico, que por sua vez,
também está sujeito a tabus que ele mesmo cria e a uma forma particu-
lar de totemismo (TERRIN, 2003, p. 65).

A teoria de Freud se baseia num espesso entrelaçamento de caráter etnográfico


e de caráter psicanalítico (TERRIN, 2003, p. 65), envolvendo o totem e o tabu,
dos quais consideraremos os aspectos principais. Primeiramente, é preciso que
os termos principais sejam esclarecidos.

As Contribuições da Psicanálise: Freud e Jung


84 UNIDADE III

O Tabu é uma proibição fortíssima e antiquíssima para o qual não existe uma
razão imediata. É exogâmico, por exemplo, um membro do clã não pode se casar
com uma mulher do mesmo clã. Por sua vez, o totem é considerado o “deus totê-
mico”, isto é, como o animal ao qual o clã atribui um culto especial e do qual se
sente dependente. Terrin esclarece:
Ora, a teoria de Freud sobre a origem da religião poderia ser resumi-
da nestas poucas palavras: considerada a semelhança existente entre
os tabus do neurótico e os tabus do homem primitivo, e considerando
que na origem de toda neurose há um chamado complexo de Édipo, o
autor é levado a prefigurar um complexo de Édipo como uma história

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
verdadeira projetada no início da humanidade, segundo a qual os fi-
lhos — num tempo histórico ou mítico — teriam se revoltado contra o
pai e o teriam matado por ciúme e para possuir as mulheres que eram,
todas, monopólio do pai. Porém, essa morte do pai (parricídio) teria
imediatamente criado uma fonte de perturbação e um remorso sem
igual, razão pela qual os filhos não estariam mais em condições de su-
portar diretamente a lembrança da imagem paterna, que precisaria ser
substituída simbolicamente (TERRIN, 2003, p. 66).

Os primitivos são culpados por matarem o pai, mas não podem suportar a
lembrança desse fato. Para aplacar o remorso daí decorrente, criam o símbolo
totêmico, que nada mais é do que a imagem disfarçada do pai odiado, mas com
o qual querem se reconciliar de qualquer maneira.

Totem e Tabu foi publicado por Freud em 1913. É considerado a sua maior
contribuição à Etnologia, resgatando as origens da organização social e das
hierarquias das sociedades primitivas que influenciaram a nossa atual con-
figuração de sociedade. Os argumentos de Freud configuram suas opiniões
sobre a formação da cultura atual, baseada, segundo ele, nos antigos siste-
mas totêmicos que, atualmente, podem ser encontrados somente em algu-
mas localidades da Austrália e África.
Fonte: Koltai (2010).

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


85

A religião é explicada nessa tentativa de superar a dor da culpa e do remorso


pelo parricídio, mostrando sentimentos de reverência para o totem, o símbolo
do pai, elevando-o à divindade para não senti-lo mais hostil e para se reconci-
liar com ele. Enfim, a religião seria uma espécie de neurose universal e estaria
contida dentro do complexo de remorso e reconciliação.
Segundo Terrin (2003, p. 67) “Não é necessária muita acuidade crítica para
reconhecer a frágil teoria freudiana como algo sem sentido, acreditando poder
explicar também o cristianismo nessa mesma dimensão psicanalítica defeituosa”.
A crítica de Terrin faz sentido, uma vez que argumenta que Freud deu muito
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

valor ao inconsciente. Para tanto, “a tese funcionalista de Freud quanto à reli-


gião afirma que esse fenômeno social é um subproduto do inconsciente, com a
função de reprimir pulsões instintivas antissociais”.

“Assim como ocorria nas sociedades totêmicas, a violação ou o não cumpri-


mento de um ritual sagrado cria desconforto psicológico, e o sujeito é levado a
crer que algum mal irá lhe ocorrer, pois não atendeu a uma exigência sagrada”.
(Sigmund Freud)

Quem contrariou as teses de Freud sobre a religião, especialmente seu conceito


de religião como neurose coletiva, foi o psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-
1961). Já em 1913, Jung se afasta definitivamente da corrente freudiana, passando
a ser considerado como um rebelde da Psicanálise ortodoxa de Freud.
Jung reputava a religião como muito benéfica para a sociedade e, assim, deve-
ria permanecer para sempre. O pensador defendia que a religião era uma expressão
natural do inconsciente coletivo, muito mais arcaico que o inconsciente indivi-
dual. Para ele, o inconsciente coletivo é uma espécie de memória ancestral, uma
sedimentação da vivência das primeiras gerações dos seres humanos, que se mani-
festa em profundas marcas psíquicas. A essas marcas, Jung chamou de arquétipos:

As Contribuições da Psicanálise:Freud e Jung


86 UNIDADE III

Os arquétipos do inconsciente seriam a fonte, tanto dos sonhos como dos


mitos da religião (Jung sempre insistiu na associação entre uns e outros).
De maneira que essa associação tem para ele um papel positivo: os mitos,
como os sonhos, têm um papel estabilizador na constituição da personali-
dade (o Selbst ou “Si Mesmo”, diferente do “Eu”) (CROATTO, 2001, p. 21).

Palmer (2001, p. 125) esclarece que mesmo que Jung partilhe o ponto de vista de
Freud sobre o consciente — algo como o leigo tem a respeito de si mesmo — “o
inconsciente pessoal para ele é uma mistura do inconsciente e do pré-consciente
freudianos”. Nesse caso, “os conteúdos do inconsciente pessoal são acessíveis à
consciência (Ego) e contém apenas os materiais que chegaram ao inconsciente

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
como resultado das experiências pessoais do indivíduo e do inconsciente cole-
tivo” (PALMER, 2001, p. 149).
Para Jung, os arquétipos são instalações mentais que “criam” imagens de certas
coisas e resultam dos mitos e das produções artísticas. Sendo assim, representam
algo adquirido na experiência externa do indivíduo, que opera universalmente
como força elementar presente na essência humana.
Segundo o psicólogo suíço, os seres humanos nasceram com um “arquétipo”
de Deus, uma imagem que todos estão predispostos a ter. Por isso, Jung não se
preocupou com a existência ontológica de Deus, mas com sua existência como
realidade psíquica, ou seja, “fenomenológica”. Assim, Jung afirmava que não acre-
ditava em Deus, mas sabia que ele existia, por se tratar de um fenômeno psíquico
e só. Ele descartava qualquer conotação transcendental ao termo.
Jung defendia que a religiosidade era uma maneira de ajudar o processo de
individuação: a exploração de nós mesmos e a aceitação final de quem somos.
Ele fornece evidência para isso, referindo-se ao fato de que, embora existam
milhares de religiões existentes, todas têm ideias centrais comuns: compartilham
fortes valores infalíveis, regras etc. Isso sugere que a religião, independentemente
de qual seja, funciona como um processo de estabilização do indivíduo, como
apontou Croatto (2001).
Mesmo considerando que muito da estrutura psíquica freudiana tenha sido
aproveitada na sua teoria, Jung discorda de Freud em vários aspectos. Aquilo que
seria comum a toda a humanidade, as imagens primordiais e universais, é para Jung
uma camada mais profunda do inconsciente, o inconsciente coletivo. De modo
que os fatores psicológicos agem independentemente da experiência do indivíduo.

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


87

Tais fatores são adquiridos por meio de uma memória refratária e ancestral vinda
de antepassados, que o indivíduo, portanto, carrega no seu DNA. Por mais estra-
nhas que pareçam as acepções acerca de Deus ou do divino, a questão é que a
experiência religiosa representa um campo aberto aos pesquisadores da religião
de diversas áreas das ciências na busca de pistas que levem a decifrar o numi-
noso de Rudolf Otto, como destaca Libório:
O problema de Deus e do nascer da “experiência religiosa” — se pro-
veniente de dentro, de fora do homem ou de ambos — é uma questão
aberta para todos os estudiosos da Religião, através das diversas ciên-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

cias (antropologia, sociologia, psicologia, filosofia, teologia, etc.) que


abordam a experiência que o homem faz do numinosum, em sua breve
ou longa caminhada, na face da terra, em busca do pleroma tão sonha-
do consciente ou inconsciente por todos os povos e culturas das mais
primitivas às mais cultas (LIBÓRIO, 2005, p. 75).

Como pesquisadores do fenômeno religioso, devemos considerar os subsídios


que buscam prover sentido à experiência religiosa, distinguida nas correntes
teóricas de Freud e Jung, assim como nas de outros pensadores que trouxeram
novas formulações e críticas. Por mais que pareçam haver intransponíveis obs-
táculos para reunir ciência e religião, a experiência individual ainda é a mais
apropriada, como sugere Muller:
[...] há de se estar aberto para deixar-se tocar pelo sagrado. Quem o es-
tiver — e minhas reflexões pretendem ser um estímulo para isto — verá
que isso lhe há de trazer um grande enriquecimento para a sua vida.
Com isto, ele estará satisfazendo um anseio que é parte essencial da
natureza de todo homem. [...] Na experiência do sagrado, eu entro em
contato com um mundo que não conheço a não ser através da imagina-
ção. Jamais o hei de ver — pelos menos enquanto estiver vivo. Jamais o
poderei tocar. E, no entanto, ele existe (MULLER, 2004, p. 9, 25).

Caro(a) aluno(a), tanto a explicação freudiana quanto a junguiana para a religião


são uma comprovação de que as explicações funcionalistas motivam reducio-
nismos na compreensão do fenômeno religioso, dando-lhe apenas o status de
organizador da vida social (Freud) ou emancipador do indivíduo (Jung). A expli-
cação que veremos a seguir também segue nesse mesmo sentido, só que negando
totalmente a religião.

As Contribuições da Psicanálise:Freud e Jung


88 UNIDADE III

A ALIENAÇÃO MARXISTA

Prezado(a) aluno(a), para Karl


Marx (1818-1883), religião é a
mais pura ilusão. Pior talvez,
é uma ilusão com consequ-
ências muito negativas. É um
exemplo extremo de ideolo-
gia, de um sistema de crença

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
cujo propósito do dirigente é
simplesmente prover razões —
desculpas, na verdade — para
manter exatamente a forma de
organização social dominadora
que o opressor aprecia.
Marx também entendeu que
a religião deve ser investigada em
razão das funções que desempenha na sociedade e não com base em seus conteú-
dos e elementos internos. Ele postula um conjunto de causas que estão diretamente
relacionadas com a “miséria real” construída por meio de processos econômicos,
sociais e políticos, pela luta de classes e seu impacto na sociedade e na história.
Assim, para ele, não faz sentido uma pesquisa que centre seus interesses no
conteúdo das crenças, nas aquisições ou nas perdas intelectuais ou emocionais
produzidas por elas, na reunião de mitologias, nos rituais e suas comparações
etc., pois que o que realmente importa é a compreensão dos processos econô-
micos produtores da miséria, bem como sua reflexão e expressão na religião e a
função que ela exerce no quadro geral da vida coletiva.
Os conteúdos desenvolvidos pela religião são, na melhor das hipóteses, ideologias
— ideias tendenciosas, representações falsas, parciais e incompletas da realidade —
construídas para reforçar a dominação e a opressão, além de impedir a sua superação.
A religião e suas instituições sancionam as formas econômicas de exploração, apoiam
os governos que as promovem, defendem a divisão desigual de poderes e riquezas e
as apresentam como a ordem natural das coisas, senão a expressão da vontade divina.

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


89

Prometem, em um mundo futuro, uma vida plena e feliz para desviar a atenção
dos oprimidos no seu presente, assim, evitam que eles se esforcem para mudar
as estruturas que produzem sua miséria (FILHO, 2004, p. 50).

Para Marx, o ateísmo é algo bem claro, tão claro que não carece de nenhuma
investigação mais apurada de sua parte. Deus não passa de uma projeção
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

do homem, e assim a religião nada mais é que produção e alienação do ho-


mem; Berger diria que ela (a religião) seria uma legitimadora das questões
humanas, logo, manipulável.
Para saber mais, acesse:
<periodicos.ufpb.br/index.php/dr/article/download/15369/8739>.
Fonte: Lopes (2003, p. 2).

Diante de sua abordagem “econômica” do fenômeno religioso, Marx afirma que a


religião é irracional, superstição, o ópio do povo. A manutenção de sua existência
se dá por ela estar ligada a processos sociais fundamentais, não simplesmente for-
mas individuais de expressão ou resposta para explicar o mundo e suas vicissitudes
(FILHO, 2004).
Embora tenha escrito mais de meio século antes de Freud e Durkheim, Marx
aborda o fenômeno religioso de forma similar a eles, ou seja, a partir de seus
aspectos funcionais e não essenciais ou fenomenológicos. O que lhe interessa
não são os conteúdos das crenças religiosas, muito menos o que as pessoas dizem
ser verdade a respeito de Deus, céu, Bíblia ou qualquer outro elemento sagrado.
Seu interesse é pelo papel que essas crenças desempenham na luta social,
no sentido de inibir e acomodar os fiéis numa formatação social que mantém
as diferenças de classe e a exploração do trabalho, fatos que fazem parte do seu
conceito de alienação.

A Alienação Marxista
90 UNIDADE III

“A religião serve, assim, para manter a realidade daquele mundo socialmen-


te construído no qual os homens existem nas suas vidas cotidianas.”
(Peter L. Berger)

Como vimos, os funcionalistas insistem que a chave para a compreensão do


fenômeno religioso só pode ser encontrada quando se descobre a função que a
religião exerce na sociedade e somente quando se esclarecem os efeitos sociais
e psicológicos da fé na vida das pessoas.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A REAÇÃO FENOMENOLÓGICA

Caro(a) aluno(a), a Fenomenologia foi se estruturando como disciplina autô-


noma no estudo da religião e da experiência religiosa no decorrer do século
XX, em resposta e como reação aos pressupostos funcionalistas. Ela se estendeu
ao campo da religião, pretendendo-se uma “ciência” autônoma, ou seja, como
Fenomenologia da Religião.

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


91

Essa definição como “ciência” independente aconteceu pelo fato de se apresentar


como um método de abordagem ampla e não exigir restrições quanto ao objeto de
estudo. Essa terminologia foi cunhada pelo historiador Gerardus van der Leeuw
(1890-1950), cujo trabalho se tornou clássico nessa abordagem. Outros repre-
sentantes são: Brede Kristensen (1867-1953), Geo Widengren (1907-1996), C.
J. Bleeker (1898-1993), Max Scheler (1874-1928), Edith Stein (1891-1942), Jean
Héring (1890-1966), entre outros.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

FENOMENOLOGIA COMO UMA CIÊNCIA

Há, no estudo da religião, uma pluralidade de perspectivas e níveis de análise.


Cada uma dessas perspectivas tem o seu método de trabalho e pesquisa para o
mesmo objeto. Para ilustrarmos esses diferentes saberes, apresentamos a clas-
sificação que Martin Valasco (1976) traz para delimitar as diferentes formas de
abordar o religioso (GOTO, 2004, p. 55).
O Quadro 1 mostra como a Fenomenologia da Religião se estabeleceu na
ordem das ciências religiosas, enquanto a Teologia se configura como uma refle-
xão de caráter normativo ao lado da Filosofia.

A Reação Fenomenológica
92 UNIDADE III

Quadro 1 — Esquema resumido dos diferentes saberes sobre o religioso

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Fonte: Valasco (1976, p. 77).

A Fenomenologia da Religião teve como um dos vetores de sua constituição a


polêmica contra as teorias da religião primitiva e também a reação aos postula-
dos reducionistas e funcionalistas. Entre os autores mais contemporâneos, dois
se destacam: Rudolf Otto (1869-1939) e Mircea Eliade (1907-1986).
Rudolf Otto, em seu livro Das Heilige (O Sagrado), procurou expor a ideia
do sagrado compreendido como algo divino, diferente de qualquer realidade
natural perceptível e que escapa aos processos de racionalização. No subtítulo
do livro, ele mostra o caminho que percorreria: uma análise dos elementos irra-
cionais e racionais que compõem o sagrado.

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


93

Mircea Eliade tem como uma de suas principais divisas a revalorização das reli-
giões “primitivas” e tradicionais e a refutação da ideia de que eram portadoras
de superstições irracionais ou pertencentes a um estágio primitivo, mágico, na
aurora da humanidade. Contra o funcionalismo, opôs aquilo que se tornou uma
das principais características de seu pensamento, a irredutibilidade do sagrado e
a incisiva defesa da autonomia e independência do fenômeno religioso.

O CONCEITO DE SAGRADO
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Uma definição científica do termo “sagrado” sempre esbarra na forma como é


feito o seu uso tradicional. Isto porque ele vem sempre associado a outro termo
muito utilizado na História e na Filosofia das religiões: o profano. Segundo Neto
(2008, p. 1) ambos conceitos
convergem para uma oposição dicotômica e dão origem ao binômio sa-
grado/profano, que tradicionalmente divide toda a experiência huma-
na entre a esfera religiosa/espiritual (sagrada) e o campo das atividades
não religiosas/cotidianas (profanas).

Dessa forma, é preciso conhecer as aplicações feitas dos dois termos para poder
chegar a uma definição mais precisa sobre o que é o sagrado.
De acordo com Neto (2008, p. 1), a “origem latina do termo sagrado é sacer,
muito próxima do termo sanctus. O seu significado mais preciso está no verbo sanc-
tio, que significa tornar sagrado ou tornar propriedade dos deuses”. Desse modo, o
sagrado está relacionado diretamente como pertencente aos deuses ou à dimensão
espiritual, “sendo inviolável ou inalcançável para os homens, especialmente aque-
les que participam da esfera profana, comum ou ordinária” (NETO, 2008, p. 1).
Somente com um pacto estabelecido entre seres humanos e deuses é possí-
vel o ato de tornar sagrado. Nesse caso, as literaturas míticas demonstram um
bem oferecido pelos humanos aos deuses, na esperança de receber outro bem
em contrapartida. Quem faz a intermediação dessas oferendas é a classe sacer-
dotal ou outro determinado grupo, como os oráculos. Os eventos religiosos são
utilizados para aproximar os profanos do sagrado.

A Reação Fenomenológica
94 UNIDADE III

Por sua vez, o termo “profano” também tem origem latina, profanum, e desde
a sua origem tem estado associado ao termo “sagrado” ou à margem dele. Na
verdade, não há profano se não houver o sagrado e vice-versa. Isso indica que é
“profano” todo elemento ou indivíduo “que coexiste juntamente com o sagrado,
mas sem participar nessa sacralidade. É assim que toda a vida cotidiana, relativa
à produção e à economia, torna-se profana” (NETO, 2008, p. 2).
De forma geral, os elementos considerados sagrados provêm dos mitos
e estão presentes nos rituais das sociedades em que tais mitos estão inseri-
dos. Apenas participam desses rituais aqueles que estão aptos a adentrar nos

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
espaços divinos. “O restante das atividades humanas que não dizem respeito
a esse contato com a dimensão espiritual continua na dimensão do profano”
(NETO, 2008, p. 3).
Contudo, há outras duas categorias subjacentes a essas, que são capazes de
inverter a ordem estabelecida e transformar elementos sagrados em profanos e
vice-versa: sacralização e dessacralização. Esses conceitos também serão muito
utilizados nos estudos sobre religião, e não há como abrir mão deles para com-
preender o conceito de sagrado. Desse modo:
Geralmente essa transformação deve-se à purificação de algo que esta-
va no campo do profano e que possibilita a sua ligação com a esfera do
sagrado, ou eventualmente que um elemento sagrado, devido à decor-
rência de um ato impuro, seja convertido para o campo do profano, ao
menos até que seja novamente purificado das impurezas que incorre-
ram sobre si (DI NOLA, 1987, p. 123).

Embora pareçam indissociáveis do fenômeno religioso, as filosofias platônicas


e neoplatônicas trabalham esses termos em outra esfera:
Em concepções platônicas e neoplatônicas esse binômio sagrado/profa-
no pode ser entendido através da dicotomia entre o mundo inteligível e o
mundo sensível sugeridos por Platão. Segundo esse raciocínio, os elemen-
tos que dizem respeito ao superior plano das ideias seriam traduzidos para
a esfera do sagrado, enquanto todos os elementos e eventos dentro do mun-
do material participariam do campo da vida profana (NETO, 2008, p. 2).

É com base nessas filosofias que a relevância do sagrado em termos históricos só


se torna possível por meio de uma dialética com o profano. Conforme as con-
cepções da Escola Francesa (História e Sociologia), há uma bipolaridade entre
os dois conceitos que, ao mesmo tempo, se opõem e se complementam:

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


95

[...] as relações humanas em sociedade são diferentes das relações re-


ligiosas que acontecem entre homens e divindades, porém há sempre
um resquício de profano em qualquer ritual sagrado e às vezes algo de
sagrado nas relações profanas (NETO, 2008, p. 4).

Os termos são novamente indissociáveis, entretanto desfrutam de uma mesma


importância diante das ciências humanas interessadas em estudar o fenômeno
sagrado. Contudo, aqui reside todo o problema, ou a solução, para o entendi-
mento do conceito de sagrado:
[...] mesmo na dialética francesa, uma análise do sagrado, em perspec-
tivas históricas, é possível apenas a partir de uma subversão do que até
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

aqui temos definido como a explicação dos termos sagrado e profano.


O único respaldo historiográfico para o conceito do sagrado é justa-
mente como ele se configura a partir da experiência humana em sua
vida ordinária no campo do profano (NETO, 2008, p. 4).

Pensadas dessa forma, as categorias que se propõem como sagradas dentro de


sistemas religiosos e sociais são um reflexo das expectativas, das ideias e dos pen-
samentos moldados no interior do cotidiano de uma determinada sociedade ou
de um dado grupo social.
Foi a Escola Italiana de História e Estudos das Religiões que conseguiu trazer
as análises da religião e de suas concepções de sagrado para o campo da Ciência
Histórica. Nas interpretações dessa escola, tanto o sistema religioso em si quanto suas
noções de sacralidade são entendidos como fenômenos formados a partir de um con-
texto histórico específico. Esclarece a proposta de interpretação dada por Di Nola:
A civilização é definida por duas instâncias, que são o cotidiano laico do
trabalho, da razão e do conhecimento e a experiência religiosa e meta-
física dos mitos e dos ritos. Estabelece-se aqui uma sincronia entre uma
realidade funcional e o fenômeno espiritual, que se complementam dia-
leticamente na dinâmica da vida social (DI NOLA, 1987, p. 152).

Assim, concluímos que a “simbiose” entre sagrado e profano configura, na expli-


cação religiosa, sentidos que são conferidos por signos elaborados dentro dos
quadros simbólicos da sociedade estudada, significados no contexto de um pen-
samento e uma cultura específicos.
Tanto Mircea Eliade quanto Rudolf Otto vão elaborar seus pensamentos ora
concordando ora criticando esses pressupostos. Será por intermédio desses dois
autores que veremos como se deu a reação fenomenológica nas Ciências da Religião.

A Reação Fenomenológica
96 UNIDADE III

MIRCEA ELIADE

Mircea Eliade nasceu e foi educado na Romênia, estudou e ensinou na Europa oci-
dental e finalizou sua carreira nos Estados Unidos como professor na Universidade
de Chicago. Falava e escrevia em várias línguas europeias. Apesar de seu interesse
intelectual ser vasto e ter um talento fabuloso para escrever, decidiu dedicar seus
estudos ao campo religioso. Em sua carreira profícua, como escritor e professor, teve
um papel importantíssimo desenvolvendo ideias em oposição às teorias reducio-
nistas que, em seu parecer, não compreendem o papel da religião na vida humana.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Mircea Eliade (1907-1986) nasceu em Bucareste, na Romênia, em uma famí-
lia de cristãos ortodoxos. Formou-se em Filosofia na Universidade de Buca-
reste, onde também fez o mestrado. Poliglota (falava inclusive o hebraico),
foi para a Índia, onde estudou sânscrito e filosofia hindu na Universidade de
Calcutá. De volta à Romênia, em 1932, doutorou-se em Filosofia com uma
tese em francês sobre a Yoga, trabalho que lhe deu reconhecimento interna-
cional, tendo trabalhado como adido cultural nas embaixadas romenas em
Londres e em Portugal.
Serviu na legião romena durante a Segunda Guerra Mundial e, após o fim
dos conflitos, decidiu se estabelecer em Paris por não compactuar com o
governo comunista romeno. Na França, ensinou na École Pratique des Hau-
tes Études até 1956, quando foi convidado a lecionar na Universidade de
Chicago, onde assumiu a chefia do Departamento de Religião, permanecen-
do neste cargo até sua morte. Publicou vasta obra como filósofo, poeta,
romancista e, sobretudo, historiador das religiões.
Fonte: os autores.

Como defensor da autonomia do campo religioso, Mircea Eliade sugeriu que


a religião fosse avaliada com critérios religiosos, pois o sagrado não pode ser
submetido ao reducionismo das Ciências Sociais, da História ou da Psicologia,
afinal, religião faz parte de uma categoria sui generis. Para ele:

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


97

Um fenômeno religioso somente se revelará como tal com a condição de


ser apreendido dentro da sua própria modalidade, isto é, de ser estudado
à escala religiosa. Querer delimitar este fenômeno pela fisiologia, pela
psicologia, pela sociologia e pela ciência econômica, pela linguística e
pela arte, etc... é traí-lo, é deixar escapar precisamente aquilo que nele
existe de único e de irredutível, ou seja, o seu caráter sagrado. É verdade
não existirem fenômenos religiosos “puros”, assim como não há fenôme-
no única e exclusivamente religioso. Sendo a religião uma coisa humana,
é também, de fato, uma coisa social, linguística e econômica — pois não
podemos conceber o homem para além da linguagem e da vida coletiva.
Mas seria vão querer explicar a religião por uma dessas funções funda-
mentais que definem o homem, em última análise (ELIADE, 2010, p. 2).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Já no prefácio do livro Tratado de História das Religiões, o romeno de Bucareste


deixa claro como ele trataria o fenômeno religioso de forma diferente da abor-
dagem funcionalista. Isto porque a complexidade do fenômeno religioso se
destinava a sustentar que qualquer religião, mesmo a dos povos mais primitivos
e com nenhuma sofisticação do ponto de vista material ou tecnológico, possuía
um complicado sistema simbólico e um conjunto de mitos e ritos que traduzem
uma cosmovisão profunda do mundo, da vida humana e comunitária.
Eliade sustentou que o conhecimento antropológico sobre as religiões pri-
mitivas não encontrou qualquer possibilidade de estabelecer um marco zero,
uma origem comum ou única, e que as religiões das sociedades primitivas sem-
pre se revelaram num contexto histórico, negando o esquema evolucionista do
simples ao complexo, da magia ou animismo às ideias de Deus.
Eliade nunca negou que os estudos de religião pudessem se beneficiar da
identificação de processos históricos ou sociais com as quais se relacionam, mas,
como já adiantado anteriormente, sempre defendeu que o fenômeno religioso
possui uma dimensão autônoma irredutível, que é aquilo que a diferencia e a
caracteriza como religião e que precisa ser captado e compreendido.
O argumento “eliadiano”, construído por analogia com a Arte ou a Filosofia,
sustenta que é necessário, para entender Platão, por exemplo, estudar a sociedade
grega e os embates políticos e culturais de sua época. No entanto, sua filosofia
tem autonomia em relação a esses dados primários e só pode ser de fato compre-
endida a partir de seus textos, da pesquisa interna dos diálogos e da sua cadeia
de razões e argumentos — são esses os elementos que constituem e tornam sua
obra filosófica propriamente dita (FILHO, 2004, p. 58).

A Reação Fenomenológica
98 UNIDADE III

Não pode ser diferente com a religião. A compreensão de tudo que envolve o
ambiente cultural, econômico, social e histórico que envolve o fenômeno reli-
gioso estudado é imprescindível, porém as ciências que estudam esse cenário são
apenas auxiliares para seu entendimento, já que têm a sua compreensão funda-
mentada em sua linguagem interna, seus mitos, seus ritos e sua simbologia, que
são autônomos e irredutíveis.
Outra característica fundamental do pensamento de Mircea Eliade é a uni-
versalidade da religião, que pode ser compreendida a partir de duas constatações:
1) jamais foi encontrada uma sociedade sem religião e 2) em qualquer religião

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
encontram-se formas constantes universais e símbolos que revelam conteúdos
também universais. Tais constatações exigem um método específico, compara-
tivo, histórico e universal que abarque a complexidade de seu objeto.
Essas peculiaridades do fenômeno religioso (complexidade, irredutibilidade
e universalidade) mostram ou pelo menos permitem a suspeita de que a religião
é um dos aspectos mais fundamentais da realidade humana e social. Assim, a
Fenomenologia concebe uma visão de homem que sustenta a existência do homo
religious como o mais originário e fundamental.
O homem religioso quer viver no espaço sagrado o maior tempo possível, um
espaço-tempo experiencial, expressão radical de tudo aquilo que é primeiro, abso-
luto, importante e tem valor. Um centro que é real por excelência e o fundamento
último do cosmos da vida. O homem primitivo, que é difamado pelos cientistas da
religião, tem aqui primazia, pois o que o caracteriza é sua proximidade com o sagrado.
O homem das sociedades arcaicas tem a tendência de viver o mais
possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa ten-
dência é compreensível, pois para os “primitivos” como para o homem
de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder em
última análise, à realidade por excelência. O sagrado está saturado de
ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenida-
de e eficácia. A oposição sagrado/profano traduz-se muitas vezes como
oposição entre o real e o irreal ou pseudo-real. [...] É, portanto, fácil de
compreender que o homem religioso deseja profundamente ser, parti-
cipar da realidade, saturar-se de poder (ELIADE, 1992, p. 18-19).

O sagrado é o oposto do que é profano. Existem dois modos de ser no mundo: o


sagrado e o profano. O profano é o que acontece todos os dias, o espaço onde as
coisas ordinárias são realizadas. O sagrado é a esfera do sobrenatural, das coisas

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


99

extraordinárias, memoráveis e monumentosas. Enquanto o profano se desva-


nece pela fragilidade, o sagrado é eterno, completo de substância e realidade.
A sacralidade é, em primeiro lugar, real. Quanto mais religioso é o ho-
mem, mais real ele é, e mais ele se desvia da irrealidade de um devir
privado de significação. Daí a tendência do homem para “consagrar”
toda a sua vida. As hierofanias sacralizam o cosmos, os ritos sacralizam
a vida. Esta sacralização pode ser também obtida de maneira indireta,
isto é, pela transformação da vida num ritual (ELIADE, 2010, p. 374).

O profano é a arena dos afazeres humanos, os quais são instáveis e, normalmente,


caóticos. O sagrado é a esfera da ordem e da perfeição, a casa dos ancestrais, dos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

heróis e dos deuses. De qualquer lugar que olhemos para as sociedades arcaicas,
a religião tem sua fundamentação nessa separação (PALS, 2006, p. 199).
Eliade foi educado na França, e seu conceito de religião fundamentado nas
esferas do sagrado e do profano tem suas bases no pensamento de Durkheim.
A diferença entre os dois é que quando Durkheim menciona o sagrado e o pro-
fano está pensando na sociedade e nas suas necessidades. O sagrado para ele se
refere à sociedade e ao clã, enquanto o profano se refere ao indivíduo.
Para Durkheim, símbolos e rituais parecem aludir ao sobrenatural, mas tudo
não passa de aparência superficial. O propósito dos símbolos é simplesmente
fazer as pessoas tomarem consciência de seu papel social, já que o deus totêmico
é simplesmente um símbolo do próprio clã.
Por outro lado, Eliade, quando se refere ao sagrado não é o clã cultuado que
ele tem em mente. Para ele, o cerne da religião é evidentemente o sobrenatu-
ral. Embora ele se valha da linguagem durkheimiana e concorde que são termos
que envolvem mais do que deuses pessoais, a visão de religião de Eliade é mais
próxima da de Tylor e Frazer, que concebem a crença em seres sobrenaturais.
Pode-se medir o precipício que separa as duas modalidades de experi-
ência — sagrada e profana — lendo-se as descrições concernentes ao
espaço sagrado e à construção ritual da morada humana, ou as diversas
experiências religiosas do Tempo, ou as relações do homem religioso
com a Natureza e o mundo dos utensílios, ou à consagração da própria
vida humana, à sacralidade de que podem ser carregadas suas funções
vitais (alimentação, sexualidade, trabalho etc.). Bastará lembrar no que
se tornaram, para o homem moderno e a religioso, a cidade, a casa, a
natureza, os utensílios ou o trabalho, para perceber claramente tudo o
que o distingue de um homem pertencente às sociedades arcaicas ou

A Reação Fenomenológica
100 UNIDADE III

mesmo de um camponês da Europa cristã. Para a consciência moder-


na, um ato fisiológico — a alimentação, a sexualidade etc. — não é, em
suma, mais do que um fenômeno orgânico, qualquer que seja o número
de tabus que ainda o envolva (que impõe, por exemplo, certas regras
para o “comer convenientemente” ou que interdiz um comportamento
sexual que a moral social reprova). Mas para o “primitivo” um tal ato
torna-se um “sacramento”, quer dizer, uma comunhão com o sagrado.
(ELIADE, 1992).

Mais ainda:
[...] O sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no
Mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
sua história. Esses modos de ser no Mundo não interessam unicamente
à história das religiões ou à sociologia, não constituem apenas o objeto
de estudos históricos, sociológicos, etnólogos. Em última instância, os
modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posições que
o homem conquistou no Cosmos e, consequentemente, interessam não
só ao filósofo, mas também a todo investigador desejoso de conhecer
as dimensões possíveis da existência humana (ELIADE, 1992, p. 20).

Apesar da terminologia de Durkheim, é mais plausível pensarmos em outro cien-


tista como mais incisivo nas elaborações teóricas de Eliade: o teólogo alemão e
historiador das religiões Rudolf Otto.

RUDOLF OTTO

Rudolf Otto nasceu na Alemanha, em Peine, próximo a Hanover. Estudou nas


Universidades de Erlangen e Göttingen onde lecionou, além de Breslau e Marburg,
nesta última exerceu o cargo de reitor. Luterano convicto, austero e profundamente
dedicado aos estudos, foi apelidado de “o santo” por seus alunos em Marburg.
Nessa universidade, Otto montou um acervo denominado “Coleção Religiosa”,
que reunia materiais sobre símbolos, rituais e aparatos religiosos diversos, for-
mando um centro de estudos da religião.

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


101

Sua principal obra, O Sagrado (1916), apresenta uma síntese de suas inquieta-
ções filosóficas, fenomenológicas e teóricas que já haviam sido evidenciadas em
outros textos. Em seu trabalho, o sagrado aparece como categoria complexa, que
se constitui de dois elementos importantes: o elemento não racional, ao qual
ele define como numinoso, e o elemento racional, definido como predicador.
Ao lançar sua crítica em relação ao racional presente na ideia de sagrado,
Otto procura esclarecer que enunciados, conceitos e definições, por mais claros
que transpareçam, em nenhum momento explicam por completo o sentimento
religioso. Por esse argumento, ele procura reconsiderar, para a Filosofia e para a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Teologia do século XX, o elemento não racional da religião, o numinoso colo-


cado de lado pela excessiva atenção dada à racionalização na cultura ocidental.
Dessa forma, o resgate do que se pode chamar de essência da religião coincide
com a necessidade de compreendê-la como uma experiência humana originária.
O núcleo central da religião deve, então, ser redescoberto, já que a ênfase inte-
lectualista acabou acobertando seu caráter não racional.
Recuperar a importância e a consideração pelo caráter não racional do
fenômeno religioso não implica colocar a religião alheia ao plano racional, mas
resgatar, na ideia de Deus, o que havia sido colocado de lado pelo racionalismo.
Sua busca, então, é desenvolver as categorias dos elementos racionais e não racio-
nais que formam o sagrado, além de observar e avaliar as relações intrínsecas
que existem entre eles para evidenciar a complexidade do sagrado.
Tal complexidade é proveniente de sua composição, que acontece na intera-
ção entre o que é numinoso e o que é predicador. Nessa perspectiva, o racional
é tomado em seu sentido mais amplo e profundo, porém obscuro, escapando à
explicação racional e não se valendo a um simples e equivocado sentido, como
se simplesmente ainda não fosse abarcado pela razão afinal:
Por irracional não entendemos o que é informe e estúpido, o que
ainda não está sob controle da razão, o que na nossa vida instintiva
ou no mecanismo do mundo, é rebelde à racionalização. Partimos
do sentido habitual da palavra, daquele que tem, por exemplo, quan-
do dizemos a propósito de um acontecimento singular que, pela sua
profundidade, se furta a uma explicação racional [...] chamamos ra-
cional na ideia do divino ao que pode ser claramente captado pelo
nosso entendimento e passar para o domínio dos conceitos que nos
são familiares e susceptíveis de definição (OTTO, 1985, p. 86).

A Reação Fenomenológica
102 UNIDADE III

Segundo Cruz (2009), para Rudolf Otto, Deus e o sagrado não podem caber na
razão pura, e ainda que tais ideias estejam presentes nas religiões, nada mais
são do que uma ideia de sagrado carregada de noções racionais, sendo apenas
predicados que esquematizam ou racionalizam o elemento originalmente não
racional identificado como numinoso.
Os conceitos causam um encobrimento do númen, objeto próprio da ideia
de sagrado, impossível de ser comunicado em sua totalidade por conceitos racio-
nais. Os conceitos podem somente indicar analogamente, pois falam, ainda, do
campo da razão e não pertencem ao domínio da religião. É o caso, por exemplo,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
do sentimento sublime, termo emprestado do domínio da estética, que apenas
indica um pálido reflexo do que realmente seria a experiência religiosa.
Uma compreensão verdadeira só pode acontecer pela experiência do numi-
noso, um estado puramente afetivo da alma, realidade que se encontra numa
profunda obscuridade e escapa a qualquer tentativa de explicação ou mesmo de
conceituação. Contudo, existe no ser humano uma necessidade natural de se dirigir
racionalmente ao mundo à sua volta. Do ponto de vista fenomenológico, acon-
tece um acesso racional à essência não racional própria do domínio do religioso.
Nesse sentido, “O elemento numinoso não racional esquematizado por meio
de noções racionais, dá-nos a categoria complexa do sagrado no sentido pleno
da palavra, na totalidade do seu conteúdo” (OTTO, 1985, p. 69).
Dessa forma, a categoria do numinoso se caracteriza como algo sui generis,
não passível de definição explícita, mas sim de observação e descrição como todo
fenômeno originário. A presença do númen desencadeia um estado de alma, uma
reação consciente que pode ser objeto de análises psicológicas ou fenomenoló-
gicas, as quais procuram descrever o sentimento numinoso.
Quando a alma se abre às impressões do Universo, a elas se abando-
na e nelas mergulha, torna-se susceptível, segundo Schleiermacher,
de experimentar intuições e os sentimentos de algo que é, por assim
dizer, um excesso característico e livre que se acrescenta à realidade
empírica, um excesso não apreendido pelo conhecimento teórico do
mundo e da conexão cósmica, tal como está constituído pela ciência
(OTTO, 1985, p. 188).

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


103

Os elementos que compõem a parte irracional do sagrado são descritos a par-


tir da reação sentimental que vivenciamos diante do objeto numinoso, uma
vez que este pertence ao plano da experiência religiosa vivida. A presença e a
experiência do númen provoca uma reação emotiva denominada “estado de
criatura” ou “sentimento de criatura”, que desencadeia uma espécie de aniqui-
lamento do ser ou percepção pura da existência.
De acordo com Bay (2004), esse sentimento de ínfima criatura frente ao
mistério do divino é experimentado como se fosse a projeção de uma sombra,
oriunda do objeto numinoso na consciência. Nesse momento, fica-se presente,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

diante do mysterium tremendum et fascinans, o conjunto de sentimentos que


correspondem à apreensão do numinoso. O elemento mysterium é a forma; seu
conteúdo qualitativo repulsivo é tremendum, pois provoca o terror; e o fascinans
o que atrai e o que provoca desejo, encanto e fascinação.
O texto de Isaías, capítulo seis, é, para Otto, um exemplo pleno de toda a sua
teoria da experiência religiosa:
Enquanto os sentimentos do não racional e numinoso constituem um fator
vital em todas as formas de religião, eles estão em eminente evidência na re-
ligião semita e mais do que tudo, na religião da Bíblia [...] A instância capi-
tal da interpenetração mútua e íntima do numinoso com o racional e moral
é Isaías. A nota atingida na visão de seu chamado é a tônica de sua profecia
inteira. E nada é, nesse sentido, mais significativo em escala do que o fato
de que é em Isaías que a expressão o Santo de Israel se estabelece primeiro
como a excelência de expressão, sem par, para a divindade, prevalecendo
sobre todos os outros por sua potência misteriosa (OTTO, 1985, p. 74-8).

A evidência do numinoso é clara nas reações de Isaías e na atmosfera de sua expe-


riência. O mistério está na forma em que a experiência se apresenta, na visão, nos
sons, no cenário (um lugar extraterreno) e nos seus movimentos. O temor de Isaías
e sua reflexão “ai de mim...” deixa claro o tremendum, a aversão que ele sente por
aquela experiência e o temor por estar diante de um ser tão grande e poderoso.
Ao mesmo tempo, porém, sua atenção a todos os detalhes, a observação e a
descrição que ele faz, a disposição que apresenta diante de seu chamamento, “eis-me
aqui...” demonstram a fascinação por aquele momento, pelo divino, pelo próprio
mistério que lhe é parcialmente desvendado e pela participação que terá dali pra
frente, a experiência acontece em todo o tempo de sua profecia, em toda a sua vida.

A Reação Fenomenológica
104 UNIDADE III

O divino apresenta-se em nosso sentimento como um mistério ine-


fável, suprarracional. Este ser numinoso qualitativamente diferente
exerce sobre nós uma estranha harmonia de contrastes: uma repul-
sa demoníaca e, ao mesmo tempo, uma tração que fascina e cativa
(BIRCK, 2004, p. 23).

O teólogo de Göttingen fez, a partir da vivência religiosa, a descrição de alguns


elementos numinosos que se manifestam por sentimentos religiosos. Essa descri-
ção se apresenta de forma fenomenológica, porque sempre se estabelece a relação
do homem com o sentido da religião na experiência originária, sem recorrer a
deduções ou induções racionais.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A descrição da experiência numinosa que Rudolf Otto desenvolveu em sua
obra se dá de forma fenomenológica. Em O Sagrado, não temos uma descrição
objetivando dados empíricos, somente uma descrição em termos fenomenológicos,
uma descrição densa, exaustiva que, diante daquilo que permite compreender,
conduza à essência do fenômeno em questão. A proposta de Otto é encontrar e
fundamentar o sagrado na esfera não racional, sem a necessidade de conceituá-
-lo numa categoria do entendimento, isso só é possível fenomenologicamente.
A descrição fenomenológica é o melhor método para explicitar de
forma não conceitual um fenômeno, porque se limita em descrever
o visto, o sentido ou o vivido do sujeito, sem entrar no mérito do
julgamento ou das avaliações. Entretanto, descrever não é suficiente
para chegarmos à essência do fenômeno, apesar de ser o melhor ca-
minho. A descrição não se esgota como método de investigação, mas
precisamos recorrer à interpretação daquilo que é vivenciado. Dessa
maneira, temos a descrição expressa por uma linguagem, esta sendo
interpretada segundo os seu sentido. Assim, completa-se o esquema
da descrição como: coisa percebida/percepção/explicitação do per-
cebido; e o da hermenêutica: símbolo (ou sinal)/significado/signi-
ficante/contexto cultural. Assim, a fenomenologia torna-se herme-
nêutica para ampliar a descrição nos seus aspectos mais originários e
significativos (GOTO, 2004, p. 89).

O ser humano, quando se encontra com o sagrado, vivencia um estado de ser, um sen-
timento de criatura que se assombra em sua insignificância e desaparece diante do que
está acima de toda a criatura. O mistério é o objeto do numinoso e, no sentido geral,
apresenta-se como algo secreto e estranho que causa espanto. Segundo Otto (1985,
p. 38), “o espanto, no sentido próprio da palavra é um estado de alma que, em pri-
meiro lugar, pertence exclusivamente ao domínio do numinoso”. Otto, então, define:

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


105

Mas tal realidade, o misterioso em sentido religioso, o verdadeiro mirum,


é, para empregar o termo que é a sua expressão mais exata, “totalmente
outro”, aquilo que nos é estranho e nos desconcerta, o que está absolu-
tamente fora do domínio das coisas habituais, compreendidas, bem co-
locadas e, por conseguinte “familiares”; é o que se opõe a esta ordem de
coisas e, por isso, nos enche de espanto e paralisa (OTTO, 1985, p. 39).

Portanto, o mistério é tudo aquilo que aparece de estranho, alheio à ordem do pro-
fano, que remete a uma dimensão existencial diferente das vivências normais, terrenas.
É por isso que a experiência numinosa se difere de qualquer outra, por proporcio-
nar o sentimento de criatura diante da estranheza que paralisa o ser (OTTO, 1985).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

O mysterium tremendum é o temor místico ou religioso, que nos faz temer


diante do sobrenatural. Não pode ser confundido com um medo psicológico, pois
esse está sempre relacionado àquilo que se conhece, que se tem certo controle ao
menos cognitivo. Assim, o mysterium tremendum é o medo do desconhecido,
do misterioso, do sobrenatural e do inacessível, que só pode ser vivenciado, não
cabe na razão. Rudolf Otto enfatiza que a religião nasce desse medo, do terror
mesmo. Ele argumenta que:
Deste terror, na sua forma bruta, que apareceu originariamente como
sentimento de alguma coisa de “sinistro” e que surgiu como uma estra-
nha novidade na alma da humanidade primitiva é que procede todo o
desenvolvimento histórico da religião (OTTO, 1985, p. 24).

A presença do mistério é, também, vivenciada pelo elemento fascinans, que tem a


qualidade de atrair, cativar e fascinar, fazendo com que o teor do tremendum entre
em harmonia contrastante. “Por outro lado e ao mesmo tempo, é algo que exerce
atração particular, que cativa, fascina e forma o elemento repulsivo do tremendum
uma harmonia de contraste” (OTTO, 1985, p. 49). Quanto mais terrível o mistério,
mais atraente ele se torna, exatamente por sua qualidade de maravilhoso:
Estes não podem esgotar seu conteúdo, apenas relacionam-se analogica-
mente. Assim, a beatitude religiosa é muito mais que ser consolado, ter
confiança felicidade presente no amor. A felicidade religiosa não se esgota
em elementos naturais elevados à perfeição do sentimento. Esta experiên-
cia inclui elementos profundamente não racionais (OTTO, 1985, p. 49).

Assim, temos dois elementos da experiência numinosa descrita na vivência, ou


seja, como mysterium tremendum et fascinans:

A Reação Fenomenológica
106 UNIDADE III

A categoria do sagrado de Otto, na verdade, não é uma categoria de


compreensão, mas uma intuição categoral. A categoria do sagrado não
tem uma função lógica de compreensão de algo já percepcionado. A
categoria do sagrado é a intuição da essência divina. O numinoso só
é captado, identificado, significado. [...] O numinoso só é captado en-
quanto experiência viva. [...] O sagrado, tal como Otto o descreve não
é um conceito formal, mas descrição fenomenológica do fato primeiro
da religião. É a descrição do numem tal como se manifesta na consci-
ência religiosa (BRUNO apud GOTO, 2004, p. 47).

Quadro 2— A complexidade do conceito do sagrado

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Fonte: Bay (2004, p. 15).

“A fenomenologia não é o nome de uma nova ciência, nem uma palavra de


substituição para a filosofia, mas uma postura espiritual.”
(Alfredo Di Stefano).

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


107

Caro(a) aluno(a), a reação fenomenológica nos estudos sobre a religião produziu


uma vasta coleção de estudos, que levou a disciplina das Ciências da Religião a
outros patamares. Contudo, a própria Fenomenologia entra em crise no mundo
do pós-guerra, e uma série de críticas são feitas a essa proposta com o surgimento
dos novos referenciais metodológicos e da interdisciplinaridade das Ciências da
Religião.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

AS CRÍTICAS À FENOMENOLOGIA

Prezado(a) aluno(a), a crítica ao ramo clássico da Fenomenologia da Religião


tem sido incisiva nas últimas décadas. No âmbito das Ciências da Religião, a
mais polêmica é a crítica ao sagrado. Nos parágrafos seguintes, vamos apresen-
tar como exemplo duas das principais razões do ceticismo diante da abordagem
fenomenológica do conceito de sagrado.
Em 2004, o professor Frank Usarski, em artigo para a Revista de Estudos da
Religião da PUC de São Paulo, depois condensado em livro (USARSKI, 2006),
apresentou uma síntese das críticas ao ramo clássico da Fenomenologia da
Religião e seus conceitos-chaves. Usarski (2006) faz uma apresentação de oito
temas que se opõem ao conceito de sagrado e outros aspectos particulares da
Fenomenologia da Religião, são eles:

As Críticas à Fenomenologia
108 UNIDADE III

1. A crítica à negligência do contexto sócio-histórico em que surgiu o termo,


e a falta de reflexão sobre suas implicações confessionais;
2. A crítica à suposta universalidade do significado do termo;
3. A crítica às implicações ontológicas e “criptoteológicas” da noção do sagrado;

4. As reflexões críticas sobre o objeto privilegiado pela Fenomenologia;


5. A crítica à negligência das referências múltiplas à transcendência no
mundo religioso empírico;
6. A crítica à suposta singularidade da “experiência do sagrado”;

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
7. A crítica às implicações normativas na abordagem da Fenomenologia
da Religião;
8. A crítica à metodologia da Fenomenologia da Religião.
A título de exemplo de como está o debate e qual o nível das críticas impostas à
Fenomenologia da Religião, apresentamos resumidamente as duas primeiras crí-
ticas que o autor sintetizou em seu trabalho.

O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DO TERMO “SAGRADO”

A primeira crítica que se faz contra o conceito do sagrado vem da negligência


do contexto sócio-histórico em que o termo ganhou seu valor e da falta de aten-
ção às implicações que limitam sua validade como conceito no campo de ação
das Ciências da Religião.
O texto de Rudolf Otto, Das Heilige (O Sagrado), foi publicado em 1917,
quando a Europa vivia a Primeira Guerra Mundial. Aquele era um momento his-
tórico marcado pelo desespero diante da disparidade acentuada entre os anseios
humanos e a realidade de suas ações. Por outro lado, a intelectualidade não foi
capaz de apresentar horizontes que pudessem direcionar para a superação dos
pesares produzidos pelos seguidos anos de conflito entre as nações europeias.

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


109

O sonho de um mundo harmonioso, ambicionado pelos pensadores iluministas,


experimentava a frustração de uma Europa destruída pela guerra, consequência
da incapacidade de seus líderes superarem suas diferenças e suas ambições eco-
nômicas e políticas pela lógica da razão e pelas promessas da ciência.
Esse foi um cenário apropriado para a grande aceitação da obra alentadora
de Otto. Ela foi recebida como um consolo providencial pelo leitor comum e
como um manancial de esperança para os teólogos mais conservadores atordo-
ados pelo Liberalismo e pela Teologia Dialética.
Esses dois grupos de leitores de O Sagrado entenderam-se supridos, como
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

se o texto fosse o peso colocado do outro lado da balança, dando um equilíbrio


para a ênfase da racionalidade, que tomava conta do pensamento teológico, e para
o desencantamento do mundo, já que resgata a existência universal do sagrado
ontologicamente, independentemente dos “fatos reais”, contudo imanente no
interior do ser humano.

Rudolf Otto será sempre conhecido pela obra Das Heilige, livro escrito em 1917
e que figura entre os clássicos da Filosofia da Religião. Nasceu em Peine, na Ale-
manha, em 1869, e faleceu em 1937, quando o nazismo já dominava a Alema-
nha. Era de família protestante e se tornou pastor luterano, teólogo e filósofo.
Foi professor da Universidade de Göttingen de 1897 a 1907. De 1901 a 1907
foi colega de Edmund Husserl. Neste período, Husserl lança o novo método de
investigação filosófica, denominado posteriormente Fenomenologia.
Fonte: os autores.

Considerando esse ambiente, os precursores do termo e seu envolvimento com


a fé cristã protestante, a crítica de Frank Usarski se dá no sentido de que o termo
é cunhado e usado de forma não refletida. Isto diante da afinidade do conceito
de sagrado com a religiosidade das famílias e sociedades desses autores precur-
sores e pioneiros da Fenomenologia, que tem seu ápice no texto de Rudolf Otto.

As Críticas à Fenomenologia
110 UNIDADE III

Mais concretamente falando, é o “esquema protestante” no sentido da re-


lação imediata do ser humano diante do “seu” Deus que constitui o pa-
drão básico de todas as interpretações do termo. Portanto, quem o empre-
ga de maneira afirmativa não está apenas promovendo uma abordagem
sentimentalista e romântica, mas também simpatiza como o pensamento
evangélico característico de autores como Schleiermacher, Söderblom,
van der Leeuw, Wach, Otto ou Mensching (USARSKI, 2006, p. 37).

Essa primeira crítica apresentada por Usarski se resume, então, ao emprego indevido
do termo “sagrado”, já que é feito a despeito da consideração do contexto histórico,
social e religioso em que foi conceituado por Rudolf Otto, o qual, segundo a crí-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tica, é tendencioso, pois está muito arraigado a um referencial cristão protestante.
Sendo assim, a afirmação de que o conceito de sagrado pode ser universa-
lizado fica comprometida e passível de reavaliação. Segue-se, então, à segunda
crítica, justamente relacionada à universalização do termo “sagrado”.

A UNIVERSALIZAÇÃO DO TERMO “SAGRADO”

O sagrado “é uma categoria universal no mundo religioso mais essencial do que


a palavra Deus” (USARSKI, 2006, p. 38). Essa afirmação de Söderblom mostra
que ele é consciente de um estudo da religião abrangente, que não se limita às
religiões monoteístas, mas alcança as politeístas e aquelas que não estão preo-
cupadas com um aparato teológico, como o Budismo primitivo. Assim, torna-se
necessário uma terminologia que supere os conceitos das religiões monoteístas
(Judaísmo, Cristianismo e Islamismo).
Para os críticos da Fenomenologia, essa não é a realidade do termo e, por-
tanto, do conceito de sagrado, uma vez que adquiriu seu valor num determinado
contexto sociocultural e a partir de um significado muito amplo nas traduções
dos textos da Bíblia, sendo muito mais análogo do que conceitual de fato. Assim:
[...] uma comparação em várias linguagens religiosas revela que a palavra
“Heilig” não é universalmente traduzível, mas apenas desempenhou um
papel particular conforme o consenso linguístico de uma geração domi-
nante de pesquisadores nas primeiras décadas da história da Ciência da
Religião como disciplina institucionalizada (USARSKI, 2006, p. 39).

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


111

As críticas à Fenomenologia da Religião nos ensinam que sua terminologia, por


se tratar de uma ciência hermenêutica, necessita ser utilizada com cuidado e pre-
cisão, pois só o termo “sagrado” é rodeado de uma polêmica bastante acentuada.
Por outro lado, ele é de grande validade por realmente alcançar a grande maioria
das manifestações religiosas em prol da descrição de uma determinada crença.
No mundo acadêmico, pode ser usado, então, como uma referência a crentes que
acreditam na qualidade sagrada de sua tradição, seja ela escrita ou de outra forma.
Contudo, as categorias desenvolvidas na Fenomenologia da Religião preci-
sam ser consideradas em função de sua potencialidade de imprimir autonomia
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ao objeto religião. Enquanto considerado apenas no âmbito empírico e funcional,


a religião é privada de sua originalidade como fenômeno humano, limitando o
alcance de sua compreensão. Nesse sentido, Terrin (1998) é um defensor de um
estudo do fenômeno religioso caracterizado como tal:
Os fenômenos religiosos, para poder manter a própria e verdadeira
identidade, devem ser estudados em escala religiosa. Não é possível
pensar que os fenômenos religiosos sejam apenas estudados com mé-
todos que não têm relação com o religioso e que sejam interpretados e
“explicados” por aproximações que até podem ser importantes e neces-
sárias nos planos histórico, sociológico, psicológico ou outro qualquer,
mas que são “redutivos” do mundo religioso (TERRIN, 1998, p. 17-18).

Em nosso juízo, essa posição é satisfatória quanto à sua sutileza em conside-


rar as abordagens reducionistas ou funcionalistas como importantes, formando
uma parceria com o estudo da religião enquanto objeto autônomo de investiga-
ção científica e hermenêutica.

UMA QUESTÃO EPISTEMOLÓGICA DIFÍCIL

Para os estudos fenomenológicos da religião, esta parece uma questão bem resol-
vida. A definição terminológica da disciplina foi definida por Frederic Max Müller,
quando propôs “uma ciência da religião”, um método de abordagem único para
um único objeto. Os pesquisadores e autores fenomenológicos se familiarizam
bem com “os singulares”, afinal é um método (a Fenomenologia da Religião) e um
objeto (o Fenômeno Religioso) indistintamente com categorias universalizadas.

As Críticas à Fenomenologia
112 UNIDADE III

A questão mais delicada é: como uma ciência da religião não fenomenológica


que depende do instrumental teórico-metodológico de outras disciplinas con-
segue manter sua autonomia e identidade no mundo acadêmico?
Quem fala de Ciência da Religião tende, de um lado, a pressupor a
existência de um método científico e, de outro, também de um objeto
unitário. Quem ao contrário [...] prefere falar de ciências das religiões,
o faz porque está convencido tanto do pluralismo do metodológico (e
da impossibilidade de reduzi-lo a um mínimo denominador comum)
quanto do pluralismo do objeto (e da não liceidade e até impossibili-
dade no plano da investigação empírica, e de construir sua unidade).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Assim, haverá quem fale de ciência das religiões ou, então, quem pre-
fira falar de ciências da religião (FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 12).

A ideia de uma Ciência da Religião provoca um questionamento sobre a pre-


tensa necessidade de um enfoque singular para o estudo do fenômeno religioso.
Segundo Camurça (2008, p. 20-21) “o nome da disciplina sugeriria que um fenô-
meno empírico — histórico e cultural (também ‘espiritual’) — como o é a religião,
exigiria uma ciência específica [...] para seu tratamento”.
Qual seria essa ciência? Ou melhor, quais seriam os métodos aplicados no
estudo da religião que a distinguiria como uma ciência autônoma do ferramental
teórico-metodológico das disciplinas que lhe dão suporte (História, Sociologia,
Psicologia, entre outras)?
Essa questão não tem uma resposta, há um consenso entre os estudiosos de
que o estudo não fenomenológico do fenômeno religioso é devedor das meto-
dologias dessas disciplinas, contudo alguns argumentos são levantados para
que a autonomia do estudo da religião seja evidenciado, compreendido e aceito.
Primeiramente, há uma defesa do teor interdisciplinar do estudo da religião,
como o item que singulariza, assegura e justifica uma Ciência da Religião autônoma.
Camurça (2008) defende a tese de que Joachim Wach (1898-1955) foi quem, pri-
meiramente, defendeu a interdisciplinaridade aplicada aos estudos da religião pela
pluralidade disciplinar com uma abordagem articulada entre as ciências humanas.

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


113

Uma concepção peculiar do conceito de “Ciência da Religião” em uma


direção plural, no meu juízo, foi realizada por Joachim Wach. Para
ele, a “Ciência da Religião” assentava “na necessidade de várias ciên-
cias abordarem não justapostas, mas organicamente associadas, tanto
a natureza da religião e da experiência religiosa como das expressões
objetivadas”. Com esta perspectiva Wach não desejava criar nenhuma
ciência particular, nem um conjunto de disciplinas que estudassem se-
paradamente a religião, mas uma abordagem articulada entre as ciên-
cias humanas para o fenômeno religioso (CAMURÇA, 2008, p. 21).

Adiante, ele conclui que:


Portanto, Wach, no meu entender, foi um autor que, ao levar em conta
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

a pluralidade disciplinar no tratamento da religião, foi pioneiro na de-


fesa do que veio a se chamar posteriormente de interdisciplinaridade.
Ao considerar dois níveis de abordagem do fenômeno religioso — um
primeiro que trataria da experiência religiosa tout court, circunscrito à
fenomenologia, psicologia, psiquiatria, e um segundo que trataria da
“expressão objetivada dessa experiência religiosa” nos rituais, doutrinas
e organizações religiosas, objeto da sociologia, antropologia, História
— ele defendia que tanto as abordagens fenomenológicas não deve-
riam ser feitas arbitrariamente, mas retiradas das análises objetivas que
a Sociologia da Religião realiza por meio da elaboração de “tipos socio-
lógicos, quanto as análises sociológicas da religião, sob pena de criar
um reducionismo, não poderiam fugir às implicações da experiência
religiosa” parte de sua própria natureza particular, trazidas à tona pelo
enfoque fenomenológico (CAMURÇA, 2008, p. 22).

O pioneirismo de Wach, para os pesquisadores não fenomenólogos, tem seu valor por
conta da sua proposta interdisciplinar. Quanto a incluir a Fenomenologia como uma
abordagem da experiência que deve se entrelaçar às outras disciplinas como condi-
ção sine qua non para um alcance pleno do objeto abordado é totalmente rejeitada.
É esta convergência, afunilamento para uma ciência particular no trata-
mento da religião, que considero problemática! Primeiramente porque
a Teologia parece já cobrir este lado da irredutibilidade da experiência
religiosa. E, em segundo lugar, porque a “ciência da religião”, tal como
preconizada, incorreria no risco de, ao privilegiar a compreensão de
uma estrutura e essência religiosa universal, terminar por amesquinhar
a interdisciplinaridade disciplinar em seu tratamento ao estabelecer uma
hierarquização, como o primado de uma reflexão nobre — a fenomeno-
lógica — que captaria o sentido último deste a priori religioso, relegando
a um papel auxiliar e coadjuvante das Ciências Sociais que se ocupariam
de seus epifenômenos e formas contingentes (CAMURÇA, 2008, p. 23).

As Críticas à Fenomenologia
114 UNIDADE III

“A questão que se coloca na formulação hard de uma ‘ciência da religião’ é:


além da teologia, ainda será necessário uma ciência de novo tipo, para tratá-
-la enquanto fenômeno material e não espiritual?”
(Marcelo Camurça)

Caro(a) aluno(a), as críticas à Fenomenologia da Religião, especialmente às for-


mas de abordar a religião como sendo a essência da revelação, da intuição e da
transcendência, são úteis para que possamos compreender um debate que atu-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
almente se mantém vivo na definição epistemológica das Ciências da Religião.

A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO


115

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caro(a) aluno(a), as Ciências da Religião não são um saber sobre religiões, tampouco
uma ciência integral das religiões. Elas têm percorrido um longo e árduo caminho
de debates e afirmações na academia para ser uma disciplina que utiliza métodos e
referenciais de análise próprios para se debruçar sobre o fenômeno religioso.
Libertando-se das amarras funcionalistas e reducionistas e se tornando crí-
tica à Fenomenologia da Religião, as Ciências da Religião contribuem para um
correto entendimento do fenômeno religioso enquanto expressão social, cultu-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ral, filosófica, política, entre tantos.


Suas pesquisas reúnem cientistas com dois focos. Uns destacam, de maneira
universalista, as constituintes e estruturas comuns da religião como essência do
real mundo religioso em suas manifestações múltiplas. Outros enfatizam a impor-
tância de um levantamento empírico e histórico em favor de uma reconstrução,
mais detalhada, de cada tradição religiosa em sua singularidade. Ambas linhas
de pesquisa são complementares e formam a riqueza das Ciências da Religião.
Contudo, isso não significa que o caminho atual seja simples ou mais seguro
do que outrora. A Teologia ainda assombra as Ciências da Religião, bem como a
interpretação do sagrado como algo dado ou relativo a um ente superior.
Por conta disso, os estudos produzidos pelos cientistas da religião com-
prometidos com a autonomia da disciplina têm avançado sobre as questões
epistemológicas e apresentado métodos e teorias dedutivas e abstratas, que per-
mitem a explicação dos fenômenos religiosos em detrimento das ideologias.
Por fim, não há como fazer ciência da religião sem a interdisciplinaridade, sem
um diálogo aberto com as ciências humanas e sociais, utilizando seus referenciais
e reelaborando seus conceitos. Essa será a nossa abordagem na próxima unidade.

Considerações Finais
116

DEUS E O DIVINO NA HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E NA RELIGIOSIDADE CONTEM-


PORÂNEA
Uma religião se constrói sobre a concepção e sobre a ideia de Deus. Tudo parte e con-
verge em direção àquele ponto que é o catalisador indispensável e fundamental da
experiência religiosa do homem. Deus é certamente a palavra maior e a mais sublime
que encontramos no mundo das religiões, é o centro de qualquer reflexão séria sobre o
significado que deve ser atribuído ao sentido da existência humana, é o núcleo de sig-
nificado em volta do qual gravitam os sentidos que são atribuídos a esta e à outra vida,
ao valor do homem, à sua existência, ao seu destino. É evidente, portanto, que dentro
ou fora de um contexto revelado, o problema de Deus resume todos os problemas do
homem e é, então, visto como o último ponto de referência de experiências humanas
que ultrapassam todos os tempos e vão além de todas as épocas históricas.
As religiões passadas e as presentes não colocam certamente em discussão a existência
de Deus ou do divino, pois o divino é o próprio leit-motiv da religião. Não existe reli-
gião sem uma concepção do divino e o próprio budismo e jainismo, que para muitos
se apresentam como religiões “sem Deus” e receberam a etiqueta de morais filosóficas
“ateias”, não são absolutamente esses “monstros” estranhos de mistura entre moral e
filosofia, mas na realidade são “religiões” no sentido que normalmente atribuímos ao
termo. Negar essa identidade seria como afirmar que o hinduísmo não é uma religião só
porque nele não se encontra uma palavra como “religião” que indique a religião hindu.
É preciso transpor a cerca semântica que às vezes é somente “nominal” para atingir o
cerne de uma religião. Nesse ponto, veremos que a ideia do divino aparece no budismo,
não somente na religiosidade popular, mas também no budismo das origens como um
conceito profundo por meio da concepção do mesmo Anãtman ou da sublime visão do
sunyam (vazio) dos místicos budistas que seguem Nagarjuna ou ainda do conceito de
dharmakaya do budismo mahayana.
O problema, no entanto, que somos chamados a analisar aqui é outro, e explode irrepri-
mível quando experiências diferentes se confrontam e “revelações diversas” vislumbram
maneiras diferentes de pensar no “divino”. Talvez as religiões tenham começado a se di-
vidir, a ficar diferentes, a criar motivos de conflito entre elas quando deram partida à sua
visão particular de Deus e do divino. Deus é o primeiro ponto de referência da experiên-
cia religiosa e, portanto, é natural que toda confrontação religiosa ocorra em relação a
esse nome, ao sentido dessa identidade, a mais sublime e a mais oniabrangente, que se
chama Deus ou o divino. Mas quiçá — como acontece na história das religiões — tenha-
mos de inverter o esquema e observar que toda experiência de Deus e toda linguagem
sobre Deus é apenas um feixe de luz que vem do alto e, portanto, não é a experiência
humana a captar o divino, e sim o divino que envolve o homem com sua presença e
manifesta-se como uma experiência na vida religiosa do homem. Experiência do divino
como primeira graça, como luz do alto, como revelação antes da revelação.
117

Na grande e longínqua história das religiões, é exatamente a experiência totalizadora


que parece se referir à palavra sânscrita div, que não indica uma pessoa, mas a luz, o
brilho do dia, a experiência primordial da vida que se abre à luz; as palavras dies, dyaus,
deva, deus, Zeus são todas uma derivação do originário div.
Se tal é o esquema inicial, o clichê originário da ideia de Deus, o seu desenvolvimento
ligado às religiões históricas apresenta-se muito variado, dificilmente poderá ser levado
a uma unidade e mais dificilmente ainda poderá ser colhido numa substancial evolução
homogênea daquela primeira experiência prototípica. A partir desse núcleo de diferen-
ciação, tanto se multiplica o conceito de Deus e do divino como se divide e se fragmenta
o mundo das religiões.

Fonte: Berger (1985, p. 377-379).


118

1. Com base no que vimos nos Tópicos I e II, descreva os conceitos de totemismo
para Durkheim e Freud, relacionando-os e discutindo suas particularidades.
2. No Tópico 3, vimos que Marx discute o conceito de alienação. Como a religião
funciona quando Marx a classifica como parte da alienação?
3. Discorra sobre o conceito de profano, segundo Mircea Eliade, como foi apresen-
tado no Tópico 4.
4. No Tópico 4, relacionamos como o teólogo Rudolf Otto trabalhou o conceito de
sagrado. Discorre sobre o conceito conforme trabalhado por Otto.
5. Explique e discuta uma das críticas feitas à Fenomenologia da Religião, dentre as
enumeradas no Tópico 5 desta unidade.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Fenomenologia da Religião: compreendendo as ideias


religiosas a partir de suas manifestações
Cácio Silva
Editora: Vida Nova
Sinopse: a emblemática discussão sobre mitos e evangelização, o
complexo conceito de magia e suas implicações para a comunicação
do Evangelho, as forças impessoais, o aeticismo e a terminologia para Deus são alguns conceitos
trabalhados pelo autor nesta edição lançada em 2014. O livro também trata da questão da
transmissão intercultural da mensagem, analisando quais são as possíveis implicações de ideias,
como forças pessoais e forças impessoais, espiritualismo e magia, eticismo e aeticismo, afetividade e
utilitarismo, messianismo e fatalismo, hierarquia e igualitarismo. O autor, além de apresentar algumas
possíveis implicações, também sugere soluções.

Irmão Urso - 2003


Sinopse: em busca de vingança por seu irmão ter sido morto por um
urso, o índio Kenai acaba sendo amaldiçoado pelos espíritos da floresta
e é transformado em um urso. Obrigado a viver sob a nova pele, ele
começa a ver a realidade sob a ótica dos animais. Logo, faz amizade
com outro urso, Koda, mas se vê em apuros quando seu próprio irmão
começa a caçá-lo.
Comentário: animação dos estúdios Disney que lida com o tema do totemismo freudiano de forma
humorada, porém com analogias profundas com a obra de Freud, Totem e Tabu (1913).

Considerações Teóricas em Torno do Reducionismo Funcionalista em Ciências da


Religião
Para um estudo mais aprimorado do funcionalismo em religião, há o artigo do Prof. Paulo Gonçalves
Silva Filho, “Considerações Teóricas em Torno do Reducionismo Funcionalista em Ciências da
Religião”, que apresenta aspectos relevantes, em perspectiva histórica, da teoria da Religião.
Para ler o texto completo, acesse o link a seguir: <http://www.pucsp.br/rever/rv4_2004/p_silva.pdf>.

Material Complementar
120
REFERÊNCIAS

BAY, D. M. D. Fascínio e terror: O sagrado. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar


em Ciências Humanas, Florianópolis, n. 61, p. 1-18, dez. 2004.
BERGER, P. O dossel sagrado — Elementos para uma teoria sociológica da religião.
São Paulo: Paulus, 1985.
BIRCK, B. O. O Sagrado em Rudolf Otto. In: GOTO, T. A. O fenômeno religioso. A
fenomenologia em Paul Tillich. São Paulo: Paulus, 2004.
CAMURÇA, M. Ciências Sociais e Ciências da Religião: polêmicas e interlocuções.
São Paulo: Paulinas, 2008.
CROATTO, J. S. As linguagens da experiência religiosa. São Paulo: Paulinas, 2001.
CRUZ, J. R. B. Rudolf Otto e Edmund Husserl: considerações acerca da origem do
método da Fenomenologia da Religião. Horizonte, Belo Horizonte: v. 7, n. 15, p.
122-41, dez. 2009.
DI NOLA, A. Sagrado/Profano. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional-
-Casa da Moeda, 1987.
DURKHEIM, É. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Londres: Jorge Allen e
Unwim Ltd, 1915.
ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fon-
tes, 1992.
______. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FILHO, P. G. S. Considerações teóricas em torno do reducionismo funcionalista em
Ciências da Religião. Revista de Estudos da Religião, São Paulo, n. 4, p. 43-72, 2004.
FILORAMO, G.; PRANDI, C. As ciências das religiões. São Paulo: Paulus, 1999.
FRAZER, J. G. El totemismo. Madrid: Eyras, 1987.
FREUD, S. Obras completas. Totem e Tabu, contribuição à história do movimento psi-
canalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, v. 11.
GOTO, T. A. O Fenômeno religioso. A fenomenologia em Paul Tillich. São Paulo:
Paulus, 2004.
KOLTAI, C. Totem e tabu: Um mito freudiano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010.
LIBÓRIO, L. A. A existência humana e a dimensão psico-religiosa. Recife: Mimeo,
2005.
LOPES, R. Um olhar crítico: o pensamento de Marx acerca da religião. Diversidade
Religiosa, Paraíba, v. 3, n. 1, 2003.
MULLER, W. Deixar-se tocar pelo sagrado. Petrópolis: Vozes, 2004.
121
REFERÊNCIAS

NETO, I. V. O conceito de sagrado: interpretações sobre a escolástica neoplatônica.


In: DA MATA, S. R.; MOLLO, H. M.; VARELLA, F. F. (Orgs.). A dinâmica do historicismo:
tradições historiográficas modernas. Caderno de resumos & Anais do 2º Seminá-
rio Nacional de História da Historiografia. Ouro Preto: EdUFOP, 2008.
ODELIO, B. O Sagrado em Rudolf Otto. In: GOTO, T. A. O fenômeno religioso. A Fe-
nomenologia em Paul Tillich. São Paulo: Paulus, 2004.
OTTO, R. O sagrado: um estudo do elemento não racional na ideia do divino e a sua
relação com o racional. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985.
PALMER, M. Freud e Jung: sobre a religião. São Paulo: Loyola, 2001.
PALS, D. L. Eight theories of religion. New York: Oxford University Press, 2006.
TERRIN, A. N. O sagrado off limits. A experiência religiosa e suas expressões. São
Paulo: Edições Loyola, 1998.
USARSKI, F. Constituintes da Ciência da Religião. Cinco ensaios em prol de uma
disciplina autônoma. São Paulo: Pauilinas, 2006.
VALASCO, J. M. Introducción a la fenomenología de la religión. Madrid: Cristian-
dad, 1976.
122
GABARITO

1. Nesta questão, o(a) aluno(a) deverá ter a capacidade de expor os dois conceitos,
o de Durkheim e o de Freud, explicando como cada um desenvolve a sua teoria
a respeito do totemismo.
2. Neste item, o(a) aluno(a) deverá apresentar o conceito de alienação elaborado
por Karl Marx e analisá-lo a partir do que o autor alemão destaca sobre a religião,
no sentido de ser o “ópio do povo”, conforme visto no Tópico 3 da unidade.
3. O(a) aluno(a) deverá discorrer sobre o conceito de profano segundo as elabora-
ções de Mircea Eliade, conforme o Tópico 4.
4. Nesta questão, o(a) aluno(a) deverá discorrer sobre o conceito de sagrado tal
como exposto por Rudolf Otto no Tópico 4.
5. O(a) aluno(a) deverá escolher uma das críticas apresentadas, explicar o porquê
dela ser feita à Fenomenologia da religião e discutir seus argumentos favoráveis
ou contrários, conforme visto no Tópico 5 da unidade.
Professor Dr. Sérgio Gini
Professor Me. José Francisco de Souza

IV
UNIDADE
AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

Objetivos de Aprendizagem
■■ Conceituar a diferença entre o estudo científico da religião e o das
religiões.
■■ Compreender a contribuição das ciências humanas e sociais para o
estudo da religião.
■■ Conhecer alguns dos estudos das religiões.
■■ Distinguir os métodos de interpretação social da religião.
■■ Avaliar o lugar da Teologia nos estudos das religiões.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Estudo da religião ou das religiões?
■■ A contribuição de Max Weber para o estudo da religião
■■ História da Religião
■■ Sociologia da Religião
■■ Estudos das Religiões e Teologia
125

INTRODUÇÃO

Caro(a) aluno(a), quais são as ciências que investigam o fenômeno religioso que
compõem os estudos das religiões? Quais os métodos de cada uma delas e como
convergem entre si para dar a tão buscada autonomia para essa área de pesquisa
acadêmica? Nesta unidade, vamos procurar dar algumas respostas a essas per-
guntas tão pertinentes.
Três áreas do conhecimento científico se distinguem como as majoritá-
rias na aplicação em estudos normativos de religião: a Teologia, a Filosofia
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

e a Fenomenologia. Contudo, outras ciências empíricas, como a História e a


Sociologia, contribuem de forma essencial para esses estudos. De acordo com
Zilles (2004), essas duas últimas se preocupam, de forma metódica, com o que
chamamos de consciência religiosa concreta e como ela se apresenta de forma
variada objetivamente na história.
Outras disciplinas também compõem os estudos das religiões, pois, como
um campo aberto e dinâmico, sempre há possibilidade de expansão. Podemos
pensar na Psicologia, na Antropologia, e hoje já se fala de Estudos Econômicos
da Religião, Geografia da Religião, Estética da Religião, Religião e Literatura etc.
Nos tópicos desta unidade, veremos o porquê de adotarmos, neste livro, o
termo “Ciências da Religião” e não outras versões que limitam a interdiscipli-
naridade ou que expandem os conceitos de religiosidade. A opção se adequa ao
que a academia brasileira tem preferido, mesmo que na Europa e nos Estados
Unidos outras nomenclaturas apareçam.
Antes de trabalharmos a interação do fenômeno religioso com a História,
a Sociologia e a própria Teologia, separamos um tópico para apresentarmos,
mesmo que brevemente, a contribuição de Max Weber para o estudo da reli-
gião, em face de seus trabalhos sobre o desencantamento do mundo e a questão
da ética protestante no capitalismo.
Esperamos que esses assuntos desafiem você a continuar seus estudos sobre
o fenômeno religioso. Bom estudo!

Introdução
126 UNIDADE IV

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ESTUDO DA RELIGIÃO OU DAS RELIGIÕES?

Caro(a) aluno(a), entre aqueles que já não consideram a possibilidade de vali-


dade para qualquer abordagem fenomenológica, há também a preocupação de
afirmar a Ciência da Religião como uma disciplina autônoma, inclusive para
vê-la emancipada da Teologia.
Essa discussão tem evidências logo na denominação da disciplina, como
vimos em nossa primeira unidade e aprofundaremos neste tópico: Estudo da
Religião (singular/singular); Estudos da Religião (plural/singular); Estudos das
Religiões (plural/plural); Estudo das Religiões (singular/plural). Estes são os títu-
los discutidos na academia para uma definição homogênea que, no Brasil, ainda
está um pouco longe de acontecer.
Nesse sentido, o singular “Estudo da Religião” tem uma intenção totalizante e
pluridisciplinar, a partir das diversas disciplinas que investigam o fenômeno religioso,
conduzindo-as a se organizarem em um campo disciplinar. Dessa forma, possui uma
estrutura aberta e dinâmica, que dá a devida autonomia e singularidade ao Estudo da
Religião. Portanto, interdisciplinaridade é o elemento-chave nessa distinção.

AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
127

Há, ainda, outra tentativa de defender os singulares como denominação dos estu-
dos do fenômeno religioso, que é muito enfatizada por autores alemães, como
Frank Usarski e Hans-Jürgen Greschat:
Cientistas da religião na Alemanha preferem a designação ciência da reli-
gião, no singular [...] para salientar a integridade substancial de sua disci-
plina e o status particular no ambiente acadêmico por concentrar-se em
um conteúdo determinado de forma mais profunda e abrangente do que
qualquer outra matéria. Desta maneira, a ciência da religião, acostumada
a combinar várias técnicas de outras disciplinas para investigar o mundo
religioso em suas múltiplas facetas históricas e empíricas, ganha iden-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tidade apesar de não ter desenvolvido técnicas autênticas de pesquisa,


um aspecto frequentemente questionado por autores que negam o status
particular da ciência da religião e argumentam em favor da nomenclatu-
ra ciências da religião (USARSKI, 2006, p. 73).

Frank Usarski faz uma comparação do Estudo da Religião com a Pedagogia, dizendo
que embora esta disciplina não tenha um método próprio e se valha da intersecção
de várias outras disciplinas (por exemplo, a Sociologia da Educação, a Psicologia
da Educação e a Filosofia da Educação), ela não é denominada “pedagogias”.
Em outras palavras: não se questiona a mudança do nome pedagogia
porque nela reside uma concentração do tema de educação dentro de
um quadro acadêmico que ao mesmo tempo serve como um reservató-
rio intelectual disposto a integrar qualquer resultado de pesquisa direta
ou indiretamente vinculado à educação, independente da questão de
um saber relevante ter sido produzido originalmente dentro da própria
disciplina ou em qualquer outra (USARSKI, 2006, p. 73).

Aqui, vemos que a totalidade do objeto também determina a singularidade dos


termos “ciência” e “religião”. Segundo Hans-Jürgen Greschat, a totalidade da
religião é o que distingue os cientistas da religião de outros pesquisadores que
tratam dela eventualmente. O que define um cientista da religião é associar suas
investigações especiais à religião como totalidade.
Ele ainda afirma que os cientistas da religião devem olhar para seu objeto
e circunscrevê-lo em três frases; “vêem o objeto ‘religião’ como uma totalidade;
reconhecem que essa totalidade apresenta-se de maneira quádrupla; obser-
vam que essa totalidade está viva e que, portanto, não para de se transformar”
(GRESCHAT, 2005, p. 24).

Estudo da Religião ou das Religiões?


128 UNIDADE IV

Diferentemente das definições de religião, o objeto “religião” não existe


apenas na cabeça dos pesquisadores. Ele está no mundo exterior, onde os
pesquisadores o enxergam. O objeto “religião” é algo concreto, ou seja,
é sempre uma determinada religião. [...] Cada uma das milhares de re-
ligiões que podem ser escolhidas e estudadas é representada como uma
totalidade passível de investigação de acordo com quatro perspectivas:
como comunidades, como sistemas de atos, como conjunto de doutrinas
ou como sedimentação de experiências (GRESCHAT, 2005, p. 22, 25).

Em contraposição ao singular “Estudo da Religião” estão os italianos Giovanni


Filoramo e Carlo Prandi que, em seu manual As ciências das religiões, deixam clara
a posição que adotam, pois estão convencidos tanto do pluralismo metodológico

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
(e da impossibilidade de reduzi-lo a um mínimo denominador comum) quanto
do pluralismo do objeto e da impossibilidade de construir sua unidade, pois, para
esses autores, só podem ser objeto de investigação empírica as religiões históricas
ou, se preferir, os aspectos humanos das religiões, em seu concreto devir histórico.
A conclusão que chegam, portanto, é de que os Estudos das Religiões não
constituem uma disciplina distinta, à parte, como gostaria a tradição interpre-
tativa ou hermenêutica, com um método único e um objeto definido também
como único. Para eles, os Estudos das Religiões compõem um campo discipli-
nar e, como tal, são uma estrutura aberta e dinâmica.

Em 2004, o Ministério da Educação (MEC) reconheceu o primeiro curso de


Ciências da Religião oferecido no Brasil. Embora pareçam similares, não há
concorrência entre os cursos de Teologia e Ciências da Religião atualmente.
Fonte: Filho (2007).

Como deixamos claro na Unidade I, adotamos neste livro a terminologia “Ciências


da Religião” (plural/singular), que é utilizada por algumas das principais uni-
versidades que oferecem o curso de pós-graduação em Ciências da Religião no
Brasil. Embora essas instituições tenham enfoques e propostas diferentes, valem-
-se da interdisciplinaridade para autenticarem e justificarem a presença de um

AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
129

programa autônomo entre os cursos de pós-graduação oferecidos. A seguir, apre-


sentamos três exemplos.
O programa de pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade
Metodista de São Paulo (UMESP) se apresenta com a seguinte ementa:
O Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião estuda as reli-
giões em suas formas de expressão e articulação próprias e nas relações
com seus contextos histórico, social e cultural. Desenvolve a interdis-
ciplinaridade no campo extenso das ciências da religião, recorrendo
ao instrumental teórico fornecido sobretudo pelas ciências humanas:
teorias literárias e da linguagem, da cultura, de gênero, historiográficas,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

das ciências sociais, da teologia, da exegese, da filosofia, da psicologia e


da pedagogia (METODISTA, 2016, on-line)1.

A Universidade Presbiteriana Mackenzie apresenta a seguinte justificativa para


a proposta de seu curso:
A inclusão das Ciências da Religião no Programa de Pós-Graduação da
Universidade Presbiteriana Mackenzie busca compreender a contribui-
ção da memória e da tradição do Cristianismo, bem como da influência
do pensamento religioso cristão do Protestantismo Reformado, tanto
nas instituições sociais, como no cotidiano das pessoas. Neste sentido,
a abordagem das Ciências da Religião estará sempre muito próxima
da epistemologia, dialogando com a Teologia Reformada, a História
Social das Religiões, a Teoria Sociológica e a Sociologia do Conheci-
mento, a Antropologia da Religião e a Psicologia Social das Religiões.
O Programa busca ainda maior integração entre a Pós-Graduação e
a Graduação em Teologia, nos níveis de ensino, pesquisa e extensão
(MACKENZIE, 2016, on-line)2.

A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) tem no histórico de seu


programa de pós-graduação em Ciências da Religião o seguinte texto:
O Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP teve
início em 1978, com o Mestrado, e passando a oferecer também o Douto-
rado em 2002, ambos stricto sensu e nota cinco pela avaliação da Capes.
Nos últimos anos, o Programa avançou na concretização de seus princi-
pais objetivos, como o de formar e capacitar pesquisadores e docentes de
nível universitário superior, através da titulação de mestres e doutores em
sua área de conhecimento, e produzir conhecimento científico de quali-
dade. O Programa tem se destacado no desenvolvimento de um novo
paradigma multidisciplinar que supere a precariedade e fragmentação da
área de estudos da religião, na qual a fundamentação se mostra ainda in-

Estudo da Religião ou das Religiões?


130 UNIDADE IV

suficiente. Este fato que pode ser comprovado na realização de eventos e


na produção bibliográfica, não apenas na de autoria de nossos docentes,
como também na tradução e publicação de obras até então inacessíveis a
muitos de nossos estudantes (PUC-SP, 2016, on-line)3.

Por essa coerência entre as universidades e por tratarmos aqui de um curso de


“Estudos em Ciências da Religião”, faz sentido adotarmos essa nomenclatura,
apesar de toda a divergência entre os acadêmicos que discutem as questões de
autonomia e “afirmação de uma área acadêmica”. Diante das propostas dos cursos
mencionados anteriormente, percebemos que a UMESP deixa claro o exercício
pleno da autonomia teórico-metodológica das ciências humanas em torno de

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
uma área interdisciplinar com interesse comum na religião.
A Universidade Mackenzie, com ênfase na religião cristã de cunho pro-
testante reformada, preza pelo diálogo com as várias disciplinas afins. A PUC,
embora apresente uma pretensão mais unificadora, ainda assim adota o termo
“Ciências” no plural, caracterizando os métodos usados das ciências humanas e
sociais aplicados nos estudos de religião.

Quais influências dos referenciais cristãos presentes na cultura dos alunos e


dos professores podem interferir no estudo do fenômeno religioso?

As propostas das universidades citadas têm em comum a interdisciplinaridade,


a multidisciplinaridade e o diálogo entre as áreas de estudo que os programas
oferecem. Além disso, investigam o fenômeno religioso caracterizado por sua
universalidade, sem desconsiderar o singular de cada religião, mantendo um cui-
dado acentuado no uso de categorias fenomenológicas para a área de Teologia
e um debate intenso quanto a sua validade científica. Portanto, consideramos
mais do que adequado o uso da expressão “Ciências da Religião”.

AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
131
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A CONTRIBUIÇÃO DE MAX WEBER PARA O ESTUDO


DA RELIGIÃO

Caro(a) aluno(a), nas unidades anteriores, vimos as contribuições de Karl Marx


e de Émile Durkheim para a questão do fenômeno religioso. Contudo, quando
falamos sobre a importância das ciências humanas e sociais no desenvolvimento
das Ciências da Religião, não podemos deixar de fora o sociólogo alemão Max
Weber (1864-1920). Weber compreende a religião como a chave para o enten-
dimento da cultura, o que a faz uma janela de entrada para a compreensão da
formação cultural do Ocidente e Oriente.
Um dos pontos altos do pensamento weberiano é a relação de sentido da
ação humana. Para Weber, é possível conhecer um fenômeno social a partir da
extração do conteúdo simbólico da ação ou das ações. Com isso, o autor criou a
Sociologia Compreensiva que, mais do que simplesmente se reduzir a um esquema
de explicação de causa e efeito, persegue a compreensão do sentido dos fatos.
Assim, o sentido de um objeto não está no objeto em si, “está nos homens que o
usam e o trocam, quando o usam e o trocam, fazem-no produzindo um sentido
(ou vários)” (COSTA, 2009, p. 58). Sabendo que a religião é um dos principais
modos pelos quais o ser humano atribui sentido ao mundo,

A Contribuição de Max Weber Para o Estudo da Religião


132 UNIDADE IV

fazer sociologia de uma sociedade implica, mais tarde ou mais cedo, fa-
zer sociologia da religião. Reciprocamente, fazer sociologia da religião
implica fazer outras sociologias, porque as religiões são uma parte das
sociedades globais onde surgem (COSTA, 2009, p. 59).

Costa (2009, p. 12) faz constar que, interessantemente, “Max Weber, na sua extensa
sociologia da religião, não faz uma única definição de religião”, no entanto, ele
sempre oferece uma contextualização sócio-histórica, de modo que, mesmo sem
definição formal, sabemos sempre do que fala.
Neste sentido, o trabalho intelectual de Weber é muito diferente do de Durkheim,
que empreendeu um “processo minucioso de apuro conceitual e argumentação

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
encadeada, em busca da essência do fenômeno religioso em toda a sua pureza”
(COSTA, 2009, p. 41). Os dois se diferenciam, também, porque Weber não pro-
curou uma “religião elementar”, antes se dedicou às grandes religiões mundiais,
sendo conhecido principalmente pelos seus estudos sobre o Protestantismo.
Muito importante para as Ciências da Religião é o conceito que Weber cria
sobre o “desencantamento do mundo”, que está constantemente presente em suas
obras. Para o autor alemão, esse conceito é muito mais caro que o de “secularização”.
Pierucci (1998, p. 47) destaca que, nas obras de Weber, esses conceitos rece-
bem tratamento diferente, uma vez que, para ele, “o desencantamento do mundo
ocorre justamente em sociedades profundamente religiosas, é um processo essen-
cialmente religioso, porquanto são as religiões éticas que operam a eliminação
da magia como meio de salvação”. Já secularização seria o abandono ou a perda
da religião ou, ainda, a emancipação em relação a ela.

A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO

A obra mais debatida de Weber é A ética protestante e o espírito do capitalismo. A


primeira parte do livro saiu em 1904, e a segunda em 1905, após conferências que
pronunciou nos Estados Unidos, em que recolheu material para continuação. Em
1920, pouco tempo antes de sua morte, saiu uma segunda versão, revista e ampliada.
Em sua obra, Weber identifica uma afinidade eletiva entre a economia capita-
lista e a doutrina do Protestantismo, que movido por sua racionalidade específica
lançou bases para a noção de trabalho como vocação e ascese intramundana gerada

AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
133

no calvinismo. Trata-se, nesse caso “do exemplo das relações entre o moderno ethos
econômico e a ética racional do protestantismo ascético” (WEBER, 1989, p. 12).

No ano de 1999, o Jornal Folha de São Paulo divulgou pesquisa que havia
encomendado, junto a vários intelectuais brasileiros, a respeito de quais se-
riam os livros mais impactantes do século XX. A Ética protestante e o espírito
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

do capitalismo, do sociólogo Max Weber, despontou na lista das obras de


não ficção como o livro do século.
Fonte: os autores.

Vale salientar que o protestantismo de que Weber fala é um tipo ideal. Ele afirma
que com os tipos ideais não se busca “forçar esquematicamente a vida histórica
infinita e multifacetada, mas simplesmente criar conceitos úteis para finalida-
des especiais e para orientação” (WEBER, 1974, p. 345).
Enquanto para Marx o mundo religioso é apenas o reflexo do mundo real,
para Weber, tratar das forças que motivaram o capitalismo moderno a se expan-
dir não é sondar as origens das somas do capital, mas é, principalmente, uma
questão acerca do desenvolvimento do espírito do capitalismo. A ética protes-
tante, com o seu princípio de ascese intramundana, na visão de Weber, foi um
dos principais fatores para que esse espírito se desenvolvesse.
Weber não só nos livrou de pensar o capitalismo como forjado no determi-
nismo da ânsia do lucro, mas também nos parece não satisfatório querer vê-lo
como resultado de uma ética do trabalho e ascese puritana. Roberto Motta (1995)
destaca que uma visão desse tipo seria como querer tirar o capitalismo da escola
primária e matriculá-lo numa Escola Dominical. Para Weber, é verdade, foi indi-
retamente que o capitalismo foi consequência dessa “ética”. Mesmo fazendo essa
ressalva, contudo, não é fácil entender que o capitalismo tenha se originado de
uma ética que considera a acumulação como algo de torpe.

A Contribuição de Max Weber Para o Estudo da Religião


134 UNIDADE IV

Outro conceito importante para as Ciências da Religião é o de dominação. Weber con-


sidera o conceito de poder impreciso, preferindo, portanto, trabalhar com o conceito
de dominação. Para ele, “uma vontade manifesta do dominador influi sobre as ações
dos dominados de tal modo que estas ações se realizam como se estes tivessem feito
do próprio conteúdo do mandato a máxima de suas ações” (WEBER, 1999, p. 191).
Assim, Weber conclui que a motivação para obediência pode decorrer de
três fontes diferentes de liderança: tradição, legalidade ou carisma (tipos ide-
ais de dominação). Durkheim é criticado por negligenciar em sua Sociologia os
agentes religiosos. Dessa crítica Weber está isento, pois identificou o profeta, o

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
sacerdote e o feiticeiro como os tipos da ação religiosa.
Weber aponta que os sacerdotes são “aqueles funcionários profissionais que,
por meio de veneração, influenciam os deuses, em oposição aos magos, que for-
çam os ‘demônios’ por meios mágicos” (WEBER, 1999, p. 294).
Já o profeta é entendido como “o portador de um carisma puramente pessoal, o
qual em virtude de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandamento
divino” (WEBER, 1999, p. 303). A vocação pessoal distingue o profeta do sacerdote,
este representa a tradição e aquele a ruptura, enquanto que o profeta “se distingue do
mago pelo fato de que anuncia revelações substanciais e que a substância da sua mis-
são não consiste em magia mas em doutrina ou mandamento” (WEBER, 1999, p. 303).

Weber não pretende afirmar que o desenvolvimento das doutrinas religio-


sas tenha produzido o capitalismo. Ele não é o “Marx da burguesia”.
(Stefano Martelli)

Portanto, para Weber a religião é mais que um sistema de crenças e “dependendo


do momento histórico, do contexto social e dos valores culturais vigentes, haverá
configurações diversas do religioso” (ROSADO-NUNES, 2007, p. 107). A visão
weberiana presente nas Ciências Sociais será extremamente importante para as
Ciências da Religião.

AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
135
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

HISTÓRIA DA RELIGIÃO

A História da Religião como disciplina acadêmica se divide em duas vertentes:


a Ciência da Religião Histórica ou História da Religião e a Ciência da Religião
Comparativa. Essa divisão foi proposta por Joachim Wach, em 1924. Não se
trata de duas disciplinas, tratam-se de duas subdivisões da Ciência da Religião.
A História da Religião tem como fundamento descrever os desenvolvimentos his-
tóricos das diversas religiões. Todos os componentes de determinado credo religioso
podem ser objeto da sua história, como doutrinas e práticas de fé, costumes e forma
de organização, formação de tradições dentro da religião, bem como sua relação com
outras tradições, por exemplo as raízes judaicas do Cristianismo ou do Islamismo.
A história da religião, para desenvolver seu trabalho, vale-se dos métodos
histórico-críticos e procura apoio em outras ciências afins, como a Sociologia,
Psicologia, Etnologia, Antropologia, Arqueologia etc. A investigação histórica do
fenômeno religioso pode se dar de forma geral, ou seja, o pesquisador tem a liber-
dade de contemplar e descrever a totalidade das religiões em sua dimensão histórica.

História da Religião
136 UNIDADE IV

Também pode se especializar em uma determinada religião e expor toda sua


trajetória no tempo e no espaço. Pode, ainda, valer-se de um elemento singular
dentro de uma determinada religião e tratar de seu desenvolvimento histórico.
A necessidade do estudo da história da religião para os estudos desse campo é
de vital importância, pois a história é a base e o fundamento para qualquer outra
ciência investigativa que se ocupe do fenômeno religioso.
Como afirma Terrin:
Não é por acaso que colocamos como primeira disciplina, no âmbito do es-
tudo das religiões, a história, com sua profundidade e seriedade de pesquisa.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A história das religiões não é apenas uma entre as disciplinas que estudam
as religiões, mas a disciplina-mãe de qualquer estudo das religiões. De fato,
como poderíamos falar das religiões sem conhecer suas origens, seus funda-
dores, os textos sagrados que foram se formando, os períodos históricos de
maior desenvolvimento das doutrinas etc.? (TERRIN, 2003, p. 19).

Além da descrição e informação de dados, a história oferece, também, seu método


específico de pesquisa, cujos pontos de maior destaque são o estudo minucioso
das fontes das línguas originais respectivas em textos sagrados e documentos
mais significativos; a cronologia do desenvolvimento histórico e as passagens
internas que ocorreram no tempo; a procura por manter certa “neutralidade”
diante do objeto de seu estudo, isto é, a própria religião para não comprometer
o caráter “científico” da pesquisa; e, por fim, a história das religiões como uma
disciplina altamente especializada em seu campo de atuação, por isso limitada
a não alcançar um conhecimento específico de todas as religiões, dessa forma,
cada historiador é um especialista em uma determinada religião (TERRIN, 2003).

Em 1925, com a Revista Studi e Materiali di Storia delle Religioni (SMSR) nasce a
Escola Italiana da História das Religiões, sob a coordenação de Raffaelle Pettaz-
zoni. Os estudos italianos em história das religiões são os pioneiros em opor às
indagações fenomenológicas a necessidade de interpretação histórica.
Fonte: Agnolin (2008).

AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
137

O segundo método para avaliar a religião do ponto de vista histórico seria o


comparativo que, de acordo com Albuquerque (2007, p. 26), “consiste em apro-
ximar, a fim de ilustrar mutuamente, usos religiosos, narrativas, ritos de todos os
povos, de todas as civilizações”. Dá atenção maior em comparar as religiões em
si para melhor entender sua organização e seu valor. Max Müller era um com-
paratista, usava essa estratégia metodológica entendendo que ela lhe daria uma
compreensão mais aprofundada do fenômeno religioso.
O método comparativo é descritivo, mas, como toda comparação, tem seu
teor interpretativo, pois na medida em que confronta os sistemas religiosos tende
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

a ir além da descrição e exprimir juízos de valor e significados.


Uma característica importante a ser destacada no método comparativo é
sua tendência a não limitar sua atenção exclusivamente para o tempo histórico
em que se deu o fenômeno religioso, para que haja maior liberdade e criativi-
dade para as comparações entre fenômenos distantes no tempo e no espaço, mas
que podem apresentar afinidades e similaridades pelas analogias a serem feitas.
Por exemplo, colocam-se em comparação os grandes mitos das origens das
religiões, as diferentes formas do sacrifício presentes nelas, as orações mais recor-
rentes ou a maneira pela qual são consideradas as tarefas próprias dos ministros
de culto. Tudo isso independentemente da diversidade de tempo em que se colo-
cam os fenômenos religiosos (TERRIN, 2003, p. 21).
O método histórico comparativo tem sido de importância especial para o desen-
volvimento científico-histórico da religião. Um dos resultados marcantes é que ele
acentua a possibilidade de demonstrar o caráter genérico dos fenômenos religiosos.

Seria a forte marca heterodoxa da religiosidade que impede que se encon-


trem nela elementos que permitam entender o diálogo existente entre as
formas religiosas e as racionalistas de se conceber a história?
(Ivan Ap. Manoel)

História da Religião
138 UNIDADE IV

O que durante muitos séculos foi algo singular para o Ocidente cristão, em tem-
pos mais recentes foi encontrado em outras religiões, sob formas semelhantes,
por meio de fatores como o conceito de messianismo e de homem-deus, as nar-
rativas do nascimento de fundadores de religiões, a necessidade de sacrifícios
de sangue para remissão etc. Assim, fez-se necessária a compreensão de que,
em última análise, nenhum fenômeno religioso pode ser encontrado em uma
única religião, mas sempre em várias.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO

Caro(a) aluno(a), a Sociologia da Religião trabalha com as questões da relação


entre religião e sociedade. Diferencia-se da Etnologia por tratar das religiões
de sociedades complexas, deixando para aquela as sociedades ágrafas. Nessa
área de estudos, os aspectos religiosos são contemplados como aspectos sociais
e explicados com o recurso das ciências sociais. Valemo-nos aqui do que foi
apontado por Berger (1985, p. 15) quando diz que “toda a sociedade humana é
um empreendimento em construção do mundo. A religião ocupa um lugar des-
tacado nesse empreendimento”.

AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
139

Isto acarreta para a Sociologia da Religião a acusação de “sociologismo” ou de


“reducionismo”, já que ignoraria a característica típica de fenômenos e categorias
religiosas e os submeteria a critérios alheios ao seu objeto. Porém, é importante
ressaltar que a Sociologia da Religião faz apenas aquilo que é sua tarefa própria:
aplicar os critérios teórico-metodológicos e suscitar questionamentos socioló-
gicos à área da religião considerando a ação religiosa como uma área parcial da
atuação social. Assim, não pode ser objetivo da Sociologia da Religião reforçar
ou apoiar causas religiosas.
Os autores Filoramo e Prandi (1999) corroboram essa distinção da Sociologia
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

da Religião afirmando que:


[...] a Sociologia da Religião não coloca a religião no centro dos seus
interesses; antes fixa a atenção no fato religioso entendido como “pro-
duto social” ou como fruto de uma criação coletiva dotado de uma
estrutura simbólica, pelo papel que exerce no interior dos mecanis-
mos sociais. Como escreve B. Wilson, o significado da religião deve
ser buscado na sua capacidade de oferecer categorias e símbolos, que
ao mesmo tempo facilitam a compreensão, por parte do homem, da
sua situação e lhe dão a possibilidade de avaliá-la e enfrentá-la emo-
tivamente (FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 91).

Para esses autores, ainda, a Sociologia da Religião tem como objetivo estudar as
funções sociais da religião numa tríplice perspectiva:
a) determinação dos conteúdos sociais implícitos num sistema religio-
so; b) análise da “retícula” religiosa (e da sua solidez a longo prazo)
como elemento de conexão com uma dada estrutura social; c) confi-
guração das modalidades sociológicas nas quais e através das quais um
sistema religioso articula as próprias estruturas simbólico-institucio-
nais, os papéis do próprio pessoal, o aparato dos poderes e das doutri-
nas que o regem [...] (FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 91).

Sociologia da Religião
140 UNIDADE IV

Para Émile Durkheim, um dos fundadores da Sociologia, “a religião permite


romper com as doutrinas individualistas e a materialista (marxismo), pois
mostra o grupo como produção se realizando por meio de representações
que produzem”. Para o sociólogo francês, é na religião que se encontra o
fundamento e a gênese do social, o princípio da coesão social e da estrutu-
ração do pensamento humano.
Fonte: Pinto (2013).

Uma linha originária da Sociologia da Religião pode ser atribuída à crítica à religião

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
de Karl Marx e Friedrich Engels (1820-1895). Com base na teoria de luta de clas-
ses, a religião é considerada um fenômeno puramente social que, por um lado, é a
expressão de protesto contra as condições sociais existentes e, por outro, torna-se
o “ópio do povo”, por seu caráter ilusório, além de ser parte de uma fase transitória
da humanidade, ainda não superada, que desaparecerá na sociedade sem classes.
A miséria religiosa é ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o
protesto contra a miséria real. Religião é a visão do homem oprimido,
o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação sem
espírito. A Religião é o ópio do povo. A abolição da religião como fe-
licidade ilusória é a exigência para a felicidade real. A exigência para a
desistência da ilusão sobre sua condição é a exigência para superar a
condição que cria a ilusão (PALS, 2006, p. 135).

O conceito de Marx, com forte tendência crítica à religião, foi levado à frente
especialmente na segunda metade do século XX, na teoria da Escola de Frankfurt.
Seus representantes colocaram no centro de suas reflexões incrédulas os aspec-
tos da religião que, por suas análises, legitimavam, apoiavam e preservavam a
ordem estabelecida, bem como as formas tradicionais de dominação e governo.

AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
141

Essa compreensão radical teve sua compensação no pensamento de Antonio


Gramsci (1891-1937), que procurou evidenciar o papel ambivalente da religião,
afirmando que “ela pode ser conservadora daquilo que já está estabelecido, porém
tem potencial de agir contrariamente, promovendo transformações sociais”
(HOCH, 2010, p. 103).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

“[...] há um catolicismo dos camponeses, um catolicismo dos pequeno-bur-


gueses e dos operários urbanos, um catolicismo das mulheres e um catoli-
cismo dos intelectuais, também este variado e desconexo.”
(Antonio Gramsci)

A Sociologia da Religião se apresenta de forma crítica a qualquer traço de domi-


nação religiosa ou de manobra dos menos favorecidos. Mesmo a sociologia
funcionalista de Durkheim percebe a religião como um fenômeno que articula
rituais e símbolos que têm o efeito de criar entre indivíduos afinidades senti-
mentais que constituem a base de classificações e representações coletivas. Desse
modo, a contribuição da Sociologia é fundamental para caracterizar o fenômeno
religioso para além dos interesses espirituais e metafísicos.

Sociologia da Religião
142 UNIDADE IV

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
CIÊNCIAS DA RELIGIÃO E TEOLOGIA

A relação entre a Teologia e a Ciência da Religião é um tema muito debatido,


disputado e sensível. Trata-se de uma crise entre “mãe e filha emancipada”, mas
que não vivem uma sem a outra. Isto é, as Ciências da Religião há muito tempo,
como as outras ciências, já não vivem na dependência da Teologia ou se con-
fundindo com ela — as discussões anteriores deixam essa realidade bem clara.
Por outro lado, é claro, também, que ambas, tanto a Teologia quanto as
Ciências da Religião, trabalham nas mesmas áreas e se dedicam a questões seme-
lhantes, parcialmente iguais.
Depois de alguns anos de debate, chegou-se ao consenso de que a Teologia é
um saber, cuja racionalidade depende da experiência de fé no universo de uma
comunidade de pertença. O teólogo, uma vez vocacionado, tem uma incumbência
afirmativa e confirmativa em relação à sua própria fé e à comunidade à qual pertence.

AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
143

Contudo, é fundamental que essa função tenha uma faceta crítica, pois se o
papel do teólogo se restringir à reprodução literal do pensamento dos funda-
dores de seu credo, de seus mentores e professores, perde-se a essência de seu
saber. Perde-se, também, o compromisso de contextualização e reinserção con-
tínua da sua fé e dos fiéis de sua comunidade de pertença no tempo presente,
sua fé deixa de ter relevância e sentido de existência.
O exercício teológico, portanto, precisa, para ser configurado como tal, não
apenas reforçar consensos, mas ser em certo grau incômodo, considerar os luga-
res teológicos na história e na atualidade, além de pesquisar novos, apresentar
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

razões da fé, cumprindo seu papel de esclarecimento, e buscar melhores razões


para aprofundamento. Enquanto busca razões verdadeiras e justas, tem um papel
crítico. Por fim, seu pragmatismo, como a direção de todas as ciências, tem uma
dimensão pastoral que procura tornar o ser humano melhor.
A ideia de que a Teologia não pode ser uma ciência por se restringir a uma
autoridade que a controla é não entender seu movimento libertador e sua con-
tínua tensão crítica em relação a si mesma e em relação a aqueles instrumentos
que se pretendem autoridade (a instituição, a denominação, a tradição, o con-
servadorismo, a interpretação dos clássicos e as próprias escolas teológicas).
Por sinal, todas essas “autoridades” têm sua raiz numa faceta de questiona-
mento e de crítica nascida da liberdade que a Teologia oferece a si mesma e
que a caracteriza como tal.

Toda construção teológica parte de dados oferecidos por uma determinada


tradição espiritual. A Teologia, por sua vez, não questiona a tradição em si,
pois admite que a tradição, uma vez que dá sentido ao que é crido e refle-
tido, tem razoáveis chances de ser verdadeira, embora não seja garantia de
que por meio dela se chegará à adoração da realidade afirmada.
Fonte: Soares (s/d, on-line)4.

Ciências da Religião e Teologia


144 UNIDADE IV

Uma vez dados esses esclarecimentos, que oferecem à Teologia seu caráter
científico (sua capacidade e característica de ser crítica e a relevância de seu
pragmatismo), é importante acentuar que o pensador teólogo tem um lugar de
pertença e de partida. Ele está dentro de sua fé e de sua comunidade e não sobre
elas. Portanto, para fazer Teologia, deve-se partir de dentro desse ambiente para
elaborar o pensamento de forma racional e razoável para a própria comunidade.
Partindo desse “lugar” apropriado, então, a construção teológica deve lançar
mão de meios filosóficos e científicos, métodos rigorosos, controláveis e comuni-
cáveis no universo científico. Assim, falamos de História, Literatura, Sociologia,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Antropologia, Psicologia, da própria Fenomenologia etc. A Teologia é construída
sempre com elementos, categorias e procedimentos das ciências, mas a Filosofia,
a Literatura e as Artes não permanecem circunscritas às regras dessas ciências
(SUSIN, 2006, p. 558). Ainda segundo Susin, são três as exigências epistemoló-
gicas da construção teológica contemporânea:
Ao sair do engessamento metafísico da escolástica, a Nouvelle Thêoló-
gie, desde a década de 1940, esclareceu-se epistemologicamente com
três exigências: 1. Estudo crítico das fontes literárias e da história, in-
cluída a tradição doutrinária; 2. Confrontação com os saberes da cultu-
ra contemporâneos; 3. Preocupação “pastoral” da teologia. Esta última
exigência mostra o que há de mais peculiar no saber teológico: um sa-
ber pragmático como serviço ou ministério, desde a comunidade de fé,
serviço para dentro dela mesma e para fora dela. No entanto, as outras
duas exigências tornaram a teologia e a própria fé um saber com mar-
cas de historicidade, de hermenêutica, de provisoriedade e pluralismo.
Por isso se deve falar em plural, em teologias (SUSIN, 2006, p. 558).

Como já vimos anteriormente, a pesquisa em Ciências da Religião se distingue


da Teologia por não ter o mesmo lugar de partida. As Ciências da Religião, para
fazer suas investigações sobre os fenômenos religiosos, partem das ciências sem
a necessidade do pré-requisito da fé. Portanto, o cientista da religião parte das
ciências, isento de um compromisso com uma comunidade de fé, com um credo
religioso e com o pragmatismo teológico.
Essas diferenças de aproximação e resultado entre ambas as ciências não,
necessariamente, as afastam uma da outra, pelo contrário, são métodos de abor-
dagem de um mesmo fenômeno, que podem se completar para construções mais
elaboradas, aproximadas da realidade e muito eficazes no ambiente científico e

AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
145

na própria humanização das comunidades religiosas. Cientista da religião e teó-


logo podem ser companheiros de trabalho, produzindo um intercâmbio de ideias
e saberes profícuo. Por muitas vezes, o teólogo é o próprio cientista da religião.
Ainda assim, é importante deixarmos bem claro que “faz parte das deter-
minações fundamentais das ciências da religião o não ser teologia” (DIERKEN,
2009, p. 115). As linhas divisórias podem ser resumidas assim: as Ciências da
Religião não se ocupam da convicção de verdade; deve-se manter a distância de
instituições religiosas; é feita a comparação de diferentes culturas religiosas com
total abstenção de juízo de valores (abordagem comparativa não apologética), ou
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

seja, a descrição neutra quanto à validade em perspectiva externa.


Os opostos, para a Teologia, são: participação do/no ponto de vista interno à
religião; explicação de sua convicção de verdade e justificação diante de interpe-
lações; avaliação normativa de fenômenos religiosos empíricos; e tarefas práticas
de formação para os membros do clero (DIERKEN, 2009).
Podemos pensar, assim, no lugar da Teologia entre os estudos sobre reli-
gião somente a partir de uma conceituação de ciência que ultrapasse as ciências
empíricas e que considere as ciências hermenêuticas. Autores como Giovanni
Filoramo e Carlo Prandi, que entendem as Ciências da Religião(ões) como dis-
ciplinas de base empírica, não entendem a Teologia como um ciência da religião.
Por que nesse quadro não existe, nas CR, espaço para a teologia e para
a filosofia da religião? Que identifica o campo das CR é sua base em-
pírica; o método indutivo é que delimita os seus confins; o que o ca-
racteriza são os juízos de fato, fundados nos limites do possível e na
neutralidade do observador (FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 22).

Também não se pode pensar numa Teologia que se pretenda simplesmente tor-
nar plausível e justificável racionalmente uma revelação religiosa.
Há um ponto onde a teologia não é ciência: quando trata da fé e da
revelação. A própria teologia afirma que não é ciência de Deus, por-
que não há tal ciência. Se a teologia quiser ser ciência e fazer parte da
academia, só poderá ser ciência da religião. Em 1919, Paul Tilich já
distinguia entre uma teologia eclesiástica, encarregada de sistematizar
os conteúdos da mensagem cristã, e uma teologia da cultura, cuja tarefa
é de estudar (analisar, classificar e sistematizar) o conteúdo religioso de
toda a cultura e de forma cultural. Podemos dizer que, neste segundo
sentido, a teologia procura analisar criticamente e dialeticamente os

Ciências da Religião e Teologia


146 UNIDADE IV

sistemas interpretativos da cultura da religião. Encontra o seu ponto


de partida, não nos dogmas oficiais e tampouco num modelo teológico
normativo confessional, mas na experiência humana concreta, postu-
lando a presença de uma dimensão religiosa em toda a experiência au-
têntica. Apresenta-se como hermenêutica da dimensão radical de sen-
tido ou da dimensão religiosa das culturas (incluindo as religiões). A
consequência mais clara dessa concepção [...] é uma significativa apro-
ximação entre teologia e as ciências hermenêuticas em geral, incluindo
a filosofia e as ciências humanas (HIGUET, 1999, p. 2).

Nesse ponto, é importante destacar a diferença entre o discurso teológico e o dis-


curso religioso, apresentado por Faustino Teixeira e baseado em Clodovis Boff:

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O discurso teológico distingue-se do discurso religioso: há entre os
dois uma continuidade de conteúdo, mas há descontinuidade de mé-
todo. Enquanto o discurso religioso é marcado pelo traço autoim-
plicativo, instaurando-se uma relação mais direta com a experiência
vivida, o discurso teológico é regrado por exigências da razão. Trata-
-se de um discurso sistemático, metódico e disciplinado: “a diferença
da linguagem religiosa, a linguagem teológica se caracteriza por sua
criticidade, isto é, pelo controle vigilante de suas procedurais e opera-
ções, controle que se exprime no esforço do rigor analítico e na busca
da organização sistemática da inteligência da fé”. Isto não significa
que a teologia não tenha uma incidência na prática, ou vice-versa.
O que ocorre é uma dialética entre teoria e prática na teologia: ela é
“imediatamente teórica” e “mediatamente prática”. Quer conhecer-se
para em seguida amar e praticar (TEIXEIRA, 2001, p. 300-301).

Para as Ciências da Religião, o exercício teológico não pode ocorrer senão como
razão crítica, caso contrário se transforma em discurso ortodoxo oficial, pautado
pela transcendentalização, ideologização e falsificação. Não se deve negar que
a fé exige um princípio essencial de inteligibilidade da Teologia, mas não signi-
fica que tem que dispensar o trabalho hermenêutico que garante a distância da
dogmatização da própria Teologia.
O trabalho hermenêutico caracteriza a Teologia Crítica, dando a ela cientifi-
cidade quanto ao método e exigindo criatividade para que verdades antigas sejam
transformadas em linguagem acessível e relevante, trata-se de uma interpreta-
ção continuada e inesgotável. Portanto, toda dedicação aplicada à interpretação
se estabelece como uma obra criativa (TEIXEIRA, 2001, p. 303-304).

AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
147

Portanto, há de se concordar com uma relação positiva entre a Teologia e as


Ciências da Religião, como propõe Teixeira, na linha de uma “cooperação crítica”.
Afinal, para ser mais crítico em sua própria pré-compreensão, o teólogo precisa
do suporte das Ciências da Religião (TEIXEIRA, 2001, p. 312-313). Assim como
o cientista da religião depende da Teologia para compreender o pensamento,
as crenças, o significado dos símbolos e suas dinâmicas históricas, os mitos, as
doutrinas e a própria história de determinada vertente religiosa que se propõe
a investigar. Entendemos que não há dúvidas quanto ao lugar da teologia como
ciência interpretativa no conjunto das Ciências da Religião.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

“Antes de tudo, convém aclarar que a teologia não fica bem-vestida de rai-
nha nem de gata borralheira entre as ciências”.
(Luiz Carlos Susin).

Prezado(a) aluno(a), não é raro um teólogo, membro de uma comunidade de fé


e tradição religiosa, tornar-se um cientista da religião, incorporando, para uma
boa Teologia, os métodos das ciências e seus resultados. Por outro lado, é muito
raro um cientista da religião se tornar um teólogo ou um participante fiel de
uma comunidade religiosa. Contudo, a construção teológica para este último é
de importância fundamental para seus estudos.

Ciências da Religião e Teologia


148 UNIDADE IV

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caro(a) aluno(a), as Ciências da Religião exploram a religiosidade em suas múl-


tiplas dimensões, tanto na questão da percepção individual quanto nas inúmeras
manifestações de ordem ritualista, doutrinária, mitológica, ética, social, econômica
e política. Sem pretensão de defender ou questionar a validade ou mesmo a vera-
cidade de uma determinada dimensão religiosa, as Ciências da Religião procuram
uma postura externa, aspirando uma limpidez que caracterize sua cientificidade.
Sabemos que uma isenção nunca é total, mas isso não significa que o cien-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tista não possa ser um crente, ele apenas deve praticar um ateísmo metodológico.
Assim, não se comete o erro de estabelecer juízos de valor, enaltecendo sua fé
e desmerecendo as outras, o que, no universo acadêmico, colocaria a perder a
cientificidade da pesquisa.
O fato de a religião ter dimensões diversas convida o pesquisador a buscar
um conjunto de disciplinas que o auxiliem no alcance da abrangência almejada.
O pesquisador da religião deve recorrer à História, Sociologia, Antropologia,
Psicologia etc. Desse modo, as Ciências da Religião se abrem para as ciências her-
menêuticas, como a Teologia, fecundando o diálogo e as metodologias de trabalho.
A vitalidade das Ciências da Religião se dá exatamente pela sua caracterís-
tica de interdisciplinaridade e conexão com diversos saberes. O que para outra
ciência seria um demérito, para as Ciências da Religião é um avanço e uma
conquista. Assim, o campo de atuação dos cientistas da religião é bem amplo:
estudar as características de um fenômeno religioso e detectar sua relação com
o contexto sócio-político, sua historicidade e sua contribuição para a cultura
em seu conjunto.
Independentemente de qual ciência social for escolhida para auxiliar no
suporte investigativo, há que se levar sempre em conta as temporalidades, as
singularidades, as variedades e os sentidos contextuais dos fenômenos religio-
sos estudados, ancorados no tempo, no espaço e na vida social.

AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
149

O ATEÍSMO SARTREANO
Como para Feuerbach e Nietzsche, também para o filósofo existencialista francês Jean-
-Paul Sartre (1905-1980) Deus não tem existência real. No fim de sua obra filosófica L’être
ET Le néant (O ser e o nada) afirma que:
[...] toda a realidade humana é uma paixão, uma vez que ela projeta
perder-se para fundar o ser e para constituir, ao mesmo tempo, o ser-
-em-si que escapa à contingência para ser o seu próprio fundamento,
o ens causa sui (o ser, causa de si) que as religiões chamam Deus. Assim
a paixão do homem é oposta à paixão de Cristo, porque o homem se
perde enquanto homem para fazer nascer Deus. Mas a ideia de Deus é
contraditória, e nós nos perdemos em vão: o homem é uma paixão inútil
(p. 747).
Já que o ser-para-si (ou o ser da consciência) é puro nada, a paixão do homem é ser-em-
-si. Mas como desejo do ser-em-si (do ser objetivo de fato), a consciência tende para o
ideal de uma consciência. Ora este ideal pode chamar-se Deus:
Pode-se dizer assim que aquilo que melhor torna compreensível o proje-
to fundamental da realidade humana é que o homem é o ser que projeta
seu Deus. Sejam quais forem depois os mitos e os ritos da religião consi-
derada, Deus é sensível em primeiro lugar ao coração do homem como
aquilo que o anuncia e define no seu projeto último e fundamental. E
se o homem possui uma compreensão pré-ontológica do ser de Deus,
esta não lhe é conferida nem pelos grandes espetáculos da natureza
nem pela potência da sociedade; mas Deus, valor e objetivo supremo
da transcendência, representa o limite permanente a partir do qual o
homem se faz anunciar o que ele próprio é. Ser homem é tender a ser
Deus; ou, se se prefere, o homem é fundamentalmente desejo de ser
Deus (p. 691).
Mas não passa de um Deus falido. Na conferência sobre O existencialismo é um humanis-
mo tenta responder às objeções feitas à nova filosofia: a) apresenta uma visão sombria
da vida e escandaliza com seu naturalismo, b) que acentua um pessimismo negro e de-
sumano. Responde a tais objeções dizendo que aos existencialistas é comum a tese: “a
existência precede a essência”. Enquanto os ateus do século XVIII ainda apresentavam o
homem como possuidor de natureza humana, Sartre diz:
O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Afirma que,
se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede
a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer
conceito: este ser é o homem” (Os Pensadores, p. 5-7).
Assim, “não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la” (p. 6).
“O homem nada mais é do que aquilo que faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio
do existencialismo. É também a isso que chamamos de subjetividade” (p. 6).
150

Sartre logo faz uma declaração sumária: “De início, o homem é um projeto que se vive
a si mesmo subjetivamente ao invés de musgo [...] e o homem será apenas o que ele
projetou ser” (p. 6). Será isso através de decisão consciente e livre, porque o homem é
liberdade. O homem escolhe-se a si próprio, seu próprio ser, “para criar uma imagem do
homem tal como julgamos que ele deva ser”. O bem depende dessa escolha. Por isso a
consequência é que “o homem é totalmente responsável por sua existência” e de todos
os homens. Se não há natureza humana universal, para Sartre, contudo, existe uma con-
dição.
O objetivo de Sartre neste escrito programático é apresentar o existencialismo em estilo
popular, como humanismo, definindo o homem pela ação, pondo seu destino nele pró-
prio: “O homem só existe à medida que se realiza; não é nada além do conjunto de seus
atos, nada mais que sua vida” (p. 13). O humanismo existencialista de Sartre, todavia, é
ateu. O homem projeta-se continuamente e persegue fins transcendentes para poder
existir. Mas esta transcendência constitutiva do homem não é relação com Deus:
O existencialismo nada mais é do que o esforço para tirar todas as con-
sequências de uma posição ateia coerente [...] não é tanto ateísmo no
sentido em que se esforçaria por demonstrar que Deus não existe. Ele
declara, mais exatamente: ainda que Deus existisse, nada mudaria; eis
nosso ponto de vista (p. 22).
Sartre nega Deus para afirmar o homem, de maneira semelhante a Nietzsche. Seu ateís-
mo também é postulatório, ou seja, não racionalmente provado. Depois de negar dog-
maticamente Deus e toda a realidade suprassensível na base de sua filosofia, faz do ho-
mem mera “paixão inútil”. Com seu niilismo e sombrio pessimismo deriva o ser do nada
e o homem defronta-se com a única opção do absurdo. A explicação do homem e do
mundo a partir do nada só pode provocar a náusea.
Fonte: Zilles (2004, p. 185-186).
151

1. No Tópico 1, vimos o conceito de “religião como totalidade”. Qual é a sua opinião


sobre isso? Discuta usando os argumentos contidos em todo o tópico.
2. Conceitue o que Max Weber definiu como “desencantamento do mundo” e rela-
cione com os estudos dos fenômenos religiosos, como apresentamos no Tópico 2.
3. No Tópico 3, abordamos a relação entre a História e o Estudo das Religiões. Com
base no que aprendeu, qual é a importância da História para os estudos sobre
a religião?
4. O que você entende por crítica da Sociologia à religião, como vimos no Tópico 4?
Justifique utilizando os conceitos estudados.
5. Em sua opinião e considerando o que foi visto no Tópico 5, qual a relevância das
Ciências da Religião na construção do pensamento teológico?
MATERIAL COMPLEMENTAR

Sociologia da Religião: enfoques teóricos


Faustino Teixeira (Organizador)
Editora: Vozes
Sinopse: esse livro apresenta as contribuições de dez importantes
cientistas sociais para o estudo da religião, revistos por dez
pesquisadores dedicados ao estudo do tema no Brasil. Como a análise
da religião ocupa um lugar central nas preocupações das fundadores da
disciplina, ela serve como porta de entrada ao conjunto de sua obra e a seus métodos de pesquisa.
As análises apresentadas destacam os conceitos fundamentais e as perspectivas que estabeleceram
para abordar a religião como um fenômeno social. Trata-se de um livro de Sociologia da Religião em
sentido extensivo, à medida que envolve igualmente autores que a rigor estariam inseridos no âmbito
da Antropologia.

Deus não está morto - 2014


Sinopse: quando o jovem Josh Wheaton (Shane Harper) entra
na universidade, ele conhece um arrogante professor de filosofia
(Kevin Sorbo) que não acredita em Deus. O aluno reafirma sua fé e é
desafiado pelo professor a comprovar a existência de Deus. Começa
uma batalha entre os dois homens, que estão dispostos a tudo para
justificar o seu ponto de vista — até se afastar das pessoas mais
importantes para eles.

Diferenciando Ciências da Religião e Teologia através do prisma da Teologia


reformada
No artigo “Diferenciando Ciências da Religião e Teologia através do prisma da Teologia reformada”,
produzido e publicado no ano de 2010 pelo professor e pesquisador Gilson Xavier Azevedo,
são apresentadas as diferenças e os diálogos possíveis entre as Ciências da Religião e a Teologia
reformada.
Para ler o texto na íntegra, acesse o link: <http://ciberteologia.
paulinas.org.br/ciberteologia/index.php/artigos/
diferenciando-ciencias-da-religiao-e-teologia-atraves-do-prisma-da-teologia-reformada/>.
153
REFERÊNCIAS

AGNOLIN, A. O debate entre história e religião em uma breve história da história das
religiões: origens, endereço italiano e perspectivas de investigação. Revista de Es-
tudos Pós-Graduados em História da PUC-SP, São Paulo, n. 37, p. 13-39, dez. 2008.
ALBUQUERQUE, E. B. A história das Religiões. In: USARSKI, F. (Org). O espectro disci-
plinar da Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2007.
BERGER, P. L. O dossel sagrado. Elementos de uma Teoria da Religião. São Paulo:
Paulus, 1985.
COSTA, J. Sociologia da Religião: uma breve introdução. Aparecida: Santuário,
2009.
DIERKEN, J. Teologia, Ciência da Religião e Filosofia da Religião: definindo suas rela-
ções. VERITAS, Porto Alegre, v. 54, n. 1, p. 113-136, jan./mar. 2009.
FILHO, P. R. O curso de Graduação em Ciências da Religião na modalidade Educação
a Distância do Centro Universitário Claretiano de Batatais. Revista de Estudos da
Religião da PUC-SP, São Paulo, p. 191-4, dez. 2007.
FILORAMO, G.; PRANDI, C. As ciências das religiões. São Paulo: Paulus, 1999.
GRAMSCI, A. A concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
ra, 1966.
GRESCHAT, H. O que é Ciência da Religião? São Paulo: Paulinas, 2005.
HIGUET, E. Teologia e Ciência da Religião. Mimeo, 1999.
HOCH, K. Introdução à Ciência da Religião. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
MOTTA, R. Notas para a leitura de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
Estudos de Sociologia, Recife, v. 1, n. 2, p. 65-83, 1995.
PALS, D. L. Eight theories of religion. New York: Oxford University Press, 2006.
PIERUCCI, A. F. Secularização em Max Weber: da contemporânea serventia de vol-
tarmos a acessar aquele velho sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São
Paulo, v. 13, n. 37, p. 43-73, 1998.
PINTO, L. Sociologia da Religião e Sociologia do Conhecimento. Revista Pós Ciên-
cias Sociais, Maranhão, v. 10, n. 19, jan./jun. 2013.
ROSADO-NUNES, M. J. F. A sociologia da religião. In: USARSKI, F. (Org.). O espectro
disciplinar da Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2007.
SUSIN, L. C. O Estatuto epistemológico da Teologia como ciência da fé e sua respon-
sabilidade pública no âmbito das ciências e da sociedade pluralista. Teocomuni-
cação (Revista da Teologia da PUCRS), Porto Alegre, v. 36, n. 153, p. 555-563, set.
2006.
154
REFERÊNCIAS

TEIXEIRA, F. (Org). As Ciências da Religião no Brasil: afirmação de uma área acadê-


mica. São Paulo: Paulinas, 2001.
TERRIN, A. N. Introdução ao Estudo Comparado das Religiões. São Paulo: Pauli-
nas, 2003.
USARSKI, F. Constituintes da Ciência da Religião. Cinco ensaios em prol de uma
disciplina autônoma. São Paulo: Paulinas, 2006.
WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira,
1989.
______. Economia e Sociedade. Brasília: Editora UNB, 1999.
______. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974.
ZILLES, U. Filosofia da Religião. São Paulo: Paulus, 2004.

REFERÊNCIA ON-LINE

Em: <http://portal.metodista.br/posreligiao/sobre>. Acesso em: 18 out. 2017.


1

2
Em: <http://up.mackenzie.br/stricto-sensu/ciencias-da-religiao/>. Acesso em: 18
out. 2017.
3
Em: <http://www.pucsp.br/pos-graduacao/mestrado-e-doutorado/ciencia-da-reli-
giao>. Acesso em: 18 out. 2017.
Em: <http://fiuc.org/w/cms/COCTI/Actes%20all/paper%20Prof%20Soares.pdf>.
4

Acesso em: 18 out. 2017.


155
REFERÊNCIAS
GABARITO

1. Nesta questão, o(a) aluno(a) deverá colocar a sua própria opinião do que enten-
de por religião como totalidade, conforme foi apresentado no Tópico 1. Deverá
ter a capacidade de discutir, associando sua opinião com os aspectos contidos
no texto.
2. Neste quesito, o(a) aluno(a) deverá discorrer sobre o termo criado por Max We-
ber: “desencantamento do mundo”, isto é, o fim da magia proporcionada pela
religião em face das novas realidades da sociedade moderna. Deverá, também,
ter a capacidade de relacionar essa ideia com os fenômenos religiosos.
3. Neste item, a resposta deverá ser uma rápida dissertação sobre os principais
pontos que o(a) aluno(a) julga importante para a História da Religião. A base
deverá ser o Tópico 3.
4. Nesta questão, o(a) aluno(a) deverá discorrer sobre a posição crítica da Sociolo-
gia frente à religião e justificar sua concordância ou discordância sobre esse tipo
de abordagem. Deverá utilizar o conteúdo do Tópico 4.
5. O(a) aluno(a) deverá apontar, de acordo com o seu ponto de vista e pelo que foi
estudado no Tópico 5, a relevância das Ciências da Religião para a formação do
pensamento teológico. Deverá citar, pelo menos, três aspectos relevantes.
Professor Dr. José Adriano Filho
Professor Dr. Sérgio Gini

TEMAS EM ESTUDOS DAS

V
UNIDADE
RELIGIÕES

Objetivos de Aprendizagem
■■ Conceituar a evolução da Etimologia da Religião até se formar a
hegemonia cristã.
■■ Apresentar o ato religioso como experiência humana.
■■ Compreender o mito como uma síntese da sacralidade.
■■ Expor como a linguagem figurada dá um sentido mais profundo ao
mito.
■■ Descrever como o sagrado continua vivo em face do
desencantamento produzido pela sociedade contemporânea.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ A Etimologia da Religião
■■ A vivência humana do ato religioso
■■ A atitude mítica
■■ Metáfora e alegoria
■■ A vitalidade do sagrado
159

INTRODUÇÃO

Caro(a) aluno(a), os estudos técnicos, históricos, conceituais e metodológicos


apresentados até então nos dão algumas ferramentas intelectuais diferencia-
das das teológicas. Dessa forma, é possível abordar temas religiosos a partir dos
métodos dos Estudos das Religiões, os quais são mais ampliados e atentos ao
labiríntico universo religioso.
Essa amplidão que um método de abordagem do fenômeno religioso deveria
alcançar é uma das propostas que caracterizam a Fenomenologia da Religião. Ela
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

contraria as abordagens funcionalistas e reducionistas, que minimizam o fenô-


meno religioso a um fato social, por exemplo, ao ópio do povo ou mesmo a um
estágio infantil da sociedade.
O pensamento fenomenológico procura explorar o que a religião tem de sin-
gularidade, sua dimensão sagrada, que comporta algo de não racional e que a
distingue de qualquer outro fenômeno social, político, econômico etc.
A Fenomenologia procura mostrar que o ser humano vive simultaneamente
em dois espaços de existência: o profano e o sagrado. Portanto, para esse método
de investigação, qualquer abordagem do fenômeno religioso deve ser feita a par-
tir de considerações de suas peculiaridades.
O método fenomenológico tem sofrido duras críticas e, de certa forma, em
alguns países, como a Alemanha, em várias de suas universidades, é considerado
não científico. Porém, foi e tem sido uma ferramenta poderosa, que contribui
para a conscientização da inocência do funcionalismo reducionista quanto à falta
de percepção e sensibilidade diante da complexidade do fenômeno religioso.
Nesta unidade, em uma espécie de ensaio, o professor José Adriano nos oferece
alguns desses temas para estudo e reflexão, além de uma análise que pode distin-
guir entre estudos teológicos e estudos da religião. Suas considerações a partir
dos temas apresentados têm como fundamento metodológico a Fenomenologia
da Religião. Aproveite as discussões!

Introdução
160 UNIDADE V

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A ETIMOLOGIA DA RELIGIÃO

Caro(a) aluno(a), o Cristianismo é filho da cultura judaica em sua relação primeira


com o sagrado e também dono de uma interpretação própria dessa experiên-
cia. Ele trouxe uma nova concepção de religião e, junto com ela, uma tentativa
de justificação etimológica diferente. Tertuliano (160-220) menciona a religião
dos romanos, dos judeus e dos cristãos.
As cartas do Bispo Inácio, de Antioquia, registram, junto com essas distin-
ções, os contrastes e as oposições: “Judaísmo” e “Cristianismo”, “vossa religião”
e “nossa religião”. Subjaz a essas formulações, sem dúvida, a polêmica do Livro
da Sabedoria e de Filón de Alexandria (20-50 a.C.) e a lição que foi apreendida
pela Epístola a Diogneto.
A tendência da exclusividade religiosa se encontra pouco depois cristalizada
em Arnóbio de Sica (255-330), cujo discípulo Lactâncio (século III d.C.) não só
contrapõe a “religião de Deus” à “religião dos deuses”, mas também introduz a
inovação mais importante: o antagonismo entre vera religio (“verdadeira reli-
gião”) e falsa religio (“falsa religião”).

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


161

A Epístola a Diogneto é um tratado apologético em favor do Cristianismo. O


autor é desconhecido e anônimo, e sua data tem sido apresentada em algum
lugar entre os pais apostólicos e o período de Constantino. A razão para se
atribuir a um período anterior a Constantino é que apresenta um claro peso
de uma severa perseguição contra os cristãos, que com a consolidação do
Cristianismo como religião oficial do Império Romano veio a desaparecer.
O único dado que se sabe sobre o autor é sua própria descrição como “discí-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

pulo dos apóstolos”, o que sugeriu ser uma referência a uma segunda gera-
ção de cristãos. O destinatário da carta, o excelentíssimo Digneto, é um não
cristão que tem interesses em saber mais da religião cristã. Em sua carta,
o discípulo desaprova a idolatria e demonstra que os rituais judaicos não
podem agradar a Deus. Também apresenta o fato de que, apesar de não
serem uma nação, os cristãos estão espalhados por todas elas, sendo que
sua cidadania é celestial.
Fonte: Berti (2011, on-line)1.

A partir do monopólio da religião cristã, Lactâncio introduz uma drástica res-


trição no pensamento sobre o sagrado no Ocidente. Ele admite, primeiro com
Cícero, que a religião como piedade ou sentimento pelo qual os homens reco-
nhecem que Deus é Pai diferencia o gênero humano das espécies animais. Ao
mesmo tempo, porém, propõe uma etimologia inédita do vocábulo “religião”,
centrada na experiência sagrada cristã que estabelece uma relação pessoal entre
Deus e o homem.
Para ele, o termo “religião” deriva de religare, porque Deus se liga ao homem
e o ata pela piedade. Pode-se dizer que só a religião verdadeira religa e não a
falsa; e o que importa é o que se venera e não a forma de adorar. Com essa pro-
posta nova e clara da experiência do homem com o sagrado, que se afirma sobre
a base de uma relação exclusiva entre Deus e o homem, desaparece um conceito
de religião, que é substituído por outro de origem judaica e de impulso cristão (“as
duas alianças”), o qual dominará total e irrestritamente o pensamento ocidental.

A Etimologia da Religião
162 UNIDADE V

A construção etimológica do termo “religião”, derivado de religare, apesar de


indicar características de validade arcaizante, ao subordinar o sagrado a uma de
suas possíveis expressões, a religião baseada na consciência pessoal contribuiu,
sem dúvida, para limitar a revelação espontânea.
A nota dominante da noção cristã de religião se baseia no fato de que a ins-
tância básica da repetição rítmica do “começo”, que permite sua reatualização
e que, segundo a vivência arcaica do religioso, constitui o núcleo da atitude de
reverência, esvazia-se de sentido e se subordina à fé na existência e vontade de
um Deus único e criador que vem ao homem.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Desse modo, se “no princípio era o Verbo”, “o Verbo se fez carne” e “res-
suscitou dos mortos”, essa realidade se reatualiza periodicamente no rito
sacramental da eucharistia (ação de graças), mas como etapa intermediá-
ria de uma etapa final. Aparece, dessa forma, como meta e plenitude que o
Verbo inaugurou historicamente ao realizar a vontade do Pai, a qual permite
a entrada das criaturas na ordem definitiva e eterna de Deus.
A adoção de uma postura imparcial diante da religião e dos fenômenos nela
envolvidos com respeito ao sagrado exige, portanto, que ultrapassemos a pers-
pectiva cristã ou de qualquer outra religião particular para poder abarcar o ato
religioso em sua essência e extensão que lhes são próprias, segundo o experi-
mentam os diferentes povos.
A religião, em sua essência própria, é tanto uma experiência humana de res-
peito para com a esfera do sobrenatural, do divino e do sagrado, como o conjunto
de atos exteriores relacionados que objetivam tal veneração como vivência com-
partilhada que trata de reatualizar a ligação com essa esfera, mediante o cultivo
de recursos que remontam a esses estados de caráter primordial e permanente.

“Até o ponto em que o ‘divino’ é um ser que assume a forma de personalida-


de, ele só consegue se manifestar sob a forma positiva de revelação.”
(Max Scheler)

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


163

Os Estudos das Religiões olham com desconfiança para a exclusividade religiosa.


Contudo, a partir da sua interação com a Teologia, é possível se apropriar dos
conceitos cristãos para entender a dinâmica da vida religiosa. É o que veremos
nos próximos tópicos.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A VIVÊNCIA HUMANA DO ATO RELIGIOSO

Prezado(a) aluno(a), os componentes externos básicos da religião que fundamen-


tam a atitude subjetiva de adesão ao divino incluem ações, objetos, palavras e
normas prescritivas, constituindo o rito, a doutrina e a moral. Veremos, a seguir,
como esses componentes externos atuam na vivência do sagrado.

RITO

Etimologicamente, a palavra “rito” vem do latim ritus, que significa “ordem pres-
crita” ou “ordem estabelecida”. No grego, esse termo está ligado a artýs ou artus,
que também significa “prescrição”. A raiz ar — mais antiga e original, “modo de
ser, disposição organizada e harmônica das partes no todo” —, encontra-se na

A Vivência Humana do Ato Religioso


164 UNIDADE V

palavra rta, do sânscrito védico, cujo significado remete a uma força de ordem
cósmica, mental e de relação das pessoas entre si, e em arta (arte), do iraniano, que
dá ideia de “harmonia restauradora”. A etimologia do termo “rito” indica que há
uma ideia de ordem, organização, estabilidade e restauração em seu significado.
O rito coloca ordem, classifica, estabelece as prioridades, dá sentido do que
é importante e do que é secundário, permite viver num mundo organizado e não
caótico, permite se sentir em casa num mundo que, do contrário, apresentar-
-se-ia a nós como hostil, violento e impossível. Se é verdade que o cosmo tem a
força de se opor ao caos, isso se deve ao rito e à sua força organizadora.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O rito é, portanto, segundo Cazeneuve (s.d., p. 10): “uma ação que pode ser
individual ou coletiva, mas que sempre permanece fiel a certas regras. Mas isso
não significa que o rito seja inflexível e não comporte uma margem de impro-
visação”. Certamente, os ritos evoluem, modificam, “em geral é de forma lenta e
imperceptível. As mudanças que ocorrem no rito são introduzidas com extrema
prudência, “a repetição é dada na própria essência do rito”.

DOUTRINA

Os ritos não incluem somente ações, mas também palavras. O silêncio e a pala-
vra compõem a trama do rito. O mito é o fundamento da palavra religiosa, relato
epifânico e tradicional. Como narração que se apoia não no discurso racional,
mas no relato que conta uma experiência primordial, carregada do prestígio que
conserva a sucessão dos relatos qualificados, ilustra a origem, o sentido último
e a realidade dos atos do mundo e da existência.
O mito — vivência do primordial que se desdobra por meio de um relato —,
desse modo, é indissociável do rito e convive em seu seio. As escrituras sagradas das
grandes religiões têm suas raízes na experiência do mito. Nesse sentido, procuram
substituí-lo, mas não anular o essencial de sua natureza, o valor do segredo divino
que transportam.
Os dogmas, as confissões de fé e a Teologia emergem da inspiração dos dados
revelados por Deus, por isso as Escrituras têm autoridade da crença, de serem tes-
temunhas fidedignas da vontade e do saber divinos. O que o símbolo implica, o

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


165

mito desdobra por meio de um relato, e a doutrina desenvolve intelectualmente.


O crede ut intelligas (creia para poder entender), de Santo Agostinho, é uma forma
madura que esclarece a decisão de substituição do mito, do qual se desenvolve
a Filosofia grega pela Escritura Cristã, e de compreensão de que essa sabedoria
convoca a razão para explicar teológica e filosoficamente a realidade.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A fé que substitui o mito, segundo Agostinho, não somente ilumina, mas


também purifica e transforma a vida do fiel. O bispo de Hipona esclarece
sobre a diferença entre simplesmente crer e ter fé em Deus: “Que é pois acre-
ditar? É amar acreditando, dedicar-se acreditando, ir para ele acreditando
[...] De que fé se trata? Não de qualquer fé, trata-se da fé que opera pela
caridade. Haja em ti esta fé, e compreenderás a doutrina.”
Fonte: Agostinho (1954, p. 24, 25).

MORAL

O sentido de comunidade, de grupo social coletivo e cosmicamente integrado


está, desde o início, ligado à veneração, ao que é primordialmente poderoso e à
necessidade de sua manutenção, mediante a repetição arquetípica ou providen-
cial da ação ritual e da palavra mítica ou ritual. Não é o indivíduo particular, mas
os membros do grupo em convivência que são levados a respeitar o que deter-
minam os ritos e as celebrações, aceitando seu cumprimento e conservando-os.
O mesmo acontece na relação cósmica e social. A continuidade interativa tem
precedência para a conduta, razão porque é necessário se ater às normas indivi-
duais e coletivas, que permitem a manutenção do grupo na ordem mundana e
a serviço da ordem. A comunicação do respeito espontâneo com o sobrenatural
inspira, portanto, formas de comportamento que obrigam os homens à ação ou
omissão, mediante regulamentações que protegem o grupo e seus membros da
desorientação e, igualmente, dos condicionamentos negativos da ordem.

A Vivência Humana do Ato Religioso


166 UNIDADE V

O âmbito ambivalente dos tabus e, a partir dele, das prescrições e dos vetos, deixa
clara a relação entre a justiça e a punição, os sistemas de castas, os estados da
vida etc. Isto a partir da observação da ética religiosa e sua projeção nas primei-
ras manifestações do direito, por meio de regulamentações sobre puro e impuro.
A ele também pertencem as grandes modificações operadas pelas religiões
denominadas proféticas, nas quais a sanção de mandamentos e de normas legais
de origem divina e normativa para a conduta constituem uma característica pro-
eminente da transformação do conceito de religião. Esse conceito é transferido
do reino do arcaico para o encontro entre a vontade de um Deus único e onipo-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tente e a vontade do homem.
O tema da ética religiosa e a duplicidade de valores oferecidos em seu domí-
nio, frente ao que a mentalidade religiosa admite como interdito ou proibido e
permitido, conduz-nos para o centro determinante do universo das ideias reli-
giosas, ou seja, a relação existente entre a religião e o sagrado.

“O ‘saber a fé’, fundamento do ‘ser cristão’, é ao mesmo tempo um saber em


comunidade que, portanto, só pode ser explícito, compartilhado, público.”
(La Jousselandière)

Caro(a) aluno(a), vimos que a vivência religiosa envolve ritos no sentido de ter um
procedimento correto de se relacionar com o sagrado. Esses ritos são sustentados
pelas doutrinas, outro elemento que envolve a vivência do sagrado. A doutrina
regulamenta e sistematiza o rito, tornando-o uma norma de ética e procedimentos.

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


167
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A ATITUDE MÍTICA

Os mitos são relatos e narrativas, as formas mais antigas por meio das quais o
ser humano procura esclarecer o mistério de sua existência no mundo. Para
isso, vale-se do conteúdo de narrativas, histórias, relatos e lendas transmitidas
de geração em geração. O mito é a atitude humana de reconhecimento da irrup-
ção do sagrado na existência e a expressão do desejo de retorno ou nostalgia do
sagrado como princípio ou arché. O ser humano mítico vive plenamente quando
alcança viver no princípio.
O mito se apresenta como fenômeno ou ato cultural, como uma palavra que
é reveladora ou epifânica, pois comunica uma mensagem ao relatar uma cadeia
ou série de atos que tiveram lugar no marco de origem. Os protagonistas desses
atos foram seres sobrenaturais, os autores diretos de ações extraordinárias que
deram nascimento ao cosmos ou a algum aspecto novo dele. Segundo Francisco
García Bazán (2001), mito envolve símbolo, palavra, história (tempo primordial),
seres extraordinários e atos excepcionais. Vejamos cada um deles na sequência.

A Atitude Mítica
168 UNIDADE V

SÍMBOLO

A palavra “símbolo” deriva da língua grega e significa “lançar conjuntamente ou


ao mesmo tempo”. O que é considerado simbólico e tem a capacidade de reunir
eficazmente. O símbolo é atividade reveladora e, por esse motivo, une o que está
separado, aponta para um significado que é real e diferente do que sua estrutura
imediata comunica ao conhecimento empírico ou habitual.
Como linguagem, encobre e revela sentidos que, a simples vista, estão escon-
didos. Sugere a aproximação ao que não diz, estando próximo dos seguintes

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
termos: hupnoia (o sentido subentendido), alegoria (dito que afirma uma coisa,
mas que significa outra) e metáfora (transposição de significado).
■■ O símbolo é imagem e, portanto, realidade auxiliar e reflexo do que está
escondido e que põe de manifesto. Sendo imagem, o símbolo não só é a
realidade mais fraca do que a revelação, mas figurativamente inverso com
respeito ao que expressa.
■■ O símbolo é a imagem reflexa, mas inseparável e necessária em relação ao
que manifesta, logo, sua origem não é nem convencional, nem efeito da
arbitrariedade, mas superior ao domínio humano individual e coletivo.
■■ O caráter de imagem do símbolo descrito o apresenta como análogo,
como diferente e idêntico ao que revela, pois como imagem especular se
torna visível e compartilha daquilo que reflexamente manifesta. Quando
a natureza analógica inerente ao símbolo se põe em movimento, cum-
pre-se propriamente a função simbólica desveladora, pois o participado
como dom é outorgado gratuitamente como experiência participante.

PALAVRA

O mito é palavra, mas palavra que relata, reúne ou liga. Relaciona-se com
logos (“palavra”), não em seu sentido especial — “a palavra que reúne e enlaça
mediante o exercício racional” (BAZÁN, 2001, p. 05) —, mas com o sentido
amplo de reunir progressivamente.

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


169

O mito é palavra autorizada que se impõe pelo prestígio da união com a origem
e seu caráter legendário. O logos, em seu sentido restrito, é a palavra do discurso
em seu deslocamento racional, lógico e retórico ou persuasivo. A passagem do
mito ao logos ocorreu já na cultura grega na época dos filósofos pré-socráticos.

HISTÓRIA

O mito é uma narrativa de acontecimentos, um relato dos atos que aconteceram


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

num tempo primordial. Nesse sentido, é epifania ou revelação. O relato mítico é,


também, palavra tradicional, ou seja, símbolo-relato que se transmite, recebe-se,
conserva e interpreta ou reatualiza e de novo se entrega. A origem do mito é não
humana ou pessoal. O mito é a memória ancestral da humanidade a partir de um
momento pleno, no qual o desenvolvimento do tempo sucessivo atual não existia.
O tempo primordial ou original próprio dos atos a que o mito se refere é
um tempo que está fora do tempo; uma atemporalidade de natureza intensa, de
expectativa global e que não se desdobra sucessivamente. Por isso, o tempo do
estado mítico que se expressa na continuidade linear do relato não gera o desgaste
nem desgasta com seu transcorrer os seres e acontecimentos que nele aparecem.
O tempo primordial contém, em germe, o conjunto uno e total das realida-
des mutáveis que se desdobrarão por meio do tempo natural vivido biológica,
social, psicológica e cronologicamente, em cuja dimensão está a origem, a cor-
rupção e o aniquilamento.

SERES SOBRENATURAIS

Os mitos narram atos extraordinários, nos quais intervêm personagens sobrena-


turais que não vivenciam as experiências humanas de fragilidade, falha, desilusão
e destruição. Essas personagens pertencem à esfera dos deuses e semideuses,
sendo mais que humanos. Possuem poderes e atributos que, salvo exceções, não
são vivenciados no cotidiano, além disso, participam das potencialidades que se
fizeram efetivas no momento do nascimento do cosmos e de seu equilíbrio. Por

A Atitude Mítica
170 UNIDADE V

conviverem no marco de um clima sagrado, realizaram atos prototípicos indi-


viduais inesquecíveis como criadores ou fundadores.

ATOS EXCEPCIONAIS

As proezas são apreendidas pela memória coletiva ou corporativa, como ações


singulares, devido sua força exemplar, paradigmática ou prototípica. Diante delas,
a fuga do tempo, as limitações locais, a diversidade e mutabilidade dos suportes

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
físicos representam riscos de desaparecimento.
As características únicas e universais dos acontecimentos proto-figurativos
transmitidos por meio da força ilustrativa das histórias míticas aconteceram no
espaço e tempo primordiais, dentro de uma cronologia e geografia figurada carre-
gadas de sentido sagrado, tornando-os orientadores da existência comum, razão
porque se quer voltar a eles, pois representam a origem. O homem arcaico não
suporta estar desorientado, extraditado e alheio à sua origem.

No poema épico A Teogonia (o nascimento dos deuses), o poeta grego Hesíodo


descreve em 1.022 versos (hexâmetro) o nascimento e a genealogia (origem)
dos deuses da mitologia grega. A época da composição é imprecisa; pesquisa-
dores a situam em torno do século VII ou VIII a. C. A narrativa se desenvolve em
torno de três temas: 1º. A criação do mundo ou cosmogonia; 2º. Genealogia dos
deuses ou teogonia; 3º. Ascensão de Zeus ao poder (maior parte do poema).
Fonte: Hesíodo (1995).

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


171

O MITO COMO PONTO DE PARTIDA DO COSMOS


OU DE PARTE DELE

Os relatos míticos são primordialmente cosmogônicos. Eles ilustram como acon-


teceu o nascimento do mundo e da ordem primitiva ou narram o modo como
algum aspecto dele sofreu alguma alteração substancial.
Há, no mito, um tipo de consciência de si mesmo no todo que vive na
tensão entre a lembrança do arquetípico e o temor de seu desgaste ou desapa-
recimento. As categorias opostas, as polaridades do sagrado e o profano, de que
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

dependem os demais opostos (ordem e caos, orientação e desvio) impõem-se


fundamentalmente ao mito.
O temor da deterioração do ancestral corre lado a lado com a erosão que o
tempo produz nos seres e nas coisas ao aliená-los do momento da criação ou da
primeira manifestação da ordem. A expansão de uma ordem implícita, mani-
festada em episódios simultâneos e sucessivamente relatados, é a expressão das
proezas dos deuses, a intrusão irrefreável e manifesta do sagrado. O mito, como
memorial oral autorizado, como relação com o sucedido, revela os momentos,
o poder e a majestade da origem, a época primordial ou parêntesis paradigmá-
tico entre a ordem que se inicia e o caos que afasta.
O mito é uma síntese poderosa, uma manifestação sacral intensa, que abre seus
braços ao homem como refúgio frente à ameaça do profano, que o torna impuro
e procura destruí-lo de diversas formas. O mito é hierofânico (manifestação do
sagrado por excelência); ontofânico (revelador do que é realmente); trescofânico
(iluminador do comportamento ritual); cratofânico e axiofânico (expressão de
poder e gravidade/seriedade). O homem primitivo não é o que se opõe ao civili-
zado, mas o de mentalidade arcaica que anseia pela reatualização, repetição real da
origem, para experimentar diretamente suas virtualidades regenerativas.

A Atitude Mítica
172 UNIDADE V

O ano novo babilônico

A celebração da festa de akitu, o ano novo babilônico, ilustra o que estamos


falando. Nessa festa, a figura central era o rei, representante divino na Terra
e responsável por sua regeneração natural e social. A festa durava doze dias e
em seu transcurso se recitava várias vezes o poema tradicional da criação, o
Enuma Elish — que narra as façanhas do deus Marduk contra Tiamat (LARA-
PEINADO, 1985).
Marduk venceu Tiamat, de seu corpo desmembrado criou o mundo e do

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
sangue de seu súdito, Kingu, criou o homem. O mito era representado por dois
grupos de atores no templo de Marduk. Nessas cerimônias, havia também a
“festa das sortes”, com os presságios que correspondiam a cada um dos meses do
ano, uma temporada de tristeza pela descida de Marduk ao mundo inferior, sua
humilhação e, finalmente, uma hierogamia ou casamento sagrado do rei com
uma sacerdotisa, representando, respectivamente, o deus e a deusa Sarpanitum.
O significado dos comportamentos descritos dramatizados neste relato,
segundo Lara-Peinado (1985), é o seguinte:

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


173

O domínio de Tiamat representa a força do caos. Os episódios relacionados


com a desordem social, a abolição da hierarquia e a eclipse do poder de
Marduk estão ligados com a desordem final, que esgota a influência de Mar-
duk, sendo, desse modo, precursora por seus sinais apocalípticos das trevas
pré-cósmicas e pré-formais.
A criação do mundo é um ato que se realiza fora do tempo, razão porque,
ao se cumprir o ciclo anual, reatualiza-se ou regenera-se. O ser humano, ao
participar na ação dramática, participa também na cosmogonia. O mundo
invadido pela desordem se projeta, agora, no tempo imortal dos começos,
supera a desordem, rompe as amarras do profano, torna-se contemporâneo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ao tempo primordial que temporaliza e habita no espaço que dá lugar e


orientação a qualquer espaço local.
Há, também, um sentido do porvir, pois as sortes estão ligadas aos meses
e aos dias previstos no tempo original, que seguem, sem começo e fim, ao
caos cósmico anterior.
A união sagrada do deus e da deusa é o símbolo que prenuncia o renascimen-
to ou a regeneração do novo mundo e da humanidade, uma nova ordem que
possui a força e sacralidade renovada, intrínseca à origem. Lentamente, po-
rém, o cosmos se afasta do domínio e da familiaridade com os deuses, o caos
avança com sua obra de deterioração, como uma ameaça permanente sobre
o mundo das formas manifestadas, e o ser humano ansiará por não perder o
ponto de apoio da origem, que tem suas raízes no princípio.

O dragão no livro do Apocalipse

Nas Escrituras Cristãs, o Apocalipse de João também preservou uma narrativa


mítica sobre o dragão como o monstro do caos. Esse relato, contido no livro do
Apocalipse 12 (BÍBLIA), apresenta grande afinidade com o modelo do mito do
combate, bastante difundido no Oriente Próximo e no mundo clássico: na forma
de um grande dragão vermelho, com sete cabeças e dez chifres, Satanás aparece
no céu, pronto para reduzir o mundo ordenado ao caos.
O mito do combate descreve a batalha que se dá entre dois seres divinos e seus
aliados pelo domínio universal. Um dos combatentes, usualmente um dragão, repre-
senta o caos e a esterilidade, enquanto o seu oponente está associado com a ordem e a
prosperidade. O resultado da batalha constituirá ou abolirá a ordem na sociedade e a
fertilidade na natureza (COLLINS, 2001). A estrutura do mito do combate é a seguinte:

A Atitude Mítica
174 UNIDADE V

1. Um casal de dragões — o oponente é frequentemente um par de dragões


ou bestas: (1) marido e esposa e/ou (2a) irmão e irmã ou (2b) mãe e filho.
2. Caos e desordem — forças que o oponente representa.
3. O ataque — o oponente quer (1a) impedir que o deus principal (ou os
deuses mais jovens) chegue ao poder e/ou (1b) destituí-lo depois de alcan-
çar o poder.
4. O herói.
5. A morte do herói.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
6. O reino do dragão — enquanto o deus está morto e confinado ao mundo
subterrâneo, o dragão governa destrutivamente: (1) saqueia e satisfaz
os seus vários desejos; em particular (2) ataca a esposa ou mãe do deus.
7. Restabelecimento do herói — (1) a esposa, o irmão e/ou a mãe do deus
se empenha em restabelecê-lo (a) pela mágica ou (b) seduzindo o dra-
gão ou (c) lutando ela mesma com o dragão ou (2) seu filho o ajuda (a)
restabelecendo a força perdida do deus ou (b) assumindo ele mesmo o
papel de deus (ou rei).
8. Batalha renovada e vitória.
9. Restauração e confirmação da ordem.

O dragão está associado ao caos e à desordem, porque representa uma ame-


aça à ordem cósmica. Ele quer devorar a criança, pois seu objetivo é impedir
que ela “governe todas as nações”. A criança é resgatada do poder do dragão
(BÍBLIA, Apocalipse 12,5) pela ação de Miguel, um aliado angélico (BÍBLIA,
Apocalipse 12,7). Os versos 7-9 (BÍBLIA, Apocalipse 12, 7-9) descrevem uma
batalha no céu, de onde o dragão é expulso. A restauração e a confirmação da
ordem são anunciadas e celebradas no hino, associadas com o “reino do nosso
Deus e a autoridade do seu Cristo” (BÍBLIA, Apocalipse 12, 10). A ordem
é restaurada no céu, como indica o grito do verso 12 (BÍBLIA, Apocalipse
12,12). Os versos 13-18 retratam o reino terrestre do dragão e o seu ataque à
mãe do menino recém-nascido (BÍBLIA, Apocalipse 12,13-18).

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


175

A descrição da besta como drakon indica sua relação com a serpente-monstro


marinho do Antigo Testamento, livyathan (BÍBLIA, Isaías 27,1) — “drakon” na
Septuaginta. Leviatã e as bestas relacionadas, Rahab (BÍBLIA, Jó 9,13; 26,12;
Isaías 51,9; Salmo 89,10) e Tannin (BÍBLIA, Salmo 74,13) refletem claramente
o oponente de Baal, Yamm (mar), e o monstro do mar, Lotan, da mitologia
cananeia. Em Apocalipse 12 (BÍBLIA), o dragão está associado ao fogo e à água
(BÍBLIA, Apocalipse 12, 3-5). É a mesma combinação de Jó 41 (BÍBLIA) usada
para descrever o Leviatã, cujos movimentos agitam as águas subterrâneas —
tehôm (BÍBLIA, Jó 41,10-13; 23-24).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A derrota do dragão por Miguel (BÍBLIA, Apocalipse 12,7-9) está associada


(1) com o motivo dos exércitos celestiais: Miguel e seus anjos e (2) com a expul-
são daquele que foi derrotado pelo vitorioso: satanás é arremessado à terra. O
combate entre dois deuses é descrito como o encontro central de uma batalha
entre dois grupos ou gerações de divindades.
No Enuma Elish, Tiamat e sua consorte realizam uma batalha contra os deu-
ses do céu, mas Marduk, como o representante dos deuses do céu, derrota-os. A
batalha de Zeus e seus aliados com os Titãs (HESÍODO, 1995) e com os gigantes
(APOLODORO, 1985) é análoga à batalha de Marduk com Tiamat, Kingu e seus
aliados. Quando Zeus derrotou os Titãs, ele os enviou a Tártaro (HESÍODO, 1995).
Na forma arcaica dos mitos que envolviam lutas de deuses, o mito do com-
bate indicava as tensões entre a fertilidade e a esterilidade, a ordem e o caos. A
vitória de uma divindade era entendida em sentido cosmogônico. No Enuma
Elish, esse aspecto cosmogônico é visto na descrição da criação do cosmos a par-
tir do corpo de Tiamat que foi conquistado.
A vitória da ordem sobre o caos e da fertilidade sobre a esterilidade deve ser
entendida como um evento que se repete ao longo das estações e dinastias como
o uso cúltico do Enuma Elish o indica.
O mito do combate tem um caráter cosmogônico quando aparece no Antigo
Testamento (BÍBLIA, Jó 26,5-14) e foi a linguagem usada pelos profetas para des-
crever os eventos históricos (BÍBLIA, Isaías 51,9-11) — a batalha de Javé com
Yamm —, essa estrutura apresenta o tema da independência política e estabilidade
que são constituídas pelo ato criador, já que a interferência do poder estrangeiro é
expressada como ameaça e caos (BÍBLIA, Naum 1,4; Jeremias 51,34; Daniel 7,8).

A Atitude Mítica
176 UNIDADE V

O modelo do mito do combate de Apocalipse 12 (BÍBLIA) é dominado pela


figura do dragão e seus atos de rebelião que provocam o caos: um mito do res-
surgimento e da conquista do caos. A situação de batalha na qual a comunidade
apocalíptica se encontra é descrita como um conflito cósmico, sob essa ótica é
que Apocalipse, capítulo 12 (BÍBLIA), deve ser lido.
Esse aspecto é ilustrado pela indicação de como o papel de Satanás é determi-
nado pelo mito do combate. Seu papel como kategor (acusador) na corte celestial
é subordinado ao seu papel como guerreiro. Sua atividade na terra depois de ter
sido atirado do céu é caracterizada como “fazer guerra aos que mantêm o teste-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
munho de Jesus” (BÍBLIA, Apocalipse 12,12-17).
As atividades subsequentes de Satanás são todas dominadas pela linguagem
da batalha. No capítulo 13 (BÍBLIA, Apocalipse 13), ele concede poder e autori-
dade à besta que luta contra os santos (BÍBLIA, Apocalipse 12, 7; cf. Apocalipse
18,19). Em Apocalipse 16,13-14 (BÍBLIA), Satanás, auxiliado por duas bestas,
reúne os reis do mundo para a batalha.
No final do livro, reúne Gogue e Magogue para a batalha contra aqueles que
se alegram no reino messiânico (BÍBLIA, Apocalipse 20,7-10). Especialmente
digno de nota é o fato de que o motivo de Satanás como sedutor é interpretado
em termos militares, já que seduzir as nações equivale a juntar as nações para a
batalha (BÍBLIA, Apocalipse 20,8).

Você concorda que a memória sobre os perseguidores e o medo de tiranos


contribuiu para a produção dos apocalipses no século III antes da era cristã
na Palestina?

Caro(a) aluno(a), vimos que a atitude mítica se refere à consciência de si mesmo


que todo mito carrega. O mito tem a capacidade de reunir, trazer de volta algo que
ficou perdido em um tempo atemporal. Assim, para o estudo da religião, interpre-
tar os mitos se torna tarefa primordial, associada ou não à hermenêutica teológica.

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


177
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

METÁFORA E ALEGORIA

Platão, em seus diálogos, utiliza amplamente linguagem figurada ou imagens.


O filósofo lança mão de figuras relacionadas com a esfera artesanal (demiurgo,
modelo), com o corpo (ama de leite, pai, mãe, filho, amante, amado), com a arte,
com as relações harmônico-musicais e alfabéticas, com a luz, o sol, a casa, o mar
e o comércio dos metais.
Ele utiliza figuras ampliadas em alegorias, como a apresentação dos homens
como marionetes das leis ou o relato da caverna. Nos seus desenvolvimentos
doutrinários, interpõe mitos tradicionais ou fórmulas dos mistérios órficos e eleu-
sinos. Platão critica, também, o literalismo das narrações dos poetas (Homero
e Hesíodo) e o inconveniente de ensinar essas fábulas às crianças, visto que elas
não estão preparadas para distinguir onde se dá o “sentido oculto” ou a alegoria.
Existe a necessidade do uso e mas também o risco verdadeiro do emprego da
linguagem indireta. Uma filosofia da linguagem de fundamento metafísico, como
a inaugurada pelo Crátilo (PLATÃO, 1974), apoiada no ensino sobre a retórica,
como a do Fedro (PLATÃO, 1975), tornará possível uma concepção da língua e de
seus recursos na qual a concepção de metáfora como “significado profundo, oculto
ou sutil” que sugere, transportando o ouvinte ou leitor, é transmitida a partir dos
vocábulos hyponoia, alegoria e símbolo em seu correspondente contexto literário.

Metáfora e Alegoria
178 UNIDADE V

Aristóteles (1999) emprega o vocábulo “metáfora” com sentido retórico: transfe-


rência de sentido de uma palavra à outra diferente, com a eliminação da conjunção
“como”, o que é próprio da comparação. Cícero difundirá na língua latina esse
emprego peculiar da linguagem figurada, que se afasta da língua primitiva ou
natural, referindo-se concretamente à metáfora, à alegoria (entendida como uma
metáfora prolongada), ao enigma, à metonímia, à sinédoque e, como figuras
ornamentais, ao marco restrito da decoração estilística. Essa tradição didática,
prosseguida por Quintiliano (35-100), não só deixou o interesse autorrealizativo
inerente aos valores arcaicos das imagens linguísticas num segundo plano, mas

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
também está na base da metamorfose da retórica em tropologia.

Uma característica da nova tradução na linguagem de hoje da Bíblia Sagra-


da é o processo de transmetaforização, ou seja, a tradução por outra metá-
fora, sempre que a metáfora bíblica for obscura para o leitor brasileiro. As-
sim, o “canto do eirado” passa a ser o “fundo do quintal”, em Provérbios 21,9.
Quando não há equivalente satisfatório para a metáfora, adota-se a desme-
taforização, isto é, a eliminação da metáfora por completo. Isto acontece,
por exemplo, em Provérbios 5,15, no qual “beber a água da própria cisterna”
foi traduzido para “seja fiel à sua mulher”. Um exame do contexto revela que
é exatamente isso que se quer dizer.
Fonte: Scholz (2006).

ALEGORIA

No período helenístico, a linguagem mítica não podia mais ser concebida ao


pé da letra ou em seu sentido literário, exigindo uma interpretação “alegórica”.
Nesse contexto, os estóicos elaboraram uma interpretação sistemática, raciona-
lizante e, portanto, alegórica dos mitos, a qual estava a serviço da adaptação de
um antigo patrimônio espiritual à mentalidade de épocas posteriores. Os estói-
cos utilizavam a palavra hyponoia, forma de comunicação indireta, que diz algo
para dar a entender algo diverso.

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


179

O verbo allegorein conduzirá ao conceito que significa, literalmente, “afirmar


algo diverso”, e isso publicamente. Surge, assim, o termo alegoria, por trás do
sentido da ágora há outro, mais profundo, que à primeira vista parece estranho
à interpretação pública.
A interpretação alegórica dos mitos consistia em encontrar atrás do chocante
sentido literal um significado mais profundo. O que, porém, é esse significado
de natureza diversa? Não se precipita na arbitrariedade quando o sentido literal
é abandonado? Ao responder a essas questões, os intérpretes alegóricos acentu-
avam que sempre se devia partir do sentido literal, para ordená-lo corretamente,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

recorrendo, para tal, à Etimologia.


Os estóicos achavam que os humanos mais antigos ainda carregavam em si
o logos não falsificado, podendo, para isso, penetrar na essência das coisas. A
Etimologia forneceria esclarecimentos sobre a direção do significado oculto que
ultrapassa o sentido literal.
A palavra allegoria foi cunhada pelo Pseudo-Heráclito (1º séc. a.C.), que defi-
niu a alegoria como um tropos retórico, que possibilita dizer algo e, ao mesmo
tempo, aludir a algo diverso. A linguagem convida a reconhecer o logos literá-
rio em suas limitações e a ultrapassá-las.
Essa norma foi aplicada especialmente na interpretação dos mitos homéri-
cos, visto que o cerne da hermenêutica se radica na tensão latente, mas real, que
existe entre o que se diz e o que se quer dar a entender, entre o significado apa-
rente e o sentido oculto, outra forma de expressão do ensino da base ontológica
sobre a aparência do que se mostra e a realidade do escondido.
Dessa forma, antes de se tornar uma técnica da interpretação, a alegoria era
uma forma de discurso, de natureza retórica, pois o fazer retórico está relacio-
nado com a mediação de sentido, razão porque se tomou usual estabelecer uma
distinção entre a alegoria, como figura discursiva originária, direcionada ao
supraliterário, e a alegorese, que significa o processo explícito de interpretação,
a recondução da letra à vontade de sentido que nela se comunica.

Metáfora e Alegoria
180 UNIDADE V

A alegoria e o pensamento cristão

As comunidades cristãs estiveram, desde seu surgimento, expostas ao desafio par-


ticular inerente ao anúncio de Jesus e à sua implícita relativização da lei judaica.
A partir de sua doutrina, a lei mosaica, sobretudo sua esperança profética mes-
siânica, já não podia ser entendida literalmente, recomendava-se interpretá-la
alegoricamente e relacioná-la com a pessoa de Jesus. Jesus era o espírito, a par-
tir do qual a letra do Antigo Testamento devia ser interpretada.
Aqui não era possível sofismar sobre o sentido literal das Escrituras. Essa

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
interpretação alegorizante do Antigo Testamento, relacionada com Jesus, adqui-
riu, no século XIX, o nome de “tipologia”. Seu objetivo visava descobrir, no Antigo
Testamento, typoi, isto é, prefigurações da figura de Cristo, as quais, antes do apa-
recimento de Cristo, deviam permanecer desconhecidas. Essa leitura tipológica
da Bíblia era, na sua época, chamada de “alegórica”.
A tipologia busca encontrar, no Antigo Testamento, prenúncios e analogias
historicamente reais da pessoa de Jesus. Um fato narrado no Antigo Testamento
— por exemplo, a saída dos israelitas do Egito — prefigura, ainda, imperfeitamente
outro — o advento, a vida e a paixão de Cristo — e realiza-se nele em sua perfeição.
O Êxodo, assim, seria prefiguração da redenção da humanidade, obtida por
meio da morte de Cristo na cruz. Também o sacrifício de Isaque por Abraão
devia prefigurar a morte sacrifical de Cristo por seu Pai. Os três dias passados
por Jonas no ventre do grande peixe deveriam simbolizar o período de tempo
entre a morte e a ressurreição de Cristo etc.
Fica, portanto, estabelecida uma relação entre duas pessoas ou aconteci-
mentos, que são ambos reais no tempo e não se preocupam com conceitos e
abstrações, que são inteiramente secundários. A figura é diferenciada da maior
parte das formas alegóricas, conhecidas em outros contextos pela realidade his-
tórica do que significa e é significado.
Quem primeiro falou expressis verbis de alegoria foi o apóstolo Paulo. Em
Gálatas 4,21-31 (BÍBLIA), ele elabora uma interpretação “tipológica” da história
dos dois filhos de Abraão, um da escrava (Agar) e o outro da livre (Sara). Isso,
explica Paulo, foi dito alegoricamente. Porque o filho gerado pela escrava signi-
fica a Jerusalém atual, que se encontra na escravidão, isto é, sob a lei. O que foi

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


181

gerado pela mulher livre, no entanto, não é escravo da lei (ou da carne), porém
livre, por ser herdeiro do espírito (BARBAGLIO, 1991).
No início de Gálatas 4,24 (BÍBLIA) consta o seguinte: “O que se entende por
alegoria” e indica que essa palavra teve uma história de desenvolvimento. Ela é
de origem grega tardia e foi usada para substituir o termo hyponoia. Em Filón
(15-45 a. C.) outros alegoristas alexandrinos veio a descrever a “interpretação
figurativa de um texto autoritativo”.
No exemplo de Paulo, fica claro pelo contexto que ele não está falando
somente de um processo alegórico, mas está interessado em entidades alegóri-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

cas, ou seja, em seu pensamento. Sara e Agar representam realmente algo que é
vital para a expressão da fé cristã, já que a partir de suas figuras históricas se fala
sobre a liberdade e a escravidão (BARBAGLIO, 1991).
Paulo espera esse momento preciso na carta para apresentar esse argumento,
e a vantagem de utilizar a alegoria inclui, pelo menos, o seguinte:
I. Permite a Paulo continuar usando a figura de Abraão.
II. Aparentemente, Paulo está utilizando um estilo de exegese que os judai-
zantes conheciam para estabelecer suas próprias doutrinas.
III. Permite a Paulo sumarizar seus argumentos principais, por meio de uma
ilustração aceitável da história sagrada de Israel.
IV. Permite a Paulo utilizar a tradição para fazer um apelo emotivo.
V. Dá a Paulo uma fundamentação para dizer algo que não poderia ser omi-
tido, ou seja, que os judaizantes deveriam ser repelidos.

A alegoria focaliza “duas alianças”. Agar e Ismael representam os que vivem


sobre a escravidão da Lei. Agar gerou Ismael “segundo a carne”, representando as
coisas que acontecem fora das promessas de Deus. Assim, “Agar e Ismael simbo-
lizam as pessoas que esperam realizar a justiça com base em suas próprias obras”
(BARBAGLIO, 1991, p. 75). Sara e Isaque representam a aliança da liberdade.
Esta é a segunda das alianças representadas. É não só uma aliança histórica
que está representada, já que as duas alianças representam duas esferas diferentes
da existência humana. A condição de mãe é apresentada como algo que repre-
senta o destino do filho. O propósito dessa alegoria é, então, dar seguimento

Metáfora e Alegoria
182 UNIDADE V

ao argumento básico de Paulo de que “a vida vivida sob a lei é escravidão, a


vida vivida em resposta à bênção prometida por Deus em Cristo é liberdade”
(BARBAGLIO, 1991, p. 77) .
Há três aspectos que caracterizam o método alegórico paulino: sua episte-
mologia, sua perspectiva histórica e sua escatologia. Primeiro, sua epistemologia
é “fé” e não “conhecimento”. Gálatas prioriza a palavra “fé”. Paulo compartilha
com seus destinatários aquilo que em um tempo anterior de sua vida tentou
destruir (BÍBLIA, Gálatas 1,23).
Mais tarde, em seu confronto com Cefas (Pedro), Paulo sustenta que a justi-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ficação não ocorre mediante as obras da Lei (BÍBLIA, Gálatas 2,16). Referindo-se
à sua própria experiência de conversão, diz que estava crucificado com Cristo, e a
vida que ele agora vivia, vivia pela fé no Filho de Deus, que o amou e se deu por
ele (BÍBLIA, Gálatas 2,20). No contraste entre a fé e a lei, Paulo já havia anteci-
pado a alegoria Sara/Agar, que afirma: “Sabemos que somente os que são da fé
são filhos de Abraão” (BÍBLIA, Gálatas 3,7).
A perspectiva da história da salvação é descrita por Paulo como “liberdade”.
O conceito de “libertação” era parte da história de Israel. Cinco vezes neste
parágrafo, Paulo usa a palavra “liberdade” para demonstrar a “realidade histó-
rico-redentiva da fé”. A história da salvação apresentada pode ser traçada desde
Abraão, que tinha dois filhos, o segundo nascido de uma mulher livre (BÍBLIA,
Gálatas 4,22) por causa da promessa (BÍBLIA, Gálatas 4,23).
Assim, a Jerusalém de cima, é também, “liberdade” (BÍBLIA, Gálatas 4,26) e
está pronta para dar à luz a alguém que viria viver na promessa. Com um apelo
à Escritura, Paulo cita Gênesis para fundamentar a afirmação de “somente os
filhos da mulher livre são realmente livres” (BÍBLIA, Gênesis 21,9-10).
A escatologia de Paulo é marcada pela esperança e culmina na pessoa de Cristo.
Esse aspecto, além da ênfase na história da salvação, faz com que Paulo não se afaste
do contexto original da narrativa de Gênesis. Ele identifica Jerusalém e Agar como
o Monte Sinai na Arábia e relembra aos destinatários de Gálatas que a promessa
escatológica está na Jerusalém celestial. Assim, entrelaça aspectos midráxicos e
legais do Antigo Testamento, o que resulta numa hermenêutica homilética e pas-
toral relacionada com a missão aos gentios no contexto da iminência da parousia.

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


183

Além de Paulo, Orígenes (185-254), em sua obra De principiis, desenvolveu a


doutrina das três faixas de sentido da Sagrada Escritura. Ela deve indicar que o
intérprete deve inscrever o sentido da Escritura em sua alma, primeiro o sen-
tido corporal, depois o psíquico e, por fim, o sentido espiritual. Essa tripartição
corresponde à tripartição neotestamentária e filônica do ser humano em corpo,
alma e espírito. O sentido corporal, isto é, literal, destina-se às pessoas simples
ou ingênuas.
Ele não pode ser rejeitado, porque a multidão daqueles que, graças a ele,
creem fielmente, dá testemunho de sua utilidade. O sentido anímico se dire-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ciona para aqueles que já fizeram maior progresso na fé e cujo olhar, pela alma
da Sagrada Escritura, é capaz de ampliar seu horizonte. Somente aos “perfeitos”
se desvela o sentido espiritual, que deve revelar os mistérios supremos da sabe-
doria divina, ocultos na letra (ORÍGENES, 2012).
Os três níveis do sentido bíblico são, assim, desejados por Deus para possibi-
litar aos cristãos um progresso do visível ao invisível, do corporal ao intelectual.
Por isso, o Espírito Santo ocultou um sentido mais profundo sob o céu de uma
narrativa comum (ORÍGENES, 2012).
Orígenes emprega a alegoria predominantemente de modo tipológico, a
qual descobria em todo o Antigo Testamento. Ele aplica, também, a interpreta-
ção alegórico-tipológica ao Novo Testamento. O Novo Testamento quer ser o
prenúncio de algo misterioso: da parousia divina, expressão da espera de uma
nova vinda do Senhor, que caracterizava a primeira cristandade.
Da mesma forma como o Antigo Testamento devia ser uma tipologia do
Novo Testamento, esse aspecto deve ser encarado como a tipologia do “Evangelho
eterno”, segundo a palavra da revelação. Orígenes, assim, abria à cristandade o
caminho para a interpretação alegórico-simbólica do Novo Testamento, como
penhor de algo diverso e mais elevado.
Segundo Orígenes (2012), tudo o que é escriturístico compõe-se de mis-
térios. Com isso, ele universaliza a dimensão do tipológico: direcionada por
natureza para a revelação do mistério, a Sagrada Escritura deveria ocultar um
mistério em todas as suas letras.

Metáfora e Alegoria
184 UNIDADE V

A alegoria era, pois, o nome que a antiga Igreja dava ao seu método tipoló-
gico de interpretação. O Antigo Testamento se tornou uma alegoria do Novo
Testamento, o qual revelava o espírito a partir do qual deveria ser entendida a
letra do Antigo. O ensino da Tipologia Histórica, uma das correntes de inter-
pretação religiosa da linguagem figurada dos inícios do cristianismo, está aqui
em síntese e, como isso, foi lançada a sentença condenatória da futura vigência
religiosa da mitologia grega, que estava a serviço da mentalidade mítica e não
da mentalidade histórica.
Os tipos ou figuras do Antigo Testamento adquirem seu pleno sentido nos

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
antítipos do Novo Testamento. A alegoria adota o caráter cristão como um estilo
de expressão religiosa, histórica e cristocêntrica.
A contribuição de Santo Agostinho (354-430) é, também, importante no
desenvolvimento da interpretação alegórica das Escrituras. Para Agostinho (2005),
palavras escritas são sinais de palavras faladas, e palavras faladas, por sua vez, são
sinais de pensamentos falados. As palavras escritas da Escritura são sinais que
ajudam a dirigir os olhos da nossa mente para as realidades que eles significam.
A Escritura é como um indicador. Não aprendemos coisas inteligíveis de
Moisés, Paulo ou dos evangelistas; nós aprendemos ao vê-las por nós mesmos
na verdade eterna. As palavras da Escritura são sinais que dirigem nossa aten-
ção para o que podemos ver, mas que nunca veríamos sem elas.
Há, também, verdades que pertencem à esfera do tempo e da mudança, e o
acesso independente que temos a essas verdades se dá por meio de nossos senti-
dos. Eu não consulto Cristo, a fim de ver se a porta do meu escritório está aberta.
Somente olho. Esses sentidos podem falar a mim somente sobre o presente. A
memória do sentido também me fala sobre o passado — somente o meu pró-
prio passado e não todo o meu passado.
Isso significa que a maior parte do passado não é só desconhecida, mas que
não se pode conhecê-la. Naquele passado não conhecível estão verdades que
necessito desesperadamente estar consciente, sendo a mais importante a que
diz que “a Palavra tornou-se carne e habitou entre nós” (BÍBLIA, João 1.14). As
palavras da Escritura nos fazem conscientes das verdades do passado não conhe-
cível. A Escritura é indispensável, porque nos informa sobre coisas que nem a
razão, nem os sentidos podem, agora, nos revelar.

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


185

A Escritura transmite a mensagem da verdadeira realidade, não de vãs imagi-


nações humanas. Ela contém a Sabedoria de Deus revelada temporalmente em
Jesus Cristo, como manifestação voluntária dos mistérios de Deus. Desse modo,
a mensagem polissêmica da linguagem religiosa não só tem por correlato os atos
históricos em sua dimensão profana, mas também requer uma interpretação ale-
górica e espiritual, assim como a interpretação anafórica, própria das realidades
escatológicas do tempo final.
A língua se torna teofânica, a palavra é recriadora e é necessário ter “ouvi-
dos para ouvir”. A palavra é, então, palavra operante como palavra de Deus, o
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

germe indubitável do “creio para poder entender” de Santo Agostinho e da tra-


dição cristã da Filosofia Medieval que substitui definitivamente a palavra mítica
sem fugir da transcendência.

Para Agostinho “no Velho Testamento, o Novo Testamento está dissimulado;


no Novo Testamento, o Velho Testamento é revelado.”
(Carlos Ceia)

Caro(a) aluno(a), no livro Pureza e Perigo, Mary Douglas (1991) faz uma reflexão
sobre os sentidos e as conexões entre pureza, poluição e perigo em “sociedades
primitivas”. Para ela, pensar sobre pureza implica assimilar a poluição como
experiência correlata e, em seguida, observar, nessa correlação, o perigo à con-
tinuidade das estruturas de um sistema social. Isto é, defende que quando em
uma sociedade comportamentos, ações, ideias, categorias sociais e instituições
são ordenados, são classificados como puros ou impuros, de modo a evitar o
perigo da desestabilização social.

Metáfora e Alegoria
186 UNIDADE V

O grau de organização e de estabilidade de uma sociedade reflete o nível


de consenso e legitimidade alcançado pela ordenação e hierarquização de
experiências, puras ou impuras, em si mesmas não unitárias, inerentemente
desordenadas. Nesse sentido, o puro, o poluído e o perigoso são classificações
simbólicas atribuídas a práticas sociais e situações que fazem sentido para o
sistema social estabelecido e que legitimam a ordem hierárquica, o poder de
arbítrio de instituições e dos sujeitos que as representam de fato e de direito,
e que por isso são hegemônicos.
Não há pureza ou impureza absoluta, as quais existem aos olhos de quem as

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
vê, pode arbitrar e constituir verdade. A sujeira ofende a ordem de quem vê, arbi-
tra e persegue a sujeira quando tinge um ambiente; persegue a doença, criando
normas para se escapar do contato com a mesma; persegue os grupos marginais,
excluindo-os, reprimindo-os ou mesmo exterminando-os.
Não há nada de amedrontador ou irracional no evitar a sujeira: é um movimento
criativo, um esforço para relacionar forma e função das coisas, ideias e sentimen-
tos, fazer da experiência uma unidade, uma vez que sexo, necessidades fisiológicas,
impressões de objetos, sensações ou emoções, diferenciações entre sagrado ou pro-
fano são realidades movediças que precisam ser orientadas coletivamente.
É um perigo para o sistema social repartir o poder de simbolizar a vida com
aqueles cujos caracteres e cujas ideias projetadas são ambíguos e anômalos, ou
seja, não se enquadram na ordem social vigente. O corpo humano possui formas
variadas e assimétricas, interior e exterior, orifícios de entrada e saída de fluidos,
excrementos e objetos; as margens físicas são margens de ideias, de experiências
físicas e emocionais, sociais e culturais.

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


187

A VITALIDADE DO SAGRADO

Caro(a) aluno(a), a história das cren-


ças religiosas no Ocidente tem
experimentado um eclipse gradual da
experiência com o sagrado. Assistimos,
no Ocidente, ao avanço do profano
materializado na institucionalização
massiva das religiões e no progresso
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

autônomo da racionalidade e da uti-


lidade científica e tecnológica.
A mentalidade dessacralizadora
iluminista abriu o caminho para uma
época pós-religiosa, uma etapa que
não só a religião se tornou desnecessária, mas também considerada hostil ao
desenvolvimento e à justiça. O programa ideológico da Revolução Francesa, por
exemplo, deixará a religião de lado, mas a substituirá por outras crenças totali-
zadoras: o culto do prazer (encarnado no bem-estar trazido pela ciência e pelo
comércio), o credo racionalista e a confiança cega no progresso indefinido. O
indivíduo livre foi assim comprometido nas transformações políticas e sociais.
A religião foi afastada e vista como incapaz de dar respostas às perguntas prag-
máticas, resultando num mundo que foi rapidamente secularizado.
No interior da filosofia alemã, a religião, vista como mistério da interiori-
dade, será objeto especial de reflexões de alguns pensadores. Para Immanuel Kant
(1724-1804), ultrapassada a esfera do conhecimento fenomênico, se a existên-
cia moral responde à pergunta: “que devemos fazer?”, a vida religiosa, por sua
vez, responde a uma inquietude diferente: “que podemos esperar?”. O conte-
údo fundado nessa pergunta é facilitado por uma “religião pura” (KANT, 2008).
Esse é o correlato da fé racional filosófica a que se chega reflexivamente pelo
exame do uso da razão em sua função prática, já que a vida moral exige uma fé intei-
ramente racional. Se o sujeito moral, ao obedecer aos imperativos práticos da razão,
negar a existência de Deus, cairá em contradição consigo mesmo, pois somente
Deus pode garantir que a ação moral neste mundo não esteja destinada ao fracasso.

A Vitalidade do Sagrado
188 UNIDADE V

Trata-se, pois, de uma fé dinâmica que coincide com a ação racional do homem
moral. Deus é, assim, mais do que uma visão do homem, sua aspiração é um
incondicionado possível, que não pode ser considerado objeto e que abona o
caráter de universalidade que lhe é conferido, a priori, pela fé racional. A sua
condição de possibilidade, dentro dos limites razão pura, só pode ser experi-
mentado humanamente como satisfação incompleta.
Nesse sentido, a vida religiosa é um aspecto essencial da existência humana,
e as condições de sua possibilidade surgem da análise da razão segundo o funcio-
namento da fé do homem livre em Deus. A religião está ligada à conduta ética. É

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
uma disposição de perfeição confiada da pessoa que admite que a lei moral regu-
lada pelo imperativo categórico é expressão da vontade de Deus (KANT, 2008).
Friedrich D. Schleiermacher (1768-1834), em seus Discursos sobre a Religião,
aprofunda o conceito de religião como “sentimento de dependência absoluta”
(SCHLEIERMACHER, 2000, p. 11). Entre os sentimentos humanos, há um que
é cósmico e indica a situação do homem no mundo. É um sentimento de rela-
ção com o universo e o ilimitado, pelo qual o homem tem consciência de sua
dependência incondicionada ante o infinito.
Esse sentimento cósmico é, porém, religioso e, além disso, revela o absoluto
no fundamento da subjetividade humana e aproxima os homens entre si, cons-
tituindo-os em pessoas e em comunidades religiosas.

“Abordando o retorno do sagrado, a questão que se levanta, antes de mais, é


a de saber se o conceito de sagrado se confina à esfera do religioso. Não falta
quem pense que a sacralidade, na actualidade, se tem vindo a transferir para
áreas mais vastas do social. Poderá perguntar-se se é pertinente distinguir
entre o sagrado estritamente religioso e o sagrado que não é religioso. A ve-
rificar-se uma tal diferenciação, subsistirá ainda o problema da univocidade
do conceito de sagrado. Não será aconselhável utilizar a mesma noção para
designar realidades diversas.”
Fonte: Fernandes (1995, p. 208).

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


189

Georg Hegel (1770-1831) enfoca o fenômeno religioso do ponto de vista da crise,


da instituição e do sentimento. A existência religiosa particular é alienante quando
torna o indivíduo estranho a si mesmo. Ao contrário, se o integra, torna a pessoa
a si e une a totalidade de sua vitalidade subjetiva ao devir da sociedade e cultura
do tempo, ou seja, a religião reconcilia o homem com o Espírito Absoluto auto-
elevando a vida finita à vida infinita pelo esvaziamento divino e pela revelação
interior de Deus (HEGEL, 2000).
A religião conserva uma afinidade profunda com a Filosofia, privilégio
que compartilha com a Arte. Ela conduz à verdade, mas se mantém em uma
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

etapa inferior da consciência, sob a forma de representações, e precisará supe-


rar esse estado tomando consciência de si mesma, objetivo que só é alcançado
pela Filosofia da Religião, para que, na identidade absoluta de sujeito e objeto, a
Filosofia possa abolir o que pesa à religião como união incompleta.
Para Karl Marx (1818-1883), a religião não é a expressão da essência humana,
pois nela o ser humano não se conhece, já que ela se transforma num véu mís-
tico que a separa da realidade. Marx identifica o ser humano com o mundo do
ser humano, com o estado e a sociedade. Não se fala sobre o ser humano e sim
sobre o mundo do ser humano. Com isso, altera-se, de forma radical, o quadro
epistemológico dentro do qual o fenômeno religioso deve ser compreendido.
A religião, sendo uma consciência invertida do mundo, é falsa, pois nela só
há ilusão (MARX; ENGELS, 1975). Ela não merece ser submetida a nenhum pro-
cesso de interpretação, pois tem uma função teórica, legitimatória e emocional.
Portanto, é produzida por uma realidade repressora. A religião ou a alienação
ideológica (religiosa) é um sintoma da enfermidade social, porque não se pode
penetrar no mundo das relações sociais por meio da religião; é destituída de uma
possível importância política.
A alienação religiosa é de segunda ordem, uma atividade crítica que se
entende como um fim em si mesma, que pressupõe que, uma vez abolida a ilusão,
o mundo se transformará. Ilusões, porém, só existem em situações que exigem
ilusões. A alienação religiosa é a expressão ideal de uma alienação material. Marx
percebeu e entendeu que uma religião que não abarca a transcendência deveria
ser chamada de política (MARX; ENGELS, 1975).

A Vitalidade do Sagrado
190 UNIDADE V

Sigmund Freud (1856-1939) também se preocupou com o fenômeno religioso.


Em 1894, apresentou uma nova ideia à teoria das enfermidades nervosas, a con-
cepção de neurose obsessiva, que se caracteriza por episódios compulsivos que
envolvem o paciente tanto no que se refere à sua mente quanto à sua conduta. O
sujeito, por seus complexos causados pela repressão, fica paralisado diante dos
desejos internos e os que, de fora, o incitam.
Assim, de forma inconsciente e coercitiva, reitera as mesmas condutas.
Freud estabelece um paralelo entre comportamento religioso e neurose obses-
siva (FREUD, 1976). Examinando a estrutura externa dos atos e esvaziando-os

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
de sua significação, chega a afirmar que a neurose é uma religião pessoal, e a
religião uma neurose universal.
Nesta, estariam se manifestando os complexos mais arcaicos da humani-
dade. Isso não impede de reconhecer que a religião possui uma forte capacidade
patogênica para os pacientes neuróticos que, incorporada a comportamentos
patológicos, colabora para a desintegração da personalidade em formas como o
delírio paranoico e as perversões.
As noções de inconsciente, de repressão psíquica, de projeção e de sublima-
ção subjazem à interpretação freudiana do ato religioso. Freud insiste também na
analogia entre a história do indivíduo e a história da humanidade. O exame da
história individual revela indícios que pertencem à história do gênero humano.
Há um paralelo entre a proibição do incesto que atua com vigência em toda pes-
soa e os tabus e obrigações que derivam da pertença ao mesmo clã totêmico.
A ressonância obscura de um homicídio ou delito original se impõe ao
indivíduo. A história de Édipo pode se constituir no paradigma estrutural de
toda uma rede de comportamentos impulsivos e afetivos da família. A par-
tir da mesma perspectiva, o vocabulário religioso, que se expressa como a
perda do paraíso, castigo e culpa, juntamente com sexo, pecado e redenção,
é igualmente comum ao analista. Dessa forma, é possível que a religião, ape-
sar de sua utilidade, venha a ser superada, graças à evolução e ao progresso
da humanidade (FREUD, 1976).
Max Weber (1864-1920) descreveu os processos de modernização do Ocidente
e, quando fala da burocratização, vê nela uma perda de liberdade. Quando fala
do desencantamento do mundo, vê uma perda de sentido (PIERUCCI, 2003).

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


191

Ao mesmo tempo, é de Weber que vem a famosa afirmação de que o moderno


reduziu os seres humanos à condição de hedonistas sem coração e especialis-
tas sem cérebro. Weber assinalou esse processo em curso no Ocidente, mas as
realidades que vivemos atualmente só parcialmente dão razão a Weber. O desen-
cantamento do mundo já aconteceu e experimenta seu ocaso.
De novo, os deuses povoam a terra criando um Olimpo novo e poderoso.
A massificação e a redução da experiência vital de homens e mulheres, porém,
confirmam as previsões weberianas. Isto por meio da burocratização e da cria-
ção de aparelhos e aparatos de produção e reprodução do poder em variadas
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

esferas, numa ideologização permanente por meio de práticas de sujeição e da


produção de súditos, incluindo os aparatos religiosos de cooptação legitimadora.
A discussão sobre Modernidade e Pós-modernidade continua. A variedade de
opiniões e conceitos sobre o que é uma e outra e a indeterminação histórica sobre
as origens de ambas apenas confirmam o fato de que se trata de uma discussão
sobre em que era vivemos. Dietrich Bonhoeffer, do fundo de sua prisão nazista,
colocou com veemência a questão: “como falar de Deus num mundo adulto?”
Boa parte, senão todo o esforço da Teologia moderna se direcionou para bus-
car respostas à essa questão. A reflexão teológica sobre a fé é uma hermenêutica
da relação necessária entre o que afirmamos e o que praticamos. É preciso rom-
per com a perspectiva imposta pela Modernidade que, privilegiando um dos
sujeitos emergentes do processo histórico dos últimos três séculos — a burgue-
sia —, cativou as Igrejas e manteve aprisionada a Palavra de Deus.

A intelectualização do religioso e a falta de um contato direto com o divino,


causado pelo esvaziamento dos símbolos e pelo domínio da objetividade
científica, geram um mundo sem significação, sem sentido, desencantado.
(Max Weber)

A Vitalidade do Sagrado
192 UNIDADE V

Caro(a) aluno(a), uma civilização urbana com megalópoles e seus problemas,


com fragmentação, anonimato, velocidade dos acontecimentos e a perda do sen-
tido de comunidade caracteriza, hoje, a sociedade.
À semelhança de conjunturas históricas passadas, as Igrejas e suas teolo-
gias foram se reformulando em função dos novos valores que iam emergindo e
se impondo a elas pelas novas realidades socioculturais em que se encontravam
aprisionadas, razão do surto de novas expressões eclesiásticas que respondem às
novas visões de mundo vigentes, com seu culto ao individualismo e à solução de
problemas pessoais independentemente de suas motivações sociais.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O poder aparentemente insuperável do neoliberalismo globalizante, que
transforma tudo em mercadoria, até os bens religiosos mais caros de todas as
culturas, parece ser uma prova disso. Porém, incapacidade das Igrejas de resisti-
rem a esse processo ao longo dos séculos da Modernidade, dando a legitimidade
religiosa pedida pelas diferentes articulações sistêmicas, segundo as demandas de
cada conjuntura histórica, parece encerrar as práticas eclesiais e as formulações
teológicas que lhes seguiam, numa outra “gaiola dura como aço”, neutralizando
a força histórica do Evangelho.

TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES


193

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caro(a) aluno(a), vimos que a abordagem fenomenológica e seu método, parti-


cularmente a relação entre profano e sagrado, podem contribuir para uma análise
científica e atual do fenômeno religioso. Vimos, também, que a compreensão
das estruturas míticas é um dos objetivos primeiros dos Estudos das Religiões.
Assim, o que foi oferecido para uma análise preliminar foi o estudo da demiti-
zação como base da compreensão da religião.
Nossa intenção foi contribuir para o seu aprendizado no sentido de que possa
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

perceber que os estudos sobre a religião podem ter uma amplitude e um diálogo
imprescindível com as outras ciências humanas e sociais. Assim, encerramos esta
unidade, que teve como objetivo apresentar as possibilidades de análise da reli-
gião a partir dos mitos, das metáforas e das alegorias.
As teorias que abordam o mito diferem não somente quanto às respostas
dadas às grandes questões: o que é o mito, qual sua origem e qual sua função.?
Divergem, sobretudo quanto às questões às quais pretendem responder. Algumas
teorias concentram-se em responder qual a função do mito, outras no conteúdo
próprio do mito, outras restringem a sua definição a elementos necessariamente
presentes, cuja ausência desconfiguraria essa definição.
Como teólogos, nossa tarefa é eliminar o pretenso conflito entre ciência e reli-
gião, conhecendo e se aprofundando nos temas e métodos dos estudos das religiões,
sendo humildes para reconhecer que nossos preconceitos religiosos e nossas ati-
tudes intelectuais podem distorcer a compreensão dos fenômenos pesquisados.
Esperamos que os temas estudados aqui possam despertar, em você, o inte-
resse em se aprofundar nos estudos científicos da religião e em estabelecer as
pontes necessárias com o ferramental hermenêutico da Teologia. Como, ao con-
trário do que disseram os cientistas sociais do final do século XIX e início do
século XX, o fenômeno religioso não morreu, cabe a nós a disposição para bus-
car respostas para as questões quanto à sua universalidade, quanto à sua presença
em sociedades contextualizadas, quanto à sua forma e essência. O trabalho é
árduo, porém gratificante.

Considerações Finais
194

ATEÍSMO E EXPERIÊNCIA DE DEUS, HOJE.


Que a sociedade atual vive uma irreligiosidade difusa e certo ateísmo de fundo é uma
constatação de fato que pode ser amplamente documentada; e isso apesar de em todo
lugar na sociedade e na cultura haver fermentos novos e novos fenômenos de redesco-
berta do valor das religiões.
Ainda que tal constatação seja inegável, e o fenômeno da irreligiosidade e do ateísmo
continue a se assentar sempre mais nos setores da sociedade, não parece fácil, no entan-
to, entender a intensidade e os contornos adquiridos por essa realidade que, em alguns
contextos sociais, parece se alastrar ainda hoje como mancha de óleo, correndo o perigo
de mudar o aspecto global das instituições e dos costumes de populações inteiras.
Na realidade, o ateísmo que se insinua entre nós, se atentamente examinado, parece
frágil em sua estrutura por o vermos emergir não como uma escolha consciente e medi-
tada, e sim como fruto de uma situação histórica e cultural não suficientemente refletida
e, no mais das vezes, aceita apenas no nível do inconsciente. Além disso, trata-se de um
ateísmo que, mesmo na negação de Deus, conjuga-se ainda com certa ideia da trans-
cendência; e assim nunca se apresenta como um fenômeno normal e irreversível, en-
quanto a tese oposta (“Deus existe”) está sempre mais presente implicitamente e muito
bem enraizada. Os homens, até os mais arrojados, têm dificuldade em se tornar ateus.
Outra característica pela qual o ateísmo atual parece frágil está na sua origem, sempre
ligada a motivações indiretas e induzidas por outros fatores que não dizem respeito di-
retamente à afirmação ou à negação de Deus. Assim, toda vez que se realiza uma análise
das escolhas ateias, reparamos que estas se sustentam em motivos políticos, sociais ou
psicológicos que deslocam o problema para outro plano: o plano inclinado dos proble-
mas do homem na sociedade, onde o que é diretamente contestado não é Deus, mas o
homem e o seu agir.
Enfim, poderíamos observar que o ateísmo atual, exatamente pelas características ante-
riormente apresentadas, não é “ímpio”, assim como não assume nenhum tom de revide
ou de vingança em relação à religião; o ateísmo de hoje, que até não ousa chamar-se por
esse nome, não nasce de uma recusa arrogante, mas antes de uma humilhação sofrida e
de um sentido de impotência. Não está sob o signo da vitória e da emancipação; nasce,
ao contrário, de uma espécie de resignação e cansaço, como se Deus se fizesse esperar
demais.
Essas poucas observações iniciais, que permitem entender toda a ambiguidade da ne-
gação de Deus na sociedade atual, sugerem também os critérios conforme os quais pro-
ceder a uma análise desse fenômeno e nos advertem que, antes de pronunciar um juízo
de condenação, é necessário entender as motivações profundas da cultura, os elemen-
tos presentes de caráter social e psicológico, a mesma dimensão religiosa do homem
que, precisamente por viver da ideia da transcendência, precisa reencontrar essa ideia
em sua pureza e profundidade não mundana.
195

Diria, portanto, de maneira abrangente, que o problema do ateísmo contemporâneo


reflete fundamentalmente uma indecisão do homem de hoje em relação a si mesmo,
antes ainda que em relação a Deus. Uma indecisão que, além dos motivos apresentados
anteriormente, baseia-se sobre a consciência sempre mais profunda dos seus limites
de conhecimento, que não permitem chegar à crítica e ingenuamente à afirmação da
transcendência entendida como incomensurabilidade absoluta em relação à realidade
do mundo. Além disso, uma indecisão que, sustentada por um leque amplíssimo de mo-
tivações, acaba conduzindo o homem a uma situação tão difícil que ele fica hesitante e
desconcertado ou, até, renuncia inteiramente a fazer referência a Deus com a esperança
secreta, no entanto, que antes ou depois Deus mesmo se revele e “se torne presente” no
mundo.
Fonte: Terrin (2003, p. 71-73).
196

1. Discorra sobre a questão da exclusividade religiosa, que colocou a religião cristã


como o centro entre as religiões dos judeus e dos romanos, conforme estuda-
mos no Tópico 1.
2. Explique a função do rito como experiência humana e sua contribuição para a
adesão do indivíduo ao divino, como vimos no Tópico 2.
3. Explique o mito do combate, presente no livro do Apocalipse e no Enuma Elish,
e relacione como ele pode ser lido pela Teologia hoje.
4. Discorra sobre os três aspectos que caracterizam o método alegórico do após-
tolo Paulo, a partir da interpretação que ele faz do texto de Gálatas que trata de
Agar e Ismael.
5. Como a força histórica do evangelho pode resistir em uma cultura pós-moder-
na? Relacione isso com a vitalidade do sagrado e os pressupostos que vimos
no Tópico 5.
MATERIAL COMPLEMENTAR

O poder do mito
Joseph Campbell
Editora: Palas Athena
Sinopse: fruto de entrevistas com Joseph Campbell (1904-1987),
um dos mais renomados estudiosos norte-americanos de religiões
comparadas, realizadas pelo destacado jornalista Bill Moyers,
esse livro revela os saberes e a extraordinária jornada do maior
especialista da mitologia mundial, numa brilhante combinação de sabedoria e humor. O mito e o
mundo moderno, a saga do herói, o caminho interior, os nascimentos virginais, sacrifício e bem-
aventurança, amor e matrimônio e mesmo os personagens de Guerra nas Estrelas são tratados de
modo único, revelando a dimensão mítica na experiência humana e seu significado universal.

Avatar - 2009
Sinopse: no exuberante mundo alienígena de Pandora, vivem
os Na’vi, seres que parecem primitivos, mas são altamente
evoluídos. Como o ambiente do planeta é tóxico, foram criados
os avatares, corpos biológicos controlados pela mente humana
que se movimentam livremente em Pandora. Jake Sully, um ex-
fuzileiro naval paralítico, volta a andar por meio de um avatar e se
apaixona por uma Na’vi. Essa paixão leva Jake a lutar pela sobrevivência de Pandora.
Comentário: o diretor James Cameron disse que Avatar tem uma simbologia política. Trata-se de
uma alegoria sobre a guerra ao terror do governo Bush (invasão do Iraque). Entretanto, vários grupos
étnicos, religiosos e políticos, ao redor do mundo, tomaram Avatar como uma alegoria de suas lutas
particulares.

Que implicam as palavras das Heilige ou “O Sagrado”?


Hermann Brandt apresenta um artigo em que aponta os vários significados da palavra “sagrado”,
por ocasião da tradução brasileira do livro de Rudolf Otto, O Sagrado.
Para ter acesso ao artigo, acesse o link: <http://www3.est.edu.br/publicacoes/estudos_teologicos/
vol4801_2008/et2008-1b_hbrandt.pdf>.

Material Complementar
198
REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, S. Comentário ao Evangelho de São João: médico e alimento. XXIX,


6. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1954. v. II.
AGOSTINHO, S. Comentário ao Gênesis. São Paulo: Paulus, 2005. (Coleção Patrís-
tica, v. 21).
APOLODORO. Biblioteca. Traducción y notas Margarita Rodríguez de Sepúlveda.
Madrid: Editorial Gredos, 1985.
ARISTÓTELES. Poética. Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril, 1999.
BARBAGLIO, G. As cartas de Paulo (II). São Paulo: Loyola, 1991.
BAZÁN, F. G. Aspectos incomuns do sagrado. São Paulo: Paulus, 2001.
BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Nova edição rev. e ampl. São Paulo: Pau-
lus, 1985.
CAZENEUVE, J. Sociologia do rito. Porto: Rés Editora Ltda, [s.d.].
COLLINS, A. Y. The combat myth in the Book of Revelation. Eugene: Wipf and Sto-
ck Publishers, 2001.
TERRIN, A. N. Introdução ao Estudo Comparado das Religiões. São Paulo: Pauli-
nas, 2003.
DOUGLAS, M. Pureza e perigo: ensaio sobre a noção de poluição e tabu. Lisboa:
Edições 70, 1991.
FREUD, S. O futuro de uma ilusão. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológi-
cas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 21
FERNANDES, A. T. O retorno do sagrado. Revista da Faculdade de Letras: Sociolo-
gia, Porto, série I, v. 5, 1995.
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2000.
HESÍODO. Teogonia. A origem dos deuses. Tradução Jaa Torrano. São Paulo: Ilumi-
nuras, 1995.
KANT, I. A religião nos limites da simples razão. Lisboa: Edições 70, 2008.
LARA-PEINADO, F. Enuma Elish: poema babilônico da criação. São Paulo: Paulus,
1985.
MARX, K.; ENGELS, F. Sobre a Religião. Lisboa: Edições 70, 1975.
ORÍGENES. Tratado sobre os princípios. São Paulo, Paulus, 2012. (Coleção Patrísti-
ca, v. 30).
PIERUCCI, A. F. O desencantamento do mundo: todos ao passos do conceito em
Max Weber. São Paulo: USP, Curso de Pós-Graduação em Sociologia, ed. 34, 2003.
PLATÃO. Os Diálogos. Teeteto — Crátilo. Rio de Janeiro: Companhia Editora Ameri-
199
REFERÊNCIAS

cana, 1974. v. 9.
PLATÃO. Os Diálogos. Fedro — Cartas — O 1º Alcibíades. Rio de Janeiro: Companhia
Editora Americana, 1975. v. 5.
SCHLEIERMACHER, F. D. E. Religião: Discursos a seus menosprezadores eruditos. São
Paulo: Novo Século, 2000.
SCHOLZ, V. Princípios de interpretação bíblica: introdução à hermenêutica com
ênfase em gêneros literários. Canoas, RS: Editora da ULBRA, 2006.
SILVA, J. S. D. O oponente escatológico de Daniel e o Anticristo do Apocalipse Siríaco
de Daniel. Memoria Acadêmica. Sociedades Precapitalistas, n. 4, v. 1, 2014.
WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira,
1989.

REFERÊNCIAS ON-LINE

1
Em: <https://marceloberti.wordpress.com/2011/05/09/epistola-a-diogneto-e-sua-
-visao-de-cristo/>. Acesso em: 18 out. 2017.
200
GABARITO

1. Nesta questão, o(a) aluno(a) deverá fazer uma breve dissertação explicando
como o Cristianis mo superou a religião dos romanos e o Judaísmo e se tornou
hegemônico conforme estudado no Tópico 1.
2. Neste item, o(a) aluno(a) deverá explicar como funciona o rito e qual a sua fun-
ção para que o indivíduo se una ao divino.
3. O(a) aluno(a) deverá discorrer sobre o mito do combate, descrito em Apocalipse
12, e relacionar com o que a Teologia pode ler dessa atitude mítica e auxiliar na
compreensão da fé.
4. O(a) aluno(a) deverá falar brevemente dos três aspectos da alegoria paulina:
epistemologia, perspectiva histórica e escatologia.
5. Nesta questão, o(a) aluno(a) deverá ter a habilidade de discorrer, segundo sua
opinião, sobre como a força histórica do Evangelho resiste na cultura atual, recu-
perando a questão do sagrado como de fundamental importância para a vitali-
dade da religião.
201
CONCLUSÃO

Escrever sobre Estudos das Religiões tem sido um desafio prazeroso. Rever e repen-
sar todos esses conceitos se torna um exercício que desenvolve o aprendizado e o
conhecimento envolvendo o nosso dever de pesquisar sempre.
Provavelmente, para você, caro(a) aluno(a) do curso de Teologia, este foi um pri-
meiro contato com diferentes autores, que tratam do fenômeno religioso a partir
de outras abordagens, com as quais não estamos muito familiarizados enquanto
teólogos cristãos, pastores, missionários e líderes em nossas igrejas ou paróquias.
Sei também o quanto pode ser difícil para alguns assimilar essa diferença de prisma,
aparentemente brusca, entre a abordagem teológica conservadora e a abordagem
dos estudos das religiões.
Contudo, queremos incentivá-lo(a) a dar a devida atenção e valor aos Estudos das
Religiões, sabemos que é difícil, uma vez que tratamos, principalmente, com a Teo-
logia. O nosso objetivo, porém, é desafiá-lo a buscar uma conciliação inteligente e
equilibrada, a fim de que a produção teológica — munida dos suprimentos históri-
cos, comparativos, sociológicos, antropológicos, filosóficos, teológicos, psicológicos
e fenomenológicos que os Estudos das Religiões oferecem — seja enriquecida, ga-
nhe relevância e cumpra com maior eficiência sua tarefa religiosa, social e humana.
Tratar com a religiosidade é algo sublime, principalmente na área pastoral. Não são
muitos os homens e as mulheres habilitados para essa tarefa, que acontece no cor-
po a corpo e tem a incumbência de interferir no cotidiano e na vida das pessoas, a
fim de que se tornem melhores e vivam com mais intensidade sua espiritualidade.
Portanto, bem sabemos o quanto ela requer cuidado, atenção, dedicação, respeito e
muito conhecimento, para que a fé mantenha sua pertinência a respeito do sentido
que dá a existência de todos nós.
Valer-se dos Estudos das Religiões como um instrumento de aproximação da essên-
cia humana, por um domínio mais apurado do dinamismo do fenômeno que nos
caracteriza como humanos, é nos aproximar da essência de todos nós, pois a própria
religião nos faz humanos.

Você também pode gostar