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Artigo Original

ANTÉNOR FIRMIN, JEAN PRICE-MARS,


JACQUES ROUMAIN: Antropólogos haitianos
repovoando as narrativas históricas da Antropologia
Pâmela Marconatto Marques (1)

ORCID:  https://orcid.org/0000-0003-0630-9546

Marília Flôor Kosby (2)

ORCID:  https://orcid.org/0000-0003-1037-5490
(1) Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre – RS, Brasil. E-mail: pamela.marconatto@ufrgs.br

(2) Universidade Federal de Roraima (UFRR), Boa vista – RR, Brasil. E-mail: floorkosby@gmail.com

DOI: 10.1590/3510404/2020

Introdução do próprio arcabouço teórico-metodológico canônico


eurocentrado, vigente até então nas ciências sociais
Para o antropólogo haitiano Michel-Rolph‑Trouillot e humanas.1
(2003), a antropologia oferece acesso a visões alternativas Michel-Rolph Trouillot é, sem dúvida, um dos
ao padrão de humanidade que coloca o crescimento mais importantes e reconhecidos intelectuais haitianos.
econômico como valor supremo. Assim, ele nos Antropólogo de formação e atuação profissional,
responsabiliza pela assunção de que essa humanidade também produziu textos historiográficos, acadêmicos
a partir da qual a própria antropologia conta sua e não acadêmicos sobre o Haiti, além de composições
história “não é a mais respeitosa do planeta, nem a mais musicais e peças de teatro. Faleceu em 2012, com
precisa, nem a mais prática, tampouco a mais bonita, 62 anos, no Brooklyn/Nova York, onde vivia desde
nem mesmo a mais otimista” (Trouillot, 2003, p.9). 1968, “deixando um legado que impressiona pela
A assertiva de Trouillot bem poderia ser tomada como sofisticação intelectual, rigor teórico e inovação
um exemplo de pensamento sugerido pelo chamado disciplinar” (Bonilla, 2013).
“giro decolonial” – movimento de intelectuais Pouco depois de completar seu bacharelado
latino‑americanos constituído no final da década de em filosofia, em 1968, Trouillot deixou o Haiti,
1990, a partir do Grupo Modernidade/Colonialidade –, como boa parte dos intelectuais de sua geração,
que assume uma crítica de natureza transdisciplinar fugindo da repressão política do regime Duvalier.
Formou-se em história e cultura do Caribe,
Artigo recebido em: 25/01/2019 em 1978, no Brooklyn College, de Nova York,
Aprovado em: 11/12/2019 cidade onde também participava do florescente
RBCS VOL. 35 N° 103 /2020: e3510404
2 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 35 N° 103

movimento político e cultural da diáspora haitiana, um potente criador de contraposições aos modelos
fundando, junto a outros ativistas, o grupo musical teóricos consolidados pela antropologia. Nosso
e teatral Tanbou Libète (Tambores da Liberdade). objetivo, com esse artigo, é propor uma radicalização
Em 1985, Trouillot finalizou seu doutorado junto de tal perspectiva, enfatizando como a antropologia
ao Programa de Antropologia da Universidade Johns moderna teve, desde sua constituição, forte presença
Hopkins. Conduziu, desde aí, uma prolífica carreira do pensamento caribenho.
acadêmica entre as Universidades de Duke, Johns Experimentando o giro sutil que é deixar de pensá-
Hopkins e Chicago. Em sua tese de doutorado, la como poderoso artefato colonial em sua dimensão
intitulada “Peasants and Capital: Dominica in the universalista, surge a possibilidade de conceber a
World Economy”, Trouillot deslocou seu olhar do
existência de uma antropologia chamada canônica,
Haiti para o restante do Caribe, trabalhando, mais
ocidental, eurocentrada, como esforço do pensamento
especificamente, com os produtores de banana da
das metrópoles para estender sua condição provinciana,
República Dominicana. Ele não apenas teria sentido
aferrando-se a pressupostos modernos.
que era importante desafiar a suposição em voga de
que antropólogos vindos de contextos minoritários Como o presente artigo dará a ver adiante, a
só poderiam servir de antropólogos “nativos”, mas Europa foi constantemente instada por antropólogos
também enfatizado o valor intelectual de afastar‑se e antropólogas caribenhas a se desprovincializar,
da própria sociedade, “particularmente para os mas não foi capaz de suportar entrar, de modo
estudiosos do Caribe que estavam mergulhados em intensivo, em relação com a criação vertiginosa e
longas tradições de insularidade e reivindicavam potente em em que a antropologia parecia estar se
excepcionalismo” (Bonilla, 2012, p. 84). Trouillot transformando.3 A presença do antropólogo Anténor
teria afirmado, em inúmeras ocasiões, que seus Firmin (1850 – 1911) nas reuniões da Sociedade de
mais potentes insights sobre o campesinato haitiano Antropologia de Paris, combatendo, já na brotação,
emergiram de seu trabalho na República Dominicana. o racismo científico de Gobineau, em meados do
Começamos este artigo com a observação século XIX, nos leva a suspeitar de uma tal matriz
contundente de Trouillot quanto à potencialidade da de pensamento que tenha sido capaz de pensar, por
antropologia de buscar originalidade e singularidade exemplo, em uma antropologia sem o Caribe. Se a
duvidando, desestabilizando os próprios pilares onde invisibilidade e o silenciamento de autores como
se sustentam seus fundamentos mais elementares – a Firmin, em prol da consolidação de um cânone
forma como conta sua história, por exemplo. Partimos antropológico europeu, é suficiente para aceitarmos
de Trouillot, portanto, para encontrar em seus sua posição como intelectual periférico, estamos
predecessores a concepção de uma antropologia que, levando muito a sério os ideais de pureza e separação
ao contrário da versão eurocentrada da história da
impostos pelas ideologias modernas (Latour, 2009).
disciplina, não se instituiu apenas na construção de
Nossa proposta, nesse artigo, não é “descentralizar”
conhecimento sobre “o outro” enquanto “o primitivo”,
o percurso de desenvolvimento da antropologia
“o exótico”, o “colaborador”.
moderna. Trata-se, mais do que isso, de abandonar
Mello e Pires (2018), no texto que antecede
a tradução para o português de The Caribbean a noção de “centro”, assumindo que este pode nunca
Region: an open frontier in anthropological theory ter existido como irradiador de uma certa disciplina,
(Trouillot, 1992), publicada na revista Afro-Ásia, (n. legitimada pelo ocidente e cercada de “antropologias
58), chamam a atenção para as contribuições que periféricas” ou “antropologias dissidentes”. Aqui, nos
a antropologia brasileira pode receber ao conhecer valemos de uma perspectiva rizomática e anticolonial
melhor os efeitos do frutífero encontro entre o do crescimento e dos rumos, da antropologia, atenta
Caribe e a disciplina antropológica.2 Analisam aí de aos processos criativos que constituíram zonas de
que modo particularidades históricas e mudanças maior intensidade para a criação e atualização deste
geopolíticas ao longo do século XX fazem do Caribe domínio epistemológico.
ANTÉNOR FIRMIN, JEAN PRICE-MARS, JACQUES ROUMAIN 3

Anténor Firmin: o intelectual haitiano e os virtudes consideradas as mais elevadas do homem:


princípios de uma antropologia cultural honra, amor à pátria e amor à liberdade (Firmin, 1885).
Para este intelectual negro, a afirmação científica da
Assim que detalhes da Revolução Haitiana inferioridade da raça negra – necessária para justificar a
passaram a circular na França do final do século XVIII, sua escravização pelas nações “civilizadas” – tem entre
mesmo as elites ditas progressistas, compostas em seus argumentos principais a suposta incapacidade
geral por abolicionistas brancos, começaram a voltar moral e intelectual das populações de ascendência
atrás em seu discurso antirracista e antiescravagista. africana. As conclusões são apresentadas na sequência
Em The french encouter with africans: 1530-1880, o de estudos de crânio e face de homens brancos,
finlandês William B. Cohen aponta que homens negros e primatas, que destacam a suposta
proximidade dos dois últimos (Gobineau, 1937).
As ideologias racistas desse gênero – que produziram
O levante de Saint Domingue foi decisivo para
descendentes científicos como o eugenismo, a exploração
o fortalecimento da negrofobia [na França].
colonial e toda espécie de segregação e de servidão
Nenhum dos abolicionistas aprovou a revolta.
(Firmin, 1885, p. 187) – constituirão o pano de fundo
Alguns, inclusive, tomaram-na como prova de que
da emergência da Sociedade de Antropologia de Paris
haviam compreendido mal a natureza dos negros
(Firmin 1985, p. 189). Fundada em 1859, ela tinha
e, consequentemente, passaram a reavaliá‑los.4
a intenção de consolidar a legitimidade científica da
(Cohen, 2003, p. 182)
disciplina antropológica, distanciando-se de qualquer
tradição moral, por considerá-la afeita à ética religiosa,
Segundo o autor, filho de judeus que, à época do e endossando o método cartesiano. Segundo Firmin
nazismo, refugiaram-se em solo etíope, a partir desse (1885), a antropologia francesa, até a fundação da
momento passava a não ser de bom tom proclamar a referida sociedade científica e o aparecimento do
nobreza da raça negra e a barbárie da escravidão nas Ensaio, de Gobineau, malgrado o zelo e proselitismo
rodas de intelectuais, e mesmo nos circuitos artísticos de Broca, era ainda negligenciada. Ironicamente, o
considerados vanguardistas em Paris, onde agora se autor haitiano afirma que os antropólogos da Sociedade
fortalecia o entendimento de que “os homens não de Antropologia de Paris teriam encontrado nas
nasceram para correntes, mas os revoltosos de Saint conclusões “fantasiosas e paradoxais” de Gobineau
Domingue provaram que elas eram necessárias” uma fonte de iluminação tão viva que as seguiram
(Cohen, 2003, p. 183). como às palavras do “evangelho”. Firmin (1885,
Nesse cenário, Arthur de Gobineau – até aquele p. 190) dirá ainda que a doutrina “antifilosófica e
momento, nas palavras de Cohen, “diplomata de pseudocientífica” da desigualdade das raças repousa
pouco renome e romancista medíocre” –, ao publicar apenas sobre a ideia de exploração do homem pelo
Essai sur l’inégalité des races humaines, refletirá, homem, e que a recepção do Ensaio, de Gobineau,
entretanto, “fielmente as ideias sobre a raça de seus por seus colegas da Sociedade de Antropologia de
antecessores e contemporâneos” (Cohen, 2003, Paris se deu de forma a promover um “revestimento”
p. 217). O Ensaio em dois tomos, publicado em Paris, dessa doutrina com caracteres cientificistas. Seriam
em 1883 e 1885, se tornaria sua publicação de maior tais caracteres a operacionalização de experimentos de
alcance e repercussão.5 Ao afirmar os pressupostos ordem fisiológica e anatômica, com fins de confirmar
do racismo científico, nutrido dos determinismos a inferioridade de negros e amarelos em relação a
biológicos da escola antropológica do professor Pierre brancos, bem como a hierarquização que tem no
Paul Broca (França, 1824-1880), a obra apregoa – topo os caucasianos e na base os etíopes. Para Firmin,
romanticamente, segundo Cohen –, a derrocada das não há como um tratado de antropologia, com bases
raças puras e, portanto, a iminência da degeneração.6 científicas, comprovar a tese da desigualdade das raças
Segundo o advogado e diplomata haitiano Anténor (Firmin 1885, p. 189).
Firmin, à raça ariana – única considerada pura por Apesar da grande repercussão alcançada pelas
teorias racistas – atribui-se singular manifestação das ideologias desigualitárias nesse contexto, em um
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momento em que o continente africano era repartido À insistência em associar meio ambiente, índices
entre as potências europeias, a resposta aguda e cefálicos e “superioridade racial”, Louis Laurant Gabriel
sistemática produzida ao Ensaio de Gobineau – e de Mortillet opõe um argumento contrário, segundo
às premissas que o embasaram – desde o Haiti o qual mesmo o termo “ariano” (designativo da raça
independente foi francamente silenciada. Ainda está humana superior, segundo Gobineau) é muito vago,
por ser devidamente estudada a obra do intelectual em termos raciais, já que não se conheciam os índices
negro e advogado e diplomata haitiano. Àquela cefálicos dos grupos classificados por raça. Segundo
época, Firmin já havia ajudado a fundar o primeiro Gabriel de Mortillet, os crânios eram diversos na
estabelecimento público de ensino superior no país, a França, como também na Espanha – ou seja, a premissa
Escola de Direito. Sob sua coordenação, a instituição de que as características cefálicas discriminariam as
formou durante muito tempo a grande maioria dos estirpes mais “proeminentes” e “promissoras” não se
ocupantes de cargos públicos no país. Ele já gozava, sustentaria, nem para a afirmação de superioridade da
portanto, de reconhecimento por sua contribuição raça ariana, nem para avalizar a suposta inferioridade
ao ensino jurídico quando foi convidado a tornar-se das populações negras.
membro da Sociedade de Antropologia de Paris, por É neste ponto da discussão que Anténor Firmin
seus aportes às discussões realizadas naquele âmbito introduz sua perspectiva, reafirmando a necessidade
e notável domínio do método positivista.7 de esclarecer a definição de “meio” que será usada
Indignado com a repercussão das teorias para verificar as possibilidades de desenvolvimento
desigualitárias entre seus colegas, Firmin interpelou-os de certas populações. Para o autor, as pesquisas
pontualmente durante os encontros da Sociedade, em antropológicas não devem negligenciar a influência
Paris. Segundo as atas das reuniões desta instituição do meio enquanto conjunto de condições sociais
(France, 1892), em 21 de abril de 1892, durante a para o desenvolvimento intelectual. Ao dizer que os
exposição do estudo La race Ibère, de Joseph Lajard, negros na África têm menos condições ambientais
que apresentava os resultados de medições de crânios de desenvolver suas potencialidades intelectuais do
provenientes das Ilhas Canárias e de Açores, o médico que os negros que vivem na Ásia, por exemplo – e
e antropólogo francês Félix Regnault salientou a que essas diferenças do meio não estão diretamente
necessidade de a antropologia dar à “influência do relacionadas a quaisquer diferenças cefálicas –, Firmin
meio” sobre a mutabilidade dos caracteres orgânicos a traz o debate para outra arena, qual seja, aquela em
mesma importância que vinha tendo havia muito na que os argumentos pautados por determinismos
biologia. Léonce Manouvrier concorda com Regnault, biológicos estão em franca obsolescência. Ousadia que
argumentando que a influência do meio se daria não passou despercebida por seus colegas simpáticos
tanto pela “modificação” – incidindo hipoteticamente às ideias de Gobineau (Firmin, 1885, p. 189).
sobre a variação dos índices cefálicos – quanto pela Ao desafiar os pressupostos da determinação
“seleção”, advinda da exposição de determinados grupos biológica das superioridades raciais, ideia que
(braquicéfalos ou dolicocéfalos) a condições externas permeava a antropologia física, de Pierre Paul
favoráveis ou desfavoráveis, como guerras, misérias, Broca e outros, Firmin foi confrontado por Arthur
doenças. Georges Hervé, por sua vez, mostra-se de Bordier, que perguntou ao pensador haitiano se sua
acordo com a proposta de a antropologia atentar habilidade intelectual e participação na Sociedade
para a importância da atuação do meio externo sobre de Antropologia de Paris não seriam resultado de
as variações, nas proporções populacionais, de um uma ascendência branca que ele pudesse ter (Firmin,
índice cefálico ou outro; no entanto, chama a atenção 1885, p. 329). Firmin responde que até poderia
para o fato de Regnault poder estar confundindo a haver “sangue” branco em sua família, mas que não
noção de “meio” com a de hereditariedade, já que não acreditava ser essa a causa de sua inteligência. Para
seriam exatamente as medidas cefálicas que sofreriam Bordier, não é impossível que o sangue branco tenha
alterações, mas os contingentes populacionais mais modificado o crânio do haitiano, sendo assim a causa
capazes de se perpetuar em condições adversas. de seu desenvolvimento intelectual. E as insistências
ANTÉNOR FIRMIN, JEAN PRICE-MARS, JACQUES ROUMAIN 5

foram mais longe: Manouvrier sugeriu que seria É natural ver compor uma mesma associação e
interessante Firmin submeter-se às mensurações dotá-la de um mesmo título homens que a própria
cefálicas e convidar seus amigos negros de Paris a ciência – de que supõem-se representantes – parece
passar pelos mesmos procedimentos. A braquicefalia declarar desiguais? (Firmin, 1885, p. 8)
de Firmin – supostamente advinda de sua ascendência
negra – parecia duvidosa. Provavelmente, o intelectual Ao inventariar a contribuição das comunidades
negro haitiano tinha o crânio dolicocéfalo, o que negras à história da humanidade, Firmin antecipa
explicaria sua proeminência intelectual. Cheikh Anta Diop, reconhecido historiador africano,
Firmin afirmava que estava realmente interessado autor de “Nations negres et culture” (1955),
em debater com aqueles que “dividem a espécie humana reivindicando o “enegrecimento do Egito” que este
em raças superiores e inferiores”, mas temia ter seu seja considerado como legado negro à humanidade,
pedido rejeitado. Em suas palavras, “[o] bom senso apontando a importância das civilizações etíopes
me disse que eu estava certo em hesitar. Foi então na formação da tradição greco-romana e, por fim,
que eu concebi a ideia de escrever este livro” (Firmin, analisando a Revolução Haitiana como prova concreta
1885., p. LIV). É assim que em 1885, ano seguinte ao de que negros e brancos compartilhariam os atributos
lançamento da segunda edição da obra de Gobineau, – negados por Gobineau aos primeiros – de honra,
Firmin publica em Paris sua resposta sistemática a desejo de liberdade e insubordinação à escravidão.
ele, intitulada De l’égalité des races humaines. Dá-se, Decreta, por fim, que:
então, segundo Fluehr-Lobban (2005), um passo
importantíssimo para a consolidação do que mais
A toda essa falange arrogante que proclama que
tarde viria a ser chamado de antropologia cultural.
o homem negro está destinado a servir de estribo
A dedicatória do tomo de seiscentas e cinquenta
ao poder do homem branco, a essa antropologia
páginas já anuncia seu propósito de reabilitação
mentirosa, eu terei o direito de dizer: Não, não és
étnico-racial:
uma ciência! [...] O egoísmo e a imoralidade da
raça branca será ainda para ela, em sua posteridade,
Que este livro possa contribuir para acelerar o motivo de vergonha e arrependimento. (Firmin,
movimento de regeneração que realiza minha 1885, p. 59)
raça sob o céu azul celeste das Antilhas! Que ele
possa inspirar em todas as crianças de raça negra,
O modo como Firmin sistematiza a resposta
distribuídas pelo imenso orbe da terra, o amor ao
a Gobineau passa por um profundo e minucioso
progresso, à justiça e à liberdade! Ao dedicá-lo ao
estado da arte que, por si só, poderia ser considerada
Haiti, é a todas elas que me dirijo, as deserdadas do
significativa contribuição à constituição disciplinar da
presente e gigantes do futuro! (Firmin, 1885, p. 5)
antropologia, como afirma Omar Ribeiro Thomaz.
O antropólogo da Unicamp, com vasto trabalho
No prefácio, o autor deixa clara a indignação que de campo realizado no Haiti, afirma que “Firmin,
despertam nele as páginas que lhe chegam às mãos antropólogo haitiano, deveria ser reivindicado como
em sua estada em Paris, evidenciando a popularidade um dos pais da antropologia moderna, mas sua obra
das ideias propagadas por Gobineau: permaneceu desconhecida fora do seu país” (Thomaz,
2011, p. 280). Além da elaboração de críticas aos
Não pude dissimular. Meu espírito ficou em estado determinismos biológicos em destaque na antropologia
de choque quando li diversas obras nas quais se francesa do século XIX – estruturada em uma nova
afirmava dogmaticamente a desigualdade das concepção dos princípios, fundamentos e objetivos da
raças humanas e a inferioridade nata dos negros. ciência antropológica –, Firmin também demonstra
Uma vez aceito como membro na Sociedade desconfiança quanto aos métodos comparativos de
Antropológica de Paris, a discussão não deveria perspectiva evolucionista, quando se pergunta se não
parecer-me ainda mais incompreensível e ilógica? seriam as comparações históricas entre diferentes povos
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uma maneira de justificar abusos com precedência Em pesquisa realizada nos arquivos da Casa
histórica e práticas infelizes de alguns destes (Firmin, de Las Americas, descobrimos que, em 2011, a
1885, p. 15). instituição organizou um grande evento em Havana
Ainda que o desconhecimento da obra de em homenagem ao centenário da morte de Firmin.
Firmin seja a regra tristemente constatada, o filósofo Intelectuais cubanos, além do embaixador haitiano
camaronense Nkolo Foé, vice-presidente do Conselho em Cuba, foram convidados a refletir sobre sua obra
para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências intelectual e política. Nesse mesmo ano, Editorial
Sociais em África (CODESRIA), faz questão de marcar Ciencias Sociales publicou, em Cuba, a tradução em
seu conhecimento do legado do intelectual haitiano: espanhol da obra de Firmin, ampliando sua circulação
entre o público hispanohablante.
[...] o objetivo de homens como Gobineau e outros O engajamento de Firmin no primeiro Congresso
teóricos da antropologia física era acompanhar Pan-Africano, organizado pelo trinidadiano Henry
ideologicamente o movimento de expansão colonial. Sylvester Williams, e sediado em Londres, informa-nos
É por isso que essa orientação da antropologia não que também houve interlocução sua com intelectuais
escapa à vigilância epistemológica do militante de língua inglesa, como o sociólogo estadunidense
haitiano pelos direitos dos negros, Joseph Anténor W.E.B. Du Bois, presente no evento, e também que
Firmin. Conhecemos sua virulenta resposta contra ele influenciou fortemente as primeiras discussões
a antropologia de Gobineau. (Foé, 2013, p. 191) pan-africanistas (Fluehr-Lobban, 2001). Ainda
assim, apenas em 2000 a obra de Firmin receberia
sua primeira tradução para o inglês. Sua publicação
Em estada em Havana (Cuba), em meados de
deu início a um movimento de desencobrimento de
maio de 2017, em evento realizado pela Casa de
seu legado, nos Estados Unidos, que repercutiu em
Las Americas, pudemos constatar que tampouco
inúmeros estudos e eventos acadêmicos sobre o tema.8
intelectuais e ativistas cubanos desconhecem a obra
de Firmin. Naquele momento, o livro Joseph Anténor Destaca-se, nesse sentido, o Congresso Internacional
Firmin: lazos com Cuba, escrito pela diplomata cubana realizado – em 2001 – pelo departamento de
Diana Cantón Otaño, acabava de ser lançado. Nele, Antropologia de Rhode Island College (Estados
a autora não somente apresenta a obra de Firmin, Unidos), intitulado Rediscovering Anténor Firmin,
mas também menciona a forte relação de amizade Pioneer of Anthropology and Pan-Africanism
e admiração mútua que ele estabeleceu com José [O Redescobrimento de Anténor Firmin, pioneiro
Martí, herói da independência cubana. Martí teria da antropologia e do pan-africanismo]. Em artigo
estado em Cabo Haitiano, onde vivia Firmin, para subsequente, Anténor Firmin: Haitian Pioneer
conhecê‑lo e ser aconselhado por ele, por recomendação of Anthropology, publicado pela revista American
do revolucionário porto-riquenho e amigo comum, Anthropologist, Carolyn Fluehr-Lobban, organizadora
Ramón Betances. Nessa ocasião, recordada por Martí do Congresso, reconhece:
como o momento em que conheceu “um haitiano
extraordinário” (Otaño, 2016), os dois mostraram‑se [Firmin] desenvolveu uma visão crítica das
de acordo com relação a temas essenciais para ambos: classificações raciais e da raça que prenunciava a
I) o desejo de união das nações antilhanas; II) a noção noção de construção social de raça, que somente
de que esse plano deveria integrar um movimento maior, viria muito tempo depois. No livro, ele também
de um continente americano livre e independente; articulava precocemente ideias pan-africanistas,
III) o ideário antirracista que deveria sustentar esses bem como um quadro analítico para o que se
projetos. Otaño ressalta o impacto desse encontro tornariam os estudos pós-coloniais. De l’égalité
para Martí: entre os pertences recolhidos junto a seu des races humaines é um texto que se situa
corpo, no campo de batalha, estava um caderno de historicamente entre os fundadores da antropologia
anotações com dezenas de citações do livro De l’égalité como disciplina, e ainda assim é desconhecido no
des races humaines de Firmin. campo. É um trabalho pioneiro em antropologia
ANTÉNOR FIRMIN, JEAN PRICE-MARS, JACQUES ROUMAIN 7

crítica que aguarda reconhecimento 115 anos A entrada estadunidense deu-se sob a alegação de
depois de ter sido publicado pela primeira vez. que o Haiti – que vinha sendo sacudido por inúmeras
(Fluehr-Lobban, 2001, p. 449) revoltas camponesas contra a alta taxação tributária,
a pobreza e exploração e pela queda em sequência
Em 2004, a editora L´Harmattan finalmente de diversos presidentes – era ambiente inseguro,
decidiu reeditar o livro de Firmin na França, como inclusive (ou talvez, sobretudo) para investimentos
reparação ao silêncio a que foi relegado, denunciado estrangeiros. Logo, com a anuência, e até apoio de
pela historiadora francesa María Poumier: suas próprias elites, o país tornou-se protetorado dos
Estados Unidos.
Tão lúcido, premonitório e incômodo para Uma nova constituição haitiana foi promulgada,
o mundo branco foi Anténor Firmin, que dando ao governo estadunidense a possibilidade
seu trabalho foi imediatamente sepultado no de, “dentro da legalidade”, promover a dissolução
esquecimento pelos círculos culturais da França. do exército nacional e a instauração de outro, à
Quando Firmin morreu, membro pleno da semelhança dos marines estadunidenses; promover a
Sociedade de Antropologia de Paris, em 1911, equiparação da moeda haitiana ao dólar; promover a
o Boletim não lhe dedicou sequer um obituário. realização, em nome do país, de empréstimos a juros
(Poumier, 2006, p. 1) exorbitantes pagos para investidores americanos;
promover a anulação da interdição da posse de
terras por estrangeiros (estabelecida no século XIX);
No Haiti, entretanto, Firmin, sua contribuição
acelerar a expropriação das pequenas propriedades
científica e engajamento político sempre contaram com
e o cerceamento à liberdade de expressão (Oyama,
ampla notoriedade, influenciando profundamente a
2009, p. 93).
construção da universidade pública, especificamente as
No outro polo, entretanto, da população camponesa
carreiras de direito e etnologia, pelo impacto de suas
duramente reprimida – e apontada como causa da
ideias sobre um de seus fundadores, o antropólogo
Jean Price-Mars. permanência americana pela instabilidade que trazia
ao país –, surgiriam os movimentos de revolta contra
a ocupação, que perduraram por anos, até a captura e
Jean Price-Mars e a etnografia do cotidiano: o morte de sua maior liderança, Charlemagne Peralte.
Haiti no espelho As lições deixadas pela revolta dos camponeses,
e mais, pela conduta dos norte-americanos, que
Com a Europa imersa na Primeira Guerra Mundial, igualavam negros e mulatos para exercer seus desmandos,
o início do século XX foi marcado pela investida parecem ter conduzido a uma tomada de consciência
norte-americana sobre o Caribe, numa política que inspirou uma vanguarda artística e cultural no
anunciada pelo então presidente Theodor Roosevelt Haiti, a propor a “desalienação” em relação a tudo
como Big Stick (“grande porrete”), por meio da qual que era imposto de fora, e um mergulho na tradição
os Estados Unidos da América deveriam assumir o popular haitiana em sua dimensão cotidiana, seguindo
papel de “polícia internacional no Ocidente” e, ao as referências culturais dos próprios haitianos.
mesmo tempo, dar uma “injeção de economia” nos Essa geração, identificada como “indigenista”,
países da América Latina. Sob esse corolário, depois ficaria marcada pela produção de duas contribuições
de Panamá, Cuba e Honduras, o Haiti – que até o fundadoras: a revista Indigène, de 1927, fundada por
ano da morte de Anténor Firmin (1911) teve nele o Jacques Roumain, e a coletânea de ensaios Ainsi parla
mais importante baluarte da resistência à intervenção l´oncle [Assim fala o Tio], publicada em 1928 por
estadunidense – entrou na lista de países atingidos pelo Jean Price-Mars (1876-1969). Roumain e Price‑Mars
“porrete” norte-americano, com uma ocupação que, se tornariam os principais nomes associados ao
iniciada em 1916, prolongou-se até 1934 (Meleance, indigenisme, não somente por ensaiar, em textos
2006, p. 67-69). acadêmicos e literários, os contornos de uma identidade
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haitiana, mas por seu ativismo político que, a um só com ainda mais vigor, a vida vivida no Haiti e
tempo, demandava o fim da intervenção estrangeira sua potência do que a personalidade de grandes
e reclamava autonomia, liberdade e valorização da homens da história nacional em seus feitos épicos,
potência e beleza da cultura popular haitiana. que até então assumiam a centralidade da narrativa
Ainsi parla l´Oncle, obra magistral de Price-Mars, contra‑hegemônica sobre o Haiti (como era o caso
inovou não somente por seu conteúdo – ao defender da abordagem de Anténor Firmin):
a tradição oral, o créole e o vodu haitianos, até então
associados a um país que devia ser invisibilizado por Melhor do que as narrativas das grandes batalhas,
sua incivilidade –, mas também na forma, já que melhor do que a relação dos grandes fatos da
apresenta estilo ensaístico diferenciado, com um
história oficial, sempre constrangida a expressar
narrador que utiliza estratégias da narrativa oral, do
apenas uma parte da inapreensível Verdade. Melhor
contador de histórias:
do que as poses teatrais dos homens de Estado
em atitudes de comando, melhor do que as leis
O autor supera a prosa empolada de seus antecessores, que não podem ser senão empréstimos europeus
e dialoga diretamente com o leitor, apresentando- mal adaptados a nosso estado social em que os
nos ao longo de suas páginas os personagens que detentores passageiros do poder condensam seus
compõem o dia a dia daqueles que estão longe ódios, seus preconceitos, seus sonhos ou suas
dos centros urbanos haitianos, os camponeses, esperanças. Melhor do que todas estas coisas que
a família rural, tão importantes para a reflexão são com maior frequência ornamentos acidentais
antropológica caribenha. (Thomaz, 2011) impostos pelas contingências e adotados somente
por uma parte da nação – os contos, as canções,
Neste sentido, Price-Mars teria pretendido “acordar as lendas, os provérbios, as crenças são obras ou
a sociedade haitiana para ver-se a si própria no espelho” produtos que brotaram, num dado momento, de
(1928, p. 4), sem buscar refúgio nos valores franceses um pensamento genial, coletivo, fiel intérprete de
que sempre a massacraram, seja desvalorizando a um sentimento comum, que se tornaram caros
herança africana que compunha sua cultura, seja a cada um e transformados, enfim, em criações
ditando um ethos importado jamais alcançável. Em seu originais pelo processo obscuro do subconsciente.
capítulo inicial, dedicado “ao folclore e à literatura”, (Price-Mars, 1928, p. 7)
Price-Mars enfrenta a polêmica sobre a existência de
uma “literatura haitiana”. Ao mesmo tempo em que
Considera-se impressionante o impacto dessa obra:
responde afirmativamente à questão, dirá que essa
literatura deve muito ao que se conhece por “folclore
haitiano” – e não à alta cultura francesa –, entendido [...] já não se tratava de recuperar o feito dos grandes
como repositório “em que se condensam há séculos homens, mas de revelar, nos ensinamentos do tio – o
os caminhos dos nossos desejos, em que se elaboram camponês haitiano – o universalismo encontrado
os elementos de nossa sensibilidade, em que se edifica em todas as culturas humanas. Nos detalhes das
a trama de nosso caráter como povo” (Price-Mars, travessuras de personagens populares como Bouki
1928, p. 6). O caráter francamente popular desse e Ti Malice, sempre iniciadas com o inescapável
repositório é destacado com especial vigor; seriam “Krik! Krak!” (“Era uma vez...”); nos provérbios
“contos, lendas, adivinhações, canções, provérbios, e na sabedoria expressos no kreyòl – língua
crenças” que “florescem com exuberância, generosidade compartilhada por todos os haitianos –, nos
e uma candura extraordinárias. Magníficas matérias mistérios do vudu, não teríamos o atraso ou o
humanas das quais se formaram o coração caloroso, primitivismo, mas a revelação da capacidade
a consciência sem bordas, a alma coletiva do povo criativa de homens e mulheres e, sobretudo, a
haitiano!” (Price-Mars, 1928, p. 6). Price‑Mars originalidade da obra de um povo. (Thomaz,
reivindicará para elas a capacidade de expressar, 2011, grifos nossos)
ANTÉNOR FIRMIN, JEAN PRICE-MARS, JACQUES ROUMAIN 9

Lembramos que a publicação de Price-Mars Nossa única chance de sermos nós mesmos é não
ocorreu em plena ocupação norte-americana, em meio repudiando nenhuma parte de nossa herança
a campanhas “antissupersticiosas” que lembravam a ancestral. E, quanto a essa herança, oito décimos
ação do Vaticano, em 1860, para erradicar o vodu dela são um presente de África. Além disso,
como culto satânico (Hurbon, 1998, p. 80). Nessa neste pequeno planeta, que é apenas um ponto
época, as imagens exotizantes do vodu tiveram seu infinitesimal no espaço, os homens se misturaram
ápice, quando começaram a aparecer em filmes há milênios até o ponto de não existir mais um
hollywoodianos, cuja repercussão nos parece essencial único sábio autêntico, nem mesmo nos Estados
para a compreensão que ainda se tem do país. Mais Unidos da América, que apoie seriamente a teoria
das raças puras. E se eu aceitar a posição científica
uma vez – mas agora com a força disseminadora do
de Sir Harry Johnston, seja quão negro for, tão
cinema estadunidense –, o vodu foi destituído de sua
negro quanto ele pode ser, no centro da África,
potência enquanto resistência política e cultural para
que não tenha sangue caucasoide em suas veias, e
ser compreendido como culto diabólico de uma nação
talvez não haja um único branco no Reino Unido,
de supersticiosos. Compreende-se a importância do na França, na Espanha e outros lugares, entre os
aporte de Price-Mars como elemento disparador de mais altivos, que não leve gotas de sangue negro
uma nova compreensão do Haiti, convertendo o que ou amarelo nas veias. Então é necessário dizer
era motivo de vergonha em exemplo de criatividade, que é verdade, como afirma o poeta, que “todos
invenção e originalidade. os homens são homens”. (Price-Mars, 1967, p. 6)
É no mínimo irônico que, um século mais tarde,
a academia estadunidense renda tributos ao Haiti, O interesse pela ccontribuição de ambos, Firmin
a ponto da antropóloga Carolyn Fluehr-Lobban e Price-Mars, levou Carolyn Fluehr-Lobban – que
afirmar a “extraordinária importância” de Firmin menciona ter descoberto a antropologia haitiana
e Price-Mars (por que não dizer “da antropologia a partir da indicação de um aluno haitiano que
haitiana”?) para o desenvolvimento da antropologia frequentava seu curso de história da antropologia –
nos Estados Unidos: a realizar uma importante pesquisa nos arquivos de
Melville Herskovits, renomado antropólogo americano
Podemos desenhar uma linha de Anténor Firmin conhecido por sua contribuição aos estudos africanos
para Jean Price-Mars; de Jean Price-Mars a Melville na América e à antropologia afro-americana, e,
Herskovits; de Melville Herskovits a Franz Boas; especificamente, por um dos maiores clássicos sobre
e, portanto, de Anténor Firmin ao mainstream a vida de uma comunidade rural haitiana, Life in a
Haitian valley (1937) [Vida em um Vale Haitiano].
da antropologia americana. (Fluehr‑Lobban,
Fluehr-Lobban descobriu uma prolífica troca de
2008, p. 15)
cartas entre Herskovits e Jean Price-Mars:

De fato, considerado um profundo conhecedor


A correspondência entre Melville Herskovits e Jean
da vida e obra de Anténor Firmin, tendo inclusive
Price-Mars, de 1928 a 1955, revela uma relação
escrito uma biografia sua lançada postumamente, profissional calorosa e afetuosa entre o já idoso
Price-Mars coincidiu com ele em sua abordagem Price-Mars e o jovem Herskovits. Ela começou
do conceito de raça como constructo social e, no quando o antropólogo americano, interessado
reconhecimento da mestiçagem não como atributo em estudar os negros do Caribe e da América
exclusivo das populações do Novo Mundo, mas da do Sul, depois de seus estudos sobre os negros
humanidade como um todo. Também coincidiram americanos, planejava um período de pesquisa
no intuito de reabilitar a herança africana como no Haiti. Price-Mars atendeu generosamente aos
componente da matriz cultural haitiana. Em sua pedidos de Herskovits, respondendo suas perguntas
publicação derradeira, em 1967, Price-Mars afirma: sobre a etnologia haitiana e até encorajando o
10 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 35 N° 103

jovem estudioso americano. Herskovits realizou complexa, impossível de ser abarcada ou explicada por
vários meses de trabalho de campo no Haiti em grandes teorias universalistas, como na física. Para ele,
1934, graças à ativa organização de Price-Mars da a utilização ideológica das formas de pensamento ditas
visita e hospedagem de Herskovits e sua esposa, universais favorecia a autoproclamação de superioridade
selecionando Mirebalais como melhor contexto de culturas particulares. Isso acontecia nos testes
para a realização da pesquisa de campo, auxiliando de inteligência, muito comuns nas universidades
nas apresentações e oferecendo seu conselho, a estadunidenses daquela época, em que preceitos racistas
perspectiva de um etnologista sênior, além de atribuíam a fatores biológicos os determinantes para
recursos acadêmicos. Isso resultou na publicação marcar a inferioridade ou superioridade dos grupos
clássica de Melville Herskovits Life in a Haitian sociais – para Boas (2004 [1931]), as diferenciações
Valley em 1937. (Fluehr-Lobban, 2008, p. 15) nos tais testes deviam-se a virtude de diferenças nas
condições ambientais e sociais.
Herskovits – assim como Alfred Kroeber, Ruth Como se pode notar, afora as diferenças sincrônicas,
Benedict, Margaret Mead e Gilberto Freyre – foi aluno, há muito em comum entre as prósperas ideias de Franz
na Universidade Columbia, em Nova York, de Franz Boas e o predecessor de Jean Price-Mars, Anténor
Boas (1858-1942), antropólogo teuto-americano Firmin. Um contraste, no entanto, merece destaque.
de origem judaica. Celso Castro, organizador da Muitos dos trabalhos mais importantes de Boas
edição brasileira Antropologia cultural (Castro, 2004), foram escritos a partir de pesquisa etnográfica com
seleção de textos de Boas originários do volume grupos da nação inuíte, no Ártico, e com populações
Race, Language and Culture (Boas, 1940), considera kwakiutl do noroeste do Pacífico (Stocking Jr.,
o antropólogo alemão um dos “pais fundadores” da 2004), ou seja, populações com arranjos culturais e
antropologia moderna. A atribuição relaciona-se sociais, e em condições geográficas, muito diferentes
muito à crítica feita por Boas ao evolucionismo social daquelas experimentadas pelo pesquisador em sua vida
unilinear e ao determinismo geográfico, já em 1896, cotidiana. Enquanto Boas criticava a hierarquização
com o artigo The Limitations of the Comparative das culturas e das raças, e a universalização do
Method of Anthropology [As limitações do método pensamento civilizatório eurocentrado como único
comparativo da antropologia]. Boas era defensor da vetor de civilização, a partir da sua convivência com os
análise particular, feita a partir da observação de cada “selvagens”, Anténor Firmin e Jean Price-Mars eram
sociedade e de sua história, em vez das generalizações antropólogos negros, caribenhos, criando antropologia
levadas a cabo pelos evolucionistas, preocupados antirracista no seio mesmo dos corpos e lugares mais
em comparar hierarquicamente diferentes grupos despotencializados pelas teorias racistas.9
culturais. Em 1930, seu artigo Some problems of Enquanto Boas dizia, com auto-ironia, “Nós,
Methodology in the Social Sciences [Alguns problemas pessoas ‘altamente educadas’, somos bem piores
de metodologia nas ciências sociais] traz uma crítica [que os esquimós]” ou “a ideia de um indivíduo
mais direta ao racismo científico perpetrado pelas ‘culturado’ (culto), é simplesmente relativa” (Moura,
vertentes da antropologia biológica e em voga até 2006), Firmin travava batalha epistemológica contra
aquele momento. Nele, o autor defende que nenhum um dos lados dessa relativização: seria possível que a
fator isolado pode ser considerado determinante teoria antropológica produzida por um intelectual
único das diferenças entre culturas. Assim, condições negro, num contexto de influência do racismo
geográficas e econômicas específicas poderiam interferir científico, recebesse o mesmo olhar autointerrogativo
na diferenciação entre culturas, mas não criar, causar, e desestabilizador que recebiam os corpos negros,
suas particularidades. Marcando sua intenção de afastar esquimós ou ameríndios, quando emoldurados
os métodos antropológicos daqueles das ciências em suas vidas “selvagens”? Mesmo depois de Boas,
naturais, em The Aims of Anthropological Research da emergência de uma antropologia cultural e do
(1932) [Os objetivos da pesquisa antropológica], crescente conjunto de obras antropológicas dedicadas
Boas reafirma a noção de cultura como totalidade a ultrapassar os determinismos de todos os tipos, o
ANTÉNOR FIRMIN, JEAN PRICE-MARS, JACQUES ROUMAIN 11

pensamento de intelectuais negros, como os haitianos uma aposta vigorosa no “humanismo democrático”
aqui referenciados, continuou a receber respeito e que estaria nascendo, e que marca o esgotamento
consideração de intelectuais europeus e estadunidenses dos modelos anteriores:
enquanto conhecimento de nativos, ou nativos
excepcionais, e sujeito, portanto, a reelaborações, [Da perspectiva do humanismo aristocrático do
reinterpretações, ou conversão em “dados etnográficos”. Renascimento] o universo humano ainda estava
Prince-Mars e Jacques Roumain nos mostram isso circunscrito pelos limites da bacia mediterrânea
na sequência. do ponto de vista geográfico e por uma espessura
Apesar da recente onda de reconhecimento de de apenas vinte séculos: 500 a.C., até 1500 d.C.
Prince-Mars nos Estados Unidos, o intelectual haitiano do ponto de vista histórico. Esse humanismo
passou apenas brevemente pelo país, nos primeiros estaria fundado em algumas civilizações
anos do século XX, como diplomata. Foi na França, privilegiadas – Grécia e Roma – e por um corolário
especificamente em Paris, onde escreveu Ainsi parla singular, destinado unicamente ao gozo de uma
l´Oncle [Assim falou o tio] e inúmeras outras obras, que classe privilegiada a quem a cultura era acessível
viveu durante mais tempo fora do Haiti.10 Em Paris,
de forma exclusiva. Este humanismo aristocrático
encantado pelas ciências sociais e humanas, deixou
do Renascimento foi gradualmente sucedido,
de lado a faculdade de medicina, onde inicialmente
no século XIX, por um humanismo burguês.
realizava seus estudos, para engajar-se em toda sorte
Burguês em vários sentidos: não só porque a
de cursos sobre literatura, ciências sociais e história
cultura torna-se aberta, então, a todos aqueles
da África, ministrados na Sorbonne, no Collège de
que detêm os meios materiais para pagar seu
France e no Musée du Trocadéro.
preço, mas também porque abrange, além da
Nesse contexto, o intelectual haitiano estabeleceu
Antiguidade clássica e do mundo mediterrâneo,
relação de amizade e colaboração com outros
civilizações mais distantes, sobretudo à oeste,
intelectuais negros, entre eles Aimé Cesaire11, Leon
objetos de exploração econômica: fornecedores de
Damas, Leopold Senghor, e inúmeros participantes
matérias-primas baratas e mercados de exportação.
do “Harlem Renaissance”, constituindo com eles
Finalmente, esse humanismo “não-clássico”,
as bases do que se concretizaria como movimento
como nossa nomenclatura acadêmica ainda se
da Negritude.12 A relação se consolidaria nos anos
refere a ele, diz respeito apenas às produções das
seguintes, quando retorna a Paris como diplomata.
civilizações distantes que se poderia considerar
Em 1956, Price-Mars foi eleito por unanimidade
“burguesas”, isto é, documentos escritos e
para presidir o Primeiro Congresso de Escritores e
monumentos. Como se pessoas tão diferentes
Artistas Negros, realizado no anfiteatro Descartes,
na Universidade Sorbonne. O evento ocorreu por merecessem atenção apenas por suas produções
iniciativa do intelectual senegalês Alioune Diop, mais cultas e refinadas. Após o humanismo
idealizador da revista Presènce Africaine, e contou com aristocrático do Renascimento, e o humanismo
a presença de alguns dos mais importantes intelectuais burguês do século XIX, o seu Congresso anuncia
negros daquele momento, como Senghor, Cesaire, o advento, para o mundo finito que se tornou
Fanon, Glissant etc. nosso planeta, de um humanismo democrático,
A repercussão do Congresso foi tamanha que que também será o último. (Lévi-Strauss, 1956)
mereceu carta entusiasmada do então já célebre
antropólogo Claude Lévi-Strauss, publicada pela No ano seguinte, Price-Mars receberia o título
revista Presence Africaine em setembro daquele ano. de doutor Honoris Causa da Universidade de Paris.
Nela, Lévi-Strauss admite que “por si só, a ideia por Em 1959, seria candidato ao Prêmio Nobel de
trás da organização do Congresso é suficiente para literatura. Dez anos depois, convidado a visitar o
provar que um novo período está sendo inaugurado Senegal recém-independente, receberia o título de
na história do pensamento humano”. O que segue é doutor Honoris Causa pela Universidade de Dacar.
12 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 35 N° 103

Também em Cuba encontrou interlocutor atento Mundo e no Império Colonial Francês. (Magloire
no antropólogo Fernando Ortiz. Em nossa visita à & Yelvington, 2005, p. 1)
Fundação Fernando Ortiz, em Havana, no final
de maio de 2017, soubemos que os dois trocaram Quanto ao Instituto de Etnologia, os autores
inúmeras cartas, sobretudo nas décadas de 1930 e observam que a criação de um centro de pesquisa
1940, devidamente arquivadas, e agora publicadas voltado à formação de etnólogos haitianos no próprio
em cuidadosas edições ali organizadas (Ortiz, 2016a; Haiti, em um contexto histórico fortemente permeado
2016b; 2016c). Não somente Ortiz conhecia o trabalho pelo colonialismo, deve ser entendido “como um
de Price-Mars, tendo manifestado sua admiração pelo exemplo notável de descolonização do conhecimento
intelectual haitiano em inúmeras ocasiões – inclusive antropológico” (Magloire & Yelvington, 2005, p.1).
em cartas trocadas com Du Bois –, como entre eles se
estabelece prolífica relação de colaboração intelectual,
com Ortiz encaminhando extratos de seus escritos Jacques Roumain e a eclosão de associações
para apreciação de Price-Mars, e troca de revistas caribenhas de antropologia (sub1)
acadêmicas e outros materiais de pesquisa. Não por
acaso foi em Cuba, por meio da Casa de Las Americas, Quanto a Jacques Roumain (1907-1944),
que se realizou a primeira (e única) tradução de Ainsi trata‑se, sem dúvida, do escritor haitiano que gozou
parla l´oncle para o espanhol, em 1968.13 de maior reconhecimento no exterior, em função de
É importante ressaltar que, já em 1941, juntamente seu celebrado romance Os donos do Orvalho, lançado
com Jacques Rouiman, Price-Mars cria e dá início postumamente, em 1954. Entretanto, como é comum
às atividades do Bureau National d´Éthnologie, que a muitos intelectuais haitianos, a produção científica
rapidamente se converteria em um importante ponto e literária caminha pari passu com o engajamento
de encontro, estudo e discussão sobre raça, cultura político. O profundo envolvimento com questões
cruciais de seu tempo reveste de caráter eminentemente
popular, história africana e história haitiana, em Porto
público seu exercício intelectual. É sintomático,
Príncipe.14 Tendo atuado como diretor do Instituto
assim, que esses homens tenham assumido cargos
durante vários anos, Price-Mars aí ministrou cursos
públicos, geralmente como ministros ou diplomatas
de sociologia e – “africologia” – [africology], além
no exterior. Ainda que boa parte dessas indicações
de coordenar a publicação da Revue de la Société
tenham servido às autoridades governamentais – que,
Haitienne et de la Géographie, confirmando a vocação
dessa forma, garantiam que esses intelectuais-ativistas
interdisciplinar de sua produção. Sobre sua relevância não causassem agitações populares no Haiti –, é
no desenvolvimento das ciências sociais, o intelectual inegável a visibilidade internacional que acabaram
haitiano Gérard Magloire (doutor em French Studies proporcionando a suas carreiras. Essa trajetória pública
[estudos franceses] pela New York University e fica patente em Roumain (Laurière, 2005b).
colaborador da Plataforma île en île), e o Professor Filho de família abastada e com forte tradição
Kevin A. Yelvington, (Associate Professor of Anthropology política (seu avô, Tancrede Auguste, foi presidente do
na University of South Florida) afirmam:15 Haiti de 1912 a 1913), Roumain teve uma educação
formal privilegiada, inicialmente em Porto Príncipe,
Price-Mars desempenhou um papel determinante no prestigioso colégio Saint-Louis de Gonzague; mais
no desenvolvimento das ciências sociais no Haiti. tarde, na Bélgica, frequentou a escola politécnica, e
A influência do trabalho de Price-Mars ultrapassou na Espanha iniciou os estudos de agronomia (sem
largamente esse círculo, expandindo-se entre jamais completá-los). Aos 20 anos, retornaria ao Haiti:
as gerações seguintes de escritores, cientistas e
artistas haitianos. Sua autoridade etnográfica, seus Reconheceu-se, enfim. À medida que escutava
escritos e pesquisas foram fontes de inspiração derreter em si o gelo acumulado na Europa,
e inovação para a diáspora africana no Novo desaparecia de seu coração o que ele chamou com
ANTÉNOR FIRMIN, JEAN PRICE-MARS, JACQUES ROUMAIN 13

amargura “o grande silêncio branco”. Agora, ele Escritores em Defesa da Cultura, realizado em Paris
estava entre seus irmãos, sua gente. (Roumain, (Hoffmann, 2015).
1930, p. 1) Com o início da guerra na Europa, Roumain
decide viver nos EUA, enquanto sua esposa retorna
A ocupação estadunidense estava em pleno vigor, ao Haiti. Estabelecido em Nova York, trabalhou como
e Roumain envolveu-se em dois movimentos pujantes professor de francês enquanto dava sequência a seus
de resistência: o movimento indigenista, berço da estudos no departamento de etnologia da Columbia
resistência cultural e valorização dos saberes populares University. Roumain reencontra o escritor Langston
no Haiti, no âmbito do qual, na La Revue Indigène, Hughes e admira-se com a efervescência cultural dos
publicaria poemas, traduções e ensaios acadêmicos; movimentos civis no país. Esse período foi marcado
e o movimento comunista, no qual se engajou, em por grandes dificuldades financeiras; Roumain, no
1927, como fundador do Movimento da Juventude entanto, em carta à esposa, ressalta: “eu prefiro esta
e, em seguida, em 1932, como fundador do Partido vida dura a compartilhar de uma felicidade ignóbil,
Comunista Haitiano (Magloire, 2017). feita do sofrimento alheio” (Roumain apud Hoffmann,
Nesse período, Roumain sofreu aberta perseguição 2015). Ele logo deixa os EUA por Cuba.
por seu intenso ativismo contra a presença estadunidense Em Havana, acolhido por Guillen, rapidamente
no país, sendo preso duas vezes, ambas por “crime se integra ao circuito artístico e intelectual cubano
de imprensa” (Laurière, 2005a). A segunda prisão ligado à cultura popular. É significativa sua relação
suscitou um movimento internacional por sua com Fernando Ortiz, que o nomeia secretário do
soltura, capitaneado pelo escritor Langston Hughes, recém criado Instituto Internacional de Estudos
uma das vozes mais eloquentes do ativismo negro Afroamericanos e membro honorífico da Sociedade
naquele país:16 de Estudos Afrocubanos (Ortiz, 2016a).
Em 1941, Roumain recebe autorização do
Como colega escritor negro, eu apelo a todos os recém‑empossado presidente Elie Lescot para retornar
escritores e artistas de qualquer raça que acreditem ao Haiti, desde que se abstivesse de atividades políticas.
na liberdade da palavra e do espírito humano, Assim, passa a dedicar-se com afinco à etnologia.
a protestar imediatamente junto ao Presidente Nesse período, por intermédio de Jean Price-Mars, foi
do Haiti e ao Consulado haitiano mais próximo apresentado ao antropólogo francês Alfred Métraux,
contra a desnecessária e descabida sentença que que depois do primeiro encontro registrou sua forte
conduziu à prisão Jacques Roumain, de longe impressão sobre Roumain: “Na minha vida como
o mais talentoso homem de letras do Haiti. cientista, eu conheci muito poucos colegas capazes
(Hughes, 1935, p. 2) de trazer para a sua pesquisa uma paixão tão jovem
e tão forte” (Métraux, 1941, p. 1636).
Em 1937, constatando a intensa vigilância Roumain conduziu Métraux e sua esposa, Rhoda,
governamental a que estava sujeito, já casado, e, em uma série de incursões ao Haiti rural, documentando
temendo pela segurança da família, Roumain decide tradições religiosas e realizando escavações na Île
exilar-se na Europa, iniciando um período dedicado de la Tortue e na região de Fort Liberté, em busca
à formação acadêmica. Instalado em Paris, dedica-se de vestígios indígenas. A expedição daria origem
ao estudo de etnologia na Sorbonne (onde será aluno ao aclamado livro Le Vaudou Haïtien de Métraux.
de Marcel Mauss) e de paleontologia no Musée de Novamente, como acontecera a Jean Price-Mars em
l’Homme (sob orientação de Paul Rivet). Ao mesmo sua relação com Melville Herzkovits, a colaboração
tempo, torna-se colaborador frequente revistas como acadêmica entre um antropólogo metropolitano e outro
Regards, Commune e Les Volontaires, além de membro “nativo”, apesar de aparentemente bem-intencionada,
da Société des Américanistes de Paris.17 Nesse período, e até amistosa, resultará, para o antropólogo da
torna-se muito próximo do poeta cubano Nicolás ex‑colônia, na precarização do seu trabalho, forjada
Guillen, que conheceu por ocasião do Congresso de sob a diferença colonial (Fluehr-Lobban, 2000).
14 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 35 N° 103

Não nos parece razoável imaginar que uma relação conversas. É relevante perceber que em nenhum outro
desse tipo – que envolve uma ativa colaboração, da lugar ou momento Roumain ou Price-Mars repetirão
operacionalização de uma pesquisa à expertise acumulada essa versão. É também sintomático que, em seu livro
e às reflexões acadêmicas já realizadas – pudesse ser sobre o vodu haitiano, Métraux faça referência direta
estabelecida entre antropólogos do Norte global sem a Melville Herzkovits e não a Roumain, ou mesmo
assumir a forma de coautoria. Longe disso, além de a Price-Mars, que, aquela altura, tinha um trabalho
não fazer a devida referência à colaboração intelectual já publicado e reconhecido sobre o tema.
de Roumain, Métraux ainda faz questão de sublinhar Ao retornar ao Haiti em 1944, Roumain havia se
o impacto de sua visita sobre o intelectual haitiano, tornado professor das disciplinas de arqueologia pré-
enfatizando a própria influência na ideia de criação colombiana e antropologia pré-histórica no Instituto
do Instituto de Etnologia: de Etnologia do Haiti, e terminava de publicar uma
etnografia do vodu haitiano, Le Sacrifice du tambour
Fomos capazes de identificar um grande número Assôtô [O Sacrifício do Tambor Assôtô] (Roumain,
de sítios indígenas e até mesmo cavernas [...]. 1943). Métraux chegará a fazer referência tanto à
Jacques estava em desespero por não ser capaz de importância do trabalho desenvolvido no Instituto
escavar mais profundamente. Eu o consolei com quanto ao artigo de Roumain, mas somente depois
a promessa de que um dia ou outro voltaríamos do seu falecimento:
mais equipados. Eu também expressei o desejo
de que uma instituição haitiana se encarregasse Quando voltei para o Haiti em 1944, o Instituto
de cuidar do manejo dos principais tesouros de Etnologia, fundado por Jacques Roumain,
arqueológicos que nos apareceram de todos os tinha salvado das chamas coleções significativas, e
lados. A destruição dos sítios e a dispersão dos realizado várias investigações sobre aspectos pouco
objetos arqueológicos deixaram-no desolado e conhecidos do vodu. (Métraux, 1978, p. 124)
exasperado. Sobre este assunto, ele era inesgotável
e nós compartilhávamos a mesma indignação
Afirma ainda mais sobre Le Sacrifice du tambour
em relação a espécimes históricos que caíam nas
assôtôr:
mãos de indiferentes. Eu, então, o alertei sobre
as leis de proteção para esta parte do patrimônio
nacional e a necessidade de criar uma instituição Pela primeira vez temos um rito sacrificial da
estatal para recolher os vestígios do passado antigo religião popular haitiana descrito com um tal
da ilha. A partir dessas conversas ao longo do luxo de detalhes e uma tal clareza a ponto de
Canal dos Ventos nasceu a ideia do Instituto fundar um modelo de monografia etnográfica.
de Etnologia, que Jacques Roumain fundaria (Métraux, 1978, p. 135)18
alguns meses mais tarde. A primeira coleção do
Museu Etnográfico [...] foi aquela que reunimos Um ano antes, em 1943, designado como
na Tortue. (Métraux 1941, p. 136). diplomata no México, Roumain trabalharia com
afinco em suas obras literárias mais importantes: o
Destacamos o modo como Métraux escreve livro de poemas Bois-d´Ébène [Madeira de Ébano
sobre si mesmo, em tom complacente, como aquele 2007], no qual a questão racial está posta de maneira
que consola, promete e aconselha um Roumain em aguda, e o romance Donos do orvalho, uma ode à
desespero, incapaz, desolado, exasperado. No máximo, união camponesa contra a exploração da terra e
ao fazer avaliações positivas sobre Roumain, estas serão da vida no Haiti rural. Ambas foram finalizadas
diluídas em um oportuno “nós”: “Fomos capazes de apenas alguns meses antes de sua morte e publicados
identificar”; “nós compartilhávamos a mesma indignação”; postumamente. Ambas começaram a ser escritas em
“aquela que reunimos na Tortue”. Quanto à ideia do Cuba, país com fortíssimo impacto na vida e obra
Instituto, Métraux é taxativo: nasceu a partir dessas de Roumain. Não por acaso, Manuel, protagonista
ANTÉNOR FIRMIN, JEAN PRICE-MARS, JACQUES ROUMAIN 15

de Donos do orvalho, volta ao Haiti depois de quinze A antropologia desenvolvida pelos intelectuais
anos trabalhando nas plantações de cana em Cuba, haitianos Anténor Firmin, Jean Prince-Mars e Jacques
onde teve suas primeiras lições sobre greve e união Roumain é, de fato e de direito, a fundação de uma
obreira, base do levante que conduzirá no vilarejo narrativa antropológica contra-colonial, que não se
de Fond Rouge, onde a comunidade padece, a um produziu na insularidade, tampouco numa imposta
só tempo, com a degradação do solo e dos laços de periferia. Anténor Firmin era membro da Sociedade
compadrio e amizade entre vizinhos.19 Intitulado de Antropologia de Paris quando, em 1885 – no
pelo autor de Gouverneurs de la rosée, o livro seria auge do racismo científico – publicou, em Paris,
traduzido para mais de 21 idiomas. No Brasil, foi De l’égalité des races humaines [Da igualdade das raças
publicado em 1954, no âmbito da coleção “Romances humanas]. Ao longo desse ensaio, foi possível verificar
do Povo”, dirigida por Jorge Amado para o Editorial que o livro emerge das discussões travadas durante as
Vitória, ligado ao Partido Comunista Brasileiro. Sobre reuniões desta sociedade científica. O mesmo sucede
ele, Amado dirá ao jornal Imprensa Popular, do Rio ao trabalho desenvolvido por Jean Price-Mars e Jacques
de Janeiro, que é “um dos mais belos romances da Roumain no início do século XX, ambos influenciados
América Latina [...] um dos mais belos e emocionantes pelos encontros e discussões que mantiveram com a
livros que já li” (Amado, 1955). Em Portugal, torna- antropologia produzida no próprio Haiti, em Cuba,
se Governadores do orvalho, na tradução de José na Europa, na África.
Saramago. O romance será, ainda, vertido para o Levar a sério essas narrativas demanda a disposição
inglês pelo poeta estadunidense Langston Hughes, e de esticá-las até que rompam as molduras que, com
para o espanhol, com supervisão e prólogo do poeta rigidez, têm fixado o Norte como eixo irradiador da
e amigo cubano Nicolas Guillen, em edição da Casa história da antropologia. Essa atitude epistemológica
de Las Americas. implica, para a antropologia, repensar e reelaborar seus
Apesar de obra ficcional, a obra traz descrições currículos, suas diretrizes, demandando a supressão
detalhadas e vigorosas da vivência do vodu, de rituais da matriz colonialista que captura a produção de
pontuais, em que se agradece por algo específico, até conhecimento e reproduz, em algumas circunstâncias,
referências aparentemente banais, que denotam a divisões de trabalho assimétricas, contribuindo para
sacralização do cotidiano, com constante referência circunscrição do alcance da antropologia feita desde
aos Loas e à interpretação dos fatos da vida através corpos-territórios negros. Romper com as dinâmicas
dessa matriz espiritual. Também o faz em relação a que seguem produzindo sua subalternidade requer que
os kombites, organização do trabalho em forma de
aprendamos a desviar das abordagens que – mesmo
mutirão muito comum na cultura popular haitiana,
quando bem-intencionadas – seguem afirmando como
sobretudo na zona rural.
periféricas ou marginais as vidas-obras aqui narradas.

Conclusão
Notas
Propusemos aqui, ao narrar as trajetórias desses 1 Lógicas acadêmicas euro-centradas são aquelas cujas
antropólogos haitianos, o exercício de abandonar referências epistemológicas (teóricas e metodológicas)
as ideias de centro/periferia e cânone/dissidência, perpetuam a lógica da colonialidade do saber e do poder.
para fazer a antropologia lidar, portanto, com a Segundo Quijano (idem), as ciências sociais desenvolvidas
encarnação de sua própria multiplicidade fundacional. no eixo da colonialidade do saber reproduzem a divisão
A antropologia criada e reivindicada pelos intelectuais colonial do trabalho na prática acadêmica, restando a
intelectuais latino-americanos, caribenhos, africanos, os
caribenhos aqui apresentados nos mostra uma saída
papéis de “colaboradores” ou “nativos”, mesmo quando
rumo a novas narrativas a respeito da disciplina com sua atuação epistêmica é institucional e fruto de ativas
a qual trabalhamos, desvios de certo fatalismo e certa e sistematizadas investigações. Adensaremos mais essa
ignorância – uma disseminada luta contra nossas questão quando formos descrever a relação entre o
diversas possibilidades de acontecer. haitiano Jacques Roumain e o francês Alfred Métraux.
16 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 35 N° 103

2 Ainda que haja excelentes trabalhos sendo produzidos obra de Firmin, essa Europa havia sido determinada pelo
e orientados em programas de pós-graduação, como na Tratado de Berlim de 1878, em que se celebrou a divisão
Unicamp e no Museu Nacional (UFRJ), sobressaem as territorial do continente africano entre Bélgica, França,
etnografias realizadas no Haiti, enquanto os trabalhos Alemanha, Inglaterra, Itália, Portugal e Espanha, marcando
dedicados aos intelectuais haitianos, que os tomem o início do período conhecido como neocolonialismo
como centro da análise, ainda se contam nos dedos. (Nkrumah, Kwame. Neo-Colonialism, The Last Stage of
Em pesquisa realizada no Portal Capes de Periódicos, em Imperialism. Thomas Nelson & Sons, Ltd., Londres,
15 de junho de 2019, testou-se uma busca avançada em 1965). É a ela que também se refere Aimé Cesaire
periódicos que fizessem menção, no título ou resumo, em seu Discurso sobre o Colonialismo, quando diz que
aos nomes “Anténor Firmin”, “Jean Price-Mars” e “[a] Europa é indefensável” (Cesaire, 2017, p.15).
“Jacques Roumain”. Não foi possível encontrar, entre 4 Todos os trechos citados nesse trabalho são traduções
os 19 resultados com menções a Anténor Firmin, livres realizadas pelas autoras a partir dos originais em
nenhum autor brasileiro ou periódico nacional. Entre os inglês ou francês.
14 resultantes da busca por Jean Price-Mars, encontram‑se
5 Vale lembrar que, durante o século XIX, a obra
“Jean Price-Mars y la Nación Haitiana en la Vocation de
La Renaissance, de Gobineau, também alcançou vasta
L’élite”, do sociólogo porto-riquenho Gabriel Alemán
repercussão. No entanto, o sucesso de seu Ensaio
Rodríguez, publicado pela Revista Brasileira do Caribe,
propagou-se, inclusive pelo século XX.
em março de 2016 e “Geografía Africana e Identidad en
Jean Price Mars y Gilberto Freyre”, do porto-riquenho 6 Agradecemos, nesse ponto, a contribuição do parecerista
Carlos D. Altagracia Espada, publicado pela mesma anônimo, quando aponta que um amplo conjunto de obras
revista, em março de 2015. Quanto a Jacques Roumain, relativamente recentes considera exagerada a avaliação do
entre os 21 resultados da busca, não há qualquer impacto do Essai sur l’inégalité des races humaines à sua
trabalho escrito por autor brasileiro ou publicado em época, e questiona a suposta homogeneidade do chamado
periódico nacional. Quando testamos a mesma busca “racismo científico”. Nesse sentido, foram sugeridos os
na Plataforma Capes de teses e dissertações (que não estudos de Jean Boissel (Gobineu: biographie, 1993),
permite a especificação do local de busca: título, resumo ou Helga Gahyva (O inimigo do século, 2012) e ainda, a
inteiro teor), o único resultado para a busca de “Anténor A ideia de raça, de Michael Banton. No entanto, não é
Firmin” é a tese “NOU LED, NOU LA!” “ESTAMOS intenção do presente ensaio dar centralidade a Gobineau,
FEIOS, MAS ESTAMOS AQUI!”: Assombros haitianos mas abordá-lo apenas na medida em que seu ensaio foi
à retórica colonial sobre pobreza de Pâmela Marconatto interpelado por Firmin. O foco está no caráter político
Marques, defendida em 2017 junto ao Doutorado em hegemônico de teorias que, por corresponder aos interesses
Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do políticos e intelectuais favorecidos por noções como
Sul. Já a busca de “Jean Price-Mars” leva a 3 trabalhos: “progresso” e “desigualdade racial”, contribuíram para
Identidade-Relação e Transculturação: Uma leitura do obscurecer a produção intelectual de autores negros e
Romance Compère Général Soleil, de Jacques-Stephen não-europeus.
Alexis de Jean Dieumettre, defendida em 2018 junto 7 É interessante notar o modo como o positivismo, nesse
ao Mestrado em Letras da Universidade Federal de São momento histórico, serve como agente duplo da contenda.
Paulo; Haiti, uma república do Vodu?: uma análise do Firmin faz questão de incluir o subtítulo Antropologia
lugar do Vodu na sociedade haitiana à luz da Constituição positiva abaixo do título de seu livro-resposta. A aposta
de 1987 e do Decreto de 2003, de Jean Gardy Pierre, no progresso, palavra de ordem do movimento, também
defendida em 2009 junto ao Mestrado em Ciências aparece na dedicatória do livro, vinculada à justiça e à
da Religião da PUC-SP e, novamente, o trabalho de liberdade e, pelo teor da obra, “capturada” pela causa
Pâmela Marconatto Marques. Por fim, para “Jacques antirracista.
Roumain” novamente são encontrados 3 trabalhos: 8 É impressionante o modo como Firmin antecipa
além das teses de Pâmela Marconatto Marques e de pontualmente cenários complexos envolvendo relações
Jean Gardy Pierre, o trabalho Literatura e Construção raciais no mundo contemporâneo, sobretudo, nos Estados
da Comunidade Imaginada Haitiana: Uma Leitura de Unidos: “Recolhemos inúmeras citações do discurso
Jacques Stephen Alexis e Jacques Roumain (1915-1971), de Wendel Phillips para demonstrar a importância
de Márcio Antônio de Santana, defendida em 2003 desempenhada pelo exemplo haitiano à causa da abolição
junto ao Mestrado em História da Universidade Federal da escravidão nos Estados Unidos. Em que pesem todas
de Goiás. as aparências contrárias, este vasto país está destinado
3 Ao aludir a o termo – “Europa” – esse ensaio refere-se a dar o golpe de graça na teoria da desigualdade das
notadamente aos países que estiveram engajados no raças. Com efeito, os negros desta grande república
empreendimento colonial. À época da publicação da federativa estão começando a desempenhar uma função
ANTÉNOR FIRMIN, JEAN PRICE-MARS, JACQUES ROUMAIN 17

cada vez mais ativa na política dos Estados da União Jacques Roumain, Ouvres Complètes (2003), fez minucioso
Americana. Não seria possível, então, que antes de cem levantamento, disponível em <http://ile-en-ile.org/
anos um homem de origem etíope presida o governo de bibliographie-de-jacques-roumain-par-genres/>.
Washington e dirija os assuntos do país mais progressista 18 Lembremos, nesse ponto, que as campanhas antissupersticiosas
da terra, o país que infalivelmente será o mais rico,
conduzidas no Haiti durante a ocupação americana
o mais poderoso, pelo desenvolvimento do trabalho
queimaram sistematicamente milhares de peristiles e
agrícola e industrial? Não é essa uma daquelas ideias que
objetos rituais do vodu.
permanecem eternamente em estado de utopia. Basta
atentar para a importância crescente dos negros nos 19 Trata-se de um romance sobre amizade, entendimento,
assuntos americanos para que se dissipem as dúvidas.” cooperação e solidariedade entre vizinhos em uma
(Firmin, 1885, p.593-594) comunidade pobre que se vê diante do desafio da
9 As aspas em “selvagens” são também de Boas, em carta sobrevivência. Em Fond Rouge, os vizinhos descuidaram‑se
enviada à noiva, Marie Krakowizer, enquanto realizava desses laços – que, segundo o protagonista Manuel, “é
trabalho de campo com os inuíte, na década de 1880 o que dá gosto à vida”, “o que ata homens e mulheres
(Moura, 2006). à vida” – assim como descuidaram-se da terra, quando
10 A obra de Price-Mars é vasta. Sublinham-se: La Vocation de cortaram árvores. Manuel persegue uma ideia fixa:
l’élite. Port-au-Prince: Edmond Chenet, 1919; Ainsi parla encontrar uma fonte de água – ele acredita que ela possa
l’oncle (essai d’ethnographie). Compiègne (France): Imprimerie ser o eixo de reestruturação desses laços comunitários.
de Compiègne, 1928; Formation ethnique, folkore et culture 20 A figura em destaque ao centro da foto é Jean Price‑Mars.
du peuple haïtien. Port-au Prince: Éditions Virgile Valcin,
1939; Contribution haïtienne à la lutte des Amériques pour
les libertés humaines. Port‑au-Prince: Imprimerie de l’État,
1942 Joseph Anténor Firmin. Port‑au‑Prince: Imprimerie BIBLIOGRAFIA
du Séminaire Adventiste, 1978.
11 Não por acaso, em Cahier d’un retour au pays natal, ACACIA, Michel (org). (2009), Révolte, subversion
Cesaire (1939) dirá que “foi no Haiti que a Negritude et développement chez Jacques Roumain: actes
pôs-se de pé pela primeira vez e disse acreditar em sua
du Colloque International Penser avec Jacques
humanidade”. Ele não somente conhecia o país, tendo-o
visitado mais de uma vez, mas teve grande interlocução Roumain aujourd’hui. Port-au-Prince, Éditions
com Price-Mars. de l’Université d’Etat d’Haïti.
12 “Harlem Renaissance”: movimento artístico e intelectual AMADO, Jorge. (1955), “17 bilhões de exemplares
preocupado em remodelar o patrimônio racial no seio da de livro na URSS”. Imprensa Popular, Suplemento
comunidade afro-americana, desafiando os estereótipos e Dominical. Rio de Janeiro, 10 de abr. de 1955.
promovendo a valorização das manifestações folclóricas.
Faziam parte W. E. B. Du Bois, o jamaicano Marcus BARNET, Miguel.(1977), Biografía de um cimarrón.
Garvey, Langston Hughes e outros. Buenos Aires, Centro Editor de América Latina.
13 A obra Biografia de un cimarrón (1977 [1966]), do BARNET, Miguel. (1987), “La novela testimonio:
antropólogo cubano Miguel Barnet, traz estilo narrativo alquimia de la memoria”, in Id., Cimarrón.
em primeira pessoa, inspirado por Ainsi parla l´oncle. Buenos Aires, Ediciones del Sol.
Ver também Barnet (1987 [1980]).
BOAS, Franz. “Um ano entre os esquimós”, in
14 O Bureau é considerado embrião da Faculdade de Etnologia
da universidade de Estado do Haiti. Lembramos a forte Stocking Jr., George. (2004), A formação da
relação de Price-Mars com a universidade, da qual foi antropologia americana 1883 – 1911. Rio de
eleito reitor em 1960. Janeiro, Contraponto/UFRJ.
15 Trata-se de riquíssimo índex da vida e obra de intelectuais BOAS, Franz. “Raça e Progresso”, in CASTRO, Celso.
e artistas antilhanos francófonos. (2004), Franz Boas. Antropologia Cultural, Rio
16 Na segunda vez, quando ficou preso por sete meses, de Janeiro, Jorge Zahar.
contraiu malária, cujas sequelas acabariam por leva-lo
a morrer muito jovem, poucos anos depois, em 1944. BONILLA, Yarimar. (2013), “Burning Questions:
17 É impressionante a quantidade de artigos, poemas, The Life and Work of Michel-Rolph Trouillot,
traduções, realizados por Roumain nesse período. 1949–2012”. NACLA Report on the Americas,
Léon‑François Hoffmann, organizador do volume 46(1): 82–84.
18 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 35 N° 103

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20 RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS

ANTÉNOR FIRMIN, JEAN ANTÉNOR FIRMIN, JEAN PRICE- ANTENOR FIRMIN, JEAN PRICE-
PRICE-MARS, JACQUES MARS, JACQUES ROUMAIN: MARS ET JACQUES ROUMAIN:
ROUMAIN: ANTROPÓLOGOS HAITIAN ANTHROPOLOGISTS DES ANTHROPOLOGUES
HAITIANOS REPOVOANDO AS REPOPULATING HAÏTIENS QUI REPEUPLENT
NARRATIVAS HISTÓRICAS DA ANTHROPOLOGY’S HISTORICAL LES RECITS HISTORIQUES DE
ANTROPOLOGIA NARRATIVES L’ANTHROPOLOGIE

Pâmela Marconatto Marques e Marília Pâmela Marconatto Marques and Pâmela Marconatto Marques et Marília
Flôor Kosby Marília Flôor Kosby Flôor Kosby

Palavras-chave: História da Antropologia, Keywords: History of Anthropology; Mots-clés: Histoire de l’anthropologie;


Narrativas anti-coloniais; Anténor Firmin; Anti-colonial narratives; Anténor Firmin; Récits anticoloniaux; Anténor Firmin;
Jean Price-Mars; Jacques Roumain; Haiti. Jean Price-Mars; Jacques Roumain; Haiti. Jean Price-Mars; Jacques Roumain; Haïti.

O que acontece ao experimentarmos What would happen if we consider the Que se passe-t-il quand nous pensons à
pensar a hipótese de existência de uma hypotheses of the anthropology called l’hypothèse d’une anthropologie canonique,
antropologia chamada canônica, ocidental, canonical, western, Eurocentric, not only as occidentale et eurocentrée comme dimension
eurocentrada, não apenas como dimensão a universalistic dimension of the powerful universaliste du puissant projet colonial
universalista do poderoso projeto colonial European colonial project, as has hitherto européen et comme effort de la pensée
europeu, mas como esforço do provinciano been conceived, but as an effort of the provinciale des métropoles pour étendre
pensamento das metrópoles para estender provincial thought of the metropolises to sa condition tout en s’attachant à des
sua condição, aferrando-se a pressupostos extend their condition, clinging to modern présupposés modernes ? L’article propose de
modernos? Aceitando o desafio desse sutil assumptions? Accepting the challenge of relever le défi de ce subtile virage épistémique
giro epistêmico, o presente artigo tem por this epistemic turn, the main objective of pour montrer que si l’Europe a toujours
objetivo seguir pistas capazes de evidenciar this article is to follow clues able to evidence été appelée à se déprovincialiser par des
como a Europa foi constantemente chamada how Europe has been called continuously anthropologues afro-caribéens, elle n’a pas
por antropólogos afro-caribenhos a se by Afro-Caribbean anthropologists to pour autant réussi à se mettre fortement
desprovincializar, sem, no entanto, ter sido deprovincialize, without, however, being en relation avec la création vertigineuse
capaz de suportar entrar de modo intensivo able to bear to relate itself with a vigorous et puissante de l’anthropologie en dehors
em relação com a criação vertiginosa e and dizzying creation in which anthropology de son axe de rayonnement. Considérant
potente em que a antropologia parecia estar seemed to be becoming outside its radiating une telle matrice de pensée capable
se tornando fora de seu eixo irradiador. axis. Suspecting such a matrix of thought d’ignorer les Caraïbes, nous proposons,
Suspeitando de tal matriz de pensamento that has been able to ignore the Caribbean, à partir d’un relevé bibliographique et
que foi capaz de ignorar o Caribe, propomos, we propose, through a bibliographical survey d’une recherche documentaire, l’existence
a partir de levantamento bibliográfico e and a documental research, an anti-colonial d’une composition anticoloniale des cadres
pesquisa documental, uma composição composition of the theoretical-ethnographic théorico-ethnographiques de l’anthropologie
anticolonial dos quadros teórico-etnográficos frameworks of anthropology, outlining a en ébauchant un récit peuplé par des
da antropologia, esboçando uma narrativa narrative populated by anthropologists such anthropologues comme Anténor Firmin,
povoada por antropólogos como Antenor as Antenor Firmin, Jean Price-Mars, and Jean Price-Mars et Jacques Roumain,
Firmin, Jean Price-Mars e Jacques Roumain, Jacques Romain, who, in direct dialogue qui ont dialogué directement avec des
que protagonizaram, em diálogo direto with canonical authors, led key debates, auteurs canoniques sur des thèmes chers
com autores canonizados, debates caros dear to the development of the discipline. au développement de la discipline.
ao desenvolvimento da disciplina.

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