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Jacque~-A\ain Miller

\
1

Percurso de Lacan:
uma introducão I

segunda edição

Tradução:
Ari Ro itrn a n

Jo rge Z aha r Edito r


Rio de Janeiro
A TRANSFERÊNCIA DE FREUD A LACAN
1

O tema de hoje é a transfer~ncia de Freud a Lacan. Trata-se de uma ex-


press.:io am bigua. ·
Em primeiro lugar, nos ireferimos à transferência na medida em que
é o termo que conceitua, segundo o consenso dos psicanalistas, o m odus
operandi da ps:icanâlise, a mola mestra da cura, seu motor· terapêutico ·e o
próprio principio de seu poder. Acentua o fato de haver consenso entre os
psicanalistas, pois é um fato raro o suficiente para que valha a pena su bli-
nhá-lo.
A conceituação da transferência sofreu uma transformação de Freud
a Lacan. Este também é um fato suficientemente importan te para que se -
ja sublinhado e, se me permitem a expressão, para que se divulgue a boa
nova. Essa conceituação se transfonnou, mas, apesar disso , a conceituação
lacaniana é, ao mesmo tempb, estritamen te freu diana. T ent arei demons-
trar-lhes isso no decorrer destas duas conferências.
Lacan situa no fundamento da transferência uma função inédita em
Freud: a do sujei~o supost9_fa_~s.:.§eria inútil buscá-la na teoria. freu diana
da transferência, e gostaria de lhes explicar o que é que a legitima. Isso
exige fazer um rodeio, com !relação à conceituação da t ransferencia, na
própria história da ps:icanali~e. M_a s nos obriga tambem a dar con ta da
J
transferência que hoje nos leva a pôr Lacan no lugar que antes fora de
1
Freud: o de quem sabe do que se tra ta na experiência da psicanálise. ~ -

l
f
ra os que têm acesso a seu ensino, essa experiência possui um tom de ver-
dade que é inimitável. 1
Faço uma pergunta aos que leram os analistas contemp orâ neos de
j Freud e seus alunos, e também os analistas de hoje: não têm amiúde a
impressão de que esses psicanalistas, ao mesmo tempo em que utili zam as
j palavras de Freud para relat~r sua estadia no campo que F reud foi o pri-
meiro e único a descobrir, que esses psicanalistas tomam as c oisas, muitas
vezes, como supostos? Asseguram-nos que a cast ração, a pulsão, a transfe-
rência - eles as encontraram. as manipularam, e nos asseguram que são,
efetivamente, tais como Freud disse. Mas nós nem sempre estamos segu ·
56 percu,rso da Lacan conferênicias· caraquenhas 57

ros de que os analistas tenham ido exatamente ao mesmo lugar que Freud. ~~s~ ~Eº~~- Grosso mod~, é essa a vulga ta que se difundiu sobre O ru-
São como viajantes que chegam de longe e nos dizem: sim. sim, vimos co- Jelto suposto saber como pivô da transfe rência; é necessário conhecer com
mo era isso. Não estamos muito seguros de que tenham percebido o que precisão a que problema da t'eoria freudiana corresponde sua introdução,
Já ocorria; em todo caso, é fato que Freud conservou uma vantagem, e que nada tem de gratuita. !
ainda a conserva, em relação aos que seguiam suas pegadas, vantagem que Por isso começarei ev~ando, brevemente, a teoria freudiana da f
se detecta no fato de que os psicanalistas estão sempre articulando sua ex- transferência. Onde a enconttamos? Primeiro, nos textós reunidos sob o - ,...;_\.•
periência com os mesmos termos que Freud nos deixou, e sempre voltam titulo Escritos sobre a técnica. 12 Esses textos são de 1911 -1 915; antes d.is-
a examinar a letra inesgotável de seus escritos. Além deles, temos Lacan , so, também a encontramos, fugazmente, na Ciéncia dos sonh os. no caso
que voltoci ao texto de Freud, e inclusive tomou como slogan - no come- Dora, e podemos também encontrar suas pegadas nos Estudos sobre his-
ço dos anos 50 - o "retomo a Freud", mas que, .com o passar do tempo, teria. Além dos Escritos sobte a técnica, deve-se conhecer também Além
operou de tal forma sobre o texto de Freud que fez surgir dele uma temá- do princlpio do prazer e Inibição, sintoma e angústia. 13
tica, urna conceituação e até uma formalização inéditas. Os termos que Há, na história da psicanálise, uma e.Y.Qlução da técnica an ali.üc~;
introduziu, quer se trate do Outro com maiúscula {A), quer do sujeito su- Freud o destaca no Capí tulo 3 de Além do princz'pio do prazer(~m pri-
posto saber, são coordenadas 'desconhecidas até então, que permitem en- meiro lugar, diz, a psicanális~ era essencialmente uma arte de int(l"lJr~\ai:;
quadrar melhor os fenômenos que se produzem na experiência analítica. corresponde, poderíamos dizer, à Idade de Ouro da psicanálise, a essa ma-
E preciso dizer que em tomo de Lacan há, assim como em torno de Freud, ravilhosa abertura - observem os casos ma.is conhecidos - de um territó-
muita gente que acompanha o seu ensino, mas que não dâ facilmente a rio desconhecido no qual, de uma vez e sem dificuldade, o sin toma se ofe-
impressão de ter penetrado naquilo de que se trata; no entanto, repete com recia ao decüramento e·, como por milagre, se desvanecia cfepois de curas
grande convicção, indicando que aí repousa uma grande verdade. Sobre de cuja brevidade muitos de nós, sem dúvida, temos saudades. As curas
isso, não é pelo fato de que a categoria de sujeito suposto saber se tenha podiam ser, nessa época, um passeio com Fre~d pelo jardim, e seis meses
convertido, na França, em um dos tennos mais populares de Lacan que podiam parecer uma duração muito grand~f Idade de Ouro se perdeu
é mais bem apreendida. •1 muito rápido, e Freud assinala que chegou a ter que analisar as resistências.
Quero indicar-lhes, primeiro, uma frase de Lacan que nos servirá de No fundo, é como se esse inconsciente - a princípio aberto e, de certo mo-
ponto de referência: "o sujeito suposto saber.JLpara nós o pivô no qual s_~ do, dócil à intervenção do analista - tivesse retrocedido progressivamente,
articula tudo o que se relaciona com a transferência." "Pivô" é uma pala- houvesse ficado rebelde à intervenção psicanalítica. Se Freud se dedicou
vr~ .~teressante, qu e pode designar a~dueler· pedadço de ~ealtal ou dte mtad:i· ;·, nesses anos, de 1911 a 191 5, a estudar a técnica psicanalítica, foi para res-
ra sobre o qual gira algo e, em senti o 1gura o, assm a a sus en açao ponde r a uma dificuldade que representava o começo de um fechament o
principal de algo, de uma coisa que gira em tomo. Procurei no dicionário do inconsciente. Tam_b ém no Capítulo 3 de Além do p rúidpio do prazer
Littré, o mais completo da língua francesa e da sua etimologia, o sentidó F reud introduz uma terceira época, que veremos mais adiante a que condu z.
preciso dessa palavra - como tem que ser feito amiúde com os termos de Se há uma evolução da técnica psicanalítica, esta não deve ser en ten-
Lacan - , e encontrei este exemplo literário para compreender o termo dida do mesmo modo que a evolução, a transformação das técnicas. Não se
pivô, é uma frase tomada de madame de Sevigné: "Aciui temos muitas dis- constróem mais casas ou rodovias como antigamente. Todos os dias vemos
trações, mas onde não as temos giramos sobre o mesmo pivô." Não sei se que as técnicas se aperfeiçoam. O modo de evolução da técn ica psicanalí-
há sempre muitas distrações ~ . mas o que rapida- tica é do mesmo tipo? Claro que não. Se a técnica psicanalit ic1Uv:o.l.u.iu_-
mente verificamos é que, efetivamente, sempre se gira em tomo do n:esmo não tenhamos medo das palavras - é porque o Í!.lCOnsciente m esmo evoluiu.
,eivõ. . . b . . . . Há uma história do inconsciente, pode parecer fantástic o diz~r aigo assim
O interessante é que o su1e1to suposto sa er so rntervem na teona caso a gente esteja convencido de que o inconsciente é uma espécie de
de Lacan em uma data relativamente tardia, pelos anos de 1964-65. Vo- energia vital tão es tável, tão fixa quanto a gravitação do universo. Mas se
cês encontrarão sua emer gência precisamente no texto do Seminário XI, entenderá melhor caso se admita, como L?can, que o inconsciente está
chamado Os quatro conceitos fundamentais da psicanáliseLno Capítulo 18. estruturado como uma linguagem, e _que. a intervenção do _2sicanalista no
Como se entendeu esse tenno? Pensou-se que o analisante começa supondo in°ióri'scTente-J' de 'tai'natÜrêza-gi.ie· pode modificá-lo .
que o analista está de p osse do saber que l_!:i_e_cõ_n~~r:n.e, e p~_o gres~y_a men: Algo distingue Freud de t odos os analistas que vieram depois dele:
te descobre ci~~ não é assim, mas q ~ ~~.lise__se_ ~~~~belece sob_~~ ~-~ase nãa...r.ep_e..ti.i3 uma teoriª, elaborava-a de forma autêntica a partir do p ró prio
58 percurso de Lacan conf~réncias caraquenhas 5g
1

discurso de seus paciente_i.. Não há teórica maior da psicanálise que Anna Isso é muito importante / mesmo que depois o termo transferencia te-
O., a histérica, que inventou o termo "talking cúre", a cura pela palavra. nha assumido um significado muito mais especializado em Freud. Trata-se
Freud apenas o recolheu de sua boca. Foi ela quem o guiou à entrada da aqui dos disfarces do desej~~ue, permanecendo _inconscienteJ s e ~ ~ ·
psicanâlise. A gente sempre se assombra ao ler os primeiros textos, tão fres- apoderando-se das representações mais anóctinas.:. Expressa-se ao se dd-;.-
cos dos p rimeiros psicanalistas, pela simplicidade de suas interpretações car do recalcado para uma representação, cuja própria banalidade a toma
e pelos efeitos milagrosos que produzem, os quais, podemos dizer, estão aceitável para a consciência. :
muito longe do que se pode obter hoje em dia. Vocês podem tentar obter Podemos então dizer q,ue a primeira transferência freudiana c o rres ·
efeitos milagrosos em um sujeito dizendo-lhe que está apaixonado pela sua ponde aos tropas da transferência. poderíamos falar da tropologia da trans-
mãe, isso'não lhe faz qualquer efeito. ferência. Esse é um principio geral. O desejo se apodera de formas erran tes ,
que nada valem em si mesmas, que foram despojadas de signific ação, que
O paciente sabe disso muito antes de que lhe digam e não se obtém
funcionam separadas de sua signüicação primeira, no fundo funcionam co-
nenhum dos efeitos de interpretação a partir de intervenções grosseiras
mo letras, e isso é o que se compreende melhor a partir da teoria Jacaniana
desse género. Vamos ver também, com o sujeito suposto saber, em que sen-
do significante. De fato, essas formas são significantes aos q uais o desejo
tido o psicanalista e seu discurso fazem parte do próprio inconsciente.
proporciona um sign ificado diferente e novo. Isso mostra, entre parên teses,
Para simplificar as coisas, antes de entrar no texto de Freud, vocês a inutilidade das chaves dos sonhos, velha tradição que dura desde a anti-
verão que há - vou dizer-lhes, mas espero que verifiquem no texto de güidade. As chaves dos sonhos são fundadas no principio de q ue a cada sig-
· -Freud, não lhes peço que acreditem só na minha palavra - três formas de nificante corresponde, de forma unívoca, seu significado; se temos a tabe-
transferência, dif 1renciadas po~Freud,,.._que encontram.9s dispersas através la de tradução, podemos passar, de forma invariável, do significante ao
dos textos. ~ ~u~,_.,_ 'v..,;,_~ ~ ( . ' ~ significado. Pois bem; basta olhar po r um momen to A ciência dos sonhos
A primei ra forma é a ~ identifica a !!ansferência com a função de para ver que isso é absolutamente incompatível com a concepção freu clia-
repetição. A sequ nda identifica a transferência com a res~stência. A tercei· na. pois precisamente esses significantes só valem na medida em que fo ram
r~ntifica a tra.nsferência com_a sugg~tão. Diria que o que Lacan tratou esvaziados da signüicação, e se trata de tomar a encontrar, a cada vez, essa
de deslindar, com o sujeito suposto saber, é o pivõ sobre o qual giram estes significação em particular. Nesse sentido, a transferência, a primeira trans-
distintos aspectos da transferência que Freud havia discriminado. Diria ferência freuclian<!J._é o proce1~.g~r":-i_9.as_(Or.!11a.ç§.~sdgim:onscien te - o \ C:::- cr
que .estes pertencem aos fenõmenos que se produzem na experiência analí- sonho, o lapso, o chiste - é que_o ~_es_ej.9~ascara e se aierra a sigri_iü_ç_an - y5;
tica, enquanto o sujeito 51!pOsto saber é de uma ordem diferente à dos fe. ; ~ esvaziados, enguan to t~sl.e~@J{iç_a_ç_ãg,._ Essa é ainda uma concepção
nômenos, é da ordem - estritamente falando - de um fundamento trans-}. muito geral da transferência. '
fenoménico dos fenõmenos da transferência. Diversamente, a partir do caso Dora emerge a significação precisa da_:>c:.._
Vamos pois à história freudiana da transferência, que evocarei breve- transferência freudiana . .f.. ~an.~_f!:r_ên~i~, em sentido psicanalítico, se 12:._o - .::-:;.:.:~
mente. Vou consagrar a essa questão um curso de um ano. em Vince n nes, e duz quando o desejo se aferra a um elemento muito particular q ue é a pe$· J - -~ -
lhes darei uma espécie de resumo dele. soa do terapeuta. Talvez po,ssam ver, em curto-<:ircuito, que essa pessoa~-
Encontramos o termo transferência. empregado por Freud, desde A não é exatamente uma pessoa. Essa pessoa. como talvez tenham entendi-
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ciência dos sonhos; diz-se Übertragung desde A ciência dos sonhos. Qual é do, espero, pela análise precedente, é mais o significante do anai'ista do que
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o seu uso? A propósito d.a psicologia dos processos onfricos, Freud explica sua pessoa. Decerto isso sem pre resultava misterioso quando se imagmava
- como o sonho se apodera do que ele chama de restos diurnos, as lembran· tratar-se da pessoa do analista. Há um artigo muito divertido de Thomas
ças do que aconteceu no dia anterior, como o sonho se apodera desses ele- Szaz sobre a transferência, no Internacional Journal, que diz: "Quando me
mentos para montá-los com um valor diferente. com uma significação dife- olliam, a mim que sou feio como um piolho, me pergunto como é p ossível
rente daquela do momento de sua primeira emergência. São então formas que se aferrem à minha pessoa." Isso dá origem à idéia de que a transfe-
esvaziadas de seu sentido, muitas vezes até insignificantes, e o desejo do rência é sobretudo wn fenpmeno ilusório, um fenõmeno imaginário. E
sonho as investP. de um novo significado. É ai gue Freud fala ~primeira isso não está errado, só que encontramos esse tipo de ilusão a cada momen-
vez de transferência de sentido, de deslocamento, de utilização, pelo dese- to, na existência. Esse é um pequeno curto-circuito para fazer com que no-·
io....Jiuo_r.TMLJlb..ltl_a_uul.Lqjl..1...CUl~.is.5~-ªPºdera .ds quais carrega... infiltra tem que "a pessoa do analista" deve ser entenctida entre aspas. A psicanáli-
e dota de uma no.v.uignificai;ã..0-.. se é feita precisamente para nos fazer duvidar de que as pessoas o sejam
60 percurso de Lacan
con fenincras r..araquenhas 61

tão verdadeiramente. Em todo caso, o lacanismo está do lado oposto ao é im possi've.l:faz~?oria_~a_ P.S,icanálise .'ie. .não. se....a.dmi.te.que...o.. anal lua.. é
de qualquer teoria da personalidade. Assim, a transferência freudiana é o uma formaçao do 1nconsc1ente. Essa é uma tese geral. Espero ter tempo
momento em gue o desejo do paciente se apodera do terapeuta, em que o para. lhes
. mostrar . como
. os próprios
, teóricos contra os· quais Laca n qui· s
psicanalista - não sua pessoa - imanta as cargâsliberaGa's" péiõrecalque. - restituir o- sentido inaugural da experiência freudiana - a saber , os t eori
· ·.
• 1
Essa concepção da trãiisferenc1a Ja unphca multas coisas. Imphca, cos que nao sei se posso chamar de anglo-saxõni:;os. pois eram tod os euro-
precisamente, _gue não há exterioridade do analista com relação ao in- peus, em sua maioria e~ilados ~~lo~ nazistas - . mas, enfim, os teóricos que
consciente. Evidenternentê:se seunagina que o inconsciente e ãigo que recobnram a verda~e ...a e~~º~~nc1a de Freud nas zonas de influência i.n,
está em algum lugar no paciente, e se pensa que o psicanalista que está ao glesa e nor_te-amencana, esses ! teóricos eram conduzidos, pois era gente
lado, sepàrado por uma pequena distância, que está ai em sua poltrona, sena, a designar um lugar para o analista na economia psíquica. Só que
com suas diferentes preocupações, seu corpo que incomoda, suas costas esse lugar não era o adequado, i~so é o que tratarei de lhes mostrar.
que doem, seu peso que ele cuida, é evidente q1;1e esse analista não tem na- Enfim, ainda que eu a diga de forma um pouco provocadora. essa
da a ver com o inconsciente que, supõe-se, está escondido no paciente. tese de que o analista _é urna formação do inconsciente não é, penso,
Mas a própria idéia da transferência já nos conduz a _c ompreender 5!Ue o ~ma tese somente lacamana, mas urna tese para toda a teoria da psicaná-
analista, na medida em que ºEera com a cura _psicanalíticaJ_não é- ~~~_9.9r lise. _Como se ~presentam as coisas em Dora7 Como se apresenta de fato a
ao inconsciente do paciente, e que talvez seja necessária uma idéia mais teo.na? A teoria da transferéncia: eis o que Freud se viu obrigado a cons-
sofisticada do que essa idéia grosseira de inconsciente. t~ir para dar conta de um fato que primeiro se apresentou como impre-
É isso precisamente o que faz a particularidade da observação psi- . V1sto. A transferéncia não estava prevista na teoria de Freud. Ele tinha
canalítica, do relato de casos. Se a escrita de um caso é difícil em psicaná- P:rcebid~ - mediante o que se acredita ter sido sua auto-análise, mas que
lise é porque, em última instância, é uma psicanâlise do próprio analista. nao o foi - a possibilidade de decifrar uma formação do inconsciente e
Na observação psicanalítica não há essa exteriorid~q_ue conserYa_a .ob: por inten:ié~ío_ desse_ deci:rarnento trata de fazer o sintoma desaparec~r;
servação psiquiátrica. . a transferenc1a intervem a1, primeiro, sob a forma da surpresa. Mas eis qu e
Freud é, talvez, o melhor exemplo, precisamente no caso Dora. o terapeuta surge interessando especialmente o paciente, ocupa seus pen-
Vocês sabem que. uma vez terminada a cura de Dera, ou melhor. inter- samentos e, sobretudo no começo, desencadeia o amor do paciente. Es-
rompida a cura, pois ela a abandonou, Freud reanalisou sua própria posi- t~os a~~ra acostumados com (a idéia de transferência e contratransfer~n-
ção.com relação a ela, e concluiu que se tinha equivocado fundamental - c1a~ pos1t1vo : n~gativo, _m~s t~riamos que ser capazes de ter certa surpre-
mente quanto ao objeto de interesse de Dora: tinha acreditado que seu in- . sa ~0 m . rela~~º a emergenc1a d.o arri_o_r_em uma atividade que se apresenta
tecesse principal era o homem, o Sr. K., e não percebeu, como ele mes:me:-Í. como cient1f1ca e terapêutica. i
diz, que o interesse fundamental de Dora, a histérica, era a Sra. K. DorF _ Essa chegada imprevista _da transferência a faz parecer, primeiro, um
só se interessava pelo Sr. K. como mediação para se aproximar do misté- fe_n?meno parasitário que 2erturb~ª5..2_ntinuação dQ_!_@Qalho. E uma es-
rio essencial que ocupa a histêrica, a saber: que é uma mulher? E se Fr.eud pec1e. de entorpe:imento da relação terapêutica, e Freud chega a assinalar
cometeu esse equivoco, foi por preconceito, pois estava convencido de qu~ e como a cnação de uma ·nova patologia no lugar, talvez, ou al êrn da
que o que tinha que interessar às moças eram os homens. Nesse sentido, anng~Esse não é, evidentemente, um bom resultado para urna atividade
o caso Dora é também o caso Freud. E o que dá a grandeza das Cinco Psi- terapéu tica - criar uma nova patologia. A transferência conserva esse ca-
canálises é que o caso que está em seu centro é o caso do próprio Freud, ráter de patologia própria da experiência analítica, e Freud rec onhece
que também não vacilou em se colocar ele mesmo na Ciência dos sonhos, .9ue essa patologia é in_~vitáveI, pois o desejo inconsciente é mobilizado
que é o que permite, afinal, que saibamos muito sobre a relação de Freud pela cura. Aí notamos o carãter bifacial, a dupla car;·da transferência.
com, por exemplo, a mulher. Por um lado, a emergência da transferência na cura é testemunho do
O que também nos ensina a transferência desde o seu começo, es- inconsciente. Tem-se que ser inconsciente para amar Thomas Szaz. É tes-
pero tê-los feito entender a partir do exemplo dos restos diurnos, é que_~ .. t~munho da atualização do inconsciente, esta é uma das definições laca-
enqatamento se dá muito mais_ç_QmJim..significante_çq_q_u_uom Ul}l....ª-~s- '.11anas?ª transferência: a transferência é ;i a..tJ.talização da realidade do
soa. Digamos que o analista, como s.igrúficante, faz parte da economia 10coasc1eate Quando Lacan diz isso, está muito p róximo dos text os de
psíquica. Esse é o descobrimento da transferência. Há um lugar_na "ecg.:_ Fr_e~d, mas com uma formulação que não está no mesmo ni'vel que a d o
nomia psíquica" gue o analista vem ocup,!_í, Eu me atreveria a dizer que su1e1to suposto saber. Lacan p assou 1O anos em seu seminário para elabo-
1

...
62 percurso de Lacan con ferúncias caraqu enhas 63

rar a teoria do sujeito suposto saber, e é necessano - para os que traba- O inconsciente aparece cbmo um repertório da commedia deU'arce,
lham Lacan - saber ordenar esses diversos estratos d~ sua teoria. ainda que na qual há personagens mu ito tipificados : Pantaleão, Polichinelo, Arle-
não seja essa a nossa preocupação de hoje. quim. Colombina; com esses personagens. pode m ser reproduzidas todas
A transferência tem seu valor poE_gue eermite ver o fu ncion~~?to as situações da existência. A ttansferência aparece, assim, como uma il u-
de um mecanismo inconsciente na pró pria atualida_de da sessão. Po r isso são, precisamente imaginária~c.oma alga que nãa..e..:.rãê:ional=.eõmõ~WILÍé-
Freud pode aconselhar, a todo terapeuta que esteja começando, que inter- nõmeno aberrante. 1

prete somente quando a transferência já teve inicio, pois a emergência da Uma transfer~~j~o. i_ncbns~iente no e:_e~_n_t_~! eis o que Freud for-
transferência assinala que os processos inconscientes foram a tivados. . mu la rá e:.1 seu texto Lembrança, repetição e elaboração, 14 que apa rece
I;'ois bem: ao mesmo tempo, e este é o segundo aspecto, é um o bsta· um pouco depois daqueles Escricos sobre a técnica; o segundo texto da
série se chama Ou eras recom 1ndações sobre a cécnica da psican.iiise 1 5 .
0

culo p ara a cura. Vejam que a articulação é muito complexa nesse cas~. O
texto com O qual devemos nos orientar é o primeiro texto dos Escritos Uma transferência apar~e na conceituação de Freud, nesse texto,
sobre a técnica o texto Sobre a dinâmica da transferência, de 1912. Freud como um fragmento de repetição inco nscien te, como presa ao automat is-
dá inclusive u~ truque para o psicanalista: se acontece que as associações mo de repetição. No fundo, o analista exerce uma pressão sobre o incons-
de um paciente se interrompem, pois ·..mtão lhe diga: "Você está pensando ciente pela próprtaÕferta que- fai-dé -escutarõ- j:iãêºíen te, escutá-fõname-
em mim", isso sempre funciona. . dida em que diz qualquer coisa - e__EQ:_çi110_S_~ue .o.,qu~_d_i~ __!!Unca ;rq-Uái-
Isso destaca que a transferência tem uma função, pode-se dizer, de quer coisa -, e essa qualquer coisa o conduz á zona que im~-gina~os···n~·
tampa para as associações inconscientes: vem a in~erron_1pé-las. Se lerem_o . mais profundo, onde estaria escondida sua libido. Esse empurrão dÕ...ána-'"·
seminário Os quatro conceitos fundamentais da ps1canálise de Lacan, vera~ lista é, para Freud, necessariamen te correlativÕ· a uma resistência. Essa
que nesse seminário ele titubeia quanto ao caminho a seguir com relação a conce~ão gerou - deve ser difO - todas as aberrações da psicanálise das
transferência, que de uma lição a outra - ainda que sempre fale com a resis tências, na qual vemos o psicanalista empurrar o paciente até os se us
mesma segurança - busca seus pontos de referência. Poderá~ ver qu_e La- ultimas esconderijos. e o infelit resistir cada vez mais. Isso termina assi-
can assimila a transferê ncia a um tempo de fechamento do rnconsc1ente, milando a psicanálise a uma e~pécie de lu ta, o que é muito diferente do
não a um tempo de abertura. Essa é a profunda ambigüidade da transferên· que Freud propõe. Encontrados isso em certos textos e, quando os apa-
eia. A analise se faz. em cer~C?_5~~ tido, graças à transferência e, ~~ -~tr? listas se abandonam um pouco, a coisa fica do tipo : "Você está resistin-
sentido, . apesar da tr~~~r_ênc1~: Capt~os .ª~sim dois aspe~t~s ?ª tran~- do, seu nojento". O psicanalista tenta atravessar essas resistências, irrita o
paciente, sacode-o. Finalmente, poderíamos dizer que o paciente e paci-
ferência: 0 aspecto mediante o qual :e 1de.n~if1ca com a re~e_t1çao rnconsc1·
ente e O aspecto mediante o gual se 1dent1f1g,...,2elo contrano. com .ª re~ - ente e o analista que pratica a análise das resistências é, ele, impaciente.
tência. · Podemos vê-lo claram ente em um dos textos que evocam a p rática
- --Freud evoca a repetição desde o começo do texto A dinâmica da analítica precisamente naquela época, nos te xtos de Wilhelm Reich da
transferência. Diz - é uma expressão-um pouco rudimentar - que o que época em que ainda era psica1alista, e até um teórico muito destacado
se produz pode ser descrito como uma placa estereotípi~a ou várias ?l~cas, da psicanálise. Que diz ele? Diz: afinal, o que devemos recriminar no psica-
que podem permitir obter figuras por impressão mediante estere~t1pos nalista de hoje - quer dizer, em torno de 1920 - é que deixa o paciente
que se repetem de forma constante, reimpressos no decorrer d~ vida de fazer o que quer, e o paciente não é sério, foge do ponto decisivo de rua
uma pessoa, na medida em que as circunstãn_ci~s exter~as? ?emutam. Es· carga, fala de tudo e de nada, ziguezagueia. Diz : "Nós é que de vemos le-
sa é uma forma muito ligeira de falar da repet1çao: cada mcliv1duo tem uma và-lo de volta ao caminho reto, e ê só quando o tenhamos obrigado a
placa estereotipada da qual ura · exempl_are~, ~ · d e f'101'd amen t e, n o decor· pensar no que não quer pendr é que começaremos a analisar o incons·
rer de sua existência e, afinal, a transferenc1a e o momento em qu ~ ~a- ciente.". No fundo, todos os 1 analistas desse te mpo foram teóricos da
7 psicanálise ativa, da posição at iva. Não foi só Ferenczi que promoveu a
lista é captado ne;ses estereótipos, o momento em que a ca_rga hb1din~
introduz O médico em uma dessas séries psíquicas que o paciente const1· atividade nesse sentido, mas progressivamente a psicanálise inteira caiu
na via da atividade do psicanalista. A prova e que se saiu dos limites da
tuiu no decorrer de sua existência. .
Aqui _ podemos evocar o termo imago - o médico é introd~z1d~ psicanálise quando se começou a olhar o paciente, quando se c omeçou a
em uma série, e pode ser identificado à_irnago materna, mas também a manipulá-lo. Pois bem - isso lproduz, talvez, efeitos; mas já não é psica-
nálise. Toda a psicanálise se afundou ai. Eu diria que. como teórico da
imago do irmão, à imago do pai.
64 percur so d e Lacan conferéncias caraquen has 65

"passividade" (entre aspas) do psicanalista, de sua não-a tividade, pois ção que não percebemos muito bem. Um dos objetivos da teori a lacania-
1

bem - está Lacan. Afinal, ele disse que compete ao analista ser paciente. na da transferência é distinguir radicalmente a transferência da sugestão,
Podem perceber em que se pode contrapor Lacan a t odos os teó- aceitando ao mesmo tempo que res t a uma margem de sugestão em toda
ricos pós-freudianos da psicanálise. Laca n tem, fundamentalmente, confi· operação de transferência. ! ·
ança no inconsciente. Os psicanalistas de h oje, por seu lado, já não crêem, É nisso que se pode captar por que a análise do paranóico é - no
não c o nfiam no incon sciente. Lacan partiu d essa comprovação, no começo mínimo - difícil, senão impossível, mesmo que Lacan diga que o psica-
de seu trabalho. Por outro lado, o que melhor mostra que já não crêem nalista nunca deve retroceder ;diante da p~cose. A transfe rência do para-
nisso é a forma em que se organizam nas suas sociedades, a forma pela nóico continua sendo fundamentalmente nega tiva, e isso toma com efei-
' '
qual.-aceitam um novo membro, a forma com que impõem graus, exata· to, difícil operar sobre ele mediante a sugestão.
mente como qualquer associação, qualquer sindicato - e, na m aioria das Pularei algumas coisas, p~is senão nunca esgotaremos o tema. Quero
vezes, suas associações não são outra coisa senão sindicatos de defesa pro- evocar Lembrança, repetição relaboração porque. nesse texto, Freud es-
fissional. Lacan dizia, inclusive, que eram sociedades de defesa mutua tende a transferência até fazê-la recobrir toda a dimensão da cura analíti-
contra o inconsciente. Enfim, estou me afastando do terna. ca. Chega a dizer, como sabe m! que se P.rodu~_n.a experi_êJ:~i~-~-aJ itica uma
A transferência, quando a situamos entre a pressão do analista e a nova neurose, que ele chama ,de neurose de transferência. Nesse sintÍdo~
resistência, aparece essencialmente como uma formação de compromisso: quase poderíamos acresc entá-lf como um qÜârt.'o modo .de· transferência; a
a libido abandona um pouco de terreno ante a demanda do analista, e há neurose de transferência é, se quiserem, a modalidade de conjunto da cura,
um pequeno pedaço que se solta e obtura o conduto. Por isso podemos a doença artificial própria da psicanálise. Afinal, talvez seja o que a psica-
falar d e tampa. Nesse sentido, a transI_erência assinalaq_u e o j,n~gnsciente . nâlíse tenha feito de melh or, inven tar uma nova doe nça. COI)1o diz Freud
foi atingido e imediatamente se manifes ta através . de uma _infração _à re- nesse texto - perturba-me um pouco resumir um texto que teria que ser
1
gra fundamental da psicanálise, através de um silêncio do paciente que seguido em todos os seus rodeios, pois cada um desses rodeios tem algo a
evita o pensamento acerca do terapeuta. ensinar -, com a psicanálise todos os sintomas do paciente adquirem uma
Se segu imos a concepção de Freud do primeiro texto dos Escritos nova s:ignificãção.-Fala a respeito de uma signu'lcaçãO·-aetransfé"reiiCía,"
sobre a técnica , o motor do t!"atamento parece se!" o combate entre aHbids:i. Ubertragun g Bedeu tung. Pergunto-me como o entenderam e que pu deram
do paciente e a demanda do analista. E aí que Freud faz intervir essa in- fazer com isso os psicanalistas que não pensam que o inco nsciente está
-versão que transforma a transferência, de obstáculo em alavanca; a trans- estru turado como uma linguagem. Se Freud pode dizer que todos os s:into-
fe rên cia se co nverte no ponto de Arquimedes a partir do qual o p aciente mas adquirem uma nova significação a partir do começo da cu ra analíti-
pode se r levantado até o mais profundo de si mesmo. Freud intrC?uz, ca, é porque o sintoma é um eleme nto que tem uma significação -que se
nesse mo ment o, a diferença entre a transferê ncia positiva e a transferên· dirige ao Outro. Trata-se de determinar - e j á o pod~mos percebe r em uma
eia negativa. Evidentemente, re a transferência é negativa. isso não é mais primeira análise - em ~e lugar o psicanalista se situa na cura; situa-se
psicanálise, é melhor que a transferência seja positiva; distingue, dentro da no lugar aonde se dirige o _sintoma, é o recep tor essencial do sintomae,
transferência positiva, uma transferência de tipo eró tico ( que é melhor por isso, o lugar que deve à transferência lhe permi~e OJ2!rar_sobre o
proscrever) e o que convém apoiar, o que constitui verdadeiramente a smtoma.
alavanca da operação, que é a transferência positiva, amável, terna mas Faço um pequeno parêntese que lhes permitirá captar, talvez, a con-
n ão erótica. Quando há t ransfe rência e simpatia, tudo bem. Assim, anali- s:istência da teoria de Lacan e :de que modo ela permite orde nar elementos
sar a transferência consiste em lÍquida r a transferê ncia n~ga_!'!~·-ª trans· que em Freud aparecem desordenadamerite. A transferência é a tal ponto a
fe renc1a p os1ttva ardente demais, e conservar a t~ansferência_amável,_coi_sa modalidade de conjunto da cura que Freud chega - vocês sabem - a acon·
que permite operar no paci~n t~por sugestão._ se!har que seu paciente adie pecisões importantes para a sua existência,
Chegamos então à terceira forma de transferência, a transferência de por medo de que estas sejam: apenas manüestações parasitárias da cura.
sugestão. Freud .diz p recisame nte: "Devemos admitir que os resultados Isso fu ncionava bem, evidentemente, quando as curas eram de três sema-
da psicanálise repou sam sobre a sugestão . Por sugestão devem os enten- nas ou de seis meses. Mas, quando c o m eçam a durar 1O anos, fica um pou-
der a forma d e influir sobre uma pessoa mediante os fenômenos de trans· co difícil pedir ao paciente que n ão viva duran te esse tempo. Toda a
fe rência possíveis ~m seu caso. " Vejam que aqui há ao mesmo t empo, questão está aí: o que diferencia na verdade os fenômenos que se produ·
entre transferência e sugestão, uma espécie de equivalência e uma distin- zem na existência, que - imaginamos - são reais? Por acaso é tão simples
-1
66 percurso de Laca n 1 ~onla,éncias c:araquenhas. 67

distinguir entre o ilusó rio e o real? O que chamamos de nossa vida real não - ve rc1 a d e1.ro
tao · quanto o ou,1tro. De modo que esse artigo d e Freud,
0
é m enos ilusório do que aquilo que se produz na cura, e aí adquire todo amor analista, está bem delineado p a ra nos fazer questionar a idéia de vid a
seu valor o terceiro texto da série Outras recomendações para a técnica real. Algo proporcionado efetivamente pela psicanálise é que a vida é fun-
psicanali'tíca , que se chama Observações sobre o amor de transferência 16 . damentalmente uma repetiçãb, que temos a ilusão do novo, mas, de fato,
É um texto emocionante de Freud porque, de todos os modos, a vida é c onstituída pela re petição. Precisamos de um a psicanálise para
Freud é um vitoriano. Lacan disse que, no fundo, sem a rainha Vitória, notarmos esses limites tão es treitos em que estamos capturados por u m
sem o que ela representa, nunca teria havido psicanálise, e dedicou uma numero extremamente limiddo de sighifican tes. No que se refere a isso.
au la de seu seminário à biografia da rainha Vitória, de Lytton Strachey . não somente somos pouca coisa - como a religião n os tem e.nsinado e re-
Esse é ufu ponto que Michel F oucault abordou no começo de sua História p etido - , mas também vive~os em um sonho. ~ e Lacan evoca , muito
da sexualidade. Há uma obra de Moliêre chamada O amor médico. Pois p recisamente, é que não se son~~- simplesmente quando se d_o_r_)!l~ -
bem. o texto de Freud é o "amor analista". Mostra -nos seu incômodo di· guando a gente acorda, muit as vezes é para c o ntinuar dormindo , dor mi n·
ante desses amores determinados pela situação analítica. Faz uma descri- do com os olhos abertos, e assim-·passarnÕs todo o ·nosso te-mpo. No-·mo·
ção de um amor tumultu ado de uma dama pelo analista. O terrível é que, mento em que nos aproxím,amos, no sonho, do que é verd adei rament e
com essa concepção, deve-se considerar que essa dama, que não pede reâl em nós, é nesse momento que acordamos, porque nos dà medo, aco r-
outra coisa senão se entregar, está atuando urna resistência. Ê algo delica- dam os para continü'ar do...rmin~o. . .. ..... ... ...... .
do, na tradução simultânea, o intervalo entre o momento em que a gente Isso é algo que exige mais precisão do que a que esto u utilizando.
diz uma piada e o momento em que -o outro reage. É curioso, deixa a gente Mas na psicanálise existe uma aspir ação a acordar que não é satisfeita to·
com certo suspense e mal-estar. Se quiserem, o sintoma é um pouco as- talmente pela vigília de nossas atividades cotidianas. Não se pode dizer
sim, quer dizer, está dirigido a alguém. mas é detido em algum lugar e - que se está acordado quando se passa uma h ora e meia em um en ga rra·
durante o tempo em que permanece detido - não nos senti.mos precisa· famento para chegar a té aqui. Nossa vida se acomoda muito bem a esse
mente muito cômodos. Por que então a abstinência do psicanalista? No torpor, ao qual as conferências mu_ito longas também .conduzem, é .uma
fundo, seria satisfazer um desejo que se manifesta abertamente, seria - espécie de hipnose mútua. ~as na palavra h á algo disso, a ,palavra em si
diz Freud - o triunfo da paciente, quer dizer, o triunfo da repetição sobre mesma é hipnótica. O próprio fato de consentir em ouvir já é uma perda

1 a rememoração. A transferência é ~ o a repetição triunfa sobre a exi-


gênoia de recordar e verbalizar que o psicanalista formula. O psicanalista
pede, mediante a "assoc1açãõ1ivre'';... ã -rememorãçfo - Afrarísíerénc fa _;
do livre arbítrio, já os co loca á mercê da voz que. no sentido de Lacan,
é um objeto, um objeto de catexia. Enfim, estou me afastan do um pouco
do tema, mas voltaremos aencon trá •lo quando se tratar da sugestão,
de sse valor que evoco de passagem.
opõe, à rememoração, a repetição._Assim, satisfazer o desejo da p aciente)
nesse caso, não seria tanto ser infiel à ética do terapeuta - que pode ser Assinalarei ainda o qu~ Freu d diz em Além do prinápío do prazer,
levada em consideração - , mas sim, sobretudo, ser infiel à regra fundam en· texto de 1920. No Capitulo ,3, distingue a psicanálise como arte de inter·
tal da psicanálise: dizer tudo, recordar em vez de repetir no presente. pretar as resistências e, finalmente, se interroga aonde chegamos hpje em
Quais são então os traços que diferenciam esse amor de transferên- dia. Comprovamos que o pacien te tem q ue repetir o recalcadci° como uma
cia do amor. não direi de todos os ctias, pois o amor é algo qu e não se dá experiência atual, em vez de iecord a-lo; é isso, inclusive, o qu e perryúte des·
todos os dias, mas do amor da vida? Freud diz que é um amor, inclusive, truir as catex:ias em que está: capturado, po is isso não se p ode faze r in ab-
1
artificial, provocado pela situação analítica, que além d.isso é intensificado sentía, deve ser feito no presen te, e diz uma frase absolu tamente esse nc ial:
· pela resistência, que comprova ser mais irracional do que o amor que se "Não se de ve eSSIJ!.fcer que d inconsciente, o recalcadq, não oferec!!..SJ..ual-
encontra na existência. Isso não me parece muito convincente e, por guer resistência aos esforços da c ura." Isso é muito importante porque
outro lado, a Freud também não. O grande problema é que: quando a marca sua evolução entre l 9Ii l e 1920: é algo que tem a maior importância
gente vê as coisas de perto. não se consegue diferenciar esse amor de trans- para Lacan. O inconsciente :freudiano, enquanto tal, não resiste, a única
ferência do verdadeiro ílmor. Não se consegue muito bem co nsiderá-lo coisa que pede é dizer-se, só pede ~.!!l_e_EgiI.t_ abri!...Qai_S-ª-!Iem. As resistências,
inautêntico. Pois se esse_.~or de transferência é uma repetição estereo· diz Freud - que está construindo a sua segunda tópica - , provêm do eu
tipada das condutas inscritas no sujeito , dispostas a ressurgir quando s_e (moi) e não do recalcado. Ptovêm do eu porque a li~ação....da..r.e.ca.lcado.
lhes dá ocasião, isso é certo 1:iara todo amor.~ãa exjste.".diz F~e~;f ~~r provoca d esprazer. Aqui então começa a fi gurar este ter~o. tão importan-
que não tenJ1a__seu_ protótipo oa infâ ncia Dito de outra form a, esse amor e te depois, a compulsão à repetição que está presente no inconsciente. O
68 percurso de Lacan conferências caraquenhas 69

famoso Wiederholungszwang sera o objeto do próprio texto de Além do ~-_:=-~~qe_1. ;_? _.dif d 1 .
-~rent~-~~~<:_e!l_o ___ . - sua e1a bo raçao
d e__!:_f?~g-~a_.2.. - va1,
. pre-
princ1'pío do prazer. Como p odem observar, temos uma oposição entre a cisamente, esclarecer seus aspectos contraditórios, múltiplos, qu e Freud
resistência, que é referida ao eu, e a repetição, que é repetição do recal· isolou, digamos que com cert~ desordem - creio não exagerar, se lerem
1
cado. Isso e suftc1ente para contradizer a construção anglo-saxônica so· os textos verão que há um cert o bululú, como se diz aqui, na teoria freu-
Õrea análise das resistências. De fato, o que Wilhem Reich criticava nos diana da transferência; tentem isolar com precisão o pivô em torno do qual
que deixavam os pacientes seguirem seus ziguezagues era a sua própria giram todos esses fenômenos.
incapacidade de decifrar, em seus movimentos mesmos, a linguagem pró· Então, será que é uma p~ra e simples criação d e Lacan esse rujeito
pria do inconsciente, sua linguagem metafórica e metonímica. sua lingua· supos to saber? Não sei quanto tempo ainda tem os, começamos às 8h30min,
gem totalmente em desl izamento. e jã estou falando hã uma hora e três quart os; vou deter-me um pouco na
Em Inibição, sintoma e angústia, acha -se uma especie de quadro das beirada e isso fará com que vocês voltem d.a próxima vez. Onde se situa o
resistências. Freud evoca a resistência do recalque, a resistência da trans· sujeito suposto saber, já que, fazendo uma breve revisão nos textos de
ferência, a resistência do isso, a resistência do super-eu - que foi a última Freud sobre a transferência, nada notamos sobre essa categoria? Pois bem;
que descobriu, e diz ser a mais-obscura, enraizada no sentimento de culpa. há um pequeno texto de Freud, que deixei de lado em minha enumeração,
Na segunda conferência voltaremos a essa resistência do super-eu, para ver o primeiro texto da série Outras considerações sobre a t écnica psicanaH-
como pod~mos esclarecê-la um pouco. tica, e que versa sobre o começo da análise.
Mas, então, em tudo isso não vemos o sujeito suposto saber. Temos, Lacan funda a transferência, em sua dimensão radical, no próprio
por um lado, uma transferência extremamente polimorfa, que pode ad- dispositivo da cura. Funda a trinsferência como uma congi_q_(l~~me.di.a.:
quirir diferentes valores - repetição, resistência, sugestão - e até co brir o ta do procedimento freudiano, 'como uma ~seqüência imedia_!~E~~g~
conjunto da cura. A transferência aparece sempre como um conceito eva- fundamental da psicanálise. E uma dedução, se quiserem, puramente lógi·
nescente, que se confunde com outros conceitos; que se confunde, em um ca; Q_filJleito suposJ.Q..E!_ber nãq é algo que se observe, . ainda que se possa
sentido, com a repetição; em outro, com a resistência; e com a sugestão observá-lo, mas segundo modalidades muito precisas. E, fundamentalmen-
em um terceiro sentido. É um conceito absorvido, de algum modo, pelos te..... um princípio que toca na ~pria lógica da psican'áltse, uma log1ca que
outros. Os analistas ainda estão nesse ponto. Hoje eu lia um artigo no jor- depende desse princípio posto no inicio pelo analista,que tem a ver com.
nal - creio que E/ Nacional ; pois, ainda que não fale o castelhano, o leio o convite q~e se _f~~pacien te_para dizer tudo em desordem, sem reter
bem, sobretudo a prosa moderna - onde alguém evocava de passagem a nada, sem ser . ~.etid~_pela decência ou pelo desprazer. O sujeito suposto sa-
t~an:ferência em Freud, dizendo que a transferência, grosso modo, era ªi ber, no sentido de Lacan, é uma conseqüência diretaj_e_~E!"~i!.9-J~!:!~Úo.
repetição. Tinha algum espaço para dizer algumas generalidades sonorasii' Se quiserem, é o . principio constitutivo da tra!]._;; (erêocia; depois, sobre esse
acerca de Freud e, entre estas, dizia que a transferência equivale à repeti- fundamento, pode produzir-se toda a diversidade dos fenômenos. que
ção. Pois bem, Lacan também o disse antes de construir rua teoria. No acompanhamos em Freud. Suj~ito suposto saber não é de modo algum,
grande texto de Lacan de 1953, Função e tampada palavra e da linguagem, como se imagina, que o psicanalisante, aquele que vem pedir uma psicaná·
mais familiarmente chamado Informe de Roma, Lacan dizia: "O automa- lise, imagine que o psicanalista sabe tudo. Pode inclusive, na maioria dos
J.ismo de repetição não busca outra coisa_ senão a temporalização da expe· casos, estar um pouco decepdonado com seu terapeuta, comparado com
riência da transferência." a idéia que tinha dele. Se o paciente tem uma idéia sobre a psicanálise em
Não tentaremos comentar o detalhamento da coisa, que é muito Freud, o psicanalista que vai encontrar, com esse parâmetro, talvez lhe pa·
complexo. Mas vejam que um leitor poderia considerar que Lacan também, reça um pouco decepcionante: Pode até desconfiar de seu psicanalista e,
afinal, absorvia o conceito de transferência à idéia de repetição, a qual.de em vez de supô-lo tão sábio, c ç,locar sua capacidade em dúvida. Com fre :··
algum modo, continua sendo o principal entre os seus três valores, o valor qüência, decerto, não está necessariamente equivocado.
que mais deteve os analistas. Lacan evoca, em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,
Então, essa confusão - pois não é outra coisa - só foi eliminada por um artigo de Nunberg no Internacional Joumal em que este se refere aos
Lacan no texto a que aludi , Os qua tro conceitos fundamentais da psica- ditos de um paciente insatisfeito com seu psicanalista, o qual lhe diz: "Vo·
1
n.:llise. O mais notável, nesses quatro conceitos, é qua is são eles. Lacan con· cê não sabe isto, é claro, nem aquilo, claro, e nem sequer é capaz de apren·
sidera conceitos fundamentais: o inconsciente, a repetição, a transferência dê-lo." Nunberg diz com justJza: Vi afinal, nessa insistência, que estava
e a pulsão. O mais importante aí, precisamente, é que faz da transferência pronto para a transferência; r4a de readin t;ss to transference. Não se trata ,

r
70 percurso de Lacan conlerãnciJs CJraquenhas 71

então,_Ê~p_ens?_r_que o _5lljgj_1.~uupQs_t.Q_~é!~i:. s_e_J?~C??r.n.~ _n a_p~~~~nça _fi~i!=a para alguma outra coisa. O psicanalista está Já para garantir ao paciente que
_ijo anaJista,~_g_~~.RQ!...9..U.!...Q..paciente lhe atrig_~i...? ~:m_i~s:.iêr.i~ia, Isso pode esse exercício sem lucro quer dizer alguma coisa, mesmo antes que se saiba
• 1
ocorrer, mas nesse caso se deve ter o cuidado de verificar que não se esta o quê. E nessa articulação delicada e puramente lógica que Lacan vê o
na presença de uma psicose alucinatória. Ha psicoses desencadeadas pela fundamento mesmo dos fenômenos que são dados depois como os da
experiência analitica, a partir do que, efetivamente, a transferência ai fun- transferência. i
ciona. Funciona, de algum modo, em estado puro. O paciente está conven· É evidente que só lh es deiluma pequena visão da teoria do sujeito SU·
cido de que o analista conhece seus pensamentos, e até os fomenta em sua posto saber. Mostro-lhes corno uma argucia, no sentido de Freud. um Wic.z.
cabeça. Mais ou menos isso foi o que ocorreu com Schreber em sua transfe- Acho que poderei, da próxima vez, desenvolver a art iculação e as co nse-
rência eom o professor Fleschig. Enquant::, provocada pela psicanalise, a qüências do sujeito suposto sabe,r.
psicose alucinatória nos faz ver, em estado puro, a emergência do sujeito
suposto saber de maneira aterradora, posto que o terapeuta se converte no
Outro emissor dos próprios pensamentos do sujeito, converte-se na referen·
eia do que o psiquiatra Clérambault - que Lacan reconheceu como seu
mestre em psiquiatria - chamou de automatismo mental. Não sei se esse
termo, que é clássico na clinica francesa, ·é aceito na clínica psiquiâtrica la·
tino-americana. Para deixá-los na beirada dessa teoria do sujeito suposto
saber, vou, de todos os modos, indicar-lhes por.que caminho foi introduzi-
da por Lacan.
Que implica a posição assumida pelo psicanalista de convidar o paci-
ente a dizer tudo e qualquer coisa? Com isso lhe diz ao mesmo tempo:
"Diga tudo, qualquer coisa, isso sempre vai querer dizer algo." Dá ao pa·
ciente a garantia de que não se fala á toa. Garante a psicanálise, e deve ser
dito que. aí há, funqamentalmente, urna impostura, uma impostura con-
substancial com a psicanálise, uma impostura em obra. Quando se constrói
com a psicanálise uma nova igreja mundial que censura, que se incha como
· uma multinacional, uma ITT da psicanálise, muito se está acrescentando ~
impostura; o exercício da psicanálise faz, pelo contrário, vacilar todos es~
semblantes. 'A força de Lacan está em ter continuado invariavelmente seu
trabalho, apesar da grotesca excomunhão de que foi vítima pelos centros
de poder instalados dessa internacional, encontrando seu fundamento no
exercício autên tico de sua prática, que é hoje ineliminável do discurso da
psicanálise, e que - no momento em que a psicanálise decai nos Estados
Unidos - encontra uma expansão na França, uma importância incompará·
vel co m a decadência inglesa e norte-americana. A tal ponto que, se em Pa·
ris a Escola Freudiana de Lacan se tornou a mais importante, é porque os
pacientes iam lá - e os analistas os seguiram.
Hã uma impostura que é congênita na psicanálise. Que é o psicana-
lista? É alguém que está lá para pôr a impostura em obra, apenas por sua
posição. Ga rante ao paciente que o trabalho sem lucro, no vazio, esse tra·
balho profundamente contraditôrio com a ética da nossa sociedade capita·
lista, no sentido do capitalismo que agora se estende por todo o planeta
sem qualquer exceção, quer dizer, a exigência de rentabilidade na ativida·
de , garante que tudo o que a gente faz serve para alguma coisa, quer dizer,
confere ncias caraquon has 73

esse respeito, existe o que Lacan não vaciJa em chamar de um poder, 0


poder do analista sobre o sentido - o qual é correto para qualquer comuni-
cação h1;1mana, para qualquer relação. Dessa forma, como falamos uns aos
A TRANSFERÊNCIA. outros, ·podemos dizer que nos revezamos compartilhando o poder, e assim
O SUJEITO SUPOSTO SABER as comunicações se equilibram. Na psicanálise, pelo contrário, a própria
estrutura da relaçi1o é dissimétrica, pois um entrega o material, enquanto
o outro tem por função estruttf ral interpre tar esse material, escutá-lo, re-
cebê-lo, apreciá-lo, e, em certas ;ocasiões, interpretá-lo. A posição de intér-
prete do analista faz dele exata'mente o que pode ser chamado - mesmo
que se deva ser muito prudente com esta expressão - amo da verdade. De-
1

ve-se S<?r muito prudente com e~sa expressão e com o que ela recobre , pois ·
implica a responsabilidade do iU)alista, responsabilidade essencial que cons-
Proponho-me a fazer, durante a próxima hora, uma exposição concentrada titui a dignidade da sua função.i Por isso Lacan pode escrever que o analis-
da teoria de Lacan sobre o sujeito suposto saber. ta duplica o poder discricionário da palavra. É uma frase que cito - tive
A convicção racionàlista de Lacan é de que a transferência não é um a ocasião de comentá-la, em todos os seus detalhes, no seminário do qual
milagre diante do qual o psicanalista d~va ajoelhar-se. A teoria do sujeito participo aqui - por ser esse um ponto decisivo da teoria d e Lacan.
suposto saber situa a trans~_11.c:ia como conseq!!ênciaünediata . da estru·_ • 1

tura da situação analiti<:_<!, quer dizer, como ronseqü~ncia imediata daqui - E um ponto decisivo de 1:,acan, m as posso dizer que não escapa aos
lo que Lacan chamou de discurso analítico~ _c om es3e termo, não se refere que têm um sentimento profundo das propriedades da linguagem. Lendo
neste fim de semana o livro de Rosenblat Buena:; y malas palabras e.'1 el
ao que o psicanalista relata, mas justamente à estrutura da situação analíti-
castellano de Venezuela, enco~trei esta frase bem lacaniana: "Quem fala
ca. Além disso, pode-se dizer da transferência - na medida em que esta
está pendente do interlocutor porque as palavras se tingem com o que o
tem como pivô o sujeito suposto saber -, que pertence à própria estrutura
ouvinte diz, e não se sabe aonde podem chegar as palavras." Não está dito ,
do discurso analítico. Também, se existe uma fenomenologia da transfe-
evidentemente, com termos de Lacan, mas se trata de alguém que tem o·
rência, cujos diversos aspectos Freud encontrou no transcurso do tempo e
verdadeiro sentimento do que 1é o campo da linguagem, que se aproxima
tentou ordenar, e que resumi em três palavras na conferência anterior - re·
muito dessa estrutura fundarnel'\tal.
·I?eti_ção, resistência, sugestão -, se existe, pois, essa fenomenol~ia matizaj
da, diversa, da transferência, que sempre apaixonou os psicanalistas, o súP A transferência, apreendida em seu fundamento, não é outra c oisa
jeito suposto saber de Lacan está situado como o fundamento transfeno- senão a instituição dessa relação mesma .•Citei-lhe na vez anterior a expres-
menico da transferência . A questão aqui. reside em se interessar mais pela são de Nunberg; the readiness to Cransference, com a qual tenta reter um
estrutura da situação analítica, o que os psicanalistas têm uma irresistível ponto que, parece-füe, precede a fenomenologia da transferência, que torna
propensão a esquecer. A estrut1,II]3_ da sjt'l;!ação_jlll_cµítica coloc_a, em._primei- possíveis todos esses fenômenos t~o diverso s, rontradítórios e matizados da
ro lugar, o analista em posição de ouvinte, ouvinte do discurso que ele es- fenomenologia da transferência.'. Lacan re toma essa expressc1o de Nunberg,
timüla nõ- pac'iêi'n te: pósfo-que o convida a se entregar a ele sem omitir na· essa "abertura a transferência" que, de certo m odo, inaugura a própria re-
da, sem consideração pelas conveniências, segundo o movimento que se de- lação analítica. Para Lacan, existe abertura à transferência 12_elo__i?_tt?. - e é
nomina, um pouco por irrisão, livre associação - pois o postulado analí· isto o importante - pelo fato único de__gu~ o p_a:=~ente se coloca em po?.i:
tico é precisamente que essa associação é tudo menos livre e, pelo contrá- ção de se entregar à livre associ~ç_ã_o. Coloca-se na posição de buscar a ver-
rio, está cingida por leis essenciais. dade sobre si mesmo, sobre sua i d ~ ~Ere seu- verdadeiro cteseJo.
Essa posição de ouvinte é só passiva? Obviamente, quem parece fun- C?n~e busca a verdadê?Busca-a, diz Lacan, no límite de sua ~~'..... ~ o
damentalmente em atividade na experiência analítica é o paciente. Mas limite de sua palavra está aí, no analista enquanto grande Outro, ouvinte
se deve ver - e Lacan nunca cessou de insistir sobre este ponto, de diversas fundamental que decide a significação - e1 p-;~ iss~ qu e seu silêncio é tão
formas, cada vez mais lógicas - que o ouvint~,..sua_resposta, _s_eu .a"'.al, sua essencial, seu silêncio que dá lugar ao desdobrar da palavra, e que n~<?~
inte!)2retação decidem o sentido do q~e é dito_ e, ainda mais - aqui sigo deve precipitar a satisfazer a demanda do paciente, que é a demanda de:
precisamente o texto de Lacan -, U!.Qpria identidade de quem fal-3:. A quem sou? qual é meu desejo? que quero de verd ~~~
1
74 percurso de Lacan confere,u: ias caraquenhas 75

Temos ai a base da relação analítica, e Lacan formalizou, de modo a


suposto sabei intrínseco experiência analítica. Voltarei a esse ponto mais
extremamente simples, e lementar, a célula constitutiva dessa relação. É tarde. O psicanalista não deve idbntificar-se com o sujeito supos to saber: 0
uma formalização relacionada com a guestão da transferência, que não sujeitÕruposto sã·i:ie~.{ i.6'.e~e!t6}~ ·estru t1/i-a" da situação ánê!l í_~ica:·o qual.
posso deixar de escrever n o quadro. E uma estrutura que encontramos é muito diferente de se identificar com essa posição .
em todos os escritos de Lacan, do principio até o fim, inicialmente de for · . Disse isto na ºJfti~~-;;z~ .não-se ·obs~r~a ·rorço;amente que o paciente
ma implícita, e depois na forma estilizada que vou desenhar no quadro , comece a crer e a dizer que o an1Jista sabe tudo o que lhe concerne. O que
que pode lhes servir, poderia dizer, de memorando desta co nferência. se pode observar muito bem. e le o que observa Nun berg quando fala da
abertura à transferência, é - pelo contrário - uma de-suposição de saber
por parte do paciente com rela~ão ao analista, ou corno diz Lacan. um

AA ' "' " '


SIGN1f1CAD0
a tramfcrénc1a s,; ,11ua ncst1: vetor certo modo de verificar que o há bito não cai bem no psicanalista.
Por outro lado, o que se observa de maneira muito pura é a emergên·
eia aterrorizante do sujeito suposto saber quando a experiência anal itica
desencadeia uma ps icose alucinatória crõnica, na qual o psicanal ista eriêar· .
na realmente o sujeito suposto saber tudo o que se refere ao paciente, e é
l' S:Nll.- lCANTl~ imaginado por este como possuidor dos fios que movem a marionete. Te-
mos ai uma emergência real do sujeito ruposto saber, e essa teoria permite
Esse esquema pode ser lido de diferentes formas; podemos conten · explicar esses efeitos que conhecemos, esse efei to de desencadeamen to psÍ·
tar-nos aqui em lê-lo do seguinte modo: A é o primeiro eixo, o eixo do sig· cótico que se produz pela própri~ entrada na experiência anal i t_ica.
nificante; no segundo ei.xo, escrevemos o significado e colocamos o analis- Em um dicionário médico do século XI X, aliás, encontrei um pará-
ta nesse ponto - ao mesmo tempo como aquele a quem se dirige o signi· grafo onde se explica como reconhece r um paranóico; ao começarem a
ficante e na medida em que é aquele que. retroativamente, decide acerca interrogá-lo, ele lhes d.irá imediatamente: "Por que me interroga se você já
da significação do que lhe é dirigido. E aqui, no grande A, colocamos o sabe tudo de mim?" Sem dúvida, é um truque um pouco simples , mas nos
analista que funciona como o sujeito que se supõe que sabe o sentido. Co- pennite sentir que vemos na psicose, de maneira real e aterrorizante , o
mo podem ver, as pessoas que imaginam que Lacan é complicado se equi· rosto do sujeito supos to saber. ,
voc~m. Esse ê um esquema especialmente forte , que tem na obra de Essa posiçãd - façamos úm parêntese - não e uma crença, não se
Lacan um valor polimorfo, polivalente; estou convencido de que, a partir; trata aqui de um sentimento do, sujeito . Trata-se de uma suposiçãÓ d e es-
do n:omento em que o escrevam, poderão utilizá-lo com toda simplicida-j, trutura, que se pode tradu zir pelo fenõmeno exatamente oposto. isso e d.i-
de. E muito forte em sua simplicidade, não é fácil quebrá-lo e ê possi· ficü de entender - mas o é tanto em Paris como aqui, pois fiz esta adver·
vel complicá-lo muito: podemos perguntar-nos o que colocamos neste lu· tência, há pouco tempo. na Escola Freudiana de Paris- , porq ue existe a
gar, nomear este ponto e aquele outro, .. multiplicar e desdobrar o esque- tendência a confundir, a que se!superponha a dimensão fenomênica e adi-
ma; Lacan fez isso, mas vocês têm aqui a célula básica e, sem ela, o próprio mensão estrutural.
termo sujeito suposto saber se torna difícil de apreender na teo:-ia de La- Esse esqueminha simples explica muito bem o que pode aparecer co ·
can. A idéia inicial, e o próprio tenno inconsciente corresponde a esta mo modalidade fundamental d.a cura analític a , como Freud chegou a falar
idéia, é que o saber que se vai elaborar na experiência analítica , em certo da transferência como emergência de uma nova significação de conjunto da
sentido, já está ai, o próprio termo inconscie~te remete a esse já-ai da rede neurose ·e de todos os sintomas. Afinal, foi Freud mesmo, e não Lacan,
de significantes. A partir disso se funda a demanda do paciente. O di~11.92_. quem falou de significação da transferência. Coloco então a transferênc ia
ticoé urna função essencialme nte médica, uma fun5}~pn~ca, enquan· nesse eixo, a significação da transferência se produz sobre esse vetor - e é
to a experiência analitica só é possível sobre o pano de fundo da suspensão nesse sentido que a transferência é a_~pria relação da cura , é o tempo
do diagnóstico. Essa é a reserva que f reud formula ao aconselhar o analis· mesmo da psicanálise. A transferência é, simultaneamente, o tem po da ex·
ta a recomeçar, com cada caso, como se fosse o primeiro. Segundo esse periência e a elaboração, o trabalho da experiência anali tica na medida em
1 • •

ponto de vista, há um desvanecimento_do saber _@_ co:i_nituido, necessário que tem como ..9-ivõ. nessa posição, o Outro. Evocamos o tenno ptvo; te·
para que comece, de modo autêntico, a expetjência analíiicâ·-_ o que mos- mos aqui. de forma localizada, :o lugar desse pivõ. O analista como o gran ·
1 ---··-------
tra que o psicanalista não se deve deixar enganar por esse efeito de sujeito de Outro, onde se constitui a Bedeutung, a significação. Eviden temente, a
i - - - ---·- ·-

1
76 percurso de Lacan conferencia~ caraquenhas 77

transferência tem nesse sentido um _9_râ_ter ilus~!19, e é por isso que ela can chamava, a princípio, de l'p,acto analítico". Freud mesmo utilizou um
se presta_a ficar reduzida ap!?flaS à rua dimensão imaginária. Poderiamas termo extremamente perigoso: "a aliança analítica", termo este que fez
dizer que o traço que une os três aspectos que distingui n; ~-;;z anterior, a muitos estragos na história da psicanálise e ao qual voltaremos depois.
transferência-repetição, a tra!1sferência-resistência e a transferência-suges- O engraçado é que, ao mesmo tempo em que desenvolvia essa teoria
tão, é a transferência-amor. E por isso que se pode tentar explicar a trans- imaginária da transferência - em seu começo - , Lacan já havia reservado,
ferência em sua dimensão imaginária, que sem dúvida existe - a primeira a partir de seu Discurso de R9ma (1953), o lugar do rujeíto ruposto saber,
teoria de Lacan sobre a transferência é uma teoria da transferência como ainda que só tenha podido descobrir isso retroativamente, obedecendo
fenô11:~o_irnagi_1J.jri_q, __q!,ler dizer, a transte.Iêncl~Sº!Dº _?JTIOG como pai- assim a seu próprio esquem~ Escreve dois parágrafos que o levam a põr
xão. E e!lgraçado que no primeiro seminário de Lacan, de 1954 - que ver- urna nota em 1966, onde explica: "Encontra-se então ai definido o que
sa sobre ·os Escritos Técnicos de Freud, ou seja, sobre os textos que enume- depois designamos como o Sl\POrte da transferência: o sujeito suposto sa-
rei na primeira conferência, onde os examinei a partir de sua teoria poste· ber." ( "Fonction et champ de la parole et du language en psychanalyse",
rior -, esteja presente esta frase em que encontramos o mesmo termo "pi- in Êcrits). ·
vô", que 10 anos mais tarde aparece com relação ao sujeito supnsto saber. Foi necessária uma retroação de 10 anos para que se apercebesse do
Em 54, Lacan dizia que o fenômeno de carga imaginária cumpre, na trans· que tinha escrito. Diz: "Sem dúvida ele não tem, quanto a si, que respon·
ferência, um papel pivô. J;)ez anos depois atribuirá esse papel de pivô ao der por esse erro subjetivo que, confesso ou não em seu discurso, é imanen·
sujeito suposto saber, exatamente nos mesmos tennos. te ao fato de que ele entrou em análise, e que concluiu seu pacto princi·
Que leva a situar a transferência na dimensão imaginária? É que a pal" (ibidem). 1

transferência se apresenta como amor e há, em Freud uma teoria narcisis- O que Lacan chama aqui de erro _subjeti'(o iplan_ei:ite_te~çiêntj_a
ta do ~º!· É o que se vê, por outro lado, quando se ~enta·~~i~a; e~ pri· analítica é precisamente a ilusão do·p~·d iente, a ilusão fundàmental, estru·
meiro plano a teoria da t ransferência-con tratransferência. Mesmo havendo tural, de que seu saber - o saber do inconsciente - já está todo consutuÍ·
grandes desvios na teoria e na técnica psicanalíticas que centram tudo na do no psicanalista. Diz: "E menos ainda se poderia negligenciar a subjeti-
contratransferência, pode-se dedfrar essa teoria de forma positiva, já que vidade desse momento, tanto que nele encontramos a razão do que se pode
é uma forma tosca de perceber a existência desse valor vetor r~troativo, chamar de efeitos constituintes da transferência enquanto se distinguem,
retrógrado, que figura nesse esquema, em sua estrutura. por um índice de realidade, dos efeitos constituídos que os sucedem"
. Em relação à contratransferência, decerto, deve-se obviamente des- (ibidem). A diferença que Lacan aí estabelece entre os efeitos constituin-
confiar da con tratransferência posiúva demais, o que equivale a desconfiar · tes e os efeitos constituídos é a que eu lhes apresentei distinguindo os fe-
.
d o de seJo. p:1 nômenos de transferência, que são constituídos, e seu fundamento trans·
A simpatia não é necessária na experiência psicanalítica, e talvez fenomênico , que é constituinte desses efeitos. É singular que essa análise
até seja melhor um pouco de contratransferência negativa. Se a transferên - tenha ficado. como um ponto de espera no discurso de Lacan, que só en·
cia é amor, não se trata _simplesmente _de _que o analisante ame o analista, centrou seu emprego 10 anos mais tarde, em um ponto muito preciso: a
mas sim de que desej~ _s~r --~ ~1.o pelo an~istã; quer dizer: se apresenta e teoria do sujeito suposto saber. Isso nos permite esperar que haja nwnero·
tende a se apresentar, de um modo ou de outro, como amável. Isso é o que sos pontos de espera no discurso de Lacan, que necessitam de leitores
pode introduzir-nos no fato de que o analista_~cupa ~ p_osi_ç ~q d_0Id~al__d9_ precisos e convencidos para poderem ser desenvolvidos e utilizados.
eu, na medida em que esta é diferente da posiç-ª._o_~_qJ!..!!_{_Qeal.. A meu entender, a teoria de Lacan está só no começo. Como na de
A posição de Ideal do eu é o ponto a partir do qual o sujeito se vê Freud, ainda existe wna mina nesse discurso. Não quero dizer que Lacan
como amável, a partir do qual se vê como eu Ideal. Não tenho tempo agora seja o Eldorado, mas ainda há muito para recolher. Para o llilf lf!.I.l_te._esse_
para me deter nessa teoria de Lacan que disti..-igue as funções do Ideal do pacto analítico consiste, no fundo, em se oferecer à interpreta5ão; qu_er di-
eu e de eu Ideal. O eu Ideal é uma função imaginária, enquanto o Ideal do zer, ~~prio fato de ·e ntrar na experiência analítica ele consente_ ~a
eu é uma função simbólica. Lacan construiu um esquema, que se funda posição do analista como Outro, e é por isso que eu dizia que podemos
nas translações de um espelho e é ma.is complicado que este, para explicar encontra r em Freud o começo da teoria do sujeito suposto saber, em seu
essa diferença, que esclarece textos muito densos de Freud. A partir disso, texto sobre o início da análise nos Escritos sobre a técnica.
a teoria imaginária da transferência-amor pod_e ser levada a esse ponto es- Que é que Freud chamou de " regra fundamental da análise", a qual
sencial que é a teoria sim bélica da transferência, a qual se apóia no que La- sempre situou, da qual deu diferentes formulações, mas cujo caráter ope·
78 percurso de Lacan conf e, ências ca'.aquen has 79
"

ratório e fundamental sempre sublinhou? A experiência da análise supõe previamente, deve, __-e_elo contrário, _en tr~ar o ma teria! sem__preparação
a liberdade em que se d.üxa o sujeito em suas associações. Há um ponto ~ª-·- i
Deve-se notar o que implica essa extraordinária operação; eia se opõe
que não pode ser eliminado do discurso do psicanalista ao seu paciente -
é aquele que consiste na fixação dessa regra original. Essa regra principal a toda, os antigos ensaios de ~escobrimento da verdade do sujeito."-Efet(
é a de associar livremente, renunciar a qualquer critica, a qualquer regra - ~ente, é com a regra fundamental que Freud traça um corte na história
já tem então um caráter paradoxal -, a de confiar no que Freud chama do pensamento, cujo precedehte é impossível encontrar. E uma vez dis-
"O que vem à mente", naquilo que, em sentido etimológico, é o "caso". .J2Q.li.Q_Q_SJ!ÍeÜ.o....-ª.faElr_q__~ajq_~?.U..Oisa, co_mo porJ!~.ª~~...12.c:.~s_e_!!ç_~-~- _ana-
lista atesta~e assume sobre si o_p_~!::~jpjo.9-1:e_~~t~ ~~ _?~~ :fa ciên~ia:
A respeito disso, há uma exortação psicanalítica: "Diga sempre,
_q_ue tudo, inclu~_~_s> gu~ali~c!!_z_g~_rn jeito.....9.1,1~uer,_~ell} u_ma C?U~ª-
depois ver_emos." No fundo, a presença do analista é uma prova da con- 0 inconsciente, na medida em que é posto em ação na experiência
fiança que este tem no inconsciente, ou seja, que isso sempre associará. analitica, na medida em que ~ sujeito é convidado a dizer o que lhe passa
Há ai, no momento original. uma demanda do analista: a demanda de d.1- pela cabeça, mobilizado - ou!melhor, imobilizado - por essa experiência,
zer o que não ~ dizer nada, estando seguro d;
·q~e i~~o--sempr~ v~--que-
implica este axioma que ninguém formulou antes de Lacan a propósito
rer dizer algUJna coisa._ da experiência analítica, mas que de todos os modos funciona como supor-
Podemos, nesse sentido, chamar a transferencia de transferência do te dessa experiência: "Tudo t~m uma causa." É um princípio essencial do
sem-sentido à significação, promessa de significaç-ª_~. Assim percebemos pensamento cientifico, e foi formulado e~m momento mui to preciso de
1
porque Lacan pode dizer que a situação analítica histeriza o sujeito que sua história, quando Leibniz iformulou seus dois princ ípios: "nada é sem
entra em análise: precisamente porque sua menor palavra, sua mínima causa" e também, em sua forma positiva, "tudo tem uma causa."
~redução é imediatamente valorizada pela própria experiência analítica. No fundo, isso constitu/u um corte radical na história elo pensamen-
E valorizada da forma mai~ matg_ri_aj_j.Q__rpundo, pelo preço; é enq~açado, o to. Heidegger, decerto, dedicou um livrinho a esse axioma chamado O prin-
1

.JUjttlt.9_g_n:i_~_g~__p?r._Sl!_<!_S_ P0P.rías ..EF9..9~5-~~~.:... Este é o achado da dpio da razão suficiente, no qual o analisa detalhadamente, pois sua for-
psicanálise: fàzer pagar o trabalho por quem trabalha, no que é melhor do mulação constitui um corte pa história da filosofia, livro que consagra à
que o capitalista. emergência deste discurso - :diverso do discurso analítico, mas que não
No fundo, é ai que está o sujeito suposto saber. Conhecem a fórmula deixa de ter relação com ele -:', o discurso da ciência.
de Fr~ud, que a princesa Marie Bonaparte - ou talvez Ana Bergman - Há uma espécie de detérminisrno implícito na experiência anal i tica
traduziu como "o eu deve ocupar o lugar do isso", traduziu pois segundo que implica, se quiserem, o copeço de uma espéci: de ato de fé n? raciona·
o modelo "sai daí que eu vou entrar." Lacan, pelo contrario, deu a essa ji !~~de de tudo o gue ~~~_z;_ o psicanalista é aquele que se c onsagra a
sustentar esse ato de fé, a partir do qual o analisante pode trabalhar.
frase de Freud um valor mais essencial, e a traduziu de diferentes maneiras
Voltaremos m ais tarde k essa diferença entre o analista e o anal isante
ao longo de seu discurso. Eu posso tentar traduzi-la de outro jeito, com
no ato e no trabalho analíti~o. Mas antes gostaria de tentar m ostrar-lhes
relação ao sujeito suposto saber: Lá ou ça était (ça ne veut ríen dire); aí
as conseqüencias que teve a identificação do analista com a p osição do O u·
onde isso estava (isso não quer dizer nada), eu sei o que deve ser, o que 17
deve advir. Isso nos permite perceber a dimensão racionalista essencial da tro na his tória da psicanálise. A posição d o Outro é uma posição de amo, e
experiencia analítica. A experiência analítica (e temos que passar por ci-
o psicanalista se identificou, -satisfêitO,COmoãin"~~--õ mestr~aguei"é -qu-;
ma de muitos dos discursos dos próprios analistas para percebê-lo) é pro- exorta, que demanda, o Outro poderoso e oniscien~e -~ue lh_~ermi~
fundamente laica. Enquanto nas experiências antigas - as que buscam o
não saber grande coisa. Há um1
co ntrast e extraordinário en tre a fatu idade
do analista e a ignorância, bastante generalizada, q u e lhe permi te co ntinuar
conhecimento mais profundo do sujeito - há sempre um tef!!pO de con-
centração, de meditação, um convite a entrar dentro de si mesmo, purifi- prolongando essa situação.
Essa identificação do apalísta com o O u tro gerou uma teoria essen-
car-se, não encontramos nada d.isso na experiência analítica. Se ela prome-
cial, dominante na àrea de iilíluência anglo-saxónica, que situa o analist a
te ao sujeito uma verdade acerca de seu desejo, é em um contexto que não
implica qualquer desses aspectos de purificação, de concentração. Pelo como super-eu do paciente. i
· · - · · - · - - ·- - - - - 1
E muito interessante essa teoria, cujos excessos atualmente se apaga-
contrârio, é uma cerimônia, um ritual, porém fixo; podemos dizer que im-
ram um pouco, mas que conbua presente e atuante nos psicanalistas não-
plica uma regularidade quase burccràtica, voltar à mesma hora um certo
lacanianos (acho que ê difere:n te entre os k!einianos). É uma t eoria ínteres-
numero de vezes por semana e, ao invés de o sÜjeito ter que se c..9ncl?~

/J i I
80 percurso de Lacan conferencias caraquenha1 81

sante, pois mostra que todos os teóricos da experiência analitica realmente Que é então a experiênci~ analítica? É uma bipartição constan t e do
sérios se viram obrigade,s a adjudicar um lugar. no inconscien te, para o ana - eu? Isso se parece um pouco com o paradoxo de Zenão: pega-se o eu, cor-
lista. Sem isso, não se poderia entender de que modo o analista opera. As· ta-se-o em dois, há uma parte b6a a urna parte má; se nos apoiam os 11.a boa,
sim, o que eu lhes formulava como uma proposição lacaniana - o analis- ganhamos da má, e então tomabos a cortar em dois, voltamos a faze r isso,
ta é uma formação do inconsciente - impõe-se a todo teórico séno da e continuamos assim. Segundo /Zenão, jamais se deterá o processo. Sterba
,l
psicanálise. termina dizendo qual é o m09elo desta dissociação terapêutica do eu no
Essa teoria im pli~a,_primeiro, que o analista deve ocupar o lugar do paciente. A resposta, diz ele, é que se trata do p rocesso de formação do
super-eu e, de~~~~I?~~d~v-~_identificar:se com ele; a cura e, as- super-eu mediante uma identükação do analisante com o analis ta Avalia-
sim, o processo de identificação do analisante com o analista como super- ções e juízos são recebidos no e~. e começam a produzir efeitos em seu seio.
~Uma fantasia 18 está deserlvolvida ai: a de que o analista, a partir de sua Não sei se vêem o que implica essa ccncepção da ps:icanálise, mas po-
posição supereu-ôica 19 poderá insinuar valores verdadeiramente po si tivo s demos admitir que o termo "abjeção'', de Lacan, se adequa bastante bem a
no eu do sujeito. A cura apresenta-se então, sobretudo, como uma espécie esse tipo de teoria, a qual não ~eixa ao paciente outra saída senão tomar
de educação, uma educação por sugestão do pacíen~e; e o an~is~a simples· seu analista como modelo pronto de perfeição, a introjetá-lo. O psicanalis-
mente se oferece, ele mesmo envolvido na experiência. como a verdadeira ta se oferece assim como uma hóstia, a hóstia sagrada que o pacien te deve
medida da realidade, como a~~que_sabe o _que _a reaiidade deve ser e mascar e mascar. Não vou entr~r nos detalhes, pois é bastante fácil imagi-
~ -através de seu prestigi_o~:iU pereu;.óico~.de'!'..t.le.~qr _o_sujeit_o__a_se_situar nar essa manducação imaginária em que o analista se toma o alimento de
no mesmo nt'vel da realidade. Quer diz:er que. muito ingenuamente, o psi- seu paciente, e a cura se converte no relato de tuna paixão cristã. O engra-
canal ista constituiu-se-~~-o nec plus ultra da experiência universal. Nes- çado é que esta teoria toma forma em tomo de 1920. O artigo de Sterba é
se sentido, a cura converte-se em uma empresa de doutrinamento que tem de 1934. Há, ao mesmo tempol um artigo muito in t eressante, tamb€m de
por conseqüência o esmagamento da dimensão própria d·e um desejo fun· 34, do jovem Stráchey, o emiriente e notável tradu tor de Freud, a quem
damentaJmente irredutiv~t lssÔ~psicà.JÍalist·a não o consegue ; tem t·empo , devemos a melhor edição e.x::íst~nte, a Standart Edition, superior até rnes·
porém, para causar suficientes danos. A psicanálise pode ser, então, um mo à edição alemã. Strachey escreve o seguinte: "o supeMu do paciente
verdadeiro combate contra esse esforço de doutrinamento por par te do ocupa uma posição-chave na terapia analítica. É uma parte dà mente do
analista, o qual se fÓrtalece ao se proteger na teoria psicanalítica constituí- paciente na qual uma alteração favorável seria suscetível de provcx:ar uma
da e nos seus próprios preconceitos sobre todos os assuntos deste mundo , melhora geral, e é também uma parte especialmente submetida à influência
empresa à qual o desejo do paciente tenta resistír. Essa é a resis tênc ia que , do analista. 11 Também nos faz: entender de onde prÔvém essa teoria, que
não se deve esquecer, a boa resistência, a resistência que os psicanalistas /i não deixou de influenciar a concepção analítica d.a transferência. Pr ovém
exatamente de Freud, do Capítulo VIII de Psicologia das massas e análise
descobriram quando enfocaram a análise como doutrinamento e exercido
20
da demanda do psicanalista. Encontraram a resistência do desejo. do eu. Vocês sabem que esse cap ítulo é do período em que Freud ela-
Lacan deixou de ler, faz alguns anos, os psicanalistas do [nc ema tio - bora sua segunda tópica, q1:1e dap luga r a tantos mal-entendidos sobre a ex-
nal Joumal; nos continuamos, e fazemos a crônica dessa leitura em no ssa periência aRalítica. Em O eu e 'o isso 21 e em Psicologia das massas, há cer-
revista Ornicar? - em parte para conservar o contato. Lacan deixou de tos parágrafos que embaraçaram muito Freud quando viu como tinham si-
lê -lo~, porem os leu, os leu muito precisamente, tanto os grandes quanto do entendidos. Nesse Capítulo VIU, então, como sabem, Freud distingue
os pequenos textos da historia da psicanálise no Incemational Joumal, foi en tre uma identificação consecutiva à perda do objeto - a perda do objeto
acompanhando as indicações que se encontram nesses textos. Analise i, no traduzindo-se pela introjeção d~ mesmo no eu e por uma alteração parcial
curso que dei sobre a transferência, todos os textos dedicados à teoria do em sua estrutura - , e uma ideri tificação pela qual o objeto é c olocado no
analista como super-eu. Não sei se ainda se lê alguém como Richard Sterba , iugar do Ideal do eu. É esse tipo d e iden tificação que explica a colocação
que formula uma teoria acerca da dissociação terapeut ica do eu. Em cerws dos eu em série, sua identificação recíproca em organismos como o exérci-
textos antigos, que tenho aqui, Sterba baseia a experiência terapéu tica da to ou a igreja. Ele insiste no fa~o de que essa identificação recíp roca supoe
cura na capacidade de dissociação do eu, e diz: "Essa capacidade dá opor· a identificação comum desses e~ com um elemento externo, wn objeto co-
tunidade ao analista de fazer uma aliança com o eu contra as forças d o ins· locado no lugar do Ideal do eu ide cada sujeito. Creio que estou evocando
tinto e do recalque e, com a ajuda de uma part_e do eu, tenta vencer as for- aqui algo que é familiar aos qu~ lêem Freud. É por essa identütcação com
ças contrárias. " o objeto posto no lugar do Ideal do eu que Freud explica fenômenos como
1
!
82 percurso de Lacan confer,jncias GJraqvenhas 83

o amor e, sobretudo, a hipnose, a sugestão. Então, o Ideal do eu não é exa- Uma das bas~s da. diferen a entre Ideal do eu e super-eu é que O Ideal
tamente o super-eu; ainda que suas funções se superponham par 'mente,
1
~o eu, em Freud, ~plica efetiyame n te certas funções de assunção norma-
teríamos que distingui-los cem muito cuidado. lizante do sexo.
. coisa que o super-eu não implica de modo algum . Quem o
Mas que fizeram os psicanalistas a partir desse texto de Freud? Um mo~tra multo .bem.' m~is uma Jez, é Franz AJexander, que sem pre esteve
artigo de Sandor Rado deu o sinal de partida nesse processo. Rado publi- ma.is_ pe.rto da msp1raçao freudiana, e devo dizer que - apesar das ruas di-
cou só a primeira parte desse artigo; a segunda, nunca. Nesse texto, Sandor vergenc1as - foi amigo de Lacan. Alexander escrev~u, em 1925 - vejam
Rado inventou algo extremamente grave para o desenvolví.mento da histó - qu~ estam~s sempre nos 10 ano~ decisivos, entre 1925 e 1935 -. um artigo
ria da psicanálise. Estamos em uma época em que havia certa desorienta- mw~o b~~to no InternationiJl Journal nO l, chamado "Uma descrição me-
ção entre os psicanalistas com relação a certos questionamentos sobre a tapsicologica do processo da cu,a". Alexander fala tambem, evidentemen-
técnica analítica, como evoquei na conferência anterior. Foi para respon- te, da °:upação pe~o anali~ta do papel de super-eu. Mas temos nesse art igo
der a esses questionamentos que Freud elaborou sua segunda tópica, pois um sentimento multo preciso do que é o super-eu em Freud. Diz: "Não se
a psicanálise estava em dificil situação conceituai e prática, e os analistas _d_ev_e_p_':_n_~r.. 9..u_~·-º·-~P._er·eu é 0 órgão da adap tação à realidade, não de·,e·
1

tentavam conceituar o próprio processo da psicanálise. Vemos então, nes- :nos pens_ar qu e ~ su~r-=-e~~- Iél. :·Em-suá lingü°ãg'e m, diz
que-e·;;;~ó-dTgo
sa época, muitos artigos sobre o tema e, em 1925, Sandor Rado se propóe ieg~ porem arcatco, qu: preserva m~itas a~aptações no sujeito, mas adap·
estudar o que chama 11 0 princípio econômico na técnica analítica. " Nunca taçoe~ co_m~letamente madapt4das a sua situação real; de m exia algum e
chegou ao final, pois só fez a primeira parte de seu estudo, na qual - em uma mstanc1a que tenha acesso à realidade. Pelo contrário - 0 super-eu
vez disso - fala da hipnose. Nunca fez a segunda parte, sobre técnica psi- cumpre sua tarefa de forma automática e com a monôtona uniformidade
canalítica. Que diz? "Podemos dizer que existe, estabelecida no eu da pes- de um reflexo. Ele vê muito bem o vinculo entre o super-eu e o automatis-
soa hipnotizada, uma representação ideacional do hipnotizador; se essa re- m? e
_d e repetição; não é uma função de adapt.ação, sim de inadap taç ão no
suJelto.
presentação consegue atrair os laços naturais do super-eu, o hipnotizador -
de objeto exterior que era - é promovido à posição de super-eu parasita." _Freud r.elaciona o super-el com a Or1Janização dos sintomas do sujei·
Isso ainda segue relativamente Freud, ainda que fale de super-eu e não de to. Diz _tambêm, de maneira divertida, que embora o super-eu possa ter in-
1 Ideal do eu. ~~rmaçoes sob_re a real_idade, tais informações são ou t of date, superadas, e
e isso que ocas1on~ os sintomas neuróticos. Em outras palavras: essa função,
Em 1934, com Strachey, em que se transforma? Strachey diz o seguin·
t . te: ·o paciente em análise tende a centrar o conjunto de suas funções sobre.
que Alexander compreendeu bem c omo sendo a raiz do sintoma. converte·
1 o analista, mas tende, sobretudo, a aceitar o analista como substituto dd,
se em 1934, nove anos depois, na prôpria posição que o anaiista deve ocu-
' par para levar o paciente ao nivel da realidade. ·
1 seu próprio super-eu, e ac rescenta: ''Creio que neste ponto podemos us:df, Considero essa demonstração a partir de textos muito difícil de refu-
l modificando-a ligeiramente, a acertada expressão de Rado com relação à
1.1 tar. Q_~p~f.-~t/,..Jg.l!g.i~.º--.~ffi.3~gê_11..c;ii!s_c_q,inp!~.tªrnente_.i.nça:e.r.erues; de
hipnose, e dizer que o paciente tende, na análise, a fazer do analista wn modo algum e um todo hannonioso - é uma lei, uma ordem, mas O é na
t
1
super-eu substitutivo, parasita."
A teoria que Freud elaborou especialmente para dar conta de algo
me<lida e_m que é impossi-vel para o sujeito resp~itfi~:se-i ~~a-i~i é~~ª
..k!_c~m tcxio o seu vã!õrírradciiiãCürriâ 1ei"térr{vef. - · · - - - - · .
i
r muito diferente da experiência analítica, a hipnose, foi usada pelos psica- Lacan é muito fiel à posiçfodoruper~s textos de Freud eie fa.
t nalistas, a partir de 1934, para explicar a própria operatividade da psicaná· la_ d~ figura obscena e feroz do super-eu. O super-eu é, em Freud, u~a fu n·
1,
,. lise. Devo dizer que não se trata apenas de zombar desse erro de leitura, çao unpossivel. de sa~sf~ e;:; não é da ~r~em de "se se êaz tudo o que O su.
1 1
dessa desorien tação que os levou a se aferrarem à teoria freudiana da hip· per-eu 9uer, vai tudo bem . Pelo contrano:o super-eu nunca fica satisfeito.
nose para entender algo da psicanálise. pois - efetivamente - por ai E ass_im qu: emerge nos tkxtos de Freud. É uma instância que exige
tr aprendiam algo sobre a posição do psicanalista em A. I;:_ra, dojei!.o ..del~,. sempre mais, e nao se deve pensar que - dado o caso - atingir o êxito mo-
I' um modo de perceber que o psicanalista está no lugar do Outro, só que d_~ra O super-eu. Freud o disse : não há nada mais perigoso, em ce rtas cx:a -
r
r,
considerando gl!..,e deve se 1cfénti'flcar coti:1_~-~ . .12.~síç_~Õ:l::iu.ed2oussa_'Oa, 51oes, do que o êxito, e refletiu IJrecisarnente sobre aqueles que são destrui'-
dos pelo êxito - o êxito pode muito bem ser inassimilável. Lacan qua nto
~ o _p~c:iente deve identificar-se com ele. Era neressário ter perdido o sentido
~ . 'a! '
do descobrimento de Freud para se chegar a isso, pois o super-eu freud iano ª.isso,' a?ª gula do super-eu, Jdo super-eu que nunca está satisfeito. Efe -
nada tem a ver com uma função normalizante e_!~~- - -- - - - - - - - tJvamente, e pelo fato de que a 'exortação do super-eu implica essa insacia-
1
..( \:'f,.,

84 percurso de Lacan con far ãncias caraque nha s 85

bilidade, uma impossibilidade intrínseca de satisfação, que Lacan fonnulou lista


. a se converte
. r . em educador
: , em modelo e em 1'deal para outros, a
assim o imperativo do super-eu - o super-eu não diz: ''Triunfa!";(?_ super· cna.r home~s a sua _i magem, riunca deve esquecer que essa não é sua tare-
eu formula este imperativo impossível: "Goza!" fa na relaç_ªº. anal1tica, e que jnão cumpriria seu dever caso se deixasse le-
Esta manhã descobri que no espanhol próprio da Venezuela não há var p_or tais inclinações." Po?emos dizer, então, que os psicanalis tas não
uma o p:,sição entre prazer e gozo. Tratem de admitir a diferença entre pra- respeitaram de forma alguma essa advertência.
zer e gozo, no sentido de Lacan. 22 O gozo está além do principio do pra- . Vou remete-los aos tex/os que fo ram _publicados em 1950, no Jn cer-
zer, e como tal é impossível obtê-lo de forma plena - perceberão o humor na uonal Joumal, ocasião em ;que os analis tas fizeram um pequeno simpó-
que existe no fato de formular o imperativo do super-eu como um impera- SlO ?ara t_en ta r entender qual podia ser o objetivo final· da psicanálise, e
tivo de gozo. voc:s verao que - com exceção de Melanie Klein - t odos os que falam
Fr.eud - devo dizê-lo - foi equívoco em relação ~os processos t era- enta.o fo~ulam o objetivo da psicanálise didá tica como identificação ao
pêuticos da cura. Ele mesmo, efetivamente, formulou nos textos dos anos analista._ D1Zendo de outra forma, o pecado que Freud p recisava nesse tex-
30 o processo analítico como um processo de aliança do terapeuta com o to - cnar homens â sua imagem - , podemos dizer que os psicanalistas 0
eu, mas ao mesmo tempo notou perfeitamente os desvios flagrantes que se cometeram. 1

produziam em sua teoria por volta de 1935. Por isso, os textos que escre-
veu em 1937 e 1938 - Análise terminável e interminável, Construções em
.º p~ican.alista_ deve ser ~ gno da posição de pode r que a experiência
psicanálise e Esquema da psicanálise 23 - debatem-se com as contradições
f
Ih: ?ª· Ha ~ois pe~g~s para psicanálise, dizia Freud: os sacerdotes e os
medicas. P01s os med1cos, de de as origens dos tempos, assim co mo os sa-
que acabam de se manifestar em grande número. A cura não consiste, de 1
cer?otes, est~o em f!OSiçào de a busar do gran~~-~12,~9~~.l)~ras mais
modo algum, em obter essa manducação progressiva do psicanalista pelo
anttgi!s e mais po~erosas do sujeito su2osto saber. Mas o _EJafü~a, __s_e_oç_uP.;
paciente, e sim em obter o que Lacan, em outro lugar, denomina "o pac· o _mesmo lugar, nao deve usar do mesmo jeito o poder estru tural da rela·
to originário da psicanálise". É verdade que a psicanálise supõe o consenti- çao. Por isso Freud travou esse combate.-a"q~e-não kp;Ji-;:; ·º·~-·analis tas·
mento do paciente, que está baseado em sua liberdade. Freud, quando f.,..la que se diziam freudianos , de ~b.andonar esse texto ao esquecimento . E u~
do caso da jovem homossexual, imputa os problemas que encontrou nessa dos combate~ de Lacan, um qos combates que na França ele ganhou com-
análise precisamente ao fato de que foi urna psicanálise impulsionada pe- pletamente, e o combate pela :·análise leiga."
la família, e não por própria vontade. A emergência do sujeito suposto
. . Hoje e~ dia, em todas ~s sociedades frances.Js de psicanálise, há não-
saber supõe o respeito à regra analítica. Nesse sentido, há efetivamente
medicos aceitos, reconhecido~ pelas associações. ':.:sse com bate não estava
pacto, aliança. Mas-·se tradu zimos isso p~la manducação do analista pelQ
ganh~ ~m 1953: e foi uma das causas da primeira cisão do m ovimento psi-
paciente, contra as forças do instinto que se tenta reprimir e vencer pr~
canal1t1co frances. !
gressivamente, obtemos, pelo contrário, essa definição que preocupava
Freud. Vemos Freud admitir essas alianças em seus textos, mas ao mesmo _O inter:s_sante é que, seinã~ ~L~_ális~~~~~~-jei to sui:,osto saber, a
tempo diferencia totalmepte a psicanálise e a sugestão, em oposição à ins- f:1nçao...9.9~J~~.9_supq~to saoer P9sle_ser ocupad_a_por_q_u_alquer_um ,.a pa{:
piração dessa gente. Em 1935, por exemplo, escreve: "Posso afinnar que ~ r _do rn,~~.!!~.-~~_qu_~_ ~e-~sf?t?el~ e_a relação. Nãg j_!}_eç_essádo_que_esse
nunca caí em tal abuso, de sugestão, no decorrer de minha prática." Diz, sa_~r seJa c1ent1f1co, bas ta qtie haja algo que tenh a "estrutura de saber".
no Esquema da psicanálise - que não é o melhor de seus textos, mas o Tomemos o exemplodamêdicina: a medicina surgiu muito "ântescle que
. . cli 1
mostra preocupado com esses desvios -, especialmente no Capítulo VI, e.x:isttsse o scurso científico ,e encontramos, nas comédias de Moi íere em
"Técnica da psicanálise": "Se o paciente coloca o analista no lugar de seu seu teatro, a figura do médico /enquanto sujeito suposto saber que.não ~be
nada. ·
pai ou de sua mãe, lhe dá também o poder que o super-€u exerce sobre o
eu. Esse novo super-eu tem agora cx:asião de realizar uma espécie de pós- O ~éclico andou assim, / du rante séculos, pelo mundo. Durante um
educação do neurótico, pode corrigir erros dos quais os pais foram os res- t~ mpo, pod~·se pensar qu e h4via acordo entre a medicina e a ciência, no
ponsáveis, quando o educavam." secu ~o. XIX e_ também em prin9ipios deste sêculo. Mas devemos sal::€ r que a
Assim, admito que há algo de certo na posi'r.!? que ev(\quei há pou- m~:ma ~sta, talvez, a ponto /de desaparecer, devorada pela ciê ncia. T ive
co, no fato de que o analista ocupa o lugar do Outro e que, a partir dis- ccaS1ao, ha pouco tempo, de me encontrar e discut ir ( para a revista Orní-
so, tem efetivamente uma posição de pode-r._Mas Freud acrescenta: "De2_e_: car?) ~ m o sucessor _d e ~acq~es Monod no College de France, que é um
se advertir sobre o seumaÜuso.°Porma1or que seja a inclinação do ana- dos mais dest acados cientist as 'franceses ded..icados à biologia molecular, e
l confsráncias caraquenh ai 87
86 percurso de Lacan 1

H'a con tud. o um sentim~to


· 1 ·
Justo nessa elcx::ubração, qu e vale O mes-
que está esperando, corno os demais, receber o Nobel, está na boa linha de
sucessão. Pois bem; ele considera que os tempos da medicina terminaram. mo q~e a de Fliess; o .sentim~nto de que, afinal, a e:rtru tura não pode ser
que os problemas que os médicos, com seu palavrório, se colocavam, têm dedE_zidat deve-se conS1derar sempre que já está ai. · · - - · · ---- ·
agora, no nível da biologia molecular, oportunidade de ser resolvidos. N es- . Melanie Klein, por -~~lfplo, projetou a est~tura no5 pri.meir01 anos
1
se nível, o médico lhe aparece como um ps:icoterapeuta medíocre, que não de vida. Sempre podemos <liz1?r: que pode ela saber disso? Fazia o lacten-
age no nível molecular onde os fenômenos têm sua realidade. Percebemos te (alar como um filosofo. Mas de fato, se Lacan semp~ foi favorável a Me-
i assim a estrutura do porvir, podemos antecipá-lo: por outro l ado, os espe- lanie Klein, é porque ela tinh~ o sentimento justo de que a estrutura está
1
cialistas na estrutura molecular; por outro, os psicanalistas. Entre os dois. a
sempre ~í, desde a origem. Pdde-se retroceder origem e dizer que a esttu-
1 nada. É e~a a paisagem que se está delineando. ~ es~ no feto, ma3 penso ~ue se deve deixar a ciência do feto aos que
Temos o testemunho, no pr6prio texto de Freud - no que alguns tem o mstrumental adequado!para observar verdadeíramente o nascimento
imaginam que foi sua auto-análise -. de que o saber cientifico não é neces- da vida, os biólogos, os que t~ opiniões completamente precisas sobre 0
~para.produzir .o .efeito .de. sujeito_suposto..saber._Freud não fez ãu to- pa~ da_ es~tura ~ervo~ a F-rtir do nascimento. Que eu saiba, o psica-
análise: o que analisou de suas formações do inconsciente, o fez durante nalista nao e wn radiol0<j1sta, nao observa o fundo do s olho!, não faz torno-
muito tempo, como sabem, em referência a um sujeito suposto saber en- graffas. Na última vez falávamos da linguagem visual, e é verdade que so-
carnado na figura de seu amigo Fliess. Não se entende como Freud, que era ~amos. Quando !Onhamos, ~bepios corno é para nós, e pensamos que é
um espírito cientificamente tão preciso e minucioso, se pôde apaixonar igual para os outros; quer dizer, vemos·imagen s. O que interessa ao psica-
n:msta, o que int ressou a Fri!ud na Ciência dos sonhos, é o relato propor·
pelas teorias de Fliess, que eram teorias delirantes. Como vocês sabem, 7
Clonado pe!.o paciente de seu !sonho; ele nunca se fascinou por uma reali-
Fliess construiu um sistema, absolutamente demente, fundado no nariz.
Lacan o chama de "caçador de narizes", e publicamos na coleção de La- d~depodsubJetlva que, por de~ção, não pode ser risualizada; por enquanto
nao emas visualizar os so;n hos d os outros. Nos relatos de ficnão cien-
can, que se chama Campo Freudiano, uma tradução do livro de Fliess.
Detalhadamente o relemos: é um saber completamente elocubrado, que
tifica, isso se consegue;mas, ?ª experiência psicanal í tica, é por in:ennédio
do relato verbalizado do paciente que se toma possível wna análise. Há
Freud respeitou durante anos. Vocês sabem que essa relação analítica com
também uma ciência que se jxupa de quem do rme, que cobre seu corpo
o sujeito suposto saber - Fliess - se rompeu efetivamente, e que depois
com eletrodos ~ estabelece ~ diversas variações de seu corpo duran te a
Fliess passou por episôdios que podemos qualificar de psicóticos.
noite.
· Temos aqui o estatuto do suj~ito su,2~g9_sa~f Jllquanto __dif!;![.ente ,
A teori~ da psicanálise; da experiência analítica, refere-se essencial-
da ciencia,.3 o_~~~a~~~i~i~~-~1!1.Q-9~..kacan, é desde.sempce_um..esta·_ j1
mente a seu com eço e a seu: final. Como diz Freud, o desen volvimento
tu to de mistificação, _e _sg__depoi_s__gq_çasamento_ rec~q_te_ entre a medicina e
mesm o da partida é ex tremamente variável e - como no xadrez - o qu e
aciencfa--;·que o m.édi~o pôde escapar c\a_ mj~_tificação. Mas o ~édi-;;;-~ pode ser estruturável é o cortieço e o final. Lacan, certa.mente, retoma essa
uma figura muito antiga na história, que precede de muito a figura do cien·
comparação, e diz que a ·psicánálise é como o xadrez, tem aberturas e de -
tista. Essa figura do médico cientista desaparecerá, talvez, já que a ciência
senlaces, no meio as combin~ções são múltiplas demais, particulares de-
parece seguir outro caminho.
mais, a não se pode falar delas1da mesma forma •
Então, diz Lacan: "Essa mistificação do sujeito suposto saber", cito
O sujeito suposto saberi no sentido d e Lacan, é a estrutura de aber·
exatarnen te, "abriu o lugar em que o psicanalista se colocou desde então."
tura da partida, da entrada q o jogo, e a questão é a do final da partida.
Isso não deve tranqtiilizar os psicanalistas, pois a imJ?.OStura está sempre
Vemos claramente como os psicanalistas anglo-saxõnicos dão o final da
próxima da experiência analítica: na medida em que o psicanalista se iden·
partida: é a identificação co~ o analista, é o momento em q_ue o super-eu
tifica com o suleito sul?osto saber, cai, da mesma fo~a~ -~a mi~tifu:as_é[s>~
obxeno e feroz consumiu fm~en t e o paciente, é a análise que podería-
Mas o psicanalista tem muitas dificuldades para se manter nos limites de
mos chamar de canibal. Isso explica porque os analisantes de um mesmo
sua experiência e nos limites do que pode sabe r por intermédio da palavra.
analista terminam ss parecen40. De acordo com o princípio que Freud ex-
Por isso, recorre muitas vezes a qualquer saber para tampar essa fenda, essa
põe no Capítulo VIII de Psic?logia das massas e análise do eu, se vários de
abertura que a linguagem tra:z consigo. Em certas ocasiões também pode,
n6s pomo; o mesmo objeto no lugar do Ideal do eu , todo s nos parecere-
como lhes dizia na última vez, buscar a substância de sua experiência, subs-
mos em um traço essencial. 1
tância desvanescente na linguagem, pode buscar essa substância até no feto.

J
,,

88 percu r so de Lacan j con fer ências caraquenhas 89


1
1 !
Freqüento psicanalistas há muito tempo na França, e posso dizer Esses são pon tos, evide~ternente, que teriamos que desenvol ver. Sei
que isso é verdade; com um pouco de prática, no caso de certos analistas, que aqui há analistas vinculados à IPA. Sim plesrnente, é assim que conc e -
se reconhece os pacientes que "analisaram", entre aspas, se os reconhece bemos e experimentamos a IP A.
1 por um traço, como se usassem uniforme. Há um analista do qual se pode O segundo ponto, que por si mereceria um longo desenvolvime nt o, é
1
dizer que o resultado de sua cura é uma extraordinária inflação do narci- _o final da análise. A análise dà transferência consiste em desco brir qu e não
sismo de seu paciente, uma agitação verdadeiramente específica. Ao me há, en:i_sentido_real,_sujeito _sJposto saber. Isso é o que cons titui o d esejo
1 encontrar com um recém-chegado aos arredores da Escola Freudiana, que do analista, desejo muito singular que ·Freud locaJizou em um momen to da
eu não conhecia, cheguei a pensar: "Este deve ser um analisante de fulano história, o desejo do analista de não se identificar com o Out ro, de respe i-
de tal", e era assim. Depois teve a feliz idéia de ir a Lacan, e devo dizer que ta r o que Freud, em sua linguagem, chama de a individual ida de do pacien-
essa inflação verdadeiramente especial, essa constante demanda de atenção te, não ser um ideal, um modelo, um educador, e sim deixar espaço p ara a
para sua pessoa desinchou, uma vez em análise com Lacan. Era visível a té emergência do desejo do pacie:nte.
• 1 •

externamente. Com certeza deve ter passado momentos difíceis. A iden- Aí há algo que se pode assemelhar a uma ascese, e vemos bem q ue os
tificação com o analista no final da análise é o ômega da teoria analítica, psicanalistas, que se protege~ do discurso psic analitico, tomavam o cami-
tal como ela se fixou em 1930. nho exatamente oposto, o de!se propor como ideais e mode los. Vejam o~
Gostaria ainda de fazer duas observações: primeiro. que o analista textos. Lacan, po r seu lado, está muito próximo de Me lanie Klein qu ando
tem a fu~ão de_g_arantir a experiência analítica, quer dizer, intervém legi ti- ela formula que o final da análise tem um caráter depressivo q ue mostr~}
mamente enquanto Outro, enquanto amo, rnest!'~ quando se tratã' de mán-· de certa maneira, que deve se~ relacionado com a perda do obje t o. A perda
ter o marco da relação analítica; no seio desse marco, !~--'~-~cJ.eEt_e quem do o bjeto, o luto pelo objeto, lde que modo é sim bolizado na·p rôpri a psica-
realiza um trabalho, uma tarefa que leva tempo. O ato, enquanto simbóli- nâlise se não o é pela rejeição, 1o abandono do psicanalista?
co, corre sponde ao psicanalista, e consiste em posruÍar o axioma ' 'tudo A esse respeito, é o psicanalista quem represen ta o residuo da o pera-
tem uma causa". O trabalho, a produção estão do lado do anal isante. ção analítica, e Lacan elaborou a teoria que faz do psicanalista o d ejeto
Lacan sempre·-promoveu a importância do s:ilênciodo ánaJista, que de toda a operação e, ao mesmo tempo, a causa que desde sempre a nimava
não deve considerar que a interpretação tenha que dupiicar constantemen· o desejo do paciente. É isso que Lacan formulou ao escrever:
te o discurso do paciente; não se trata de justapor um segundo texto ao
primeiro e decifrar tudo, precisamente porque o poder da interpretação é a--+ Sl
enorme. Deve medir ex3tamente o poder de cada uma d e suas palavras. -~ s;- li "s;"
· ·seria demasiado longo desenvolver aqui a teoria da interpretação de JI
Lacan, mas ele considera que um de seus vetores, extremamente importan- O S é o sujeito que fala , o analisante, que fala a partir da posição do psica-
te por ser constitutivo da transferência, é o tempo; o tempo é em si mesm o a
nalista. Com ambição de prciduzir o quê? Precisamen t e o significan te q ue
uma modalidade da transferência, como disse ao princípio - é uma variá- Lacan chama de significant e-rhestre, S 1 , a partir do qual, justa mente, o su-
vel interpre.tativa. jeit o está em posição de ser !_Jovemado. Longe de instal ar o signific ant e-
Se enfocamos a relação analitica como uma relação dual entre um mestre em posição dominante; Lacan fonnula a experiência an alí tica c omo
analisan te e um analista que estão em posição reciproca, então é necessá - o rechaço, a cuspida do significante·mestre pelo sujeito. É, portan to , em
rio um grande Outro que fixe o enquadramento da situação; requer-se um termos exatamente contrários[aos da introjeção que Lacan fo rm ula a expe -
grande Outro que é o ídolo regulamentar, e a isso se deve esse super-eu riência analítica; se quiserem ~ em termo de dej eção ou em termos de ex-
parasita, retomando a expressão de Sandor Rado. Desse super-eu parasita clusão. Essa renúncia ao d om1nio, no analis ta , é então perfeitamen te enig-
os psicanalistas fizeram em comum um grande sintoma mundial, a Asso- mática. Como Freud pôde el~borar, regular esse desej o de não-domínio
ciação Psicanalítica Internacional, cuja presença devia marcar-se na própria que, podemos dizer, é inédito ha história? É p o r esse desejo ser efetivame n-
relação analitica, pois prescrevia a duração, o número de sessões - porque te inédito que os analistas rentinciaram a ele, imaginaram-se c omo super-eu ,
era, efetivamente, o sujeito suposto saber o que é a psicanálise. Trata-se de como figura exaltada do mest~e. A grandeza do psicanalista é, no sen tido
um recurso, tenho que dizer, de fraqueza, que os analistas construiram por de Lacan_, consagrar-se, pelo t on trário, a _permanecer no lugar de deje to .
1 - - ·· - · - · ··- - - - · -- - - --
carecer da própria experiência dessa posição de.Outro, pois, enquanto ana- Concluirei, pois, c om esse para~oxo. ·- -
listas, o eram insuficientemente para assumir essa posição.

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