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04/09/2020 O brincar e a análise do comportamento - Portal Comporte-se

O brincar e a análise do comportamento


Por Natalie Brito - 11 nov. 2011

Há algumas semanas fui convidada a ministrar uma aula sobre ludoterapia


comportamental. Foi surpresa para alguns alunos verem que nós, analistas do
comportamento, não trabalhamos com esse termo, ludoterapia. Isso ocorre porque o
lúdico é um recurso da terapia analítico comportamental infantil (TACI), e não o central.
Não obstante, o lúdico ocupa lugar de destaque nas áreas de pesquisa, aplicação e
estudo na grande área de análise do comportamento e crianças.
Entretanto, se disséssemos que o lúdico ou o brincar são repertórios restritos à crianças,
estaríamos inferindo algo falso. Ontem mesmo eu estava brincando de jogar a bola para
a minha cadelinha. Aliás, eu estava brincando? E ela, estava brincando também? Nesse
ponto, a definição do que é o comportamento de brincar já é trazida como problemática
por De Rose e Gil (2003). Estes autores afirmam que essa definição é controvertida na
psicologia e na análise do comportamento e argumentam que não se pode distinguir tais
comportamentos através de sua topografia. De fato, uma cadelinha que abana no
rabinho e apanha uma bola está brincando? E como pode ser definido o comportamento
de brincar na criança, também? Ele não pode ser caracterizado apenas por sua
topografia, como o sorriso, a excitação, etc; afinal, a criança também se anima e ri em
outros momentos.

Os autores ressaltam, no entanto, que os analistas do comportamento “não podem


negar que as crianças brincam” (DE ROSE & GIL, p.374) e afirmam que a maioria das
definições do comportamento de brincar “requerem que o comportamento seja tanto
espontâneo quanto prazeroso” (p.374). E apesar de afirmarem que tais termos são
vagos para os analistas do comportamento, arrisco formular duas primeiras assertivas
sobre o comportamento de brincar: 1) é um comportamento operante; e 2) possui
propriedades naturalmente reforçadoras.
Isso não quer dizer, é lógico, que todos os comportamentos operantes com propriedades
naturalmente reforçadoras são brincadeiras. Por exemplo, alimentar-se quando se está
com fome não é uma brincadeira. Mas como definir a brincadeira, então? Se não nos
perguntam o que é, sabemos imediatamente e podemos citar diversas delas: pega-pega,
esconde-esconde, apenas correr por um espaço aberto, “brincar de boneca”, “brincar de
carrinho”, soltar pipa etc. Mas… jogar videogame seria brincar? E um jogo de xadrez
entre adultos seria?
Afirmar que o comportamento de brincar é operante significa primordialmente dizer que,
parafraseando Skinner, ele é sensível às consequências que produz e selecionado por
elas. Nesse ponto, destacamos a importância de analisarmos o comportamento de
brincar como qualquer outro comportamento operante, sujeito às mesmas leis e
princípios gerais. Por outro lado, ao dizermos que possui propriedades naturalmente
reforçadoras remetemos ao efeito de prazer de uma consequência reforçadora produzida
pelo próprio comportamento. Ou seja, o brincar possui “em si” um efeito de prazer
naturalmente reforçador, o que leva a cunharmos o termo “espontaneidade” ao
descrevermos sua topografia.
No entanto, como já ficou claro, esses critérios parecem ser vagos para a caracterização
do brincar. Para esclarecer um aspecto importante do comportamento de brincar, Gil e
11
De Rose (2003) sugerem o conceito de cunha comportamental como uma classificação
de algumas Adoraríamos
classes de saber
comportamentos por favor, xcomo
o que achou,operantes, o brincar. Cunha
comente.
comportamental, ou behavioral cusps, é um termo cunhado por Rosales-Ruiz e Baer
(1997) e traduzido por De Rose e Gil (2003, p. 375) como “um tipo de classe
comportamental que expõe o indivíduo a novas contingências, as quais, por sua vez,

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abrem oportunidades para a aquisição de comportamentos novos e significantes que têm


efeitos em longo prazo sobre o desenvolvimento comportamental”.
Sendo assim, o brincar seria uma cunha comportamental, pois é uma classe de
comportamentos* que permite a aquisição de novos repertórios, com um efeito
significativo sobre o desenvolvimento. Imaginemos uma criança que está brincando com
uma casinha de bonecas, com outra criança. Ao brincar com a boneca, ela pode se expor
a contingências de: 1) interação com os bonecos da outra criança… adquirindo e
fortalecendo o repertório de interação; 2) vestir a boneca, arrumar o cabelo dela…
adquirindo e fortalecendo o repertório motor fino e de cuidados; 3) obedecer a prováveis
regras da brincadeira… criando ocasiões para fortalecer o comportamento de seguimento
de regras, dentre outros inúmeros repertórios que o comportamento de brincar de
bonecas pode facilitar a aquisição. Isso tudo além da aprendizagem do próprio
comportamento de brincar. E todas essas relações têm efeitos a longo prazo sobre o
desenvolvimento da criança.

A criança que imaginamos, no entanto, nem sempre soube brincar de bonecas. O próprio
comportamento de brincar é aprendido e envolve a aprendizagem de um repertório
mínimo (DE ROSE e GIL, 2003). O comportamento de brincar vai sendo também
aperfeiçoado à medida que a criança, inicialmente, segue modelos e gradualmente vai
modelando esse repertório. Podemos afirmar, então, que o comportamento de seguir
modelo (imitar) é um requisito geral para o brincar.
Partindo desses pressupostos para o entendimento do brincar, alguns autores têm
realizado pesquisas que envolvem esse comportamento como fundamental na interação
clínica. Del Prette e Meyer (2011), por exemplo, sugerem uma classificação do brincar na
terapia analítico-comportamental infantil que envolve desde o brincar em si, passando
pelo fantasiar, fazer exercícios ou diversas funções do conversar na terapia. As autoras
ainda afirmam que o brincar pode servir na terapia para construir uma relação
terapêutica saudável, como estratégia de avaliação ou como estratégia de intervenção.
Vimos, assim, ao longo deste texto, uma “pincelada” sobe como o brincar é
compreendido na análise do comportamento. Acrescento, tanto a partir dessas leituras,
quanto baseada em minha prática com crianças, que o comportamento de brincar é
central no entendimento e na aplicação de conhecimentos voltados para a infância. Não
raro, recebo uma criança na clínica que não gosta de brincar, ou até não sabe brincar!
Consciente da importância desse repertório para o desenvolvimento da criança, acredito
que um de nossos papéis éticos, como estudiosos de uma ciência, seja o de divulgar a
importância do brincar na nossa sociedade. Pensemos, por exemplo, na qualidade de
interação que nossas crianças constroem ao passar o dia assistindo à televisão, sem ter
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a rica oportunidade de brincar, ampliar e variar o repertório comportamental. Afinal,
Adoraríamos saber o que achou, porcom
favor, x
como disse Carlos Drummond de Andrade, “brincar crianças não é perder tempo, é
comente.
ganhá-lo; se é triste ver meninos sem escola, mais triste ainda é vê-los sentados
enfileirados em salas sem ar, com exercícios estéreis, sem valor para a formação do
homem”.
Referências (leituras recomendadas):
https://www.comportese.com/2011/11/o-brincar-e-a-analise-do-comportamento 2/3
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DE ROSE, J. C. C; GIL, M. S. C. A. Para uma análise do brincar e de sua função


educacional. Em.: BRANDÃO, M. Z. S. (org.). Sobre comportamento e cognição: a
história e os avanços, a seleção por conseqüências em ação. Vol. 11. Santo André:
ESETec, 2003, p. 373-382.
DEL PRETTE, G; MEYER, S.B. O brincar como ferramenta de avaliação e intervenção na
clínica analítico-comportamental infantil. Em: BORGES, N. B; CASSAS, F. A. Clínica
analítico-comportamental. Aspectos teóricos e práticos. Porto Alegre: Artmed, 2011. p.
239- 250.
* Classes de comportamentos são comportamentos que têm funções ou topografias
semelhantes.

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Natalie Brito
Mora em natal - RN e é Psicóloga no Instituto Federal do Rio Grande do Norte. Mestre em psicologia
pela UFC. Ministrou disciplinas de Análise do Comportamento na Faculdade Leão Sampaio durante 3
anos. Escreve sobre psicologia escolar e desenvolvimento humano.

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