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A responsabilidade da sociedade com domínio total

(501.°/1, do CSC) e o seu âmbito


PROF. DOUTOR ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO

SUMÁRIO: 1. Introdução. I – Origem histórico-dogmática: 2. O surgimento dos grupos e o


seu Direito; 3. O Direito alemão dos grupos; 4. Direito europeu: o projeto de Nona Dire-
triz (Grupos de sociedades); 5. O conteúdo do projeto; 6. O estudo do Prof. Raúl Ventura;
7. O artigo 501.°. II – Aspetos gerais do Direito português dos grupos de sociedades: 8. O es-
quema do CSC; 9. Ponderação global. III – Análise do artigo 501.°: 10. Requisitos legais;
11.Teleologia e natureza; 12. O problema das dívidas anteriores; 13. O momento da veri-
ficação dos requisitos. IV – O âmbito do artigo 501.°: 14. A hipótese da restrição ou do
alargamento ex contractu; 15.A restrição ex lege. 16.A inviabilidade de um alargamento
por analogia; 17.A hipótese do levantamento (ou desconsideração) da personalidade da socie-
dade participada. 18. Síntese final.

1. Introdução

I. Segundo o artigo 501.°/11,

A sociedade diretora é responsável pelas obrigações da sociedade subordinada,


constituídas antes ou depois da celebração do contrato de subordinação, até ao
termo deste.

1 Os artigos não acompanhados de indicação de origem pertencem ao Código das Sociedades


Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 262/86, de 2 de Setembro, e por último alterado pelo
Decreto-Lei n.° 33/2011, de 7 de Março. O presente escrito adota o Acordo Ortográfico de Lín-
gua Portuguesa.

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Esta regra aplica-se, por via do artigo 491.°, aos grupos constituídos por
domínio total e, portanto, à sociedade dominante relativamente às obrigações
da dominada, que ela detenha na sua totalidade.

II. Este preceito é radical. Põe termo ao privilégio da personalidade cole-


tiva, perante situações de subordinação ou de domínio total. Não tem, como
melhor veremos, uma origem histórico-comunitária que o justifique. Além
disso e, pelo menos a uma primeira leitura, vai ao arrepio de outros lugares nor-
mativos, como o da responsabilidade do sócio único (84.°/1), que só responde
se se provar que não foram observados os preceitos da lei que estabelecem a
afetação do património da sociedade ao cumprimento das respetivas obrigações
ou o do regime das sociedades unipessoais por quotas.
Compreende-se, por isso, que deva ser interpretado e aplicado com algum
cuidado.

III. O presente estudo visa medir a singularidade do artigo 501.°/1. Para


esse efeito, vai começar por ponderar a sua origem, tentando explicar a sua pre-
sença na Lei portuguesa. Isso feito, procurará determinar os meandros do seu
regime, de modo a poder qualificar o tipo de responsabilidade que, aqui, se nos
depara. Finalmente, investigará o preciso âmbito da sua aplicação.

I – Origem histórico-dogmática

2. O surgimento dos grupos e o seu Direito

I. Os modelos de regulação das sociedades comerciais desenvolvidos ao


longo do século XIX partiam de tipos de societários totalmente autónomos2.
Cada sociedade desenvolver-se-ia mercê da vontade que lhe fosse juridica-
mente imputável. O seu funcionamento ótimo ficaria assegurado, uma vez que
estaria em causa a defesa do interesse dos seus membros.
Ainda no século XIX, verificou-se que as sociedades, através de jogos
diversos de participações, podiam funcionar em bloco. Nessa eventualidade, a
sociedade integrada em grupo podia assumir condutas desviadas: seja para

2 KARSTEN SCHMIDT, Gesellschaftsrecht, 4.ª ed. (2002), § 17, I (486).

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defesa de interesses de grupo que a transcendam, seja para beneficiar uma das
sociedades do grupo que, por qualquer razão, detenha poder bastante3.

II. O Direito começou por reagir com a cláusula dos bons costumes.Algu-
mas decisões surgiram, nos inícios do século XX, assentes no § 138 do BGB.

3. O Direito alemão dos grupos

I. A referência ao Direito alemão dos grupos de sociedades é inevitável: ele


influenciou, de modo direto, o legislador português, ocorrendo, com poucas
alterações, no atual Código das Sociedades Comerciais4.
A matéria consta da Lei das Sociedades Anónimas (Aktiengesetz ou AktG)
de 1965, preenchendo o seu livro III (empresas coligadas). O livro em causa
tem o conteúdo seguinte5:

1.ª Parte – contratos de empresa:


Secção 1.ª Tipos de contratos de empresa (§§ 291 e 292);
Secção 2.ª Conclusão, modificação e cessação de contratos de empresa (§§ 293
a 299);
Secção 3.ª Garantia da sociedade e dos credores (§§ 300 a 303);
Secção 4.ª Garantia dos acionistas livres perante contratos de subordinação e
de direção (§§ 304 a 307).
2.ª Parte – poder de direção e responsabilidade perante a dependência de empresas:
Secção 1.ª Poder de direção e responsabilidade perante um contrato de
subordinação (§§ 308 a 310);
Secção 2.ª Responsabilidade na falta de um contrato de subordinação (§§ 311
a 318);
Secção 3.ª Sociedades englobadas (§§ 319 a 327);
Secção 4.ª Exclusão de acionistas minoritários (§§ 327a a 327f);
Secção 5.ª Empresas reciprocamente participadas (§ 328);

3 Sobre toda esta matéria: HOLGER ALTMEPPEN, Die historischen Grundlagen des Konzernrechts, em
WALTER BAYER/MATHIAS HABERSACK, Aktienrecht im Wandel, II – Grundsatzfragen des Aktienrechts
(2007), 1027-1058.
4 Vide LUÍS BRITO CORREIA, Grupos de sociedades, em FDL/CEJ, Novas perspectivas do Direito
comercial (1988), 377-399 (381).
5 Por último, referimos: UWE HÜFFER, Aktiengestz, 9.ª ed. (2010), §§ 291 ss. (1474 ss.) e KATJA
LANGENBUCHER, em KARSTEN SCHMIDT/MARCUS LUTTER, Aktiengesetz Kommentar, II, 2.ª ed.
(2010), §§ 291 ss. (3113 ss.).

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Secção 6.ª Prestação de contas em grupos de sociedades (§§ 329 a 393, revo-
gados).

II. Como ponto de partida, temos a figura dos contratos de empresa. Com
duas modalidades:
– o contrato de subordinação, pelo qual uma sociedade submete a outra à
sua administração;
– o contrato de entrega dos lucros, que adstringe uma sociedade a entre-
gar, a outra, a totalidade dos seus benefícios.

Há, ainda, contratos de comunhão de lucros, de entrega parcial de lucros e


de locação de empresa.

III.Tais contratos são delicados, pelo que postulam requisitos especiais para
a sua celebração, designadamente requerendo deliberações das assembleias
gerais das sociedades envolvidas (§§ 293 ss.). Preveem-se garantias especiais para
a sociedade controlada e para os seus credores. Cabe à sociedade dominante
assumir as perdas da dominada (§ 302) e dar garantia aos credores da dominada,
no fim do contrato de subordinação (§ 303).
Os acionistas discordantes, relativamente aos contratos de empresa, têm
direito a uma compensação adequada (§ 304).
A sociedade dominante pode dar instruções à dominada (§ 308), embora
com cuidado (§ 309) e podendo envolver a responsabilidade dos seus adminis-
tradores.

IV. Na falta de um contrato de subordinação, a empresa dominante não


deve exercer a sua influência para obrigar a empresa dependente a efetuar
negócios desfavoráveis, sem a compensar devidamente (§ 311). Prefiguram-se,
depois, diversas regras referentes a relatórios e à fiscalização, em ocorrências
desse tipo (§§ 312 ss.).
Quando uma sociedade detenha totalmente outra, pode deliberar a sua
englobação (§ 319); uma medida também possível quando disponha de 95% a
100% desse capital (§ 320). A sociedade dominante pode dever garantir a posi-
ção dos credores da dominada, em certos termos (§ 321). A sociedade princi-
pal responde conjuntamente pelas dívidas da dominada, a partir da englobação;
pode usar os meios de defesa que a esta competem, não lhe sendo todavia opo-
níveis os títulos executivos operacionais contra a dominada (§ 322).A sociedade
dominante pode dar instruções à dominada, seguindo-se o regime previsto para
a subordinação (§ 323).

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V. Prevê-se o esquema da aquisição potestativa de ações dos acionistas


minoritários (5% ou menos, § 327a). As participações recíprocas devem ser
comunicadas (§ 328).

VI. O Direito alemão dos grupos de sociedades ou Konzernrecht corres-


ponde a um sector jurídico-científico especializado.Assente em numerosos tra-
tados, manuais, monografias, artigos especializados e abundante jurisprudência,
ele coloca permanentes desafios aos especialistas.

4. Direito europeu: o projeto de Nona Diretriz (Grupos de sociedades)

I. No último quartel do século XX, ganhou espaço, nos meios comunitá-


rios europeus, a ideia de uma cobertura completa do Direito das sociedades,
por diretrizes. A hipótese de unificar o Direito das sociedades dos diversos paí-
ses não era viável, dadas as divergências histórico-culturais e científicas: aban-
donou-se, por isso, a ideia de recorrer a regulamentos, demasiado rígidos. Que-
dou a hipótese das diretrizes, que poderiam ser adaptadas às realidades internas,
aquando da transposição para os diversos Estados6.
O período considerado foi, deste modo, a época áurea das diretrizes do
Direito das sociedades7. Surgiram ainda projetos que nunca lograram aprova-
ção: mas que, todavia, teriam o maior relevo no Direito português.

II. Entre os projetos em causa conta-se o da 9.ª Diretriz, relativa a Grupos


de sociedades, de 19848.Vale a pena recordar, aqui, a preparação desse docu-
mento.

III. Um primeiro anteprojeto de 9.ª Diretriz, relativo a grupos de socieda-


des, foi aprontado em 19749 (a parte I), logo seguido da parte II, em 197510. Pre-

6 Vide o nosso Manual de Direito das sociedades, 1, 2.ª ed. (2007), 169 ss. (171).
7 Quanto à sua enumeração, vide o nosso Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2.ª ed. (2011),
53 ss..
8 A Diretriz em causa nem sequer conhece uma tradução oficial em língua portuguesa. Nós pró-
prios procedemos a essa tradução, a título particular, com base na versão alemã publicada por
MARCUS LUTTER, Europäisches Unternehmensrecht, 3.ª ed. (1991), 291-298; vide o nosso Direito
europeu das sociedades (2005), 750-770.
9 REINHARD GOERDELER, Überlegung zum europäischen Konzernrecht, ZGR 1973, 389-409 (389).
10 A parte I contém, em 23 artigos, definições e preceitos gerais relativos às empresas coligadas,
um tanto ao estilo dos §§ 15 e seguintes do AktG alemão; a parte II, em 63 artigos, regula o

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tendia-se uma regulação mínima comum relativa a grupos de sociedades11: tor-


nada necessária pela diversidade das regras nacionais. Efetivamente, assistia-se a
uma multiplicação de grupos de sociedades, por vezes sem regras ou com orde-
nações muito díspares. Esse projeto derivava, por seu turno, de um primeiro texto
apresentado pelo Prof. SANDERS, em 1966 e relativo à sociedade europeia12.
A conceção básica de grupo de sociedades, aí adotada, decorria da chamada
teoria orgânica ou dos grupos de facto: haveria grupo sempre que ocorresse
uma direção unitária. E surgindo esta, justificar-se-ia a proteção, sendo indife-
rentes a juridicidade ou a mera facticidade dos grupos.
Este projeto foi apresentado à discussão, não tendo obtido, sequer, o con-
senso mínimo para passar a proposta13. O texto era denso, complexo e muito
protecionista14.

IV. Perante esse fracasso, a Comissão retomou o processo vindo a surgir, em


1984, um novo Projeto de 9.ª Diretriz. Este Projeto distanciou-se da conceção
orgânica, de 1974/75. Ligando-se à sistematização alemã, ele veio distinguir os
grupos de facto ou relações de dependência e os grupos contratuais. Segundo
a Comissão, o Projeto em causa representaria apenas um primeiro passo: os
Estados-membros poderiam tomar outras medidas, enquanto a própria Comis-
são, atenta, prepararia as iniciativas que se viessem a mostrar necessárias. E esse
primeiro passo justificar-se-ia, sempre segundo a Comissão15,
Porque nas ordens jurídicas da maioria dos Estados-membros não se contêm,
ainda, regras sobre os grupos de sociedades (...)

Direito aplicável aos grupos, com um especial desenvolvimento para o contrato de subordinação
(artigos 8.° a 28.°).
11 GÜNTHER CHRISTIAN SCHWARZ, Europäisches Gesellschaftsrecht / Ein Handbuch für Wissenschaft
(2000), 535.
12 Vide o nosso Direito europeu das sociedades cit., 908 ss.. Quanto a elementos históricos, cf. MAR-
CUS LUTTER, Stand und Entwicklung des Konzernrechts in Europa, ZGR 1987, 324-369 (324 ss.): o
projeto de SANDERS continha regras sobre grupos de sociedades, inspirados no (então) jovem
Direito alemão.
13 Quanto às críticas e ao ambiente que as rodeou: JEAN NICOLAS DRUEY, Das deutsche Kon-
zernrecht aus der Sicht des übigen Europa, em MARCUS LUTTER (publ.), Konzernrecht im Ausland
(1994), 310-368 (341 ss.); aí, a nota 175, transcrevem-se algumas observações dos representantes
britânicos, que vale a pena reter: (...) the German Aktiengesetz which some day might be forced upon us
e, a propósito da 9.ª Diretriz, (...) one of the least acceptable draft Company Law proposals to surface ever.
14 A análise do seu conteúdo consta de SCHWARZ, Europäisches Gesellschaftsrecht cit., 537-542 e,
entre nós, por partes, de RAÚL VENTURA, Grupos de sociedades/Uma introdução comparativa a propó-
sito de um Projecto Preliminar de Diretiva da CEE, ROA 1981, 23-81 e 306-362.
15 Cf. o preâmbulo do projeto em LUTTER, Europäisches Unternemensrecht, 3.ª ed. cit., 280.

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Justamente: o Direito dos grupos de sociedades é um fenómeno tipica-


mente alemão. Dá, aí, origem a um ramo especializado – o Konzernrecht – com
os seus cultores e publicações próprias16. O projeto de 9.ª Diretriz, tal como
surge, é pouco motivador para juristas sem formação alemã17. Os britânicos
vieram, por exemplo, censurar o projeto por regular o contrato de subordina-
ção, sem significado no Reino Unido18.

V. O Projeto de 9.ª Diretriz foi tomado como uma tentativa de receção –


ou de transposição – do Konzernrecht alemão no espaço da Comunidade19.
Chegou a falar-se em Konzernrechts-Aversionen20 ou aversões pela codificação do
Direito dos grupos de sociedades, ao estilo alemão. Incompreendida foi, tam-
bém, a inserção de matéria atinente à proteção dos trabalhadores, considerada de
natureza laboral. Curiosamente, outra doutrina julga o projeto “pouco alar-
gado”21. Ele acabaria, assim, por não ter sequência. Os estudiosos atuais afirmam
mesmo que, na sua forma atual, ele não tem hipóteses de se realizar22.

VI. Na falta de iniciativas oficiais, um grupo de professores resolveu reto-


mar o problema no âmbito do denominado Forum Europaeum Konzernrecht.
O Forum visava estudar e divulgar propostas destinadas a harmonizar os Direi-
tos europeus sobre grupos de sociedades. Eis alguns pontos apurados no âmbito
dessa iniciativa23:

16 Com indicações, VOLKER EMMERICH/JÜRGEN SONNENSCHEIN, Konzernrecht, 6.ª ed. (1997),


podendo (3 ss.), confrontar-se a evolução histórica do sector.
17 CHRISTIAN GAVALDA/GILBERT PARLEANI, Droit des affaires de l’Union européenne, 4.ª ed. (2002),
165, n.° 229, dedicam, ao tema, quatro linhas, sem qualquer citação nem indicação de fontes e
que passamos a transcrever (em português):
Projeto de nona diretriz sobre os grupos de sociedades. A dificuldade técnica do assunto e a suas
múltiplas implicações sobre as legislações nacionais explicam que a Comissão não tenha
ainda podido apresentar qualquer proposta sobre este assunto tão importante.
C’est tout.
18 Cf. DRUEY, Das deutsche Konzernrecht cit., 341-342.
19 SCHWARZ, Europäisches Gesellschaftsrecht cit., 536.
20 PETER HOMMELHOFF, Konzernrecht für den Europäischen Binnenmarkt, em LUTTER, Konzernrecht
im Ausland (1994), 55-75 (68 ss.), sublinhando – 72-73 – o problema psicológico da importação
do Direito alemão.
21 MICCHEL MENJUCQ, Droit international et européen des sociétés (2001), 267.
22 GRUNDMANN, Europäisches Gesellschaftsrecht cit., 519-520.
23 Forum Europaeum Konzernrecht, Konzernrecht für Europa, ZGR 1998, 672-772, com teses e pro-
postas (766 ss.); integraram o Forum, designadamente, PETER HOMMELHOFF, KLAUS J. HOPT,
MARCUS LUTTER, PETER DURALT, JEAN-NICOLAS DRUEY e EDDY WYMEERSCH, além de múlti-
plos especialistas para campos concretos.

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– pretender-se-ia, apenas, uma regulação nuclear; tudo o resto ficaria para


as leis nacionais;
– ficariam abrangidas as sociedades de capitais;
– o conceito central seria representado pela ideia de controlo;
– a presença do grupo seria publicitada;
– prever-se-ia uma gestão ordenada do grupo, sujeita a revisão.

Os observadores parecem céticos quanto à possibilidade de aprontar uma


diretriz englobante sobre grupos de sociedades. Apenas seria possível proceder
em sectores delimitados, como já sucedeu com a 7.ª Diretriz, relativa à conso-
lidação de contas24.

5. O conteúdo do projeto

I. O Projeto de 9.ª Diretriz, de 1984, relativo a grupos de sociedades, abarca


46 artigos, por vezes extensos25. Agrupa-os do modo seguinte:
1.ª Secção – Âmbito de aplicação (1.°);
2.ª Secção – Definições de conceitos (2.° e 2.°a);
3.ª Secção – Comunicação e publicitação da participação (3.° a 5.°);
4.ª Secção – Tutela da sociedade que esteja sob influência de outra (6.° a 12.°);
5.ª Secção – O contrato de subordinação para a constituição de um grupo domi-
nado (13.° a 32.°);
6.ª Secção – A declaração unilateral para a constituição de um grupo dominado
(33.° a 37.° a);
7.ª Secção – Outros modos de constituir um grupo subordinado (38.°);
8.ª Secção – Proteção especial do acionista livre (39.°);
9.ª Secção – Contrato para a constituição de um grupo igualitário (40.° e 41.°);
10.ª Secção – Preceitos transitórios e finais (42.° a 46.°).

À partida, a 9.ª Diretriz aplica-se a sociedades anónimas. Ela visa ainda, de


modo mais direto, as sociedades de tipo dualista, com direção e conselho de
vigilância.Todavia, o seu artigo 2.° a, sob influência da revisão entretanto levada

24 EMMERICH/SONNENSCHEIN, Konzernrecht, 6.ª ed. cit., 24.


25 Cf., quanto ao conteúdo do Projeto, KARL-HEINZ MAUL, Der Abhängigkeitsbericht im künftigen
Konzernrecht/Ein Vergleich zwischen der Regelung des Vorentwurfs zur 9. EG-Richtlinie und der des gel-
tenden Aktienrechts, DB 1985, 1749-1752 (1749) e PETER HOMMELHOFF, Zum revidierten Vorschlag
für eine EG-Konzernrichtlinie, FS Fleck (1988), 125-150.

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a cabo na proposta de 5.ª Diretriz, já veio estabelecer a correspondência com o


sistema monista.

III. O ponto de partida para a aplicação do regime dos grupos é dada pela
presença de participações qualificadas, previstas na secção 3.ª, com os preceitos
seguintes:
Artigo 3.° (Comunicação à sociedade);
Artigo 4.° (Suspensão de direitos);
Artigo 5.° (Publicitação).

A ideia central é a de fazer comunicar à sociedade26 e, depois, mandar


publicitar as participações em causa, sob pena de os acionistas implicados não
poderem exercer os respetivos direitos.

IV. Posto isto, a Diretriz vai distinguir entre:


– grupos de facto;
– grupos derivados de uma relação específica a tanto destinada.

Os “grupos de facto” surgem na 4.ª Secção, com o teor seguinte:


Artigo 6.° (Delimitação);
Artigo 7.° (Relatório especial);
Artigo 8.° (Revisor especial);
Artigo 9.° (Controlo de facto);
Artigo 10.° (Legitimidade);
Artigo 11.° (Outras medidas de proteção);
Artigo 12.° (Prazo).

Como resulta do artigo 6.°, estes preceitos não se aplicam quando exista
um contrato de subordinação, uma declaração unilateral de grupo ou outra fór-
mula jurídica de lá se chegar: basta uma dominação, de modo que se possa falar
em “afiliada”, nos termos do artigo 2.°/1. Fundamentalmente, prevê-se:
– um relatório especial da direção;
– eventualmente: uma revisão determinada pelo tribunal;
– a responsabilidade por danos causados, mercê da influência da sociedade
dominante.

26 KARL-HEINZ MAUL, Mitteilungspflichten über qualifizierte Beteiligungsverhältnisse/Geltende Rechts-


lage und Regelung im Vorentwurf der 9. EG-Richtlinie zum Gesellschaftsrecht, BB 1985, 897-900.

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V. Seguem-se os grupos assentes em relações jurídicas a tanto destinadas:


contrato de subordinação, declaração unilateral de domínio e outras, na dispo-
nibilidade dos Estados-membros. O grande modelo é constituído pelo contrato
de subordinação, versado na secção 5.ª, com pormenor. Assim, ele abrange:
Artigo 13.° (Contrato de subordinação);
Artigo 14.° (Opções dos acionistas livres);
Artigo 15.° (Aquisições potestativas);
Artigo 16.° (Compensação anual);
Artigo 17.° (Relatório dos peritos);
Artigo 18.° Relatório da direção);
Artigo 19.° (Aprovação pelo conselho de vigilância e pela assembleia geral);
Artigo 20.° (Publicitação);
Artigo 21.° (Regras aplicáveis à outra parte);
Artigo 22.° (Verificação judicial);
Artigo 23.° (Venda potestativa);
Artigo 24.° (Subordinação);
Artigo 25.° (Dever de diligência);
Artigo 26.° (Responsabilidade);
Artigo 27.° (Exoneração de responsabilidade dos membros da direção);
Artigo 28.° (Prestação de contas);
Artigo 29.° (Responsabilidade pelas dívidas da sociedade);
Artigo 30.° (Compensação subsequente ao termo do contrato);
Artigo 31.° (Modificação do contrato);
Artigo 32.° (Cessação do contrato).

Perante um contrato de subordinação, as saídas legais seriam, em síntese:


– ou os acionistas livres vendem as suas ações por um preço adequado;
– ou são compensados da eventual perda de lucros correspondentes às suas
ações;
– sendo a sociedade dominante responsável pelos danos que cause;
– e podendo a mesma responder pelas dívidas da sociedade dominada.

O grande óbice reside em determinar os valores ajustados para as operações


a levar a cabo. Não havendo acordo, prevê-se toda uma cascata de relatórios e
revisões.Assegura-se, naturalmente, a publicidade das diversas situações a que se
chegue.

VI. Um grupo subordinado pode-se, ainda, constituir por via de uma decla-
ração unilateral da sociedade que detenha 90% ou mais das participações de
outra. Se não fizer essa declaração, será um “grupo de facto”, que cairá sob os

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artigos 6.° a 12.°. Fazendo-a, segue-se um regime muito semelhante ao do


contrato de subordinação.Temos, assim, na secção 6.ª:
Artigo 33.°(Declaração unilateral);
Artigo 34.°(Disposições aplicáveis à aquisição das ações dos acionistas livres);
Artigo 35.°(Outras disposições aplicáveis);
Artigo 36.°(Passagem do contrato de subordinação à declaração unilateral de
grupo);
Artigo 37.° (Termo do grupo);
Artigo 37.°a (Possibilidade de exclusão).

Este último preceito permite excluir a aplicação de todo este regime às


sociedades em que exista um regime de participação dos trabalhadores: uma
típica exigência alemã.

VII. Nas secções subsequentes, o Projeto de 9.ª Diretriz prevê a possibili-


dade de os Estados-membros consignarem outras formas de constituição de
grupos subordinados (38.°), a proteção do acionista livre, permitindo-lhe pro-
ceder à venda potestativa das suas ações, quando uma empresa detenha 90% ou
mais do capital social da sociedade (39.°) e o contrato relativo à constituição de
um grupo paritário (40.°).
A Diretriz encerra com os preceitos habituais.

6. O estudo do Prof. Raúl Ventura

I. Antes de 1986, os estudos existentes sobre grupos de sociedades, entre


nós, devem-se a Raúl Ventura27, com relevo para o escrito Grupos de sociedades/
/Uma introdução comparativa a propósito de um Projecto Preliminar de Directiva da
C.E.E., publicado em 198128.Trata-se, como o seu Autor explica, de um mero
trabalho descritivo de Direito comparado29. Raúl Ventura examina o sistema

27 Assim, todos de RAÚL VENTURA: Participações recíprocas de sociedades em sociedades, SI XXVII


(1978), 359-420, Participações dominantes: alguns aspectos do domínio de sociedades por sociedades, ROA
1979, 5-62 e 241-291, Participações unilaterais de sociedades em sociedades e sociedades gestoras de par-
ticipações noutras sociedades, SI 1980, 19-101 e O contrato de subordinação, em Novos estudos sobre socie-
dades anónimas e sociedades em nome colectivo (1994), 89-127, este último já à luz do Código das
Sociedades Comerciais.
28 ROA 1981, 23-81 e 305-362, já citado.
29 RAÚL VENTURA, Grupos de sociedades cit., 25 ss..

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alemão30 e o projeto de sociedade europeia, na versão de 197531, relatando a


influência que os mesmos tiveram na proposta de Cousté32. Aliás, o projeto de
sociedade europeia de 1975 já33 denotava uma influência alemã decisiva, pelo
que tudo desaguava na experiência alemã. Posto isto, passa a estudar o Projeto
de 9.ª Diretriz, na versão de 1974/7534. Este projeto é retomado, a propósito
de diversos problemas envolvidos35.

III.Aquando da apresentação do projeto de Código das Sociedades Comer-


ciais, em 198336, a matéria relativa aos grupos de sociedades já estava, pratica-
mente, articulada37. Trata-se, pela conceção geral, pela linguagem e pela gene-
ralidade das soluções, de um regime de clara inspiração alemã, em cuja receção
o Projeto de 9.ª Diretriz e os elementos apurados por Raúl Ventura – que terá
sido, precisamente, o Autor material do articulado exarado no Código e rela-
tivo aos grupos – tiveram preponderância38.
Não se torna, hoje, possível estudar o Direito português dos grupos sem
remontar ao Direito alemão e ao projeto, quase ignoto, de 9.ª Diretriz das
sociedades.

7. O artigo 501º

I. Estamos agora em condições de indicar a origem do artigo 501.°. Ele


corresponde ao artigo 492.° do projeto de 198339.

30 RAÚL VENTURA, Grupos de sociedades cit., 38 ss..


31 RAÚL VENTURA, Grupos de sociedades cit., 41 ss..
32 Ou proposta francesa, apresentada pelo deputado COUSTÉ, que conheceu uma evolução, aca-
bando por nunca passar a Lei; ela data de 1978.
33 RAÚL VENTURA, Grupos de sociedades cit., 46 ss..
34 RAÚL VENTURA, Grupos de sociedades cit., 46 ss..
35 RAÚL VENTURA, Grupos de sociedades cit., 55, 78 ss., 310 ss., 327 ss., 331 ss., 333 ss, 337 ss., 344
ss. e 352 ss.: um levantamento não exaustivo.
36 Código das Sociedades (Projeto), BMJ 327 (1983), 43-339.
37 Artigos 472.° a 499.°; cf. BMJ 327, 316-330.
38 Assim: LUÍS BRITO CORREIA, Grupos de sociedades, em FDL/CEJ, Novas perspectivas do Direito
comercial (1988), 377-399 (381) e JOSÉ A. ENGRÁCIA ANTUNES, Os grupos de sociedades / Estrutura
e organização jurídica da empresa plurisocietária, 2.ª ed. (2002), 272-273.
39 BMJ 327 (1983), 43-339 (328).

RDS III (2011), 1, 83-115


A responsabilidade da sociedade com domínio total (501.°/1, do CSC) 95

II. Na base, temos o artigo 29.° do projeto de 9.ª Diretriz, que dispõe:
1. A outra parte no contrato responde pelas dívidas da sociedade surgidas antes da
conclusão do contrato e durante a sua vigência. Ela só pode, todavia, ser
demandada depois de os credores terem interpelado a sociedade, por escrito,
pondo-a em mora.
2. A outra parte no contrato pode liberar-se dessa responsabilidade demons-
trando que a incapacidade da sociedade para cumprir deriva de circunstâncias
que forem provocadas por uma influência por esta exercida ou omitida.
(…)

III. Finalmente, o artigo 29.° em causa adveio do § 322 do AktG alemão


de 196540, que dispõe41:
(1) A partir da englobação, a sociedade principal responde pelas obrigações cons-
tituídas a partir desse momento perante os credores da sociedade englobada,
como devedor conjunto.
(2) Quando a sociedade principal seja demandada por uma obrigação assumida
pela englobada, pode ela usar dos meios de defesa que não tenham a ver com
a sua pessoa, e apenas na medida em que pudessem ser usadas pela englobada.
(3) A sociedade principal pode recusar a satisfação dos credores, enquanto couber
à sociedade englobada o direito de impugnar o negócio jurídico subjacente à
obrigação. O mesmo poder cabe à sociedade principal enquanto ela se puder
liberar dos credores através de compensação com um crédito vencido da
sociedade englobada.
(4) Com base num título executivo obtido contra a sociedade englobada não
pode ter lugar uma execução contra a sociedade principal.

II – Aspectos gerais do Direito português dos grupos de sociedades

8. O esquema do CSC

I. A matéria dos grupos de sociedades foi introduzida, ex novo, no nosso


Direito, pelo Código das Sociedades Comerciais de 198642. Não conhecemos
estudos prévios de política legislativa que, de modo assumido, tenham aprofun-
dado as opções do legislador.

40 ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, CSC/Clássica (2009), 1208, 2.ª ed. (2011), 1295.
41 Vide UWE HÜFFER, Aktiengesetz, 9.ª ed. cit., 1730.
42 Cf. o ponto 33 do preâmbulo do Decreto-Lei n.° 262/86, de 2 de Setembro.

RDS III (2011), 1, 83-115


96 António Menezes Cordeiro

Efetivamente, o Título VI do Código das Sociedades Comerciais regula a


matéria das sociedades coligadas ou grupos de sociedades. Cumpre recordar, em
traços muito largos, o conteúdo desse título.
Atualmente, ele reparte-se por 4 capítulos, a saber:
Capítulo I – Disposições gerais – 481.° e 482.°;
Capítulo II – Sociedades em relação de simples participação, de participações
recíprocas e de domínio – 483.° a 487.°;
Capítulo III – Sociedades em relação de grupo – 488.° a 508.°;
Capítulo IV – Apreciação anual da situação de sociedades obrigadas à consolida-
ção de contas – 508.°-A a 508.°-D.

No tocante a disposições gerais, o Capítulo I começa, no artigo 481.°, por


definir o âmbito desse título. Ele aplica-se – n.° 1:
(...) a relações que entre si estabeleçam sociedades por quotas, sociedades anó-
nimas e sociedades em comandita por ações.

O n.° 2 fixava, ainda, um âmbito de aplicação geográfica. Hoje, porém,


opera apenas no tocante a sociedades por quotas, uma vez que a matéria rela-
tiva a sociedades anónimas consta dos artigos 325.°-A e 325.°-B, introduzidos
pelo Decreto-Lei n.° 328/95, de 9 de dezembro.
O artigo 482.° surge como uma típica norma de enquadramento. Ele con-
sidera sociedades coligadas:
a) As sociedades em relação de simples participação;
b) As sociedades em relação de participação recíproca;
c) As sociedades em relação de domínio;
d) As sociedades em relação de grupo.

Podemos usar “grupos de sociedades” em sentido amplo, de modo a abran-


ger as sociedades “coligadas” de que fala o Título VI do Código das Sociedades
Comerciais. A “relação de grupo” será, então, um “grupo” em sentido estrito.

II. O Capítulo II do Título VI versa as sociedades em relação de simples


participação, de participações recíprocas e de domínio.
Eis o seu teor geral, com base nas epígrafes oficiais do preceito:
artigo 483.° – Sociedades em relação de simples participação;
artigo 484.° – Dever de comunicação;
artigo 485.° – Sociedades em relação de participações recíprocas;
artigo 486.° – Sociedades em relação de domínio;
artigo 487.° – Proibição de aquisição de participações.

RDS III (2011), 1, 83-115


A responsabilidade da sociedade com domínio total (501.°/1, do CSC) 97

A simples participação ocorre quando uma das sociedades seja titular de quo-
tas ou de ações de outra, em montante igual ou superior a 10% do capital desta
mas, entre ambas, não haja nem relação de participações recíprocas, nem rela-
ção de domínio, nem relação de grupo.
Fundamentalmente, a simples participação dá azo ao dever de comunica-
ção, previsto no artigo 484.°/1: o de comunicar:
(...) por escrito, à outra sociedade, todas as aquisições e alienações de quotas
ou ações desta que tenha efetuado (...) e enquanto o montante da participa-
ção não se tornar inferior àquele que determinar essa relação.

As participações recíprocas tornam-se relevantes a partir do momento em que


ambas atinjam 10% do capital da participada – artigo 485.°/1. Como se vê,
temos aqui um plus em relação à simples participação. Dispõe o n.° 2 do
mesmo artigo 485.°:
A sociedade que mais tardiamente tenha efetuado a comunicação exigida pelo
artigo 484.°, n.° 1, donde resulte o conhecimento do montante da participação
referido no número anterior, não pode adquirir novas quotas ou ações na outra
sociedade.

A inobservância desta regra dá azo às inibições prescritas no n.° 3.


A relação de domínio ocorre quando determinada sociedade possa exercer,
sobre outra, uma influência dominante – artigo 486.°/1.Aparentemente, temos
aqui um conceito indeterminado: o n.° 2 precisa-o, em termos que, abaixo,
serão ponderados.
A aquisição de ações da sociedade dominante pela dependente obedece às
regras específicas dos artigos 325.°-A e 325.°-B do Código das Sociedades
Comerciais, aditados pelo Decreto-Lei n.° 328/95, de 9 de dezembro. Implici-
tamente revogado, o artigo 487.° aplica-se, apenas, às sociedades por quotas.

III. A matéria das sociedades coligadas suscitou algum interesse doutriná-


rio43. De todo o modo, apenas a prática permitirá, paulatinamente, ir desbra-

43 Cf., como exemplo, incluindo obras já citadas: RAÚL VENTURA, Grupos de sociedades, ROA
1981, 23-81 e 305-362 e Estudos vários sobre sociedades anónimas (1991), LUÍS BRITO CORREIA,
Grupos de sociedades, em Novas perspectivas do Direito comercial, org. FDL/CEJ (1988), 377-399,
FRANCISCO MANUEL DE BRITO PEREIRA COELHO, Grupos de sociedades, BFD LXIV (1988),
297-353, MARIA DA GRAÇA TRIGO, Grupos de sociedades, O Direito 123 (1991), 41-114, JOSÉ
ENGRÁCIA ANTUNES, Os grupos de sociedades/Estrutura e organização jurídica de empresa plurissocietá-

RDS III (2011), 1, 83-115


98 António Menezes Cordeiro

vando os diversos textos legais. Mantém-se, de toda a forma, uma instabilidade


legislativa que origina contínuos problemas de interpretação.
Como ponto de partida, com especial relevo interpretativo e aplicativo,
parece-nos importante sublinhar que as noções legais devem ser devidamente
delimitadas. Na verdade, o diagnóstico da presença de grupos de sociedades e,
dentro deles, de relações de participação simples, de participações recíprocas, de
domínio ou de grupo stricto sensu, implica o funcionamento de regimes com-
plexos e envolventes. Todo o sistema ficaria em grave crise quando houvesse
dúvidas quanto à existência ou à natureza de qualquer grupo.
No tocante à relação de domínio, dispõe o artigo 486.° do Código das
Sociedades Comerciais:
1. Considera-se que duas sociedades estão em relação de domínio quando uma
delas, dita dominante, pode exercer, diretamente ou por sociedades ou pessoas que
preencham os requisitos indicados no artigo 383.°, n.° 2, sobre a outra, dita depen-
dente, uma influência dominante.

A “influência dominante” é um conceito indeterminado. Por isso, o n.° 2


do citado artigo 486.°, veio precisar:
Presume-se que uma sociedade é dependente de outra se esta direta ou indi-
retamente:
a) Detém uma participação maioritária no capital;
b) Dispõe de mais de metade dos votos;
c) Tem a possibilidade de designar mais de metade dos membros do órgão de
administração ou do órgão de fiscalização.

Como se vê, estamos perante critérios objetivos, precisos e extremamente


claros, no seu funcionamento.
Tem ainda interesse considerar o dispositivo do artigo 483.°/2 do Código
das Sociedades Comerciais. Para ele remete, como vimos, o artigo 486.°/1, com
vista a determinar a relação de domínio.
Dispõe o n.° 2 em causa:
A titularidade de quotas ou ações, por uma sociedade equipara-se, para efeito
do montante referido no número anterior, a titularidade de quotas ou de ações por
uma outra sociedade que dela seja dependente, direta ou indiretamente, ou com

ria (1993), com 2.ª ed. (2002) e Liability of Corporate Groups (1994) e GONÇALO AVELÃS NUNES,
Tributação dos grupos de sociedades pelo lucro consolidado em sede de IRC/Contributo para um novo
enquadramento dogmático e legal do seu regime (2001), 20 ss..

RDS III (2011), 1, 83-115


A responsabilidade da sociedade com domínio total (501.°/1, do CSC) 99

ela esteja em relação de grupo, e de ações de que uma pessoa seja titular por conta
de qualquer dessas sociedades.

Figuram-se, aqui, três situações:


– titularidade de ações de outra sociedade, que dela seja dependente, direta ou indi-
retamente: temos uma remissão para o artigo 486.° que define, com pre-
cisão, a relação de domínio, donde deriva uma sociedade dominante e
outra, dependente;
– ou com ela esteja em relação de grupo: desta feita, tem-se em vista o grupo
stricto sensu, tratado nos artigos 488.° e seguintes e que abrange três hipó-
teses: (a) do domínio total – artigos 488.° ss.; (b) contrato de grupo pari-
tário – artigos 492.° ss.; (c) contrato de subordinação;
– ações de que uma pessoa seja titular por conta de qualquer outra dessas socieda-
des: trata-se de situações comuns de interposição de pessoas, de mandato
sem representação ou de gestão de negócios.

Em qualquer destes casos, a lei entendeu que tudo se poderia passar como
se a entidade “principal” fosse a titular efetiva. Donde a equiparação de regi-
mes, que vem prescrita.

IV. A relação de grupo ou grupo stricto sensu ocupa todo o Capítulo III do
Título VI. É o mais extenso, repartindo-se por 3 secções:
Secção I – Grupos constituídos por domínio total
artigo 488.° – Domínio total inicial;
artigo 489.° – Domínio total superveniente;
artigo 490.° – Aquisições tendentes ao domínio total;
artigo 491.° – Remissão;
Secção II – Contrato de grupo paritário
artigo 492.° – Regime do contrato;
Secção III – Contrato de subordinação
artigo 493.° – Noção;
artigo 494.° – Obrigações essenciais de sociedade diretora;
artigo 495.° – Projeto de contrato de subordinação;
artigo 496.° – Remissão;
artigo 497.° – Posição dos sócios livres;
artigo 498.° – Celebração e registo do contrato;
artigo 499.° – Direitos dos sócios livres;
artigo 500.° – Garantia de lucros;
artigo 501.° – Responsabilidade para com os credores da sociedade subordi-
nada;

RDS III (2011), 1, 83-115


100 António Menezes Cordeiro

artigo 502.° – Responsabilidade por perdas da sociedade subordinada;


artigo 503.° – Direito de dar instruções;
artigo 504.° – Deveres e responsabilidades;
artigo 505.° – Modificação do contrato;
artigo 506.° – Termo do contrato;
artigo 507.° – Aquisição do domínio total;
artigo 508.° – Convenção de atribuição de lucros;
artigo 508.°-A – Obrigação de consolidação de contas;
artigo 508.°-B – Princípios gerais sobre a elaboração das contas consolidadas;
artigo 508.°-C – Relatório consolidado de gestão;
artigo 508.°-D – Fiscalização das contas consolidadas;
artigo 508.°-E – Prestação de contas consolidadas;
artigo 508.°-F – Anexo às contas consolidadas.

O domínio total pode ser inicial: uma sociedade, mediante escritura ou equi-
valente por ela outorgada, constitui uma sociedade anónima de cujas ações ela
seja inicialmente a única titular – artigo 488.°/1: surge a relação de grupo.
Mas pode, também, ser superveniente: nessa altura, a relação de grupo
ocorre, apenas, quando a sociedade dominante não opte pela dissolução da
dependente ou pela alienação das suas quotas ou ações – artigo 489.°/3.
O grupo paritário pressupõe um contrato pelo qual duas sociedades inde-
pendentes se submetam a uma direção unitária e comum – 492.°/1.
A subordinação implica um contrato com esse nome: artigo 493.°/1. Por
ele, uma sociedade subordina a gestão da sua própria atividade à direção da
outra, sua dominante ou não – 493.°/1. O Código dimana, depois, toda uma
regulação tendente a tutelar os sócios livres.

9. Ponderação global

I. O Direito português dos grupos de sociedades só tem como equivalente,


na União Europeia, o próprio Direito alemão44-45. Logo se pergunta se existe
uma realidade social e económica paralela, entre esses dois Países, que justifique

44 Cf. FRANÇOISE BLANQUET, Societas europaea: histoire, negotiations et textes, em JACQUES-LOUIS


COLOMBANI/MARC FAVERO, Societas europaea/La société européenne (2002), 5-16 (15).
45 Outros países têm vindo, mais recentemente, a adotar leis sobre grupos de sociedades –
cf. ENGRÁCIA ANTUNES, Os grupos de sociedades, 2.ª ed. cit., 274: trata-se, praticamente, de Países
de Leste, que pretenderam, rapidamente, dotar-se de sistemas semelhantes ao alemão: Hungria,
Chéquia, Croácia, Eslovénia e Rússia, segundo informação dada no ult. loc. cit..

RDS III (2011), 1, 83-115


A responsabilidade da sociedade com domínio total (501.°/1, do CSC) 101

o paralelismo de regulação jurídica. É evidente que a reforma de 1986, designa-


damente no que teve a pena preciosa do Prof. Raúl Ventura, ocorreu numa altura
em que era legítimo apostar numa aprovação rápida da 9.ª Diretriz: o Direito
português teria, então, sido pioneiro. A evolução posterior foi outra: como
vimos, ocorreu todo um conjunto de críticas ao Direito dos grupos de inspi-
ração alemã, que acabariam por deter o processo.As suas repercussões foram, de
resto, fortemente sentidas no próprio estatuto de sociedade europeia (SE).
O Direito dos grupos de sociedades fica, entre nós, como uma disciplina
jurídica que exprime, por excelência, a recepção, por via doutrinária, de impor-
tantes elementos de Direito europeu.

II. O Direito dos grupos de sociedades carece de reforma. Particularmente


chocante é o facto de, segundo o artigo 481.°, o Direito dos grupos só se apli-
car, em princípio, a sociedades com sede em Portugal. Quer isto dizer que as
sociedades estrangeiras, mesmo atuando em Portugal, terão, aí, um sistema mais
favorável46, o que não parece admissível. Além disso, não se afigura razoável
fazer assentar – tal como na 9.ª Diretriz! – o grosso da regulação, na matéria
atinente ao contrato de subordinação: trata-se de um instrumento sem tradi-
ções na nossa Terra e que, quanto sabemos, não tem sido praticado.
Provavelmente o próprio Direito europeu dará, no futuro, ensejo à simpli-
ficação do (complexo) sistema nacional vigente.
De todo o modo e para os propósitos do presente estudo: fica documen-
tada esta importante transposição regulativa e científica, operada na base do
Direito europeu das sociedades. Ela só pode incitar à prudência interpretativa
e aplicativa.

III – Análise do artigo 501.°

10. Requisitos legais

I. O artigo 501.°, já transcrito, fixa, aparentemente, quatro requisitos para a


responsabilidade da sociedade diretora, por dívidas47 da sociedade subordinada:

46 ENGRÁCIA ANTUNES, O âmbito de aplicação do sistema das sociedades coligadas, em Estudos de


Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, 2.° vol. (2002), 95-116 (116), consi-
dera esta solução contrária ao Tratado da União, por inobservância da não-discriminação em fun-
ção da nacionalidade e porventura, à própria Constituição – artigos 13.°/2 e 81.°/1, e); afi-
gura-se-nos que tem razão.
47 A lei refere “obrigações”; todavia, parece claro que terão de estar em causa débitos fungíveis,

RDS III (2011), 1, 83-115


102 António Menezes Cordeiro

– uma situação de subordinação ou de domínio total, com dívidas por parte


da subordinada ou dominada;
– tais dívidas devem ter sido contraídas antes ou depois do contrato de
subordinação (mas apenas) até ao seu termo (n.° 1);
– a sociedade subordinada deve ter sido constituída em mora (n.° 2,
2.ª parte);
– decorrendo, ainda, 30 dias a partir da data da mora em causa (n.° 2,
1.ª parte).

Além disso, verifica-se que a presença de um título exequível contra a


sociedade subordinada não constitui fundamento para uma execução contra a
sociedade autora (n.° 3).

II.A base para a aplicação do regime é a celebração de um contrato de subor-


dinação.Tal contrato surge delicado, sendo rodeado pelas cautelas seguintes:
– deve ser preparado um projeto conjunto pelas administrações das socie-
dades envolvidas, com os (numerosos) requisitos do artigo 495.°;
– segue-se a fiscalização do projeto, a convocação das assembleias gerais das
sociedades envolvidas, a consulta de documentos e determinados requi-
sitos, aplicando-se, quanto a tudo isso, o disposto quanto à fusão de socie-
dades (496.°);
– os sócios livres podem opor-se, em certos termos (497.°);
– o contrato é celebrado por escrito, registado por depósito e publicado
(498.°);
– os sócios livres recebem determinados direitos de opção e de garantia de
lucros (499.° e 500.°).

O contrato de subordinação cria uma situação próxima da da fusão de


sociedades: um aspeto importante, para melhor se entender a supressão do pri-
vilégio da limitação de responsabilidade.

III. O preceituado no artigo 501.° aplica-se, por via do artigo 491.°, aos gru-
pos constituídos por domínio total (491.°).Trata-se de uma especialidade da lei
portuguesa, sem paralelo nem na lei alemã nem no projeto de 9.ª Diretriz48.

normalmente em dinheiro. Não faria sentido interpelar uma sociedade dominante para a exe-
cução de prestações técnicas que só a subordinada estivesse em condições de executar.
48 ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, CSC/Clássica cit., art. 491.°, anot. 2 (1261); desta feita,
ter-se-á colhido inspiração na Lei Brasileira das Sociedades Anónimas de 1976 que admite a
“subsidiária integral” – idem, 488.°, anot. 4 (1150).

RDS III (2011), 1, 83-115


A responsabilidade da sociedade com domínio total (501.°/1, do CSC) 103

O domínio total pressupõe uma detenção, por parte da sociedade domi-


nante, de 100% do capital social da dominada:
– seja por domínio total inicial (488.°);
– seja por domínio total superveniente (489.°).

É muito importante determinar o momento em que ocorre o domínio ini-


cial, uma vez que é a partir dele que se afere o início e o termo da responsabi-
lidade facultada pelo artigo 501.°. Ora neste ponto, faltam (ou podem faltar) os
requisitos de certeza e de publicidade que rodeiam os contratos de subordi-
nação.
Na hipótese de domínio total inicial, podemos fixar esse momento no
do registo definitivo de constituição da sociedade dominada: é o que se extrai
do artigo 5.°.
Sendo o domínio total (apenas) superveniente, há dúvidas. Com efeito, a
relação de grupo é instável, até que seja tomada alguma das deliberações pre-
vistas no artigo 489.°/2: ou a dissolução da sociedade dependente; ou a aliena-
ção de quotas ou ações dessa mesma sociedade; ou a manutenção da situação
existente.
Apenas na hipótese de ser tomada esta última deliberação, se deve proceder
ao (seu) registo (489.°/6). Mas dado o disposto no artigo 489.°/3, na parte em
que refere (…) ou enquanto não for tomada alguma deliberação, a sociedade dependente
considera-se em relação de grupo (…), devemos entender que, mau grado a falta de
publicidade, o artigo 501.° tem aplicação. A sociedade dominante, caso esteja
perante um domínio indesejado, terá de andar muito depressa: dispõe dos 30 dias
do artigo 501.°/2 para desfazer o domínio total e evitar as suas consequências.

IV. O artigo 501.° funciona em cenários de insolvência: desde que se veri-


fiquem, naturalmente, os seus requisitos49. Além disso, ela opera independente-
mente da sua fonte ou do seu conteúdo50.

11. Teleologia e natureza

I. O artigo 501.° visa claramente a proteção dos credores. Este justificar-


-se-ia porque a relação de subordinação existente permite à sociedade domi-

49 RCb 27-Jul.-2010 (CARLOS GIL), Proc. 255/10.


50 RLx 19-Jun.-2006 (MANUELA GOMES), Proc. 260/2007.

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104 António Menezes Cordeiro

nante dar instruções à dominada, instruções essas que esta fica obrigada a aca-
tar, mesmo quando desvantajosas (503.°)51. No limite, poderiam ser dadas ins-
truções suicidárias, de tal modo que os credores da sociedade subordinada sai-
riam gravosamente prejudicados.
Podemos considerar que, em situações normais, os credores beneficiam do
natural espírito de sobrevivência das sociedades e, ainda, das múltiplas regras de
cautela que se impõem aos respetivos administradores e por cujo cumprimento
eles são responsáveis. O dever de acatar instruções desfavoráveis altera tudo:
podem, legalmente, surgir sociedades khamikase, contra as quais falham os
esquemas normais de acautelamento. A responsabilidade alargada permite
reconstituir, no nível superior, a segurança perdida.

II. Pergunta-se qual a natureza da responsabilidade da sociedade domi-


nante52. A doutrina dominante aponta para uma situação de solidariedade pas-
siva, ainda que com particularidades. Passamos a reter:
Raúl Ventura:
Em bom rigor, esta responsabilidade [a do artigo 501.°] não é perfeitamente
solidária – pois não pode ser exigida antes de decorridos 30 dias sobre a consti-
tuição em mora da sociedade subordinada – nem é meramente subsidiária, pois não
requer a prévia execução dos bens da sociedade subordinada.
Acresce que não pode mover-se execução contra a sociedade directora com
base em título exequível (incluindo sentença condenatória) contra a sociedade
subordinada53.

Engrácia Antunes:
(…) uma responsabilidade solidária sui generis: muito embora as sociedades subordi-
nada e directora respondam ambas pelo cumprimento integral das obrigações, os
credores sociais deverão começar por fazer valer os respectivos direitos primeira-
mente perante a sociedade subordinada (rectius, por aguardar o vencimento dessas
obrigações em face desta), os quais apenas se tornarão exigíveis junto da sociedade

51 ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, CSC/Clássica cit., art. 501.°, anot. 8 (1295) e JOSÉ A. ENGRÁ-
CIA ANTUNES, Os grupos de sociedades cit., 797; vide STJ 31-Mai.-2005 (FERNANDES MAGALHÃES),
Proc. 05A1413.
52 Sobre esta matéria, vide, por último, JANUÁRIO GOMES, A sociedade com domínio total como
garante. Breves notas, RDS 2009, 865-883 (866 ss.).
53 RAÚL VENTURA, Contrato de subordinação entre sociedades, RB 25 (1993), 35-54 = Novos estudos
sobre sociedades anónimas e sociedades em nome colectivo (1994), 89-127 (123).

RDS III (2011), 1, 83-115


A responsabilidade da sociedade com domínio total (501.°/1, do CSC) 105

directora quando, não podendo ou não querendo aquela cumpri-las, tenha trans-
corrido um determinado prazo após a mora debendi54.

Maria da Graça Trigo:


A força daquela disposição encontra-se atenuada pela exigência legal de pré-
via constituição em mora por parte da sociedade subordinada (artigo 501.°, n.° 2).
Porém, o regime instituído não é sequer de responsabilidade subsidiária da socie-
dade directora, pois não se exige que previamente os bens da sociedade dependente
tenham sido excutidos55.

Outros Autores, como Francisco Pereira Coelho56, Maria do Rosário


Palma Ramalho57 e Ana Perestrelo de Oliveira58 referem a solidariedade, com
maiores ou menores ressalvas.

III. Januário Gomes apontou o caso do artigo 501.°/2 como sendo de sub-
sidiariedade média59: a responsabilidade da sociedade diretora está dependente
do incumprimento da devedora primária e do decurso de um prazo. Em estudo
subsequente, afirma essa responsabilidade como acessória e, logo, como não
puramente solidária60. Afigura-se-nos que tem razão em ambos os troços em
jogo. Cabe precisar.

IV. Na solidariedade perfeita, temos uma única prestação com dois ou mais
devedores, sendo o seu esforço repartível apenas depois do cumprimento61. As
obrigações dos envolvidos são qualitativamente iguais: cada um pode opor, ao
credor, os meios de defesa comuns e, ainda, os que especificamente lhe caibam
(514.°, do Código Civil). Na verdadeira solidariedade, a invalidade da obriga-
ção de um dos devedores não aproveita aos demais. O credor pode demandar
(indiferentemente) qualquer dos devedores, pela prestação integral (512.°/1, do
Código Civil).

54 ENGRÁCIA ANTUNES, Os grupos de sociedades, 2.ª ed. cit., 806.


55 MARIA DA GRAÇA TRIGO, Grupos de sociedades cit., 93.
56 FRANCISCO B. PEREIRA COELHO, Grupos de sociedades cit., 350.
57 MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Grupos empresariais e societários / Incidências laborais
(2008), 168 e 629.
58 ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, CSC/Clássica cit., 1297.
59 MANUEL JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Assunção fidejussória de dívida / Sobre o sentido e o âmbito
da vinculação como fiador (2000), 968.
60 Idem, A sociedade com domínio total como garante cit., 876 ss.. O Autor parece, neste último
escrito, evitar a qualificação desta responsabilidade como subsidiária.
61 Vide o nosso Tratado de Direito civil, II – Direito das obrigações 1 (2009), 727-728 e passim.

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Ora a situação do artigo 501.° apresenta dois desvios sensíveis:


– a prestação só pode ser exigida, inicialmente, à sociedade subordinada ou
dominada: seja por se exigir uma interpelação (805.°/1, do Código
Civil), seguida de 30 dias, seja por, mesmo quando se dispense a interpe-
lação (idem, 805.°/2), haver que aguardar os tais 30 dias;
– a sociedade diretora pode usar os meios de defesa, próprios da sociedade
subordinada ou dominada: de outro modo, ela poderia ter de satisfazer
obrigações oriundas de negócios inválidos ou de obrigações às quais se pu-
desse opor, por exemplo, a exceção de não-cumprimento dos contratos62.

V. Retomamos a distinção preconizada por Januário Gomes da subsidiarie-


dade em forte, média e fraca63, nos termos seguintes:
– forte: cabe o benefício da excussão; só quando não restem bens ao deve-
dor principal, cabe ao garante intervir; será o caso paradigmático da res-
ponsabilidade do sócio em nome coletivo, pelas dívidas da sociedade;
– média: o devedor garante só deve intervir quando se esgotem hipóteses
de atuação e de cumprimento, por parte do devedor principal;
– fraca: o devedor garante é chamado ao cumprimento quando o principal
não cumpra.

Não se confunde, com esta, a contraposição entre uma responsabilidade


principal e uma acessória: a principal sobrevive a se, enquanto a acessória
depende da manutenção de uma responsabilidade principal. Assim, a responsa-
bilidade do fiador pode ser imediata (por oposição a subsidiária) e acessória
(por oposição a principal).Tudo depende da concreta fiança em jogo.
Havendo acessoriedade, não há verdadeira solidariedade. O devedor pode
usar meios não-próprios e não-comuns para se defender. Ele não pode ser
demandado ad nutum pela totalidade da dívida.A sua posição é qualitativamente
diferente. Admitiríamos uma “solidariedade imperfeita”: mas não mais.

VI. Pois bem: aplicando estas categorias ao artigo 501.°, estaremos em face
de uma responsabilidade:
– acessória: a sociedade diretora pode invocar os meios de defesa da deve-
dora e a sua obrigação depende da existência e da manutenção da adstri-
ção garantida;

62 Convincentemente: JANUÁRIO GOMES, A sociedade com domínio total como garante cit., 876 ss..
63 JANUÁRIO GOMES, Assunção fidejussória cit., 968 e passim.

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– subsidiária média: ela só funciona se, ao fim de trinta dias, a devedora


principal não tiver cumprido.

Não há verdadeira solidariedade. Mau grado estas graduações, não estamos


perante uma despromoção. A responsabilidade da sociedade diretora é uma
arma temível e muito dura. Há que agir com os cuidados requeridos pela Ciên-
cia do Direito.

12. O problema das dívidas anteriores

I. Feito o levantamento dogmático da situação, cabe ponderar algumas


questões ocasionadas pelo dispositivo legal e que não têm, prima facie, uma solu-
ção direta na lei.
A primeira tem a ver com as dívidas anteriores à subordinação ou ao domí-
nio total. Repartem-se em dívidas vencidas antes da ocorrência desses factos e
em dívidas anteriores, mas só depois vencidas. Cabe ainda distinguir situações
de subordinação e situações de domínio total.

II. Havendo subordinação, o artigo 501.°/1 refere, claramente, as “obriga-


ções da sociedade subordinada, constituídas antes ou depois da celebração do
contrato de subordinação e até ao termo deste”.Vale, pois, a mera existência da
dívida e da subordinação. E se a dívida estiver vencida antes da celebração do
contrato? A lei não distingue. E de facto, dados os múltiplos requisitos que ante-
cedem a conclusão de um contrato desse tipo, não parece imaginável que não
haja um acesso cuidado às contas da candidata à subordinação. Evidentemente:
o vício escondido poderá dar azo à anulação do contrato de subordinação, nos
termos gerais.Tal anulação tem efeitos retroativos, fazendo cessar a responsabi-
lidade.

III. E quanto aos trinta dias de mora: quando se inicia a sua contagem?
O objetivo da Lei ao conceder essa dilação é claro: visa permitir que a socie-
dade diretora, se necessário dando as devidas instruções, faça solver a dívida pela
devedora principal, como é de Justiça. Ora esse escopo fica comprometido se
os trinta dias se contarem desde a mora em si, independentemente da data da
subordinação: no limite, quando eles tivessem expirado ainda antes de tal data,
a responsabilidade da diretora passaria a ser imediata e não subsidiária!
A lógica do diploma exige, pois, que os trinta dias de mora decorram já no
período da subordinação. Se houver mora anterior, ela produz todos os seus

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efeitos, designadamente na área dos juros de mora ou de outros encargos, mas


não o de ativar o artigo 501.°. Para tanto, haverá que contar (mais) os tais trinta
dias.

IV. Pergunta-se, depois, se essas mesmas considerações se aplicam às ocor-


rências de domínio total. O artigo 491.° não põe restrições na remissão que faz
para os artigos 501.° a 504.°. Todavia, deve-se entender que se trata de uma
remissão substancial e não, meramente, formal. Tanto basta para que se deva
sempre antepor uma ponderação jurídico-científica.
De facto, a assunção de dívidas da sociedade dominada, anteriores à aquisi-
ção do domínio total, pode ser aleatória e injusta. O domínio total pode advir
de várias ocorrências, sem que a sociedade dominante tenha tido acesso a infor-
mações aprofundadas sobre as inerentes eventualidades. Não se prevê, aqui,
nenhum processo comparável com o que antecede a celebração de um con-
trato de subordinação. Para quê castigar a sociedade dominante com algo que
ela não podia prever e para quê premiar os credores da dominada? A situação
atingiria o cúmulo em face de dívidas vencidas antes da aquisição do domínio
total.

V. Perante isso, poder-se-ia pôr a hipótese de, por redução teleológica par-
cial, se defender que, no caso do domínio total superveniente, a sociedade
dominante, por via do artigo 501.°/1, não responderia pelas dívidas anteriores
da dominada, quando, de boa-fé, não as conhecesse. Isto é: quando, mau grado
o cuidado exigível, não as conhecesse nem pudesse conhecer. Todavia, numa
área tão delicada como a aqui em estudo, entendemos que a Lei privilegia, pre-
dominantemente, a segurança, como valor material. O artigo 501.° (e o 491.°)
fixa regras de jogo, que todos conhecem. Antes de adquirir um domínio total
superveniente, a interessada que se defenda. Em situações-limite de injustiça: ela
poderá sempre deter qualquer credor da sociedade dominada desde que, dadas
as circunstâncias concretamente reinantes, tal credor incorra em abuso do
direito (334.°). Este remédio está sempre à disposição de todos, para evitar saí-
das gritantemente contrárias aos valores fundamentais do sistema.

VI. Isto tudo: funciona sempre a ressalva dos trinta dias: mesmo em relação
a dívidas vencidas anteriormente, a sociedade dominante, depois de consumado
o domínio total superveniente, dispõe sempre desse lapso de tempo, antes de
incorrer na responsabilidade.

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13. O momento da verificação dos requisitos

I. O artigo 501.° coloca, como vimos, diversos requisitos, entre os quais o


decurso de 30 dias. Pergunta-se: nessa margem de 30 dias, devem manter-se os
demais requisitos, sob pena de cessar a responsabilidade da diretora? Recorda-
mos que esses requisitos são, seguindo agora o critério temporal: (a) uma situa-
ção de mora; (b) prolongada durante 30 dias; (c) de dívidas constituídas antes
ou depois da subordinação ou do domínio total, até ao seu termo; (d) havendo
uma situação de subordinação ou de domínio.

II.Vamos por exclusão de partes. Se cessar a mora, antes de expirar o lapso


de 30 dias, não há responsabilidade da sociedade diretora. Tal cessação pode
advir do cumprimento; mas pode ser induzida por uma moratória, por uma
alteração do contrato, pela procedência de alguma exceção, como a do contrato
não cumprido ou por uma conduta superveniente da entidade credora.
O prazo de 30 dias é constitutivo de responsabilidade da sociedade garante.
Se não decorrer, por qualquer razão, ela não surge.

III. Podem as obrigações a garantir desaparecer no prazo de 30 dias: pelo


cumprimento, por qualquer outra causa de extinção das obrigações ou, até, pela
invocação certeira de prescrição. Nessa altura, não se constitui a responsabili-
dade ex 501.°.
Recordamos que os 30 dias visam, precisamente, permitir resolver a situa-
ção, numa relação normal credor/devedor, sem necessidade de fazer intervir
terceiros garantes.

IV. Pode, finalmente, a situação de subordinação ou de domínio total cessar


durante o período de 30 dias, aqui em causa. A conclusão é inevitável: no
momento da constituição da garantia (o termo desse período), não ocorre a
situação básica constitutiva. Esta nem chega a surgir.
Contrapor-se-ia: a assim ser, a sociedade ameaçada com dívidas de subordi-
nadas ou de dominadas totais poderia livrar-se da responsabilidade se, no prazo
de 30 dias, lograsse pôr termo à situação de subordinação ou de domínio total.
Justamente: a Lei dá 30 dias de repouso para que se possa resolver a situação,
sem excluir quaisquer saídas. Por isso e como foi visto, não se pode falar em
verdadeira solidariedade. Entre as soluções possíveis está, ex rerum natura, a ces-
sação de subordinação ou do domínio total. A sociedade diretora dispõe desse
instrumento, lícito e legítimo, que usará se quiser. Os credores sabem-no, ab ini-
tio. Não se podem queixar. Um último aspeto: pode o credor exercer o direito

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conferido pelo artigo 501.° depois de ter cessado a subordinação ou o domínio


total? De modo algum64. Trata-se de um direito potestativo que não origina
responsabilidade se não for exercido ou enquanto o não seja. No momento em
que seja exercido, devem consubstanciar-se os seus requisitos. É um princípio
básico (ou seria como exigir coabitação depois do divórcio!) que nenhuma
jurisprudência do coração pode afastar: salvo abuso do direito, como é natural.

V. Neste ponto como noutros fica sempre ressalvada a válvula de segurança


do abuso do direito. Imaginemos que uma sociedade diretora dá instruções
catastróficas à subordinada ou à dominada total; confrontada com as obrigações
daí resultantes e com a mora vai, no decurso do lapso dos 30 dias, contrariando
a confiança antes criada, fazer cessar a subordinação ou o domínio total, para
desgraçar os credores. Não pode ser: há abuso do direito, por atentado à con-
fiança criada, provavelmente na forma de venire contra factum proprium. A res-
ponsabilidade manter-se-ia.

VI. Devemos ter presente que o artigo 501.° não é nenhum remédio abso-
luto. Nem seria justo que o fosse: apesar da subordinação ou do domínio total,
mantém-se a separação das pessoas coletivas envolvidas, com o privilégio da
limitação da responsabilidade, que a ninguém surpreende.
Apenas nas condições muito especiais do artigo 501.° se dá a garantia da
dominante.

IV – O âmbito do artigo 501.°

14. A hipótese da restrição ou do alargamento ex contractu

I. O artigo 501.° tem o âmbito de aplicação que resulta desse mesmo pre-
ceito e que acima procurámos delucidar. Pergunta-se, agora, se esse âmbito
pode ser restringido ou alargado, seja por vontade das partes (ex contractu), seja
por força da Lei (ex lege).Vamos ver.

II. A hipótese de, no próprio contrato de subordinação ou nalguma das


deliberações que deem corpo ao domínio total, se excluir a aplicabilidade do
artigo 501.° é de afastar: envolveria a nulidade dos instrumentos envolvidos, por

64 Contra, STJ 31-Mai.-2005 (FERNANDES MAGALHÃES), Proc. 05A1413, embora sem justificar
explicitamente este ponto.

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contrariedade à lei (281.°/1, do Código Civil)65. De facto, não se pode dispor,


por negócio, dos direitos de terceiros.
Já o afastamento do artigo 501.°, caso a caso, por acordo entre o credor e
a sociedade subordinada ou dominada é possível66, perante a doutrina do artigo
602.° do Código Civil (limitação da responsabilidade por convenção das par-
tes): trata-se de um direito disponível que, sendo abdicado no concreto, não
equivale à renúncia antecipada vedada pelo artigo 809.°, do mesmo Código.
Não origina obrigações naturais.

III. O alargamento ex contractu, estabelecendo, por exemplo, a responsabili-


dade de uma sociedade dominante, independentemente de haver um domínio
total, é possível.
Teria, porém, de ser feito caso a caso, sob pena de nulidade por indetermi-
nabilidade do objecto (281.°/1, do Código Civil). Além disso, caso se proce-
desse a semelhante “alargamento”, estaríamos perante uma garantia pessoal tipo
fiança e não em face de uma hipótese de aplicação do artigo 501.°. Finalmente:
por via do artigo 628.°/1, do Código Civil, o “alargamento” teria de ser
expressamente declarado, explicitando-se o seu conteúdo.

15. A restrição ex lege

I. Não podemos considerar restrição ex lege do artigo 501.° a defesa da sua


aplicação no estrito âmbito das suas fronteiras. Isso será uma simples decorrên-
cia do seu teor e das regras comuns da interpretação, aqui convocadas.

II. As possibilidades de restrição ex lege adviriam de exigências do sistema,


designadamente, por via do abuso do direito.Vamos admitir que uma entidade,
por razões circunstanciais totalmente alheias à sua vontade, era, durante 30 dias,
uma dominante total de uma entidade fortemente endividada e relativamente
à qual a dominante jamais tomara qualquer medida.
Exigir uma responsabilidade ex 501.° poderia envolver abuso do direito,
por desequilíbrio no exercício ou por atentado à confiança, designadamente
quando o credor interessado estivesse consciente da situação envolvida. O ar-
tigo 334.° do Código Civil tem uma aplicação universal, hoje reconhecida.

65 ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, CSC/Clássica cit., art. 501.°, anot. 24 (1297).


66 ENGRÁCIA ANTUNES, Os grupos de sociedades, 2.ª ed. cit., 813, nota 1593 e ANA PERESTRELO
DE OLIVEIRA, CSC/Clássica cit., art. 501.°, nota 17 (1297).

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16. A inviabilidade de um alargamento por analogia

I. A possibilidade de alargamento ex lege do artigo 501.° resultaria da hipó-


tese da sua aplicação analógica, fora dos pressupostos que ele próprio prevê.
À primeira vista, essa hipótese seria de excluir à cabeça: o artigo 501.° é ver-
dadeira e materialmente excecional, uma vez que implica um desvio às regras
da personalidade coletiva e ao princípio de que, pelas obrigações, respondem
(apenas) os bens do devedor (601.°, do Código Civil). Além disso, não se vis-
lumbra nenhuma lacuna: na falta de um contrato de subordinação ou de uma
situação de domínio absoluto, há muito simplesmente que aplicar o regime
normal das sociedades67.

II. Esta orientação básica, tanto quanto sabemos, só foi contraditada por um
relatório académico apresentado por Vogler Guiné. Segundo este Autor, em
situações de domínio qualificado, isto é, naquelas em que uma sociedade deti-
vesse a maioria do capital de outras, mas aquém de 100%, e havendo instru-
mentalização da dominada pela dominante, justificar-se-ia, “por maioria de
razão”, o recurso ao artigo 501.°. E isso no caso do seguinte exercício68:
– o artigo 501.° funciona, na base do domínio total, mesmo quando o
dominante tenha dado instruções em benefício da dominada;
– por maioria de razão funcionaria quando, não tendo o direito de dar ins-
truções, a sociedade dominante o fizesse, de facto, em prejuízo da domi-
nada e em seu próprio benefício.

O pensamento deste Autor, tal como o entendemos, não aponta para um


alargamento analógico do artigo 501.°. Ele antes defende que, em certos casos,
designadamente os tais em que fossem dadas instruções “de facto”, em prejuízo
da dominada e em proveito da dominante, haveria que responsabilizar esta
última perante os credores.Trata-se de algo que aponta já para o levantamento
ou desconsideração da personalidade colectiva, ex bona fide.

III.Torna-se muito importante sublinhar que o artigo 501.° tira a sua jus-
tificação profunda do poder legal que a dominante total tem de dar instruções

67 DIOGO PEREIRA DUARTE, Aspectos do levantamento da personalidade colectiva em sociedades em rela-


ção de domínio / Contributo para a determinação do regime de empresa plurissocietária (2007), 346-347,
justamente nesse sentido.
68 ORLANDO DINIS VOGLER GUINÉ, A responsabilização solidária nas relações de domínio qualificado /
/ Uma primeira noção sobre o seu critério e limites, ROA 2006, 295-325 (319).

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A responsabilidade da sociedade com domínio total (501.°/1, do CSC) 113

vinculativas, mesmo desfavoráveis, à dominada. Se essas “instruções” forem


dadas ilegalmente, não há que apelar ao artigo 501.° que, de todo, não foi pen-
sado para isso69: haverá, sim, que recorrer à responsabilização dos administra-
dores envolvidos (que podem, inclusive, incorrer em consequências criminais)
e, no limite, às técnicas do abuso do direito, desta feita na vertente do levanta-
mento ou da desconsideração da personalidade colectiva.

IV. O artigo 501.° surge numa área delicada, que exige total segurança: quer
para as sociedades, quer para os investidores, quer para os credores. Nessas con-
dições, tem de haver fronteiras claras quanto à sua aplicação. Admitir uma zona
cinzenta, na qual mau grado a não verificação das suas condições de aplicação,
o artigo 501.° puder funcionar nas hipóteses de má conduta da sociedade
“dominante qualificada”, seria introduzir, no seio do Direito das sociedades, um
gravíssimo fator de incerteza.
Não pode ser essa a intenção legislativa.

17. A hipótese do levantamento (ou desconsideração) da personalidade da socie-


dade participada

I. O levantamento (ou desconsideração) é o instituto pelo qual, em certas


circunstâncias muito especiais, se torna possível não ter em conta as normas que
sustentam a personalidade coletiva. Quando tal suceda, as obrigações da socie-
dade “desconsiderada” vão ser imputadas às pessoas que lhes sirvam de suporte:
seja aos seus administradores, seja aos sócios. A desconsideração corresponde a
uma submanifestação do abuso do direito: não se tem em conta a existência de
uma pessoa coletiva independente quando a invocação da correspondente per-
sonalidade contunda manifestamente com o princípio da boa-fé.

II. O levantamento da personalidade coletiva foi introduzido e desenvol-


vido, entre nós, por via doutrinária70. Pode ser equacionado em quatro grupos
de casos71:

69 Vide, na linha, ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, CSC/Clássica cit., 1296, nota 9.


70 Vide, com indicações, os nossos Do levantamento da personalidade colectiva, DJ IV (1989/90),
147-161, Da responsabilidade civil dos administradores das sociedades comerciais (1996), § 13.°, O levan-
tamento da personalidade colectiva no Direito civil e comercial (2000), Manual de Direito das sociedades
1, 2.ª ed. (2007), 375 ss., Tratado de Direito civil, I/3, 2.ª ed. (2007), 671 ss. e CSC/Clássica (2011),
89 ss..
71 RPt 24-Jan.-2005 (DOMINGOS MORAIS), Proc. 0411080 e RPt 3-Mar.-2005 (GIL ROQUE),
Proc. 1119/2005-6.

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(a) Confusão de esferas: por inobservância das regras atinentes à prestação de con-
tas e à autonomia patrimonial, não se percebe onde acaba o património da
sociedade e começa o dos sócios; o artigo 84.°/1 equivale a um afloramento
pontual do instituto;
(b) Subcapitalização: uma sociedade é constituída com um capital insuficiente
para o objeto que se propõe, em termos tais que essa insuficiência não fique
acessível a terceiros ou tenha sido propositadamente levada a cabo para ilidir
responsabilidades; é o caso paradigmático das grandes multinacionais petrolí-
feras, que usam, como armadores, pequenas sociedades com pavilhão de con-
veniência;
(c) atentado a terceiros: a sociedade é usada para enganar ou defraudar terceiros;
temos os chamados “testas-de-ferro”;
(d) abuso de personalidade: um tipo residual, que engloba as situações de venire
contra factum proprium ou de exercício emulativo.

III. O levantamento da personalidade coletiva é, evidentemente, um insti-


tuto de exceção. Funciona em condições muito ponderosas e por absoluta exi-
gência da boa-fé: destina-se a evitar fraudes e enganos similares. Os nossos tri-
bunais – como, aliás, em todo o Mundo – são muito parcimoniosos na sua
aplicação.
Este instituto pode ser referido a propósito do artigo 501.°72. Mas nada tem
a ver com ele: surge como uma válvula de segurança do sistema, funcionando
como concretização do abuso do direito e da boa-fé.

18. Síntese final

I. Na realização do Direito, há que ter em conta as consequências da apli-


cação das decisões a que se chegue. Esta regra metodológica universal torna-se
especialmente sensível no domínio do Direito das sociedades.
O Direito português relativo aos grupos de sociedades, pelas razões histó-
ricas que acima apontámos, é muito desfavorável para as empresas. Ele adveio
do projeto de 9.ª Diretriz, que criou vivas discordâncias pela Europa e que
nunca foi aprovado. Tal projeto, por seu turno, acolheu regras do Direito ale-
mão, porventura adequadas no seu País de origem, onde o dinamismo dos gru-

72 Fazem-no JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito comercial, IV – Sociedades comerciais / Parte geral
(2000), 612 ss. e JORGE COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito comercial,V – Das sociedades, 3.ª ed.
(2009) (183), em parte. Todavia, nenhum desses Autores pretende um alargamento do artigo
501.°: apenas referem, nesse ensejo, o levantamento.

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A responsabilidade da sociedade com domínio total (501.°/1, do CSC) 115

pos e a capacidade de recomposição empresarial nada tem a ver com a nossa


realidade.

II. O regime consagrado no Código das Sociedades Comerciais é forte-


mente penalizador para as sociedades portuguesas e isso ao ponto de já se ter
suscitado a sua inconstitucionalidade. Parece má orientação de política legisla-
tiva causticar as nossas já pressionadas empresas com regras de cautela que não
existem no País vizinho e na generalidade dos outros Estados europeus. Evi-
dentemente: esse é o problema de Governos e de Parlamentos. Mas o intér-
prete-aplicador, na medida em que lhe compete concretizar o Direito, não deve
desligar-se dessa realidade. Em caso algum, salvo exigências muito ponderosas
da boa-fé, lhe compete alargar, para além do que a lei exija, as medidas pesaro-
sas para as empresas.

III. O tema das garantias é, também ele, um ponto delicado. No domínio


da fiança (garantia paradigmática), a lei é clara ao exigir que a vontade do
garante deva ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação
principal (628.°/1, do Código Civil). Por seu turno, o Código das Sociedades
Comerciais é impeditivo no tocante à prestação de garantias, salvo havendo
interesse próprio da sociedade garante em relação de grupo (artigo 6.°/3). Infe-
rimos, de todos estes lugares normativos, uma suplementar exigência de caute-
las, perante garantias. Por via destas, uma sociedade pode ter de pagar sem nada
haver recebido, e que é calamitoso para os justos interesses que ela representa.

IV.Tudo isso reforça a necessidade de uma interpretação contida do artigo


501.°. Com todas as reservas apontadas, ele deve funcionar no seu estrito
âmbito de aplicação.
Por maioria de razão: fica, em absoluto, afastada a hipótese da sua aplicação
analógica, fora do que a lei preveja. E, designadamente: não é possível, perante
as regras de aplicação e os valores em presença, apelar ao artigo 501.° sempre
que a sociedade dominante não detenha 100% da dominada, isto é: sempre que
não haja domínio total. Faltando uma acção que seja: já a dominante não pode
dar instruções vinculantes à dominada. Ora é esse o fator que determina a res-
ponsabilidade da dominante: quem dá ordens é responsável pelo que decida.
Toda a excecionalidade do artigo 501.°, que só por si logo impediria a sua
aplicação analógica é, pois, reforçada pelas valorações subsequentes. O artigo
501.° é, materialmente, ius singulare. Como tal deve ser interpretado e aplicado.

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