Você está na página 1de 9

Compreensão integral do sofrimento humano na triagem

psicológica em clínica-escola

Icaro Bonamigo Gaspodini (1) Caroline Stumpf Buaes (2)


(1) Faculdade Meridional – IMED, Brasil. E-mail: icaroicaro@gmail.com

(2) Faculdade Meridional – IMED, Brasil. E-mail: carolinebuaes@gmail.com

Resumo: Em uma clínica-escola, o primeiro contato das pessoas que buscam alguma forma de
alívio para seu sofrimento geralmente acontece no processo de triagem psicológica, um conjunto
de entrevistas iniciais que permitem uma compreensão inicial do sujeito para pensar o
encaminhamento aos serviços disponíveis. Este artigo foi produzido a partir da experiência de um
grupo de estágio em triagem psicológica no Serviço Integrado de Atendimento em Psicologia
(SINAPSI) da Faculdade Meridional – IMED. Ao longo de 10 meses, o grupo de 5 estagiárias/os
realizou 62 atendimentos e reuniu-se semanalmente para encontros de supervisão grupal, com
duração média de 3,5 horas. O objetivo deste artigo é apresentar a sistematização da forma de
trabalho desenvolvida pelo grupo para organizar os procedimentos de agendamento, entrevista
de acolhimento, entrevista de anamnese, entrevista lúdica, entrevista de devolução e produção
textual de relatos de atendimentos e síntese de caso. A perspectiva adotada desde o início foi de
uma compreensão integral do sofrimento humano, desafiando olhares reducionistas ou
patologizantes. O trabalho do grupo contribuiu no processo de encaminhamento para as linhas
de atendimento oferecidas pela clínica-escola e possibilitou um espaço de discussão que permitiu
a troca de experiências durante os encontros de supervisão, bem como a problematização das
questões de poder na prática psicológica.

Palavras-chave: Prática psicológica; Escuta clínica; Triagem psicológica.

Abstract: In a school psychology clinic, people who seek some form of relief from their suffering
often come across the psychological screening phase, a set of initial interviews that permit a
preliminary comprehension of the subject, in order to think about further referral to available
services. We produced this article from the experience of a training group of psychology students
who worked in psychological screening at Serviço Integrado de Atendimento em Psicologia
(SINAPSI), at Faculdade Meridional – IMED. During 10 months, the group of 5 trainees carried
62 interviews and gathered weekly for group supervision meetings, which would last 3.5
hours/average. The objective of this article is to present the systematizing of the work developed
by the group to organize the procedures of setting the first interview, welcoming interview,
anamnesis, ludic interview, devolution interview and text production of reports and case
syntheses. The group adopted the perspective of integral comprehension of human suffering,
challenging reductionisms and pathologization processes. The group contributed to the process of
referral to available psychotherapy lines offered by the service and allowed a discussion space to
exchange experiences and problematize the matter of power in psychological practice.

Keywords: Psychological practice; Clinic listening; Psychological screening.


1. INTRODUÇÃO
Inaugurado em 2011, o Serviço Integrado de Atendimento em Psicologia (SINAPSI) é um
programa para prática de estágio no Curso de Psicologia da Faculdade Meridional – IMED, em
Passo Fundo, Rio Grande do Sul. A clínica-escola presta atendimento psicológico para a
comunidade e, a partir da experiência na prática clínica, possibilita a produção de conhecimento
científico em Psicologia. Os atendimentos são distribuídos em diferentes projetos que abordam
temas como relações conjugais e familiares, transtornos de humor e de ansiedade,
desenvolvimento humano, drogadição e avaliação psicológica. O encaminhamento para uma das
linhas específicas é o resultado do processo de triagem psicológica, o primeiro contato das pessoas
com o serviço.
O SINAPSI atende pessoas que buscam o serviço por livre escolha e também recebe
encaminhamentos de órgãos como Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Os processos de
mediação de conflitos familiares realizados pelo Núcleo de Prática Jurídica (NUJUR/IMED)
também resultam em encaminhamentos para o SINAPSI, propiciando o trabalho interdisciplinar
com a clínica-escola.
Este artigo apresenta o trabalho desenvolvido por um grupo de estágio básico responsável pela
triagem psicológica do SINAPSI, durante o período de 10 meses (jan./mar. 2013). No intuito de
buscar formas de trabalho que propiciassem uma compreensão integral do sofrimento humano, o
grupo sistematizou uma forma de compreensão inicial do sofrimento do sujeito, de forma
integrada, que permitiu o encaminhamento para as linhas de psicoterapia oferecidas pelo serviço.
Compunham o grupo 5 acadêmicas/os de Psicologia, além da professora supervisora. Durante o
período do estágio foram atendidas 62 pessoas, entre crianças e adultos.

2. TRIAGEM PSICOLÓGICA: PRÁTICAS DE UMA CLÍNICA-ESCOLA


O objetivo da triagem psicológica é realizar uma compreensão inicial do sofrimento apresentado
pela pessoa que procura alguma forma de alivio para seu sofrimento, possibilitando a elaboração
de hipóteses diagnósticas e a sugestão de caminhos investigativos para a escolha do
encaminhamento mais apropriado. Enquanto espaço fundamental de escuta e acolhida, a triagem é
“a tarefa de procurar um significado para as perturbações trazidas pelo paciente e de ajudá-lo a
descobrir recursos que o aliviem” (MARQUES, 2005, p. 162).
A triagem psicológica pode contribuir para responder, por exemplo, se o encaminhamento para
um atendimento focado nos aspectos relacionais beneficiaria melhor a pessoa ao invés de
atendimentos individuais; outra situação envolve a decisão acerca da “adequação dos membros
conforme a composição e os objetivos dos grupos terapêuticos” (TAVARES, 2000, p. 50).
As entrevistas clínicas iniciais compõem um procedimento investigativo, limitado no tempo e
guiado por entrevistadores que utilizam saberes da Psicologia, estabelecendo uma relação cuja
finalidade envolve a descrição e avaliação de “aspectos pessoais, relacionais ou sistêmicos”
culminando em uma tomada de decisão a que chamamos “encaminhamento” (TAVARES, 2000,
p. 45).
O grau de planejamento prévio definirá o formato enquanto entrevistas estruturadas,
semiestruturadas e de livre estruturação, admitindo-se que qualquer “entrevista supõe, na verdade
exige, alguma forma de estruturação” (TAVARES, 2000, p. 48). No processo de triagem relatado
neste artigo, predominou o uso de entrevista semiestruturada, que pode ser iniciada por uma
técnica mais diretiva, com a finalidade de apresentação mútua e esclarecimento do setting, seguida
de uma técnica de entrevista não estruturada, oportunizando a expressão do paciente, para
finalizar (ou encerrar a entrevista) novamente com técnicas diretivas, preenchendo brechas nas
informações coletadas (OCAMPO; ARZENO, 2009).
2.1. Sistematização do trabalho do grupo
A Figura 1 mostra o resultado da sistematização do trabalho do grupo de estágio, desenvolvido
para responder aos seguintes objetivos: realizar escuta clínica no processo de triagem psicológica
através de entrevistas iniciais; criar hipóteses clínicas e sugerir caminhos de investigação
relacionados ao encaminhamento de cada caso; elaborar, durante supervisão em grupo, uma
compreensão integrada do sofrimento humano, para decidir sobre a melhor forma de
encaminhamento entre as linhas de atendimento do serviço; avaliar a pertinência de encaminhar
pessoas para outros serviços de saúde disponíveis na rede local, caso necessário/possível.

FIGURA 1 – Sistematização do processo de triagem psicológica.


O procedimento diferia para adultos e crianças: quando responsável por si própria, a pessoa
passava por uma entrevista de acolhimento e outra de devolução. O atendimento infantil era
realizado em quatro encontros: entrevista de acolhimento, entrevista de anamnese, entrevista
lúdica e entrevista de devolução. A criança participava apenas da entrevista lúdica; as outras eram
realizadas com mães/pais e/ou cuidadores. Como recomendação, nenhum atendimento poderia
ultrapassar a duração de 50 minutos. Nas reuniões semanais de supervisão em grupo, cada
estagiária/o apresentava ou relatos (de entrevistas de acolhimento, anamnese, lúdica e de
devolução), ou a síntese do caso (documento de encaminhamento para um dos projetos
disponíveis no SINAPSI). A seguir, discutiremos cada aspecto do processo.

2.1.1. Supervisão
A atenção de estagiárias/os de Psicologia geralmente se divide entre suas necessidades de
formação e as das pessoas a quem seus serviços se dirigem, frequentemente levando-as/os a
“construir discursos saturados dos seus anseios por aprender, debilitando o discurso de seus
clientes, pacientes, grupos e usuários” (CENCI; MENESES, 2009, p. 29). Essa questão apareceu
diversas vezes durante os encontros do grupo, ressurgindo em diferentes configurações ao longo
do processo de estágio, assegurando o lugar crucial do modo como a professora realizou a
supervisão, a partir da criação de um espaço de acolhimento e contingência das questões
subjetivas das/os estagiárias/os e a relação dessas questões com o trabalho que cada estudante
realizava.
Na percepção das/os estagiárias/os, um dos aspectos mais positivos em reuniões de supervisão são
as discussões envolvendo casos clínicos, e a curta duração dos encontros é apontada como ponto
mais negativo (BARLETTA; FONSÊCA, 2012). Pensando nesses aspectos, os encontros de
supervisão foram realizados em grupo, com periodicidade semanal e duração média de 3,5 horas.
Cada estagiária/o dispunha de 40 minutos para exposição de seus relatos/sínteses, dúvidas e
questões subjetivas, ampliando a riqueza advinda da troca de diferentes olhares para o mesmo
caso.
O processo de estágio foi guiado de modo semelhante ao descrito por Cenci e Meneses (2009, p.
35) sobre encontros de supervisão: “o aluno deve ganhar experiência de vida enquanto ser
humano e aprender a diferenciar saberes”, afinal, o sentimento de incapacidade de lidar com a
situação pode ser dialogado e reconstruído nesses encontros, “transformando aquele discurso
inicial de ‘eu não sei’ em um discurso mais apropriado de ‘estou aprendendo, estou entendendo’”.

2.1.2. Agendamento da primeira entrevista


A escolha das pessoas na lista de espera para atendimento seguiu o critério cronológico, embora
alguns casos apontados como urgentes ganhassem prioridade no agendamento. Esses geralmente
provinham de encaminhamentos do Núcleo de Prática Jurídica da Escola de Direito
(NUJUR/IMED), para trabalho interdisciplinar em processos de mediação de conflitos familiares.
Também era critério de escolha as demandas específicas do próprio SINAPSI em sua diversidade
de práticas e linhas de atendimento.
No atendimento infantil, solicitava-se que a criança não estivesse presente na primeira entrevista,
pois se tratava de um espaço em que criança seria narrada a partir dos próprios discursos que a
subjetivam. Como a clínica-escola não possuía uma sala de espera com atividades lúdicas, nem
profissionais disponíveis para o cuidado, indicava-se, caso responsáveis comparecem com a
criança, realizar uma primeira entrevista apenas para a coleta de dados de identificação, sem a
expressão detalhada da queixa e da história de vida.
As únicas informações disponíveis no cadastro da lista de espera eram nome, idade, telefone e
data do contato. Observou-se, nos últimos meses do estágio, a presença de alguns descritores ao
lado dos nomes das pessoas, tais como “depressão”, “dependência química” ou “especial”. Os
motivos da presença dos descritores não foram investigados, mas foram problematizados em
supervisão em relação aos riscos de reducionismo e patologização.

2.1.3. Entrevista de acolhimento


A partir dos objetivos de uma entrevista inicial, observam-se, entre outras, as seguintes
necessidades: “perceber a primeira impressão que nos desperta o paciente e ver se ela se mantém
ao longo de toda a entrevista ou muda, e em que sentido”; comparar o que o sujeito verbaliza com
a “imagem que transmite através da maneira de falar”; compreender “o grau de coerência ou
discrepância entre tudo que foi verbalizado e tudo o que captamos através de sua linguagem não-
verbal” (OCAMPO; ARZENO, 2009, p. 19-21).
No início da primeira entrevista, após apresentação mútua, expunha-se o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido (TCLE), que apresentava o SINAPSI e explicava a respeito da utilização do
conteúdo das entrevistas para fins científicos, reforçando a garantia do sigilo. Tratava-se do
momento de esclarecer características processo de triagem, em linguagem simples, ressaltando o
fato de que o processo psicoterapêutico não seria realizado pela/o mesma/o estagiária/o e que
aquele seria apenas o procedimento inicial. Também eram explicitadas as combinações em relação
ao pagamento.
Esse momento da entrevista não se apresentava necessariamente de forma rígida ou distanciada,
porquanto o interesse genuíno da/o estagiária/o fosse o de explorar cada dado sociodemográfico
como uma possibilidade de compreender o sujeito e construir o vínculo de confiança necessário
para o próximo passo. Segundo Cordioli e Gomes (2008a, p. 86), durante uma coleta de dados, é
possível que a/o estagiária/o se perceba como preenchendo um formulário desinteressante ou
executando uma tarefa obrigatória, no entanto, sugere aproveitar as predefinições específicas
desse momento para “ser cordial, demonstrar calor humano, simpatia, interesse e autenticidade”.
O sujeito somente abordará aspectos delicados de sua história se desenvolver confiança suficiente
para fazê-lo, pois para quem busca atendimento psicológico, esse momento pode “estar ocorrendo
depois de muitas dúvidas, expectativas e ambivalências e representa um momento crítico em sua
vida” (CORDIOLI; GOMES, 2008a, p. 86). Ainda na primeira entrevista, geralmente após
decorrida metade do tempo, realizava-se o acolhimento da queixa do sujeito. Nesse momento, a
pessoa apresentava não somente os motivos pelos quais procurara o serviço, como também as
próprias hipóteses acerca das razões de seu sofrimento. No caso de atendimentos infantis, o
acolhimento da queixa permitia às/aos estagiárias/os conhecerem um sujeito narrado através de
outro, situação que Lima (2007, p. 64) descreve como suscitante de “um questionamento sobre a
importância de se diferenciar o discurso dos pais do discurso da própria criança”, afinal ela só
chegará até a “clínica se seu sintoma incomodar os pais”.
As impressões iniciais acerca das crianças se desdobravam ao longo do processo, confirmando-se,
negando-se, transformando-se. Segundo Lima (2007, p. 11), caso seja formulada a hipótese de
uma criança estar encobrindo outros conflitos relacionais em seu sistema familiar, deve-se
considerar a “importante função de acolher essas demandas, inicialmente formuladas pelos pais,
para começar um trabalho de depuração, a partir de uma escuta que localiza a posição de cada um
na situação da qual se queixam”. Esses espaços de entrevista com responsáveis são “importantes
para identificar o lugar que o filho ocupa no desejo e na fantasia deles, para posteriormente, ao
escutar a criança, identificar de que forma responde a esse lugar que lhe é oferecido” (LIMA,
2007, p. 11).

2.1.4. Entrevista de anamnese e entrevista lúdica


Bastava uma observação superficial dos contatos na lista de espera do SINAPSI para que se
percebesse a presença de crianças e adolescentes como maior demanda do serviço. O fato de
crianças chegarem à clínica trazidas por seus responsáveis pode figurar como ponto inicial de
reflexão. À queixa de mães/pais e/ou cuidadores, somam-se narrativas atribuídas à criança no
contexto escolar, muitas vezes culpabilizando apenas a criança por seu atraso, problema ou
dificuldade. Ainda que se culpabilizem as crianças, trazê-las para a Psicologia é um indicativo de
cuidado que por si só pode funcionar como ponto de partida da psicoterapia. A relevância de um
olhar crítico à simples chegada da criança à clínica-escola pode possibilitar o engajamento das
pessoas responsáveis por seus principais espaços de socialização, ampliando a queixa do
indivíduo para as interrelações em que se insere.
Na entrevista de anamnese, realizada com responsáveis pela criança, investigava-se uma série de
características dos momentos evolutivos específicos da vida infantil, sendo que a quantidade de
informação trazida, bem como a qualidade e a forma pela qual era transmitida, indicavam
aspectos da relação daquela/e responsável com a criança. Carrasco e Pötter (2005, p. 187)
acreditam que as entrevistas de anamnese devem investigar os aspectos da história do casal que
gerou a criança, pois as “informações revelam o clima familiar à época de seu nascimento e [...]
irão refletir em seu desenvolvimento biopsicossocial”. A extensão da entrevista de anamnese foi
discutida pelo grupo, que percebeu a importância no desdobramento de narrativas ricas em
informações sobre as crianças, sendo que durante grande parte das entrevistas sobre a criança
acabavam fornecendo informações sobre os próprios informantes.
Os dados coletados nas entrevistas “sobre” a criança eram confrontados com as impressões do
encontro proporcionado pela entrevista lúdica, centrada em brincadeiras, com um fundo
investigativo relacionado à queixa. A prática da entrevista lúdica foi fundamentada, ao longo do
estágio, no critério diagnóstico da hora do jogo. Citando o trabalho de Arminda Aberastury,
Werlang (2000, p. 98) explica que a hora do jogo se fundamenta no pressuposto de que
fenômenos transferenciais não se estabelecem apenas com a terapeuta, mas que a criança “é capaz
de estruturar, através dos brinquedos, a representação de seus conflitos básicos, suas principais
defesas e fantasias de doença e cura, deixando em evidência, já nos primeiros encontros [...] o seu
funcionamento mental”.
Antes de iniciar a entrevista lúdica, investigava-se se a criança conhecia os motivos pelos quais
havia sido trazida até uma clínica-escola e qual sua representação de profissionais da Psicologia,
afinal, segundo Carrasco e Pötter (2005, p. 187), essa atitude faz “com que o paciente tenha
confiança no psicólogo, podendo, mesmo em um curto processo, deixar transparecer os motivos
de seu sofrimento psíquico”.
O procedimento da entrevista lúdica procurava atender ao que foi sugerido por Werlang (2000, p.
98): “oferecer à criança a oportunidade de brincar, como deseje, com todo o material lúdico
disponível na sala, esclarecendo sobre o espaço onde poderá brincar, sobre o tempo disponível”,
os papéis da criança e da/o estagiária/o e também “os objetivos dessa atividade, que possibilitará
conhecê-la mais e, assim, poder posteriormente ajudá-la”.

2.1.5. Entrevista de devolução


Segundo Tavares (2000, p. 51), as entrevistas de devolução comunicam o resultado da avaliação
ao sujeito, permitindo a expressão de “seus pensamentos e sentimentos em relação às conclusões e
recomendações do avaliador”. O autor conclui que, “mesmo na fase devolutiva, a entrevista
mantém seu aspecto avaliativo, e tem-se a oportunidade de verificar a atitude do sujeito em
relação à avaliação e às recomendações”. Para Teixeira et al (2004, p. 3), trata-se de um
importante momento para “retomar os motivos da consulta, a necessidade ou não de tratamento
psicológico e a indicação terapêutica”. Os autores também sugerem a abordagem de questões
negadas até o momento e o esclarecimento de assuntos obscuros, “com o intuito de colocar a
queixa no seu devido lugar”.
Percebeu-se, entre os relatos do grupo, certa frequência de ocasiões em que informações
relevantes apareciam apenas na entrevista de devolução, por vezes em seus últimos momentos.
Entre as razões levantadas em busca de uma explicação, foi considerado o fato da celeridade do
processo de triagem (2 encontros no atendimento adulto / 4 encontros no atendimento infantil)
relacionada ao tempo subjetivo de cada pessoa em adquirir a confiança necessária para abordar
questões conflitivas.

2.1.6. Produção textual: os relatos e a síntese do caso


Os relatos escritos dos atendimentos eram apresentados na supervisão em grupo, mediante
exposição oral e/ou projeção. A construção textual foi considerada parte integrante do processo
investigativo da triagem psicológica, pois a produção de um discurso sobre um sujeito acabava
sendo o “produto final” do documento de encaminhamento: a síntese do caso.
A elaboração da síntese do caso era a última tarefa realizada antes do encaminhamento final. O
modelo de síntese desenvolvido pelo grupo fornecia uma compreensão de cada caso, com
informações relevantes ao início do processo de psicoterapia a ser realizado pelas/os estagiárias/os
de Clínica (responsáveis pelo processo psicoterapêutico). Esse documento apresentava uma
primeira página destacando a queixa, que segundo Toy e Klamen (2011, p. 20-21), deve ser
descrita preferencialmente nas próprias palavras do sujeito, por mais bizarras que sejam,
colocando suas afirmações entre aspas para "que os leitores saibam que se trata de uma
transcrição literal do que o paciente relatou, e não das palavras do redator". A primeira página
ainda informava as datas das entrevistas realizadas e o encaminhamento sugerido.
O corpo do documento era divido nas seguintes seções:
a) Impressões gerais: aspectos socioeconômicos, expressão verbal e não-verbal, higiene,
vestuário, comportamento durante a entrevista, aparência, sinais de ansiedade, capacidade de
insight e recursos de saúde que auxiliarão num bom prognóstico. Nesta seção ainda constava o
grau de motivação para o processo psicoterapêutico.
b) Início e curso da queixa atual: aspectos pré-mórbidos, evolução do sofrimento do sujeito,
hipóteses diagnósticas das/os acadêmicas/os, bem como a percepção do sujeito de seu próprio
sofrimento, com as hipóteses que criou sobre sua situação. Aqui também se buscou entender o
porquê da procura naquele momento específico do curso da queixa.
c) História de vida: aspectos relevantes acerca do desenvolvimento do sujeito, dinâmicas
familiares ou conjugais, momentos e experiências marcantes que tenham relação com a queixa
apresentada.
d) Encaminhamento: para uma das linhas de atendimento oferecidas pelo serviço, bem como
encaminhamentos externos, presentes na rede local de atendimento à saúde, quando necessário e
possível. Antes da elaboração da última seção da síntese do caso, as questões relativas ao
encaminhamento eram discutidas e decididas em supervisão, a partir das demandas do sujeito e da
disponibilidade do próprio serviço, conforme detalhado na próxima seção.

2.1.7. Processo de Encaminhamento


O encaminhamento pode ser abordado a partir de três hipóteses iniciais, partindo das diferenças
entre as abordagens psicodinâmica, cognitivo-comportamental e sistêmica. A hipótese
psicodinâmica entende que os conflitos entre forças psíquicas determinam os sintomas presentes,
quando “impulsos ou emoções intoleráveis e mecanismos de defesa, adaptativos ou não”,
impedem que o sujeito se torne consciente dos motivos subjacentes ao seu sofrimento. Uma
hipótese cognitivo-comportamental se preocupa com “a gênese na modulação e, principalmente,
na manutenção dos sintomas de determinados transtornos” como resultado de influências de
“aprendizagens errôneas”, identificando pensamentos automáticos como consequência de crenças
nucleares disfuncionais. Finalmente, a hipótese sistêmica aponta para a relevância “das interações,
influências recíprocas e papéis que existem” nas relações do sujeito que “mora com a família ou
mantém uma relação íntima significativa com outra pessoa” (CORDIOLI; GOMES, 2008a, p. 94-
96).
A decisão por uma “modalidade específica de psicoterapia depende, em grande parte, das
condições pessoais do paciente para se beneficiar dos diferentes modelos” (CORDIOLI; GOMES,
2008a, p. 97). Dentre essas condições, é preciso avaliar: o grau de sofrimento psíquico do sujeito
(leve, moderado, grave, muito grave); a motivação para realizar mudanças pessoais através da
psicoterapia; “a qualidade das relações de objeto e a capacidade de se vincular ao terapeuta e de
estabelecer uma aliança terapêutica”; a disposição para produzir insights sobre o próprio problema
ou a capacidade de utilizar o chamado “pensar psicológico”, conceito que “inclui o desejo do
paciente em aprender os possíveis significados e causas de suas experiências internas e externas, a
habilidade de olhar preferentemente para dentro de si na direção dos fatores psicológicos e não só
para fatores externos ou ambientais”; os recursos de ego e as vulnerabilidades do sujeito; e a
presença ou não de um foco problemático. (CORDIOLI; GOMES, 2008b, p. 104-116).
Nas reuniões de supervisão, durante as discussões acerca do encaminhamento dos sujeitos, era
comum encontrar pontos de convergência entre as diferentes possibilidades de atendimento
psicoterápico. Procurou-se fugir do lugar comum, por exemplo, indicando psicoterapia de
orientação analítica para pessoas “que precisam se conhecer melhor”, ou psicoterapia cognitivo-
comportamental para “simples remoção de sintomas”. Apesar de se levar em conta a indicação
terapêutica de determinadas abordagens para determinados problemas, acreditou-se que os pontos
em comum entre as diferentes linhas teóricas pudessem beneficiar o sujeito na elaboração de seu
sofrimento.
Quanto aos encaminhamentos das crianças, esses foram dirigidos às linhas de orientação
psicodinâmica (individual ou em grupo), sistêmica (através da terapia familiar) ou avaliação
psicológica (processo a-teórico). Realizou-se, também, o trabalho terapêutico com grupos de
criança, sob o referencial teórico psicanalítico. De qualquer forma, Falceto (2008) indica o
envolvimento da família no trabalho com crianças em qualquer linha teórica ou abordagem
técnica.
Algumas das dificuldades encontradas em tais casos dificultaram o processo de triagem oferecido
pelo SINAPSI, como por exemplo, a ultrapassagem do valor definido como limite para
rendimentos mensais – característica irrelevante para as práticas do NUJUR, no entanto, critério
de inclusão/exclusão nas práticas do SINAPSI. O caráter de urgência implícito ou explícito nas
ações judiciais também dificultou o encaminhamento para dentro do próprio serviço, pois após a
triagem, a pessoa precisava retornar a outra lista de espera para iniciar atendimento.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estagiar em triagem psicológica durante o curto período de dez meses certamente não nos prepara
para a clínica como um método, muito menos para a psicoterapia como tecnologia (OLIVEIRA,
2011), mas de qualquer maneira, a aprendizagem do silêncio interno implícita no exercício da
escuta possibilitou repensar as expectativas pessoais das/os estagiárias/os em torno desse encontro
com as pessoas em sofrimento.
Estar em contato com uma pessoa que busca alívio para seu sofrimento é, certamente, ocupar um
lugar de poder nesta relação. Trata-se de um privilégio automático dado às pessoas que trabalham
na área da saúde, por acessar a fragilidade do ser humano em situação de dor e sua
vulnerabilidade aos cuidados “de quem sabe”. Espera-se, imediatamente, que as/os psicólogas/os
saibam o que se passa com quem as/os procura. Tal quadro também é sustentado por uma
representação social da profissão que reproduz o estigma da “ajuda”.
O serviço de triagem psicológica desenvolvido pelo grupo contribuiu no processo de
encaminhamento para as linhas de atendimento oferecidas pela clínica-escola. As pessoas
atendidas relatavam, em geral, uma leve melhora pelo simples fato de terem sido ouvidas com
atenção e respeito. A metodologia de trabalho do grupo permitiu a compreensão integrada do
sofrimento das pessoas e instrumentalizou a escolha pela abordagem que daria continuidade ao
processo psicoterapêutico. Ao confrontar idealizações pessoais com a realidade que se
apresentava, foi possível perceber o quanto nos sentimos vulneráveis frente ao sofrimento do
outro, e como esse sentimento desperta a necessidade de colaborar para sua redução,
principalmente quando acreditamos possuir os caminhos para fazê-lo. Aos poucos, foi-se
desconstruindo a ideia binária de colocar em prática os conhecimentos teóricos, conforme
percebíamos a impossibilidade de separação dessas instâncias. O trabalho com a “coisa mental”
ou “coisa subjetiva” (OLIVEIRA, 2011) exige esforços no sentido de aproximar as/os
profissionais de quem as/os procuram, compreendendo as relações de poder na técnica
psicoterapêutica e suas implicações clínicas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARLETTA, Janaína Bianca; FONSÊCA, Ana Lúcia Barreto da. Avaliação do processo supervisionado
como norteador de ensino de psicoterapia: reflexões sobre a vivência prática. Revista de Psicologia da
IMED, Passo Fundo, v. 4, n. 1, p. 671-680, 2012.
CARRASCO, Leanira Kesseli; PÖTTER, Juliana Rausch. Psicodiagnóstico: recurso de compreensão. In:
MACEDO, Mônica Medeiros Kother; CARRASCO, Leanira Kesseli. (Orgs.). (Con)textos de entrevista:
olhares diversos sobre a interação humana. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. p. 181-191.
CENCI, Cláudia Mara Bosetto; MENESES, María Piedad Rangel Meneses. Intervenção psicossocial:
estudo de um caso a partir da formação de psicólogos e as narrativas como meio de ação. In: CENCI,
Cláudia Mara Bosetto; MAURINA, Leda Rúbia Corbulim; WAGNER, Marcia Fortes. (Orgs.). Intervenções
da psicologia: transitando em diferentes contextos. Passo Fundo: IMED, 2009. p. 25-36.
CORDIOLI, Aristides Volpato; GOMES, Fabiano Alves. O diagnóstico do paciente e a escolha da
psicoterapia. In: CORDIOLI, Aristides Volpato. (Org.). Psicoterapias: abordagens atuais. Porto Alegre:
Artmed, 2008a. p. 85-102.
––––––. As condições do paciente e a escolha da psicoterapia. In: CORDIOLI, Aristides Volpato. (Org.).
Psicoterapias: abordagens atuais. Porto Alegre: Artmed, 2008b. p. 103-124.
FALCETO, Olga Garcia. Terapia de Família. In: CORDIOLI, Aristides Volpato. (Org.). Psicoterapias:
abordagens atuais. Porto Alegre: Artmed, 2008, p. 221-245.
LIMA, Nádia Laguárdia de. Atendimento às crianças na clínica-escola: desafios e possibilidades. In: REIS,
José Tiago dos; FRANCO, Vânia Carneiro. (Orgs.). Aprendizes da clínica – novos saberes psi. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 2007. p. 63-78.
MARQUES, Nádia. Entrevista de triagem: espaço de acolhimento, escuta e ajuda terapêutica. In:
MACEDO, Mônica Medeiros Kother; CARRASCO, Leanira Kesseli. (Orgs.). (Con)textos de entrevista:
olhares diversos sobre a interação humana. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. p. 161-180.
OCAMPO, María Luisa Siquier de; ARZENO, María Esther García. A entrevista inicial. In: OCAMPO,
María Luisa Siquier de; ARZENO, María Esther García; PICCOLO, Elza Grassano de. O processo
psicodiagnóstico e as técnicas projetivas. Tradução de Miriam Felzenszwalb. 11. ed. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. p. 16-46.
OLIVEIRA, Marcus Vinícius de. Mesa: A ação clínica e os espaços institucionais das políticas públicas:
desafios éticos e técnicos. In: CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). V Seminário Nacional
Psicologia e Políticas Públicas - Subjetividade, Cidadania e Políticas Públicas. Brasília: CFP, 2011. p. 85-
106.
TAVARES, Marcelo. A entrevista clínica. In: CUNHA, J. A. et al. Psicodiagnóstico-V. 5. ed. Porto Alegre:
Artmed, 2000. p. 45-56
TEIXEIRA, Egínia Lúcia Alves et al. Avaliação Psicológica da Criança: Triagem, uma Articulação
Assistência e Ensino no Ambulatório Bias Fortes do HC/UFMG. In: 2º Congresso Brasileiro de Extensão
Universitária, 2004, Belo Horizonte / MG. Anais do 2º Congresso Brasileiro de Extensão Universitária.
Disponível em: <https://www.ufmg.br/congrext/Saude/Saude46.pdf>. Acesso em: 30 maio 2014.
TOY, Eugene C.; KLAMEN, Debra. Casos Clínicos em Psiquiatria. 3. ed. Porto Alegre: AMGH Editora,
2011.
VASCONCELLOS, Maria José Esteves de. Pensamento Sistêmico: O novo paradigma da ciência. 9. ed.
Campinas: Papirus, 2012.
WERLANG, Blanca Guevara. Entrevista lúdica. In: CUNHA, J. A. et al. Psicodiagnóstico-V. 5. ed. Porto
Alegre: Artmed, 2000. p. 96-104

Você também pode gostar