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Marcelo Kimati Dias

– Organizador –

Dispositivos de atenção
em saúde mental
e seus desafios
Os impasses na consolidação
de uma atenção em rede
Marcelo Kimati Dias
– Organizador –
© 2013. Todos os direitos reservados a
APEC – Sociedade Potiguar de Educação e Cultura S.A.

Milton Camargo
PRESIDENTE
Profª. Sâmela Soraya Gomes de Oliveira
REITORA
Profª. Sandra Amaral de Araújo
PRÓ-REITORA ACADÊMICA
Profª. Valéria Credidio
DIRETORA DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES
Patrícia Gallo
Adriana Evangelista
EDITORA UNIVERSIDADE POTIGUAR – EdUnP
Jucilandia Braga Lopes Tomé
REVISÃO
Projeto Gráfico e Diagramação Dispositivos de atenção em
INFINITAIMAGEM
saúde mental e seus desafios
Nenhuma parte dessa obra pode ser reproduzida ou Os impasses na consolidação de
duplicada sem autorização expressa da APEC.
uma atenção em rede

D612 Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios : os


impasses na consolidação de uma atenção em rede / Marcelo Kimati Dias
(Organizador). – Natal: Edunp, 2013.
157p.

ISBN: 978-85-8257-003-6

1. Saúde mental. 2. Psiquiatria. 3. Serviços de saúde. I.


Dias, Marcelo Kimati.

RN/UnP/BCSF CDU 613.86

Editora afiliada á
Natal/RN
2013
Dedicado aos nossos filhos Ana
Gabriela, Lucas, Luiza, Marcela,
Maria Luiza, Mariana, Vinicius. Das
mais diversas idades, vividas no país
que procuramos construir.
Sumário

Introdução .....................................................................9

– CAPÍTULO I –
O UNIVERSO DE RELAÇÕES SOCIAIS RECONSTRUÍDO: A
ETNOGRAFIA DOS LIMITES INSTITUCIONAIS DE UM CAPS
Marcelo Kimati Dias ............................................................. 19

– CAPÍTULO II –
OS SERVIÇOS RESIDENCIAIS TERAPÊUTICOS E OS PRINCIPAIS
DESAFIOS AO PROCESSO DE DESINSTITUCIONALIZAÇÃO
Ana Karenina de Melo Arraes, Magda Dimenstein, Flávia
Helena Freire ....................................................................... 43

– CAPÍTULO III –
COMUNIDADES TERAPÊUTICAS:
QUAL O LUGAR POSSÍVEL NA REDE?
Marcelo Kimati Dias ............................................................. 69

– CAPÍTULO IV –
A SUPERVISÃO CLÍNICO-INSTITUCIONAL:
UM DISPOSITIVO TEÓRICO-PRÁTICO PARA O
FORTALECIMENTO DAS REDES EM SAÚDE MENTAL
Sabrina Helena Ferigato, Marcelo Kimati Dias ......................... 83

– CAPÍTULO V –
O APOIO MATRICIAL COMO DISPOSITIVO DE AMPLIAÇÃO
DAS PRÁTICAS CLÍNICAS NA ATENÇÃO BÁSICA
Ricardo Sparapan Pena, Sérgio Resende Carvalho ............. 103

– CAPÍTULO VI –
SAÚDE MENTAL E REDE: SUA ARTICULAÇÃO
DISCUTIDA EM UM ESTUDO DE CASO
Marcelo Kimati Dias, Joseane Vasconcellos de Freitas,
Carlos Alberto Pegolo da Gama ......................................... 139
Introdução
A orientação da política nacional de saúde mental vem
se consolidando como desdobramento da reforma psi-
quiátrica. Esse movimento foi inequívoco desde a se-
gunda metade da década de 1990; vários elementos
nos mostram o processo de adoção de diretrizes que
fortalecem uma rede de atenção substitutiva e comu-
nitária. Há anos mantém-se um ritmo de abertura de
serviços substitutivos (250 Centros de Atenção Psicos-
social – CAPS/ano em média) e de fechamento de leitos
em hospitais psiquiátricos (média aproximada de 1000
leitos/ano). Entretanto, o ano de 2011 aponta para de-
safios novos e para um forte movimento conservador
que atua no sentido de modificar as diretrizes dessa
política. Assistimos a uma mobilização inédita de for-
ças de diferentes origens (movimentos coorporativos,
religiosos, de associações) na defesa do financiamen-
to de instituições que promovem internações de longa
duração. Este movimento inclui ainda articulações que
expandem a possibilidade de hospitalizações compul-
sórias de usuários de drogas, o que aponta para um
grande retrocesso.
A consolidação da política de atenção em saúde men-
tal ocorre em diferentes vertentes. Nos últimos anos,
os referenciais para a constituição e expansão de uma
rede substitutiva partiram de reflexões desenvolvidas a
partir de experiências nacionais bem sucedidas, o que
dá consistência à elaboração de novas estratégias. No
campo de incorporação de tecnologias leves, os con- 9
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Introdução
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

ceitos de clínica ampliada e os princípios da humaniza- de movimentos coorporativos, entre outras. Essa rea-
ção são, progressivamente, mais agregados à saúde lidade pressiona o movimento da Reforma Psiquiátri-
mental, o que aponta caminhos na definição do proces- ca, que vem entendendo como estratégia de enfrenta-
so e relações de trabalho institucionais e especialmente mento a consolidação do modelo de atenção a partir
fortalece a ideia de atenção em rede. Esta última con- de seu aprimoramento.
cepção implica num inestimável avanço em relação à
Dentro desse contexto, a política assistencial para usu-
centralidade excessiva e isoladora dos CAPS, conceito
ários de álcool e drogas avançou, particularmente, no
que vem demonstrando sinais de desgaste. A noção
último biênio. Desde o Plano de Enfrentamento ao Cra-
de rede envolve não apenas serviços articulados, mas
ck, em 2009, o Ministério da Saúde adotou diferentes
usuários, trabalhadores, recursos comunitários e gesto-
dispositivos institucionais, diversificando suas ofertas
res, que atuam de forma coordenada, corresponsável e
a partir de experiências exitosas em diversos municí-
solidária. A incorporação de referenciais da clínica am-
pios do país. Esse foi o caso das Casas de Acolhimento
pliada e da política de humanização do Sistema Único
Transitório, desenvolvidas, especialmente, a partir de
de Saúde (SUS) fortalece, ainda, a utilização ampla e uma experiência bem sucedida em Recife. Esses dis-
consistente de conceitos operacionais, como o de terri- positivos, como exemplos de ações de fortalecimento
tório, equipe de referência, projeto terapêutico singular, da rede, foram financiados pelo governo federal, em
horizontalidade das relações entre serviços, composi- forma de edital, no sentido de preencher uma lacuna
ção coletiva da gestão entre outros. assistencial de abrigamento para usuários de drogas
Em um campo teórico, temos hoje linhas consistentes em tratamento. Ainda com relação ao álcool e outras
de avaliação dos serviços de saúde mental, apontan- drogas, no último biênio, mais modalidades de serviços
do suas contradições e deficiências. Ao longo dos úl- tiveram sua adoção estimulada por municípios, como
timos 15 anos, a produção de conhecimento na área os CAPS ad III, os consultórios de rua, os leitos de aten-
aumentou sua abrangência, ultrapassando relatos de ção integral em hospital geral.
experiência, definição conceitual do campo da saúde Essas iniciativas no campo de álcool e outras drogas
mental para desenvolver métodos de avaliação con- apontam para o fortalecimento de uma política de di-
sistentes e, em alguns casos, reprodutíveis em diferen- versificação de ofertas e para uma diretriz que descen-
tes realidades. Existe um extenso número de pesqui- traliza as ações de cuidado. Nessa direção, a diversi-
sadores no campo, retratando, analisando e avaliando ficação de ofertas multiplica as ferramentas a serem
o processo da reforma em todo o país, o que torna utilizadas na formulação de projetos terapêuticos sin-
possível ultrapassarmos as poucas experiências em- gulares e fortalece a noção da rede de atenção como
blemáticas da década de 1990. espaço de cuidado.
Esse cenário se desenha num contexto em que outras Formalizar a atenção em rede, por outro lado, dá a
importantes questões se colocam: aumento da preva- esse sistema uma grande complexidade técnica e de-
lência do uso de crack, pressão política das comuni- safios operacionais no seu dia a dia. A não centralida-
dades terapêuticas por financiamento do SUS, movi-
10 mentos de terceirização de ações e gestão, pressão
de das ações de cuidado nos CAPS e a incorporação
do programa de saúde da família como um dispositivo 11
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Introdução
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

de atenção em saúde mental demandam, por exem- safios encontram-se no caminho da superação de uma
plo, que profissionais de saúde mental rompam com mentalidade hegemônica, que fragmenta a rede em
uma lógica histórica de isolamento. Esse momento dispositivos engessados e promove vínculos burocráti-
exige uma ampliação do número de interlocutores na cos entre os serviços.
saúde mental e a criação de um idioma comum às
diferentes equipes. As dificuldades decorrentes da mudança do modelo
assistencial têm como reflexo o frequente resgate de
Essa complexidade de atenção em rede se estende práticas anacrônicas de cuidado. O anacronismo pro-
para sua gestão e regulação. Alguns dispositivos e prá- move, frequentemente, situações contraditórias: dispo-
ticas de articulação dão coesão ao sistema, especial- sitivos desenvolvidos no âmbito da reforma psiquiátrica
mente em grandes cidades, onde esta tende a ser mais que operam numa lógica manicomial. Esta publicação
complexa. Esse é o caso do Serviço de Atendimento procura abordar exemplos nesse sentido: redes de
Móvel de Urgência (SAMU) e das centrais municipais atenção cujos fluxos são definidos por diagnósticos
de regulação de acesso a vagas em hospitais psiquiá- médicos; CAPS que institucionalizam fortemente seus
tricos, quando desenvolvem práticas voltadas ao forta- usuários. Neste livro, citaremos, assim, alguns pontos
lecimento da rede de saúde mental. Da mesma forma, que retratam essas dificuldades na efetivação da aten-
as ações de matriciamento constituem práticas de in- ção em saúde mental numa lógica de rede de atenção.
tegração e promoção de integralidade ao cuidado de A seguir, são listados alguns temas que são transver-
usuários da rede. Superar a centralidade, criar disposi- sais a mais de um capítulo do livro.
tivos de integração e fomentar práticas de compartilha-
mento do cuidado são, hoje, os maiores desafios para a 1. Papel dos serviços – a noção de atenção em rede
constituição de um cuidado efetivamente em rede. procura superar uma delimitação excessiva do papel
dos serviços de saúde mental. Da necessidade de es-
Alguns elementos favorecem o desenvolvimento de pecificar essas funções, decorre a noção de “usuário
ações em rede, mesmo no âmbito da complexidade com perfil para o serviço”. Os dispositivos de atenção
que constitui essa prática. Da mesma forma, há desa- em saúde mental, como os CAPS e os Leitos de Aten-
fios comuns a toda mudança de paradigma. Por um ção Integral, têm um campo de ofertas específicas a
lado, existe uma coesão nos referenciais teóricos que eles. Entretanto, essas ofertas não definem, necessa-
norteiam o funcionamento da rede de atenção, que se riamente, quais são os usuários que devem utilizá-las, o
sustentam, ainda, em uma literatura ampla de concei- que é definido num projeto construído junto com usuá-
tos operacionais, como território e projetos terapêuticos rios e familiares a partir das demandas identificadas por
singulares. Por outro lado, toda mudança de modelo uma equipe. Nesse projeto, ainda é definido o papel do
implica a transformação das práticas institucionais e da procedimento. Um leito de atenção integral em hospital
relação entre os serviços. A noção de rede de aten- geral pode ser utilizado, por exemplo, como um leito
ção rompe com uma lógica gerencial que hierarquiza de apoio para a equipe do CAPS. A equipe do serviço,
as relações entre serviços e trabalhadores. Com essa por sua vez, pode entender o recurso como apropriado
ruptura, busca flexibilizar o papel das instituições em para ações de redução de danos, atenção à crise ou
12 função das demandas de seus usuários. Diversos de- como estratégia de reorganização do cotidiano de um 13
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Introdução
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

usuário do serviço. Um mesmo procedimento, interna- rotinas para seus usuários, suprimem sua identidade
ção em leito hospitalar, no caso, pode adquirir diferen- e subjetividade. Essas instituições, as comunidades
tes significados a partir do papel atribuído num projeto. terapêuticas, têm, em seu projeto, rotinas estereotipa-
O que norteia um serviço não é o projeto institucional, das, frequentemente de orientação religiosa, incluin-
mas as necessidades identificadas pela rede de aten- do longos períodos de isolamento social e formas de
ção. Outro efeito da definição excessiva do papel dos agenciar usuários na lógica institucional, fazendo com
serviços de saúde é a percepção de que o sofrimento que eles permaneçam vinculados à comunidade de
mental tem um lócus específico para se manifestar. Isso forma definitiva. Esse resgate aponta à contradição de
aparece nos ambulatórios de psiquiatria, nos hospitais desenvolver-se uma política de atenção que esvazia a
psiquiátricos e, atualmente, em muitos CAPS, que têm noção de rede, uma vez que aponta para uma institui-
dificuldades em criar projetos de reinserção de seus ção que a substitui.
usuários na comunidade onde vivem.
4. Dispositivos de qualificação das práticas institu-
2. Centralidade dos CAPS – Não há porque, dentro da cionais – a maior parte dos processos de supervisão
lógica de rede, definir, a priori, qual é o dispositivo or- clínico-institucionais em saúde mental desenvolvida
denador do cuidado. As equipes de referência podem nos CAPS está voltada para a discussão das práti-
mudar de acordo com o projeto terapêutico, o que flexi- cas internas ao serviço. Frequentemente, a supervisão
biliza o papel dos serviços. A integralidade é garantida aprimora o processo de trabalho e as dinâmicas entre
e as ações de cuidado são promovidas pela articulação trabalhadores e usuários. A relação do CAPS com a
entre os serviços. Essa interação é norteada, por sua atenção básica, assim como as ações de matriciamen-
vez, por projetos terapêuticos que colocam a singulari- to, é vista como parte dessas práticas, a partir da pers-
dade num lugar privilegiado, o que demanda flexibilida- pectiva interna ao serviço, e não da rede de atenção. É
de das ações de cada instituição. Nesse cenário, não necessário que o dispositivo de supervisão respeite a
faz sentido a discussão principista de qual a porta de mesma lógica de promover a integração dos serviços,
entrada da saúde mental. Se há articulação dos servi- de sua articulação e flexibilização de sua rotina. As
ços dentro do princípio de rede, o espaço institucional últimas propostas de supervisão clínico institucionais,
pelo qual o usuário entra no sistema não o retém, mas financiadas por editais do Ministério da Saúde, estão
inicia um diálogo no sentido de integrar diferentes ofer- voltadas neste sentido.
tas. Se um usuário tem como referência a equipe da
atenção primária, isso não impossibilita que seu proje- 5. Classificações médicas como definidoras do papel
to terapêutico incorpore práticas num CAPS. Também dos serviços – a persistência de referenciais médico-
não impede que um projeto terapêutico possa mudar a -centrados e a concepção do sistema de saúde como
equipe de referência. um conjunto de serviços desagregados permitem que
os fluxos entre os serviços do sistema sejam norteados
3. Propostas que resgatam instituições totais – nos por diagnósticos psiquiátricos. Assim, são atribuídos
dois últimos anos, assistimos um forte movimento de aos CAPS os pacientes psicóticos, à atenção básica
resgate da centralidade da atenção a usuários de ál- os quadros “leves” e aos hospitais as “urgências”. Essa
14 cool e drogas em instituições totais que determinam forma de definir o funcionamento da rede rompe com a 15
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Introdução
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

lógica necessária de entender o sistema segundo refe- Alguns dos temas apontam para questões que vão além
renciais que respeitem a complexidade da articulação do caráter assistencial e de gestão. Esse é o caso das
dos serviços, as singularidades, os sujeitos. comunidades terapêuticas, que vêm sendo amplamen-
te incorporadas às redes de atenção em saúde e assis-
Esta publicação está voltada para produzir uma refle- tência sem que tenhamos nos apropriado, francamente,
xão acerca desses desafios que constituem, em parte, dos impactos e das contradições implícitas nisso. Essa
reflexo de um processo de transição incompleto. Pro- discussão tem uma interface política que é atualizada
curamos promover uma coletânea de textos que apon- constantemente, fazendo com que as abordagens ten-
tam dificuldades, no atual momento, de efetivação da dam a ser datadas.
reforma da assistência em saúde mental no país. Tex-
tos que focam, especialmente, a grande complexida-
de da criação de formas de articulação da rede e as Os capítulos
dificuldades que nossos dispositivos encontram nesta
composição. Como coletânea, a obra implica uma não No Capítulo I, são abordados aspectos relativos à
uniformidade: encontramos algumas experiências de institucionalização ocorrida em CAPS, disparador da
gestão, alguns produtos de pesquisa e, ainda, textos concepção da necessidade de se estabelecer uma
de natureza ensaística. atenção efetivamente em rede. Este texto foi elabora-
do com referência nos dados de meu doutorado em
Não existe a pretensão de retratar todos os impasses ciências sociais.
que a atual política vive no momento. Nem abordarmos
impasses referentes a todos os dispositivos de atenção. O Capítulo II aborda as residências terapêuticas, cuja
Percebe-se, por exemplo, que o tema de álcool e outras expansão vem encontrando dificuldades no que con-
drogas não é abordado em toda sua relevância, ficando cerne à complexidade dos moradores de hospital psi-
restrito, apenas, a um capítulo sobre as comunidades quiátrico, à dificuldade em operacionalizar os princípios
terapêuticas. Da mesma forma, entendemos que outros do dispositivo e ao mau financiamento das residências.
campos de tensão são atuais e vão além da constitui- A seguir, no Capítulo III, discutimos a incorporação de
ção e qualificação da rede de atenção e dos seus dis- leitos de comunidades terapêuticas no Sistema Único
positivos. Como exemplo, podemos citar a dificuldade de Saúde. Procuramos retratar o cenário político dessa
de discussão da inserção mais efetiva dos movimentos incorporação, a partir da experiência do autor, quando
sociais na política atual de saúde e nas instâncias de consultor do Ministério da Saúde.
controle social. Da mesma forma, devem entrar em pau-
ta estratégias de qualificação da gestão, os movimen- O Capítulo IV trata de supervisão clínico-institucional
tos coorporativos na área de saúde, e os movimentos em saúde mental, especialmente dentro da perspecti-
políticos contrários ao andamento da reforma. O foco va atual de supervisão em rede. Essa concepção vem
sobre serviços e sua articulação, dessa forma, constitui sendo desenvolvida nos últimos editais de financiamen-
uma temática que não esgota as questões do momen- to de supervisão e sua prática permite a criação de idio-
to, mas aponta para desafios muito atuais, que deman- mas de interlocução comuns a toda a rede, articulado à
16 dam saídas que respeitem sua complexidade. operacionalização de projetos terapêuticos. 17
O Capítulo V trata do apoio matricial, a partir de uma ex-
periência em Campinas, SP. Ao final, o capítulo procura
discutir um limite comum nos dispositivos de articula-
ção de rede.
No Capítulo VI, realizamos uma discussão, também a
partir de um estudo de caso, que foi uma experiência
em Amparo, interior de SP, acerca das dificuldades de
composição da atenção em rede.
Finalmente, é importante salientar o aspecto pragmá-
tico desta publicação. Os temas foram abordados por
contradições que se repetem em diversas redes, o que
pode ser observado em municípios que atuei em pe-
ríodo que era consultor do Ministério da Saúde. A pu-
blicação marca também uma possibilidade de agregar
importantes parceiros de trabalho, de Natal, São Paulo,
Salvador, Brasília e Campinas. A todos eles, sou muito
– CAPÍTULO I –
grato, por compartilharem de suas experiências nesses O UNIVERSO DE RELAÇÕES SOCIAIS
municípios e por se adequarem aos prazos apertados
desta modesta publicação.
RECONSTRUÍDO: A ETNOGRAFIA DOS
LIMITES INSTITUCIONAIS DE UM CAPS
Marcelo Kimati Dias
Um dos pontos atuais de crítica à reforma da atenção
em saúde mental no país diz respeito a um suposto
processo de institucionalização de usuários dos Cen-
tros de Atenção Psicossocial (CAPS). Esse decorreria
de uma centralidade excessiva que esses dispositivos
teriam adquirido ao longo da constituição da rede subs-
titutiva aos hospitais psiquiátricos. O aspecto contradi-
tório desse processo ocorrido nos CAPS decorre, entre
outros motivos, do fato da crítica à institucionalização
ocorrida nos hospitais psiquiátricos ser um dos eixos
centrais da reforma psiquiátrica. Na medida em que a
rede de atenção substitutiva ao hospital psiquiátrico é
pensada a partir de uma crítica aos processos de ins-
titucionalização, espera-se que os centros de atenção
psicossocial não reproduzam os processos descritos
nos hospitais. Esses implicam uma grande restrição
quanto às relações sociais de seus usuários em decor-
rência da normatização e da estereotipia do cotidiano.

Processos como perda da identidade social, das no-


Marcelo Kimati Dias ções de troca e dos vínculos familiares foram descritos
É médico psiquiatra, doutor em ciências sociais pela UNICAMP, militante da desde a década de 1960 por autores como Goffman
Reforma Psiquiátrica e Sanitária. Atua na área degestão em saúde mental, (1999) e Szasz (1978). As perdas, de ordem da sociabi-
tendo participado de processos de implantação de serviços substitutivos em lidade, liberdade e cidadania, ocorridas nas instituições
saúde mental em Teresina, Natal, Caicó, João Pessoa, Recife e campinas.
psiquiátricas e denunciadas no âmbito da reforma psi-
Atuou como assessor técnico no ministério da Saúde e foi professor na
Universidade Potiguar, em Natal, entre 2010 e 2012 e atuou junto ao Núcleo de quiátrica, serviram, também, como referências para a
construção de um modelo de atenção de caráter comu-
Estudos em Saúde Coletiva na UFRN no ano de 2012. Atualmente é diretor de
Atenção de Redes na Secretaria Municipal de Saúde em Curitiba, no Paraná. nitário. Nesse processo, os CAPS, com forte inserção 21
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O universo de relações sociais reconstruído:
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede A etnografia dos limites institucionais de um caps

no território de referência e substitutivas ao hospital psi- mento diário das atividades do serviço, assim como
quiátrico, ocupam, hoje, um papel central e estratégico. das reuniões de equipe, atividades em grupo e entre-
Eles têm, ainda, como característica, a articulação das vistas com trabalhadores e pacientes da instituição. A
ações de saúde em sua área de referência apoiando etnografia, como método simultaneamente descritivo e
as ações na área em outras unidades de saúde, consti- analítico, permitiu que fossem apreendidas as relações
tuindo o ordenador de uma rede de atenção em saúde entre profissionais e pacientes, as representações mo-
mental. O rápido crescimento do número de unidades bilizadas para isso e a construção de categorias so-
no país – mais de 1600 unidades em 2010 – mostra ciais no interior da instituição. No estudo, foram utili-
o caráter estratégico da instituição na reformulação da zadas informações obtidas a partir de documentos de
saúde mental no país. implantação e regulamentação, além da observação
etnográfica propriamente dita. Nesta, foram descritas
Com o aumento do número de CAPS no país e o ama- as categorias, representações e redes de relações
durecimento do processo da reforma psiquiátrica, exis- sociais. Ainda que o estudo de caso apresente limita-
te um debate acerca da avaliação dos serviços de saú- ções em relação à sua capacidade de generalização,
de oferecidos nessas instituições. A literatura aponta o campo da etnografia foi uma instituição com práticas
para um importante avanço dos CAPS, no sentido de e rotinas terapêuticas instituídas e praticadas em dife-
superação de regimes de hierarquia e democratização rentes CAPS em um nível nacional.
das relações em seu interior, assim como o desenvol-
vimento de ações articuladas com o território, como
estratégia de desenvolver ações de inserção em co- O campo de estudo e a
munidade de usuários do serviço. A ressocialização rotina institucional
e o envolvimento da comunidade com o processo im-
plicam, por um lado, na criação de espaços de inter- O estudo foi desenvolvido no Município de Pedreira,
locução entre instituição e comunidade e, por outro, com população de 35.219 (IBGE, 2009), localizada no
implicam no envolvimento das equipes no processo. interior do Estado de São Paulo. A rede de atenção no
Há evidências de que o referencial reproduzido insti- município era constituída, além do CAPS I estudado,
tucionalmente entre trabalhadores é bastante hetero- por 07 unidades, sendo 03 unidades básicas de saúde,
gêneo (CAMPOS, 2003), sendo que, algumas vezes, 01 centro de saúde central e duas unidades de saúde
aproxima-se de concepções representativas do mode- da família. Os pacientes chegavam ao CAPS através de
lo psiquiátrico tradicional (LEÃO, 2008). um ambulatório de psiquiatria. Os usuários deste am-
bulatório vinham, por sua vez, por encaminhamento da
Este capítulo procura, através do estudo dos limites atenção básica ou por procura espontânea.
institucionais externos, discutir a inserção social dos
usuários da instituição. E, a partir do estudo dos limites O CAPS de Pedreira havia sido implantado em 1995
internos, discutir os referenciais que definem as rela- e credenciado em 2002. A instituição já havia tido ou-
ções sociais no interior de um CAPS. O método es- tras sedes antes de estar situada no local do estudo.
colhido para esta investigação foi a etnografia de um Situado próximo ao centro, o CAPS ocupava um edifício
22 CAPS, realizada ao longo de 2003 com o acompanha- amplo e adaptado, em um local onde, antes, funcionava 23
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O universo de relações sociais reconstruído:
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede A etnografia dos limites institucionais de um caps

o centro de cultura do município. Havia uma divisória in- lizada tanto por pacientes quanto por não pacientes.
terna, que fazia com que o edifício fosse constituído por Os pacientes diferenciavam os funcionários de nível se-
dois espaços totalmente isolados. Em um deles, estava cundário daqueles de nível universitário. Esses últimos
o ambulatório de psicologia e psiquiatria do município eram separados, pelos pacientes, em médicos e não
e, no outro, estava o CAPS. Trabalhavam lá, na oca- médicos. Essa diferenciação, entretanto, não ocorria
sião do estudo etnográfico, 02 médicos psiquiatras, 02 entre os não pacientes, que consideravam, formalmen-
terapeutas ocupacionais, 02 psicólogas, 01 técnica de te, os médicos dentro da categoria de técnicos e os
enfermagem, 01 auxiliar de limpeza e 01 monitora de funcionários como equipe de apoio.
terapia ocupacional. Profissionais de nível universitário referiam-se ao pró-
Havia uma rotina no serviço: o CAPS de Pedreira esta- prio grupo como equipe e cada membro como técnico.
va aberto entre 8 horas da manhã e 5 da tarde; servia Profissionais de nível médio referiam-se aos pacientes
café da manhã, almoço e lanche da tarde para seus como pacientes e não como usuários. Existia, no en-
usuários. Os pacientes eram inseridos em três diferen- tanto, um esforço, por parte dos profissionais de nível
tes modalidades de tratamento: não-intensivo, intensivo universitário, para que o termo paciente fosse suprimido
e semi-intensivo. De acordo com essas categorias, os pelos profissionais de nível secundário. Segundo uma
terapeuta ocupacional, o termo usuário não faz referên-
pacientes iam à instituição todos os dias, ou uma vez
cia à doença, o que evitaria uma relação de diferença
por semana, ou, ainda, mensalmente para atividades
e possível hierarquia. Ao contrário, usuário implicava
terapêuticas. O regime intensivo, do qual participavam
apenas na utilização de um serviço público, de acesso
entre 20 e 30 pacientes no momento do estudo, era vol-
universal. Assim, teoricamente, qualquer técnico pode-
tado, principalmente, para pacientes considerados mais
ria tornar-se usuário.
graves: faziam parte de grupos familiares mais frágeis,
tinham quadros clínicos graves ou passavam por perí- Ainda que houvesse uma preocupação na superação
odos de piora clínica. A maior parte dos usuários em de desigualdades com base nessa categorização,
regime intensivo e, muitas vezes, pacientes considera- ela se mostrava insuficiente no dia a dia institucional,
dos graves em regime semi-intensivo eram levados ao quando as rotinas diferenciavam claramente pacientes
CAPS por uma perua que os buscava em suas casas. dos não pacientes. Assim, apesar dos esforços dos
Esses pacientes eram, na maioria das vezes, também técnicos, os dados empíricos apontaram para a cate-
levados de volta a suas casas após o lanche da tarde gorização entre pacientes e trabalhadores ou funcio-
em horário próximo ao fechamento do CAPS. nários como a mais apropriada para a descrição da
rotina institucional.

Limites internos Profissionais de nível universitário e nível médio diferen-


ciavam os pacientes em três categorias institucionais:
Tanto os funcionários quanto os pacientes que frequen- intensivos, semi-intensivos e não – intensivos. A partir
tavam o CAPS identificavam-se a partir de categorias de então, os pacientes eram classificados em relação a
de referência. As mais abrangentes diferenciavam pa-
24 cientes de não pacientes. Essa diferenciação era uti-
alguns atributos considerados relevantes ao tratamento.
Assim, para os pacientes, não havia distinção entre os 25
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O universo de relações sociais reconstruído:
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede A etnografia dos limites institucionais de um caps

não pacientes de duas equipes, sendo uma técnica e te, os profissionais contavam sobre pressões que rece-
outra de apoio. Também eram preservadas as caracte- beram, de diferentes secretários de saúde, para interna-
rísticas relacionadas à formação técnica dos trabalha- ção em anos que precederam ao trabalho de campo.
dores de nível universitário. Não tinha sentido para os
pacientes os termos intensivo, semi ou não-intensivo. A noção de que as decisões tomadas em equipe eram
Entretanto, para os pacientes, o gênero era muito im- democráticas inspira outra contraposição – o antago-
portante, uma vez que definia as atividades das quais nismo entre o CAPS e o Hospital Psiquiátrico. Fátima,
eles fariam parte e, consequentemente, o grupo social terapeuta ocupacional, trabalhou durante vários anos
que iriam ter como referência. Esse contraste demons- em um sanatório de uma cidade próxima. Segundo
tra não só uma diferença no sistema de referências e de contava: “tinha uma reunião de sexta-feira, em que só o
categorias sociais, mas, também, que a instituição pro- diretor clínico falava. Algumas vezes, alguém fazia uma
movia duas posições diversas, o que permitia olhares proposta mais inovadora, mas ela nunca era adotada.
diversos do cotidiano. O contraste implicava, por sua Sempre diziam que a administração não permitia”. A
vez, em diferentes papéis institucionais, procedimentos noção de equipe procurava quebrar a hierarquia entre
e rotinas diárias. profissionais, na qual, o psiquiatra liderava e delibera-
va acerca do tratamento. Assim, o conceito de equipe
A categoria de equipe era, particularmente, ilustra-
tiva dos recortes internos à instituição. Equipe ultra- fortalecia a identidade do CAPS como instituição por
passava a noção de um grupo técnico envolvido em oposição ao hospital psiquiátrico, o que aproximava o
procedimentos terapêuticos: o termo se referia a uma conceito da própria reforma psiquiátrica, caracterizan-
entidade funcional, que legitimava as práticas institu- do-a como ideologia institucional.
cionais e caracterizava toda a operacionalidade do
A noção de equipe pressupunha, finalmente, uma ca-
CAPS. Não parecia haver uma definição, por parte
pacidade de autogestão do grupo. Segundo os traba-
dos técnicos, sobre o significado de “equipe”. O ter-
lhadores entrevistados, os conflitos relacionados aos
mo era definido em termos de unidade, companheiris-
membros da equipe eram resolvidos entre eles, durante
mo (segundo a coordenadora, “é impossível trabalhar
as reuniões, e não eram levados nem para a secretaria
bem em equipe sem uma relação próxima e afetiva
com os demais”) e solidariedade. de saúde e nem para os pacientes.

A noção de equipe parecia estabelecer-se por contrapo- Para que deliberações provenientes do grupo de trata-
sição. Os profissionais do CAPS trabalhavam num mo- dores produzissem autoridade entre as duas categorias,
delo antagônico a várias forças. Alguns dos princípios usuários e técnicos, era necessário que as decisões
da instituição se contrapunham aos desejos de familia- ocorressem mediante consenso. Ainda que o consenso
res de usuários, ao poder local e, algumas vezes, aos não fosse destituído de conflitos e contradições entre
próprios usuários. Essa contraposição implicava negar os tratadores, esses não eram expostos fora do grupo.
solicitações de internação psiquiátricas, feitas por fami- A noção de equipe servia, simultaneamente, como ins-
liares de paciente, e assumir um papel substituto aos tância deliberativa de oposição, de coesão institucional
26 cuidados que eram atribuídas à família. Frequentemen- e de homogeneidade do discurso. 27
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O universo de relações sociais reconstruído:
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede A etnografia dos limites institucionais de um caps

A rotina do CAPS estabelecia algumas situações ri- Entretanto, outras fronteiras entre pacientes e não pa-
tualizadas, nas quais, o limite entre as categorias de cientes eram mais frágeis, especialmente aquelas re-
usuário/funcionário era explícito. Um exemplo desta lativas à sexualidade. Segundo uma das psicólogas,
reprodução de limites era a administração de medi- existia uma dificuldade em lidar com questões relacio-
cações. Dentro da rotina do CAPS, usuários tomavam nadas à sexualidade, porque havia pouca experiência
medicamentos prescritos durante a permanência na da equipe. Se as relações amorosas ocorridas entre os
instituição. Controlar a medicação era um atributo da usuários não eram bem administradas, o tema tornava-
terapia ocupacional “como não temos enfermeira na -se mais incômodo quando envolvia atitudes dos usu-
maior parte do tempo, temos que fazer isso nós mes- ários em direção às trabalhadoras do CAPS. Invariavel-
mas”, dizia uma das terapeutas ocupacionais. Uma ou mente, a abordagem de usuário em direção às técnicas
duas vezes por semana, uma delas se fechava, duran- proporcionava mal estar. Um dos exemplos era o de
te a tarde, em uma das salas e preparava “saquinhos”,
Armando, usuário que não frequentava o CAPS por ter,
com medicação preparada do que deveria ser tomado
segundo os técnicos, um “problema neurológico” nas
à noite ou durante o final de semana. Disse uma de-
pernas e passava a maior parte do tempo em casa, em
las: “isto é feito quando o usuário está tomando errado
seu quarto, com medo de bruxaria, protegendo-se das
ou quando ele toma vários comprimidos de uma vez
só, o que é perigoso para ele. Na maioria das vezes, pessoas que queriam o seu mal.
chamamos a família e explicamos: olha, tem que tomar Ao contrário do habitual, as visitas a Armando eram ra-
assim, mas, muitas vezes, as famílias não entendem e ras e seu tratamento resumia-se à tomada de medica-
a gente tem que fazer saquinho. É difícil parar de fazer ções que sua mãe pegava. Havia pouco investimento
saquinho. Não tem uma programação – vamos fazer no tratamento dele. Por um lado, sua pouca resposta às
saquinho por um mês, por exemplo,”. medicações parecia desanimar os tratadores. Por ou-
Nos prontuários, não havia anotações médicas, que tro lado, sua impossibilidade física não permitia que ele
definissem quais eram os usuários que deveriam fa- ficasse agitado, ou agredisse. Entretanto, tanto Arman-
zer uso de medicação de forma monitorizada. Eram os do quanto sua mãe eram citados com irritação. Duas
psicólogos e as terapeutas ocupacionais que definiam técnicas contavam que já haviam sido abordadas por
quando o usuário tinha ou não capacidade de contro- Armando. Uma delas, Fátima, fazia visitas domiciliares
lar a própria medicação. a casa dele com frequência bimestral. Após algumas
semanas, disse Fátima, “ele falava que queria casar
A tomada de medicações ocorria de tarde. Às 14 ho- comigo, achava que eu ia a sua casa porque gostava
ras, um dos técnicos, normalmente uma das terapeu- dele. Isto não era o pior: sua mãe achava uma boa ideia
tas ocupacionais, avisava aos demais que iria dar os o filho namorar uma funcionária do CAPS e chegou a
remédios. Ia até o armário, abria os potes, separava as falar comigo se eu não estava interessada nele. Eu parei
medicações e distribuía, abordando usuário por usuá- de ir lá”. O caso de Nana, psicóloga, era semelhante.
rio. Alguns procuravam os profissionais e lembravam “é Havia uma postura de exclusão passiva de Armando do
hora do meu remédio”. Procedimentos como este per- serviço, verificada mais de uma vez, ainda que informal-

28 meavam o cotidiano institucional e, com isso, reprodu-


ziam as categorias sociais acima descritas.
mente, quando o usuário tinha um comportamento que
constrangia a equipe, predominantemente, feminina. 29
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O universo de relações sociais reconstruído:
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede A etnografia dos limites institucionais de um caps

Outro exemplo de postura semelhante era a de Edu- tos de um mesmo usuário. Nos casos descritos, o com-
ardo, paciente com diagnóstico de esquizofrenia, se- portamento dos pacientes não era interpretado como
gundo o prontuário, e que se envolvera com diversas um sintoma a ser tratado, mas como parte da pessoa
pacientes do CAPS. Todas elas foram unânimes em do paciente. Nesses casos, a sexualidade tornava-se
apontá-lo como um homem “ruim, que só pensa em semelhante a de não pacientes, o que, potencialmente,
sexo, que fala um monte de mentiras e depois manda a aproximava as duas categorias. E, desta forma, cria-
gente embora”. Eduardo tinha, efetivamente, uma pos- va um espaço de perigo, que aproximava técnicos e
tura sedutora com usuárias e com membros da equipe. usuários, no qual, as categorias sociais do CAPS não
Após abordar algumas das técnicas, fazendo telefone- interferiam apropriadamente.
mas fora dos períodos de tratamento, a equipe decidiu
Da mesma forma, o modelo de relações sociais na ins-
em não insistir para que comparecesse ao CAPS, com
tituição permitia que as categorias sociais formais fos-
o risco de serem mal interpretadas.
sem utilizadas simultaneamente a categorias utilizadas
No período do estudo, Eduardo ia raramente ao CAPS fora da instituição. Este sistema de diferentes referen-
e dizia ser um paciente muito antigo e que ajudara a ciais tornava possível que um usuário psicótico fosse
fundar o serviço, mas que não tinha o respeito e o re- visto também como um homem sem vergonha, como
conhecimento da equipe. Em uma dessas visitas, ao Eduardo já havia sido chamado. É importante notar que
essa multiplicidade de referenciais permitia que o siste-
entrar no espaço do CAPS, encostou-se na parede
ma de categorias sociais que opunha técnico a usuário
que ficava à frente do consultório, de pé, observan-
fosse descartado quando insuficiente para estabelecer
do pacientes e funcionários que passavam pelo cor-
limites internos na instituição.
redor. Acompanhava com a cabeça o movimento do
ambiente, visivelmente interessado em uma das usu-
árias que também esperava por atendimento médico. Limites externos
Após, aproximadamente, meia hora, essa paciente foi
queixar-se para Carla, monitora de terapia ocupacional Os pacientes que permaneciam maior tempo na institui-
que se aproximou dele e falou: “isto não está certo, ela ção estabeleciam relações intensas entre si. O contato
não quer nada com você”. Carla, então, comentou: “ele com a família, por sua vez, dava-se, principalmente, nos
só vem aqui pra aprontar mesmo”. períodos menos sintomáticos (mais “calmos”, conforme
os trabalhadores descreviam), sendo que, quando ha-
No cotidiano do CAPS, pacientes psiquiátricos, fre- via piora clínica, o usuário frequentemente mudava de
quentemente, apresentavam comportamentos, social- regime (de semi-intensivo para intensivo, por exemplo)
mente, pouco aceitáveis fora do contexto institucional, e permanecia todo o dia no CAPS. A relação com a so-
e que eram tolerados por serem considerados sinto- ciedade era intermediada por uma perua que fazia, dia-
mas. Para que o discurso ou o comportamento de um riamente, o trajeto casa-CAPS para os pacientes mais
usuário passasse a ser visto como inaceitável, devia graves. Mesmo os pacientes que voltavam para casa de
deixar de ser sintoma, não compatível com seu diag- ônibus, faziam-no em grupo. Nesse contexto, o CAPS
nóstico. A equipe mostrava, então, possuir um sistema e as relações decorrentes da presença na instituição
30 de múltiplas referências para interpretar comportamen- eram recursos para que os pacientes desenvolvessem 31
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O universo de relações sociais reconstruído:
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede A etnografia dos limites institucionais de um caps

relações amorosas, sendo que algumas destas eram mesmo horário dos demais operários. Anualmente, era
acompanhadas muito de perto pelos profissionais. enviado um relatório das atividades para a empresa e o
responsável técnico era, obrigatoriamente, um médico,
Um desses relacionamentos, entre Eduarda e João segundo solicitação da própria fábrica.
Cunha, foi observado durante o trabalho de campo.
Ela fazia acompanhamento no serviço desde 1999 e Ainda que os pacientes estivessem próximos aos ou-
ele desde 1995 e, como diziam, haviam estabelecido tros funcionários, vários aspectos os diferenciavam dos
“um relacionamento assumido, sério”. Decidiram morar demais trabalhadores locais. Em primeiro lugar, os pa-
juntos e compraram móveis. A equipe passou a desen- cientes eram supervisionados por funcionário do CAPS,
volver um trabalho de orientação. Após algumas sema- sendo orientados e cobrados por ele. A autoridade da
nas, passaram a existir discussões e crises no namoro instituição estendia-se ao trabalho, assim como ao fun-
que, somados a situações de ciúme e dificuldades fi- cionamento institucional. O funcionário da empresa co-
nanceiras, levaram João a apresentar uma piora que o municava-se com os pacientes através desse funcioná-
levou a ser hospitalizado, após mais de 04 anos sem rio do CAPS, dizendo qual seria a atividade do dia. Não
internações. Durante o relacionamento, ele se queixa- havia, assim, uma relação direta de autoridade entre o
va, frequentemente, de que as medicações dificultavam paciente funcionário e o sistema hierárquico e institucio-
sua vida sexual. Durante o namoro “eles passeavam na nal da empresa.
cidade e parecia um casal normal, ninguém dizia que
eram do CAPS”, segundo uma funcionária. Esse exem- Os pacientes não eram inseridos na produção da em-
plo é ilustrativo quanto ao olhar dos trabalhadores frente presa, ficando restritos a atividades periféricas, como
aos pacientes que, ainda que tivessem aparência sau- cortar grama e limpar as áreas circundantes à fábrica.
dável, não eram considerados normais. Nos horários de refeição, os pacientes não entravam
na fila: esperavam até que os funcionários regulares se
Além das relações amorosas, os usuários agrupavam- acomodassem e, então, entravam, sentando-se, exclu-
-se, preferencialmente, por gênero e por atividade. sivamente, com outros pacientes. Após as refeições, os
Algumas dessas atividades eram, eminentemente, pacientes tinham um local específico para higiene bu-
masculinas (trabalho protegido) e outras, predominan- cal, também longe de outros funcionários.
temente, femininas (oficina de bordado, bijuteria, ma-
nicure e fuxico). Estas eram convertidas em remune- O grupo de usuários que participava da atividade era
ração, o que reforçava o vínculo com o grupo e com a muito próximo: além de trabalharem juntos diariamente,
atividade específica. chegavam ao CAPS no mesmo horário e se encontra-
vam, frequentemente, fora da instituição. Quando um
O principal grupo masculino se desenvolvia através do deles era abordado, geralmente os demais estavam por
trabalho protegido, que tinha o objetivo de ressocializa- perto. Referiam-se ao grupo, normalmente, por “nós” e
ção do usuário através da reinserção deste no trabalho. diziam-se orgulhosos do trabalho.
Surgiu a partir de um convênio que existia desde 1999
entre o CAPS e uma empresa local e comportava até 06 Os usuários desse grupo apresentavam, em comum,
uma preocupação em obter companhia feminina. Suas
32 pacientes por turno. Os pacientes eram remunerados
e podiam fazer refeições no refeitório da empresa no conversas no CAPS giravam em torno desse assunto. 33
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O universo de relações sociais reconstruído:
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede A etnografia dos limites institucionais de um caps

Admitiam, durante as conversas, com tranquilidade, Ao contrário do que acontecia no CAPS, a relação
sensações de solidão e de falta de companhias femini- entre os membros do grupo e suas respectivas famí-
nas. Ao contrário do habitual, referiam-se como “desa- lias era menos relevante para os pacientes. Durante o
jeitados”, “sem saber como chegar”, “envergonhados estudo, os membros desse grupo foram visitados em
e com poucas oportunidades”. A exceção, em relação suas residências e foi verificado que a quase totalida-
a esse ponto, era Fabiano, que era bissexual. Contava, de dos familiares não identificava os pacientes como
com tranquilidade, sobre suas aventuras, como havia pessoas doentes em tratamento. O CAPS era repre-
adquirido o vírus do HIV. Apesar deste contraste com sentado como um local de lazer, cuidado, “parecido
outros usuários do grupo (dois deles nunca haviam com uma escola”, onde o paciente era estimulado a
tido relações sexuais), o convívio tornava-os um gru- permanecer, segundo a mãe de um deles. Seguindo a
po homogêneo, cujos membros se referiam ao grupo norma geral, existia uma noção de substituição da fa-
muito mais do que individualmente. Sobre o fato de ter mília pelo CAPS. Durante o trabalho de campo, vários
uma vida sexual ativa, Fabiano não parecia despertar pacientes ficavam à espera de familiares até depois
inveja ou raiva dos colegas. Ao contrário, suas aven- do CAPS fechar, às 17 horas, contrariando contratos
turas eram compartilhadas por alguns usuários desse realizados no início do tratamento.
grupo, que contavam sobre as experiências de Fabia- Segundo uma das psicólogas da instituição, a família
no como se fossem suas. dos pacientes só ia ao CAPS mediante convocação.
Essa proximidade do grupo do trabalho protegido era “Alguns deles nunca vêm”, contavam os técnicos; “não
ilustrativa. A maioria dos pacientes tinha o grupo como sabíamos que as famílias tinham tanto descaso com
uma rede exclusiva. Assim, a eventual piora clínica de al- os pacientes. Não sabíamos que ia ser tão difícil que
gum dos pacientes era, intensamente, sentida pelos de- eles participassem do tratamento. A maioria só quer
mais. Durante o trabalho de campo, aventou-se a possi- largar eles aqui”.
bilidade de Fabiano ter alta institucional, abrindo espaço Ainda que essa ausência ocorra, familiares ocupavam
para a entrada de outro usuário no programa de trabalho as falas dos técnicos na maior parte das discussões de
protegido. Essa possibilidade foi acompanhada pela pio- caso. Eram, constantemente, referidas as dificuldades
ra clínica de dois dos pacientes do mesmo grupo. de abordagem da família, histórias de possíveis abusos
sexuais e conjecturas acerca dos motivos de rejeição
O grupo do trabalho protegido desenvolvia, entre si,
dos pacientes. Os casos que eram vistos com mais cui-
uma relação centralizadora na vida dos integrantes,
dado, que eram mais, frequentemente, discutidos em
principal referência de rede de relação social dos usuá-
reunião e tinham uma presença mais marcante na ins-
rios, substitutiva àquelas sem relação com a instituição.
tituição eram de pacientes cujas famílias eram menos
Esse modelo se fortalece na medida em que é experi-
presentes no tratamento.
mentado pelos usuários do sistema de forma prazero-
sa, que encontram, nessas redes, acolhimento e possi- Logicamente, o fenômeno de substituição da família
bilidades que ultrapassam aquelas oferecidas fora da pela instituição não se aplicava a todos os usuários
instituição. Esse modelo era reproduzido em pequenos
34 grupos, que envolviam outros ao redor de atividades.
do CAPS, mas àqueles que permaneciam, ou haviam
permanecido mais tempo na instituição, ou seja, àque- 35
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O universo de relações sociais reconstruído:
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede A etnografia dos limites institucionais de um caps

les considerados mais graves. Esse papel de centrali- também protegido e remunerado. O universo de rela-
dade institucional na vida dos usuários era pactuado, ções sociais reconstruído constituía, assim, dois fenô-
silenciosamente, por trabalhadores, por pacientes e menos: 1) criava-se uma nova sociabilidade, pautada
por seus familiares. Este fenômeno, o desenvolvimen- pela inserção institucional sem perspectiva de transito-
to de referências centralizadoras da vida social dos riedade. Ainda que não fosse uma instituição fechada, o
usuários a partir da instituição, conferia um papel so- CAPS não fornecia elementos para que houvesse uma
cial ao CAPS estudado. reconstrução da rede de relações existente previamen-
te à doença. Ao contrario, criava-se uma nova. O CAPS
não era uma instituição meio, ou intermediária, mas uma
Discussão instituição fim, onde o paciente era protegido e cuidado.
Os dados etnográficos apresentados descrevem, por A rede de relações que ocorria no interior da institui-
um lado, o recorte interno na instituição, em que os ção não estabelecia pontos de contato com as demais
papéis sociais e institucionais são definidos por ca- relações sociais existentes ou, teoricamente, previstas
tegorias centralizadas na dicotomia entre paciente/ aos pacientes. Não se inseria um usuário em um em-
não paciente. Por outro lado, a etnografia demonstrou prego formal, mas se criava um, protegido e viabiliza-
a existência de redes de relação social que se esten- do, pela intervenção institucional. Não se criavam con-
dem para além dos limites do CAPS, mas que, ainda dições que tornavam possível ao paciente estabelecer
assim, eram profundamente institucionalizadas. Tratar relações amorosas, mas criava-se um ambiente em que
em comunidade, conforme pressupõe a noção de ser- sua condição declarada de paciente era compartilhada
viços comunitários, como ocorre com os CAPS, não e aceita. O CAPS caracterizava-se, assim, por ser uma
implica a inexistência de um espaço social delimitado instituição aberta, mas com o risco de ser permanente,
a esse grupo social composto por pacientes. Confor- não constituindo um espaço intermediário, mas um es-
me observado no estudo etnográfico, estar no CAPS paço definitivo de vida social.
implicava compartilhar a maior parte do tempo com
outros usuários. Ainda que a instituição fosse inserida Citando Sartre, Mary Douglas (1976) ilustrou como as
na comunidade, criou-se um universo, em que os pa- anomalias, que se localizam em espaços intermediá-
cientes permaneciam intensamente ligados ao CAPS. rios a duas categorias, tendem a ser repelidas. Sartre
Simultaneamente, mantinha os pacientes por um longo descreve a experiência de uma criança mergulhando
período em seu interior, ainda que em um espaço sem sua mão em um pote de melado, e as ambiguidades
limitações físicas, como muros ou cercas. sensoriais causadas por essa substância, que se loca-
liza em um espaço intermediário do sólido e líquido. E
Esse espaço não era delimitado por proibições espe- cuja consistência permite a incômoda experiência de
cíficas ou limites físicos. O universo dos pacientes que sentir os próprios limites imprecisos em relação ao me-
foi reconstruído correspondia a uma larga rede de re- lado. Limites precisos, que identificam categorias que
lações sociais entre os usuários do CAPS. A limitação implicam em noções de normalidade e anormalidade,
construiu-se, sobretudo, simbolicamente. Nesse uni- são, usualmente, criados e reproduzidos socialmente.
verso, era possível a existência de encontros afetivos,
36 amorosos ou não, um espaço protegido e um trabalho
Uma dessas categorias é a da loucura, que demanda
a criação de limites por seu caráter de ambiguidade. 37
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O universo de relações sociais reconstruído:
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede A etnografia dos limites institucionais de um caps

Como aponta Tenório (2002) a loucura é ambígua na apresentar gravidade, ou diagnóstico compatível com a
medida em não permite que a pessoa seja incapaz de inclusão. Nunca se está dentro e fora ao mesmo tempo,
cumprir o contrato social, mas não pode ser punida assim, quando alguém cumpre critérios está, decidida-
por isso. Nessa posição, encontra-se entre duas ca- mente, dentro da instituição. O CAPS não proporciona
tegorias e esse espaço intermediário implica em ano- situações ambíguas nesse sentido; 2) a regra de se
malia e ambiguidade. Seguindo essa metáfora, essa evitar anomalias confirma as categorias das quais elas
delimitação identificada no cotidiano institucional de foram excluídas. Daí a necessidade dos limites exter-
um CAPS define um limite para a loucura, ainda que nos do CAPS: intermediação institucional das relações
fora dos muros do manicômio. sociais, restrição à rede de relações sociais e catego-
rização permanente como paciente. Paradoxalmente, a
O estudo realizado sugere um conjunto de transforma- existência do CAPS confirma a existência da loucura.
ções das práticas institucionais em relação à loucura,
ainda que esta continue sendo um desvio. A inserção A existência da loucura demanda uma ação sobre ela.
dos pacientes estudados na instituição mostra, enfim, Aqueles categorizados como loucos não evitam sua
uma vida social organizada ao redor de controle e cuida- condição de anormalidade e as precauções partem
dos promovidos pelo Estado, mas que não cria uma “su- da cultura. Nesse sentido, ainda que o CAPS estudado
perfície de contato” com o restante da vida social. Essa não constitua uma instituição total, o conjunto de seus
superfície de contato corresponderia a estar, constante- procedimentos envolve uma ampla gama de aspectos
mente, com a mão mergulhada no melado, conforme a da vida social de seus usuários e, por isso, favorece
metáfora de Sartre, num convívio de difícil ambiguidade uma experiência totalizante. Pacientes têm experiências
sensorial. Os CAPS, utilizando a metáfora, constituem- amorosas, gratificantes, produzem, trabalham, têm con-
-se luvas, que preservam a categoria social do louco e flitos no interior da instituição. Da mesma forma, são tra-
a noção de demanda de contínuo controle institucional tados e protegidos de situações que se dão fora de um
para aqueles que fazem parte da categoria. A partir dos âmbito de sua tutela.
dados do estudo, identificamos que a abordagem ofe-
recida pelo modelo não tira a loucura da marginalidade, O processo de isolamento do serviço se estendia aos
mas oferece uma forma de inclusão, ainda que crie es- técnicos. Estes tinham, na noção de equipe, um ins-
paços delimitados e controlados na vida social. trumento de contraposição a diversas forças, repre-
sentadas, principalmente, pela constante referência às
Os limites internos e externos identificados na etnografia internações psiquiátricas. Essa unidade produzia, por
reforçam a diferenciação entre os pacientes do CAPS e um lado, força ao grupo e às praticas institucionais. Por
os não pacientes, sejam os de dentro ou os de fora da outro lado, provocava isolamento. É importante notar,
instituição. Mary Douglas (1976) lista, ainda, uma série por exemplo, que o serviço estudado não desenvolvia
de providências encontradas em qualquer cultura para práticas de matriciamento nem era supervisionado em
lidar com eventos ambíguos ou anômalos: 1) a ambi- rede. Existia, com isso, uma percepção de que os téc-
guidade é reduzida, quando se opta por uma interpre- nicos do serviço possuíam atributos próprios e únicos.
tação entre as possíveis. Por isso, existem os referen- Ainda que existisse uma perspectiva de não isolamen-
38 ciais de inclusão em CAPS: para estar dentro, deve-se to do serviço, essa parecia ser uma saída para que a 39
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O universo de relações sociais reconstruído:
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede A etnografia dos limites institucionais de um caps

equipe pudesse manter suas práticas diárias institucio- DIAS, MK. Centros de Atenção Psicossocial: do Mo-
nais próprias e uma relação de cuidado com os usuá- delo Institucional à Experiência Social da Doença. 2007.
rios também própria e diferente do restante da rede de Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade
atenção no município. Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Campinas, 2007.
Essa postura de isolamento, que remete ao papel atri-
buído ao serviço e aos seus trabalhadores, marca um DOUGLAS M. Pureza e Perigo. São Paulo: Editora
fenômeno que é verificado, com frequência, na rede de Perspectiva, 1976.
atenção em saúde mental no país. Historicamente, a
GOFFMAN E. Manicômios, Prisões e Conventos.
constituição de serviços substitutivos criou a percep-
São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.
ção de que espaços especializados deveriam ser des-
tinados, especificamente, para pacientes psiquiátricos. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍS-
Essa noção, a ser superada, cria uma rotina institucio- TICA. IBGE Cidades. Disponível em: <http//www.ibge.
nal que reproduz o isolamento, conforme descrevemos. gov.br> Acesso em: ago. 2006.
A perspectiva de atenção em rede aponta para uma
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dual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”; 1999.

– CAPÍTULO II –
OS SERVIÇOS RESIDENCIAIS TERAPÊUTICOS
E OS PRINCIPAIS DESAFIOS AO PROCESSO
DE DESINSTITUCIONALIZAÇÃO
Ana Karenina de Melo Arraes
Magda Dimenstein
Flávia Helena Freire
Historicamente, a população interna em manicômios
brasileiros tende à cronicidade e à permanência na es-
trutura hospitalar. Tal fato configura, basicamente, dois
perfis de internos: um, que é, efetivamente, morador do
hospital, por ter perdido seus vínculos sociais ou tê-los
muito fragilizados; e outro, que é o “visitante” constan-
Ana Karenina Arraes Amorim te dessas estruturas, por que transita no circuito mani-
Psicóloga. Mestre em Psicologia Clínica, pela Universidade de Brasília (UnB) comial (hospital-casa-hospital). Sabemos, hoje, que a
e doutora em PsicologiaSocial, pela Universidade Federal do Rio Grande do população moradora de manicômio constitui 30% dos
Norte (UFRN). Psofessora Adjunta do Departamento de Psicologia da UNFR. internos, o que exige a produção de processos de de-
Membro do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC/UFRN) e integra sospitalização e estratégias de atenção para essa po-
Mestrado profissional em Saúde da Família (RENASF/ FIOCRUZ) Atua nas pulação na rede substitutiva (BRASIL, 2011).
áreas de Saúde Coletiva, Saúde Mental e Psicologia Social.
Em recente debate sobre os desafios políticos atuais
Magda Diniz Bezerra Dimenstein para o movimento antimanicomial no Brasil, Vasconce-
Graduada em Psicologia, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), los (2011) reconhece que, atualmente, emergem desa-
mestre em Psicologia Clínica, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC fios urgentíssimos, na sociedade, no Estado e na política
RJ) e doutora em Saúde Mental, pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade de saúde mental no país, que podem caminhar para um
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Realizou estágio Pós-Doutoral na retrocesso de nossas conquistas nesse campo. Ainda
Universidad Alcalá de Henares na Espanha. Professora da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e está vinculada ao Programa de segundo esse autor, no entanto, se devidamente avalia-
Pós-Graduação em Psicologia/PPGPsi, orientando alunos de mestrado e dos e estabelecidas estratégias adequadas de enfren-
doutorado. Atua na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde Mental. tamento, esses desafios podem, também, proporcionar
renovação e aprofundamento da reforma psiquiátrica.
Flávia Helena Miranda de Araújo Freire
Um desses desafios é o “baixo volume de inves-
Graduada em Psicologia, pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB),
timento e no ritmo lento de crescimento do número
especialista em Saúde Mental, pela Escola Nacional de Saúde Pública -
FIOCRUZ, mestrado e doutorado em Saúde Pública pela ENSP/FIOCRUZ. de serviços efetivamente substitutivos, que são mais
caros e complexos, como os CAPS III e os serviços
Professora da Universidade Potiguar (UnP). Supervisora de CAPS. Atua na
área de Saúde Coletiva e Saúde Mental. residenciais” (VASCONCELOS, 2011, p.2). Em todos 45
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Os serviços residenciais terapêuticos e os principais
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede desafios ao processo de desinstitucionalização

os fóruns de debate acerca do processo de reforma Desafios relativos às práticas de


psiquiátrica no país, é unanimidade que precisamos
avançar na ampliação da rede substitutiva, na articu- cuidado no âmbito do Serviço
lação com a atenção primária, no desenvolvimento de Residencial Terapêutico
ações intersetoriais e na qualificação permanente do
Para pensar os desafios colocados pelo SRT, relativos
trabalhador de saúde mental e, consequentemente,
às práticas de cuidado em saúde mental, elegemos três
das práticas de cuidado. Há, também, uma vasta pro- eixos de análise: 1) as práticas voltadas a desospitaliza-
blematização em termos do funcionamento dos dis- ção no processo de transição do hospital psiquiátrico
positivos assistenciais, especialmente dos Centros de para o SRT; 2) as práticas no âmbito do próprio SRT; e
Atenção Psicossocial (CAPS), pela sua centralidade 3) as práticas voltadas para os moradores do SRT na
na política pública de saúde mental, e, de forma cada rede de saúde e em outros setores.
vez crescente, em relação aos Serviços Residenciais
Terapêuticos (SRT). Reconhece-se que a cobertura Para pensar cada um desses três eixos, partimos da
de SRT é baixa e que é preciso acelerar a abertura de ideia de que o cuidado não pode ser visto como algo
já dado, necessariamente, nas “ações de saúde” ou na
novos serviços, superando a cifra de 570 registrados
realização de certos “projetos” em saúde, mas como
até final de 2010 (BRASIL, 2011). Apesar disso, há
elemento que se constrói e deve participar de modo
uma discussão, ainda tímida, acerca da necessidade
importante na condução do trabalho em saúde. Enten-
de construção de novos dispositivos, em particular, demos, aqui, o cuidado como “uma interação entre dois
residenciais, em função dos limites observados em ou mais sujeitos visando o alívio de um sofrimento ou
relação ao modelo em vigor, bem como das novas o alcance de um bem-estar, sempre mediada por sa-
necessidades e demandas de moradia postas na atu- beres especificamente voltados para esta finalidade”
alidade, que estão muito ampliadas, para além do as- (AYRES, 2004, p. 74) e que tem, como fundamental, o
pecto da desospitalização dos crônicos, mesmo com responsabilizar-se pela vida de quem se cuida.
a urgência que a situação exige.
Quando consideramos as práticas de cuidado no pro-
Hoje, temos um contingente enorme, cerca de 13 mil cesso de desospitalização da população moradora
pessoas, segundo dados do Ministério da Saúde (2011), do hospital psiquiátrico, os principais desafios giram
que se beneficiaria de estruturas transitórias, com pro- em torno do fato de que é preciso enfrentar, desde o
postas mais focadas no suporte e estruturação da vida interior do hospital, as resistências lá postas por pro-
cotidiana, bem como no apoio e alívio da sobrecarga fissionais e pelos próprios internos, que se colocam
das famílias. Objetiva-se, portanto, trazer, aqui, algu- contrários ou descrentes em relação ao processo de
mas contribuições nesse sentido, a partir da discussão desospitalização e, muitas vezes, boicotam as práticas
de desinstitucionalização.
sobre os desafios colocados às práticas de cuidado e
à gestão dos SRTs brasileiros, bem como os desafios É desafiante, também, a composição da equipe res-
postos ao modelo de dispositivo residencial a partir de
46 experiências em curso na Espanha.
ponsável pela transição, bem como sua qualificação
para o trabalho de desospitalização. Nessa composi- 47
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Os serviços residenciais terapêuticos e os principais
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede desafios ao processo de desinstitucionalização

ção, precisam participar profissionais do próprio hospi- Além disso, essa composição do grupo de moradores
tal aos quais os moradores estão vinculados, além de e a condução do processo de transição estão relacio-
gestores e profissionais da rede substitutiva, que vão nadas a uma escolha da gestão relativa ao tipo de dis-
passar a serem referências para a atenção em saú- positivo residencial que se quer implantar, no que se
de mental desses moradores no âmbito do SRT. Essa refere à estrutura e recursos pessoais, físicos e técnicos
composição, em si, produz tensões na construção do definidos pela complexidade e intensidade do cuidado.
processo, uma vez que práticas manicomiais e tutela-
res podem estar presentes, justificadas pela história de Na maioria dos dispositivos residenciais implantados no
Brasil, sobretudo por questões de financiamento (que
atuação e formação profissional não sensível à reforma
trataremos a seguir), a definição da estrutura do SRT se
psiquiátrica. Isso fica evidente desde o processo de
dá mais pelo quantum de recursos que se tem no muni-
decisão sobre a composição do grupo de moradores
cípio, que em função das demandas e projetos terapêu-
que será encaminhado para o SRT até a proposição de
ticos dos moradores. Isto fica evidente quando boa par-
atividades voltadas para a reinserção social ainda no te dos dispositivos implantados está voltada para uma
processo de transição. população considerada “mais autônoma” dentro dos
Em relação à composição do grupo de moradores, hospitais psiquiátricos e que, portanto, exige uma me-
esta, usualmente, está baseada no estudo do perfil nor complexidade de recursos na configuração do SRT,
clínico e em outros parâmetros técnicos relativos à indicando que o financiamento limita as possibilidades
de desinstitucionalização. Entretanto, na prática, muitos
“autonomia” que, muitas vezes, sobrepõem-se aos
dos grupos de moradores terminam por exigir, no coti-
desejos e projetos de vida dos próprios moradores.
diano, uma estrutura de cuidados mais complexa, da-
Isso se constitui um problema, quando consideramos
das as marcas da institucionalização, da medicalização,
que os SRTs existem para que a desconstrução da
da própria patologia e do processo de envelhecimento
institucionalização e consequente autonomização dos colocadas. Assim, põe-se como necessária uma maior
sujeitos sejam operadas no cotidiano e nas relações flexibilidade na composição do cuidado, exigindo, tam-
de cuidado no SRT e não já dadas a priori. A escolha bém, um manejo mais flexível dos recursos disponíveis.
e a definição do grupo de moradores do SRT, nesse
processo de transição, têm o cuidado como um com- Em uma dimensão micropolítica do cuidado no âmbito
ponente importante e definidor e não apenas como do SRT, há desafios no que se refere à construção do
um fim do processo em si mesmo. Para cuidar, há que cuidado no cotidiano. Um primeiro aspecto consiste na
se considerar e construir projetos, de modo que “é própria definição do que seja “cuidador”. Esta não pode
forçoso saber qual o projeto de felicidade, isto é, que ser dada tanto pelas “especialidades” e “disciplinas”
concepção de vida bem sucedida orienta os projetos profissionais quanto pela responsabilização na cons-
existenciais dos sujeitos a quem prestamos assistên- trução da vida em seus aspectos cotidianos, voltadas
cia” (AYRES, 2004, p.85). Dessa maneira, nas práti- para as necessidades dos moradores. Nesse sentido,
cas de planejar, gerir e conduzir o processo de tran- têm lugar no cuidado não apenas os profissionais en-
sição para o SRT, o desafio que se coloca é de como volvidos, mas, também, amigos, vizinhos, empregados
domésticos, familiares, entre outros atores componen-
48 desenvolver esses projetos de vida frente às marcas
da institucionalização. tes da rede de cuidados. 49
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Os serviços residenciais terapêuticos e os principais
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede desafios ao processo de desinstitucionalização

Entretanto, cabe observar que, nessa construção do por elementos tecnológicos “duros”, herdados da for-
cuidado, as ferramentas profissionais entram em jogo mação profissional e do próprio modo de organização
na clínica construída no campo e são entendidas como do trabalho em saúde, tais como o “plantão”, o “livro de
importantes, ainda que não exclusivas. Dessa forma, as ocorrências”, o “controle da medicação”, o trancamento
experiências no trabalho de cuidado nesse contexto “po- do “armário dos remédios”, entre outros. Entretanto, sob
dem ser traduzidas em um exercício diário de transdisci- supervisão e constante “auto-análise” (FRANCO, 2006),
plinaridade, em que o suposto saber acadêmico de toda esse trabalho vai, progressivamente, perdendo sua di-
a equipe é agora colocado em xeque” (BAPTISTA et al., mensão “dura”, em termos pedagógicos e higiênicos
2001, p. 65). Dito de outro modo, para que o cuidado seja voltados para certa vigilância da vida dos moradores,
efetivo nessa realidade, os diferentes saberes precisam e dando lugar ao acompanhamento na construção de
dialogar e as equipes de saúde envolvidas precisam ser possibilidades de vinculação social para os moradores
sensíveis a esses saberes não especializados. de modo descentralizado da doença.
O caráter inusitado e imprevisível do trabalho é outro Dessa forma, Sanzana et al. (2006) considera que o
ponto desafiador. O cuidado no cotidiano de um SRT acompanhamento e a construção do cuidado realizado
exige dos cuidadores criatividade para lidar com a di- nos SRTs se faz sob um “fio de navalha” em que se
versidade de demandas dos moradores e com a im- coloca o paradoxo da tutela e do cuidado, da opressão
previsibilidade que, muitas vezes, os comportamentos e da liberdade. Desse modo, o que a experiência do
destes trazem. Além disso, a desconstrução do estigma SRT nos aponta é que o trabalho de cuidado precisa ir
da loucura na vida dos moradores exige um reconhe- se fazendo nesse “fio” que costura a clínica e a política.
cimento de que esse trabalho convoca outro posicio- Diante disso, compartilhamos a posição de Baptista et
namento diante da diferença. Nesse sentido, Sanzana al. (2001), quando afirma que, sobre os dispositivos re-
et al. (2006) e Baptista et al. (2001) apontam para a sidenciais, não cabe discutir a legitimidade de uma ou
necessidade, nos dispositivos residenciais, de não tra- outra proposta clínica a “aplicar” nesse contexto, mas
balhar com modelos rígidos do que seja o cuidado e refletir sobre as propostas existentes de clínica, a partir
do que seja o habitar uma casa, desnaturalizando as da positivação dos paradoxos suscitados no dia-a-dia
práticas e dando lugar às singularidades. das casas. E, nessa positivação, é possível reinventar a
clínica, desconstruindo-a como conjunto de estratégias
Diferente do trabalho em um serviço de saúde em de normatização e disciplinamento e operando-a como
sentido lato, o trabalho de cuidado, em um SRT, exige campo de produção de subjetividades.
posicionamentos e mobiliza elementos com os quais,
muitas vezes, os profissionais não se sentem prepara- Assim, o trabalho de cuidado exige menos uma agenda
dos para lidar, gerando sofrimento e produzindo diver- já pressuposta pelos cuidadores e mais uma experimen-
sos atravessamentos no trabalho e na relação com os tação dedicada aos percursos e projetos individuais e
moradores. A questão da qualificação para o cuidado coletivos dos moradores. Isso supõe o que Albuquerque
no manejo de tecnologias leves constitui um desafio (2006) chama de “uso crítico do território” de modo a
importante, sobretudo quando observamos que o tra- não precipitar a incursão dos trabalhadores no proces-
50 balho da equipe de cuidadores ainda é atravessado so, privilegiando os recursos institucionais preexistentes, 51
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Os serviços residenciais terapêuticos e os principais
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede desafios ao processo de desinstitucionalização

o que acabaria por restringir as trajetórias dos morado- de um SRT coloca para a rede de saúde a necessidade
res aos serviços e programas instituídos e não construí- de mudanças nos modelos e processos de trabalho, de
-las como pequenas composições cartográficas no uso modo que a garantia de espaços de diálogo e acom-
da cidade. A esse respeito, Scarcelli (2006) defende panhamento dos SRTs na rede seja possível. A comu-
que é necessário “ampliar os horizontes para além da nicação, que oportuniza a troca de experiências siste-
assistência, pois a casa, por exemplo, pode ser signifi- máticas entre as equipes, viabiliza a construção coletiva
cada como mais um dos equipamentos assistenciais, e dos PTIs. Para tanto, o trabalho da equipe de acompa-
não como local em que se habita e que deve ser parte nhamento dos moradores não pode ser encarada como
de uma rede social” (p. 74). Assim, o caráter híbrido do uma tarefa a mais do CAPS e a forma de inclusão da
SRT, enquanto moradia e serviço terapêutico, desafia a equipe de cuidadores precisa ser diferenciada.
gestão do cuidado ao exigir que a clínica seja operada
na rede de saúde e o cuidado e sua função terapêutica, Em relação à co-responsabilização pelo cuidado dos
em sentido amplo, possa transcendê-la. moradores entre a atenção em saúde mental e a aten-
ção básica, diferentes experiências indicam a impor-
Para tanto, importa considerar diferentes dimensões de tância dessa articulação no cuidado aos moradores.
co-reponsabilização pelo cuidado, de modo a possibi- Guarido e Campos (2006) defendem a necessidade de
litar a multiplicação de redes de cuidado. Destacamos boa relação com as unidades básicas de saúde e com
três dimensões principais de co-responsabilização, que as equipes de saúde da família na atenção aos mora-
precisam ser ativadas desde a implantação do SRT e dores que, em boa parte, constituem população geriá-
preservadas para a sustentação desse dispositivo: 1) trica e cujas necessidades são mais clínicas gerais que
a co-responsabilização na rede substitutiva de saúde psiquiátricas. Entretanto, há a tendência dos serviços
mental, especificamente SRT-CAPS, tendo em vista que em geral de vê-los como “doentes mentais” em primei-
os moradores podem frequentar o CAPS e, lá, desen- ro lugar, sendo atribuídos às questões de saúde men-
volverem atividades planejadas em seus Projetos Tera- tal todos os problemas. Por outro lado, apenas quando
pêuticos Individuais (PTIs); 2) a co-responsabilização migram para um SRT, é que esses moradores passam
entre a atenção especializada e a atenção básica, ten- a ser “usuários” do Sistema Único de Saúde (SUS) em
do em vista a circulação do morador como usuário da sentido estrito e isso, em si, constitui uma novidade
rede de saúde no território; e 3) a co-responsabilização para eles. Saber que há uma equipe de saúde que se
entre todos no cuidado de cada um para além da rede responsabiliza por eles no território é fundamental, as-
de saúde, entendida como parcerias com a comunida- sim como saber que isso supõe o enfrentamento de
de e outros setores (educação, assistência social, justi- dificuldades que todos os outros usuários do sistema
ça, habitação, transporte, etc), viabilizando os projetos enfrentam, tais como a marcação de consultas, falta
de vida de cada morador. de informação, descuido com o paciente, até a falta de
capacitação dos profissionais e a falta de acolhimento
Em relação à primeira dimensão, o cuidado aos morado- para as demandas específicas deles.
res coloca em análise a articulação da rede em si, cuja
fragilidade ou consolidação evidencia-se no cotidiano A co-responsabilização, em um sentido mais amplo, de
52 da condução dos PTIs dos moradores. A implantação todos no cuidado de cada um, é entendida como par- 53
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Os serviços residenciais terapêuticos e os principais
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede desafios ao processo de desinstitucionalização

cerias com a comunidade e outros setores. Guarido e ce a vinculação financeira para assegurar os recursos
Campos (2006) sugerem que a parceria com associa- mínimos destinados às ações e serviços públicos de
ções de familiares e amigos dos usuários de serviços saúde nas as três esferas de governo. e define o que é
de saúde mental, na gestão dos SRTs, pode enfatizar o considerado como gastos em saúde. O mecanismo de
caráter de residência e minimizar o de serviço de saú- transferência de recurso financeiro fundo a fundo uti-
de, aumentando a proximidade entre cuidador e a pes- lizado pelo Ministério da Saúde se traduz como uma
soa cuidada, além de entenderem como fundamentais potente ferramenta de gestão, que poderá agir como
as parcerias com os setores de assistência social, edu- instrumento indutor na condução e implantação de polí-
cação, cultura e habitação. ticas e programas de saúde em âmbito nacional.

Entendemos, portanto, que o trabalho de cuidado tem Como mecanismo de indução à adesão de programas
por base essas dimensões de co-reponsabilização. No assistenciais, o governo federal criou o Fundo de Ações
entanto, muitas das atividades e projetos construídos Estratégicas e Compensação (FAEC). Esse fundo desti-
nessas dimensões encontram barreira e dificuldades na-se ao financiamento de programas que são conside-
relativas à própria gestão dos recursos e, mais especifi- rados estratégicos do ministério. Municípios que aderem
camente, ao financiamento de iniciativas que sustentem aos programas financiados pelo FAEC têm a possibili-
esses dispositivos e o processo de desinstitucionaliza- dade de receber recursos para além dos já estabele-
ção de modo mais amplo, como veremos a seguir. cidos em seus tetos municipais, por isso é chamado
de “recurso extra-teto”. Com efeito de complementação
financeira, trata-se de recurso para remuneração de
Financiamento dos Serviços procedimentos de Média e Alta Complexidade (MAC).
Residenciais Terapêuticos: desafios No campo da saúde mental, a partir de 2002, com a re-
na consolidação da política gulamentação das portarias 189/02 e 336/02, os CAPS
passaram a ser financiados pelo FAEC, nisso, o gestor
Por ser uma temática discutida, tradicionalmente, por municipal recebia a “verba carimbada” para custeio da
economistas e contadores, os gestores e trabalhadores assistência de atenção psicossocial. Essa modalidade
da saúde pública nem sempre têm proximidade e afi- de alocação de recursos permitiu uma acelerada ex-
nidade com a prática da gestão financeira no SUS. No pansão de CAPS em todo território nacional, passando
campo da saúde mental, o entendimento dessa temáti- de 424 CAPS em 2002 para 1.326 em 2008.
ca é ainda mais precário.
Com a proposta de mudança de gestão advinda do
A instabilidade financeira no SUS sempre foi alvo de Pacto pela Saúde, a estrutura de financiamento foi al-
preocupação da gestão do sistema. A necessidade de terada, passando a ser composta por cinco blocos:
haver uma fonte de financiamento mais segura para a Atenção Básica; Média e Alta Complexidade; Assis-
saúde, implicando os três níveis de governo, federal, tência Farmacêutica; Vigilância em Saúde e Gestão do
estadual e municipal, favoreceu o debate da Emenda SUS. Em 2008, através da Portaria 2.867, os procedi-
Constitucional 29. Criada em 2000, e aprovada em
54 2012, através da Lei Complementar no 141, estabele-
mentos de remuneração dos CAPS foram transferidos
do FAEC e incorporados aos tetos municipais de Média 55
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Os serviços residenciais terapêuticos e os principais
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede desafios ao processo de desinstitucionalização

e Alta Complexidade. Na análise de Delgado (2007), está, prioritariamente, destinada à rede substitutiva, em
para assegurar que a rede CAPS e outros dispositivos detrimento da rede hospitalar. No comportamento dos
de saúde mental continuem em expansão, seria neces- gastos, observamos que, em 2002, gastavam-se com a
sário construir uma transição adequada nos blocos de rede hospitalar 75,24% do total dos recursos, enquan-
financiamento, sendo esse um desafio importante do to que, na rede extra-hospitalar, o valor gasto referia-
financiamento na atualidade. -se a 24,76%. Esse indicador foi invertido e, em 2011,
observamos que o gasto maior está destinado à rede
A aceleração da expansão da rede CAPS foi bastante
substitutiva, com 71,2% do total dos gastos, enquanto,
impulsionada e induzida pelo recurso financeiro de cus-
na rede hospitalar, 28,8%. Esse indicador mostra a im-
teio extra-teto. A incorporação desses recursos aos tetos
portância da discussão do financiamento na gestão de
municipais requer dos gestores locais maior priorização
implantação de políticas públicas de saúde. Fagundes
dessa política diante do desfinanciamento federal. O nó-
(2001) aponta essa necessidade ao evidenciar que
-crítico está em assegurar recursos de custeio para a rede
substitutiva (CAPS, SRTs), haja vista que os recursos de
discutir os modos de financiamento do sistema é
investimentos estão assegurados pelo bloco de gestão.
uma exigência política em relação a um ponto crítico,
Novas mudanças ocorreram a partir da regulamentação que fragiliza a consolidação dos serviços substituti-
vos e aponta para a possibilidade de uma pactua-
do SUS com o advento do Decreto 7.508 de 28 de ju- ção entre as três esferas de governo com o objetivo
nho de 2011 que dispões sobre a organização do SUS, de viabilizar política e administrativamente a reforma
planejamento da saúde, assistência à saúde e a articu- psiquiátrica. A garantia do financiamento constitui-
lação interfederativa. Modelos de financiamento foram -se, assim, num importante determinante da consoli-
inalgurados. No campo da saúde mental a novidade dação da política de saúde mental no país. (FAGUN-
DES, 2001, p. 35).
do financiamento se refere à lógica de pré-pagamento
e nao mais pagamento por produção de procedimen-
tos, através do quantitativo de APACs (Autorização de Na política nacional de desinstitucionalização, os SRTs
Procedimentos de Alta Complexidade) realizadas men- colocam-se como dispositivos fundamentais, uma vez
salmente. Os recursos de custeio dos CAPS e SRT, nes- que traz, em sua concepção original, a reorientação do
sa nova ótca do financiamento, estão pré-fixados. As modelo de financiamento, desfinanciando a rede hos-
portarias 3.089 e 3.090 ambas de 2011, altera respec- pitalar e investindo na rede de atenção psicossocial.
tivamente o modeo de financiamento dos CAPS e dos Apesar desses dispositivos já existirem no Brasil desde
SRTs e fica recursos mensais de custeio. o início da década de 1990, sua regulamentação pelo
Ministério da Saúde foi evidenciada, apenas, em 2000,
A reorientação do modelo assistencial em saúde mental com o advento das portarias 106 e 1.220.
vem sendo acompanhada pelo redirecionamento do fi-
nanciamento de suas ações e serviços prestados. Dos O financiamento dos SRTs está intrinsecamente relacio-
macros indicadores de implantação de política que de- nado com a proposta de diminuição dos leitos hospita-
monstram maior expressividade, destacam-se os gas- lares. A portaria 106 sugere que “a cada transferência
do paciente do hospital psiquiátrico para o SRT, deve-se
56 tos com saúde mental. Dados do Ministério da Saúde
demonstram que, atualmente, a alocação de recursos reduzir ou descredenciar do SUS igual número de leitos 57
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Os serviços residenciais terapêuticos e os principais
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede desafios ao processo de desinstitucionalização

naquele hospital, realocando os recursos da AIH cor- propósito de investir na expansão da rede substitutiva,
respondente para os tetos orçamentários do estado ou principalmente com as moradias.
município que se responsabilizará pela assistência ao
paciente e pela rede substitutiva de cuidados em saúde Pensar em um financiamento intersetorial poderá ser um
mental”. Assim, com o descredenciamento do leito, o re- caminho almejado. Políticas intersetoriais de saúde men-
curso que custeava esse leito deverá ser remanejado do tal poderiam ser articuladas na implantação das mora-
sistema de informação hospitalar (SIH/SUS) para o siste- dias. Em lugar de a saúde gastar recursos com aluguel
ma de informação ambulatorial (SIA/SUS), com vistas ao das casas, o setor da habitação poderia criar linhas de
custeio da rede substitutiva. Nesse sentido, observamos financiamento para doação de casas populares com vis-
uma proposta de reorientação do modelo assistencial tas à formatação de SRTs. Além dos desafios de asse-
acompanhada da reorientação financeira, da rede hos- gurar o custeio dos procedimentos dos SRTs pela saú-
pitalar para a rede de atenção psicossocial. de, a articulação com outras políticas sociais poderia ser
fomentada, principalmente, por tratar-se de um serviço
Apesar da direcionalidade da política no que diz respei- que se encontra na tênue linha entre dispositivo de mo-
to ao financiamento, observa-se, em sua grande maio- radia e de saúde. Nesse sentido, a análise de outros mo-
ria, que as gestões municipais não têm, efetivamente, delos de dispositivos residenciais baseados em políticas
implantado esse sistema de remanejamento da AIH. O de gestão de cuidado, não apenas sanitárias, à seme-
entendimento desse processo pelos gestores de saúde lhança do modelo espanhol (que discutimos a seguir),
mental ainda é ínfimo. Pesquisa realizada por Furtado pode contribuir com o nosso processo de reforma.
(2006) aponta alguns entraves na gestão financeira des-
ses serviços, tais como: “baixo envolvimento do gestor
local no SUS; redes municipais de saúde incipientes ou Desafios ao modelo de Serviço
inexistentes; incompatibilidade entre a gestão de outros Residencial Terapêutico: a
serviços do SUS e das residências terapêuticas; não
garantia de acesso e utilização de recursos já existen-
diversidade no acolhimento
tes – realocação de AIHs” (FURTADO, 2006, p. 45). em saúde mental
Esse fato é preocupante. É unânime a opinião de que o Diferentemente do Brasil, a Espanha dispõe de uma
financiamento na saúde é insuficiente e a implantação diversidade de recursos residenciais com especifici-
de políticas públicas só consegue avançar se houver dades em cada região do país1. Essa diversidade tem
financiamento direcionado para a sua execução. No relação direta com os princípios que orientam a reforma
campo da saúde mental, não podemos perder recursos psiquiátrica espanhola ao longo de 25 anos, os quais
com o fechamento dos leitos hospitalares. A expansão apontam para um forte investimento em programas de
dos SRTs ainda é tímida, comparada ao crescimento reabilitação psicossocial e apoio comunitário, contem-
da rede CAPS. Em 2010, temos 1.620 CAPS e apenas plando a questão da moradia e do trabalho. Portanto,
570 SRTs. Para além do remanejamento das AIHs, é o fechamento dos manicômios e o reordenamento da
necessário, também, pensar em outros formatos de fi-

58 nanciamento, como foi realizado com os CAPS, com o 1 Quanto à estruturação dos dispositivos assistenciais, ao financiamento e
gestão dos recursos, à composição das equipes profissionais, dentre outros aspectos. 59
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Os serviços residenciais terapêuticos e os principais
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede desafios ao processo de desinstitucionalização

rede sanitária e social vieram acompanhados da cria- distintos tipos de intervenções de apoio no domicílio
ção de um amplo leque de programas interdependen- do usuário3. Aqui, destaca-se a experiencia das mini-
tes para garantir assistência e suporte social, bem como -residências, pela potencial contribuição que podem
aumentar o grau de autonomia pessoal e de funciona- oferecer ao processo de reforma no Brasil.
mento psicossocial/integração comunitária de usuários
e as possibilidades de apoio às famílias. Obviamente, As mini-residências são estruturas de transição, que
tais medidas estão amparadas em uma perspectiva de têm como proposta o acolhimento temporário (que
reabilitação, que visa a ampliar as possibilidades de pode ser de um fim de semana, algumas semanas, um
integração social e sentido de pertencimento comuni- mês, seis meses, etc) de usuários, para a aquisição de
tário, de circulação na cidade, de estruturação da vida habilidades e competências para uma vida autônoma
cotidiana, evitando-se o isolamento, o abandono, a cro- ou em seu ambiente familiar. Não são, apenas, desti-
nificação e a institucionalização. Essa perspectiva foi nadas para egressos de longas internações, como é
apresentada por Lussio et al (2006, p. 450), com base o caso das residências terapêuticas existentes no Bra-
nas proposições de Benedetto Saraceno e Anna Pitta: sil, mas configuram-se como um recurso transitório de
apoio à reinserção social e familiar e/ou para a vida em
estruturas mais independentes como os pisos.
O processo de reabilitação consiste em “reconstru-
ção, um exercício pleno de cidadania e, também,
de plena contratualidade nos três grandes cenários:
Cada MR tem 20 moradores, de ambos os sexos, e
hábitat, rede social e trabalho com valor social” (Sa- funciona 24hs por dia. Tem a equipe profissional, com-
raceno, 1996). A reabilitação psicossocial também posta por: um diretor; uma psicóloga; uma terapeuta
pode ser considerada como um “processo pelo qual ocupacional; 14 educadores sociais, distribuídos nos
se facilita ao indivíduo com limitações, a restauração três turnos, fins de semana e feriados; um auxiliar admi-
no melhor nível possível de autonomia de suas fun-
ções na comunidade” (PITTA, 1993 apud LUSSIO et nistrativo de meia jornada; e dois auxiliares de limpeza.
al, 2006, p. 450). O trabalho da equipe consiste em estimular a partici-
pação dos moradores nas atividades individuais e gru-
Os diferentes tipos de recursos residenciais contem- pais, bem como facilitar o acesso destes aos serviços
plam os mais variados tipos de necessidade dos de saúde mental, centros de reabilitação psicossocial e
usuários, levam em conta o grau de autonomia dos aos recursos comunitários. Todos os programas e ativi-
mesmos e têm equipes técnicas que funcionam de dades desenvolvidas na MR são organizados, visando
maneira variável com tais características. Nas três a trabalhar aspectos referentes à autonomia, funciona-
regiões do país2, identificam-se recursos, tais como mento psicossocial e suporte familiar nas seguintes áre-
mini-residências (MR), “pisos supervisados”, “pisos 3 Os pisos são experiências de moradia (casas ou apartamentos) que fun-
concertados”, além das “plazas de respiro familiar” e cionam de modo diferente da proposta brasileira no que se refere a quantidade
“estancias diurnas de dispositivos residenciais”, bem de moradores, a presença ou não de equipe técnica, a composição das equipes,
a contribuição financeira do usuário e ao acompanhamento nas redes sanitária e
como sub-programas de atenção domiciliar, estes social. As “plazas de respiro familiar” são espaços em que os usuários podem ficar
últimos específicos da Andaluzia, os quais incluem por períodos de curta duração, como finais de semana, com atividades sociais e
de lazer. As “estâncias diurnas” são residências em que os usuários ficam apenas

60 2 Comunidade de Madri, Catalunha e Andaluzia.


durante o dia, conforme seu plano de continuidade de cuidados, envolvido em ofi-
cinas, passeios, grupos de suporte social, etc. 61
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Os serviços residenciais terapêuticos e os principais
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede desafios ao processo de desinstitucionalização

as: auto-cuidado e atividades da vida diária (manejo de convivência, distribuição de tarefas, modificação de nor-
dinheiro, realização de compras e tarefas domésticas, mas de funcionamento, etc. na perspectiva de estimular
hábitos alimentares); educação para a saúde, que com- a participação ativa dos mesmos na tomada de decisões.
porta informações sobre o transtorno mental, seguimen-
to da medicação, contato com a rede de saúde mental; Trata-se, pois, de um recurso com objetivo de ser um es-
relações sociais, que busca favorecer o manejo das in- paço de transição, de aprendizagem para a vida autôno-
terações e relações em grupo, assim como ampliar a ma, seja em seu próprio domicílio, seja em pisos. Não se
participação do usuário em redes sociais normalizadas; trata de uma casa, mas de um serviço que prepara para
lazer e integração comunitária, apoiando a realização a vida cotidiana. É um dos recursos mais interessantes e
de atividades culturais, esportivas, entre outras. potentes da rede de saúde mental, pela sua capacidade
A seleção e o encaminhamento dos usuários para a de alcance de uma clientela muito diversa e ampla, pois
MR são feitos nos serviços de saúde mental como um não está destinado somente às pessoas com histórico de
todo (Centros de Saúde Mental, Centros de Reabilita- internação psiquiátrica e que não possuem vínculos fami-
ção Psicossocial, etc). Há uma comissão de seguimen- liares e sociais. Falta, no Brasil, um dispositivo como esse,
to e derivação que avalia a adequação da proposta de caráter intermediário e transitório, em que se desenvol-
e, a partir disso, elabora um plano individualizado de vem programas de reabilitação, focados no aumento da
atenção residencial (PIAR), estabelecendo os objetivos capacidade de autonomia pessoal e social do usuário, no
e proposta de intervenção. Esse plano é revisado uma
apoio e assessoramento às famílias e coordenado com os
vez por mês pela equipe. Na entrada, é definido um
psicólogo e um educador de referência, profissionais recursos comunitários existentes na área. Nossa experiên-
encarregados do seguimento e articulação com os ou- cia tem sido voltada para crônicos residentes e não con-
tros serviços da rede, que o usuário precisa frequentar templa pessoas que necessitam residências temporárias
para garantir a complementaridade das intervenções. ou que não se adéquam às suas estruturas familiares.
Desde o início, há uma tentativa de estabelecer alguns
acordos e a participação ativa do usuário no processo Fica evidente, portanto, que as MR são dispositivos estra-
de reabilitação. Nos casos em que há participação da tégicos, em virtude de estarem focadas no eixo territorial
família, busca-se uma negociação constante, no sen- e comunitário e de serem capazes de produzir respostas
tido da colaboração com o processo de recuperação. às variadas demandas de saúde, sociais e institucionais
dos usuários. Nesse sentido, constituem-se como práticas
Na perspectiva de fomentar a autonomia e as potencia-
inovadoras desenvolvidas pelos serviços espanhóis para
lidades de cada um, estabelece-se uma rotina de ativi-
sustentar o processo de reforma psiquiátrica local. E ser-
dades, como limpeza dos espaços comuns e do próprio
quarto, uso da lavanderia, pequenas compras, etc. Esti- vem como exemplos de boas práticas em saúde mental,
mular o apoio de um residente a outro, na realização de que podem ser adotadas em diferentes realidades, como
tarefas diárias e circulação pelo bairro, é também foco do é o caso do Brasil, na medida em que estão orientadas
trabalho. Há reuniões semanais entre a equipe e os mora- pelos mesmos princípios da Estratégia da Atenção Psi-
62 dores, nas quais, há discussão acerca dos problemas de cossocial, proposta que norteia nossa política nacional. 63
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Os serviços residenciais terapêuticos e os principais
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede desafios ao processo de desinstitucionalização

Considerações finais A composição de equipes de cuidadores exclusivas


para o SRT (quando necessária) precisa ser avaliada
A partir da análise que, aqui, empreendemos, indica- a partir das conquistas do próprio trabalho de cuidado,
mos algumas proposições, no sentido de contribuir no sentido dos ganhos de autonomia e da inserção so-
com o processo de desinstitucionalização em saúde cial, ou seja, a partir, sobretudo, das necessidades dos
mental no âmbito dos SRTs. Vejamos: moradores na construção de suas vidas;
O processo de concepção e implantação do SRT preci- Para que o trabalho de cuidado e essa avaliação se-
sa ser coletivo, envolvendo os diferentes atores interes- jam possíveis, as ações de supervisão e formação dos
sados e com a participação efetiva dos futuros morado- técnicos precisam ser garantidas de modo a viabilizar,
res durante todo o processo, legitimando a produção junto aos cuidadores, a produção da diferença e a cria-
do cuidado autonomizador desde o início; ção no trabalho;
Para que esse processo coletivo seja possível, é impor- O trabalho de cuidado deve ter, para as equipes téc-
tante o estabelecimento de uma continuidade na parceria nicas envolvidas, diretrizes e atribuições claras dos
entre os diferentes níveis de gestão (federal, estadual e diferentes atores e dispositivos da rede. Para tanto, as
municipal) e entre serviços substitutivos e hospitais psiqui- definições e decisões acerca dessas diretrizes e atribui-
átricos, de modo que o processo de transição do hospital ções precisam ser construídas em espaços coletivos
para a comunidade seja pensando como algo ininterrupto, com a participação sistemática e representativa de ges-
que não se encerra com a inauguração de um SRT. Ou tores, técnicos e usuários da rede de saúde, de modo a
seja, é importante pensar os SRTs como componentes
construir a co-responsabilização pelo cuidado.
de um projeto de desinstitucionalização para o município,
de modo que os recursos (humanos, físicos e financeiros) O financiamento dos SRTs precisa ser garantido no novo mo-
sejam garantidos continuamente. Tal continuidade traz as delo de gestão pactuada, de modo que os recursos com a
condições de possibilidade para a expansão dos SRTs e redução de leitos em hospitais psiquiátricos sejam, efetiva-
da rede como um todo, devendo ser, portanto, encarada mente, investidos nos processos de desintitucionalização;
como estratégia-chave das políticas de saúde mental;
Importante considerar a diversidade de modelos re-
Ao encarar esse processo como algo contínuo no âmbi- sidenciais a partir das demandas de reinserção so-
to político e técnico, três dispositivos colocam-se como cial existentes no contexto brasileiro. A construção de
importantes: 1) as unidades de transição ou casas de dispositivos intermediários para atender às diferentes
passagem, desde que pensadas de maneira articulada demandas de moradia e reinserção social coloca-se
com um efetivo processo de desospitalização; 2) CAPS como exigência atual. Para tanto, a gestão dos recursos
III, de modo a poder atender às necessidades de inter- precisa ser flexível, de modo a garantir a estruturação e
nação dos usuários, prescindindo do hospital psiquiá- continuidade das propostas e modelos.
trico e; 3) os centros de convivência ou dispositivos in-
tersetoriais similares, a fim de ampliar as possibilidades Entendemos, assim, que os SRTs, na realidade brasileira,
podem ser potencializados se devidamente estruturados,
64 de reinserção social, através da construção de redes de
cuidado para além da rede de saúde; avaliados e estabelecidas estratégias adequadas de en- 65
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Os serviços residenciais terapêuticos e os principais
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede desafios ao processo de desinstitucionalização

frentamento aos problemas e desafios que se colocam DELGADO, P. G. G. Política Nacional de Saúde Mental:
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– CAPÍTULO III –
COMUNIDADES TERAPÊUTICAS: QUAL O
LUGAR POSSÍVEL NA REDE?
Marcelo Kimati Dias
A construção do cenário atual
A história atual sobre a inserção de comunidades tera-
pêuticas na rede de atenção em saúde mental, álcool e
drogas passa por uma discussão essencialmente políti-
ca. Vem sendo construído um cenário que tem tornado
relevante, recentemente, esse tema, ainda que as co-
munidades estivessem presentes, há muito tempo, plei-
teando espaço no Sistema Único de Saúde (SUS). Este
pleito é antigo, entretanto, a Reforma Psiquiátrica não
se apropriou, até recentemente, da questão. Para que
as contradições da adoção desse modelo de atenção
sejam explicadas, é necessária uma discussão sobre
a constituição da política de atenção de usuários de
álcool e outras drogas no país.

A construção da rede de atenção em álcool e drogas


(rede AD) no Sistema Único de Saúde é bastante recen-
te. Ainda que, desde a década de 1970, ambulatórios
de psiquiatria e hospitais psiquiátricos tenham assumi-
do, em alguns locais do país, o tratamento de alcoo-
Marcelo Kimati Dias listas e usuários de drogas, somente a partir de 2003
É médico psiquiatra, doutor em ciências sociais pela UNICAMP, militante da
constituiu-se uma política que pensava uma atenção
Reforma Psiquiátrica e Sanitária. Atua na área degestão em saúde mental, em rede, com ofertas articuladas dentro de um mesmo
tendo participado de processos de implantação de serviços substitutivos em princípio. Em 2006, já havia 138 Centros de Atenção
saúde mental em Teresina, Natal, Caicó, João Pessoa, Recife e campinas. Psicossocial (CAPS) implantados no país, sendo que a
Atuou como assessor técnico no ministério da Saúde e foi professor na
Universidade Potiguar, em Natal, entre 2010 e 2012 e atuou junto ao Núcleo de expansão desses serviços tem sido, desde o início des-
ta década, muito lento. Em 2009, foi lançado o Plano
Estudos em Saúde Coletiva na UFRN no ano de 2012. Atualmente é diretor de
Atenção de Redes na Secretaria Municipal de Saúde em Curitiba, no Paraná. Emergencial de Ampliação do Acesso a Usuários de 71
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Comunidades terapêuticas: Qual o lugar possível na rede?
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

Álcool e Outras Drogas (PEAD), pelo Ministério da Saú- paulistas e entidades médicas (em particular a Asso-
de. Uma das grandes marcas deste plano foi incorporar ciação Brasileira de Psiquiatria), passaram a criticar
princípios de intersetorialidade em sua concepção. O essas ações, salientando a necessidade de leitos
governo de então seguia na construção de um mode- hospitalares no tratamento de usuários de drogas.
lo de assistência a usuários de álcool e drogas, refe- Por outro lado, grupos ligados à Reforma Psiquiátrica
renciado na Reforma Psiquiátrica e na criação de uma defendiam o modelo que vinha sendo desenvolvido,
rede de atenção comunitária, articulada pelos Centros com ênfase em ações de redução de danos e trata-
de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD). mento em serviços comunitários.
O PEAD constituiu um esforço para a ampliação da As questões relacionadas à assistência de usuários de
rede de atenção em municípios-chave (maiores muni- crack continuaram como pauta da mídia e, em 2010,
cípios do país e cidades de fronteira), com a criação foram, rapidamente, absorvidas pela campanha elei-
de dispositivos de participação social na gestão desse toral. Nesse âmbito, as comunidades terapêuticas e
processo (câmaras técnicas do PEAD). As ações apro- seu financiamento ganharam grande visibilidade. Sua
fundaram as diretrizes que vinham em construção, des- inserção foi realizada pelo grupo de oposição, ao
de 2003, na medida em que mantiveram a referência qual se alinharam alguns psiquiatras paulistas, que
das ações de redução de danos como eixo estruturante já apoiavam o Governo do Estado de São Paulo na
(criação de escolas de supervisores de danos, ações criação de um modelo de tratamento hospitalar para
de redução de danos, criação dos consultórios de rua). dependentes químicos. Uma das formas de inserção
Desse posicionamento, decorreu um aumento do nú- na campanha foi a partir do discurso que reconhecia
mero de dispositivos da rede, o que apontava para um a existência de uma rede de comunidades terapêuti-
reconhecimento da complexidade do fenômeno do uso cas já instalada e, supostamente, eficaz e que não era
de drogas. Um dos dispositivos que passou a ser mais financiada pelo governo.
financiado diz respeito ao componente hospitalar do
plano, um de seus eixos. A rede em hospitais gerais Nesse sentido, o Plano Integrado de Enfrentamento ao
se expandiu muito lentamente, por diversos motivos, Crack constituiu uma resposta ao momento político. As
incluindo o financiamento insuficiente, a suposta es- novas e fortes demandas políticas para a criação de
cassez de leitos hospitalares no país e, principalmente, formas de financiamento do governo federal para co-
a resistência dos hospitais em receberem usuários de munidades terapêuticas tornaram emergente a necessi-
drogas em tratamento. dade de que se estabelecessem novos referenciais na
relação entre Estado e essa modalidade institucional. É
Essa lentidão na ampliação da rede hospitalar, alia- importante salientar, ainda, a forte articulação que gru-
do ao fechamento progressivo de leitos de hospitais pos ligados a comunidades terapêuticas têm, há anos,
psiquiátricos, acentuou uma polarização quanto aos no congresso e no senado. Uma demonstração disso
referenciais político-assistenciais de álcool e drogas foi dada em abril de 2011, com a criação de frentes par-
no país. De um lado, grupos de psiquiatras, espe- lamentares suprapartidárias que apoiavam, abertamen-
72 cialmente aqueles ligados a algumas universidades te, a ampliação do financiamento a estes serviços. 73
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Comunidades terapêuticas: Qual o lugar possível na rede?
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

Financiamento de Quadro 1: Projetos de Financiamento de


Comunidades Terapêuticas por Região
comunidades terapêuticas Região – 141 municípios
Distribuição geográfica dos
145 projetos inscritos (%)
No âmbito do Plano Integrado de Enfrentamento ao Cra-
Sul 58,87%
ck, no segundo semestre de 2010, a Secretaria Nacio-
nal Sobre Drogas (SENAD), conjuntamente ao Ministé- Sudeste 22,69%
rio da Saúde, lançou o primeiro edital de financiamento Centro-Oeste 9,22%
de comunidades terapêuticas, promovido pelo governo Nordeste 8,51%
federal. Entretanto, a articulação da SENAD e do Minis- Norte 0,71%
tério da Saúde junto a essas instituições é mais antiga. Fonte: Coordenação Nacional de Saúde Mental, 2010.
Nos anos anteriores, havia sido promovido um grande
levantamento acerca dessas instituições pela SENAD e, Ao contrário do anunciado no Edital do processo seleti-
no primeiro semestre de 2010, representantes das fede- vo, que coloca a comunidade terapêutica como um dis-
rações que agregam algumas comunidades terapêuti- positivo a mais no acolhimento de pessoas que fazem
cas haviam se reunido com o Secretário de Atenção à uso de drogas, fortalecendo a rede de atenção integral,
Saúde e representantes da SENAD. a grande maioria dos projetos inscritos não apresenta-
O financiamento das comunidades pelo poder públi- va articulação com a rede local de atenção à saúde e
co vem acontecendo em diversas partes do país, re- de assistência. Muitas das comunidades terapêuticas
ferenciadas em diferentes demandas, mas focados, apresentam “centros de seleção”, que instituíam uma
especificamente, no tratamento de usuários de álcool porta de entrada para o serviço, de forma totalmente in-
e drogas. Isso ocorre dentro e fora do Sistema Úni- dependente do restante da rede. Isto fortalece a noção
co de Saúde, seja através dos governos municipais, de que esses serviços não só são desarticulados do
seja dos estaduais. Entretanto, ainda que esse finan- restante da rede de atenção em álcool e drogas, como
ciamento se origine mais, frequentemente, de pastas, pretendem criar um sistema que prescinda dela.
como Secretaria de Assistência, e a incorporação
A quase totalidade dos projetos institucionais das co-
desses leitos tenha um caráter de proteção social e
munidades terapêuticas, incluindo os que participaram
albergamento, os usuários dessas instituições são os
do edital, impõe um período de permanência que varia
mesmos, de fato ou potencialmente, da rede de aten-
de seis meses a um ano de internação, limita o acesso
ção em saúde mental.
da família e não prioriza a articulação com a rede exis-
Como resultado do plano, o Edital nº001/2010/GSIPR/ tente. Na concepção desses serviços, é necessária a
SENAD/MS foi lançado em setembro de 2010, com vis- reclusão de usuários de drogas, uma vez que estes
tas ao credenciamento de leitos de acolhimento em co- desenvolvem uma conduta marginal, que necessita ser
munidades terapêuticas. Após quarenta e cinco dias, isolada da sociedade pela via do distanciamento ge-
141 municípios de todo o Brasil inscreveram 145 proje- ográfico das instituições com os centros das cidades.
74 tos, distribuídos da seguinte forma: As ações são focadas no cumprimento de regras, na 75
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Comunidades terapêuticas: Qual o lugar possível na rede?
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

restrição da liberdade, além da visível falta de qualifi- apresenta exigências muito menores para essas institui-
cação dos profissionais. ções, abrindo espaço para sua regularização e poste-
rior financiamento. A partir de então, diversos movimen-
A porta de entrada de várias comunidades terapêuti- tos sociais, gestores estaduais e militantes da Reforma
cas se dá pela inserção do usuário a partir de centros Psiquiátrica colocaram-se contrários à possibilidade de
de seleção ou escritórios próprios, com critérios pouco ampliação do financiamento desses serviços. Em con-
claros de admissão. É baixa, ou quase inexistente, a ar- trapartida, o coordenador nacional de saúde mental
ticulação desses estabelecimentos com os dispositivos anunciou, em agosto de 2011, a ampliação da rede de
da Atenção Básica, com os serviços de urgência/emer- atenção comunitária, uma ação que iria tornar todos os
gência, ou com os CAPS (quando há no município). É CAPS ad II e CAPS III de funcionamento 24 horas.
sabida a resistência de muitas comunidades terapêuti-
cas em utilizar medicações psicotrópicas durante o pe-
ríodo de internamento. Essa norma implica risco, uma O que são as comunidades
vez que é comum a presença de comorbidades psiqui-
átricas em usuários de álcool e outras drogas.
terapêuticas e as contradições para
sua incorporação à rede de atenção
Os recursos relativos ao financiamento dos projetos
aprovados (por volta de 970) foram repassados, no iní- As comunidades terapêuticas são, no Brasil, institui-
cio de 2011, para os municípios, que se organizaram ções fechadas. São, em sua maioria, desarticuladas
para a contratação desses serviços. Ao longo do pri- do restante da rede de atenção, e vêm sendo utiliza-
meiro semestre do ano, passaram a ser veiculadas fa- das como parte da rede complementar na abordagem
las de membros do governo federal, apontando para a de usuários de álcool e outras drogas em todo o país.
necessidade de incorporação das comunidades tera- Existe uma grande heterogeneidade na qualidade do
pêuticas no Sistema Único de Saúde, mediante a am- cuidado ofertado nas comunidades terapêuticas. A
pliação do financiamento desses serviços. maior parte dos serviços atua sem regularização e cre-
denciamento, e existe, frequentemente, um impasse na
Diversos estados da União têm, há vários anos, linhas caracterização desses dispositivos, enquanto serviços
de financiamento de internação nas comunidades te- de assistência, saúde ou rede de proteção social. Ainda
rapêuticas sem que a RDC 101, que regulamentava as que esses serviços não seguissem as recomendações
comunidades terapêuticas mediante exigências de cri- da RDC 101, neste momento eles estão se adaptando à
térios mínimos para seu funcionamento, viesse sendo RDC 29, conforme já discutido.
seguida. A alegação, nesses casos, era da rigidez dos
instrumentos normativos. Esse argumento vinha levan- Entre as contradições da incorporação formal das co-
do as federações de comunidades terapêuticas a rei- munidades terapêuticas na rede de atenção em saúde
vindicar dos órgãos do governo mudança nos critérios mental, podemos apontar:
de regulamentação.
1. São instituições fechadas, que, na maior parte das
Essa ação política resultou, em agosto de 2011, na re- vezes, promovem internações por longos períodos. Isso
76 vogação da RDC 101. Foi publicada a RDC 29, que contraria, totalmente, os conceitos que estruturam todo o 77
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Comunidades terapêuticas: Qual o lugar possível na rede?
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

restante da política de atenção em álcool e drogas no país, A análise desses pontos denuncia a inadequação das
que propõe abordagens próximas ao território de origem comunidades terapêuticas na lógica dessa política:
do usuário e o fortalecimento de seus vínculos sociais.
1. Iniquidade – os usuários de álcool e drogas partem de
2. Apresentam articulação frágil com a rede de aten- uma condição de estigma inegável, o que cria barreiras
ção a usuários de álcool e drogas. Atualmente, todos de acesso na rede de atenção. Esse é um fenômeno
os serviços da rede AD têm seus modelos baseados mundial. Uma das estratégias para a diminuição da ini-
em experiências bem sucedidas, testadas em municí- quidade é a promoção de ações para essa população
pios e que constituíram estratégia para preencher lacu- em espaços de cuidado utilizados por outros usuários,
nas assistenciais. As Casas de Acolhimento Transitório como o desenvolvimento de projetos terapêuticos con-
(CATSs), os CAPS ad III, os Serviços de Referência Hos- siderando as equipes de saúde da família como refe-
pitalar em Álcool e Outras Drogas (SHRAD) e os con- rência. Isso é possível mediante a realização de ações
em parceria com CAPS e com os Núcleos de Apoio à
sultórios de rua surgiram dessa forma. As comunidades
Saúde da Família (NASF). Nesse sentido, a abordagem
terapêuticas não tem, em seu modelo, a perspectiva de
realizada em comunidades terapêuticas é promotora de
complementar as ações de uma rede de atenção. Ao
estigma, já que constitui um modelo institucional que
contrário, o projeto terapêutico das comunidades é fe-
produz identidade ao seu usuário.
chado, tem tempo de internação pré-definido, há uma
programação para o primeiro, segundo, terceiro meses 2. Rede – conforme discutido, a noção de rede implica
de tratamento e muitas têm ambulatórios para o pós- uma co-responsabilização dos usuários, dos técnicos
-alta. As comunidades terapêuticas não funcionam se- de diferentes serviços e dos familiares na produção de
gundo demandas da rede, mas se entendem como um cuidado. A abordagem em comunidades terapêuticas
dispositivo completo. desresponsabiliza o restante da rede e os grupos de
apoio social ao usuário. A experiência dos hospitais
3. Funcionam com longos períodos de internação, o psiquiátricos mostra que esse tipo de dispositivo tira a
que implica em processos de ruptura com a rede de potência da rede, que se torna menos flexível e toleran-
relações sociais de seus usuários. te com o usuário e com suas recaídas. A rede passa,
então, a entender a ação das comunidades como o re-
4. Não são, em sua maioria, instituições laicas; a abor- curso mais facilmente operacionalizável. Daí a necessi-
dagem terapêutica tem forte relação com a denomina- dade de se definir, com clareza, o papel desse tipo de
ção religiosa à qual elas pertencem. instituição na rede, porque, caso este não seja definido,
a prática diária nos municípios irá fazê-lo. E este papel
irá reproduzir a concepção hegemônica de que o cui-
Discussão: Comunidades Terapêuticas dado em álcool e drogas deve ocorrer com isolamento
e Reforma Psiquiátrica do usuário. A rede substitutiva irá se consolidar como
complementar.
No âmbito da Reforma Psiquiátrica, identificamos a im-
portância de 05 conceitos na estruturação de uma po-
78 lítica de atenção a usuários de álcool e outras drogas.
3. Complexidade – a atenção em rede tem como refe-
rência a complexidade do fenômeno do uso de drogas 79
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Comunidades terapêuticas: Qual o lugar possível na rede?
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

e a percepção de que usuários apresentam demandas 5. Contexto – o fenômeno do uso de drogas vai muito
de cuidado de diferentes naturezas. O Plano Integra- além do efeito psicotrópico da substância. Ainda que
do de Enfrentamento ao Crack incluiu, por exemplo, possamos caracterizar os efeitos de cada droga, sa-
recursos para a implantação de 03 diferentes modali- bemos que estes são fortemente influenciados pelo
dades de leitos de atenção integral: leitos em Serviços contexto. Nesse sentido, o uso de drogas se caracte-
de Referência Hospitalar em Álcool e Outras Drogas riza pela heterogeneidade. O consumo está, frequen-
(SHRAD), Casas de Acolhimento Transitório (CATSs) temente, associado a situações ritualizadas, hábitos
e leitos de CAPS III AD. Cada um desses dispositivos locais que devem ser considerados na elaboração de
pretende atender a uma demanda diferente de atenção: qualquer projeto terapêutico. O isolamento de usu-
nas Casas de Acolhimento, pacientes em tratamento e ários em comunidades terapêuticas esgota toda a
em situação de vulnerabilidade por períodos mais lon- possibilidade de abordagens contextualizadas, consi-
gos; nos SHRad, pacientes com morbidades clínicas e derando o usuário fora de sua complexidade, subjeti-
agravos decorrentes do uso de drogas e, nos CAPS III vidade e condição de sujeito.
AD, pacientes em tratamento no serviço, mas em pe-
ríodos de crise. A criação de diferentes dispositivos A reforma psiquiátrica é, há anos, criticada por propor
de atenção reforça a ideia de que a complexidade do uma política, supostamente, baseada em um discurso
uso de drogas não permite que um único dispositivo ideológico, sem fundamentação técnica. Desta vez,
de atenção consiga dar respostas apropriadas a todas não há justificativa técnica para o financiamento das
as diferentes demandas decorrentes do uso de drogas. comunidades terapêuticas. Não sabemos quantos lei-
Em função disso, os planos procuraram fortalecer a tos são necessários, quem se beneficia disso, não há
composição de uma rede de atenção potente e articu- estudos que comprovem diminuição de mortalidade
lada. Qual o suposto papel dos leitos de acolhimento de de pessoas que são submetidas a essa abordagem e
comunidades terapêuticas nesse contexto? não há estudos de promoção de abstinência em lon-
4. Singularidade – o processo de estigmatização dos go prazo no pós-alta fora de ambiente protegido. A
usuários de drogas passa por uma concepção moraliza- demanda é política, e de uma política, sabidamen-
dora, que associa o uso à fraqueza, à deficiência moral, te, não da saúde. A sustentação da incorporação das
ao erro de caráter, etc. O desenvolvimento de projetos te- comunidades terapêuticas ao SUS parece passar por
rapêuticos singulares procura superar essa tendência de um discurso de uma legitimidade, que vem da força
igualar todos os usuários com referência, exclusivamente, política de grupos que apoiam o modelo. Reforçan-
no uso de drogas, considerando esse aspecto como um do a fragilidade técnica da proposta de incorporação
dos elementos na vida do sujeito. As comunidades tera- das comunidades terapêuticas ao SUS, sabemos que
pêuticas desenvolvem ações a partir de uma lógica ins- a força desses grupos não está na instituição que de-
titucional e não do usuário, o que torna todas as aborda- fendem, mas no caráter religioso que permeia todo
gens homogêneas e não considera as particularidades o projeto institucional e que insere as comunidades
de cada um. Ao contrário, existe um caráter doutrinário numa ideologia (o “poder da fé, da vontade contra o
vício”, etc) que agrega força aos grupos que apoiam
80 nas abordagens, que procura uniformizar o comporta-
mento de usuários que passam por essa experiência. politicamente esse modelo. 81
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.841, de 20
de setembro de 2010. Institui, no âmbito do Sistema
Único de Saúde – SUS, o Centro de Atenção Psicosso-
cial de Álcool e outras Drogas – 24 horas – CAPS AD III.
Brasília, 2010.
______. Portaria Nº 1.190, de 4 de junho de 2009. Ins-
titui o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao
Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas no
Sistema Único de Saúde – SUS (PEAD 2009-2010) e
define suas diretrizes gerais, ações e metas. Brasília,
2010.
______. Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria Nº
480, de 20 de setembro de 2010. Sobre financiamento
– CAPÍTULO IV –
de leitos de atenção integral em serviços hospitalares A SUPERVISÃO CLÍNICO-INSTITUCIONAL:
de referência em álcool e drogas. Brasília, 2010. UM DISPOSITIVO TEÓRICO-PRÁTICO
______. ANVISA. Resolução RDC nº 29 – 30 de junho PARA O FORTALECIMENTO DAS
de 2011. Brasília, 2010.
REDES EM SAÚDE MENTAL
______. Resolução – RDC nº 101, de 30 de maio de
2001. Brasília, 2001. Sabrina Ferigato
Marcelo Kimati Dias
SECRETARIA NACIONAL SOBRE DROGAS – SENAD.
Ministério da Saúde. Edital nº 003/2010/GSIPR/SE-
NAD / MS projetos de implantação e/ou ampliação
de Casas de Acolhimento Transitório. Brasília, 2010.
______. Edital nº 001/2010/GSIPR/SENAD / MS leitos
de acolhimento para usuários de crack e outras dro-
gas em Comunidades Terapêuticas. Brasília, 2001.
Este texto tem por objetivo descrever e analisar as cons-
truções teórico-práticas sobre a Supervisão em Saúde
Mental. Procuramos, ainda, discutir a potência desse
dispositivo na consolidação da Reforma Psiquiátrica
Brasileira e o fortalecimento das redes de saúde. Para
isso, realizamos uma revisão bibliográfica e documen-
Sabrina Helena Ferigato tal, que será atrelada à experiência prática de supervi-
são vivida pelos autores.
Terapeuta Ocupacional, pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas
(PUC Campinas 2003). Aprimoramento em Saúde Mental pela Universidade A experiência e as pesquisas apontam que a super-
de Campinas (UNICAMP 2004), mestrado em Filosofia Social, pela PUC/
Campinas (2006) e é doutora em Saúde Coletiva, pelo Departamento visão clínico-institucional vem se consolidando como
de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da uma ferramenta potente para a gestão de coletivos e
UNICAMP. Tem experiência docente na Faculdade de Terapia Ocupacional transformação das práticas em saúde mental em dire-
da PUC/Campinas e como terapeuta ocupacional em CAPS e SRTs. Tem ção à democratização das instituições, à qualificação
experiência na área de Terapia Ocupacional, Saúde Mental e Saúde Coletiva. do processo de trabalho e ao aumento da eficácia tera-
Atua, principalmente, nos seguintes temas: Terapia Ocupacional, Loucura, pêutica dos serviços de saúde. Nesse sentido, a super-
Exclusão, Inclusão, CAPS, Atendimento à Crise e Serviços Residenciais
Terapêuticos, SUS, Saúde Coletiva e Filosofia da Diferença. Integrante do visão constitui uma ferramenta que ocupa o espaço de
grupo de pesquisa “Conexões: Políticas da Subjetividade e Saúde Coletiva”, fronteira entre três grandes campos que norteiam suas
do DMPS/UNICAMP práticas: a gestão, a clínica e a formação.

Marcelo Kimati Dias Quando consideramos a complexidade de um dispo-


sitivo que faz interface com esferas como essas, igual-
É médico psiquiatra, doutor em ciências sociais pela UNICAMP, militante da
mente complexas, referimo-nos a um modo de pensar
Reforma Psiquiátrica e Sanitária. Atua na área degestão em saúde mental,
tendo participado de processos de implantação de serviços substitutivos em a ação da supervisão como uma ação que é, simulta-
saúde mental em Teresina, Natal, Caicó, João Pessoa, Recife e campinas. Atuou neamente, clínica, ética e política. Ao mesmo tempo em
como assessor técnico no ministério da Saúde e foi professor na Universidade que remete a aspectos da intervenção técnica de cada
Potiguar, em Natal, entre 2010 e 2012 e atuou junto ao Núcleo de Estudos em profissional e da equipe (clínica), aborda o modo em
Saúde Coletiva na UFRN no ano de 2012. Atualmente é diretor de Atenção de
que se pensa e age sobre o processo saúde-doença
Redes na Secretaria Municipal de Saúde em Curitiba, no Paraná.
(ética) e, finalmente, apresenta uma dimensão política, 85
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios A supervisão clínico-institucional: um dispositivo teórico-
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede prático para o fortalecimento das redes em saúde mental

na medida em que remete a aspectos do processo de com transtornos mentais, a supervisão foi construída
trabalho, às relações de poderes institucionais e inter- como uma estratégia para ampliar esse processo, bus-
disciplinares, ou seja, a mecanismos que permitem a cando apoiar a produção de novas maneiras de cuidar
construção coletiva de projetos para os usuários, para e de trabalhar em Saúde Mental (BERTUSSI, 2011).
as equipes e para os serviços. Por essa razão, afirma-
mos a ideia de que toda supervisão é, também, a um só A partir desse referencial, em sintonia com as recomen-
tempo, clínica e institucional, uma vez que a discussão dações da III Conferência Nacional de Saúde Mental,
de casos clínicos ou projetos terapêuticos estão, intrin- a supervisão foi, formalmente, instituída no SUS como
secamente, ligados às relações institucionais e vice- uma ferramenta da gestão em saúde mental, em 2005,
-versa (BRASIL, 2007; FIGUEIREDO, 2008). (portaria Nº 1174/GM/MS), dentro do Programa de Qua-
lificação dos Centros de Atenção Psicossocial. Nesse
Com o intuito de propor um aporte teórico-prático sobre cenário, esperava-se do supervisor que o mesmo fosse
uma abordagem ampliada e compartilhada da supervi- um profissional externo ao serviço, qualificado, prática
são em saúde mental, iniciaremos esse texto a partir de e teoricamente, para exercer essa função, a partir de
uma breve contextualização do processo de construção diferentes formações.
dessa ferramenta de gestão no Sistema Único de Saú-
de (SUS), para, posteriormente, pensarmos em como Entre as atividades do supervisor, é possível, a partir
a supervisão pode fazer a interface entre a gestão, a dessa concepção, incluir a discussão e o acompanha-
formação e a clínica de modo eficaz e comprometido mento do trabalho realizado pela equipe, a problemati-
com a liberdade. Por fim, nossa proposta é descrever e zação do projeto terapêutico do serviço e dos usuários,
analisar os desafios que os processos de supervisão e e a intervenção sobre as questões institucionais e de
da Reforma Psiquiátrica vêm enfrentando, na atualida- gestão que emergirem no encontro com a equipe. É im-
de, bem como apresentar possíveis estratégias para o portante, ainda nessa concepção, que essa atividade
enfrentamento desses desafios. tenha uma regularidade semanal ou quinzenal (sendo,
no mínimo, mensal) (BRASIL, 2007).
A supervisão clínico-institucional Conforme afirmado na Introdução, a discussão dos casos
clínicos deve procurar sempre levar em conta o contexto
Cultural e historicamente, a palavra supervisão esteve institucional: o serviço, a rede, a gestão, a política pública
sempre relacionada a ideias, como avaliação, fiscaliza- e o território. Em outras palavras o supervisor deve:
ção, previsão, controle do trabalho e do trabalhador, ou
à função administrativo-gerencial, que vem de alguém
buscar sustentar o diálogo ativo entre a dimensão po-
que tem uma visão “superior” – uma “super-visão” so- lítica da clínica e a dimensão clínica da política, produ-
bre a equipe. No entanto, no campo da Saúde Mental, zindo condições propícias de acolhimento pela equipe,
desde sua origem, o conceito de supervisão vem se de modo a também acolhê-la em suas dificuldades,
afirmando em outras direções. No contexto da Reforma tensões internas, sobrecarga, ajudando a construir um
ambiente de trabalho favorável (...) e não ser trabalha-
Psiquiátrica, que pretendia superar a lógica manicomial dor da rede a qual ele fará a supervisão, como uma
de tratamento da loucura a partir da criação de uma
86 rede substitutiva e comunitária de atenção às pessoas
estratégia para garantir um olhar estrangeiro aos pro-
cessos institucionais (BERTUSSI, 2011, p. 111). 87
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios A supervisão clínico-institucional: um dispositivo teórico-
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede prático para o fortalecimento das redes em saúde mental

Através do financiamento que passou a ser realizado muito distante de ser hegemônica no país. Da mesma
a partir de 2005 por consecutivos editais de seleção forma, a inclusão da supervisão na rede de ofertas de
do Ministério da Saúde, induziu-se a contratação de su- dispositivos para a saúde não implica, apenas, um
pervisores, pelos municípios, para os Centros de Aten- modo de gerir, mas, também, uma política que valoriza
ção Psicossocial (CAPS). Com a afirmação da noção a capacitação permanente dos trabalhadores e, conse-
de rede de atenção em saúde mental como promotora quentemente, uma clínica potente.
do cuidado, os últimos editais apontaram para o papel
da supervisão como um dispositivo articulador de rede,
ocupando um espaço cada vez mais significativo no A supervisão clínico-institucional: um
campo da saúde como um todo, embora, ainda, com espaço de fronteira entre a clínica,
um evidente privilégio à saúde mental.
a gestão e a formação em saúde
Observa-se um reconhecimento da importância des-
A afirmação de ocupar o espaço fronteiriço entre a for-
se dispositivo no âmbito Ministerial e nas instâncias de
mação, a clínica e a gestão dá ao supervisor um lugar
controle social, ainda que o investimento e o desenvol-
privilegiado para a promoção de mudanças nas práti-
vimento das supervisões sejam desiguais em todo país.
cas de saúde. No entanto, a prática de supervisionar,
Essa desigualdade regional implica diferentes priorida-
tendo esses eixos como norte, não traz, por si, trans-
des de gestão, bem como diferentes formas de contra-
formações para as práticas cotidianas. Por isso, propo-
tação e remuneração de supervisores e de estabilidade
mos um esforço teórico-prático de pensar como fazer
dada a esse profissional. Com a finalidade de fortale- esses três campos complexos operarem de modo con-
cer a rede de atenção, alguns municípios optam por vergente a partir da intervenção em coletivos. Como
incorporar ao seu quadro funcional esse profissional. forma de sistematizar esse esforço, abordaremos, a
Na maior parte dos municípios, entretanto, observamos seguir, esses três eixos.
que o investimento da gestão se restringe aos repas-
ses do Ministério da Saúde. São frequentes os atrasos
no pagamento, dificuldades de remuneração de profis- Eixo da clínica
sionais, mesmo em municípios que recebem o repasse
para contratação de supervisores. O aspecto clínico da supervisão é, sem dúvida, o mais
consolidado histórica e teoricamente. Este eixo tem, na
Isso se deve, especialmente, em decorrência das dife- clínica psicanalítica, contribuições inegáveis, especial-
renças de concepção acerca da gestão que identifica- mente a partir da ferramenta de construção do caso
mos no país. A supervisão clínico-institucional se alinha clínico (VIGANÒ, 1999). Somada às contribuições da
a um modo de fazer gestão, que entende a importância psicanálise e de outras correntes psicológicas, além de
da criação de espaços de trocas, de debate, de refle- outros saberes da saúde, das ciências sociais e da filo-
xão e de articulação política entre os trabalhadores – sofia, a supervisão foi, gradativamente, complexifican-
uma gestão que investe na potência dos encontros e do seu campo de saber. Através dos incrementos das
no compartilhamento das decisões entre gestores, tra- políticas públicas e da saúde coletiva, a intervenção clí-
88 balhadores e usuários. Essa concepção de gestão está nica do supervisor amplia seu raio de ação e incorpora 89
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios A supervisão clínico-institucional: um dispositivo teórico-
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede prático para o fortalecimento das redes em saúde mental

conceitos, como o de construção de projetos terapêu- sionada. Essa demanda tende a criar uma apropriação
ticos singulares, co-gestão (CAMPOS, 2005), fluxogra- equivocada do espaço de trabalho, fazendo com que
mas e linhas de cuidado (MERHY, 2002), entre outros os outros eixos da supervisão se percam. Existe, nessa
elementos ativos na Reforma Sanitária. escuta, suporte e cuidados com a equipe, em referência
frequente ao processo de trabalho e à funcionalidade
Nessa direção, a intervenção sobre as práticas de cui- das relações institucionais, o que dá a esta dimensão
dado passa, gradativamente, a ter o usuário como ele- um caráter acolhedor e pragmático. Observa-se, por
mento central, entendendo o projeto terapêutico como exemplo, que a forma com que se oferta cuidado em
instrumento articulador das ofertas de cuidado. O desen- alguns CAPS está fortemente associada ao sofrimento
volvimento, através da supervisão clínico-institucional, de das equipes, que precisa ser trabalhado.
projetos individualizados tem a potência de articular os
processos de trabalho de uma equipe ao posicionamen-
to dos dispositivos supervisionados na rede de atenção. Eixo da gestão
Dessa forma, o foco das práticas de supervisão nos pro-
jetos singulares torna possível não só que o cotidiano de A rede de atenção e seus serviços supervisionados fa-
uma equipe seja revisto, mas, também, que seja compre- zem parte de um sistema público de saúde e esses es-
endido como ela pode se reinserir na rede da qual ela tão sob uma mesma gestão municipal. Dessa forma, os
faz parte, dando às equipes a possibilidade de protago- serviços supervisionados se inscrevem no sistema úni-
nizar um reposicionamento, permitindo, por sua vez, que co de saúde e devem funcionar em congruência com o
estas ganhem poder na gestão do cuidado. restante da rede. Existe, assim, uma confluência entre a
gestão do sistema e a supervisão de seus dispositivos,
Nesta dimensão clínica, o supervisor pode, ainda, atuar no que diz respeito ao processo de trabalho desejado,
como facilitador, catalisador, tradutor de sentimentos, articulação com os demais serviços, criação de fluxos
favorecendo leituras que facilitem o grupo a trabalhar e acolhimento de demanda. Entretanto, os serviços su-
os conflitos e a crescer com eles (PITTA, 2006). pervisionados apresentam uma gestão própria, sendo
necessário delimitar o campo de atuação da supervi-
Poder falar sobre o trabalho com a loucura e todos os são na sua interface com a gestão.
seus efeitos no corpo e na vida dos trabalhadores é mui-
to importante para a diminuição do sofrimento psíquico Onocko e Furtado et al (2008) apontam, em pesquisa
que advém dessa função. Dar passagem ao sofrimento participativa envolvendo gestores, usuários e trabalha-
do trabalho cotidiano; escutar os trabalhadores, numa dores dos CAPS de Campinas, que a supervisão é tida
postura de abertura e suporte; dar corpo e organiza- como um “ponto forte” da gestão e uma ferramenta
ção aos múltiplos fluxos que emergem do grupo; cuidar importante para qualificar o processo de trabalho nas
dos cuidadores; e fazer com que a equipe se ponha instituições, especialmente quando essas supervisões
em análise são algumas das funções do supervisor no podem ser, periodicamente, avaliadas pelas equipes e
âmbito da clínica. pelas secretarias de saúde.
É importante, entretanto, que, para tal, o supervisor não A dimensão da gestão, no ato de supervisionar uma
90 atribua para si o papel de terapeuta da equipe supervi- equipe, surge na medida em que o processo provoca 91
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios A supervisão clínico-institucional: um dispositivo teórico-
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede prático para o fortalecimento das redes em saúde mental

transformações no desenvolvimento do trabalho, nas Do ponto de vista das relações entre o serviço e o
relações interdisciplinares, intra e inter institucionais. restante da rede, existe uma dimensão política intrín-
Nesse sentido, é possível sistematizar a dimensão ges- seca à supervisão, na medida em que inclui a gestão
tora da supervisão segundo dois referenciais: transfor- do serviço em sua relação com a rede de saúde e os
mações internas ao serviço e transformações das rela- demais campos que intervém na construção da saúde
ções do serviço com o restante da rede. mental no território. Embora não seja regra, de acordo
com a qualidade do supervisor, essa atuação implica
Do ponto de vista interno ao serviço, a supervisão ins-
estimular ações de matriciamento (CAMPOS, 2005) e
titucional atua no sentido de transformar as relações
de controle social – ferramentas, potencialmente, for-
no interior da equipe, com referência no processo de
talecedoras da rede de saúde mental. Entender essas
trabalho. Essa transformação demanda abertura para
ações como atributos da supervisão vai de encontro a
escuta e contratos de gestão com indivíduos e grupos
uma necessidade de revisão do papel, excessivamen-
no cotidiano institucional, de forma a induzir transfor-
te, centralizador dos CAPS na construção histórica da
mações na gestão da clínica. A supervisão, nesse as-
saúde mental no Brasil.
pecto, trata de operar assegurando a responsabilidade
partilhada na equipe, ao mesmo tempo em que essa
responsabilidade, também, é de cada um em seu ato Eixo da formação
(FIGUEIREDO, 2008).
Em pesquisa avaliativa realizada na rede de Saúde
Isso implica, por um lado, a problematização da rela- Mental de Campinas, a supervisão é tida como um ele-
ção estabelecida entre a coordenação dos serviços e a mento que contribui para a formação dos trabalhadores
equipe, em direção à democratização das instituições. e para a redução do seu sofrimento psíquico no traba-
Cabe ao supervisor ser um facilitador para que as rela- lho com a loucura (ONOCKO FURTADO et al, 2008).
ções de poder sejam compartilhadas e mais transver- Nessa pesquisa, a contribuição da supervisão, como
sais, entendendo esse movimento, conforme nos apon- espaço de formação permanente, é reconhecida por
ta Guattarii (1985), que chama de “transversalidade” trabalhadores e gestores nas oficinas e grupos focais
essa variedade de linhas de forças que encontramos e, em concordância, os pesquisadores atentam, ainda,
numa instituição. Entre essas diferentes linhas de força, para o risco da supervisão se tornar um espaço de sa-
mencionamos, por exemplo, as diferentes formações ber-poder, que opera sobre as equipes descoladas do
dentro dos serviços de saúde. No âmbito da gestão, o processo de gestão local. Mas como pode a supervi-
supervisor torna possível que esses campos de saber são contribuir para a formação dos trabalhadores?
se agreguem e sejam discutidos. A supervisão, nesse
sentido, tem uma potência transformadora e impulsio- Estimular trocas entre esses saberes, fazer circular o
nadora, que vai contra a inércia e o automatismo, que poder entre as diferentes categorias discursivas e es-
podem se instalar, a qualquer momento, como efeito timular análises críticas que façam articular as práticas
do trabalho com a loucura e com a gestão pública. A de saúde, as políticas públicas e diferentes referenciais
regularidade da presença do supervisor opera efeitos teóricos atualizados são alguns dos desafios da super-
92 importantes no trabalho cotidiano (FIGUEIREDO, 2008). visão. Nesse sentido, quando o supervisor consegue 93
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios A supervisão clínico-institucional: um dispositivo teórico-
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede prático para o fortalecimento das redes em saúde mental

dar passagem a ações como essas, evidencia que sua da área que desenvolvem, ou venham a desenvolver,
supervisão é uma ferramenta de formação continuada essa atividade, o que, obrigatoriamente, inclui aspectos
do trabalhador, em loco, no próprio serviço. da saúde coletiva e redes sociais.
Essa questão supervisão/formação traz consigo diver- Buscando atender a essa demanda, o Ministério da
sas visões sobre o processo saúde-doença e diferentes Saúde, por meio da Coordenação Geral de Saúde Men-
discursos, variações de poder e múltiplos saberes, que tal, Álcool e Outras Drogas e das secretarias estaduais,
compartilham entre si um mesmo campo de ação – o criou, em 2010, e iniciou a implementação em 2011, a
campo da saúde mental e o universo da loucura. Escola de Supervisores, como dispositivo capaz de
criar mecanismos de multiplicação e sustentabilidade
Para que essa fronteira da supervisão com a formação das ações de qualificação da rede.
não se confunda com um “curso”, é importante que
o supervisor promova práticas de formação sem “dar Assim, a Escola de Supervisores é “um projeto de fo-
aula” – fazer uso de recursos pedagógicos sem assu- mento à qualificação das ações de supervisão que
mir uma postura “professoral” ou de quem está ali para acontecem nos CAPS e nas redes municipais e intermu-
ensinar a equipe como fazer algo que elas não saibam. nicipais, com abrangência intersetorial, voltado para a
Valorizar o saber de cada um e potencializar a capaci- capacitação teórica e prática de profissionais, na forma
dade de análise da equipe é fundamental. O supervisor de cursos, seminários, oficinas, encontros, ações de
irá intermediar e fazer dialogar o saber que já está ali, matriciamento e outras, de modo a assegurar a forma-
somando com as contribuições que ele tem a trazer. ção permanente de profissionais aptos a atuarem como
Nessa direção, por exemplo, na discussão de um pro- supervisores clínico‐institucionais de rede de atenção
jeto terapêutico singular, não é função de o supervisor psicossocial” (BRASIL, 2010).
construir uma proposta unilateralmente, ou se colocar
no lugar de quem aprova ou desaprova a conduta da
equipe, mas estimular a equipe a usar suas ferramentas Pensando os desafios da
e colocá-las em análise. atualidade e a supervisão
Nesse sentido, o supervisor atua como apoiador na Depois de quase três décadas de construções e des-
construção coletiva de um projeto terapêutico eficaz construções promovidas pela reforma psiquiátrica no
para o usuário, a partir das potências e limites dos tra- modelo de atenção à saúde mental no Brasil e depois
balhadores e da instituição. Nesse processo, constrói- de pouco mais de seis anos da inserção formal das su-
-se um espaço necessário de trocas entre os atores na pervisões no SUS, faz-se necessário pensarmos quais
discussão de uma prática clínica complexa. são os desafios da atualidade para esse dispositivo,
para além daquilo que já estava previsto em sua pro-
A problemática da formação inclui, também, um déficit posta inicial. Para isso, é importante apresentarmos,
de profissionais capacitados para o exercício da super- brevemente, o cenário atual da Saúde Mental no Brasil.
visão em diversos estados brasileiros. Nesse sentido, o
aumento da oferta de supervisão exige a criação de dis-
94 positivos de formação específica para os profissionais
Nos últimos anos, a partir de sua implementação como
Política de Estado, a Reforma Psiquiátrica apresentou 95
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios A supervisão clínico-institucional: um dispositivo teórico-
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede prático para o fortalecimento das redes em saúde mental

avanços importantes, no campo legislativo e assisten- A consolidação e o fortalecimento das redes de saúde
cial, em direção ao fim dos grandes manicômios e à mental intersetorial é outro desafio importante a ser en-
ampliação, significativa, da rede substitutiva em todo frentado. A expansão quantitativa dos serviços de saú-
território nacional (CAPS, Serviços Residenciais Tera- de mental só terá maior eficácia numa perspectiva de
pêuticos, Centros de Convivência e Geração de renda, trabalho territorial em rede e não a partir da lógica do
enfermarias de saúde mental em Hospital Geral, etc...). centralismo nos CAPS. Além da ampliação da rede e
A reversão do modelo de atenção excludente para um garantia de acesso universal a todos, incluímos a ne-
de caráter comunitário se reflete, também, na redução cessidade de implementação efetiva do apoio matricial
significativa dos leitos psiquiátricos e no aumento efeti- (CAMPOS, 2005), o enfrentamento das linhas de forças
vo do repasse das verbas destinadas à rede comunitá- hegemônicas conservadoras, o fortalecimento dos es-
ria de apoio. Ou seja, promoveu-se, nos últimos anos, paços de controle social, o investimento na capacita-
uma efetiva mudança do modelo assistencial. ção dos trabalhadores da Rede Básica para atenção
em saúde mental e o investimentos em dispositivos que
No entanto, são evidentes os inúmeros desafios ainda promovam a articulação das instituições em rede.
existentes e aqueles que surgem contemporaneamente.
A mudança da cultura manicomial ainda precisa ser tra- Promover a articulação dessas instituições em rede im-
balhada, no cotidiano, dentro e fora das instituições, em plica estimular encontros entre as pessoas que as ope-
direção à produção de novas respostas sociais à loucu- ram, por isso, entendemos que a supervisão pode ser
ra. A apropriação, muitas vezes equivocada, da mídia um desses dispositivos com maior eficácia, desde que
em relação às doenças mentais e o avanço das catego- essa supervisão preserve suas características consti-
rias nosográficas psiquiátricas expressam um perigoso tuintes e ganhe novos modos de funcionamento, com
movimento de psiquiatrização da vida e patologização características apropriadas a esse novo cenário.
maciça do sofrimento humano. A lógica de controle e Nesse sentido, entendendo a rede como “uma ma-
normalização do comportamento ainda é muito presen- lha de múltiplos fios, que pode se espalhar indefini-
te, apesar dos avanços apresentados. Essa cultura deve damente para todos os lados, sem que nenhum dos
ser trabalhada nas supervisões, em direção à garantia seus nós possa ser considerado principal ou central,
de conservação da autonomia, dos direitos, e dos de- nem representante dos demais” (WHITAKER, 1993),
veres de usuários e trabalhadores da saúde mental, em apostamos na criação e fortalecimento das supervi-
fim, para acabar com os “manicômios mentais e as ou- sões interinstitucionais em rede.
tras faces da clausura” (PELBART, 1990).
A perspectiva da realização de processos insterinstitu-
Além disso, vivemos, hoje, no Brasil, um cenário pre- cionais de supervisão cria a possibilidade de criação de
ocupante de aumento expressivo de transferência da um idioma comum acerca de ações em saúde mental.
gestão pública dos serviços de saúde a entidades pri- A nosso ver, o projeto terapêutico constitui um dos ele-
vadas, de coorporativização dos discursos e de des- mentos principais que sintetiza esta articulação e tem
politização das práticas de formação e de assistência, a potência de agregar ofertas de diferentes naturezas
o que enfraquece o SUS e as ferramentas de gestão
96 participativa, como a supervisão clínico-institucional.
que os espaços da rede de atenção podem oferecer.
Nesse sentido, a presença de um supervisor desempe- 97
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios A supervisão clínico-institucional: um dispositivo teórico-
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede prático para o fortalecimento das redes em saúde mental

nha o papel de apoiar a composição de um idioma que plia a participação ativa dos gestores e trabalhadores
agrega uma rede caracteristicamente polifônica. no processo de trabalho em rede pela estratégia da co-
municabilidade.
Se nos limitarmos à concepção de rede a atenção bá-
sica e os CAPS, é possível identificar uma linguagem Como facilitadores para esse processo, as mesmas au-
próxima, com tecnologias que se aproximam – desen- toras identificam alguns aspectos, entre eles a integra-
volvimento de projetos terapêuticos, noção de serviço ção entre instituições de ensino e a rede de saúde; a
porta aberta, acolhimento, ação territorializada, entre vontade de investimentos reais da gestão num processo
outras proximidades operacionais. Entretanto, a rede de participativo do modelo de atenção em saúde; compro-
atenção que realiza ofertas aos usuários com sofrimen- misso, assiduidade e regularidade dos encontros; e a
to mental envolve, também, as unidades de urgência, construção coletiva do próprio processo de supervisão.
o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU),
Em âmbito nacional, a necessidade de a supervisão
os consultórios de rua, além de uma vasta gama de
tornar-se um dispositivo tradutor e articulador da aten-
dispositivos de assistência dentro e fora do setor saú-
ção em rede constitui uma fronteira a ser superada.
de. Esses dispositivos e suas equipes constituíram-se
a partir de referenciais teóricos, demandas sociais e
mesmo ideologias diversas. A supervisão, nessa pers- Considerações Finais
pectiva, pode atuar como um potente dispositivo de
articulação, tradução e potencialização dessa diversi- Procuramos, com esse texto, ampliar a produção de
dade. Pode, entretanto, reforçar um movimento inverso conhecimento, ainda pouco significativa, sobre a super-
de intensificar o isolamento comum de trabalhadores visão clínico-institucional e suas possibilidades de fun-
na área de saúde mental. cionamento em rede. Para isso, tecemos algumas consi-
derações sobre as práticas e políticas de saúde mental,
Alguns municípios brasileiros estão trabalhando com seu cenário atual e as funções da supervisão nesse ce-
essa modalidade de supervisão e as experiências são nário, dentro, fora e entre as instituições de saúde.
exitosas. Na experiência de Campinas, por exemplo,
Defendemos que a Supervisão Clínico-Institucional
as denominadas “supervisão de eixo” agregam repre-
constitui um dispositivo fundamental, espaço privilegia-
sentantes de todos os serviços que compõe a rede de
do e permanente de reflexão “em serviço”, qualificação
saúde de um determinado território, incluindo a repre-
e sustentabilidade das práticas cotidianas no campo da
sentação de outros setores, quando necessário. Feriotti
Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica do SUS. Essa não
e Machado (2009) identificam que esse é um disposi-
vem sendo uma ferramenta acessível a todas as equi-
tivo que aumenta a capacidade de identificar deman-
pes de saúde mental, por um lado por falta de investi-
das, necessidades, limites e potencialidades da rede;
mento e vontade política.
otimiza discussões, reflexões e estratégias para en-
frentamento das demandas; aumenta a resolutividade Reafirmamos que, para o desenvolvimento eficaz de
dos casos clínicos e adequa as ofertas dos serviços às suas funções, a supervisão deve ocupar o espaço de
necessidades territoriais. Além disso, otimiza os fluxos,
98 altera a lógica engessada dos encaminhamentos e am-
fronteira entre a gestão, a formação e a clínica, afirman-
do sempre a conjunção “e” e não a conjunção “ou” (clí- 99
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios A supervisão clínico-institucional: um dispositivo teórico-
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede prático para o fortalecimento das redes em saúde mental

nica e gestão e formação), entendendo a supervisão ______. Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álco-
como um dispositivo clínico-ético-político da gestão ol e Outras Drogas. O ofício da supervisão e sua im-
para o fortalecimento das práticas de cuidado em saú- portância para a rede de saúde mental do SUS. Bra-
de mental em rede. Nesse sentido, os modelos de su- sília, 2007. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/
pervisão em voga, na atualidade, precisam ser fortale- portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=31355>. Acesso
cidos e sempre re-inventados a partir das demandas e em: 09 maio. 2011.
desafios que emergem cultural e historicamente. Só as-
sim, a supervisão conseguirá se consolidar como uma ______. Chamada para a seleção de projetos de es-
ferramenta potente para a construção do SUS. colas de supervisores clínico-institucionais da rede
de saúde mental, álcool e outras drogas. Brasília,
Esse esforço teórico-prático não é construído apenas por 2010. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/
supervisores, mas é, constantemente, recriado e aprimo- arquivos/pdf/escoladesupervisores2.pdf.> Acesso em:
rado no cotidiano das instituições e entre as instituições 29 maio. 2011.
junto a usuários, trabalhadores e gestores do SUS.
CAMPOS, GWS. Um método para análise e co-ges-
Consideramos, ainda, que este texto só pode ser pro- tão de coletivos. 2 ed. São Paulo: Hucitec; 2005.
duzido mediante as parcerias e reflexões que emergi-
ram do encontro entre os autores e as equipes supervi- ESCOLA DE SAÚDE PÚBLICA DO RIO GRANDE DO
sionadas ao longo dos últimos meses e, por tanto, não SUL. Oficina Permanente de Supervisão em Saúde
se trata apenas de um sobrevoo conceitual, mas de um Mental e Clínica Psicossocial: Escola de Superviso-
mergulho subjetivo e pragmático no universo da loucu- res Clínico-Institucionais. 2009. Disponível em: <http://
ra, com seus limites e desafios. www.esp.rs.gov.br/img2/Hist%C3%B3rico%20Ofici-
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DE AMPLIAÇÃO DAS PRÁTICAS CLÍNICAS NA
ATENÇÃO BÁSICA
Ricardo Sparapan Pena
Sérgio Resende Carvalho
Ricardo Sparapan Pena
Possui graduação em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas
Gerais (1983), residência pela Faculdade de Medicina da UFMG (1994);
mestrado (1997) e doutorado (2002) em Saúde Coletiva pela Faculdade de
Ciências Médicas da UNICAMP, com estágio-sanduíche na Universidade
de Toronto, Canadá (2000-2001). Atuou como médico generalista, junto a
movimentos sociais no Brasil e América Central nos anos 80. Atualmente é
Professor Livre Docente do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade
de Ciências Médicas da UNICAMP, área de Políticas Públicas, Planejamento
e Gestão. Coordena a linha de pesquisa Políticas da Subjetividade e Saúde
Coletiva: conexões. Linha que procura, entre outros objetivos: a) realizar A elaboração e a implementação de ações clínicas nos
investigações teóricas e sobre políticas, estratégias, arranjos e dispositivos de
serviços de saúde é algo que coloca trabalhadores,
gestão na saúde tendo como objetivo contribuir para a consolidação do Sistema
Único de Saúde e; b) explorar possibilidade e potências de uma produção gestores e usuários em torno de um problema situado
teórico-prática transdisciplinar no campo da saúde. Tem se interessado, em entre o que deve ser preconizado para a saúde e os
especial, em refletir sobre novas possibilidades para o pensamento e práticas modos de intervenção instituídos há tempos.
no campo da Saúde Coletiva - em especial, no campo da gestão, educação/
formação e investigação qualitativa - do diálogo intercessor com a produção Vemos, principalmente na atenção básica, a corrida
dos “pensadores da diferença” (Foucault, Deleuze, Guattari, Espinosa, etc.); para garantir bons índices de cobertura da assistên-
da análise institucional (Lourau), entre outros. cia a vários problemas de saúde. Há objetivos para
a ocorrência deste fenômeno, principalmente no que
Sérgio Resende Carvalho diz respeito ao planejamento de ações nas políticas
Graduação em Medicina, pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas públicas de saúde.
Gerais (1983) e residência, pela Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG 1994). Mestrado (1997) e doutorado (2002) Na Estratégia de Saúde da Família, por exemplo, as
em Saúde Coletiva, pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Equipes de Saúde da Família (ESF) constroem atenção
Campinas (UNICAMP), com estágio-sanduíche na Universidade de Toronto, em saúde baseadas no conhecimento do território onde
Canadá (2000-2001). Atuou como médico generalista e junto a movimentos atuam – característica da Atenção Primária em Saúde.
sociais no Brasil e América Central nos anos 80. Docente do Departamento
Porém, mesmo imersas no território, essas equipes ne-
de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UNICAMP,
área de Políticas Públicas, Planejamento e Gestão. Coordena a linha de cessitam de parcerias que as auxiliem na análise da
pesquisa Políticas da Subjetividade e Saúde Coletiva: Conexões. Esta linha demanda que atendem e dos processos de trabalho
procura, entre outros objetivos: a) realizar investigações teóricas sobre em curso, pois correm o risco de manterem-se distan-
políticas, estratégias, arranjos e dispositivos de gestão na saúde, tendo tes da análise dos modos como produzem as ofertas
como objetivo contribuir para a consolidação do Sistema Único de Saúde em saúde no cotidiano.
e; b) explorar possibilidades e potências de uma produção teórico-prática
transdisciplinar no campo da saúde. Tem se interessado, em especial, em E, a respeito da oferta de serviços prestados pelas uni-
refletir sobre novas possibilidades para o pensamento e práticas no campo
dades básicas de saúde atualmente, em municípios
da Saúde Coletiva - em especial no campo da gestão, educação/formação
e investigação qualitativa - do diálogo intercessor com a produção dos de pequeno, médio e grande porte, uma preocupação
geral tem acometido as análises dos processos de tra-
pensadores da diferença” (Foucault, Deleuze, Guattari, Espinosa, etc); da
análise institucional (Lourau), entre outros. balho: nas intervenções, como pensamos as ações no 105
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O apoio matricial como dispositivo de ampliação
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede das práticas clínicas na atenção básica

campo da clínica? O modo como a assistência está hoje sentando, também, dificuldades conceituais e práticas
estruturada dá conta dos problemas e necessidades de para a organização da assistência em rede.
saúde da população em um determinado território?
A função do trabalho das Unidades Básicas de Saú-
Tal questionamento, com base nestas perguntas, re- de é, também, produzir subjetividades. Essa função,
mete-nos a um plano de indagações em que o que se ainda, é pouco discutida, apesar dos esforços de
evidencia é o modo como gestores e trabalhadores se programas, como a Estratégia de Saúde da Família,
relacionam com a própria esfera do trabalho. da Política Nacional de Saúde Mental, da Política Na-
cional de Educação Permanente e da Política Nacio-
Nesta esfera, é comum que os trabalhadores apontem nal de Humanização. O modo como os trabalhadores
para si próprios algumas dificuldades frente aos mo- e gestores estabelecem relações com a população
dos como os usuários dos serviços de saúde buscam atendida nos territórios de abrangência onde atuam
atendimento, identificando estranhamentos a partir de ainda nos parece um campo pouco conhecido, mes-
algumas necessidades que se fazem invisíveis e que mo quando vemos tentativas sólidas de trabalho no
podem estar presentes por trás de algumas queixas. plano da intersetorialidade.
Outro tipo de problema bastante apontado pelas equi- As relações estabelecidas entre os serviços de saúde
pes de saúde é a falta de capacitação para lidar com em uma rede pública, atualmente, investem pouco em
alguns casos que apresentam demandas em que a difi- abordagens acerca do universo cultural e da produção
culdade se concentra na relação com os usuários. subjetiva dos usuários que buscam atenção nos esta-
No caso das intervenções que envolvem conhecimen- belecimentos de saúde.
tos acerca dos problemas relacionados à saúde men-
Para tanto, este trabalho se propõe a discorrer sobre
tal da população, tais dificuldades relacionais tornam-
algumas possibilidades em relação à construção de
-se um divisor de águas para o trabalho das equipes,
as quais apontam para o surgimento de perguntas, subjetividades nos serviços da atenção básica, tentan-
como: temos que atender esses usuários? O que será do localizar os principais problemas enfrentados pelos
que eles querem? O usuário está mal ou quer apenas trabalhadores no que se refere ao modo como fazem
chamar a atenção? a gestão de seu próprio trabalho, buscando, para tan-
to, apresentar algumas alternativas que deem subsídio
Nesse mesmo caso, outras perguntas também aparecem para a prática neste campo, com base na estratégia do
para fazer contrapontos na rede de saúde: este caso é apoio matricial em saúde mental.
aqui para a unidade básica ou para o CAPS? Onde eu
posso internar o usuário? Será que devemos mandá-lo O campo de práticas, aqui, apresentado é o Centro de
ao Pronto-Socorro? A família faz alguma coisa por ele? Saúde DIC III, localizado no Distrito de Saúde Sudoeste
É pensando nessas situações que alguns apontamen- do município de Campinas, onde uma experiência de
tos sobre como se constrói a demanda em “saúde men- apoio matricial com equipes da Estratégia de Saúde da
tal” se fazem necessários, pois, em sua maioria, as Uni- Família se deu no período entre 2005 e 2009, a partir do
trabalho de apoio de um profissional psicólogo que, na-
106 dades Básicas de Saúde não contam com profissionais
especializados para esse atendimento específico, apre- quele momento, atuava como trabalhador de um CAPS. 107
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O apoio matricial como dispositivo de ampliação
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede das práticas clínicas na atenção básica

Buscando entender como o a vida, o que nos dá a noção de que este sujeito ha-
bita um espaço subjetivo, e não apenas geográfico. A
sofrimento “mental” atravessa cidade é lócus de produção subjetiva. Desse modo, a
a intervenção em saúde cidade subjetiva, tal qual pensada por Fonseca (2003),
revela-nos o urbano como uma fonte de encontros entre
Como projeto para um trabalho que se proponha a rom- as pessoas e os elementos que compõem a sociedade,
per com o modelo médico-centrado4, no cuidado com a da qual derivam os mais variados modos de existência,
vida, o alcance que as intervenções têm se expressam o que intensifica o plano de produção de novas subje-
através da constante mudança nos posicionamentos tividades e sentidos que movem ou estancam o movi-
que ocupamos enquanto profissionais/parceiros/tera- mento de invenção da vida.
peutas, a qual se dá a partir do aprendizado na relação
com o usuário. Para a intervenção em saúde, é neces- Em relação a esse movimento de invenção da vida,
sário avaliar qual o grau de questionamento produzido podemos pensá-lo enquanto rizomático (DELEUZE;
pelo usuário frente ao tratamento oferecido e como atu- GUATTARI, 1995), pois é na multiplicidade dos encon-
amos quando nos propomos a descobrir novos cami- tros que a vida proporciona aos sujeitos os novos e pos-
nhos no processo de cuidar. síveis modos de existir.
Em um campo social de múltiplas intensidades, muitas Esses modos surgem enquanto efeitos de movimentos
vezes os processos de subjetivação não caminham na do cotidiano que atravessam os corpos, atualizando o
mesma velocidade das mudanças sociais. As cidades que conhecemos por singularidade, ou seja, por dife-
se modificam em forma (mudança de lugares), em nú- rença. E, nessa mesma direção, o rizoma pode des-
mero (multiplicação de pessoas, de lugares), em gêne- manchar territórios existenciais baseados em repre-
ro (novas/outras sexualidades) e em outros aspectos, sentações de um bem-estar obrigatório, muitas vezes
aqui, não citados, os quais, atualmente, exigem que o descoladas das possibilidades que o sujeito encontra
sujeito produza a sua realidade, produza desejo, inde- para ser e estar no mundo, ou seja, acontecendo aí
pendentemente da velocidade de tais transformações uma separação entre o que um corpo pode sustentar e
sociais, o que pode acarretar o surgimento de sintomas aquilo que a sociedade exige.
que expressam o sofrimento psíquico.
Por sua característica conectiva, o rizoma amplia a pos-
Tais mudanças não devem ser entendidas apenas sibilidade da vida se tecer fora de uma centralidade,
como mutações da realidade a partir de condições da- fora de um sistema que, se, necessariamente, obedeci-
das a priori, uma vez que a transformação da realidade do como uma regra que limita a construção do desejo e
acontece no plano das intensidades, das relações, dos determina a vida na ordem social, gera sintomas muitas
encontros entre o sujeito e as várias formas de compor vezes ininteligíveis e de difícil acesso tanto ao usuário
quanto aos seus parceiros/terapeutas.
4 Entendendo, aqui, como nos coloca Merhy (2005), tal modelo como Hoje, não temos como exigir que a subjetividade se
também corporativo-centrado, fazendo referência às outras profissões da área da
transforme na mesma velocidade em que as transfor-
108 saúde enquanto núcleos profissionais que concentram o cuidado, o subsumindo a
um discurso particular e próprio de cada núcleo profissional específico. mações sociais acontecem. Quando o sujeito não con- 109
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O apoio matricial como dispositivo de ampliação
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede das práticas clínicas na atenção básica

segue responder à velocidade dos acontecimentos, É cotidiana a dificuldade que as equipes de saúde da
pode se tornar refém da velocidade do “progresso” e atenção básica tem para dialogar e problematizar como
demandar uma desaceleração para poder se reconsti- trabalham a interação entre as especialidades, criando
tuir, estabilizar-se por um período indeterminado. espaços, nos quais, o que se discute, em muitas vezes,
não tem como foco a integralidade na atenção. São elen-
O movimento que demanda essa desaceleração cadas várias possibilidades de intervenção, fragmentan-
exige do sujeito um posicionamento político frente a do o sujeito, atentando para as várias partes do corpo
como se organiza para compor as suas parcerias no a serem tratadas. Em sua funcionalidade, isso vem pro-
cotidiano. Tal posicionamento diz respeito aos modos duzindo, na saúde pública e privada, uma relação mer-
como o corpo compõe com as dicotomias existentes cadológica entre a “oferta de atendimento” e a “popula-
no coletivo e que o atravessam, provocando cone- ção-cliente” a ser atendida, pois a assistência acaba se
xões com elementos do cotidiano e tendo como efeito estruturando através da demanda e a grande oferta me-
a singularidade, isto é, resultando sempre em algo dicamentosa sugere ao usuário o alívio da dor ou a cura,
inesperado. Não se trata de destino, de viver o que já implicando as equipes em processos de trabalho que as
está marcado para acontecer, mas sim de um mergu- prendam às consultas médicas e repetições de receitas.
lho em possibilidades de existência que se atualizam
Pensando nesse aspecto, é necessário que analisemos
em algo que está por vir sem que esteja planejado,
a produção de espaços que promovam, em Unidades
calculado. Assim, temos a vida em conectividade,
Básicas de Saúde, discussões e práticas clínicas, que
acontecendo segundo produções não antecipadas,
tragam novos sentidos para a intervenção em saúde,
o que abre campo para que o sujeito se posicione atualizando modos de cuidar que rompam com a lógica
perante a si e ao mundo, enquanto autor de sua pró- de encaminhamentos para as especialidades enquanto
pria história, enquanto personagem em constante in- solução de problemas. Isso é muito comum em territó-
venção de seu território existencial. rios cuja população é composta por sujeitos que mis-
turam, em si, necessidades clínicas, educacionais, tra-
balhistas e demandas subjetivas, o que torna complexa
Por dentro das unidades a construção de intervenções e de linhas de cuidado.
básicas: campo fértil para
Os serviços de saúde dialogam com as necessidades
a construção da clínica dos usuários com base nas dificuldades encontradas
Articular saberes e práticas na área da saúde é uma ta- pelos trabalhadores e gestores da área, quando es-
tes são convocados a repensar a prática para que
refa que presume uma avaliação constante dos proces-
não repitam modelos que tenham alcance apenas em
sos de homogeneização construídos pela soberania
níveis prescritivos.
dos especialismos e suas condutas, que, em uma pers-
pectiva histórica, têm consolidado formas de cuidado Desse modo, oferecer ao sujeito apenas um alívio da
em que o olhar para a produção subjetiva na relação necessidade, sem promover um questionamento acer-
terapêutica pode tornar-se secundário, prevalecendo o ca do que é receber cuidado, pode, automaticamente,

110 sintoma e, também, o protocolo de sua extinção, ambos


descolados do processo no qual se construíram.
transformar tais necessidades em urgências, devido ao
crescente aumento da demanda. 111
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O apoio matricial como dispositivo de ampliação
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede das práticas clínicas na atenção básica

Quando oferecer alívio se torna um imperativo por parte culam pelos corredores da Unidade, devendo ser aten-
dos trabalhadores, ou seja, quando agem de forma que didas para que a assistência seja a mais eficaz possível.
o usuário, na sua relação com o sofrimento, encontre
Vemos, também, que as equipes da atenção básica
respostas prontas, rígidas e, em sua maioria, encerra-
apresentam dificuldades para entender que tipo de vín-
das na medicação, abre-se um campo para que esse
culo os usuários fazem com o profissional que os aten-
usuário procure a unidade de saúde se destituindo de
de, pois muitos desses usuários procuram uma solução
responsabilidade para com o próprio cuidado.
nas especialidades médicas, sendo que o maior núme-
Assim, assistimos, nas Unidades Básicas, o crescente ro possível de procedimentos, de cartelas de medica-
número de “repetições de receitas”, feitas por profis- ção e pedidos de exames que os usuários recebem ao
sionais que, em muitas vezes, não têm conhecimento final da consulta pode representar para a população a
sobre o sujeito do qual estão “tratando” e, através des- boa qualidade do atendimento prestado.
se ato, a interface criada no encontro entre trabalhador As queixas, em si, produzidas em um processo que é
e usuário transforma a saúde na extinção do sintoma, desconhecido pelo próprio usuário tornam o atendimen-
desconsiderando a produção deste, o que descola o to quase estéril, pois, em sua funcionalidade, a medica-
sujeito de sua história de vida. ção não traz consigo a escuta. Fazer com que a escu-
ta aconteça é uma tarefa que necessita de articulação
Dessa forma, a intervenção exige que pensemos ações
para desvelar as dimensões do sintoma, o processo
que promovam encontros entre trabalhadores e usuá-
que o constitui. É colocar em análise as forças que efe-
rios, questionando-os acerca das representações que
tuam, no coletivo, o distanciamento entre os sujeitos e a
estes possuem sobre o que é saúde. É possível traba-
produção do sofrimento, criando espaços para a cons-
lhar com a população qual a função que a Unidade Bá-
trução de projetos terapêuticos que ampliem a escuta
sica ocupa no território em que se encontra e, também, clínica, entendendo que o “sujeito é, também, histórico:
promover saúde de maneira humanizada, levando em as demandas mudam no tempo, pois há valores, dese-
consideração a relação que o usuário mantém com os jos que são construídos socialmente e criam necessida-
serviços na busca de resolutividade para seus proble- des novas que aparecem como demandas” (ONOCKO
mas, cuidando, também, da representação cultural que CAMPOS, 2001, p.101).
o “postinho de saúde” tem na região.
Sendo assim, na atenção aos usuários que se pretenda
Porém, a multiplicidade de saberes presente em uma ampliada, o aspecto “integral” do atendimento é cons-
equipe de saúde não garante que o usuário da unidade tantemente evocado e, quando não adotado nas prá-
básica terá, naquele local, um espaço em que seu so- ticas, faz com que o sofrimento dos trabalhadores da
frimento seja escutado para além de seus sintomas. As saúde se coloque em evidência frente à dificuldade em
queixas apontadas na recepção, quando dirigidas ao lidar com a maioria dos casos, pois os mesmos exigem
acolhimento, em sua maioria, são vistas de maneira pro- uma transformação na práxis a partir da constatação de
tocolar, encaixadas em possibilidades diagnósticas de que toda e qualquer tecnologia de trabalho na saúde,
entendimento para que o ato clínico tenha rápida resolu-
112 tividade, pois a demanda aumenta e muitas “dores” cir-
não sendo produzida no encontro entre trabalhador e
usuário, torna-se insuficiente para a construção de um 113
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O apoio matricial como dispositivo de ampliação
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede das práticas clínicas na atenção básica

Projeto Terapêutico Singular5. E, aqui, singular se refere disciplinaridade, especialistas apoiando o trabalho
à possibilidade de construção de crítica sobre o pro- do Clínico de Referência conforme Projeto Terapêu-
tico coordenado pelo próprio profissional de referên-
cesso de adoecimento e questionamento do mesmo por cia, mas elaborado em permanente negociação com
parte dos usuários e das equipes na atenção básica. a Equipe envolvida na atenção matricial. Além disso,
superar a alienação e a fragmentação e o tecnicismo
O trabalho clínico, então, consiste em fabricar condi- biologicista, centrando-se no eixo da reconstituição
ções para que, mesmo no meio de mudanças sociais de Vínculos entre Clínico de Referência e sua cliente-
tão velozes, o sujeito, envolto em seu sintoma, consiga, la (CAMPOS, 2003: 63).
minimamente, decifrar a sua própria realidade, ou seja,
inventar a si, entendendo o processo pelo qual está De acordo com Oliveira (2008), a operacionalização do
passando, pois o quantum de informações produzidas Apoio Matricial depende
com tais mudanças desenha uma produção desejante
cada vez mais fragmentada, mecanizada, em que o ex- (...) de um conjunto de condições: número e qualifi-
cesso de exigência social provoca irrupções de ritmos cação dos profissionais disponíveis; necessidade de
de vida que se intensificam e se traduzem nos mais qualificação dos profissionais envolvidos; cultura orga-
variados modos de subjetivação, como uma existência nizacional dos gestores e dos trabalhadores envolvi-
sofrida, p.ex. Devemos nos atentar para as alternativas dos; rede de serviços disponível; organização do pro-
cesso de trabalho nos serviços (OLIVEIRA, 2008: 276).
que promovam saúde, enfocando a realidade das regi-
ões, a distribuição dos recursos sociais e da saúde nas
mesmas para além das Unidades Básicas, as parcerias Em relação, ainda, ao Apoio Matricial, Onocko Cam-
possíveis de se construir, assim como os vários modos pos (2003) afirma que é necessário que se faça uma
de adesão aos serviços criados pelos próprios usuários separação entre a gestão do cuidado e o lugar geren-
a partir da postura que a Unidade Básica adota frente cial, para que, assim, o poder que circula através das
ao modo como oferece cuidados. práticas clínicas seja desvelado e a perspectiva de um
trabalho horizontal se efetue.

O Apoio Matricial: notas A retaguarda especializada a equipes e profissionais de


referência é algo que se traduz enquanto uma função
sobre o dispositivo do Apoio Matricial. Mas, no que diz respeito a essa reta-
Segundo Campos (2003), o Apoio Especializado Matri- guarda, os produtos advindos da mesma fogem, com-
cial se constitui em uma pletamente, ao nosso controle, pois o que é vivido no
encontro entre trabalhadores e usuários não é passível
(...) organização horizontal do processo de trabalho, de quantificação.
em que se tenta combinar especialização com inter-
Trata-se, aqui, da construção de problemas do plano
de inquietações e indagações sobre o que devém do
5 O Projeto Terapêutico Singular (PTS), neste trabalho, é pensado segun- encontro entre profissionais e usuários. E tal plano deve
do a elaboração de Oliveira (2008), sendo, aqui, brevemente definido como “[...] um
ser muito bem mediado por todos os níveis da gestão,
114 movimento de co-produção e de co-gestão do processo terapêutico de indivíduos
ou coletivos, em situação de vulnerabilidade” (Oliveira, 2008: 285). pois a criação e a efetivação de uma tecnologia como o 115
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O apoio matricial como dispositivo de ampliação
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede das práticas clínicas na atenção básica

Apoio Matricial transforma a organização do processo também, que tem como função a produção de subje-
de trabalho. tividades que componham com o coletivo para a pro-
dução de vida, o Apoio Matricial tem como finalidade
Segundo Campos e Domitti (2007, p. 401), o “apoio ma- construir, com as equipes de saúde, a rede de cuida-
tricial procura construir e ativar espaço para comunica- dos ao usuário, enfocando a integralidade.
ção ativa e para o compartilhamento de conhecimento
entre profissionais de referência e apoiadores”. Porém, Sobre a Integralidade nas ações em saúde, é possível
devemos nos atentar que, para além da construção do entendê-la enquanto o principal conceito, do campo da
conhecimento, o Apoio Matricial, também, lida com a Saúde Coletiva, que é trabalhado no Apoio Matricial.
produção do trabalhador, isto é, com a invenção do lu-
Os apontamentos feitos por Merhy (2005) sobre esse
gar do trabalhador na equipe de saúde, com a fronteira
tema nos dão uma visão ampliada em relação ao que é
entre o que se é (instituído) e o que se pode vir a ser (o
entendido, aqui, enquanto Integralidade.
instituinte, o que devém).
Quando esse autor enfoca a porosidade existente na
Quando o Apoio Matricial se instala em uma equipe de
relação entre os vários núcleos profissionais, é possível
saúde, principalmente no caso da Saúde Mental, esse
entender que é sempre nas relações entre trabalhado-
processo modifica o olhar das equipes para os casos
res e usuários que se constitui o campo em que a prá-
que apresentam tal demanda.
tica acontece. A soma entre as várias especialidades
Sendo assim, o apoiador matricial atua no modo como contidas em uma unidade de saúde não garante o ca-
as equipes interagem com a rede, porém, trabalha, ráter integral ao atendimento, mas, sim, o que valida o
mais diretamente, com o processo de singularização do trabalho é o que se estabelece quando se cruzam os
trabalhador para a construção de ofertas para os usuá- vários saberes na composição das intervenções.
rios. Atua no que acontece entre trabalhador e usuário,
É necessário que haja uma série de conversas entre os
apostando que é nessa relação que as ofertas técni- trabalhadores para que os núcleos profissionais se mis-
cas se constroem. E as ofertas para o campo da saúde turem na prática, não perdendo as dimensões técnicas
mental são múltiplas e muito difíceis de serem criadas, concernentes a cada um, mas buscando os múltiplos
devido à dificuldade de entendimento sobre queixa e sentidos de integralidade que os atravessam, enquanto
dos movimentos invisíveis que a compõe. componentes de um processo de transformação das
práticas no campo da saúde.
O Apoio Matricial no Centro de Nesse sentido, os saberes se dissolvem e compõem
Saúde DIC III – dispositivo de entre si, através dos modos de comunicação criados
entre os trabalhadores e entre estes e os usuários.
construção da inseparabilidade
entre clínica e gestão O que está sendo dito, aqui, faz referência ao modo
como operamos com a tecnologia do apoio matricial no
Entendendo a produção de saúde como um movimento
116 carregado de história, situada em sua temporalidade e,
CS DIC III, pensando o seu desenvolvimento com base
na construção de conhecimento e produção de subjeti- 117
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O apoio matricial como dispositivo de ampliação
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede das práticas clínicas na atenção básica

vidades. Tratamos o tempo sobre como operamos, em um sintoma e não como a expressão de algo dentro
alguns arranjos de gestão no campo da saúde, para a de um processo. Aqui, reconhecemos a importância do
viabilização de uma clínica que enfatiza a produção de que é dito, mas entendemos que a intervenção se am-
subjetividades. plia, quando estamos abertos a uma linguagem que se
estende para além das palavras.
Seguindo essa idéia, podemos dizer que arranjos,
como o acolhimento, a equipe de referência e o projeto Exemplificando, no momento em que uma queixa era
terapêutico singular foram, gradativamente, colocados trazida à Unidade de Saúde, procurávamos criar um
em análise, sendo entendidos como espaços-tempos campo para a intervenção, considerando essa queixa
atravessados por fluxos que promovem mutações na como invisível, ou seja, contendo, em si, um processo
clínica, que fazem dela um processo. de construção que, em muitas vezes, extrapola o que
pode ser concretamente observado, visível, audível e,
Então, primeiramente, falaremos do arranjo acolhimento. sendo assim, lançada para as formas mais variadas de
Utilizando-nos da construção de Ricardo Teixeira (2003), cuidado, assim como de suas expressões.
entendemos o acolhimento enquanto uma rede de con- Nesse caso, é necessário conversar sobre a queixa
versações, sendo que sua atuação não está limitada, para que possamos entender, minimante, o funciona-
apenas, à porta de entrada dos serviços. Acolhimento é mento conectivo da clínica, descentrado, conectado
o ato de problematizar o que emerge da prática, o que com múltiplas formas de intervenção, até mesmo aque-
é criado a partir das forças que se atualizam no encon- las inesperadas.
tro entre trabalhadores e usuários. Necessita de intenso
suporte, pois inicia a prática clínica na Unidade de Saú- O ato de conversar é uma ação que se propõe a escu-
de, apontando para outros locais em que essa clínica tar o que tem a ser dito de maneira exploratória, implica-
acontece, inclusive no “extra-muro” dos serviços. da na leitura dos movimentos que acontecem para além
das palavras. É, também, fazer uma leitura de como os
No Centro de Saúde DIC III, enfatizamos o acolhimento interlocutores se posicionam para a escuta e para a
como o início da reverberação das vozes dos usuários fala, reconhecendo o arcabouço de vivências que car-
para dentro da Unidade. O que é dito pelos usuários, regam até o momento da conversa, os parâmetros que
assim como o que não é dito serviu como material para estabeleceram suas condutas, abrindo um canal em
a ação dos trabalhadores. Por isso, uma rede de con- que todos os sentidos corporais sejam acionados para
versas se fez imprescindível para que a voz do usuá- que se problematize e se vivencie o que está em ques-
rio tivesse validade, recebesse escuta e atenção, mas, tão. A conversa produz vibrações; torna-se matéria e
também, para que o que não era colocado em palavras atravessa os corpos, causando sensações que podem
recebesse uma escuta diferenciada, refinada, atenta produzir diferença nos modos como percebemos os
aos movimentos que estão supostamente ocultos, pois movimentos de engendramento da vida, atravessando-
trabalhar apenas com o que está sendo dito pode re- -nos pela dimensão coletiva em que esta se compõe.
duzir a intervenção, transformando-a, diretamente, em
uma prescrição a ser seguida. Prescrição como uma Então, não apenas no momento da porta de entrada na
118 ordem, como aquilo que considera o sofrimento apenas Unidade, ou seja, não só nos encontros iniciais com o 119
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Os impasses na consolidação de uma atenção em rede das práticas clínicas na atenção básica

usuário, mas, para quaisquer outros lugares em que le- estava em jogo, no momento em que lidávamos com o
vamos as nossas conversas, existe a dimensão coletiva dito e com o não dito, era a metodologia de trabalho ali
da intervenção, pois os encontros são atravessados por empregada: a queixa poderia ser encaixada em uma
vários fluxos e um primeiro passo rumo à intervenção se possibilidade diagnóstica, ignorada como não inteligível
dá: o olhar para a queixa como sendo um movimento e reportada para fora da Unidade, assim como proble-
de expressão da multiplicidade, da produção subjetiva matizada e levada adiante, o que qualificava o processo
que não acontece no plano individual, mas que é fruto de trabalho da Unidade.
dos caminhos que o usuário percorre pelo mundo, pelo
seu território subjetivo e existencial, pelas formas como Isso reafirma o fato de que o acolhimento não funciona
se conecta com os elementos da vida e se apresenta isolado de todo o processo de trabalho da Unidade. Ele,
como sujeito em vários momentos. necessariamente, aponta para outras ações. Mas, além
disso, quando temos um caso que demanda interven-
Esse primeiro passo nos leva ao segundo: entender que,
ção elaborada, em algum lugar isso deve ser discutido.
seja qual for a constituição atual do sujeito, essa é a ex-
pressão de um processo, isto é, a queixa não é um recor- E, nesse momento, outro arranjo se apresentou como
te do agora, do factual, do simplesmente representável. potente para o direcionamento e análise da queixa: a
equipe de referência.
No Centro de Saúde DIC IIIS, as questões proble-
matizadas no acolhimento precisavam de via de es- Essa equipe é um dos pontos de uma rede de con-
coamento. Isso significa dizer que o que acontecia, versações. É, também, um lócus de conhecimento
inicialmente, na porta de entrada do serviço não se da queixa. É, aqui, que continuamos a análise des-
solucionava ali, por mais que a intervenção fosse bre- sa queixa, cujo processo que já vem se clarificando
ve, pois o acolhimento é um movimento que se esten-
desde o acolhimento.
de por todos os braços da Unidade de Saúde, para
dentro e para fora dela; é um arranjo que compõe com A análise da queixa acontece no momento em que lan-
outros arranjos e têm suas ações diluídas e espalha- çamos vários olhares sobre essa queixa, não a desti-
das por toda a rede de cuidados. tuindo da história de vida do sujeito que a traz. A aná-
Para garantir tanto a escuta quanto a sua reverberação lise pode indicar, hipoteticamente, o início da queixa,
pelo serviço, o Apoiador matricial se colocou, muitas quais elementos a compõe, quais os fatores sociais que
vezes, ao lado dos profissionais responsáveis por tudo a conduzem até o serviço de saúde, qual a implicação
o que aparecia na porta da Unidade, buscando fazer do sujeito com a mesma e como este mesmo sujeito se
parceria com os trabalhadores no momento em que os movimenta para cuidar do que considera um problema.
usuários chegavam, qualificando a escuta e pensando Essa análise é necessária, porque provoca movimen-
em parceria os possíveis encaminhamentos que seriam tos que questionam os trabalhadores sobre as formas
dados às queixas. Para tanto, foi fundamental a clareza de intervenção, fazendo com que algumas alternativas
de que o acolhimento às queixas relativas à saúde men- para o cuidado sejam pensadas, inclusive disparando
discussões a respeito das impressões que os trabalha-
120 tal é um movimento de produção subjetiva que ocorre
na relação entre trabalhadores e usuários, pois o que dores têm em relação ao usuário que os procurou. 121
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Os impasses na consolidação de uma atenção em rede das práticas clínicas na atenção básica

No CS DIC III, tais impressões, em muitas vezes, vi- cialistas, apoiadores junto às equipes, estarmos próxi-
nham acompanhadas de vários olhares, como no caso mos desses familiares, oferecendo-lhes mais que um
dos usuários “poliqueixosos”, os quais geralmente eram saber ou uma palavra que definisse a situação em que
apontados como aqueles que “queriam chamar a aten- o usuário se encontrava, ou seja, apenas diagnostican-
ção”. Dessa forma, na equipe de referência, os modos do e remediando. Assumimos, junto destes, as falhas
como os trabalhadores visualizavam as suas interven- contidas em nossas redes; quebramos protocolos e in-
ções e os sentimentos provocados na relação com os ventamos outras formas de cuidado, pois não devemos
usuários entravam em análise para que pontos, como a trabalhar com a hipótese de que toda e qualquer rede
adesão ao tratamento, a funcionalidade da intervenção, de saúde é potente para acolher os problemas de saú-
a disponibilidade da equipe para o atendimento a de- de de sua população. Através das falhas, desenvolve-
terminados casos, as medidas prescritivas adequadas, mos tecnologias de cuidado, aprendemos que quem
as maneiras de vinculação com os usuários, o processo apresenta uma crise psíquica não precisa, necessaria-
de trabalho, entre outros recebessem a atenção neces- mente, receber cuidados apenas dentro de um serviço
sária por parte dos trabalhadores. de saúde, pode ser acolhido em casa, junto de sua fa-
Outro ponto em relação à análise da queixa diz res- mília, sem provocar situações de risco a si e a outros.
peito ao sigilo frente ao sofrimento que o usuário nos E, entendendo que essa crise é a manifestação de um
trazia. Foi, extremamente, necessário que as questões processo e, com uma equipe que já vem trabalhando
apresentadas fossem discutidas de maneira ética e uma linha de cuidado tanto para o usuário quanto para
protegida pela equipe, pois a incompreensão poderia a sua família, não nos fica impossível identificar den-
tornar o trabalho inválido. tro dessa família quais são as pessoas que mais po-
Não afirmamos, aqui, que o Apoio Matricial se restringiu dem estar perto ou devem ficar longe desse usuário
aos arranjos do CS, pois, como uma tecnologia que alia em seu momento de crise, quais histórias vividas en-
o cuidado à produção de subjetividades, aconteceu por tre familiares e vizinhos podem ser rememoradas com
toda a rede social e de serviços e, por isso, não se re- o ele nessa hora, quem são os personagens que ele
sumiu, apenas, ao fato de uma especialidade apoiar o aponta como responsáveis por sua crise, quais as me-
saber generalista na construção clínica dos casos. Por didas prescritivas necessárias para a situação, como a
exemplo, quando vemos um usuário em crise, oferecen- medicação, p. ex., quem ele reconhece como cuidador
do risco a si próprio e a outros, não encontrando vaga e para quem solicita amparo. Se os profissionais mais
para internação em hospital geral para um cuidado bre- vinculados a ele estão próximos nessa hora, é possível
ve e, em seguida, ser acompanhado no Centro de Refe- que sua crise seja abrandada com mais facilidade. Es-
rência, como o CAPS, muitas vezes instrumentalizamos ses mesmos profissionais, e, aqui, não especificamos a
a família para que cuide desse sujeito por um período quais especialidades pertencem, podem aconselhar a
curto até que possamos encontrar meios para uma in- família sobre o que pode ser acionado e o que deve ser
tervenção mais singularizada. evitado para que não haja agravamento da crise.
Desse modo, outra rede de cuidados é acionada, in-
122 Essa instrumentalização da família é um bom exemplo
de quebra paradigmática. Podemos, enquanto espe- ventada, partilhada com quem vivencia o problema e, 123
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nesse sentido, criamos, ao invés de especialização, paradigmas e formas de assistência degradadas e já


corresponsabilização com o atendimento do usuário há muito instituídas requer que outra linguagem se crie
em seu território e realizado pelos profissionais que o para facilitar as formas de comunicação e viabilizar os
acompanham, em conjunto com sua família. encontros entre profissionais, gestores e usuários.
Esse movimento implica em des-especialização de Mas o que quer dizer essa outra linguagem, ou essas
nossas práticas, pois os atores, aqui, acionados, nesse outras formas de linguagem que dão passagem àquilo
exemplo, são componentes da vida, passando a ser pro- que está por vir?
tagonistas de ações que, em teoria, não lhes caberiam.
No CS DIC III, a linguagem, ou seja, aquilo que facilitou
Acontece, aqui, a produção de uma cultura relativa ao a comunicação surgiu nos vários encontros que o apoio
cuidado e o entendimento das formas de sofrimento de matricial provocou. Pôde expressar, quando destrincha-
usuários e familiares através da aproximação com o ter- mos como se criam os meios técnicos que compõem
ritório, com a sua população, com a potência de um uma intervenção, que, em muitas vezes, a lógica que se
saber inventivo e, além disso, a des-especialização é apresentava na condução de um caso ou na discussão
vivida como produto de uma nova forma de subjetiva- de um problema considerado, extremamente, complexo
ção experienciada e constituída no encontro com tudo pela equipe deveria ser invertida, ou, até mesmo, negada.
o que compõe com a vida do usuário e, também, do
trabalhador, ou seja, com a vida para fora de si mesma, Quando observamos, por exemplo, que os alcoolistas
vivenciando os riscos que, teoricamente, não deveriam são tratados sob a ótica da abstinência, já estamos
existir no trabalho. apontando para o efeito que esperamos da nossa in-
tervenção. Quando não sabemos o que fazer com a
Mas trabalha-se com a vida e, sendo assim, estamos à demanda para o atendimento infantil na Unidade, pode-
mercê de todo e qualquer risco. Risco, em nosso enten- mos, rapidamente, delegá-la a alguém ou, simplesmen-
dimento, é o fato de estarmos exposto ao atravessamento te, dizer que o que faremos não dará certo.
de qualquer linha do cotidiano que nos coloque na fron-
teira entre o que já é vivido, em nós consolidado, e o que Porém, esse pensamento determinista nos revela que
está por vir, ou seja, no que podemos nos transformar. não só desconhecemos a demanda que se apresenta
Não se trata, aqui, de nos abandonarmos, mas sim de a nós, como, também, não temos um registro da pró-
compormos com o novo que pede passagem em nós. pria potência criativa que reside no coletivo de traba-
lhadores. Mas esse registro só pode ser criado através
E, nesse caso, qualquer profissional mergulhado na do enfrentamento da demanda. E enfrentar a demanda
produção de seu trabalho sem que o descole da pro- significa, a princípio, conversar com ela.
dução de sua própria vida passa a ser inventivo na
criação de arranjos que superem a visão institucional Propondo-nos a conversar com a demanda que temos,
que temos deles. quando os problemas de saúde mental nos aparecem,
é importante estarmos atentos que o objeto da inter-
Para tanto, um movimento acontece no Apoio Matricial venção situa-se nas relações que estabelecemos com
124 e ele é inesperado, não calculado, pois remar contra os usuários. Já dissemos, anteriormente, que a clínica 125
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acontece nesse espaço, ou seja, nessa fronteira que a arranjada, inventada, criada e acionada para dar forma
relação com o outro cria, questionando no trabalhador e espaço para a intervenção acontecer. É a ferramenta
a sua posição frente ao seu modo de agir. da clínica, é o elemento dela e o disparo para o que faz
diferença nos modos de cuidar.
Esse questionamento é o que pode dar início ao mape-
amento dos nossos problemas. Já que nos propomos a Desse modo, o Apoio Matricial se constitui em um cole-
agir fora de uma racionalidade que antecede os produtos tivo de arranjos, de produções que requerem, também,
de nossa prática, é necessário conseguirmos abrir canal o improviso no trabalho em ato. É um dispositivo que
para a escuta das questões que os usuários trazem. opera na gestão do cuidado e, para tanto, por ser um
processo também gestor, precisa de gestão, pois dá
Em muitas vezes, o fato do profissional e do usuário fa- suporte para a desterritorialização, que acontece com
larem o mesmo idioma não quer dizer que a mesma lín-
os trabalhadores envolvidos através do envolvimento
gua esteja sendo falada. E não estamos nos referindo,
com a integralidade nas práticas em saúde. Vimos,
apenas, aos regionalismos ou às características cultu-
aqui, que os modos de agir em saúde estão sendo
rais diferentes e específicas presentes na relação entre
questionados através da prática coletiva e é nessa si-
ambos, mas, também, aos registros de sensibilidade
tuação, inerente à clínica, que os elementos subjetivos
diferenciados, de modos não apenas de ver, mas de
estão mais evidentes, em que os saberes estão em
sentir a vida em conformações diferentes.
suspenso e, sendo tais saberes construídos no corpo
No encontro entre trabalhadores e usuários, há uma dos trabalhadores também como efeito da intervenção
nova linguagem a ser inventada. O que está sendo dito, feita pelo Apoio Matricial, as transformações, na práti-
em determinado momento, por um profissional a um ca, demandam cuidados. A lógica de tais cuidados é
usuário não nos dá a garantia de que o que está sen- semelhante a dos cuidados prestados pelos trabalha-
do ouvido por esse usuário é exatamente aquilo que dores aos usuários.
o profissional quer dizer. E, quando o dito não é cum-
prido, podemos inferir que está sendo prescrito inade-
quadamente. E o dito que não é cumprido, na maioria
Mais algumas linhas
das vezes, retorna para o usuário na forma de culpabi- sobre o dispositivo
lização do mesmo. Temos, assim, um grave problema,
pois estamos atribuindo à cognição toda a potência da O Apoio Matricial é o movimento de “estar junto”, “com-
linguagem, da comunicação, destituindo o usuário do por em conjunto” a construção de novos saberes. Isso
papel de sujeito na tomada de decisões frente ao modo significa estabelecer uma parceria com as equipes,
como irá se cuidar. que suporte as indagações do envolvimento com a prá-
tica, os medos em relação a ela, que dê passagem à
Essa invenção da linguagem é, também, produto de fala que, ainda, pode estar desorganizada, que elabore
uma clínica do encontro. Encontro entre profissionais, junto com os trabalhadores as leituras em relação aos
usuários, elementos do cotidiano, ou seja, tudo que problemas existentes, assim como construa as ofertas
compõe o plano de engendramento da vida. A lingua- de maneira coletiva e de acordo com a demanda do
126 gem é, também, um arranjo intra e extra-institucional. É território de saúde, enfocando que tais demandas sem- 127
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pre são produtos dos encontros entre a equipe e os que pode ser feito, é lidar com a prescrição que, em
usuários, pois as mesmas não aparecem sozinhas. muitas vezes, não será seguida à risca, é falar o que
pode ser compreendido ao contrário, é entender que,
A desconstrução dos olhares que a equipe tem frente através dessas pequenas/grandes frustrações viven-
ao seu próprio trabalho é um ponto sempre a ser provo- ciadas pelos trabalhadores, quem conduz o ritmo de
cado pelo Apoio Matricial. É um tencionamento neces- um tratamento é a relação estabelecida entre cuida-
sário a ser feito, pois não há possibilidade de mudanças dores e usuários.
no processo de trabalho em saúde se as ofertas e en-
tendimentos sobre os problemas forem vistos, apenas, A potência da desconstrução do conhecimento técni-
como produtos do serviço de saúde, ou seja, nesse co reside no que acontece entre esses atores. É, mais
ponto, o que toca a transformação da prática é o olhar uma vez, em um lugar fronteiriço, que o trabalho está se
para o trabalho em rede, que des-especializa. Isso, dando. A realidade vivida pelos trabalhadores, se en-
aliado à desterritorialização que o corpo do trabalhador carada apenas “de dentro” da Unidade de Saúde, não
sofre, quando atravessado pela integralidade, provoca possui elementos suficientes para romper com modelos
transformação subjetiva, sensibilizando o profissional de atuação já há muito tempo encrustrados na saúde.
para outros mergulhos nas mesmas e em outras tare- A diferença nos modos de intervir se faz através do
fas, na mesma esfera de trabalho, porém, com novos reconhecimento dos lugares em que as intervenções
recursos, inventando a si e o próprio mundo. são pensadas, assim como da leitura do que há por
dentro das intervenções, ou seja, projetos terapêuticos,
O Apoio Matricial deve aprimorar o mergulho no pla-
grupos, oficinas entre outros artifícios que compõem
no de engendramento da realidade vivenciada pelos
a clínica não têm origem na fotografia que resume o
profissionais e usuários, trabalhando, diretamente, com
conhecimento técnico, mas sim no modo como este é
a desconstrução e a qualificação do conhecimento
construído e utilizado através do contato direto e sensí-
técnico adquirido durante o período de formação e da
vel com os usuários e suas múltiplas realidades.
trajetória profissional. A desconstrução não significa a
negação dos saberes anteriores. Como efeito da in- Os vínculos constituídos durante o matriciamento são
tervenção operada pelo Apoio Matricial, ocorre, aqui, elementos importantíssimos para a gestão desse pro-
a desmontagem dos núcleos profissionais através da cesso. O vínculo da equipe com o Apoiador Matricial é
imersão no território. fundamental para que o matriciamento opere como in-
terventor. Não é possível que a equipe estabeleça uma
Tal mergulho merece suporte, porque insere o traba-
relação com esse profissional se o mesmo não estiver
lhador em um campo, que não é gerado, apenas, pela
fusão entre os núcleos profissionais, o que pode oca- aberto às transformações que ocorrerão nele próprio.
sionar problematizações quando percebemos que o Para além desse vínculo, o Apoio Matricial deve traba-
nosso conhecimento técnico pode ser insuficiente fren- lhar a sua relação com a equipe com vistas a vinculá-la
te à demanda que se apresenta a nós. ao próprio trabalho. Nesse ponto, a gestão do processo
de cuidado com a construção clínica nas Unidades de
Mergulhar na realidade da população é questionar o Saúde também faz a gestão da relação dos trabalha-
128 que se faz enquanto trabalhador, é trabalhar com o dores com os próprios produtos de suas práticas em 129
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O apoio matricial como dispositivo de ampliação
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saúde. Isso quer dizer que a mortificação gerada pelas função deste dispositivo dentro do processo de traba-
dificuldades inerentes ao trabalho pode ser entendida lho. O Apoio Matricial não serve para abrir a agenda
como um apelo que a equipe faz, quando percebe que de atendimento dos profissionais da Saúde Mental nos
seu trabalho já não gera frutos transformadores. serviços, mas sim para que esses profissionais se en-
contrem com os trabalhadores para qualificar a atenção
Sendo assim, o que deve ser reconhecido é o empenho à saúde mental na Unidade Básica, pois, atender aos
da equipe, mesmo quando as intervenções se transfor-
usuários que demandam cuidados com o sofrimento
mam em fracassos, pois podemos iniciar, dessa manei-
psíquico, também é trabalho da Estratégia de Saúde da
ra, o movimento de análise das implicações por parte
Família. O que dizemos, aqui, não exime a Saúde Men-
dos trabalhadores. Levar em consideração todos os
tal de sua responsabilidade: quando são identificados
olhares trazidos pelos profissionais é colocar em funcio-
casos de maior complexidade na atenção primária em
namento o estranhamento com o próprio pensamento,
saúde, estes podem ser atendidos pelos profissionais
com a própria forma de agir, que, em muitas vezes, é
da Saúde Mental em conjunto com os da Unidade Bá-
excludente. É poder incluir a diferença na equipe, mas,
sica, ou mesmo ser encaminhados para a Unidade de
na equipe, enquanto um grupo que, estando atento ao
Referência em Saúde Mental do território onde o usuá-
fato de que é atravessado por diversos fluxos e institui-
rio reside, como os CAPS, p.ex.
ções, consegue colocar em análise os movimentos que
compõem a fala e o pensamento do outro, bem como Consideramos a participação de psicólogos, terapeutas
consegue analisar como é o seu próprio funcionamen- ocupacionais e psiquiatras, entre outros profissionais
to. O Apoio Matricial abre a escuta e a reflexão ao que muito mais valiosa nas reuniões de Equipes de Saúde
pode mover os trabalhadores para a ação na saúde, da Família ou Equipes de Referência do que somente
buscando construir e fortalecer os vínculos das equipes em consultórios com agendas abertas para atendimen-
com o próprio trabalho e, também, desvelando os afe- tos de 30 em 30 minutos. Quando os trabalhadores da
tos que perpassam a relação entre trabalhadores e usu- Saúde Mental se ocupam apenas atendendo os casos,
ários. É por isso que investimos nesta prática: O Apoio não sobra tempo para que as discussões em equipes
Matricial funciona como um dispositivo de ampliação da ESF cumpram a função de transformar o processo
das práticas clínicas na Atenção Básica, construindo de trabalho nas Unidades de Saúde.
novos olhares para problemas ou “dores” há muito insti-
tuídos e cronificados. E, quais seriam as principais dificuldades para o bom
funcionamento do Apoio Matricial? Além da gestão,
que, necessariamente, deve estar muito bem alinhada
Considerações Finais com o desafio de transformar o processo de trabalho,
O Apoio Matricial, mesmo demonstrando sua potên- as Equipes da Atenção Básica precisam “criar tempo”
cia na prática, encontra dificuldades e impasses em para analisar o trabalho coletivamente. Uma equipe
seu percurso. que não se reúne não discute seus casos, não produz
novas saídas para seus obstáculos e, por consequên-
Para que o matriciamento aconteça em uma Unidade cia, não transforma seu trabalho. É na cronificação do
130 de Saúde, é necessário que a gestão compreenda a atendimento serial da demanda de porta que os traba- 131
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios O apoio matricial como dispositivo de ampliação
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lhadores, também, podem construir a mortificação do trabalhadores em ilhas do trabalho com a Saúde Men-
cotidiano do trabalho. tal, de tal forma que tudo o que faz referência a essa
demanda lhes seja encaminhado. Tal isolamento, tam-
Enfatizamos os momentos de produção de espaços bém, pode impedir os trabalhadores da “mental” de tra-
coletivos como estratégias fortes para que os traba- balhar em conjunto com outros profissionais, atendendo
lhadores discutam a demanda que se apresenta aos a cem por cento da demanda, sem mesmo poder dizer
mesmos; para que a autonomia nas intervenções em para a equipe que nem tudo o que parece demanda de
saúde seja analisada, para que o conhecimento acer- Saúde Mental, necessariamente, é.
ca dos modos de produção dos processos de trabalho
se efetue. O Apoio Matricial atua nesses momentos. Se Os profissionais da saúde mental, nas Equipes da Aten-
não acontecerem, p. ex., reuniões de equipes da ESF, ção Básica, devem sim abrir agenda para o atendimento
reuniões gerais nas Unidades de Atenção Básica e mo- aos usuários – os quais são cuidados por uma equipe,
mentos de educação permanente, o Apoio Matricial não e não apenas pelos ditos especialistas. Para isso, os
acontece. Se não houver conversas entre os serviços, profissionais da Saúde Mental devem estar presentes
discussões cotidianas entre trabalhadores e gestores, para discutir os casos acolhidos por si próprios e por
atendimentos compartilhados, exploração do território e toda a equipe, decidindo, coletivamente, quais usuários
presença constante do Apoiador Matricial nas Unida- continuarão na Unidade Básica, quais serão direciona-
des de Saúde, o Apoio Matricial pode se tornar uma dos para outras ofertas que, também, podem favorecer
ação apenas protocolar. à Saúde Mental dentro e fora do serviço e quais usuá-
rios serão encaminhados para outras unidades.
Sem a análise sobre os modos de cuidar, o que res-
ta para o usuário é a medicalização de seu sofrimento, Sendo assim, o maior desafio enfrentado pelo Apoio
pois, quando as equipes não discutem seus casos, não Matricial é qualificar as Equipes da Atenção Básica
há possibilidades de enfrentamento do desconhecido, para funcionarem como referência aos usuários dos
de resistências, isto é, de compartilhamento do “não serviços, podendo se posicionar junto destes no mo-
saber o que fazer” quando um usuário em sofrimento mento de acolhimento ao sofrimento psíquico, criando
mental chega ao serviço e os trabalhadores nunca lida- ofertas que reduzam a medicalização das queixas e
ram com essa demanda ou tem pouca experiência de estruturando espaços onde profissionais que não são
trabalho. Temos enfrentado, em nível nacional, a exa- especialistas em Saúde Mental possam apostar que a
gerada medicalização do sofrimento psíquico, devido Unidade Básica de Saúde é potente para oferecer escu-
à dificuldade de organização de espaços coletivos de ta, elaborar projetos coletivos de inserção dos usuários
gestão e de inovações nos processos de trabalho. em atividades estruturadas, como grupos e oficinas,
além de construir redes e fazer os encaminhamentos
Já as equipes da atenção básica que contam com pro- necessários para os serviços de referência quando se
fissionais da saúde mental precisam pensar a atenção apresentam casos de maior complexidade.
ao sofrimento psíquico de forma menos centrada na
agenda de atendimento e mais aberta às outras possibi- Desse modo, a Unidade Básica, também, contribui

132 lidades de atuação dentro das equipes. O cumprimento


da agenda, como já dito anteriormente, pode isolar os
para a des-especialização da Saúde Mental enquanto
um núcleo distante, abrindo espaço para discussões 133
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Os impasses na consolidação de uma atenção em rede das práticas clínicas na atenção básica

clínicas e de gestão que envolvam a intersetorialidade nização da saúde. In: CAMPOS, G. W. S. et al (org.).
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nar próximo às equipes nesse trabalho, pois seu saber cossocial: Rumo a um Novo Paradigma na Saúde Men-
deve dissolver-se para que as equipes sintam-se for- tal Coletiva. AMARANTE, P. (org.) Archivos de Saúde
talecidas e apoiadas tecnicamente, tendo, como con- Mental e Atenção Psicossocial. Rio de janeiro: Nau,
sequência, a construção de avaliações coletivas para 2003; p 13-44.
perguntas como “a quais problemas de saúde o Apoio DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e
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– CAPÍTULO VI –
SAÚDE MENTAL E REDE: SUA ARTICULAÇÃO
DISCUTIDA EM UM ESTUDO DE CASO
Marcelo Kimati Dias
Joseane Vasconcellos de Freitas
Carlos Alberto Pegolo da Gama
A territorialização da atenção constitui uma noção, for-
temente, impressa nos modelos de assistência desen-
volvidos no âmbito da reforma psiquiátrica. Identificar
o território como espaço preferencial para ações de
Marcelo Kimati Dias saúde mental articula-se à ideia de que os serviços
É médico psiquiatra, doutor em ciências sociais pela UNICAMP, militante da de saúde devem integrar a rede social das comuni-
Reforma Psiquiátrica e Sanitária. Atua na área degestão em saúde mental, dades em que se inserem. A perspectiva de atuação
tendo participado de processos de implantação de serviços substitutivos em no território implica, por sua vez, na existência de re-
saúde mental em Teresina, Natal, Caicó, João Pessoa, Recife e campinas. des de atuação, que conectem serviços de diferentes
Atuou como assessor técnico no ministério da Saúde e foi professor na
Universidade Potiguar, em Natal, entre 2010 e 2012 e atuou junto ao Núcleo de graus de especialização em suas ações. Ainda que
Estudos em Saúde Coletiva na UFRN no ano de 2012. Atualmente é diretor de os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) desem-
Atenção de Redes na Secretaria Municipal de Saúde em Curitiba, no Paraná. penhem um papel formalmente central na organização
de ações em saúde mental no território a eles referen-
Joseane Vasconcellos de Freitas ciado (BRASIL, 2004), a noção de rede de atenção
Graduação em Psicologia, pela Universidade São Francisco (2005), pós em saúde mental implica na diversificação das ofertas
graduada em Desenvolvimento do Potencial Humano nas Organizações de cuidado e relativização dessa centralidade. Nesse
(2008). Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em gestão sentido, Nunes (2007) aponta para o fato de que dife-
de pessoas, atuando, principalmente, nos seguintes temas: Tendências rentes países que viveram experiência com reformas
organizacionais, Gestão por Competência, Treinamento e Desenvolvimento,
psiquiátricas tiveram, na atenção básica, uma ins-
Avaliação de Desempenho, Descrição de Cargos e Salários
tância privilegiada de abordagem, referenciando-se,
Carlos Alberto Pegolo da Gama ainda, na lógica de territorialização descrita. Apesar
de existir uma diretriz no sentido das ações de saúde
Possui graduação em Psicologia, pela Universidade de São Paulo (USP 1990), mental na atenção básica e estas estarem articuladas
mestrado em Psicologia Clínica, pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC SP 2001) e doutorado em Saúde Coletiva, pela Universidade de aos serviços de especialidades, existe, continua a au-
Campinas (UNICAMP 2011). É professor adjunto da Faculdade de Medicina tora, uma distância entre essa diretriz e o observado
da Universidade Federal de São João Del Rei. Tem experiência na área de nos municípios.
Psicologia Social, com ênfase em Saúde Mental e Saúde Pública, atuando,
principalmente, nos seguintes temas: Instituiçoes, Atenção Básica, Programa
de Saúde da Família e Equipamentos Ligados à Reforma Psiquiátrica.
A noção de rede implica um sistema que apresenta não
só ofertas de cuidado com diferentes complexidades, 141
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Saúde mental e rede: sua articulação discutida em um estudo de caso
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

mas a existência de canais de interlocução entre as nicípio. O município tinha, em 2005, população estima-
diferentes instâncias, o que diferencia um sistema que da em 66.421 habitantes (IBGE). O programa de saúde
aglomera instituições de saúde de uma rede articulada. da família do município possuía, até o final de 2004, 57
Mais do que um sistema estratificado quanto à com- mil pessoas cadastradas, cerca de 90% da população.
plexidade, rede implica a existência de canais constan- Alguns dados sociodemográficos e indicadores de saú-
tes, formalizados e pactuados de intervenção. Coimbra de da população encontram-se resumidos no quadro I
(2003) apontou para a existência de lacunas na rede de e II, respectivamente.
assistência em saúde mental, especialmente na relação
entre os CAPS e atenção básica. Segundo a autora, es-
Quadro 1 – Dados sociodemográficos.
sas lacunas ficavam evidentes nos procedimentos de
referenciação e contra-referenciação aos serviços de • 33.125 do sexo masculino e 33.296 do sexo feminino.
saúde mental. A necessidade de maior articulação da • População de 66.421 habitantes
rede de saúde mental é observada, ainda, como uma

Características
• População área urbana – 43.351 (71%) e

Demográficas
dificuldade que compromete a atenção em saúde men- área rural 17.064 (29%). – em 2000
tal, como um todo, e que implica consequências, como
• Menores de 20 anos – 17.196 habitantes (25,8%)
a percepção da insuficiência de leitos de internação
(BRASIL, 2008). • Acima dos 60 anos-7.703 pessoas (11,6%)
• A população adulta na faixa etária de 20 a 49
Este estudo procura, através de um caso emblemático, anos cresceu 12,24% de 2001 para 2005
contribuir com a discussão acerca da articulação dessa • Crescimento anual da população (em 2004) 1,5 %
esperada rede integrada de serviços, apontando para
Fonte: IBGE, 2005.
possíveis questões associadas às dificuldades de inte-
gração do sistema. A abordagem, centrada na experi-
ência do usuário mediante intervenção em rede, permi- Quadro 2 – Indicadores de Saúde, Amparo 2005.
tiu que fosse descrita sua interação com o sistema e os

saúde do município
conflitos nessa relação. A avaliação dos dados do caso • Coeficiente de mortalidade infantil (2004)

Indicadores de
17,24 (14 óbitos em 812 nascimentos)
e da trajetória do paciente foi referenciada em literatura
antropológica, mais especificamente em antropologia • Coeficiente Mortalidade geral (2004) 6,47 em
1000 habitantes, sendo 43,4% dos óbitos tendo
médica ou psiquiatria cultural. Abordagens com esses
ocorrido em pessoas com mais de 60 anos
referenciais têm apontado para importantes achados na
• “Causas externas” constituem a quarta principal razão
interface entre saúde mental e saúde coletiva (COLVE-
de morte no município, em 2004 7,44 % das mortes.
RO, 2004; NUNES, 2008).
Fonte: Plano Municipal de Saúde de Amparo – 2005 a 2008.

O Campo e a Rede de Estudo A rede de atenção de saúde no município era compos-


O caso estudado trata de um paciente do sistema de ta por 13 unidades básicas de saúde; Ambulatório de
saúde de Amparo, no estado de São Paulo, e é impor- Especialidades/Centro de Saúde; Centro de Apoio Psi-
142 tante a descrição da rede de atenção em saúde do mu- cossocial/ CAPS, Núcleo ambulatorial de Saúde Mental; 143
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Saúde mental e rede: sua articulação discutida em um estudo de caso
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

Laboratório Municipal de Análises Clínicas; Centro de região do centro do município quanto uma, predominan-
Referência de Saúde do Trabalhador; Centro Odonto- temente, rural. A unidade contava com duas equipes de
lógico; Central de Ambulâncias, Departamento de Vi- PSF e uma equipe de Saúde Bucal. A área física da Uni-
gilância Sanitária e Epidemiológica. Além disso, existia dade de Saúde da Família (USF) havia sido construída
uma rede de atenção conveniada ao Sistema Único de em 2002, com aproximadamente 374 metros quadrados
Saúde (SUS), composta por dois hospitais gerais de de área. A USF atendia a demanda espontânea no perí-
complexidade secundária e um grande hospital psiqui- odo da manhã, e a agendada no período da tarde, sen-
átrico com duas unidades. do que esta última demanda era constituída por acom-
panhamento pré-natal, planejamento familiar, tratamento
Na saúde mental do município, ocorrera, aproxima- das DST, vacinação, acompanhamento do crescimento
damente dois meses antes do início do estudo, a de- e desenvolvimento de menores de um ano, tratamen-
centralização do atendimento em saúde mental, con- to das patologias mais comuns da criança, controle de
siderado de baixa complexidade em Amparo. Com o diabetes hipertensão, saúde bucal, e atenção ao idoso.
processo, o ambulatório de psiquiatria e psicologia,
localizado em anexo ao CAPS, deixara de existir, sen- Com a descentralização dos serviços de saúde mental
do que a equipe de psicologia fora distribuída pelas de “baixa complexidade”, a USF em questão passou
unidades de PSF. O trabalho dos psicólogos na unida- a assumir, ainda, a atenção a esta demanda, através
de era bastante diversificado, atuando com a participa- de atendimentos conjuntos do médico de família e o
ção de outros membros da equipe, principalmente os psiquiatra, atendimentos psicológicos: grupais, indivi-
agentes de saúde. As atividades eram, prioritariamen- duais, e domiciliares; apoio matricial à equipe do PSF,
te, voltadas para apoio às famílias. As práticas em saú- através de discussão de caso, discussões de temas,
de mental inseridas no PSF do município procuravam atendimento conjunto. Houve, com isso, um acréscimo
diminuir a porcentagem de casos graves que necessi- do número de usuários nas unidades e um processo de
tavam de um equipamento complexo (CAPS), manten- inclusão do usuário de Saúde Mental, cujas demandas,
frequentemente, exigiam uma disponibilidade institu-
do a atenção básica, e, consequentemente, o território,
cional, o que implicava a ampliação da capacidade da
como local preferencial das práticas de saúde mental.
equipe em acolher, avaliar e responder ao usuário nas
Da mesma forma, um psiquiatra prestava apoio às uni-
necessidades em saúde mental.
dades, realizando atendimentos conjuntos, discussões
de caso e capacitações. Completando a configuração No período do estudo, a unidade realizava por volta
da rede de saúde mental, funcionava, aos finais de tar- de 105 acolhimentos em saúde mental. O número de
de, um ambulatório de dependência química, com 01 usuários da saúde mental na unidade, em seguimento
psiquiatra e três psicólogas. regular, era de 150. Eram, ainda, realizados de 3 a 4
atendimentos domiciliares semanais programados, por
No caso estudado, o paciente foi usuário de mais de
psiquiatra ou por psicólogo, acompanhado por mem-
um desses serviços. A unidade de saúde da família da bros da equipe, em geral agentes comunitários.
qual o paciente era usuário tinha uma população ads-
crita diversificada, atendia tanto a população carente do
144 município quanto a de classe média. Englobava tanto a
Localizado quase anexo à unidade de saúde da família
estudada, estava o CAPS I do município. E, também, 145
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Saúde mental e rede: sua articulação discutida em um estudo de caso
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

próximo aos dois serviços, encontravam-se as oficinas nascimento foi conturbado, pois nascera com o cor-
de “geração de trabalho e renda”; no momento do estu- dão umbilical enrolado no pescoço. Sua infância teve
do, incluíam quarenta e quatro usuários trabalhadores. um desenvolvimento normal: era uma criança brinca-
lhona. Já, aos 12 anos, parou de estudar e começou
a fazer uso de bebidas alcoólicas, bebia em media 1
Eduardo litro de destilados por dia. Ao chegar à sua residência
alcoolizado, ingeria, ainda, o que via pela sua frente
O estudo de caso foi realizado em dois momentos: um
(segundo ele contava).
primeiro, no segundo semestre de 2005, e, em uma
segunda fase, nos meses de janeiro a junho de 2006. A partir dos 20 anos, foi preso por 01 ano e nove meses
Na primeira ocasião, foram realizadas seis entrevistas por furto. Após cumprir pena, passou por diversas inter-
individuais com o sujeito e duas entrevistas com a par- nações psiquiátricas, por volta de 140 hospitalizações,
ticipação de sua mãe em sua residência. Inicialmente, quase todas nos hospitais de Amparo, ainda que algu-
foi estabelecido um contato com o paciente a fim de mas das internações se dessem em Itapira, Casa Bran-
estabelecer vínculo; em seguida, foram desenvolvidas ca, Sorocaba e São Paulo. Contava que as internações
as entrevistas individuais para obter dados do histórico
ocorriam por agressividade ou pelo uso de bebidas al-
do sujeito e observação do seu contexto familiar.
coólicas. Algumas das hospitalizações ultrapassavam o
O segundo momento do estudo de campo foi realizado período de 06 meses.
no primeiro semestre de 2006 nos meses de feverei-
Sua mãe sempre foi evangélica e sempre teve muita fé
ro a abril. Nessa ocasião, novamente, foram realizadas
entrevistas com o sujeito, com a finalidade de analisar que Eduardo um dia iria se converter. Em alguns perío-
a evolução do caso, além de haverem sido realizadas dos de intoxicação alcoólica, Eduardo dizia que iria “sair
novas observações em seu contexto familiar. No decor- pelo mundo” para pregar, em uma longa peregrinação,
rer das entrevistas, na presença de Eduardo, foi ressal- acentuando essa expectativa de sua mãe. Aproximada-
tado o sigilo da identidade do participante e entregue mente cinco anos antes das entrevistas, Eduardo havia
um Termo de Consentimento após essas orientações. se convertido a uma igreja evangélica, mantendo-se
Assim, os nomes utilizados neste texto não são os reais, sem fazer uso de bebidas alcoólicas desde então. Se-
de forma que o paciente não pudesse ser identificado. gundo sua mãe, com a conversão, Eduardo havia se
tornado uma pessoa mais calma e tranquila. Eduardo
Além do espaço da residência do paciente, as entre- sempre ressaltava a importância do falecimento de seu
vistas se deram em outros dois diferentes campos: no pai para sua conversão, o que ocorrera poucos meses
CAPS I e na Unidade de Saúde da Família de referên- antes de iniciar sua vida religiosa. Contava que seu
cia do usuário. Eduardo recorria a atendimentos nes-
pai permanecia, frequentemente, em sua companhia
ses dois serviços e sua descrição é importante para
e que falava, diariamente, com ele; essas afirmações
discussão dos procedimentos aos quais ele foi subme-
encontravam-se num limite impreciso, em sua história
tido ao longo do estudo.
médica, entre um discurso religioso, uma metáfora ou
um achado psicopatológico. Esse caráter limítrofe das
146 Eduardo tinha, durante o estudo, 47 anos, era solteiro,
vivia com sua mãe e irmãos. Sua mãe relatou que seu afirmações de Eduardo criavam uma confusão diagnós- 147
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Saúde mental e rede: sua articulação discutida em um estudo de caso
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

tica e, como será visto mais adiante, uma dificuldade de pouca resposta terapêutica ou abandono de tratamento
inserção institucional. por baixa adesão à medicação.
O caso de Eduardo é relevante, na medida em que sua Diante dessa situação desconcertante, baseada no
inserção nas várias instituições de saúde constituiu, ao longo antecedente psiquiátrico de Eduardo, a equipe
longo de mais de um ano, uma situação desconcertan- optou, em reunião, pelo encaminhamento do caso ao
te, tanto para a equipe de saúde mental quanto para a CAPS da cidade. Foram realizadas, então, diversas ten-
equipe de saúde da família que o atendia. Eduardo ia, tativas de inserção, sempre mal sucedidas. Parte do
diariamente, à USF com queixas físicas vagas, sendo insucesso dos encaminhamentos se deu em decorrên-
acolhido e, muito frequentemente, avaliado por médi- cia de referenciais diagnósticos: Eduardo não podia ser
co. Uma vez que apresentava, de fato, histórico clínico caracterizado como psicótico, tinha antecedente de de-
relevante (havia já sido submetido à cirurgia de revas- pendência química, mas se encontrava em abstinência
cularização cardíaca, havia apresentado úlcera gástrica alcoólica há anos. Por outro lado, Eduardo não se consi-
já tratada), tinha antecedentes psiquiátricos, criminais derava igual aos demais pacientes da instituição: ainda
e pouca rede de apoio social, era, assim, considera- que houvesse estado em hospitais psiquiátricos, como
do usuário de grande vulnerabilidade. Diariamente, ia, a maioria dos usuários do CAPS, tinha quase que, es-
também, ao pronto-socorro do município e solicitava sencialmente, preocupações somáticas, de ansiedade
transporte público (ambulância). Sua rotina implicava e não apresentava alterações de juízo de realidade ou
em duas ou três idas diárias a instituições de saúde, senso de percepção.
sem que houvesse nenhuma resolutividade.
Da mesma forma, Eduardo tinha importantes dificulda-
A equipe no PSF dizia que Eduardo havia matado al- des em se readaptar à vida social: não conseguia esta-
gumas pessoas no passado. Em decorrência disso, belecer contados pessoais. Ao contrário, adequava-se
demonstrava ter muito medo de atendê-lo. Eduardo, bem a instituições. Sempre que se referia aos espaços
por sua vez, sempre negava o fato. No contato com que frequentava, relatava a necessidade de regras nos
o serviço, que ele tinha diariamente, essa tensão, era, serviços de saúde, queixava-se de desorganização e
ainda, potencializada por condutas de Eduardo que, da incapacidade dos espaços em gerirem sua vida.
por exemplo, exigia ser atendido, exclusivamente, pela Isto não significava, entretanto, que abrisse mão da li-
mesma médica da unidade. A equipe começou, en- berdade de eleger as instituições, nas quais, inseria-se
tão, a desconfiar que essa postura denotava interesse preferencialmente. No caso do CAPS, não identificava
pessoal e passou a não permitir que ele fosse atendido nenhuma oferta que o atraísse ou que garantisse sua
por ela a sós. Dessa forma, sempre que procurava o inserção como, frequentemente, era proposto. Assim,
serviço, era atendido por dois técnicos juntos. Nesse para desconcerto dos profissionais de saúde, Eduardo
período de uso diário do serviço, que durou vários me- insistia em utilizar a unidade de saúde elegida, em es-
ses, foi feito um diagnóstico de transtorno depressivo, paço físico quase contíguo ao CAPS. Por outro lado, os
transtorno somatoforme, síndrome psicótica e transtor- trabalhadores desta última instituição identificavam dife-
no de ansiedade. Foram utilizados antidepressivos, an- renças marcantes entre Eduardo e os demais usuários,
148 tipsicóticos de baixa potência e sedativos, sempre com tanto em relação ao diagnóstico quanto à sua autono- 149
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Saúde mental e rede: sua articulação discutida em um estudo de caso
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

mia, avaliada diariamente. Não havia, assim, nenhuma Eduardo era descrito, pela equipe, como um homem tris-
convicção, nessa equipe, da adequação de Eduardo te, que cometera muitos delitos (incluindo homicídios),
ao CAPS, sendo que a insistência de inserção se dava, tendo sido preso em várias ocasiões. Em um determi-
principalmente (ou quase exclusivamente), pela situa- nado momento de sua vida, Eduardo havia passado a
ção incômoda gerada por ele na USF, localizada, tam- frequentar igrejas e se arrependido de seu passado de
bém, incomodamente, ao lado do serviço. crimes e alcoolismo. A representação, predominante,
entre a equipe, especialmente das agentes comunitá-
O fato de Eduardo ir, diariamente, à unidade de saúde rias, que correspondiam a um grupo intermediário da
da família de forma não resolutiva se somava às tenta-
população local e os técnicos, era de que Eduardo era
tivas de inserção no CAPS mal sucedidas. Isto mobili-
um homem arrependido e deprimido. Essa depressão,
zava, intensamente, a equipe de saúde da família. Na
segundo a equipe, decorria de sua impossibilidade de
ocasião da implantação do programa de saúde mental
se haver com seu passado, criando uma contradição
no PSF, Eduardo foi um dos três primeiros casos discu-
entre seu presente religioso e sua história de crimes. A
tidos entre as equipes, demonstrando a sensação de
impotência gerada, diante da baixa resolutividade das equipe, ainda, descrevia-o como um paciente de inten-
abordagens anteriores. sa vulnerabilidade, em função de sua pobreza material,
impossibilidade de pensar intervenções junto a sua fa-
Nessa primeira discussão entre a equipe do PSF e a mília, baixa adesão ao tratamento e distância entre sua
equipe de apoio matricial em saúde mental, com uma casa e a unidade de saúde.
psicóloga e um psiquiatra, Eduardo foi descrito como
um paciente grave “mas sem diagnóstico”, que havia A equipe identificava o arrependimento e o sofrimento
sido inserido no CAPS “mas não havia se adaptado” e real de Eduardo, mas não se sentia capaz de intervir de
teve seguimento ambulatorial. Por sua vez, abandonou forma eficaz. Por outro lado, o caso era um incômodo
o tratamento psiquiátrico no ambulatório. Na ocasião, no dia a dia da unidade, pois Eduardo estava sempre
segundo os relatos de prontuário, fazia uso de antide- aguardando consultas, solicitando atendimento de for-
pressivos, tinha diversas queixas somáticas, mas não ma repetitiva e quase ritualizada. Nessa primeira dis-
aderia a nenhum tratamento, tomando remédio do jeito cussão do caso, levantou-se as hipóteses diagnósticas
que queria. Da mesma forma, Eduardo utilizava o servi- de transtorno depressivo recorrente e transtorno soma-
ço do jeito que queria, vindo fora dos retornos para con- toforme, tendo sido agendada, para a semana seguinte,
sulta, faltando nas agendadas e solicitando receitas de visita domiciliar pelo psiquiatra e psicóloga.
medicações psicotrópicas ao médico de família. Essa
postura, muitas vezes, desorganizava o atendimento da A visita corroborou o diagnóstico inicial, sendo introdu-
unidade, segundo os técnicos, levando o seu acolhi- zida medicação antidepressiva, que a unidade passou
mento a ser, excessivamente, prolongado. Durante perí- a fornecer, ainda que não fosse padronizada. Foi pac-
odos, Eduardo estabelecia vínculos preferenciais, esco- tuado que Eduardo teria um profissional de referência,
lhendo, entre os membros da equipe, interlocutores que que realizaria o acolhimento sempre que este visitasse
privilegiava. Nesses casos, quando exigia atendimen- a unidade. Eduardo elegeria esse profissional e este,
em conversas informais, procuraria desenvolver uma
150 tos com esses profissionais, chegava a aguardar horas,
na sala de espera, até que pudesse ser atendido. escuta que permitisse a transposição da queixa somá- 151
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Saúde mental e rede: sua articulação discutida em um estudo de caso
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

tica para a queixa psíquica. Essas abordagens seriam ciação, aparentemente óbvia, aponta, no entanto, dois
supervisionadas, semanalmente, pela psicóloga do diferentes fenômenos: em primeiro lugar, existia uma
apoio matricial. Foi identificado que, ainda que Eduardo conduta de Eduardo, de utilização do sistema a partir
tivesse uma baixa adesão medicamentosa, havia apre- de uma lógica diferente da reservada para os usuários
sentado uma forte ligação com a equipe dessa unidade pelas instituições; em segundo lugar, existiam lacunas
e isso deveria ser utilizado como recurso terapêutico. interinstitucionais na rede, que permitiam a suposta não
adequação do usuário à instituição, às suas práticas e
A precariedade da rede de apoio social de Eduardo foi rotinas diárias. Este segundo fenômeno deve ser expli-
abordada nesse projeto terapêutico, com uma postura cado por uma lógica interna a ele, e não por explicações
mais incisiva da equipe junto a essa rede, no sentido de focadas, exclusivamente, pelas condutas de Eduardo:
fortalecê-la. Nas semanas seguintes à discussão, o co- não se trata, de forma exclusiva, de um ato de indiscipli-
ordenador da unidade emitiu relatórios e cartas para o na na utilização do sistema por parte do usuário.
pastor da igreja que Eduardo frequentava, atestado sua
boa índole moral, necessidade de acolhimento e de aju- Com a finalidade de nos aprofundarmos nessa discus-
da. Nos meses subsequentes, entretanto, Eduardo pas- são, utilizaremos alguns modelos analíticos da psiquia-
sou a peregrinar por outras instituições, como o CAPS. tria cultural.
Após alguns meses, abandonou o seguimento na uni- 1. Itinerários Terapêuticos – Eduardo não fazia uso do
dade, em decorrência de uma piora de sua condição sistema como se esperava dele. Tinha baixa adesão,
clínica e restrições do uso da ambulância como forma não ia aonde o orientavam a ir e procurava espaços
de transporte. Apresentou piora do quadro depressivo, para os quais diziam que ele não deveria ir. Para enten-
tendo sido, em certa ocasião, meses depois, internado der suas motivações, é preciso abordar a relação entre
em hospital psiquiátrico. Tudo isso impossibilitou Eduar- usuário e a rede de atenção a partir de uma concepção
do de locomover-se, diariamente, a serviços de saúde, ampla de sistema de saúde.
o que pôs fim ao intenso incômodo causado por ele.
Um sistema de saúde envolve diversas instâncias que,
articuladas, apresentam alternativas de significações
Discussão do sofrimento ao seu usuário. Esse sistema não impli-
ca, exclusivamente, a oferta de recursos terapêuticos,
No caso estudado, ficou evidente que Eduardo era um mas uma intrincada rede, na qual, estão impressas as
paciente pelo qual nenhuma equipe da rede de saúde relações de poder, o desenvolvimento de papeis so-
se identificava como apropriada a se responsabilizar. ciais e significados da doença. Para Kleinman (1980),
Ele transitava na rede de forma não resolutiva, nem do além do sistema oficial médico de serviços de saúde,
ponto de vista biomédico nem em relação à reabilita- existem, ainda, uma rede informal e outra popular e os
ção psicossocial. Por um lado, existia uma suposta não pacientes transitam pelos diferentes sistemas de forma
adequação de Eduardo aos modelos promotores das não hierarquizada, criando e reproduzindo itinerários
ofertas de cuidado. Por outro lado, observou-se uma terapêuticos. Esses itinerários, por sua vez, implicam a
lacuna entre as instituições e suas ofertas e, nesse es-
152 paço intermediário, instalou-se Eduardo. Essa diferen-
constituição, transformação e representação da experi-
ência relativa ao adoecer, ao sofrimento. O trânsito de 153
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Saúde mental e rede: sua articulação discutida em um estudo de caso
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

Eduardo pela rede implicava muito mais uma procura fine quais as categorias diagnósticas compatíveis com
de significados do que, propriamente, o cuidado oferta- acompanhamento em CAPS (BRASIL, 2004).
do, explicitamente, pelo serviço.
Da mesma forma, no interior das instituições (CAPS,
É importante salientar que esse sistema é composto PSF), essas categorias, frequentemente, orientam prá-
não apenas pelos serviços de saúde, mas, também, ticas terapêuticas. Eduardo não era um caso típico de
por instituições religiosas (no caso, igreja evangélica) CAPS, não era dependente químico e não tinha depres-
e outras formas práticas não oficiais. Essas instâncias são leve, passível de ser tratada na atenção básica.
e saberes articulam-se, enfrentam-se e demandam di- Essa lacuna de categorias fazia com que ele estivesse
ferentes formas de adesão. É curioso identificar que fo- em um espaço interinstitucional, em uma instância inter-
ram criados canais de interlocução entre os serviços de mediária, que implicava, potencialmente, em desassis-
saúde e a igreja à qual Eduardo havia se filiado. tência. Estas categorias segmentam um sistema e re-
Assim, não existia, propriamente, uma rebeldia, baixa produzem outra lógica, uma lógica social que identifica,
adesão ou descontentamento do usuário. Este estava como anomalias, indivíduos ou situações que não se
em um processo próprio, no qual, os serviços de saúde adéquam a esses sistemas classificatórios.
encontravam um papel. E este era diferente do que as
A situação de Eduardo nas instituições de saúde era
instituições se dispunham a desenvolver. Assim, rede
análoga às lacunas em sua vida social. Da mesma for-
de atenção em saúde é uma concepção utilizada por
profissionais de saúde, com referenciais não, necessa- ma que Eduardo não encontrava lugar na rede, não
riamente, compartilhados com os usuários do sistema. encontrava lugar no mundo. Ex-presidiário, ex-paciente
Ao contrário, as demandas, frequentemente, são relati- psiquiátrico, com inserções frágeis em sua igreja, em
vas às concepções que esses usuários têm acerca de sua família e mesmo nas instituições de saúde. Eduardo
suas necessidades e do papel do sistema como um não era, exatamente, nada para o sistema, que o classi-
todo em seu cotidiano. ficava a partir de sua inserção institucional. Da mesma
forma que a rede não comportava uma anomalia diag-
2. Redes de atenção e categorias sociais – Por outro nóstica, a sociedade não comportava uma anomalia li-
lado, qual a lógica do sistema que permite a existência vre de um espaço específico. Esse fenômeno é um res-
de situações anômalas, como a descrita no texto? Fun- quício dos hospitais psiquiátricos, que se apropriariam
cionalmente, a rede de saúde é constituída por institui- de situações desviantes.
ções com diferentes funções e que se identificam com
diferentes papéis na sua relação entre si. Para que sai- A identificação das categorias diagnósticas às institui-
bam qual é esse papel, norteiam-se por sistemas clas- ções assistenciais define a configuração das práticas
sificatórios. No caso estudado, um dos principais sis- de saúde inerentes ao sistema estudado. Se um caso
temas utilizados é o de diagnósticos psiquiátricos, que é identificado por uma categoria que não se adéqua a
define o destino institucional dos casos. Na utilização uma instituição, ou se é anômalo ao sistema de catego-
de categorias diagnósticas psiquiátricas, esta definição rias, ele é colocado numa condição marginal. Esta mar-

154 é bastante sistematizada. O Ministério da Saúde, atra-


vés de uma legislação específica de saúde mental, de-
ginalidade não apenas denuncia a submissão da assis-
tencial ao sistema classificatório, mas aponta, também, 155
Dispositivos de atenção em saúde mental e seus desafios Saúde mental e rede: sua articulação discutida em um estudo de caso
Os impasses na consolidação de uma atenção em rede

a existência de um potencial contingente desassistido, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP. Ribeirão


indetectável e “incômodo” ao sistema. Preto – SP, 2003.
Esse gap, no qual se encontram alguns pacientes, de- ______. Avaliação do Cuidado em Saúde Mental na
corre da dificuldade de pactuação de um sistema ple- Estratégia Saúde da Família. 299f. 2007. Tese (Dou-
namente articulado. Na ausência de canais de interlocu- torado em Enfermagem Psiquiátrica) – Escola de Enfer-
ção, o sistema é operado por práticas de referenciação magem de Ribeirão Preto/USP, Ribeirão Preto-SP, 2007.
e contra-referenciação, que, por sua vez, estruturam-se
pela atribuição de papéis às instituições. Essa percep- COLVERO, L.A.; IDE, C. A. C.; ROLIM, M. A. Família e
ção permite uma crítica à centralidade dos CAPS como doença mental: a difícil convivência com a diferença.
local privilegiado de práticas de saúde em rede (BRA- Revista da Escola de Enfermagem USP, v.38, n.2,
SIL, 2004). A noção de centralidade institucional tende a p.197-205, 2004.
tornar um espaço de referência em um local único dentro DOUGLAS M. Pureza e Perigo. Editora Perspectiva
da lógica de atribuição de papéis às instituições. É em- SP, 1976.
blemático, por exemplo, que o caso citado só tenha ge-
rado tensão na medida em que Eduardo não se adequou KLEINMAN, A. Patients and healers in the context
ao acompanhamento no CAPS, para onde foram feitos of culture: an exploration of the borderland between
diversos encaminhamentos antes do período do estudo. anthropology, medicine and psychiatry. Berkeley: Uni-
versity of California Press, 1980
A noção de rede, portanto, deve ultrapassar outra,
que tende a ser hegemônica, a de referenciação e ______. The Illness Narratives. Suffering, healing
contra-referenciação, que se utiliza de sistemas de and the human condition. New York: Basic Book,
categorias, que, frequentemente, não correspondem 1988. 204 p.
às demandas reais dos usuários do sistema nem às LAPLANTINE, F. A Antropologia da Doença. São Pau-
potencialidades institucionais. lo: Martins Fontes, 1991.
NUNES, M.; JUCÁ, V.J.; VALENTIM, C.P.B. Ações de
Referências saúde mental no Programa Saúde da Família: conflu-
BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Se- ências e dissonâncias das práticas com os princípios
cretaria de Atenção à Saúde. Legislação em Saúde das reformas psiquiátrica e sanitária. Cadernos de
Mental: 1990-2004 – 5 ed. Ampliada. Brasília: Ministé- Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.23, n.10, p.2375-
rio da Saúde, 2004. 2384, out. 2007.
______.; TORRENTÉ, M.; OTTONI, V.; MORAES NETO,
______. Saúde Mental no SUS: os Centros de Aten-
V.; SANTANA, M. A dinâmica do cuidado em saúde
ção Psicossocial. Brasília, Ministério da Saúde, 2004.
mental: signos, significados e práticas de profissionais
COIMBRA, V. C. C. O. Acolhimento no Centro de em um Centro de Assistência Psicossocial em Salvador,
Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.24,
156 Atenção Psicossocial. Ribeirão Preto-SP. 171f. 2003.
Dissertação (Mestrado em Enfermagem Psiquiátrica) – n.1, p.188-196, jan. 2008. 157

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