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John McDowell e os juízos morais – uma terceira via entre Kant e Aristóteles

Resumo: Neste artigo procurarei mostrar a relevância e centralidade que o pensamento do


filósofo John McDowell tem no contexto do projecto Bounds of Judgement, que aqui nos traz
hoje. Com vista a esse propósito, proponho-me olhar para a sua obra de um ângulo muito
específico – a sua particular posição no que à natureza dos juízos morais diz respeito, que
pretendo sintetizar por meio da análise dos artigos que compõem a parte II do seu Mind,
Value and Reality. Nessa análise, procurarei sublinhar, sobretudo, dois pontos: 1) a estreita
vinculação entre a sua posição acerca do estatuto dos juízos morais e posições mais gerais
acerca da relação pensamento-mundo (tendo em mente, sobretudo, Mind and World), e 2) a
ideia de que a sua filosofia é uma constante busca de compromisso entre opostos, de terceiras
vias, pondo em causa que por esse meio consiga resolver todas as aporias.

1. O conceito de segunda natureza como chave para dissolver a oposição razão-


natureza e como ponto de ligação entre filosofia moral e filosofia do conhecimento.

Relativamente ao primeiro ponto: por que razão podemos considerar que a filosofia moral de
McDowell constitui uma boa porta de entrada para melhor compreender as suas posições
filosóficas mais gerais, nomeadamente no que diz respeito à forma como ele vê as relações
pensamento-mundo?

O caminho pessoal pelo qual me acerquei de McDowell foi a metaética – o estudo acerca do
estatuto de coisas como factos morais e da natureza dos juízos morais. E um dos principais
problemas que nesse domínio de estudos se levanta é o de saber de que forma podemos
enquadrar o normativo (na sua dimensão moral) no mundo natural, i.e. que relação pode ser
estabelecida entre o domínio do ser e do dever-ser. O mundo natural que é estudado pelas
ciências empíricas é um mundo quantificável, previsível, descritível em termos de relações
causais, regido por leis estritas. Nesse mundo não há espaço para a margem de ambiguidade
que caracteriza o mundo especificamente humano – não há significados inscritos nem
finalidades por descobrir. Se, pelo contrário, pensarmos no mundo em termos normativos, o
que procuramos não são já relações de causalidade mas sim relações racionais entre as nossas
crenças ou entre as nossas crenças e as nossas acções. O domínio normativo será então
constituído pelo conjunto dos nossos conceitos e crenças, e o que se impõe é a lógica das
razões e das justificações. Quando pensamos em termos normativos pensamos em como
justificar cursos de acção ou crenças, em apresentar e responder a razões, pensamos na forma
como o mundo deve ser (como devemos agir, em que devemos acreditar) e não na forma
como o mundo é. Temos então duas inteligibilidades ou formas de abordar o mundo
completamente distintas – é possível conciliá-las? Como é possível compreender essa nossa
capacidade de olhar para o mundo de um ponto de vista normativo, de ver valor, se de um
ponto de vista empírico-descritivo o que temos são apenas partículas interagindo e forças
físicas em acção? Qual é o mundo ‘verdadeiro’? A acreditar no que a ciência nos diz, tudo o
que há são partículas regidas por leis causais, e, nesse caso, o estabelecimento de relações
normativas por que se rege o mundo moral (quando dizemos coisas tão simples como
‘Assassinar inocentes é errado’) será uma mera fábula que contamos acerca do mundo, talvez
para melhor nos entendermos, mas nada diz propriamente acerca dele – i.e. não há
propriamente valor no mundo, tudo o que há são factos, que nós interpretamos positiva ou
negativamente.

Esse é, portanto, um dos problemas do domínio de estudos que normalmente se designa como
metaética – perceber como pode o valor ter lugar no mundo natural, ou, o que será o mesmo,
perceber se faz sentido falarmos de coisas como factos morais (‘Assassinar inocentes é errado’
é um facto que o mundo contém?).

McDowell apresenta uma singular resposta para este problema, apresentando uma particular
visão a respeito das relações entre razão e natureza, e essa singular resposta – que terá
implicações substanciais em todo o seu edifício filosófico, particularmente nas questões que
dizem respeito à filosofia da mente e do conhecimento a que ele alude em Mind and World – é
inspirada pelos conceitos que impregnam a sua filosofia moral, fortemente inspirada em
Aristóteles.

Concretizando: nos artigos que ele dedica ao pensamento moral, escritos entre 1978 e 1998 e
compilados em Mind, Value and Reality (1998, Parte II) – estou a pensar por exemplo em “Are
Moral Requirements Hypothetical Imperatives?” (1978) e sobretudo em “Two sorts of
naturalism” (1996), assim como nos artigos incluídos no mesmo volume a respeito da
interpretação da ética aristotélica: “The role of Eudaimonia in Aristotle’s Ethics” (1980) e
“Some issues in Aristotle’s Moral Psychology” (1998) – McDowell recuperará a concepção
aristotélica de formação ou educação moral. De acordo com essa concepção, será por via da
iniciação numa determinada atmosfera moral e social que adquirimos a maturação que nos
permite manipular conceitos e enxergar razões, nomeadamente razões morais, para as quais,
de outro modo, seríamos cegos. Esse processo por meio do qual o carácter ético de um
indivíduo se forma, até que a virtude se torne um hábito, nas palavras de Aristóteles, recebe a
designação de segunda natureza. Portanto, para além dos traços que o homem recebe de
forma inata, sobrevirão traços que recorrem desse amadurecimento do intelecto prático. O
ponto a reter aqui é que esses traços são ainda naturais, isto é, representam a evolução
natural do homem que assim é educado. Neste sentido, o homem maduro, na posse de todas
as suas capacidades plenamente desenvolvidas, é então, por excelência, um animal racional.

Quais são as ideias que McDowell retira daqui? Por um lado, i) que o domínio ético é um
domínio em que respondemos a razões (como já tínhamos visto) e também que, ii) dada esta
concepção de segunda natureza como o processo por meio do qual somos iniciados no espaço
das razões e assim aprendemos a ver o mundo a uma certa luz, não há motivo para considerar
essa capacidade como sendo não-natural, ou supra-natural. É essa então a resposta singular
que ele apresenta para o problema das relações entre razão e natureza que relatámos acima:
basicamente, não precisa existir um problema, se recordarmos, com Aristóteles, que as
capacidades racionais são, ainda, capacidades naturais, e que, por conseguinte, exercitar a
nossa capacidade de responder a razões, sendo algo em que precisamos ser iniciados, não
representa mais do que o culminar de um processo de aperfeiçoamento de uma criatura com
as nossas características e potencialidades naturais.

McDowell – é prática recorrente – não apenas dissolve o problema como apresenta o


diagnóstico que explica por que razão somos levados a acreditar que existia um problema. E a
razão é simples – com o advento da ciência moderna, desde logo com Galileu (cujo principal
oponente era precisamente Aristóteles e a sua ideia de natureza imbuída de fins) foi uma
concepção de natureza ‘desencantada’ que prevaleceu, no sentido em que o reino natural,
para se tornar manuseável e mensurável, foi expurgado de todo o significado e de toda a
finalidade. Da concepção medieval de mundo natural enquanto pleno e prenhe de significados,
como um livro que contém mensagens que devemos ler, passou-se para uma concepção de
mundo natural na qual não há lugar para qualquer ordem inteligível ou racional – o que há são
factos brutos (x segue-se a y, por exemplo) que nós interpretamos. A ordem que existe no
mundo é atribuída pela nossa mente. Neste quadro, então, qualquer tipo de empreendimento
ou exercício intelectual só pode ser legitimado se correctamente acomodado no mundo
descrito pela ciência natural – é o caso também do pensamento prático ou do pensamento
moral. É esse um dos principais problemas, como vimos, de grande parte da filosofia que visa
perceber a natureza do pensamento moral.

Ora, o conceito de segunda natureza permite-lhe ultrapassar essa oposição aparentemente


inultrapassável entre razão e natureza na medida em que permite reformular o conceito de
‘natureza’. Não somos obrigados a ficar com a concepção de natureza com que a ciência
moderna nos deixou. Podemos fazê-lo, mas essa é já uma decisão nossa que teremos de
justificar – não é um dado adquirido e auto-justificado. A natureza não precisa coincidir com o
‘reino da lei’, circunscrever-se apenas ao que é mensurável e sujeito a leis causais, ficar refém
de uma determinada inteligibilidade, a científica. Se assim reformularmos o conceito de
natureza não somos mais obrigados a considerar que a racionalidade é uma capacidade não-
natural, que se impõe de fora sobre o que é natural em nós. Por meio do conceito de segunda
natureza, McDowell chega a uma concepção de racionalidade que é natural, porque não é
estranha ao que é humano

Claro que o problema que a este propósito se coloca é o seguinte: podemos (devemos) ficar
reféns de uma noção de natureza medieval, depois de todos os avanços das ciências naturais a
que assistimos, desde Aristóteles? McDowell não pode, com toda a certeza, sustentar que a
concepção de natureza com que a ciência moderna nos deixou está equivocada. O que ele vai
defender será antes o seguinte: não somos obrigados a considerar que essa concepção exaure
tudo quanto pode ser considerado ‘natural’. A ciência de facto trouxe-nos um entendimento
do mundo nunca antes alcançado. Mas, diz McDowell, desse facto passou-se para uma tese
metafísica: o que há é aquilo que a ciência diz que há. A leitura científica exaure a realidade –
esse é o pressuposto do qual ‘qualquer indivíduo educado’ tem de partir, e é isso que ele
contesta.

Este é um problema de que, parece-me, McDowell tem alguma dificuldade em desenvencilhar-


se. Porque, em último caso, mesmo que a oposição razão-natureza se dilua, a dicotomia
sellarsiana entre espaço das razões e espaço das leis mantém-se – e ele quer que se
mantenha. Ou seja, mesmo que McDowell consiga convencer-nos de que estamos ainda a falar
de natureza, há ainda o problema de saber como comunicam e se relacionam o que
poderíamos chamar de primeira natureza (o reino das leis) com a tal segunda natureza (o reino
das razões). E, portanto, em grande medida, o problema que relatámos há pouco – como
enquadrar o discurso moral no seio de uma natureza de onde o significado está ausente –
continua a fazer sentido, e não é eliminado, mesmo que consideremos que não está aí em jogo
uma oposição.

Mas esse será um outro problema que talvez possamos recuperar em outra ocasião. O que
agora nos tínhamos proposto era mostrar em que medida este conceito que ele importa da
filosofia moral lhe serve para resolver as aporias que encontra em outras áreas do pensamento
filosófico. De facto, no conceito de segunda natureza e na ideia de que não existe uma
oposição entre racional e natural, está já o gérmen da teoria da ilimitação do conceptual e
portanto da ideia de que não existe um abismo entre o que existe e o que pode ser pensado.
Vimos que o racional é ainda natural, e concomitantemente, o natural será racional, no
sentido em que o mundo (o que existe para ser pensado) não é exterior ao espaço dos
conceitos. Essa é a tese que ele vai defender por exemplo, em Mind and World, e que lhe
servirá para sair do impasse em que encontra a filosofia do conhecimento, a balancear entre
Quine e Davidson, entre o Mito do Dado e o coerentismo. Para que seja possível pensar o
mundo, este tem que ser conceptualizavel, articulável racional e conceptualmente; não pode
estar completamente alheado do espaço das razões. O mundo está para lá do pensamento,
mas não está para lá do que é pensável – ou seja, o mundo natural não é o mundo dos factos
brutos que estão ‘lá fora’ a impressionar causalmente o pensamento, mas faz também parte
do espaço do logos, do conceptual, do que pode ser dito ou articulável conceptualmente. 1 É
por essa razão que podemos entender a experiência perceptiva como sendo já conceptual e é
por isso que ela pode funcionar como um tribunal, ‘julgando’ os nossos juízos. E nada disto é
estranho porque, precisamente, não precisamos identificar o reino natural com o reino da lei,
basta para isso que recuperemos o conceito que Aristóteles usa para explicar como se forma o
carácter prático dos indivíduos.

2. O pensamento de McDowell como uma constante busca de compromissos ou


terceiras vias.

Quis mostrar como o conceito de segunda natureza que McDowell importa da filosofia moral é
a chave para compreender a forma como ele resolve o impasse que assola a filosofia do
conhecimento e da mente. Mas todo o pensamento de McDowell, penso que poderemos
afirmá-lo, é assente na tentativa de escapar aos dilemas, dissolvendo-os, pela afirmação de
terceiras vias.

O mesmo serve para a sua filosofia moral. Aqui, recorrendo também à ideia de que a natureza
lida do ponto de vista científico não nos dá o retrato completo daquilo que há, a sua aposta vai

1
Esse é um insight que McDowell apresenta, claro, como assumidamente kantiano: o mundo natural
não é constitutivamente independente da estrutura da subjectividade. “Mirroring cannot be both
faithful, so that it adds nothing in the way of intelligible order, and such that in moving from what is
mirrored to what does the mirroring, one moves from what is brutely alien to the space of logos to what
is internal to it. (…) Since it is a world, the natural world is not constitutively independent of the
structure of subjectivity. It is a mistake to conceive objectivity in terms of complete independence from
subjectivity.” (J. McDowell, “Two sorts of naturalism”, in Mind Value and Reality, Cambridge, MA:
Harvard University Press, 1998, pp. 179-180)
no sentido de defender que não estamos fadados a ter que escolher entre um realismo moral
intuicionista de tipo platónico ou um projectivismo de tipo subjectivista.

Passo a explicar: em artigos como “Aesthetic Value, Objectivity and the Fabric of the World”,
“Values and Secondary Qualities” ou “Projection and Truth in Ethics” 2, McDowell tenta
responder a um desafio – colocado por filósofos como, por exemplo, J.L. Mackie 3 – que
consiste em saber se coisas como valores ou factos morais podem fazer parte do tecido do
mundo (o que significaria que poderíamos vê-los como objectivos). Os filósofos que sustentam
um ponto de vista anti-realista a este respeito seguem, grosso modo, o argumento de acordo
com o qual sendo o mundo composto por factos e sendo estes motivacionalmente inertes, não
é metafisicamente possível considerar que o mundo pode conter coisas tais como valores ou
factos morais, manifestamente prescritivos e orientadores da acção. A este respeito os valores
aproximar-se-iam das chamadas qualidades secundárias dos objectos, como as cores – são
qualidades que nós lemos no mundo, pensamos que ele contém, e agimos como se tivesse,
mas na verdade nada há no mundo que seja o ‘ser vermelho’, da mesma forma que nada
existe no mundo que seja o ‘ser errado’. O que se passa com a nossa experiência das
qualidades secundárias constitui algo próximo de um argumento da ilusão, na medida em que,
à primeira vista, a experiência das propriedades secundárias parece-nos em tudo semelhante à
experiência das propriedades primárias, e é por isso que, erroneamente, consideramos que as
cores são propriedades das coisas. No entanto, as cores, ‘tal como nós as vemos’, não
pertencem à constituição dos objectos. O ponto a reter aqui é que algo muito semelhante
ocorreria com os valores ou factos morais – a fenomenologia da experiência valorativa, assim
como a fenomenologia das qualidades secundárias, envolveria um erro: o nosso discurso
pretende ser descritivo, apontar para coisas que se encontram no mundo, mas, na realidade,
nada existe no mundo ‘tal como ele é’ que possa ser o seu referente, uma vez que as
propriedades descritivas não nos dizem o que devemos fazer, i.e. não são intrinsecamente
prescritivas. Comprometermo-nos com uma visão realista a respeito das propriedades morais
equivaleria, então, a inundar o mundo de propriedades ‘extra’ misteriosas e bizarras do ponto
de vista metafísico pois seriam propriedades descritivas e intrinsecamente prescritivas
simultaneamente: o mero facto de as descobrirmos/conhecermos impelir-nos-ia para a acção;
tratar-se-iam de propriedades descritivas do mundo mas que teriam em si inscritas a
obrigatoriedade de terem que ser seguidas, de orientar e incitar à acçao .4 Esta posição é
normalmente designada como realismo platónico.

Dada a estranheza metafísica e epistemológica dessa posição – e McDowell anui em relação a


essa estranheza – muitos são os filósofos que têm defendido uma espécie mais ou menos
sofisticada de projectivismo para lidar com o estatuto das propriedades morais e para explicar
2
Cf. J. McDowell, Mind, Value and Reality, OUP, 1998, Part II.
3
Cf. J.L. Mackie, Ethics: inventing right and wrong, Penguin, 1977.
4
Vale a pena lembrar que um filósofo como Mackie não vê como problemático que haja uma relação
entre os factos descritivos que compõem o mundo e a motivação para acção; simplesmente, nessa
ligação, estaria sempre presente a referência a algum desejo ou preferência do sujeito. Portanto, os
juízos de facto podem constituir imperativos hipotéticos (podem indicar-nos o caminho a seguir, desde
que aliados às preferências do sujeito), e isso nada tem de estranho ou que exija explicação. O que ele
não concebe é que um qualquer juízo descritivo possa acumular poderes prescritivos num sentido
categórico, i.e. que haja algo que o sujeito deva fazer, independentemente das suas preferências. E a
ideia de que o valor faz parte do tecido do mundo (que existem valores objectivos) obrigar-nos-ia a isso.
“An objective good would be sought by anyone who was acquainted with it, not because of any
contingent fact that this person is so constituted that he desire this end, but just because the end has to-
be-pursuedness somehow built into it” (in Ethics: inventing right and wrong, p. 40).
o pensamento e o discurso valorativo: as propriedades que parecem pertencer genuinamente
aos objectos seriam então apenas a projecção ou o reflexo das nossas respostas subjectivas
perante um mundo que de facto não contém essas propriedades. 5 O que se passa é que
tendemos a objectivar as nossas atitudes subjectivas, tendemos a pensar que as nossas
atitudes estão alicerçadas em algo que encontramos no mundo quando na verdade é apenas
porque reagimos de certo modo perante certas situações que consideramos que essas
situações têm algum tipo de valor.

Perante este quadro, McDowell sustentará (por exemplo em artigos como “Values and
Secondary Qualities” e “Projection and Truth in Ethics” 6), mais uma vez, que não estamos
fadados a enredar-nos em dicotomias, pois é possível uma terceira via. E adiantará, ainda, que
esse caminho só não se afigura claro a todos por compartilharem uma noção muito estreita ou
com muito pouco espessura do que possa ser a realidade [‘thin conception of genuine reality’].
Estreita neste sentido: por considerarem que ao mundo apenas pertencem aquelas
“propriedades que podem ser compreendidas sem qualquer referência essencial aos efeitos
que produzem nos seres sencientes” 7, e que ele é totalmente passível de ser descrito em
termos dessas propriedades (dir-se-iam objectivas). Essa seria uma concepção do mundo ‘tal
como ele é’, independentemente das peculiaridades dos observadores, e que transcenderia
todos os pontos de vista locais. De uma tal concepção estariam naturalmente excluídas as
propriedades secundárias, que dependem de factores psicológicos e precisamente das
peculiaridades dos indivíduos ou da espécie – o aparato perceptivo particular que nos permite
ver cor, por exemplo, é um ‘ponto de vista especial’; da mesma forma, as capacidades
paroquiais que nos permitem ver valor. (A discussão em fundo, aqui, é, claro, a que opõe
realismo a idealismo – McDowell perguntaria: a partir de que ponto de vista podemos olhar
para a realidade ‘tal como ela é’? Do outro lado responde-se: se não pudermos pensar que há
uma distinção entre a forma como o mundo é e as formas como ele nos aparece, pelo facto de
ocuparmos um determinado ponto de vista, então caímos sob o jugo do idealismo).

McDowell vai sustentar que a ideia de uma concepção absoluta da realidade não faz sentido, e
a partir daí reclamar o direito à existência de propriedades que apenas são ‘perceptíveis’ de
um determinado ponto de vista, o nosso. As propriedades a que temos acesso apenas por
sermos as criaturas que somos não são ilusórias ou meras projecções. E a justificação é a
seguinte: se o que queremos é dar conta da experiência de valorizar, não podemos partir de
uma concepção do mundo da qual tal experiência esteja ausente. McDowell encara como
paradoxal e manifestamente estranha uma teoria acerca do estatuto do valor que considere
que o valor só pode ser real se puder ser perscrutado a partir de um ponto de vista de onde a
capacidade de valorizar esteja ausente. 8 Para explicar o conteúdo desses pontos de vista
5
Por exemplo, Simon Blackburn: “In addition to judging the states of affairs the world contains, we may
react to them. We form habits; we become committed to patterns of inference; we become affected,
and form desires, attitudes and sentiments. Such a reaction is ‘spread on’ the world, as Hume puts it in
the Treatise, by talking and thinking as though the world contains states of affairs answering to such
reactions.” (“Reply: rule-following and moral realism”, in A. Fisher e S. Kirchin (eds.), Arguing about
Metaethics, Routledge, 2006, p. 470)
6
Cf. J. McDowell, Mind, Value and Reality, OUP, 1998, Part II.
7
Cf. J. McDowell, “Aesthetic Value, objectivity and the fabric of the world”, in Mind, Value and Reality,
OUP, 1998, p. 114.
8
Cf. J. McDowell, “Values and secondary qualities”, in Mind, Value and Reality, OUP, 1998, p. 146.
paroquiais (por exemplo, para explicar como é que alguém é capaz de ver vermelho, ou como
é que alguém é capaz de achar alguma coisa engraçada, ou bonita, ou moralmente valiosa) é
preciso ocupar esse ponto de vista (não é possível explicar o que é ser vermelho, engraçado,
bonito ou moralmente valioso ‘em si’). Neste sentido: apenas alguém que tenha, ou que pelo
menos possa ter, uso para a expressão “…é vermelho” ou “…é moralmente valioso” pode
compreender o que é alguma coisa parecer vermelho ou moralmente valioso. Se
abandonarmos de todo o ponto de vista capaz de representar o mundo como algo que tem
cor, ou valor, então não compreenderíamos sequer o que é que haveria para explicar. 9

As propriedades deste tipo devem ser entendidas, então, em termos disposicionais. Pensemos
primeiro no exemplo da cor: a propriedade de um objecto ser vermelho deve ser entendida
‘em virtude de o objecto ser de tal forma que, em certas circunstâncias, parece vermelho’. Isto
faz delas objectivas ou subjectivas? São subjectivas no sentido em que só são concebíveis em
termos de certos estados subjectivos a que dão origem. Portanto, não há o algo ‘ser vermelho’
que não seja ‘parecer vermelho’ (a alguém). No entanto, isso não significa que não pertençam
genuinamente ao objecto no sentido em que ‘um objecto ser de tal forma que parece
vermelho é independente da particular experiência de ele parecer vermelho a alguém numa
particular ocasião’. Portanto, não há o algo ‘ser vermelho’ que não seja ‘parecer vermelho’ (a
alguém), mas isso não nos impede de afirmar que a propriedade de algo parecer vermelho
existe independentemente de alguém estar, em dado momento, a ver vermelho. 10

Ainda que exista uma diferença entre as qualidades fenomenais e os valores, que McDowell
reconhece – uma vez que a capacidade de reconhecer valor leva-nos a fazer coisas, o que não
acontece no caso da experiência fenomenal – a ideia que aqui se combate é a de que o mundo
deve ser entendido segundo o modelo das qualidades primárias e a convicção relacionada de
que aquelas entidades que não existem independentemente da sensibilidade humana, não são
propriedades reais. Da mesma forma que a qualidade de ‘ser vermelho’ de um objecto
depende de como os seres humanos com boa acuidade visual e nas condições de iluminação
adequadas vêem o objecto, também a qualidade de algo ser moralmente valioso dependerá
de como os seres humanos com a sensibilidade e formação adequadas vêem a situação em
causa. Podemos legitimamente supor que um marciano, por hipótese, ou qualquer outro ser
com um aparelho perceptivo diferente, veria cor de modo distinto (ou não veria de todo), tal
como podemos supor que um ser com diferente sensibilidade a razões entenderia o valor
moral de modo diferente (ou não entenderia de todo).

Para tornar o assunto mais tangível, podemos pensar, por exemplo, numa situação em que
duas pessoas vêem o mesmo filme – facilmente se compreende que de acordo com a
9
Cf. J. McDowell, “Aesthetic Value, objectivity and the fabric of the world”, in Mind, Value and Reality,
OUP, 1998, p. 123.
10
“Secondary-quality experience presents itself as perceptual awareness of properties genuinely
possessed by the objects that confront one. (…) so, notwithstanding the conceptual connection between
being red and being experienced as red, an experience of something as red can count as a case of being
presented with a property that is there anyway – there independently of the experience itself.” (J.
McDowell, ”Values and secondary qualities”, in Mind, Value and Reality, OUP, 1998, p. 134)
sensibilidade, os conhecimentos ou até a formação cinéfila de cada uma, as duas pessoas
podem ver diferentes coisas, pode uma descobrir aspectos ou ressonâncias que para a outra
serão invisíveis.

Em que é que ficamos então, em termos de quadro metafísico, quando pensamos no estatuto
dos factos morais? A proposta é, como sempre, a seguinte: livremo-nos de dicotomias. Não
estamos obrigados a escolher entre um realismo platónico, que inunda o mundo de
propriedades ‘estranhas’, ou um projectivismo anti-realista, que tem dele uma visão mirrada e
com pouca densidade. Podemos pensar numa outra forma de encarar a relação entre as
propriedades morais e as nossas respostas subjectivas, e consequentemente, num outro
cenário metafísico, para além do projectivismo ou realismo intuicionista: podemos pensar que
as propriedades morais (ou a propriedade de ser engraçado) não são nem os ‘progenitores’
das nossas respostas subjectivas (no caso em que estas dependeriam do reconhecimento de
factos no mundo com propriedades prescritivas), nem, por outro lado, os ‘descendentes’ das
nossas respostas subjectivas (i.e., o resultado da projecção dessas respostas sobre o mundo):
continuando com as metáforas familiares, elas seriam ‘irmãs’ das nossas respostas subjectivas.
Ou seja, nem as propriedades morais são anteriores e independentes da nossa resposta
(porque algo ser moralmente valioso depende da sensibilidade que alguém pode ter para
considerar algo moralmente valioso), nem a nossa resposta é anterior e independente da
qualidade de algo ser moralmente valioso, na medida em que não é possível entender uma tal
resposta sem recorrer ao conceito do que é algo ser moralmente valioso (não conseguimos
pensar na nossa capacidade de reconhecer alguma coisa como sendo moralmente valiosa sem
recorrer ao conceito do que é alguma coisa ser moralmente valiosa). Esta posição – uma
terceira via metafísica – ele designa como ‘visão sem prioridades’ [‘no-priority view’]:
“Sentimentos e traços da realidade emparelhados e relacionados reciprocamente – como
irmãos e não como pais ou filhos”.11

Negando que essas propriedades tenham prioridade em relação às nossas respostas


subjectivas, afastamo-nos do realismo platónico (a ideia de que elas existem aí,
independentemente da nossa sensibilidade), mas não precisamos comprometer-nos com a
visão inversa, de que as respostas subjectivas têm prioridade sobre essas propriedades, uma
vez que não conseguimos compreender as nossas reacções sem dispormos já dos conceitos
das propriedades morais. Portanto, numa visão sem-prioridades como aquela que McDowell
propõe não precisamos de nos livrar de todo o aparato conceptual que nos permite pensar em
termos morais e que constitui uma sensibilidade ética. Pelo contrário, como já tínhamos visto
antes, apenas alguém que tenha uso para a expressão “…é moralmente valioso” pode
compreender o que é alguma coisa parecer moralmente valiosa. Isto significa precisamente
que, ao contrário do que alguns filósofos anti-realistas supõem, não podemos fazer tábua rasa
de todo o aparato conceptual a partir do qual avaliamos o mundo; i.e., se queremos entender
o que é o pensamento moral não podemos transcender o ponto de vista moral. Não há como
partir de um ponto zero, não há como avaliar o pensamento ético a partir de fora do
pensamento ético.12

11
Cf. J. McDowell, “Values and secondary qualities”, in Mind, Value and Reality, OUP, 1998, p. 166.
12
Alguém como J. L. Mackie defende precisamente o inverso: se queremos pensar acerca da natureza e
estatuto do valor, não adianta partir da forma como se usam esses termos ou do modo como a
É por isso também que encontrar a verdade ética – pensar na correcção dos nossos juízos
morais de 1ª ordem – só pode ser alcançado no seio do nosso pensamento ético e fazendo uso
dos conceitos de que dispomos. McDowell defende que é impossível sair desse ponto de vista
a partir do qual vemos algo como moralmente valioso, é impossível fazer tábua rasa do mundo
que conhecemos como contendo instâncias de coisas certas ou erradas, dar o tal passo atrás e
querer saber o que é eticamente acertado sem ser a partir da perspectiva por meio da qual
temos a capacidade de considerar alguma coisa eticamente correcta. De forma mais precisa:
não é que seja impossível, de todo, pensar no mundo a partir de fora das nossas práticas,
independentemente da nossa experiência de valor e transcendendo a forma como as coisas
aparecem a pontos de vista particulares – é isso que faz a ciência. Mas que isso seja necessário
na ciência natural, não implica que seja a única forma possível de olhar para o mundo.
Particularmente, se o que queremos é dar conta da experiência de valor, então precisamos de
olhar para o mundo a partir de uma perspectiva que seja capaz de ver valor.

3. Acusações: conservadorismo, circularidade, idealismo e relativismo.

Está esta terceira via completamente imune a críticas? Para Simon Blackburn, por exemplo,
esta concepção consiste em meramente postular ou citar a verdade dos veredictos éticos de
que dispomos, o que pode redundar num certo conservadorismo, já que não podemos pensar
no que temos razão para defender senão a partir dos modos de pensamento e discurso entre
os quais balizamos as nossas vidas. Isto é, se partimos de certos juízos e veredictos morais, e
discriminamos as melhores ou piores performances éticas com base nesses juízos, podemos
depois usar a concepção de sensibilidade ética que daí se retira para fundamentar a correcção
desses juízos?

Há aqui uma acusação de circularidade: sendo, como vimos, o realismo moral de McDowell um
realismo dependente da sensibilidade humana, isso significa que será a sensibilidade ‘padrão’
a definir o que é algo ser cruel ou benevolente. Se quiséssemos, por hipótese, definir ou tentar
perceber o que é alguma coisa ser cruel, o mais longe que conseguiríamos ir seria o seguinte:
alguma coisa é cruel se for ajuizado como tal por um tipo de pessoa com a sensibilidade e
educação adequadas, etc. Mas como é que podemos saber ou definir quem é esse tipo de
pessoa, o juiz apropriado? O juiz apropriado seria precisamente aquele que é capaz de
discernir o que é uma acção cruel. O próprio entrelaçamento que ele defende entre as
propriedades objectivas e subjectivas pode ser acusado de conter o vício da circularidade, no

linguagem moral é utilizada para pensar moralmente. A esse nível, o que temos é uma linguagem
objectivista. Mas se o que queremos é saber se esses comprometimentos objectivistas estão justificados
– se as propriedades morais fazem ou não parte do tecido do mundo – não podemos quedarmo-nos
pela análise da forma como utilizamos a linguagem moral, o que se impõe é antes uma investigação de
cariz ontológico acerca de saber o que existe. “If second order ethics were confined, then, to linguistic
and conceptual analysis, it ought to conclude that moral values at least are objective: that they are so is
part of what our ordinary moral statements mean: the traditional moral concepts of the ordinary man as
well as of the main line of western philosophers are concepts of objective value. But it is precisely for
this reason that linguist and conceptual analysis is not enough. The claim to objectivity, however
ingrained in our language and thought, is not self-validating. It can and should be questioned.” (in
Ethics: inventing right and wrong, Penguin, 1977, p. 35).
sentido em que a nossa sensibilidade para detectar no mundo o que é moralmente valioso só
se entende por relação aos conceitos morais de que dispomos, e inversamente só dispomos do
aparato conceptual de que dispomos porque detemos uma certa sensibilidade para detectar
determinadas saliências morais.

Em sua defesa, McDowell pode argumentar que essa circularidade é precisamente a tradução
do facto de não sermos capazes de pensar no que é o valor a partir de fora da nossa
experiência valorativa; de não podemos dar o tal passo atrás e justificar os nossos juízos éticos
senão a partir da perspectiva ética em que nos encontramos. (Em última análise é também a
constatação de que o normativo não é traduzível ou reduzível a termos não-normativos.) Mas
devemos contentar-nos com essa assunção da verdade?

Do mesmo modo, também a acusação de idealismo pende sobre ele, na medida em que, como
vimos, os factos morais não seriam independentes dos nossos melhores juízos (sendo desde
logo difícil saber quais seriam estes). Neste ponto, McDowell evocará Wittgenstein, ou pelo
menos a leitura que ele faz do Wittgenstein das Investigações Filosóficas. A sua estratégia de
defesa passa por sustentar que só não nos contentamos com um realismo dependente da
sensibilidade humana porque pensamos que é possível, e necessário, colocarmo-nos num
ponto de vista que transcenda as nossas práticas e capacidades paroquiais por forma a sermos
capazes de conhecer a realidade ‘tal como ela é’ e justificar as nossas crenças e acções (algo
como o ponto de vista de Deus de Putnam). O que McDowell vai tentar mostrar é que a razão
pela qual sentimos necessidade de assegurar esse fundamento objectivo (de que os factos
morais não são relativos à sensibilidade humana, mas deve haver uma propriedade objectiva
(pertencente ao mundo ‘tal como ele é’) comum a todos os casos de acções moralmente
admiráveis, por exemplo) prende-se com o facto de partirmos de uma imagem da relação
pensamento-realidade que Wittgenstein já nos mostrou ser ilusória .

No seu famoso artigo, “Non-cognitivism and rule-following” 13, McDowell servir-se-á do que
Wittgenstein diz a respeito da teoria do significado e da ideia de correcção, mais
concretamente a propósito da noção de seguir-regras, para defender o seu ponto de vista. A
ideia principal é que não podemos compreender a ideia de correcção senão em relação com as
próprias práticas em que estamos envolvidos. A imagem em que tendemos a pensar quando
pensamos em casos de ‘fazer a mesma coisa’ (por exemplo, aplicar um mesmo conceito a
diferentes situações) é a imagem de acordo com a qual estamos a seguir regras que existem
independentemente e para lá das respostas e reacções que adquirimos quando aprendemos a
fazer, i.e., quando aprendemos a própria prática (a usar os conceitos). Ora, isto não é assim –
não há qualquer regra, independentemente ou para além da própria prática, para a qual
possamos apontar para mostrar porque é que devemos classificar esta acção como cruel, para
retomar o exemplo anterior. Nem mesmo nas situações ideais isso funciona, como no caso
originalmente apresentado por Wittgenstein de continuar uma série de números partindo da
instrução ‘somar 2’. Para onde podemos apontar para saber se o que estamos a fazer é
correcto? Tudo o que podemos fazer é apontar para ‘o modo como se faz’: seguir regras é uma
praxis, não é consultar uma fórmula que guie o comportamento.

13
Cf. J. McDowell, Mind, Value and Reality, OUP, 1998, Part II.
Ora, o ponto aqui a reter é que a posição de McDowell (e de Wittgenstein, de acordo com a
leitura que aquele faz) não é uma posição céptica – não se assume que nada nos garante que
estejamos a fazer a coisa do modo correcto (a adicionar 2, a avaliar uma acção como cruel). De
facto, nós temos confiança em como estamos a fazer o que devíamos fazer; nós acreditamos
que somos capazes de continuar a ‘fazer do mesmo modo’, e que numa dada situação, somos
capazes de dizer que ela é uma instância de uma acção cruel. Mas porque é que sabemos isto?
Qual é o fundamento dessa crença e dessa capacidade? McDowell serve-se de Wittgenstein
para defender que não há qualquer fundamento, que não podemos ir além das próprias
práticas – mas que isso não precisa ser aterrorizador ou problemático. 14 Supor que tem que
existir um fundamento para lá disso, é supor que há um ponto arquimédico de onde podemos
contemplar a relação entre o nosso pensamento (aritmético, moral) e a realidade, que há um
ponto de onde podemos pensar nessa relação, para lá das actividades e reacções humanas que
sustentam essa prática (aritmética, moral). 15 Ao defender que não temos que supor que existe
esse fundamento, McDowell está portanto a desmontar as condições que nos conduziriam ao
dilema entre realismo platónico, por um lado, ou cepticismo/relativismo/idealismo, por outro.

Claro que esse ponto de vista quietista – assumir que não precisamos de fundamento que
extrapole as próprias práticas que constituem os rails que balizam a nossa acção (‘deixar tudo
como está’, nas palavras de Wittgenstein) – não convence todos aqueles que consideram que
temos legitimidade, no domínio moral, para falar de coisas como ‘verdade’ e ‘correcção’, no
sentido em que esse aspecto contratual, da congruência entre ‘formas de vida’, não lhes
parece suficiente para podermos, com propriedade, falar de verdade ética, ou de coisas que
seriam melhores ou piores de um ponto de vista moral. Pessoas como C. Wright ou S.
Blackburn posicionar-se-iam deste lado da discussão. Com que argumentos?

Seguindo, então, Wittgenstein e McDowell, qualquer juízo de correcção/incorrecção será


sempre baseado no consenso. Falhar a respeito da aplicação de um conceito (‘não fazer da
mesma maneira’) não é uma questão de falhar uma regra mas apenas uma questão de ‘falhar
o passo’, de ter um organismo que age diferentemente. Ora, pensando no caso difícil de uma
disputa moral, tendo como base essa análise da noção de correcção, como se resolve o
problema? Os casos difíceis caracterizam-se, precisamente, pelo facto de não existir consenso.
Portanto, como podemos avaliar quem se equivocou, quem falhou o passo? Nesses casos, não
temos razões para supor que uma posição é superior a outra – não temos razões sequer para
supor que uns estão realmente certos e outros errados. Assim, nos casos em que o consenso
não está disponível, a noção de correcção simplesmente deixa de fazer sentido. 16 No domínio

14
“There is nothing that keeps our practices in line except the reactions and responses we learn in
learning them.” (J. McDowell, “Non-cognitivism and rule-following”, in Mind, Value and Reality, OUP,
1998, p. 207)
15
“As if, by a special emphasis, one could somehow manage to speak otherwise than out of one’s own
mouth.” (J. McDowell, “Non-cognitivism and rule-following”, in Mind, Value and Reality, OUP, 1998, p.
208)
16
“I believe that we do require a conception of ‘going on in the same way’ in ethics, not in the sense
that we demand that all the things to which we have a given attitude form one kind, but in the sense
that it worries us if we cannot draw distinctions when we react differently.” (S. Blackburn, “Reply: rule-
following and moral realism”, in A. Fisher e S. Kirchin (eds.), Arguing about metaethics, Routledge, 2006,
p. 475)
moral, o problema em causa é precisamente o de concebermos que há outras formas de
pensar/aplicar conceitos; que razão temos então para considerar que uma determinada forma
de pensar/aplicar conceitos é a correcta? 17 Blackburn concebe uma analogia que penso poder
ser esclarecedora da sua crítica: pensemos por exemplo num corpo de marcha cujo ritmo não
segue uma determinada regra ou instrutor. Neste caso, dizer que o grupo segue o ritmo certo
é matéria de consenso. Mas se por hipótese os membros do grupo se dividissem quanto ao
ritmo que deveriam seguir, não haveria modo de decidir entre eles qual seria o certo. O ponto
é que, no domínio moral, não queremos ficar na mesma situação.

Se não podemos ir além do que são as nossas próprias práticas para saber o que devemos
fazer, então, como já tínhamos visto anteriormente, tudo o que está ao nosso alcance é
apenas ‘citar a verdade’, pois não temos outro critério de decisão. O curioso, pois, é termos
um filósofo como Blackburn, não-cognitivista, a acusar McDowell de cair na armadilha
relativista, por não ser capaz de fornecer um critério que permita discernir entre as correctas e
incorrectas aplicações dos conceitos morais. Portanto, é porque os não-cognitivistas como
Blackburn têm um sentido do que seria a objectividade moral mais robusto e exigente
(McDowell diria: ilusório), e portanto consideram que o fundamento das nossas asserções
morais não pode provir das próprias práticas morais (nem tão pouco do mundo natural,
porque isso seria cair num realismo bizarro do ponto de vista metafísico), que eles não
conseguem conceber que o mundo contenha valor, e por isso são anti-realistas.

McDowell dirá: saber se algo é o que deve ser feito é olhar para a forma como fazemos, e,
além disso, se gozarmos de uma formação do nosso intelecto prático adequada e assim formos
iniciados no espaço das razões (para regressarmos ao início), saberemos o que há a fazer,
porque teremos os olhos abertos para as razões certas. Assim, quando a virtude se torna um
hábito, cada vez menos serão os pontos de discordância entre os homens – como nota
Blackburn, e bem, o que está aqui implícito é a ideia de que quanto mais nos aproximamos da
virtude, mais nos aproximamos do caso da matemática a que aludimos há pouco, caso em que
não há disputa acerca do que fazer e seguir-regras é uma questão quase automática ou
compulsiva.18 Mas o que fazer se não fizermos parte do grupo dos iluminados/virtuosos?

17
Será por esta razão que Blackburn vai considerar que o apoio que McDowell busca junto de
Wittgenstein corresponde a uma extensão indevida das considerações deste último – Wittgenstein
refere-se apenas àqueles casos que não envolvem disputas [disputes do not break out] nem uma
especial sensibilidade. Esse não é o caso, por definição, das questões éticas. “The whole stress in
Wittgenstein is on the automatic and compelling nature of rule-following. The mental life of one who
refuses to compute as we do after a standard training in arithmetic may be indescribable, and it may be
quite literally unimaginable. But the mental life of one who parts company on a hard ethical case is
usually all too imaginable.” (S. Blackburn, “Reply: rule-following and moral realism”, in A. Fisher e S.
Kirchin (eds.), Arguing about metaethics, Routledge, 2006, p. 476)

18
“I believe that some of John McDowell’s views on virtue suggest that with increasing virtue comes an
increasing approximation to the mathematical case, so that the virtuous man is eventually distinguished
by a certain inability to see how reasonable men can differ. (…) but in any case, however it is with the
virtuous man, with us who are less exalted there exists a lively sense of the objectivity of ethics
alongside a lively awareness of alternative points of view.” (S. Blackburn, “Reply: rule-following and
moral realism”, in A. Fisher e S. Kirchin (eds.), Arguing about metaethics, Routledge, 2006, p. 476)
Se formos correctamente iniciados no espaço das razões, seremos capazes de detectar a
saliência moral das situações e vislumbrar razões para agir para as quais outros poderão estar
cegos. Agir correctamente dependerá apenas da circunstância de ‘ver’ correctamente, é uma
questão de afinação da ‘percepção’ moral (que naturalmente é influenciada pela forma como
fomos educados).19 Comparando esta abordagem com uma abordagem kantiana, por exemplo,
vemos que há nesta última uma defesa da universalidade e da necessidade da moralidade que
não está presente em McDowell. Para Kant, as razões morais têm uma dignidade especial
precisamente por decorrerem da racionalidade – podemos saber tendo como base um
procedimento racional meramente formal o que é a coisa a fazer, de tal forma que qualquer
ser racional estaria obrigado a agir desse modo.

Já para McDowell trata-se de uma questão de aprender a ver e não de raciocinar


correctamente; podemos mostrar, não provar. Mais, não ser capaz de reconhecer certos
traços da realidade e atestar a saliência moral de certas situações (como uma pessoa virtuosa
faria) não é sinal de irracionalidade. De acordo com McDowell, os requerimentos morais não
são requerimentos reconhecíveis por todas as pessoas racionais e portanto válidos
universalmente. A racionalidade só por si não chega para nos dizer o que há a fazer,
precisamente porque McDowell mitiga o seu kantianismo ao trazer aportações aristotélicas. É
preciso ser o tipo certo de pessoa, ter aprendido a ver as coisas a uma certa luz para ser capaz
de detectar as razões para agir. Claro que isto é dirimir as potencialidades da razão prática e
perdem-se as pretensões universalistas e objectivistas da moralidade. Onde Kant queria uma
moral válida universalmente, McDowell deixa-nos com uma moral válida apenas para os
virtuosos – deixa-nos mais ou menos a pregar a convertidos, e isso pode ser um problema
(para um realismo moral).

Fazendo uso da ideia de que reconhecer razões para agir moralmente é fruto de uma
educação e formação adequadas – recorrendo portanto ao conceito de segunda natureza – e
não o resultado de um procedimento da razão prática pura, McDowell superará Kant e o seu
excessivo formalismo e a ideia de uma razão supra-natural e sobre-humana que se impunha a
partir de fora. O conceito de segunda natureza mostra precisamente que não precisamos de
conceber a razão prática enquanto sujeita apenas a constrangimentos formais, na medida em
que o desenvolvimento da segunda natureza envolve o moldar de aspectos motivacionais, é
uma questão de estruturação de carácter e não de aplicar uma fórmula ou máxima. Entre Kant
e Aristóteles, o curioso é então ver até que ponto McDowell se aproxima ou não
perigosamente de Hume: tal como Hume pensa que é o privilégio de ter sido criado da forma
adequada que equipa o indivíduo com a capacidade de sentir simpatia (e é isso que está na
base do sentido moral), McDowell sustenta que é o privilégio de ser educado da forma
adequada que nos torna capazes de ver ou não certas razões, como as razões morais (e não é
contrário à razão que o agente não seja capaz de vê-las, tal como para Hume não era contrário
à razão não agir virtuosamente).

19
Sublinhe-se, nesta ocasião, o carácter intelectualista do seu ponto de vista – agir dependerá apenas da
circunstância de ver correctamente, i.e., ter uma razão para fazer X é suficiente para querer fazer X. A
motivação para a acção aparece como uma consequência do facto de reconhecermos X como a coisa a
fazer, não é um ingrediente extra que pode ou não adicionar-se a esse reconhecimento. As razões têm
um poder motivador por si.
A questão que fica é então a de saber se eliminar as dicotomias, dissolver os problemas
filosóficos ao colocar a descoberto os pressupostos que criam a ilusão de que existe um, é de
facto a estratégia adequada para lidar com as questões filosóficas, ou mesmo o método
apropriado para fazer filosofia.

Susana Cadilha

Referências:

Fisher, A. e Kirchin, S. (eds.), Arguing about Metaethics, Routledge, 2006

Mackie, J.L., Ethics: inventing right and wrong, Penguin, 1977.

McDowell, J., Mind and World, Harvard University Press, 1994.

McDowell, J., Mind Value and Reality, Cambridge, MA: Harvard University Press, 1998.

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