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A presunção da cultura – Roy Wagner

A ideia de cultura.
“A Antropologia estuda o fenômeno do homem – a mente do
homem, seu corpo, sua evolução, origens, instrumentos, arte ou grupos, não
simplesmente em si mesmos, mas como elementos ou aspectos de um
padrão geral ou de um todo. Para enfatizar esse fato e integrá-lo a seus
esforços” (p. 27) foi incorporada a palavra cultura, a qual se tornou “seu
idioma geral, uma maneira de falar sobre as coisas, compreendê-las e lidar
com elas” (p.39). Essa relação praticamente simbiótica, de dependência
entre o estudo antropológico e o conceito de cultura, permite entender tanto
a singularidade quanto a diversidade do homem (p.27), através do olhar
sobre este não como um ser isolado no universo, mas cujas ações e
propósitos sejam colocados no nível mais básico de significância,
permitindo, assim, sua compreensão em termos universais e, até mesmo, a
comparação entre suas variações.
Roy Wagner faz uma importante observação a partir da qual se
estenderá seu argumento: o antropólogo faz uso de sua própria cultura para
estudar outras culturas, de maneira que deve incluir a si e a seu próprio
modo de vida em seu objeto de estudo, investigando a si mesmo enquanto
parte do seu sujeito estudado. Assim, a ideia de cultura apresentada
combina uma primeira implicação de que a objetividade absoluta não
existe, pois o antropólogo neutro deveria possuir cultura alguma, o que
seria impossível. Desse modo, enquanto possuidor e proveniente de uma
cultura e uma vez que ele não simplesmente analisa uma cultura diferente,
mas a experiencia, seu trabalho deve ser o de investigar as maneiras pelas
quais sua própria cultura lhe permite compreender uma outra (qual o
conjunto de significados utilizados) e as limitações que isso impõe a tal
compreensão (p.28), permitindo-lhe não a imparcialidade, mas uma
objetividade relativa. A segunda implicação é proveniente do entendimento
que a cultura possui um caráter multivariado, de que há diversas formas de
o fenômeno humano se apresentar, o que leva à ideia de que cada cultura é
em si equivalente a qualquer outra, levando à relatividade cultural (p.29).
A raiz “relativo” dessas implicações sugere que “a compreensão de uma
outra cultura envolve a relação entre as duas variedades do fenômeno
humano; ela visa a criação de uma relação intelectual entre elas, uma
compreensão que inclua ambas” (p.28).
Desse modo, Wagner faz o elogio do trabalho em campo, que
confere rigor e profundidade no conhecimento mais abrangente da cultura e
de seus sujeitos a serem estudados. Assim é que, durante o trabalho
obsessivo em campo, o antropólogo cria uma relação entre a sua cultura e a
cultura do outro, sendo o elo dessa relação, conhecendo ao mesmo tempo, a
sua e a do outro devido ao privilégio de sua vivência em ambas. Dessa
relação, “de fato, poderíamos dizer que um antropólogo ‘inventa’ a cultura
que ele acredita estar estudando, que a relação – por constituir em seus
próprios atos e experiências – é mais ‘real’ do que as coisas que ela
‘relaciona’” (p.30). Trata-se de uma espécie de ficção feita de forma
objetiva, não como livre fantasia. Ao antropólogo, então, por meio desse
contraste, é proporcionada a possibilidade de apreensão do sentido abstrato
de cultura, de forma que a sua própria cultura se torna “visível”, não sendo
mais tomada como algo dado (invisível, cujas pressuposições são
autoevidentes), ao passo que a cultura estudada, após ser vista como
distinta, passa a ser entendida como uma outra forma pela qual ele mesmo
poderia viver.
Tornando a cultura visível.
O trabalho de campo apresenta problemas práticos e evidentes, como
a solidão e problemas para fazer contatos, que não necessariamente são
decorrentes de questões intelectuais. Tampouco foi, em geral, dada a
oportunidade do antropólogo de experenciar tal cultura para além de uma
abstração acadêmica, o que torna difícil visualizá-la ou apoderar-se dela
(p.31). Ao mesmo tempo, é frequente que as pessoas se sintam
desconfortáveis com um estranho em seu meio, utilizando técnicas de
defesa e modos de se esquivar do pesquisador. Assim, são as situações
mais triviais e corriqueiras que constituem o grosso das relações sociais do
antropólogo no início do campo, as quais criam uma ponte, mediada pela
empatia, entre o estranho e o nativo, que podem ser utilizadas como meio
de desenvolver uma espécie de relação mais substancial, como uma
amizade. Aqui surge uma crítica à antropologia de varanda, que pretendia
que o antropólogo fosse quase invisível em campo, simplificando sua
existência nas relações com os sujeitos de estudo. Outras questões desse
momento inicial referem-se à dificuldade no modo de agir com o outro e o
exagero nas expectativas sobre as “amizades” criadas.
O conjunto dessas frustrações iniciais são denominadas por Roy
Wagner como choque cultural: a cultura local é manifesta pela própria
inadequação do pesquisador, o qual se tornou “visível” em seu novo meio;
ao mesmo tempo, perde-se o eu em virtude da perda do suporte da
competência pessoal do antropólogo em lidar com os outros (seja em
termos de comunicação, seja enquanto participação na vida do outro e vice-
versa), habilidades já dominadas (em geral) pelo pesquisador quando no
ambiente de sua cultura “original”. Por outro lado, o nativo também pode,
ele mesmo, experenciar um certo choque para com o antropólogo e se
tornar autoconsciente de seus atos. Entretanto, se para o antropólogo a
questão é como controlar sua forma de lidar com os nativos, para estes, a
questão é como controlar o próprio antropólogo, de certa forma, como
domesticá-lo, diz Wagner. Isso pode ser realizado através do aprendizado
da língua e dos modos de vida e participação na comunidade local, de
forma a fortalecer as relações entre ambos.
Ao mesmo tempo em que o pesquisador está objetificando aquilo que
é a cultura local, ele está aprendendo tal cultura, sendo que esses processos
ocorrem simultaneamente na figura do antropólogo, podendo-se dizer que
ele está “inventando” a cultura. A compreensão dessa nova cultura surge de
sua significação e comunicação com base na própria cultura do
antropólogo, pois essa nova cultura não é absorvida por ele como o é para
uma criança que ali cresce, mas por alguém já dotado de um sistema de
significados. Essa nova cultura será, então, construída com aquilo que ele
já sabe e além daquilo, com seu próprio mundo de significados, os quais
também farão parte dessa nova cultura inventada pelo antropólogo (p. 36) e
é nesse sentido que a cultura não pode ser encarada como algo absoluto e
objetivo. Assim, a cultura inventada não é nem a cultura do próprio
antropólogo, nem a cultura do nativo, mas algo cujo elo é a própria
vivência do antropólogo em ambas.
Assim, o conceito de cultura como se fosse algo objetivo só serve
para o antropólogo enquanto uma “muleta” para entender como ele
compreende um outro povo (p.36). Para conhecer uma outra cultura é
preciso inventá-la, pois o próprio ato de relacionar uma e outra cultura
pressupõe tal invenção, a qual emerge do uso que o antropólogo “faz de
significados por ele conhecidos ao construir uma representação
compreensível de seu objeto de estudo” (p.36). É nesse sentido que
Wagner, no princípio de seu texto, diz que o antropólogo “é alguém que
usa a palavra cultura com esperança, ou mesmo com fé” (p.26). Essa
cultura inventada “ao mesmo tempo é e não é a própria cultura do inventor”
(p.37).
“A cultura é tornada visível pelo choque cultural, pelo ato de
submeter-se a situações que excedem a competência interpessoal ordinária
e de objetificar a discrepância inventiva dessa entidade após a experiência
inicial – ela é delineada por meio de uma concretização inventiva dessa
entidade após a experiência inicial” (p.37). Feita tal concretização, a
invenção da cultura, a cultura tornada visível, o pesquisador adquire uma
consciência intensificada das diferenças e similaridades encontradas através
termo cultura, usando-o de forma a compreender sua experiência.
A invenção da cultura.
As culturas ganham vida por terem sido inventadas e pela efetividade
dessa invenção, a qual ocorre não somente durante o trabalho de campo,
mas sempre que um conjunto de convenções “estranhas” sejam colocadas
em relação com o do sujeito (p. 39). Assim, a mera pressuposição da
cultura se demonstra um fenômeno geral da criatividade humana. Além
disso, o ato quase natural do antropólogo, consciente ou não, intencional ou
não, “de tornar o estranho familiar sempre torna o familiar um pouco
estranho” (p.39).
Se a noção de cultura é utilizada pelo antropólogo para controlar sua
vivência em campo, esta passa a controlar sua noção de cultura: “ele
inventa ‘uma cultura’ para as pessoas, e elas inventam ‘a cultura’ para ele”
(p.39). Assim, o antropólogo utiliza analogias para aproximar ambas as
culturas, a sua e a do outro, de maneira a inventar a cultura desse outro,
cujo estilo de vida, imagem da realidade, serve de controle nesse processo
de invenção, além da própria falta de consciência do criador sobre o
desenvolvimento de seu processo criativo. “Gradualmente, o objeto de
estudo, o elemento objetificado que serve como ‘controle’ para sua
invenção, é inventado por meio de analogias que incorporam articulações
cada vez mais abrangentes, de modo que um conjunto de impressões é
recriado como um conjunto de significados” (p.41). “O efeito dessa
invenção é tão profundo quanto inconsciente; (...) toda compreensão de
uma outra cultura é um experimento com nossa própria cultura” (p.41).
“O estudo da cultura é cultura, e uma antropologia que almeje ser
consciente e desenvolver seu senso de objetividade relativa precisa se avir
com esse fato. (...) O passo crucial – que é simultaneamente ético e teórico
– consiste em permanecer fiel às implicações de nossa presunção da
cultura” (p.46). Ao inventar uma cultura o antropólogo não pode ter a
pretensão de fazê-lo sozinho, negando ao outro sua criatividade, utilizando-
o como mero meio para seu trabalho. Assim, Wagner afirma que o foco
deve se voltar à criatividade e invenção inerentes à cultura.

Geertz: (2008:)
Sahlins: (1997:)
Wagner: (2010:)

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