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Capítulo I

CULTURA, REALIDADE,
LINGUAGEM E LÓGICA

1.1 A cultura — ciência cultural e objeto cultural

A tradicional classificação das ciências em cultural e na-


tural traz como fundamentum divisionis a definição do concei-
to de cultura. A cultura torna-se objeto de estudo das ciências
culturais (ou do espírito), ao passo que a natureza figura como
foco temático das denominadas “ciências naturais”.
Dessa distinção, já se torna possível perceber que os
mais variados objetos de estudo podem ter feição cultural
ou natural, de acordo com o sistema de referência no qual
se apresenta o cientista. O “homem” como objeto natural
é completamente distinto do “homem” como objeto cultu-
ral. Talvez os exemplos mais claros disso sejam a Antropo-
logia e a Psicologia. Ora figuram como ciências naturais
(quando tomam por foco temático, por exemplo, as funções
fisiológicas e o desenvolvimento anatômico do homem), ora
como ciências culturais (ao investigarem o papel da socie-
dade na mente humana e a relação entre o homem e os
objetos por este desenvolvidos – antropologia cultural e
psicologia social).
O conceito de cultura, obtido via abstração, é lugar comum
a teólogos, historiadores, sociólogos, filólogos e juristas; “está
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na base de todas as ciências que se ocupam do homem”, como


verificou LOURIVAL VILANOVA3.
Abstraindo-se a ambiguidade do léxico, empregar-se-á
“cultura” como o resultado da intervenção do homem junto ao
mundo circundante. É objetivação do espírito mediante atri-
buição de sentido ao dado (le donné). Este se converte em ob-
jeto cultural ao sofrer ação humana.
SPRANGER4 define o conceito de cultura como “o conjunto
de produtos com sentido que existem em um determinado tempo
para um grupo humano”. Tal definição atrela inexoravelmente
dois elementos doravante fundamentais: cultura e linguagem.
Ao lançar como característica definitiva de “cultura” a
expressão “produtos com sentido”, SPRANGER demonstra
que a cultura somente se materializa na linguagem. Esta pas-
sa a ser o espaço daquela, de maneira que todo objeto cultural
traz em si a linguagem como elemento fundamental.
Todos esses aspectos são analiticamente resumidos por
LOURIVAL VILANOVA5, ao aludir que “A cultura é, assim, um
fato de três dimensões: aos objetos físicos se conferem signifi-
cações, que partem de sujeitos (seus criadores ou receptores),
que entre si, por causa ou em consequência dessas significa-
ções, estendem uma teia de inter-relações sociais”.
Assim, na perspectiva sociológica de PARSONS6, a relação
de interação entre as significações dos objetos que os homens
efetuam entre si cria, linguisticamente, o tecido social.

3. VILANOVA, Lourival. Notas para um ensaio sobre a cultura. In: ______. Escritos
jurídicos-filosóficos. Vol. 2. São Paulo: IBET/Axis Mundi, 2003, p. 277. GEORG
SIMMEL, na mesma linha, também atesta: “They all (as ciências culturais)
have their origins in the needs and interests of practical life. At some point
they become liberated from praxis, objectified, and developed autonomously
as realms of pure cognitive culture” (On individuality and social forms, p. xx).
4. ROURA-PARELLA, Juan. Spranger y las ciencias del espiritu. Mexico D.
F.: Ediciones Minerva, 1944, p. 92.
5. VILANOVA, Lourival. Notas para um ensaio sobre a cultura. In: ______. Es-
critos jurídicos-filosóficos. Vol. 2. São Paulo: IBET/Axis Mundi, 2003, p. 280.
6. PARSONS, Talcott. El sistema social. Tradução de José Jiménez Blanco e
José Carzola Pérez. 2. ed. Madrid: Revista de Occidente. 1976.
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Vale destacar que a acepção de cultura, para SPRANGER


e VILANOVA, não afasta a “teoria morfológica da cultura”, como
concebida por FROBENIUS7 e a primor por SPENGLER8;
antes, pelo contrário, guarda relação de proximidade.
Ao vislumbrar a cultura metaforicamente como organis-
mo, SPENGLER9 talvez tenha sido o pensador que mais vigo-
rosamente a identificou com a noção de sistema objetivo e
transpessoal. Devido a isso, as afinidades morfológicas que
travam intimamente as formas todas de uma mesma cultura
têm seu ponto de apoio no homem e na linguagem. Por isso,
dizia o pensador alemão que conhecer o homem é em si mesmo
conhecer os organismos humanos chamados “cultura”.
A ideia de “cultura” como sistema supraindividual e obje-
tivado é fundamental para a teoria da cultura. Apesar de estar
intersubjetivamente posta, tem como marco original o homem.
A partir daí, transcende-o em decorrência da interatividade
social. Em razão disso, mesmo vislumbrando a cultura como
“trama não substancial”, VON WIESE10 não hesitou em procla-
mar que a cultura é “derivada da relação entre os homens”.
Num segundo instante, a cultura retorna ao homem como
resultado inexorável do viver social. FROBENIUS11 sentiu o
liame elíptico homem-cultura ao afirmar que “não é a vontade
do homem que produz as culturas, mas a cultura vive sobre o
homem. Hoje diria: atravessa o homem”.
A oração “a cultura atravessa o homem” demonstra a
relação assimétrica entre a palavra “cultura”, que figura como

7. FROBENIUS, Leo. La cultura como ser viviente. Tradução de Máximo José


Kahn. Madrid: Espasa-Calpe, 1934.
8. SPENGLER, Oswald. La decadencia de occidente: forma y realidad. Vol I.
Tradução de Manuel Garcia Morente. Madrid: Espasa-Calpe, 1947.
9. Ibidem, p. 161.
10. VON WIESE, Leopold. Sociología: historia y principales problemas. Tra-
dução de Rafael Luengo Tapia. Madrid: Labor, 1932, p. 17.
11. FROBENIUS, Leo. La cultura como ser viviente. Tradução de Máximo
José Kahn. Madrid: Espasa-Calpe, 1934, p.15.
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antecessor, e o vocábulo “homem”, que funciona como sucessor.


A personalidade de um homem não é nunca obra exclusivamen-
te sua. Conforme assestou VIERKANDT12, o indivíduo se “apro-
pria dos influxos circundantes” para com eles personifica-se.
Mas, se, por um lado, o agir humano é condicionado pela
cultura, por outro, a cultura é maquinalmente nutrida por esse
agir. Não brota de outro lugar senão do indivíduo. Tem seu
ponto de convergência no sujeito. Essa constante inter-relação
entre pessoa humana e cultura é o que MIGUEL REALE13
denomina “lei primordial da teoria da cultura”.
De acordo com esse ponto de vista, a cultura não é vo-
luntariamente criada. Funciona como repositório das aquisi-
ções humanas dotadas de significações que retroalimentam
o produzir (agir humano). Essa é a premissa da diferença
idealizada por MAX SCHELER14 entre “macrocosmo” e “mi-
crocosmo”, pois

Este processo, mediante o qual o mundo grande, o ‘macro-


cosmo’, se concentra em um foco espiritual de caráter indi-
vidual e pessoal, o ‘microcosmo’; este converter-se em mun-
do uma pessoa humana, pelo amor e pelo conhecimento, não
são senão duas expressões para designar duas direções
distintas na consideração do mesmo profundo processo
conformador, que se chama educação cultural ou cultura.

Daí toda cultura e, por conseguinte, todo objeto cul-


tural perdurar em determinado período de tempo. A cul-
tura não é imanente nem imortal. Passa pelos estágios de
nascimento, de desenvolvimento e de morte. Nasce quando

12. VIERKANDT, Alfred. Filosofía de la sociedad y de la historia. Tradução de


Ricardo Levene. Buenos Aires: Universidad Nacional de La Plata, 1934, p. 80.
13. REALE, Miguel. Paradigmas da cultura contemporânea. São Paulo: Saraiva,
1996, p. 5.
14. SCHELER, Max. El saber y la cultura. Tradução de J. Gomez de la Serna
y Favre. Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1939, p. 22.

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o homem atribui sentido ao mundo circundante; floresce no


momento em que fornece subsídios para a produção de bens;
morre quando esgota suas possibilidades e, segundo SPEN-
GLER15, nesse instante, transforma-se em civilização: a parte
decadente da cultura.
Cumpre observar que em todos estádios da vida de uma
cultura, a linguagem se faz presente, pois talvez seja o mais
forte instrumento de contato entre os homens. Se a cultura
nasce com a atribuição de sentido ao mundo circundante na
interação humana, seu extermínio dá-se pela aniquilação da
linguagem em que ela se manifesta.
A perda da linguagem traz consigo o desaparecimento da
cultura e dos objetos culturais, pois a ausência de sentido de
um dado bem cultural acarreta seu implacável desvalor para
a comunidade. Exsurge, assim, nova linguagem, em substitui-
ção àquela outra. De acordo com PARSONS16, “a quebra do
sistema de comunicação de uma sociedade é, em última ins-
tância, tão perigosa quanto a demolição de seu sistema de or-
dem no sentido de integração motivacional”. Por isso, a desa-
gregação linguística equivale à ruptura social. A morte de uma
cultura traz inexoravelmente o assassínio da linguagem em
que ela se manifesta e vice-versa.

1.2 A linguagem e a realidade

A cultura, ao determinar a visão de mundo do homem, não


é meramente “situacional” em relação à ação; chega a ser dire-
tamente constitutiva das personalidades, como viu PARSONS17.
Cada cultura cria uma realidade social, molda as possibilidades

15. SPENGLER, Oswald. La decadencia de occidente: forma y realidad. Vol I.


Tradução de Manuel Garcia Morente. Madrid: Espasa-Calpe, 1947, p. 169-170.
16. PARSONS, Talcott. El sistema social. Tradução de José Jiménez Blanco
e José Carzola Pérez. 2. ed. Madrid: Revista de Occidente. 1976, p. 41.
17. Ibidem, p. 42. No mesmo sentido, SPENGLER aduz que “Cada cultura
possui sua maneira de ver a natureza, de conhecê-la, ou o que é o mesmo:

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do universo humano, uma vez que, ao nascer em determinado


plexo social, o influxo oriundo de fora para dentro no sujeito
acaba por configurar seu cosmos.
Por meio da linguagem, faz-se presente no indivíduo todo
esse universo cultural em que ele nasce, a ponto de levar VON
HUMBOLDT18 a afirmar que cada língua contém uma “visão
de mundo”.
Interessante exemplo a respeito disso é trazido por GUI-
BOURG, GHIGLIANI e GUARINONI19 no que diz respeito à
palavra arbitrariamente imposta ao objeto utilizado para medir
as horas: em português e em espanhol emprega-se a palavra
relógio e reloj; em inglês há dois nomes distintos, watch e clock;
em francês, três, horloge, pendule e montre. Ocorre que em
português e em espanhol, atribui-se a mesma palavra relógio/
reloj para o objeto utilizado no pulso e para aquele pendurado
na parede, ao passo que, para o inglês, há duas palavras dis-
tintas: clock para relógio de parede e watch para relógio de
pulso.
Imagine um cidadão brasileiro que, ao caminhar pelas
ruas de um país de língua inglesa, pergunta ao autóctone
“que horas são no seu ‘clock’?”. O interlocutor nada enten-
derá, porquanto a cultura em que vive não atribui o nome
“clock” para relógio de pulso.
Isso demonstra o elo umbilical entre cultura, linguagem
e realidade, pois, consoante viu W. M. URBAN20, “‘A linguagem

cada cultura tem sua natureza própria e peculiar, que nenhum outro tipo de
homem pode possuir em igual forma” (SPENGLER, Oswald. La decadencia
de occidente: forma y realidad. Vol I. Tradução de Manuel Garcia Morente.
Madrid: Espasa-Calpe, 1947, p. 201).
18. VON HUMBOLDT, W. Sobre el origen de las formas gramaticales y sobre
su influencia en el desarrollo de las ideas. Barcelona: Anagrama, 1972.
19. GUIBOURG, Ricardo A. et al. Introducción al conocimiento científico.
Buenos Aires: Eudeba, 1993, p. 39.
20. URBAN, Wilbur Marshall. Lenguaje y realidad: la filosofía del lenguaje y
los principios del simbolismo. Tradução de Carlos Villegas e Jorge Portilla.
México D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1952, p. 8.

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– como dizia HEGEL – é a atualidade da cultura’ e investigar


a linguagem é investigar a cultura”.
Por ser o meio pelo qual a cultura se manifesta, a lingua-
gem é responsável por instaurar a realidade no homem. É a
via de acesso do sujeito à realidade mesma. Agora, instaurar
não significa criar.
Linguagem e realidade não são idênticas nem poderiam
sê-lo. Não há ponto de intersecção entre a linguagem e a rea-
lidade física. Se, por um lado, a linguagem “representa meta-
foricamente a realidade”, consolida um “modelo de vida”, no
dizer de HALLIDAY21, por outro, permanece distante das
coisas mesmas.
Ao descrever a árvore verde em sua frente, o sujeito não
“cria” a árvore verde. A água salgada no oceano Atlântico
“existia” antes de alguém identificá-la. Os átomos “se encon-
travam no mundo” antes mesmo de serem observados.
Mas, como bem observa SEARLE22, “obviamente, para
que possamos fazer todas essas identificações, devemos ter
uma linguagem, mas e daí? Os fatos existem totalmente inde-
pendentes da linguagem”.
O autor23 continua, asseverando de maneira concludente:

Trata-se de uma falácia de uso-menção supor que a natu-


reza linguística e conceitual da identificação de um fato

21. HALLIDAY, M. A. K. El lenguaje como semiótica social: la interpretación


social del lenguaje y del significado. 1. ed. 2. reimpr. Tradução de Jorge
Ferreiro Santana. Bogotá: Fondo de Cultura Económica. 1982, p. 18 e 247.
22. SEARLE, John. Mente, linguagem e sociedade: filosofia no mundo real.
Tradução de F. Rangel. Rio de Janeiro: Rocco. 2000, p. 30. Interessante é a
posição de LUDWIG WITTGENSTEIN: “The world is independent of my
will” (Notebooks 1914-1916. Tradução por G. E. M. Anscombe. Chicago: Uni-
versity of Chicago Press. 1979, p. 73)
23. SEARLE, John. Mente, linguagem e sociedade: filosofia no mundo real.
Tradução de F. Rangel. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 30. Deve-se a QUINE
a distinção entre uso e menção (Lógica matemática. Tradução de Jose Hierro
S.-Pescador. Madrid: Revista de Occidente, 1972, p. 39-40). A falácia de uso-

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exige que o próprio fato identificado seja de natureza


linguística. Fatos são condições que tornam afirmações
verdadeiras, mas não são idênticos às suas descrições
linguísticas. Inventamos palavras para afirmar fatos e para
dar nome às coisas, mas isso não significa que inventamos
fatos ou coisas.

Ao descrever eventos ou coisas não se criam fatos ou coisas.


Mas claro está que, para se ter acesso aos fatos ou às coisas, ne-
cessária se faz a aquisição de linguagem a eles referente. E mais,
não se há de confundir as coisas no mundo-das-coisas (coisa na-
tural) com a coisa no mundo-social (coisa no mundo-circundante).
Nesse momento, é bom esclarecer um ponto: há distinção
entre a realidade entendida como mundo natural ou físico e a
realidade compreendida como universo sociocultural, ainda que
se empregue a palavra “realidade” em ambos os casos. A lingua-
gem exerce diferentes papéis em cada uma. O próprio SEARLE24
verificou essa questão ao diferençar os fatos brutos (brute facts ou
non-institucional facts) dos fatos institucionais (institutional facts).
Fatos brutos são aqueles existentes de maneira indepen-
dente da vontade humana. Não são constituídos pela lingua-
gem. A pedra, a água, o fogo e os animais não necessitam de
linguagem para existir.
Os fatos institucionais são, assim, chamados por depen-
derem da convenção humana para existir. Sua existência de-
pende de instituições: dinheiro, teatro, religião, música e direi-
to. Como todo fato cultural, os fatos institucionais são consti-
tuídos pela linguagem.

menção consiste em confundir características de uma palavra quando ela é


mencionada com características da coisa à qual a palavra se refere quando
ela é usada. Quando digo “Vitória é uma cidade bonita” e “‘Vitória’ tem sete
letras”, nesta menciono a palavra “Vitória”, naquela a uso para qualificar. É
uma falácia inferir que tem uma cidade bonita com sete letras ou que por
ter setes letras a cidade é bonita.
24. SEARLE, John. The construction of social reality. London: Penguin, 1995,
p. 2.

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Eis a razão pela qual LOURIVAL VILANOVA25 atesta que


“O sujeito, é-o dentro de uma constelação de sujeitos, na co-
munidade intersubjetiva do discurso, participante de relações
sociais que condicionam o conhecimento dos objetos”. Isso
resulta clara a distinção entre “realidade” entendida como
mundo físico e “realidade” compreendida como mundo social
e cultural.
A importância da linguagem, para o homem, encontra-se
plasmada em sua inevitabilidade. A linguagem é inevitável.
Permeia toda a realidade sociocultural, que, por sua vez, con-
diciona a ação humana.
Agora, parece suficientemente inteligível que o fato bru-
to, para ingressar no universo humano, requer linguagem. Em
si mesmo, o fato bruto independe da linguagem, todavia, para
se instaurar na “comunidade intersubjetiva do discurso”, deve
ser linguisticamente construído. A “construção da realidade
social” é, como bem certificou TALCOTT PARSON26: “Os fatos
não nos contam sua própria estória; eles devem ser questiona-
dos. Eles devem ser cuidadosamente analisados, sistematiza-
dos, comparados e interpretados”.
Para ser elevado ao nível do discurso, todo objeto requer
linguagem, mesmo que sua existência dela independa. Isso não
pode acarretar a confusão entre pensamento, palavras e coisas.
Afigura-se interessante a assertiva de OGDEN &
RICHARDS27 a respeito da diferença entre pensamento,
palavras e coisas, pois relatam que

25. VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo.


2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 41.
26. PARSONS, Talcott. The structure of social action. Vol II. New York: The
Free Press, 1968, p. 698. Para conferir credibilidade, segue texto original:
“The facts do not tell their own story; they must be cross-examined. They
must be carefully analyzed, systematized, compared and interpreted”.
27. OGDEN, K. C.; RICHARDS, I. A. O significado de significado: um estudo da
influência da linguagem sobre o pensamento e sobre a ciência do simbolismo.
Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1972, p. 31.

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... assim como dizemos que o jardineiro apara a grama


quando sabemos ser a máquina cortadora de grama que
realmente a apara, embora saibamos que a relação direta
dos símbolos é com o pensamento, dizemos que os símbolos
registram acontecimentos e comunicam fatos.

Nos fatos brutos, a relação entre linguagem e coisas não


é direta. A linguagem se conecta, prima facie, com o pensa-
mento para, a partir daí, ir à coisa mesma. De maneira diferen-
te, ocorre com os fatos institucionais, nos quais a linguagem é
parte constituinte do objeto. Duas linguagens se manifestam:
uma do próprio objeto (fato institucional) e outra da descrição
do objeto (fato institucional de sobrenível).
A montanha não se confunde com sua descrição, da mes-
ma forma que a obra literária não se mistura com sua crítica.
Muito embora se deva possuir linguagem para descrever as
duas. No primeiro caso, tem-se fato bruto; no segundo, fato
institucional. Mas não se deve criar mistifório: as descrições
em si mesmas são fatos institucionais – de sobrenível em re-
lação ao fato institucional objeto.
Fatos institucionais podem apoiar-se em outros fatos ins-
titucionais para se constituírem. Casamento, propriedade, di-
nheiro, Estado são fatos institucionais pressupostos para a
criação de formas institucionais como poderes, direitos, obri-
gações, deveres etc. Fatos institucionais que operam sobre
outros fatos institucionais tornam-se metafatos institucionais.
Eis a linguagem a tecer o social, a estabelecer a interação
entre os sujeitos sociais, a preencher a lacuna existente entre
os actantes do discurso (falante e ouvinte), como mencionou
ÉMILE BENVENISTE28: “A língua constitui o que mantém os

28. BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral. Vol. II. São Paulo:
Cortez, 1989, p. 63. Aliás, o próprio LEONARD BLOOMFIELD já afirmava, em
seu célebre livro Language, que “The gap between the bodies of the speaker
and the hearer – the discontinuity of the two nervous system – is bridged by
the sound-waves” (New York: Henry Holt and Company, 1938, p. 26).
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homens juntos, o fundamento de todas as relações que por seu


turno fundamentam a sociedade. Poder-se-á dizer, nesse caso,
que é a língua que contém a sociedade”.

1.3 Como fazer coisas com palavras – palavras e ação

Observe este exemplo dado por BLOOMFIELD. Supo-


nha que José e Maria estejam andando pela rua. Maria está
faminta. Ela olha uma maçã numa árvore. Emite alguns sons
com sua laringe, sua língua e seus lábios. José pula a cerca,
sobe na árvore, pega a maçã, trá-la e entrega-a à Maria. Maria
come a maçã.
Na sucessão de eventos acima descritos, distinguem-se,
na esteira de BLOOMFIELD29, os atos de fala dos eventos prá-
ticos. Há uma série de acontecimentos antes e depois da emis-
são de alguns sons por Maria denominados eventos práticos,
que não se confundem com a oração expedida por Maria (“Pe-
gue a maçã”, por exemplo) com vistas à realização de uma ação
por parte de João. O enunciado expedido por Maria é chama-
do ato de fala. Abram-se parênteses para observar que, ao dizer
a palavra “maçã”, Maria não cria a maçã.
A conclusão de BLOOMFIELD é interessante, uma vez
que “A linguagem habilita uma pessoa a reagir quando outra
a estimula”. No ser cultural, a linguagem substitui o instinto,
supre a reação prática (practical stimulus).
A filosofia da linguagem tardou para vislumbrar que a
linguagem não teria apenas a função de descrever os fatos
brutos ou institucionais (sentenças declarativas) com o escopo
de afirmar ou registrar um acontecimento qualquer. Talvez a
demora se deva ao exagero científico outorgado à função des-
critiva da linguagem pelo Círculo de Viena, conforme bem

29. Ibidem, p. 22-23. Para dar veracidade, segue original – “Language enables
one person to make a reaction (R) when another person has the stimulus (S)”
(p. 24).
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lembra MANFREDO ARAÚJO DE OLIVEIRA30, visto que “por


meio do ‘princípio de verificação do neopositivismo’, uma fra-
se não-verificável era considerada um disparate linguístico”.
A linguagem não possui apenas função descritiva. É usa-
da para realizar ações, ou como deseja J. L. AUSTIN31, “fazer
coisas”. A distinção proposta pelo filósofo de Oxford resulta na
seguinte classificação: enunciados constativos descrevem fatos;
enunciados performativos realizam ações.
Ao dizer “aceito esta mulher como minha legítima esposa”
no casamento diante do juiz (jurídico) ou padre (religioso) o
noivo não descreve situação alguma. Realiza um ato: casa-se.
O enunciado “Aposto cem reais que amanhã choverá” também
nada descreve, simplesmente efetua o ato de apostar.
Em alguns casos como os acima transcritos, não há como
praticar o ato sem expedir algumas palavras. Há situações em
que realizar uma ação é proferir algumas palavras. Para casar,
apostar, batizar, prometer, desculpar-se, ofender, legislar, or-
denar, basta emitir palavras.
Por consequência, surgem duas espécies de enunciados:
aqueles empregados para realizar ações, conhecidos como
performativos (sentença performativa ou proferimento perfor-
mativo); e aqueloutros denominados declarativos, utilizados
para descrever determinadas situações-de-fato.
Os enunciados declarativos, por possuírem função des-
critiva, submetem-se ao código verdadeiro/falso, de acordo com
os critérios de verdade/falsidade adotados (correspondência,
autoridade, consenso etc.). Ao afirmar “Hoje faz frio”, o actante

30. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na


filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola. 1996, 151.
31. AUSTIN, J. L. Performative-constative. In: SEARLE, John. The philosophy
of language. 5. reimpr. London: Oxford University Press, 1979, p.13-14.
Apresenta a mesma ideia com algumas variações em Quando dizer é fazer:
palavras e ação. Tradução de Danilo Marcondes de Souza. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1992, p. 22-23.
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diz uma verdade ou uma falsidade, para permanecer apenas


com os valores aléticos bivalentes não-modais.
Interessante consideração faz JOHN SEARLE32 ao rela-
cionar os conceitos de “verdade” e “falsidade” às noções de
“objetividade” e “subjetividade”. SEARLE a realiza sob dois
aspectos: o epistemológico e o ontológico. Epistemologicamen-
te falando, “objetividade” e “subjetividade” são predicados de
julgamentos. Frequentemente, falamos que um enunciado é
subjetivo quando não conseguimos prová-lo objetivamente,
porque a falsidade ou a verdade não é simplesmente uma
questão de fatos, mas depende de fatores emocionais, senti-
mentais. Como exemplo, temos “Rembrandt é melhor artista
que Rubens”: é um enunciado epistemologicamente subjetivo.
Já a frase “Rembrandt viveu em Amsterdã durante o ano de
1632” é epistemologicamente objetiva, pois sua verdade/falsi-
dade independe de atitudes ou sentimentos das pessoas. Por
outro lado, as palavras “objetividade” e “subjetividade” podem
ser analisadas sob o prisma ontológico. Por esse espectro, “ob-
jetivo” e “subjetivo” são predicados de entidades e descrevem
modos de existência. Em sentido ontológico, dor é uma enti-
dade subjetiva, ao passo que montanha é entidade objetiva.
Com base nessa distinção, afirma o autor que podemos emitir
enunciados epistemologicamente subjetivos sobre entidades
que são ontologicamente objetivas, e igualmente enunciados
epistemologicamente objetivos de entidades que são ontologi-
camente subjetivas. Por exemplo, a afirmação “Maria é mais
bonita que Carla” é ontologicamente objetiva, mas epistemo-
logicamente subjetiva. De outra forma, “Agora estou sentindo
dor nas costas” é ontologicamente subjetiva, mas epistemolo-
gicamente objetiva.
Os performativos, pelo contrário, não se subjugam ao
critério verdadeiro/falso. Por serem enunciados empregados

32. SEARLE, John. Mente, linguagem e sociedade: filosofia no mundo real.


Tradução de F. Rangel. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 48; ver também o livro
The construction of social reality. London: Penguin, 1995, p. 8-9.

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TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

para realizar ações, podem ser qualificados, de acordo com


JOHN AUSTIN33, em felizes (happy) e infelizes (unhappy), le-
vando-se em conta o fato de o falante preencher (ou não) cer-
tas condições requeridas para a emissão do ato de fala.
Essas condições para a felicidade (ou condições de su-
cesso) do ato de fala são “normas convencionais” de caráter
intersubjetivo, que, segundo AUSTIN34, podem ser resumidas
em seis:
(A.1) deve existir um procedimento convencionalmente
aceito, que apresente determinado efeito convencional e que
inclua o proferimento de certas palavras, por certas pessoas e
em certas circunstâncias;
(A.2) as pessoas e as circunstâncias particulares, em cada
caso, devem ser adequadas ao procedimento específico invocado;
(B.1) o procedimento tem de ser executado por todos os
participantes de modo correto;
(B.2) o procedimento tem de ser executado por todos os
participantes de modo completo;
(G.1) nos casos em que, como ocorre com frequência, o
procedimento visa às pessoas com seus pensamentos e senti-
mentos, ou visa à instauração de uma conduta corresponden-
te por parte de alguns dos participantes, então aquele que faz
parte do procedimento e o invoca deve, de fato, ter tais pensa-
mentos ou sentimentos, e os demais actantes devem ter a in-
tenção de se conduzir de maneira adequada. Além disso,
(G.2) devem realmente conduzir-se dessa maneira sub-
sequente.
A utilização de letras latinas e gregas exprime diferenças
básicas entre as condições para o proferimento do ato de fala.

33. AUSTIN, J. L. Performative-constative. In: SEARLE, John. The philosophy


of language. 5. reimpr. Londres: Oxford University Press, 1979, p. 14.
34. AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Tradução de Danilo
Marcondes de Souza. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992, p. 31.
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REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

Todavia, essas diferenças nem sempre são discerníveis diante


do caso concreto. Há possibilidade de um revés figurar como
desrespeito a mais de uma condição.
MANFREDO ARAÚJO DE OLIVEIRA35 expõe em um
breve trecho tal distinção ao afirmar que “no caso das quatro
primeiras, há uma falha que impede a própria realização do
ato [desacerto], enquanto nas outras duas o ato chega a realizar-
-se, porém, de modo abusivo [abuso]”. O autor cearense con-
tinua certificando que “entre A e B existe a seguinte diferença:
no caso de A, trata-se da não-existência de tal procedimento;
no caso de B, de sua falsa aplicação”.
Alguns exemplos parecem ser didaticamente interessan-
tes para esclarecer os denominados “reveses” dos atos de fala,
uma vez que, como o próprio AUSTIN chama a atenção, há
diferenças consideráveis entre as diversas “maneiras” de o ato
ser malogrado.
Falha em (A.1) – Apontar a arma para a cabeça do noivo
e obrigá-lo a dizer “Eu te aceito como minha mulher” não é o
procedimento convencionalmente estipulado para o casamen-
to. Ou, ainda, o ato de dizer “eu te cumprimento”, mas não
realizar o ato de cumprimentar alguém, porque não é o proce-
dimento convencionalmente adotado para tal. Mais um: uma
pessoa desafiar a outra para um duelo em um país onde a
prática de duelos é completamente desconhecida.
Falha em (A.2) – Em uma sala de aula, os alunos se reú-
nem e declaram iniciados os trabalhos do Poder Constituinte
do Estado brasileiro.
Falha em (B.1) – Alguém, em seu testamento, dizer:
“Lego minha casa a José”, mas, na verdade, não esclarece
qual casa, pois o testador tem oito casas e não indica a que
casa está-se referindo.

35. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na


filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p.155.

15
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

Falha em (B2) – Dizer “Aposto cem reais que amanhã


choverá”, sem estender a mão ou sem que o ouvinte diga
“Está apostado”. Com tal indefinição, o procedimento é in-
completo e não se realiza.
Falha em (G.1) – Falar “Prometo ir ao baile” sem a inten-
ção de cumprir com a promessa. As crianças brincam muito
com esse revés ao “cruzarem os dedos”, quando fazem uma
promessa sem o intuito de cumpri-la.
Falha em (G.2) – Realizar um contrato com a intenção de
observá-lo, mas não o cumprir.
A diferença entre (G.1) e (G.2) é sutil e, por serem ontolo-
gicamente subjetivas, devem ser linguisticamente exterioriza-
das para que possam tornar-se objeto de conhecimento (epis-
temologicamente objetiva). Trata-se dos vetustos problemas
da “intenção”, da “boa-fé”, ou seja, do querer-fazer.

1.4 Ainda sobre o ato de fala

A fala é o modo de atualizar a língua ao imprimir novos


usos às palavras. Alguns estudiosos da linguagem, como KARL
VOSSLER36, radicalizavam a importância do ato de fala em
determinada cultura ao proferir as seguintes palavras: “O que
em primeiro lugar existe não é a linguagem, mas o falar: meu
falar, seu falar, nosso falar, o do aqui e agora, o de ontem e de
anteontem”.
Daí a razão pela qual o sentido de uma palavra remonta
às suas realizações manifestas. Os performativos (ato de fala),
ao selecionarem palavras no esquema abstrato da língua, são
responsáveis pela efetivação de uma ação. No caso dos perfor-
mativos, o falante, ao emitir um enunciado, realiza um ato.
Há proferimentos que, muito embora não sejam emitidos
na primeira pessoa, figuram como performativos. Assim, por

36. VOSSLER, Karl. Espiritu y cultura en el lenguaje. Tradução de Aurélio


Fuentes Rojo. Madrid: Cultura Hispânica, 1959, p. 41.

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REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

exemplo: “Saia” é um performativo explícito, ao passo que


“Proibido fumar” pode ser transformado em “Eu proíbo fumar”
sendo, portanto, um performativo implícito.
JOSÉ LUIZ FIORIN37 toma o pressuposto acima para
distinguir os performativos explícitos dos performativos implí-
citos, ao dizer que

um enunciado será performativo quando puder transfor-


mar-se em outro enunciado que tenha um verbo performa-
tivo na primeira pessoa do singular do presente do indica-
tivo na voz ativa. Os enunciados que não contêm um verbo
performativo na pessoa, no tempo, no modo e na voz indi-
cados serão chamados performativos implícitos; os que têm
o verbo na forma mencionada serão denominados perfor-
mativos explícitos.

O próprio enunciado “O mar é salgado” que, a primeira


vista, parece ser meramente assertivo, transforma-se em per-
formativo se for tomado como realização da ação de afirmar:
“Eu afirmo que ‘O mar é salgado’”. O “afirmar” em si mesmo
é um ato de fala.
A busca pela distinção entre constativos e performativos
levou AUSTIN a formular a teoria dos atos locucionários (lo-
cucionais ou locutórios), ilocucionários (ilocucionais ou ilocu-
tórios) e perlocucionários (perlocucionais ou perlocutórios).
O ato locucionário consiste no próprio dizer. O ato ilocu-
cionário consiste naquilo que se faz ao falar alguma coisa, ou,
de acordo com AUSTIN38, é “a realização de um ato ao dizer

37. FIORIN, Jose Luiz. A linguagem em uso. In: ______. (Org.). Introdução à
linguística: objetos teóricos. Vol. I. Contexto: São Paulo, 2003. p. 172.
38. AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Tradução de Danilo
Marcondes de Souza. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992, p. 89. CATHERINE
KERBRAT-ORCCHIONI, em poucas palavras, resume “l’acte locutoire, ou
acte de dire quelque chose; l’acte ilocutoire, ou l’acte effectué en disant quelque
chose; l’acte perlocutoire, ou l’acte effectué par le fait de dire quelque chose”
(Les actes de langage dans le discours. Paris: Nathan. 2001, p. 22).

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TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

algo, em oposição à realização de um ato de dizer algo”. E, por


fim, o ato perlocucionário, que é o efeito provocado no destina-
tário pelo fato de dizer alguma coisa, é o resultado produzido
pela ação de dizer algo.
Alguns exemplos ajudam na compreensão do acima
esposado.
Ato locucionário – Ele me disse: “Atire nele!”. Ato ilocu-
cionário – Ele me instigou, ordenou ou aconselhou a atirar
noutrem. Ato perlocucionário – Ele me persuadiu a atirar, ou
obrigou-me a atirar.
A autoridade S’ diz a S”: “Pare o automóvel quando esti-
ver diante de sinal vermelho” – ato locucionário; ao proferir
certas palavras a autoridade S’ ordena a S” parar o automóvel
quando o sinal estiver vermelho – ato ilocucionário; quando
S”, que se encontra dirigindo diante de um sinal vermelho,
efetivamente para o automóvel em virtude da ordem de S’– ato
perlocucionário.
Procede a observação realizada por MANFREDO ARAÚJO
DE OLIVEIRA39, quando aduz “não se tratar de três atos dis-
tintos, mas de três dimensões do mesmo ato de fala. Não se
trata, pois, de três atos diversos, mas de ‘três aspectos, dimen-
sões, momentos do único ato de fala’”.
Em verdade, a separação locucionário/ilocucionário/per-
locucionário torna-se relevante apenas para fins de estudo,
porquanto, no uso diário da linguagem, afigura-se impossível a
tricotomia.
A força ilocucionária (illocutionary force) do ato, como
bem observa JOSÉ HIERRO S. PESCADOR40, é dada pelas
circunstâncias em que o ato é proferido. A oração “Há um

39. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na


filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 160.
40. PESCADOR, José Hierro S. Principios de filosofía del lenguaje. Madrid:
Alianza, 1997, p. 318-319.

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REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

touro no campo”, diante das circunstâncias em que for profe-


rida pode indicar: (i) apenas uma asserção; (ii) uma informação;
(iii) uma suspeição (conjectura); (iv) uma advertência.
Tomando por fundamento da divisão a força ilocucionária,
AUSTIN41 classificou os atos de fala da seguinte maneira: (a)
veredictivos (veredictives) – consistem na emissão de um vere-
dicto, não só como sentença, mas também como estimação ou
valoração, por exemplo, os verbos absolver, condenar, valorar,
descrever etc.; (b) exercitivos (exercitives) – consistem no exer-
cício do poder, do direito ou da influência, expressando uma
decisão em favor ou contra uma maneira de atuar, por exemplo,
nomear (para um cargo), destituir, mandar, ordenar, vetar,
promulgar etc.; (c) comissivos (commisives) – consistem em
comprometer-se com uma forma de ação, por exemplo, pro-
meter, propor, fazer voto de, jurar, declarar a intenção etc.; (d)
comportamentais (behabitives) – têm relação com o comporta-
mento social e estão ligados à expressão dos sentimentos, por
exemplo, desculpar-se, agradecer, dar pêsames, felicitar, dar
boas-vindas etc.; e (e) expositivos (expositives) – expressam de
que modo se enquadram nossas expressões em uma conversa-
ção ou uma discussão, por exemplo, afirmar, negar, concordar,
corrigir, perguntar etc.
Aqui chegados, surge uma pergunta: se o ato de fala é a
realização de uma ação mediante o proferimento de algumas
palavras, como se distingue a função de uma ação da própria
ação?
Em outras palavras, ao dizer “Bom dia”, a ação é cumpri-
mentar e sua função é, dependendo da força ilocucionária,
saudar outrem (ou dar uma “cantada” em uma mulher). O
mesmo ocorre com as frases: “Pegue um copo d’água!” e “Você
poderia me fazer o favor de pegar água?”. A ação, na primeira,
é ordenar; já, na segunda, é fazer um pedido de forma polida,

41. AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Tradução de Danilo


Marcondes de Souza. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992, p. 123.

19
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

muito embora a função nas duas seja pegar água. Muitas vezes,
a ação e sua função são chamadas pelo mesmo nome. Basta
cuidado para não incorrer em ambiguidade performativa.
Por isso, FRANZ VON KUTSCHERA42 diz que “à ação
pertencem muitos detalhes concretos que são irrelevantes para
sua função. [...] Portanto, ações linguísticas distintas podem ter
o mesmo significado”.
Completa, ainda, o autor, “«Significado», em nosso senti-
do, é somente a função que em realidade tem uma ação inde-
pendentemente de como se interprete”.
A distinção entre ação e função da ação é fundamental,
porque envolve a diferença entre o ato ilocucionário e o ato
proposicional. O ato ilocucionário não se confunde com o sen-
tido da ação (proposição) construído a partir do proferimento.
A ação está ligada ao ato ilocucionário e sua função conectada
ao ato proposicional.
MANUEL MARIA CARRILHO43, com lastro nas ideias de
SEARLE, lembra que

O acto ilocutório não pode, por isso, confundir-se com o acto


proposicional, pois o mesmo acto proposicional (por exemplo
«feche a porta») comporta a possibilidade de aparecer em
actos ilocutórios muito diferentes, como a ordem («Vá fechar
a porta») ou o pedido («Por favor, feche a porta.»).

A distinção entre o ato proposicional e o ato ilocucionário


permite diferençar a negação do ato proposicional da negação
do ato ilocucionário, bem como fornece critérios para se detec-
tar igualdade entre as proposições expressas por atos ilocucio-
nários diversos.

42. KUTSCHERA, Franz Von. Filosofía del lenguaje. Tradução de Adelino


Alvarez. Madrid: Gredos, 1979, p. 175.
43. CARRILHO, Manuel Maria. Filosofia das ciências. Lisboa: Presença, 1994,
p. 67.
20
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

A igualdade entre as proposições expressas por atos ilo-


cucionários dessemelhantes torna-se clara no seguinte exem-
plo fornecido por JOSÉ LUIZ FIORIN44:

(a) João estuda bastante.


(b) João estuda bastante?
(c) Estude bastante, João.
(d) Ordeno que você estude bastante, João.

Nas quatro orações, os atos ilocucionários são, respecti-


vamente, afirmar, perguntar, aconselhar e ordenar. No entanto,
como complementa JOSÉ LUIZ FIORIN, “o conteúdo propo-
sicional é sempre o mesmo, João estudar bastante”.
A linguagem simbolizada auxilia a compreensão do assun-
to. Tomando por “p” a proposição “João estudar bastante”, por
“A” a afirmação, por “P” a pergunta, por “C” o conselho, e por
“O” a ordem, têm-se as seguintes fórmulas: “A(p)”, “P(p)”, “C(p)”
e “O(p)”.
Cai como uma luva a afirmação de SEARLE45: “Cada vez
que dois actos ilocucionais contêm a mesma referência e a
mesma predicação, e, se a significação da expressão referencial
é a mesma nos dois casos, diremos que é a mesma proposição
que é expressa”.
Igualmente ocorre com a negação. Negar a proposição é
algo bem diferente de negar o ato ilocutório. Em linguagem
simbolizada, transparece clara a dessemelhança entre ambas.
Tomando o exemplo supramencionado na letra (d), “Ordeno
que você estude bastante, João”, em linguagem simbólica, ficaria

44. FIORIN, Jose Luiz. A linguagem em uso. In: ______. (Org.). Introdução à
linguística: objetos teóricos. Vol. I. Contexto: São Paulo, 2003. p. 174.
45. SEARLE, John. Os actos de fala. Tradução de Carlos Vogt, Ana Cecília
Maleronka, Balthazar Barbosa Filho, Maria Stela Gonçalves e Adail Ubirajara
Sobral. Coimbra: Almedina, 1984, p. 42.

21
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

“Or(p)”46, onde “Or” seria o sincategorema ilocucionário “ordeno”


e “p” o categorema proposicional “estudar bastante João”.
Duas possibilidades de negação exsurgem: “-Or(p)” e “Or-
-(p)”. Enquanto, no primeiro caso, nega-se o ato ilocucionário e
se lê “Eu não ordeno que João estude bastante”; no segundo,
nega-se o ato proposicional e se decifra “Eu ordeno que João
não estude bastante”. A distância entre os enunciados é abissal.
A conclusão inevitável é: não há como confundir a negação do
ato ilocucionário com a negação do ato proposicional.
A exposição não estaria completa sem a seguinte obser-
vação: um ato de fala “x” somente será eliminado (assim como
seus efeitos) mediante a expedição de outro ato de fala “y”,
apto para a consecução de tais fins.
O insulto só é perdoável pelo ato de pedir desculpas. O
casar apenas é invalidado pelo ato de divórcio.
Assim, o ato de fala (1):

“x” diz a “y”: “você é um z” – ato locucionário.


“x” insulta “y” de “z” – ato ilocucionário (o ato proposicio-
nal é “ser z”, por exemplo, “ser corrupto”).
“x” ofende “y” – ato perlocucionário (somente será desfeito
pelo ato de fala (2)).
“x” diz a “y”: “Peço-lhe desculpas” ou “você é um não-z”
– ato locucionário.
“x” pede desculpas a “y” – ato ilocucionário (o ato proposi-
cional aqui é a negação da proposição “ser corrupto”, ou
seja, “ser não-corrupto”).
“x” retrata-se perante “y” – ato perlocucionário.

As questões do casamento e do divórcio, por se tratar de atos


de fala deônticos, serão analisadas mais adiante. O importante é

46. Empregou-se a notação «Or» para designar o ato ilocucionário de


«ordenar» e reservou-se o notação «O» para indicar o modal deôntico
«obrigatório». Assim, pode-se ordenar uma obrigação, uma proibição ou
uma permissão.

22
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

reter: ato de fala desfaz ato de fala. Se mediante o ato de fala uma
ação foi realizada, somente por outro ato de fala será desfeita.

1.5 A análise do discurso – precisando os conceitos

A relação entre os atos de fala e a teoria do discurso é


umbilical. Não há ato de fala que não advenha de ato de enun-
ciação. Por isso, as evoluções obtidas na Semiótica com a aná-
lise do discurso serão de grande valia para o desenvolvimento
do estudo dos atos de fala.
Antes de ingressar no campo conceptual, a figura didáti-
ca do exemplo torna-se imperiosa. Suponha-se que os alunos
de uma escola, ao ingressarem na sala de aula, deparem-se
com o seguinte recado colocado no quadro-negro:

AVISO
Amanhã não haverá aula de História
devido à grave doença a que está
acometido o professor da cadeira.
Vitória, 19 de maio de 2004.
A Coordenação

Nenhum dos alunos presenciou o ato da escrita do aviso.


Deparam-se com o “aviso”, mas não com o ato de sua produção.
Em termos mais rigorosos, defrontam-se com o enunciado, não
com a enunciação.
Mas, afinal, que é um enunciado? Que é enunciação? Qual
a diferença entre eles?
Vários são os sentidos atribuídos a palavra “enunciado”. Na
linha de pensamento de GREIMAS & COURTÉS47, “entende-se

47. COURTÉS, J; GREIMAS, A. J. Semiótica: diccionário razonado de la teoría


del lenguaje. Tradução de Enrique Ballón Aguirre e Hermis Campodónico
Carrión. Madrid: Gredos, 1982, p. 146.

23
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

por enunciado toda magnitude provida de sentido da cadeia


falada ou do texto escrito, prévia a qualquer análise linguística
ou lógica”.
Por isso, o enunciado deve ser construído de acordo com as
regras lógicas e empíricas do sistema linguístico a que pertence,
para que, se possa, a partir dele, construir a “proposição”. Então,
o enunciado seria o suporte físico (marcas de tinta no papel),
uma oração bem-construída dotada de sentido (well-formed
formula). Ao sentido composto, denomina-se proposição.48
A existência do enunciado pressupõe a execução de um
ato que coloca a língua em funcionamento. Ao ato mesmo de
produção de enunciados chama-se “enunciação”. Assim é que
ÉMILE BENVENISTE49 define o conceito de enunciação como
um processo de apropriação da língua. Essa situação de “apro-
priação da língua” manifesta-se por “um jogo de formas espe-
cíficas cuja função é de colocar o locutor em relação constante
e necessária com sua enunciação”.
A enunciação instaurará elementos fundacionais de pes-
soa, de tempo e de espaço do discurso, uma vez que ela é o
marco fundamental da produção do enunciado. Todas as cate-
gorias de pessoa, de espaço e de tempo presentes no discurso
tomam como referência o ato de enunciação. O “eu”, “tu”, “ele”

48. Assim é que vários enunciados distintos como “José tem um carro verde” e
“O carro verde pertence a José” permitem a composição da mesma proposição
(relação pluriunívoca). Da mesma forma, de um mesmo enunciado pode-se
construir várias proposições, como é o caso deste “A manga é verde” (relação
uniplurívoca). O discernimento entre enunciado e proposição remonta àquele
retroefetuado entre ato ilocucionário e ato proposicional. Veja-se que, em
ambos os casos, a existência do enunciado tem como pressuposto o sentido-
sintático a que se refere LOURIVAL VILANOVA, em seu célebre artigo
Teoria das formas sintáticas: anotações à margem de Husserl, inserido na
coletânea Escritos jurídicos e filosóficos. Não se pode denominar enunciado a
estes: “tem verde um João carro” ou “Imperador se quando então amanhã”.
Constituem um sem-sentido sintático.
49. BENVENISTE, Émile. O aparelho formal da enunciação. Tradução de
Marco Antonio Escobar. In: ______. Problemas de linguística geral. Vol. II. São
Paulo: Cortez, 1989, p. 84.

24
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

– pessoas –, o “aqui”, “lá” – espaço – e o “presente”, “passado”


e “futuro” – tempo – guiam-se pelo ato produtor de enunciados.
Ao conjunto de referências articuladas pelo eixo «eu↔tu – aqui
– agora» que define as coordenadas espaço-temporais impli-
cadas num ato de enunciação DOMINIQUE MAINGUENEAU50
denomina “deixis”.
Em interessante exemplo, JOSÉ LUIZ FIORIN51 demonstra
a importância dos dêiticos dentro de uma situação de comunica-
ção: “Havia, numa lousa da Faculdade de Filosofia da USP, em
que os alunos deixam recados uns para os outros, a seguinte
mensagem: Estive aqui hoje e não consegui encontrá-la”. A partir
dessa pitoresca situação, conclui o nobre professor da USP:

Esse aviso é totalmente incompreensível, porque não se


sabe quem esteve lá, para quem ele escreveu a mensagem
e quando ele esteve a procura de uma determinada pessoa.
Em síntese, não se pode saber o que significam o eu, o você
e o hoje da mensagem, pois falta o conhecimento da situação
de comunicação, certamente, porque alguém passou lá e
apagou o nome da pessoa a quem a mensagem era dirigida,
o nome da pessoa que havia escrito e a data em que fora
escrita. No caso dos dêiticos, de nada adianta o conheci-
mento do sistema linguístico, o que é preciso, para entendê-
-los, é conhecer a situação de uso.

Os dêiticos são, portanto, os elementos de linguagem que


permitem ao intérprete a reconstrução da enunciação.
Assim, a enunciação se opõe ao enunciado como um pro-
cesso a seu produto, algo dinâmico em contraposição ao está-
tico. Todo enunciado pressupõe enunciação.

50. MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso.


Tradução de Freda Indursky. 2. ed. São Paulo: Pontes, 1993, p. 41. No mesmo
sentido CATHERINE KERBRAT-ORECCHIONI prefere chamar “dêiticos”
(La enunciación: de la subjetividad en el lenguaje. 3.ed. Versión castellana
de Gladys Anfora y Emma Gregores. Buenos Aires: Edicial, 1997, p. 45).
51. FIORIN, Jose Luiz. A linguagem em uso. In: ______. (Org.). Introdução à
linguística: objetos teóricos. Vol. I. São Paulo: Contexto, 2003, p. 167.

25
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

Na leitura do tipo exemplar visto, ocorrido ficticiamente em


Vitória, a enunciação é o ato de produção do “aviso”, ou seja, o
evento de o produtor do texto ter tomado o giz ou o pincel e ter
colocado o aviso no quadro-negro. Esse ato de enunciação esvaiu-
-se no tempo e no espaço com todas as circunstâncias daquele
momento (poderia estar chovendo ou não, estar nervoso ou não,
com camisa ou sem camisa), que se deu em 19 de maio de 2004
na cidade de Vitória/ES.
Ainda, no exemplo antes citado, o enunciado, ou melhor,
os enunciados são as próprias orações bem-construídas de
acordo com as regras da língua portuguesa, que vão desde a
palavra “Aviso” até a palavra “Coordenação”.
A partir desse pressuposto, dois conjuntos de enunciados
distintos saltam aos olhos: um que se volta à pessoa, ao espaço
e ao tempo da produção do texto e outro que nada tem de ver
com a produção dele.
Ao primeiro, a Semiótica denomina “enunciação-enun-
ciada” e ao segundo “enunciado-enunciado”.
A enunciação-enunciada são as marcas de pessoa, de
espaço e de tempo da enunciação projetadas no enunciado.
Neste tipo – enunciação-enunciada – estão contidos aquilo
que KERBART-ORECCHIONI52 denomina “fatos enunciati-
vos”, isto é, as unidades linguísticas, qualquer que seja sua
natureza, funcionam como índices da inscrição no seio do
enunciado dos protagonistas do discurso e da situação de co-
municação, inseridas as coordenadas espaço-temporais.
No exemplo fornecido, pertencem à enunciação-enun-
ciada a pessoa que produziu o enunciado (a Coordenação),
o tempo (19 de maio de 2004), o espaço (Vitória), bem como
outras circunstâncias que se remetem à enunciação como a
sala de aula ser do Colégio Sagrado Coração de Maria ou da

52. KERBRAT-ORECHIONI, Catherine. La enunciación: de la subjetividad


en el lenguaje. 3. ed. Versión castellana de Gladys Anfora y Emma Gregores.
Buenos Aires: Edicial, 1997, p. 41.

26
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

Universidade Federal do Espírito Santo, além do próprio


fato da doença do professor.
Já o enunciado-enunciado é a parte do texto desprovida
das marcas da enunciação. É o enunciado veiculado pela
enunciação-enunciada. No exemplo dado, o enunciado-enun-
ciado é composto pela oração “Amanhã não haverá aula de
História”. O enunciado-enunciado é o próprio ato locutório: “A
Coordenação disse: Amanhã não haverá aula de História”.
Todo o exposto poderia ser representado no seguinte
esquema:

enunciação-enunciada

ENUNCIADO
 enunciado-enunciado

AVISO

Amanhã não haverá aula de História


devido à grave doença a que está aco-
metido o professor da cadeira.
Vitória, 19 de maio de 2004.

A Coordenação

A enunciação é um ato fugaz ao qual, na maioria das vezes,


o interlocutor não tem acesso. É pressuposta pelo enunciado,
no qual deixa marcas ou pistas que permitem recuperá-la.
DIANA LUZ PESSOA DE BARROS53 é concludente ao
dizer: “reconstrói-se a enunciação de duas perspectivas distintas

53. BARROS, Diana Luz de. Teoria semiótica do texto. 3. ed. São Paulo: Ática,
1997, p. 83.

27
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

e complementares: de dentro para fora, a partir da análise


interna das muitas pistas espalhadas pelo texto; de fora para
dentro, por meio das relações contextuais – intertextuais do
texto em exame”.
Interessa, ao presente trabalho, a reconstrução de dentro
para fora. Por meio da análise interna do texto, recompõe-se
o efêmero ato de enunciação. A parte do texto que fornece os
fatos enunciativos pelo quais se reconstitui a enunciação
chama-se enunciação-enunciada.
Por isso, a enunciação-enunciada acaba por constituir o
sujeito, o espaço e o tempo da enunciação.
No esquema acima exemplificado, é a partir da enuncia-
ção-enunciada que se saberá quem, quando e onde se escreveu
o enunciado-enunciado.
A alteração, em qualquer desses dados, transforma comple-
tamente o sentido da mensagem. Basta pensar em apagar, por
exemplo, a data estampada na enunciação-enunciada para deixar
perplexo o enunciatário. Todos percebem a importância e o pe-
rigo da substituição da pessoa estampada na enunciação-enun-
ciada por outra sem aptidão para emitir o enunciado. Imagine-se
um aluno brincalhão alterando o nome do emissor da mensagem.
Aqui está a linguagem, sem intermitência, a instaurar
simulacros da realidade na consciência humana.
Isso não afasta o alerta de EDMUND HUSSERL54, antes
o corrobora:

54. HUSSERL, Edmund. Logique formelle et logique transcendentale. 2. ed.


Tradução de Suzanne Bachelard. Paris: PUF, 1965, p. 39. Para conferir
credibilidade, segue o original: “Ce qui aparraît certes em premier lieu dans
le champ de la conscience (dans ce qu’on appelle le champ du regard de
l’attention) et dans ce qu se détache de ce champ, ce sont les formations en
tant qu’énonc’s, mais le regard thématique est toujours dirigé non pas vers
les expressions en tan que phénomènes sensibles, mais «à travers elles» vers
ce qui est pensé. Les expressions ne sont pas des fins thématiques, mais des
index thématiques, renvoyant par-delà elles-mêmes aux thèmes logiques
proprement dits”.
28
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

Aquilo que certamente aparece em primeiro lugar no cam-


po da consciência (aquilo que se chama o campo do prestar
atenção) e aquilo que se destaca desse campo são as forma-
ções enquanto enunciadas, porém a atenção temática é
sempre dirigida não para as expressões enquanto fenômenos
sensíveis, mas, «por meio delas», em direção aquilo que é
pensado. As expressões não são os fins temáticos, são tão-só
os índices temáticos, convertidas elas mesmas (as proposi-
ções), noutro instante, em temas lógicos propriamente ditos.

1.6 O problema do tempo

Poucos vocábulos na língua portuguesa possuem tantos


significados quanto a palavra “tempo”55. Muito embora todos
o significados partam, de uma forma ou de outra, do problema
da medição ou da sucessão de momentos.
Dentre os maiores pensadores entretidos com o “proble-
ma do tempo”, SANTO AGOSTINHO56 merece lugar de des-
taque. EDMUND HUSSERL57, autor de uma das mais pode-
rosas obras sobre o tema, adverte, em suas Lições para uma
fenomenologia da consciência interna do tempo, que “Os capí-
tulos 14-28 do Livro XI das Confissões devem ainda hoje ser
profundamente estudados por quem se ocupe com o problema
do tempo”.

55. Ligeira vista d’olhos no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea


confeccionado pela Academia de Ciêncas de Lisboa é suficiente para verificar
vinte e cinco acepções para a palavra, sem levar em conta suas subacepções.
56. AGOSTINHO, Santo. Confissões. 7. ed. Apostolado da Imprensa: Porto, 1966.
57. HUSSERL, Edmund. Lições para uma fenomenologia da consciência
interna do tempo. Tradução de Pedro S. M. Alves. Porto: Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, 1994, p. 38. ÉMILE BENVENISTE chama o “tempo objetivo”
em sentido husserliano de “tempo físico” e define seu conceito como “um
contínuo uniforme, infinito, linear e segmentável à vontade humana” (A
linguagem e a experiência humana. Tradução de Marco Antonio Escobar. In:
______. Problemas de linguística geral. Vol. II. São Paulo: Cortez, 1989, p. 71).
No mesmo sentido, ver GILSON, Ettiene. Linguistique et philosophie: essai
sur les constantes philosophiques du langage. Paris: J. Vrin, 1969, p. 156.

29
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

Ao contrário de ARISTÓTELES, que apreendia o “tempo”


como algo físico, SANTO AGOSTINHO via no “tempo” um
fenômeno dependente do homem.
O próprio HUSSERL58, quando pregava a exclusão do
“tempo objetivo” como objeto de estudo da fenomenologia, le-
cionava que “Tal como a coisa real, o mundo real não é um dado
fenomenológico, como também não o é o tempo no mundo, o
tempo real, o tempo da natureza no sentido das ciências naturais
e também da psicologia, como ciência natural do psíquico”.
Em rigor, não se pretende negar a existência do “tempo
objetivo”, mas tão-só colocá-lo fora do campo objetal, se toma-
do no sentido de “tempo real”.
Portanto, há uma diferença básica entre o tempo do mun-
do, a duração causal (dinglichenDauer) e a duração que apare-
ce como tal. A duração só aparece como tal na linguagem. Por
isso, a possibilidade de objetivação do tempo encontra-se na
linguagem.
Preocupado com o problema da medição/duração do tem-
po, SANTO AGOSTINHO59 instala a trilogia temporal passado-
-presente-futuro. De início, parece tomá-los fora da linguagem,
no mundo real, e acaba por criar certo paradoxo: “De que modo
existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro –, se o pas-
sado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao pre-
sente, se fosse sempre presente e não passasse para o pretéri-
to, já não seria tempo, mas eternidade”. Nessa linha, nenhum
dos “três tempos” parece existir.
A solução para a questão somente surge quando SAN-
TO AGOSTINHO apreende o tempo relacionado ao fato da

58. HUSSERL, Edmund. Lições para um fenomenologia da consciência interna


do tempo. Tradução de Pedro S. M. Alves. Porto: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1994, p. 38.
59. AGOSTINHO, Santo. Confissões. 7. ed. Porto: Apostolado da Imprensa,
1966, p. 306.

30
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

linguagem, pois, conforme leciona JOSÉ LUIZ FIORIN60,


“Ninguém ousaria dizer que o passado e o futuro não existem,
pois seu ser está ligado à linguagem, uma vez que as pessoas
podem predizer o futuro (cecinerunt) e narrar (narrant) o pas-
sado”.
Não é outra a conclusão de SANTO AGOSTINHO quando
assegura não existir tempos futuros nem pretéritos sendo impró-
prio denominar o pretérito, o presente e o futuro, mas, sim, o
presente das coisas passadas, o presente das presentes e o pre-
sente das futuras. Conclui, então, o Santo Católico61 que “existem,
pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra
parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente
das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras”.
O presente das coisas passadas tomado como memória, o
presente das coisas presentes empregado como visão e o pre-
sente das coisas futuras apreendido como esperança possuem
uma relação intimamente ligada à linguagem. Memória, visão
e esperança são formas de linguagem.
Embora apegado a uma vivência subjetiva do tempo, a po-
sição de SANTO AGOSTINHO não nega a possibilidade de o
tempo converter-se em representação objetiva, isto é, “uma ordem
serial de intervalos regulares, habilitando-se a tornar imprescin-
dível instrumento de regulação da vida social e do conhecimento

60. FIORIN, Jose Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa,


espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1996, p.131. A mesma observação não
escapou a GONSETH, quando afirmava que “ce problème (do tempo) n’est
pas séparable de celui du langage” (Le problème du temps. Neuchatel: Editions
du Griffon, 1964, p. 24).
61. AGOSTINHO, Santo. Confissões. 7. ed. Porto: Apostolado da Imprensa,
1966, p. 312.
62. BLANC, Mafalda Faria. Metafísica do tempo. Lisboa: Instituto Piaget, 1999,
p. 128. No mesmo sentido, entendendo o tempo como uma instituição social,
NOBERT ELIAS proclama que, “nas sociedades mais complexas, o conjunto
desses símbolos do calendário torna-se indispensável à regulamentação das
relações entre os homens, quer se trate da estipulação dos dias de férias ou
da duração de um contrato” (Sobre o tempo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 10).

31
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

científico da natureza”, como atesta MAFALDA FARIA BLANC62.


O tempo objetivo, como exposto no parágrafo anterior,
aproxima-se do conceito de “tempo crônico”, empregado por
BENVENISTE63 como “a continuidade em que se dispõem em
série estes blocos distintos que são os acontecimentos”. Os
acontecimentos não são o tempo, eles se situam no tempo.
Segundo os autores franceses, a divisão do tempo crônico
encontra-se plasmada nos calendários. Todo sistema social
encontra uma forma de socializar (objetivar) o tempo crônico
naquilo que se denomina “calendário”.
O calendário toma como marco zero um momento dotado
de significação relevante (condição estativa), v.g., o nascimen-
to de Jesus Cristo. A partir de então faz surgir o antes/depois
(condição diretiva). Num terceiro instante, “fixa-se um reper-
tório de unidades de medida que servem para denominar os
intervalos constantes entre as recorrências de fenômenos
cósmicos”64. São os dias, os meses e os anos.
Assim é que o “tempo” é tradicionalmente visto como uma
dicotomia tempo real/tempo crônico, cada qual com suas ver-
tentes objetivas e subjetivas. Mas tais versões, resumidamente
aqui expostas, não se afiguram suficientes à análise do tempo
no que concerne aos atos de fala e aos mecanismos da enun-
ciação. “31 de março de 1964” é uma data explícita que toma
como marco referencial o calendário, mas nada informa sobre
o tempo em que foi enunciada.
Diante desse problema, BENVENISTE idealizou o que

63. BENVENISTE, Émile. A linguagem e a experiência humana. Tradução de


Marco Antonio Escobar. In: ______. Problemas de linguística geral. Vol. II. São
Paulo: Cortez. 1989, p. 71. No mesmo sentido, GILSON, Ettiene. Linguistique
et philosophie: essai sur les constantes philosophiques du langage. Paris: J.
Vrin, 1969, p. 156.
64. BENVENISTE, Émile. A linguagem e a experiência humana. Tradução
de Marco Antonio Escobar. In: ______. Problemas de linguística geral. Vol. II.
São Paulo: Cortez, 1989, p. 72.

32
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

chamou “tempo linguístico” e passou a estudá-lo em referência


com os mecanismos da enunciação e dos atos de fala.

1.7 O tempo linguístico

Coube a BENVENISTE fazer o liame entre o tempo e o


exercício da fala. O tempo linguístico define-se e organiza-se
em função do discurso, pois uma coisa é situar um aconteci-
mento no tempo crônico, outra é inseri-lo no tempo da língua.
O problema aqui está em saber o tempo da enunciação
do tempo.
A enunciação, enquanto instância pressuposta do discur-
so, funda o eu (ego), o agora (nunc) e o aqui (hic). Todos os demais
sujeitos, momentos e locais do discurso giram em torno desses
dêiticos. Assim é que MILTON JOSÉ PINTO65 chama “dêixis
o processo pelo qual os enunciados são ancorados referencial-
mente na perspectiva do emissor”. Todos os dêiticos ou dêixis
fazem referência diretamente à situação de enunciação.
A figura do emissor do ato de fala é marco fundamental para
o estudo dos demais elementos do discurso, mormente a questão
temporal, pois, como leciona JOSÉ LUIZ FIORIN66, “todos os
tempos estão intrinsecamente relacionados à enunciação”.
O tempo em que se fala é o tempo da enunciação. Por isso,
a cada enunciação instala-se novel presente/passado/futuro e,
por conseguinte, instaura-se nova realidade na consciência.
Atento para tal fato, BENVENISTE67 alerta que “Cada vez que
um locutor emprega a forma gramatical do ‘presente’ (ou uma

65. PINTO, Milton José. As marcas linguísticas da enunciação. Rio de Janeiro:


Lumem, 1994, p. 49.
66. FIORIN, Jose Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa,
espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1996, p. 142-143.
67. BENVENISTE, Émile. A linguagem e a experiência humana. Tradução
de Marco Antonio Escobar. In: ______. Problemas de linguística geral. Vol. II.
São Paulo: Cortez, 1989, p. 74-75.
33
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

forma equivalente), ele situa o acontecimento como contem-


porâneo da instância do discurso que o menciona”. O exemplo
mais claro disso é a narrativa “ao vivo” de um jogo de futebol.
Ao relatar o acontecimento, o tempo da enunciação e o tempo
do acontecimento são contemporâneos. Basta observar que o
locutor esportivo diz “João toca a bola para José”, ou “Sebastião
espalma a bola para escanteio”, ou ainda “O juiz apita o fim do
jogo”. É de observar que o tempo do acontecimento (tocar a
bola, espalmar a bola, apitar o fim do jogo) é simultâneo ao
tempo da enunciação. Eis o presente linguístico.
Na linha do pensamento de BENVENISTE, o presente é
assinalado pela coincidência do acontecimento e da enunciação
(mais propriamente enunciação-enunciada) e, embora muitas
vezes explícito, “é por natureza implícito” ao discurso. Por
outro lado, o passado e o futuro aparecem sempre explícitos,
já que não se encontram no mesmo nível do presente.
À medida que o acontecimento deixa de ser contemporâ-
neo à enunciação, instala-se o passado e o futuro, ou, consoan-
te emprega SANTO AGOSTINHO, o presente das coisas pas-
sadas (memória) e o presente das coisas futuras (esperança). A
partir daí articula-se o eixo anterioridade vs posterioridade.
Exemplo de passado (ou presente das coisas passadas) é a
narrativa estampada num “diário”. Nele se encontra a descri-
ção do dia de determinada pessoa com as seguintes orações:
“Eu fui ao teatro”, “Encontrei meus amigos”, “Jantei com meus
pais”. O momento do acontecimento é anterior ao momento
da enunciação. Instaura-se o passado. Exemplo de futuro (ou
presente das coisas futuras) é a descrição do roteiro de uma
viagem: “Irei à Vitória”, “Visitarei o Convento da Penha em
Vila Velha”, “Tomarei banho de mar em Guarapari”. Aqui, o
momento do acontecimento é posterior ao da enunciação.
Instala-se o futuro.
Embora o tempo linguístico comporte suas próprias di-
visões, não há uma relação de oposição entre ele e o tempo
crônico. Há, em verdade, uma relação de complementaridade.
Como o tempo linguístico nasce do ato de fala individual,
34
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

necessariamente, nele (ato de fala) estão empregados os mar-


cos temporais do tempo crônico como forma de objetivação
do discurso.
Nas palavras de JOSÉ LUIZ FIORIN68, “o meio de tornar
inteligíveis os marcadores do tempo linguístico é a ancoragem
numa divisão do tempo crônico”. O modelo mais claro disso é
a data.
Relembre-se o exemplo do aviso deixado para os alunos
pela coordenação, outrora fornecido:

AVISO
Amanhã não haverá aula de História
devido à grave doença a que está aco-
metido o professor da cadeira.
Vitória, 19 de maio de 2004.
A Coordenação

A enunciação ocorrida no dia 19 de maio de 2004 (acessível


via enunciação-enunciada) demarca todos os demais “tempos
linguísticos” do discurso. Esse tempo linguístico encontra-se
ancorado numa data do tempo crônico. A partir desse dia (19 de
maio de 2004), instaura-se a anterioridade e a posteridade, ou
seja, o “amanhã” ejetado, no enunciado, toma como marco re-
ferencial o dia da enunciação. A palavra “amanhã” significa “dia
20 de maio de 2004”.
Diferente seria se a enunciação fosse proferida no dia 21
de maio de 2004. Instalar-se-ia novo eixo temporal e, por con-
sequência, novo presente, novo passado e novo futuro. Aquilo
que, no primeiro ato de fala, era futuro, agora seria passado,

68. FIORIN, Jose Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa,


espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1996, p. 143.
69. Ibidem, p.145.

35
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

ou seja, o dia 20 de maio de 2004.


Não é difícil verificar a existência de dois tempos linguís-
ticos conforme observa JOSÉ LUIZ FIORIN69, “um relacionado
diretamente ao momento da enunciação e outro ordenado em
função de momentos de referência instalados no enunciado.
Assim, temos um sistema enunciativo no primeiro caso e um
enuncivo no segundo”.
Abram-se parênteses para explicar que vem a ser sistema
enunciativo e sistema enuncivo.
Na esteira das lições de GREIMAS & COURTÉS70, chama-
-se debreagem a “operação pela qual a instância da enunciação
– no momento do ato de fala e com direção à manifestação –
disjunge de si e projeta para fora de si certos termos vinculados
a sua estrutura de base, a fim de constituir, assim, os elementos
do discurso [pessoas, espaço e tempo]”. Em outras palavras,
são os mecanismos de instauração das pessoas, dos tempos e
dos espaços da enunciação no enunciado.
A debreagem pode ser de dois tipos: enunciativa e enunciva.
Debreagem enunciativa71 é aquela em que se instalam no
enunciado os actantes (eu/tu), o espaço (aqui) e o tempo (agora)
da enunciação.
O exemplo do aviso na sala de aula possui uma debre-
agem enunciativa actancial, temporal e espacial, pois, ao ins-
taurar a Coordenação a data 19 de maio de 2004 e a sala de aula
em Vitória, lança, no enunciado, categorias pertencentes à
enunciação.

70. COURTÉS, J; GREIMAS, A. J. Semiótica: diccionário razonado de la teoría


del lenguaje. Tradução de Enrique Ballón Aguirre e Hermis Campodónico
Carrión. Madrid: Gredos, 1982, p. 113.
71. FIORIN, Jose Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa,
espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1996, p. 43-44.
72. Ibidem, p. 44-45. Segundo o Professor da USP, a debreagem enunciativa
e a debreagem enunciva trazem consigo dois grandes efeitos no discurso: a
primeira, cria a subjetividade; enquanto, a segunda, a objetividade.
36
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

Debreagem enunciva, nas palavras de JOSÉ LUIZ


FIORIN72, “é aquela em que se instauram no enunciado os
actantes do enunciado (ele), o espaço do enunciado (algures)
e o tempo do enunciado (então)”.
Exemplo disso é a palavra “amanhã”, expressa no aviso
dado acima como exemplo. Trata-se de debreagem enunciva
temporal, porque projeta, no enunciado, o tempo do enunciado.
Em suma, há dois tempos linguísticos possíveis de serem
vislumbrados: o momento da enunciação (obtido via enunciação-
-enunciada) e o momento do acontecimento (acessível via
enunciado-enunciado).
Aqui estão a enunciação-enunciada e o enunciado-enun-
ciado a criarem simulacros da realidade.

1.8 A lógica e a linguagem

Se, por um lado, a teoria dos atos de fala e a análise do


discurso envolvem o lado pragmático do estudo da linguagem,
por outro, não menos importante, a Lógica se dirige ao aspec-
to sintático, isto é, a relação entre os signos com vistas à com-
posição de uma linguagem formal rigorosa.
Eis a razão pela qual a Lógica reduz, com máxima in-
tensidade, seu objeto de estudos para as estruturas formais
das proposições, bem como a relação entre elas encetadas,
suspendendo, temporariamente, os campos semântico e
pragmático da linguagem.
Como atesta LOURIVAL VILANOVA73, “a linguagem
positiva (idiomas diversos) representa o ponto de partida epis-
temológico para a apreensão das formas lógicas”. Por isso, a
Lógica é sempre metalinguagem em relação à linguagem idio-

73. VILANOVA, Lourival. Teoria das formas sintáticas: anotações à margem


da teoria de Husserl. In: ______. Escritos jurídicos-filosóficos. Vol. 2. São Paulo:
IBET/Axis Mundi, 2003, p. 120.
37
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

mática sobre a qual se debruça.


A unidade objetal imediata dos estudos da Lógica é o
enunciado. O conceito de “enunciado”, para Lógica, não se
distancia daquele adotado pela Semiótica, outrora exposto, ou
seja, uma frase (declarativa ou até mesmo performativa) bem
formada de acordo com as regras do idioma em que está inse-
rida. As palavras não podem ser postas em qualquer ordem
para formar um enunciado (ou oração, ou sentença).
Diferentemente, a proposição é a construção de sentido
realizada pelo sujeito cognoscente a partir do enunciado. De-
vido a isso, ela é suscetível de valores de verdade e falsidade.
A proposição, apenas num segundo instante, torna-se o foco
temático de investigação da Lógica.
Isso porque o lógico se depara primeiramente com o
enunciado (frase escrita ou oração). A partir de então constrói
a proposição (frase pensada). Depois, abstrai o conteúdo da
proposição e substitui os termos idiomáticos por constantes e
variáveis. Chega-se a forma lógica a que referia LOURIVAL
VILANOVA.

74. LANGER, Suzanne K. An introduction to symbolic logic. 3. ed. New York:


Dover, 1967, p. 42. No original, “Logical form means ‘structure’, or the way
a thing is put together. [...] It means an ordely arrangement of parts, that
may be found in nature or in artefacts”. L. SUSAN STEBBING afirma que
“El modo en que están combinados los constituyentes determina la forma
lógica de la proposición” (Introducción moderna a la lógica. Tradução de
Robert S. Hartman e José Luis González. México: UNAM, 1965, p. 55). Já
HEINRICH SCHOLZ distingue forma geral de forma perfeita, ao dizer que
“Nous entendons donc par forme en général, une expression où apparaît au
moins une variable, et qui est telle qu’elle se tranforme en une proposition
vraie ou fausse lorsque nous substituons quelque chose à cette variable, ou,
en bref, lorsque nous donnons à cette variable un contenu approprié. Par
forme parfaite, nous entendons une expression qui peut être dérivée d’une
proposition, lorsque nous y remplaçons tous les éléments considérés como
variables, par des signes appropriés de variables” (Esquisse d’une histoire de
la logique. Traduzido por E. Coumet, Fr. de Laur e J. Sebestik. Paris: Aubier-
Montaigne, 1968, p. 22-23).
38
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

A definição do conceito de “forma lógica” é encontrada


em SUSANNE K. LANGER74, ao asseverar que “Forma lógica
significa ‘estrutura’, ou seja, a maneira pela qual uma coisa
compõe um todo pela combinação de partes [...] isto é uma
disposição ordenada de partes [...]”. O conceito complementar
ao de “forma lógica” é o de “conteúdo”. Entende-se, por “con-
teúdo”, o material que satura as variáveis, o qual, por sua vez,
pode ser físico, musical, temporal ou até mesmo jurídico.
Com extrema agudeza é que VON WRIGHT75, com algu-
mas ponderações, afirma que “a variável fornece às nossas
sentenças o seu conteúdo, ao passo que as constantes outorgam
às sentenças a sua forma [...]”.
Alguns exemplos podem ajudar na compreensão da questão.
O enunciado “O dia está lindo e eu me sinto feliz” é com-
posto de dois enunciados moleculares – “O dia está lindo” e
“Eu me sinto feliz”, além do conectivo “e”. Pelo processo de
abstração, extrai-se o conteúdo das proposições construídas a
partir dos enunciados e, arbitrariamente, confere o símbolo
“p” ao enunciado “O dia está lindo” e a letra “q” ao enunciado
“Eu me sinto feliz”. Ao conectivo “e” aplica-se o signo “.”. En-
tão, o resultado da formalização do enunciado “O dia está
lindo e eu me sinto feliz” é – “p . q”.
A fórmula lógica “p . q” (que deve ser lida: “p e q”) aplica-
-se a qualquer enunciado que possua a forma conjuntiva, de
qualquer conteúdo objetal, v.g., “A água entra em ponto de
ebulição a 100ºC e tem sua congelação a 0ºC”; ou “João matou
José e cometeu suicídio”; ou “Saia daqui e não volte mais!”.
Na esteira do pensamento de VON WRIGHT, a forma
conjuntiva é dada pela constante “e”, ao passo que o conteúdo
proposicional encontra apoio nas variáveis “p” e “q”.
O conectivo “e” é apenas um exemplo. Há outros elemen-

75. VON WRIGHT, Georg Enrik. Logical studies. London: Routledge & Kegan
Paul Ltd., 1957, p. 4. No original, “[...] the variable gives to our sentence its
content, and the constants give to it its form [...]”.

39
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

tos que merecem destaque, como é o caso das palavras “não”


e outros conectivos como “ou” e as expressões “se... então ...”
e “..., se e somente se, ...”.
O “não” é denominado negador e conhecido como opera-
dor monádico. Monádico, pois, localizado antes da variável
proposicional (ou da fórmula), inverte apenas o valor de ver-
dade da fórmula ao qual se aplica. Não faz liame entre fórmu-
las proposicionais. A fórmula “p . q” negada remanesce “–(p . q)”,
onde se lê: “é falso que p e q”. O negador colhe toda a fórmula
posta à sua frente. Saturando o de conteúdo, ter-se-ia: “é falso
que o dia está lindo e eu me sinto feliz”. Observe que a linguagem
ordinária é ambígua, pois, ao partir dela para a formalização, não
há empecilho à construção da seguinte fórmula “–p . q”. Mas, em
linguagem formalizada, a fórmula “– (p . q)” é completamente
diversa da articulação “– p . q”. Nesta, o negador atinge apenas
a variável “p”; naquela, o negador toca a fórmula em sua tota-
lidade. Eis a função dos parênteses “( )” como signo auxiliar
para evitar ambiguidade.
LOURIVAL VILANOVA76, após entrever cinco papéis
sintáticos para o negador, alerta para o seguinte fato: “O não
entrefixo, compondo a estrutura interna de uma proposição,
nem sempre é equivalente a ‘é falso que’, nas proposições des-
critivas [...]”. Além disso, fornece o seguinte exemplo: “o Sol
não é um satélite da Terra”. Trata-se, em rigor, de enunciado
cuja proposição é verdadeira, mesmo tendo o não entrefixo.
Após, completa que “O não antefixo, este, sim, ordinariamente,

76. VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo.


2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 146. As cinco funções sintáticas
do negador são as seguintes: i) functor veritativo que muda a valência da
proposição à qual vem prefixo; ii) functor nominal, ou seja, dada a classe A,
não-A é a classe complementar; (iii) functor-de-functor, quando atinge outro
functor: “não-é”, “não-dever-ser”, “não-necessariamente”; (iv) no interior da
estrutura proposicional pode afetar o sujeito (não-S), ou o predicado (não-P),
ou o quantificador, “não-todo S é P”; (v) ora é prefixo de contrariedade:
proibido, não-proibido (não exaure uma terceira possibilidade “permitido”);
ora de contraditoriedade: verdadeiro/não-verdadeiro que exclui uma terceira
possibilidade (tertium non datur).

40
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

equivale à cláusula ‘é falso que’”.


A negação exerce funções básicas dentro da Lógica For-
mal, principalmente no que tange às Leis Lógicas, como é o
caso da Lei da não-contradição. E, para que o princípio da
não-contradição seja um princípio realmente lógico, “há de
referir-se exclusivamente a objetos genuinamente lógicos, ou a
conceitos, ou a juízos, ou a raciocínios”, com alertou PFÄNDER77.
Em termos empregados pela Lógica Simbólica, deve referir-se
às proposições.
O princípio da não-contradição enuncia que nenhuma
proposição pode ser conjuntamente verdadeira e falsa. Em
linguagem simbólica, ficaria assim: “– (p . – p). Por exemplo, é
falsa, em qualquer circunstância, a proposição “O dia está
lindo e o dia não está lindo”, ou com mais esmero, “É verda-
deiro que o dia está lindo e é falso que o dia está lindo”.
Interessante observação faz PFÄNDER sobre o princípio
da não-contradição, que ele chama princípio da contradição,
pois, para o autor78, “O princípio lógico de contradição se refe-
re, pois, a juízos contraditórios e afirma algo acerca de sua
verdade. Porém nada decide acerca de qual dos dois juízos
contraditórios seja o verdadeiro”.
Conclui precisamente, então, que “o fato de um juízo ter
sido formulado em tempo anterior ao outro não lhe concede
vantagem nem desvantagem, no que toca a sua verdade”.
Isso ocorre, pois apenas uma linguagem de sobrenível
pode retirar a contradição entre as proposições e dizer qual
delas é a verdadeira. O princípio da não-contradição apenas
afirma a falsidade de se afirmar a verdade e a falsidade da
mesma proposição.
Outros dois conectivos importantes são o “ou-inclusivo”
e o “se..., então...”.

77. PFÄNDER, A. Lógica. 3. ed. Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1945, p. 239.


78. Ibidem, p. 240.

41
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

O primeiro é denominado disjuntor includente e é iden-


tificado pelo signo “v”. O ou-inclusivo admite a verdade de
apenas uma das proposições ou de ambas em conjunto, mas
não aceita a falsidade das duas simultaneamente. Empregando
os exemplos acima, tem-se: “p v q”, onde se lê “ou o dia está
lindo ou eu me sinto feliz”. Outro exemplo para ajudar a com-
preensão – “Para ingressar no curso, tem de ser advogado ou
contador”. O sujeito que for advogado e contador, só advogado
ou só contador está habilitado a fazer o curso, enquanto aque-
le que não possui pelo menos uma das qualificações acima,
encontra-se impedido de realizar o curso.
Muitas vezes, é o próprio contexto o responsável por de-
limitar o significado do “ou”, isto é, se é includente ou exclu-
dente. Este é representado simbolicamente pelo “≡” e admite
a verdade de apenas uma das proposições, rechaçando a ver-
dade e a falsidade simultâneas.
O “ou-includente” é empregado na Lei Lógica do terceiro
excluso que é assim simbolizada: “p v – p”. Em linguagem não-
-formalizada: “ou é verdadeiro que o dia está lindo ou é falso
que o dia está lindo”. Não há terceira possibilidade – Tertium
non datur.
Por fim, o conectivo conhecido por condicional. O condi-
cional estabelece a relação entre duas proposições: a antece-
dente e a consequente; e somente será falso se o antecedente
for verdadeiro e o consequente não.
O condicional é assim simbolizado: “p ⊃ q”, onde se lê “se
p, então q”. Na fórmula, “p” é denominado antecedente e “q”,
consequente. Saturando as variáveis, restaria “se o dia está
lindo, então eu me sinto feliz”. O condicional será verdadeiro
se, e somente se, não ocorrer o antecedente verdadeiro e o
consequente falso. Por outro giro, o condicional será sempre

79. Em ligeira vista d’olhos, vê-se que a compreensão do condicional não é


fácil para aqueles que não estão familiarizados com a Lógica Simbólica. Por
não ser o momento e o local apropriado, o interessado encontra maiores

42
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

verdadeiro, exceto no caso de o antecedente ser verdadeiro e


o consequente ser falso. No exemplo dado, o condicional só
será falso se o dia estiver lindo e eu não estiver feliz. Para todos
os outros casos, a relação estabelecida entre “p” e “q” perma-
nece verdadeira79.
Um último alerta. A Lógica não se contenta apenas em
alcançar a forma lógica. Uma vez obtida, procede às opera-
ções de cálculo e de deduções em linguagem puramente
formalizada para a construção de teoremas, tudo com base
em regras de formação e transformação pertencentes ao
próprio sistema.
De ver está que o caráter formal da Lógica não exaure por
completo qualquer que seja o objeto de estudo, porquanto
coloque, entre parênteses, os aspectos semânticos e pragmáti-
cos, servindo, antes, de instrumento do que de fim. Isso em
nada diminui o potente arsenal de direção do espírito por ela
oferecido.
O pensamento de SPENGLER80 parecia apontar para isso
quando atrelava a superior consciência do mundo a um “idio-
ma culto”, garantindo que “A condição de esta superior cons-
ciência do mundo é, em primeiro termo, a linguagem, e não
uma linguagem humana qualquer, mas um idioma culto que
para o homem primitivo não existe ainda, e para a criança,
ainda que exista, não se encontra ao seu alcance”.

informações sobre o condicional nos manuais de Lógica, especialmente em


LEÔNIDAS HEGENBERG (Lógica simbólica. São Paulo: Herder, 1966); JUAN
DAVID GARCIA-BACCA (Introducción a la lógica moderna. 2. reimp. Cidade
do México: Fondo de Cultura Económica, 1975), SUZANNE K. LANGER (An
introduction to symbolic logic. 3. ed. New York: Dover, 1967), IRVING COPI
(Symbolic logic. 5. ed. New York: Macmillan, 1979) e HEINRICH SCHOLZ
(Esquisse d’une histoire de la logique. Traduzido por E. Coumet, Fr. de Laur
e J. Sebestik. Paris: Aubier-Montaigne, 1968).
80. SPENGLER, Oswald. La decadencia de occidente: forma y realidad. Vol
I. Tradução de Manuel Garcia Morente. Madrid: Espasa-Calpe, 1947, p. 90.
43
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

1.9 Sobre a teoria das classes

A lógica das classes toma como pressuposto a lógica dos


predicados, isso quer dizer que emprega as fórmulas, as regras
de transformação e as leis lógicas advindas da Lógica propo-
sicional e Lógica das relações.
A definição do conceito de “classe” sempre gozou de con-
fusão na Lógica a ponto de IRVING COPI81 afirmar que “a
noção de uma classe é básica demais para ser definida em
termos de conceitos mais fundamentais”.
Contudo, dada à ambiguidade da palavra “classe”82, faz-se
necessária a indicação do significado da palavra para os lindes
do presente trabalho.
Na esteira do ensinamento de S. K. LANGER83, pode-se,
satisfatoriamente, definir o conceito de “classe” como “coleção
de todos aqueles e somente aqueles termos aos quais um certo
conceito seja aplicável”. Por outros torneios, classe é o campo
de aplicabilidade (field of applicability), é a extensão de deter-
minado conceito.
A classe não se encontra na realidade física, é construção in-
telectiva. Não vemos a classe. Criam-se, linguisticamente, classes.84

81. COPI, Irving. Symbolic logic. 5. ed. New York: Macmillan, 1979, p. 170. Para
atribuir credibilidade, segue original – “The notion of a class is too basic to
be defined in terms of more fundamental concepts”.
82. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 3. ed. 2. tir. São Paulo:
Martins Fontes, 1999; ACADÊMIA DE CIÊNCIAS DE LISBOA. Dicionário
da língua portuguesa contemporânea. V. II. Lisboa: Verbo. 2001; AULETE,
Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. 5. ed. V. III. Rio de
Janeiro: Delta, 1964.
83. LANGER, Suzanne K. An introduction to symbolic logic. 3.ed. New York:
Dover, 1967, p.116.
84. Talvez o exemplo mais interessante disso é dado por SPENGLER, ao citar
a surpresa de GOETHE, “Que é a humanidade? Que coisa mais abstrata!
Não vemos a humanidade, mas, sim, os homens” (SPENGLER, Oswald. La
decadencia de occidente: forma y realidad. Vol I. Tradução de Manuel Garcia
Morente. Madrid: Espasa-Calpe, 1947, p. 37).
44
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

Nesses termos, o conceito de classe (coleção) difere do


conceito de coletividade (denotação). A denotação não é a
classe, mas sim a coletividade dos membros. A classe pode ser
vazia, mas não a coletividade (denotação).
Em termos mais precisos, fala-se do conjunto de todos
os brasileiros (que não se confunde com o brasileiro João, o
brasileiro José etc. – denotação), ou do conjunto de todos os
números inteiros (que é distinto dos números 1, 2, 3 etc. –
denotação), ou do conjunto de todas as normas jurídicas (que
se diferença da norma do homicídio, da norma do ICMS etc.
– denotação), ou conjunto dos centauros (classe vazia, com
extensão e sem denotação).
O problema é que muitas vezes se utiliza a mesma palavra,
v.g., “homem”, tanto para denominar a classe como para se
referir ao indivíduo. Aqui, mais uma vez, o cientista mergulha
no que MAX BLACK85, ironicamente, chamou “labirinto da
linguagem”.
Ressalte-se que não há confundir-se a classe com seus
elementos (ou, indivíduos, como prefere TARSKI). De acordo
com ALBERT MENNE86, elementos da classe “são os indiví-
duos que caem sob o predicado correspondente à classe”.
Utilizando-se dos exemplos acima fornecidos, “João” é elemen-
to da classe “brasileiro”; o número “1” é elemento da classe
“número inteiro”; “homicídio (art. 121 do CP)” é elemento da
classe “norma jurídica”; a classe dos centauros carece de ele-
mentos (classe vazia).
Nesse ponto, fulgura a precisa lição de STEBBING87

85. BLACK, Max. The Labyrinth of Language. London: Penguin, 1968.


86. MENNE, Albert. Introducción a la lógica. 3. ed. Tradução de Leopoldo-
Eulogio Palácios. Madrid: Gredos, 1979, p. 142.
87. STEBBING, L. Susan. Introducción moderna a la lógica. Tradução de
Robert S. Hartman e José Luis González. México: UNAM, 1965, p. 143. Para
dar credibilidade, segue o original – “La extensión de un término que significa
una propiedad de clase de una clase dada consiste en todas las subclases
colectivamente” (p. 143).
45
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

quando distingue a “denotação” da “extensão” do signo. Afir-


ma a autora que “a extensão de um termo que significa uma
propriedade de classe dada consiste em todas as subclasses
coletivamente”. Assim, a extensão de “homem” (superclasse)
denota cada homem individual. Isso não se confunde com as
subclasses “homens brancos”, “homens negros”, “homens
amarelos” e “homens vermelhos”.
Conclui, certificando, que “A extensão, portanto, são clas-
ses, não indivíduos; a denotação são os membros das classes,
não as classes. Daí que quando um homem morre, a extensão
de ‘homem’ não se vê afetada de modo algum”88.
Em verdade, são a conotação e a extensão que variam
dessa maneira. O aumento da conotação implica diminuição
da extensão. A conotação da palavra “tributo” tem por exten-
são “imposto” e “taxa”. O acréscimo à palavra “tributo” do
termo “vinculado” faz diminuir a extensão – só cabe, em
princípio, à palavra “taxa” sob a expressão “tributo vincula-
do”. Uma hipotética revogação das “custas judiciais” por
parte da União Federal, por exemplo (denotação), em nada
altera a conotação e a extensão de “taxa”, da mesma maneira
que a morte de um homem qualquer em nada reduz a classe
dos homens.

88. Para dar credibilidade, segue o original – “La extensión, por lo tanto,
son clases, no individuos; la denotación es los miembros de las clases, no las
clases. De aquí que cuando un hombre muere, la extensión de ‘hombre’ no
se vea afectada de modo alguno” (Ibidem, p. 143). Quanto a isso, CHARLES
MORRIS afirmava: “torna-se claro, assim, que, embora todo signo tenha um
“designatum”, nem todo signo tem um “denotatum”. Um “designatum” não
é uma coisa, mas uma espécie de objeto ou classe de objetos – e uma classe
pode ter muitos membros, ou um só membro, ou nenhum. Os “denotatum”
são os membros da classe. Essa distinção explica o fato de que se pode ir
à geladeira para apanhar uma maçã que lá não está, ou preparar-se para
viver numa ilha que pode nunca ter existido, ou que há longo tempo tenha
desaparecido no mar” (Fundamentos da teoria dos signos. Tradução de Milton
José Pinto. Rio de Janeiro: Livraria Eldorado/EDUSP, 1976, p. 15-16).
89. STEBBING, L. Susan. Introducción moderna a la lógica. Tradução de
Robert S. Hartman e José Luis González. México: UNAM, 1965, p. 169.
46
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

Tais conceitos são fundamentais para compreender a


igualdade de classes.
De acordo com STEBBING89,

Duas ou mais propriedades definidoras diferentes podem


determinar a mesma extensão. Mas duas classes diferentes
não podem ter os mesmos membros. A classe homens está
determinada tanto pela propriedade definidora animal racio-
nal como pela propriedade definidora ser bípede e implume.

Ao estabelecer uma classe com a nota definitória “animal


racional” e outra com “ser bípede e implume”, poder-se-ia
dizer que, à primeira vista, estar-se-ia diante de duas classes
distintas: a classe K e a classe L, isto é, classes intencionalmen-
te distintas.
Α
Porém, se a classe K é composta dos elementos “x”, “y” e
“z”, e a classe L é também composta dos mesmos elementos
“x”, “y” e “z”, grande parte dos lógicos não hesitaria em afirmar
a igualdade entre elas, pois todo elemento que pertence à clas-
se K pertence também à classe L, e todo elemento que perten-
ce à classe L pertence, outrossim, à classe K. Pressupondo L
e K como classes unitárias, em linguagem simbólica, poderia,
assim, ser reescrito: (x) {[(x ∈K) ⊃ (x ∈ L)] . [(x ∈ L) ⊃ (x ∈
K)]} ⊃ (K ≡ L).
Firme nesse pressuposto é que STEBBING, citando o autor
de Principia Mathematica, conclui que, “como assinala RUSSEL,
é ‘esse fato, de que uma característica definidora nunca é única,
o que faz úteis as classes’. As propriedades definidoras que de-
terminam a mesma extensão se consideram equivalentes”.

1.10 Ainda a teoria das classes: alguns conceitos importantes

A teoria das classes fornece-nos elementos indispensáveis


para a compreensão do processo classificatório.
Os mais relevantes conceitos são os seguintes: (a) relação
de pertinência; (b) classe unitária; (c) classe universal; (b) classe
47
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

vazia; (c) inclusão de classes; (d) intersecção de classes; (e) disjun-


ção de classes; (f) união de classes; (g) classe-complemento.
A expressão simbólica “x ∈ K” (lê-se: “x” pertence à clas-
se “K”) exerce função primordial em teoria das classes, de
maneira que todo indivíduo “x” que satisfizer as características
definitórias da classe “K” a esta pertencerá. Assim a função
proposicional “‘x’ é mortal” define a forma da classe “mortais”.
A palavra “mortal” estende-se (extensão) sobre Sócrates, Pla-
tão etc., fazendo-os elementos da classe, porém não se aplica
a Apolo (na mitologia grega Apolo era imortal). Interessante
observar que preenchida a variável da função proposicional,
ela se torna uma proposição (“x é mortal” é uma função propo-
sicional; “Sócrates é mortal” é um enunciado do qual se cons-
trói uma proposição verdadeira ou falsa). A relação de perti-
nência é sempre representada por uma função proposicional.
Certo estorvo pode ocorrer com a noção de classe unitária
na qual parece confundir-se o conceito de classe com o de ele-
mento. Assim ocorre com a classe formada pelos “satélites da
Terra” que somente possui um elemento, qual seja “a Lua”.
Mas, mesmo aqui, a classe não se confunde com o elemento.
Em sua extensão só cabe um único indivíduo.
Assim, a classe vazia (ou nula) não é preenchida por ele-
mento algum. É dotada de extensão, mas carece de denotação
e indivíduo. É simbolizada pela expressão “x ∈ Λ”, que será
falsa para todos os casos. Como exemplo, temos a classe dos
“centauros” ou “tributos que decorrem de ato ilícito” ou dos
“condenados judicialmente à morte no Brasil”.
Classe universal é aquela que contém todos os indivíduos
como elementos. Convencionalmente, a classe universal é re-
presentada pelo símbolo “V” (em notação simbólica: “x ∈ V”),
satisfeita por qualquer indivíduo. A classe universal forma o
denominado “universo do discurso”, isto é, na acepção de AL-

90. MENNE, Albert. Introducción a la lógica. 3. ed. Tradução de Leopoldo-


Eulogio Palácios. Madrid: Gredos, 1979, p. 143.

48
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

BERT MENNE90, “a esfera de coisas que hão de ser postas em


consideração”. A título exemplificativo, a classe universal ou
universo do discurso, na Ciência do Direito, em sentido estrito,
é formada pelas normas jurídicas. No interior do direito posi-
tivo, podem-se tomar os “tributos”, os “contratos”, os “crimes”
como universo do discurso de acordo com o corte metodológi-
co pressuposto.
A inclusão é a relação entre classes (e não entre elemento
e classe – relação de pertinência), assim definida por PATRICK
SUPPES91: “Se A e B são conjuntos tais que todo membro de
A é também membro de B, então chamamos a A um subcon-
junto de B, ou dizemos que está incluído em B”. Vale a pena
notar que a relação de inclusão de classes, mesmo sendo dife-
rente da relação de pertinência, não é desta independente. A
relação de pertinência está no cerne da definição do conceito
de inclusão de classes.
Assim, quando se afirma que “A” é a classe dos “homens
brasileiros” e “B” a classe dos “homens”, conclui-se que a
classe “A” encontra-se inteiramente incluída na classe “B”, isto
é, todo homem brasileiro é um homem.
Mas, LOURIVAL VILANOVA, com sutileza peculiar, cha-
ma a atenção para a diferença entre “inclusão de classes” e
“relação de pertinência”. Afirma o saudoso mestre92:

A relação-de-membridade (Gliederschaftsbeziehung) ou de
pertinencialidade é do indivíduo para sua classe, não das
classes entre si; a extinção factual do indivíduo não afeta a

91. SUPPES, Patrick. Introducción a la lógica simbólica. Tradução de Gabriel


Aguirre Carrasco. Cidade do México: Continental, 1966, p. 229. Para dar
credibilidade, segue original, “Si A y B son conjuntos tales que todo miembro
de A es también miembro de B, entonces llamamos a A un subconjunto de B,
o décimos que está incluído en B” (p. 229).
92. VILANOVA, Lourival. Teoria das formas sintáticas: anotações à margem
da teoria de Husserl. In: ______. Escritos jurídicos-filosóficos. V. 2. São Paulo:
IBET/Axis Mundi, 2003, p. 93-140.

49
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

existência lógica da classe do indivíduo. De uma classe ou


conjunto lógico, diz-se que é o subconjunto de si mesmo,
que há conjunto sem indivíduos ou membros — os conjun-
tos nulos ou vazios —, que todo conjunto nulo é parte de
qualquer conjunto: proposições estas que carecem de sen-
tido se tomássemos como sujeito os indivíduos.

Os lógicos distinguem entre subclasse e subclasse própria.


Na relação de subclasse “A ⊆ B” não se exclui a possibili-
dade de “A = B”, a suceder a fórmula “B ⊆ A” (que, por sua
vez, é o fundamento do princípio da identidade de classes).
Porém, se, por outra parte, todo elemento da classe A for um
elemento da classe B, mas nem todo elemento da classe B for
um elemento da classe A, então se afirma que a classe A é uma
subclasse própria ou uma parte da classe B93.
Na terminologia proposta por SUPPES, o signo “⊆” é em-
pregado para a relação de inclusão quando tratarmos de sub-
classe e o categorema “⊂” é utilizado para cuidar de subclasse
própria. Ao afirmar que a classe dos brasileiros é subclasse
(própria) dos homens, a simbolização assim permaneceria: “A
⊂ B”. Da mesma maneira, a classe dos centauros compreende
como subclasses próprias centauros negros e centauros brancos.
A relação entre classes explica por que a classe vazia é
subclasse de todas as demais classes. Basta recordarmos a
expressão simbólica referente à subclasse: (x) (x ∈ A → x ∈ B),
que se lê, para todo “x” se “x” pertence a “A”, então “x” per-
tence a “B”. Se pusermos a expressão referente à classe vazia
(x ∈ Λ) no antecedente da fórmula condicional acima ( (x) (x ∈
Λ → x ∈ B) ), teremos sempre um condicional verdadeiro, uma
vez que o antecedente sempre será falso, independentemente
do valor atribuído ao consequente (paradoxo do condicional).

93. TARSKI. Alfred. Introducción a la lógica y la metodología de las ciencias


deductivas. 2. ed. Tradução de T. R. Bachiller e J. R. Fuentes. Madrid: Espasa-
Calpe, 1968, p. 102.
94. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 16. ed. São Paulo:
Saraiva, 2004, p. 245.

50
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

Em particular, o conjunto vazio L é subconjunto do conjunto


B se, e somente se, para todo x, se x ∈ Λ, então x ∈ B.
Cabe lembrar que o conceito de subsunção, largamente
empregado na Ciência do Direito, advém do conceito de inclu-
são entre classes e das correspondentes subclasses. Eis a razão
pela qual PAULO DE BARROS CARVALHO94 precisamente
afirma ser a subsunção operação lógica entre conceitos, isto é,
entre classes.
De ALFRED TARSKI advém os conceitos de classes cru-
zadas e classes disjuntas. Duas classes se interseccionam, in-
terceptam, cruzam, sobrepõem (overlap) se possuírem ao menos
um elemento em comum e se, ao mesmo tempo, cada uma
contiver elementos não contidos na outra. Pelo ponto de vista
semântico, são classes cruzadas as normas morais e as normas
jurídicas (veja-se a norma que prescreve: “não matarás”). Se
cada uma das duas classes possuírem pelo menos um elemen-
to (é dizer, se não são vazias), mas não possuírem elementos
em comum, dizemos que são mutuamente excludentes ou
disjuntas. Sintaticamente, as normas jurídicas e as normas
morais formam classes disjuntas. Embora a união de duas
classes disjuntas não resulte na classe universal, ambas com-
põem a classe universal das normas (V).
Importante não confundir classe disjunta e classe comple-
mentar. De acordo com LEÔNIDAS HEGENBERG95, classe
complementar de A é o “conjunto formado por elementos (do
universo) não pertencentes à classe A”. Simboliza-se a classe
e sua complementar pelas letras K e K’, respectivamente. En-
tão, se K é a classe dos homens, K’ é a classe dos não-homens.

95. HEGENBERG. Leônidas. Lógica simbólica. São Paulo: Herder, 1966,


p. 274.
96. SUPPES, Patrick. Introducción a la lógica simbólica. Tradução de Gabriel
Aguirre Carrasco. Cidade do México: Continental. 1966, p. 234. Para dar
credibilidade, segue original: “Si A y B son conjuntos, entonces por la unión
de A y B (em símbolos, A È B) significamos el conjunto de todas las cosas
que pertenecen cuando menos a uno de los conjuntos A y B” (p. 234).

51
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM

Dentro do universo do discurso dos fatos jurídicos (classe uni-


versal – “V”), temos a classe K cujos membros são os fatos ju-
rídicos lícitos e a classe K’ cujos indivíduos são fatos jurídicos
ilícitos.
Das operações entre classes, importa a união entre classes.
Assim, SUPPES96 define a união de classes: “Se A e B são con-
juntos, então por união de A e B (em símbolos A ∪ B) significamos
o conjunto de todas as coisas que pertencem ao menos a um dos
conjuntos A e B”. Em linguagem simbólica, poderíamos assim
expressar: (x) (x ∈ A ∪ B ↔ x ∈ A v x ∈ B). A classe dos fatos
jurídicos ilícitos unida à dos fatos jurídicos lícitos têm, por resul-
tado, a classe dos fatos jurídicos (código binário Luhmanniano).

1.11 Algumas ponderações acerca das premissas adotadas

O objetivo de tratar temas, em princípio, desconexos en-


tre si está na fixação das premissas.
O influxo que a cultura exerce na instauração da realida-
de na consciência humana encontra na linguagem sua prova
mais contundente. A linguagem é o instrumento de atualização
da cultura e a cultura não se manifesta senão pela linguagem.
Não obstante a distinção entre fatos brutos e fatos insti-
tucionais seja fundamental, é inevitável o fato de sempre ser
necessária uma linguagem para resgatá-los.
Mas a linguagem não exerce função apenas descritiva
de fatos. Serve também para realizar ações. Com essa inven-
ção, a escola de Oxford trouxe à baila, com toda força, o as-
pecto pragmático da linguagem, ou seja, o estudo da relação
entre os signos e os seus usuários. Na tripartição ato de fala em
locucionário, ilocucionário, perlocucionário e nos critérios para
felicidade, infelicidade fulguram os enigmas para a compreensão
da teoria dos atos de fala.
De maneira complementar, a análise do discurso, estam-
pada na investigação da enunciação, demonstra ser inviável o
estudo isolado do ato de fala. As categorias da enunciação si-
52
REVOGAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

tuam o ato de fala no espaço e no tempo.


Eis o motivo pelo qual o problema do tempo encontra pos-
síveis soluções nas categorias da enunciação. O tempo linguístico,
como complementar ao tempo físico e ao tempo crônico, é orga-
nizado em função do discurso. Então, estabelece-se dois tempos:
o momento da enunciação e o momento do acontecimento. Este
estampado no enunciado-enunciado, aquele na enunciação-
-enunciada. A partir desses eixos, giram todos os modos temporais.
Aliado a tudo isso está o rigor da Lógica Simbólica com
sua poderosa analítica a evidenciar o plano sintático da lingua-
gem, ou seja, a relação entre os símbolos. Seja no cálculo pro-
posicional, seja no cálculo de classes, a Lógica fornecerá ele-
mentos fundamentais para a realização do cálculo normativo.
De posse de todo esse instrumental proporcionado pela
análise da linguagem em seus diversos rincões, passar-se-á a
correlacionar cada um desses temas com o Direito.

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