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Prefácio

A religião pode ser estudada de diferentes pontos de vista. Podemos estudar


os seus aspectos psicológicos, históricos, sociológicos ou políticos. Mas
também podemos estudar os problemas filosóficos que suscita. Esta pequena
antologia oferece uma amostra de uma área da filosofia da religião conhecida
por «epistemologia da fé». Nela, estuda-se aspectos epistemológicos da
crença religiosa, ou fé. Difere, por isso, de outras áreas da filosofia da
religião, nomeadamente a área metafísica central, que trata da discussão dos
argumentos a favor e contra a existência de Deus.
Muitos crentes sentem que esta última discussão é algo irrelevante —
pois não é em função de argumentos ou provas que têm fé. Apesar de poder
haver algo de errado nesta posição (confundir o que faz alguém ter fé com a
sua justificação), há também algo que aponta para um aspecto que não é
estudado nessa área mais tradicional da filosofia da religião, mas sim na
epistemologia da fé. Trata-se de saber se haverá justificação para ter fé sem
provas, argumentos ou indícios. Sem muita reflexão, muitos descrentes
responderão que não; muitos crentes responderão, talvez também sem muita
reflexão, que sim. Que razões haverá para cada uma destas posições? É este o
nosso tema.
W. K. Clifford defende a primeira posição, a que se chama indiciarista: é
epistémica ou racionalmente ilegítimo acreditar em algo se não tivermos
provas ou indícios a favor disso. William James e Alvin Plantinga defendem
versões diferentes da segunda posição: é legítimo acreditar sem provas. No
meu texto, apresento várias distinções e ideias que dão ao leitor instrumentos
que lhe permitem entrar na discussão. No final do volume, apresento também
um conjunto de leituras recomendadas.
Este livro nasceu em parte da disciplina de Filosofia da Religião que
leccionei na Universidade Federal de Ouro Preto em 2009. Tive a felicidade
de contar com alunos interessados, inteligentes e imaginativos, que tornaram
as aulas vivas e estimulantes. Agradeço a todos o que me ensinaram; a minha
compreensão deste tema seria bastante diferente sem as suas objecções e
contra-exemplos.
O meu ensaio foi meticulosamente lido e corrigido por vários amigos e
colegas, a quem agradeço calorosamente: Artur Polónio, Aires Almeida,
Sagid Salles Ferreira, Faustino Vaz, Pedro Merlussi e Luiz Helvécio Marques
Segundo. As objecções que me levantaram permitiram melhorar bastante o
texto original, para benefício do leitor.
Finalmente, agradeço a Vítor Guerreiro, pela tradução atempada e
esmerada dos textos, assim como a Alvin Plantinga, que prontamente acedeu
à publicação do seu texto.
Desidério Murcho
Ouro Preto, 28 de Junho de 2010
Sobre os autores

William Kingdon Clifford nasceu no dia 4 de Maio de 1845, na


Inglaterra, e morreu na Ilha da Madeira no dia 3 de Março de 1879, com
apenas 34 anos. Apesar disso, deixou uma obra matemática
considerável, assim como palestras influentes de divulgação científica,
ensino e filosofia. Antecipou Albert Einstein (1879-1955), explorando
as geometrias não-euclidianas. Das suas ideias filosóficas, as mais
influentes hoje são as que estão presentes no ensaio aqui publicado,
apresentando com grande clareza a posição de que só é legítimo
acreditar em algo se tivermos indícios a seu favor. Mas defendeu
também teorias filosóficas na área da filosofia da mente e da ética. Das
suas obras, quase todas publicadas postumamente, destaca-se Elements
of Dynamic, 2 vols. (1878, 1887), Seeing and Thinking (1879), Lectures
and Essays (1879), Mathematical Papers (1882) e The Common Sense
of the Exact Sciences (1885).
William James, irmão do famoso romancista norte-americano Henry
James (1843-1916), nasceu no dia 11 de Janeiro de 1842, na cidade de
Nova Iorque, e morreu no dia 26 de Agosto de 1910, em Chocorua.
Ajudou a fundar e desenvolver a psicologia científica, e foi um dos
proponentes do movimento filosófico norte-americano conhecido como
pragmatismo. Os seus interesses eram simultaneamente científicos e
filosóficos; ao mesmo tempo, era muito sensível às manifestações
religiosas, sendo autor do que é ainda hoje uma importante fonte de
informação antropológica sobre a diversidade religiosa, The Varieties of
Religious Experience (1902). Na esteira de C. S. Peirce (1839-1914), e
juntamente com John Dewey (1859-1952), defendeu o pragmatismo.
Deste ponto de vista, a verdade é seja o que for que funcione na prática.
Da sua vasta obra destaca-se The Principles of Psychology (1890), The
Will to Believe and Other Essays in Popular Philosophy (1897),
Pragmatismo: Um Nome Novo para Algumas Formas Antigas de Pensar
(1907; trad. F. Martinho, INCM, 1997), The Meaning of Truth (1909),
Some Problems of Philosophy (1911) e Essays in Radical Empiricism
(1912).
Alvin Plantinga (n. 1932) é um dos mais influentes filósofos actuais,
com trabalhos muitíssimo discutidos nas áreas da metafísica, filosofia da
religião e teoria do conhecimento. Cristão protestante, destacou-se por
sustentar as suas ideias religiosas de um modo não só integrado nas
outras perspectivas metafísicas e epistemológicas que defende, mas
também com a mesma precisão analítica. Das suas obras, destaca-se
God and Other Minds (1967; ed. rev. 1990), The Nature of Necessity
(1974), Deus, a Liberdade e o Mal (1974; trad. D. Murcho, Vida Nova,
2012), Does God Have A Nature? (1980), Warrant: the Current Debate
(1993), Warrant and Proper Function (1993), Warranted Christian
Belief (2000) e Essays in the Metaphysics of Modality (2003).
1. Fé, epistemologia e virtude
Desidério Murcho

Neste capítulo, começa-se por esclarecer a natureza da filosofia da religião.


De seguida, esclarece-se várias noções centrais de epistemologia, para então
se proceder a uma análise preliminar do conceito de fé. Finalmente, discute-
se o tema central do livro: será legítimo acreditar sem provas?
O objectivo é triplo. Sem maçar o leitor com referências bibliográficas,
que se encontram no final do volume, oferece-se um conjunto de noções
instrumentais, cujo domínio é importante para poder discutir
proficientemente o tema. Mas o objectivo é também incitar o leitor a
raciocinar e teorizar intensamente; daí que o texto seja, sobretudo,
argumentativo e teorizador, e não descritivo ou histórico. Estes dois
objectivos ajudam a concretizar o terceiro: ajudar o leitor não só a
compreender os textos de Clifford, James e Plantinga, mas também a discuti-
los activamente. Contudo, os textos destes autores têm muito mais a dizer do
que o que é discutido aqui; não se pretende esgotá-los, caso em que a sua
publicação seria redundante, mas antes explorar alguns dos seus temas.

A possibilidade da filosofia da religião


Alguns problemas centrais da filosofia da religião têm a vantagem,
relativamente a problemas de outras áreas da filosofia, de ser imediatamente
compreensíveis para qualquer pessoa. É fácil compreender em que consiste o
problema da existência de Deus, por exemplo: será que Deus existe? Mas
pensa-se por vezes que nunca iremos saber se Deus existe ou não, invocando-
se até Immanuel Kant (1724–1804) — como se este importante filósofo
tivesse descoberto que não se pode saber se Deus existe ou não, mais ou
menos como um cientista descobre o ADN ou a composição química da água.
Ao longo da nossa escolaridade e estudo individual habituámo-nos a
compreender resultados científicos, cuja paternidade ou maternidade é
atribuída a este ou àquele cientista ou intelectual. Transferindo esta atitude
para a filosofia, encara-se Kant, ou outro filósofo, não como alguém que
apresentou teorias e argumentos que devemos analisar e discutir de maneira
cuidadosa, mas antes como uma espécie de cientista, que provou qualquer
coisa mais ou menos definitivamente. Assim, se Kant declarou que o
problema da existência de Deus é insusceptível de ser resolvido (pela razão
teórica), isso é imprudentemente considerado um resultado definitivo da
filosofia, um pouco como a descoberta que um cientista pode fazer de
quantas luas tem Júpiter. O resultado desta atitude é afastar a atenção dos
problemas centrais da filosofia da religião, como a existência de Deus. Fixa-
se então a atenção sobre problemas de sociologia da religião, história das
religiões, psicologia e hermenêutica das religiões, etc. — sobre tudo o que é
susceptível de ser estudado empiricamente, recorrendo aos métodos
aprovados pela ciência.
Uma breve reflexão, contudo, mostra a instabilidade teórica desta
posição. Se não se pode saber que Deus existe nem que não existe, como
sabemos que não se pode saber? Será a teoria do conhecimento de Kant mais
plausível do que as posições de outros filósofos, tanto antigos como
contemporâneos, que defendem que podemos saber que Deus existe, ou que
não existe? Poderá parecer-nos que sim, sobretudo se desconhecermos a
bibliografia da área; mas tal como o desconhecimento da lei não iliba o
prevaricador, também o desconhecimento da bibliografia não fundamenta
aquele que a ignora.
Imagine-se alguém que, nomeadamente por ser um cientista, está
habituado a distinguir cuidadosamente as opiniões descuidadas que as
pessoas têm sobre biologia, por exemplo, de opiniões fundamentadas no
conhecimento da bibliografia relevante. Essa mesma pessoa pode considerar
que, no que respeita à filosofia, as coisas são diferentes, sendo desnecessário
conhecer a bibliografia relevante. Só aceitaria a ilegitimidade de ter opiniões
descuidadas, que ignoram a bibliografia, sobre filosofia da religião,
epistemologia ou metafísica, se nessa bibliografia se encontrasse o género de
resultados que se encontra na bibliografia científica.
Contudo, esta posição assenta numa confusão. Mesmo que em filosofia
não tenhamos o género de resultados que temos na ciência, temos outro tipo
de resultados: alternativas teóricas sofisticadas cuidadosamente pensadas,
argumentos rigorosamente explorados, distinções e análises clarificadoras. Se
ignorarmos a bibliografia relevante, estaremos a fazer filosofia outra vez
como os primeiros filósofos faziam, repetindo-lhes os passos — o que é
desavisado porque podemos fazer melhor do que eles se partirmos das suas
investigações.
Não se deve confundir progresso com resultados. O progresso cognitivo
numa área não depende exclusivamente do género de resultados que há nas
ciências. Podemos saber muito, e muito sofisticadamente, sobre um
problema, sem saber resolvê-lo, caso em que temos progresso sem resultados.
Recusar ler a bibliografia filosófica relevante porque esta não apresenta
resultados científicos é recusar o progresso filosófico entretanto alcançado.
Ironicamente, se todos os cientistas se tivessem recusado a estudar a
bibliografia da sua área antes de esta apresentar resultados, nenhuns
resultados teriam sido alcançados.
Há duas maneiras comuns de argumentar a favor da ideia de que o
problema filosófico da existência ou inexistência de Deus é insolúvel, pelo
que deve ser abandonado, e nenhuma é plausível. No primeiro caso,
argumenta-se que só podemos saber o que podemos saber pela experiência;
dado que não podemos saber pela experiência que Deus existe, segue-se que
não podemos saber se Deus existe. No segundo, defende-se que os
argumentos a favor e contra a existência de Deus se anulam mutuamente.
O primeiro argumento enfrenta a seguinte dificuldade: a ideia de que só
podemos conhecer o que podemos conhecer pela experiência não pode ser
conhecida ou sustentada pela experiência. Nenhuma experiência laboratorial,
por exemplo, permite determinar que só podemos conhecer o que podemos
conhecer pela experiência. Para estabelecer esta tese é necessário argumentar
filosoficamente, e uma parte importante dessa argumentação não será baseada
na experiência. Por exemplo, pode-se argumentar que todo o conhecimento
implica justificação, e que a única justificação disponível é empírica. Mas o
próprio princípio de que o conhecimento implica justificação não é algo que
se conheça pela experiência, nem pela experiência se conhece a ideia de que
só há justificações empíricas — na verdade, a experiência parece até mostrar-
nos o contrário, pois os matemáticos não recorrem à experiência para
estabelecer os seus resultados, que estão entre os mais sólidos resultados de
sempre da empresa cognitiva humana.
Isto significa que a ideia de que só podemos saber o que podemos saber
pela experiência é, se não incoerente, pelo menos teoricamente instável —
pois, se for verdadeira, parece que não podemos saber que é verdadeira. Uma
saída para esta dificuldade é sublinhar, como Kant, a diferença entre saber ou
conhecer algo, por um lado, e pensar algo ou levantar conjecturas, por outro.
Assim, podemos argumentar que a nossa posição, pelos seus próprios
critérios, não pode obviamente ser conhecida, porque não pode ser conhecida
pela experiência; no entanto, pode ser pensada ou conjecturada. Um
problema desta resposta é tornar aparentemente a posição original arbitrária.
Pois se a posição original pode ser conjecturada com densidade suficiente
para em função dela se recusar a possibilidade de saber se Deus existe ou
não, então também podemos conjecturar que Deus existe (ou que não existe),
apesar de reconhecermos que essa é uma mera conjectura, e não
conhecimento propriamente dito.
Quanto ao segundo argumento, enfrenta a seguinte dificuldade: para os
argumentos a favor e contra a existência de Deus se anularem mutuamente
não basta contá-los, ou apresentar objecções a cada um dos argumentos a
favor ou contra a existência de Deus — é preciso mais. Nomeadamente, duas
coisas, pelo menos: primeiro, é preciso mostrar que os argumentos a favor e
contra a existência de Deus são rigorosamente de igual força; segundo, que
quaisquer argumentos concebíveis contra ou a favor da existência de Deus
terão sempre os seus opostos, e de força rigorosamente igual. Ora, mostrar
qualquer uma destas duas coisas é cognitivamente mais exigente do que
argumentar apenas que Deus existe ou que não existe. Além disso, se todos
os argumentos a favor e contra a existência de Deus se anulam porque não
têm base experimental, então também os argumentos a favor dessa mesma
posição se anulam perante os argumentos da posição rival, pois também aqui
não há base experimental.
Além disso, é defensável que ambos os argumentos confundem o
problema da existência de Deus com o problema de saber se Deus existe. A
diferença torna-se clara se pensarmos em extraterrestres. Neste caso, é óbvio
que há uma grande diferença entre saber se existem e existirem
efectivamente ou não. Podemos facilmente imaginar cenários em que os
extraterrestres existem, mas, por não quererem dar-se a conhecer ou porque,
querendo, não podem fazê-lo por se encontrarem demasiado longe de nós,
não podemos saber da sua existência. Mas da impossibilidade de saber que os
extraterrestres existem não se segue que não existem, apesar de ser
verdadeiro que se não existirem extraterrestres se segue que não podemos
saber que existem. No que respeita a Deus, mesmo que tivéssemos razões
para pensar que não podemos saber se existe, isso não constitui em si razões
para pensar nem que Deus não existe nem que a própria existência de Deus é
irrelevante. Mesmo sem saber se Deus existe, podemos querer pensar na
hipótese de que existe ou que não existe, e, caso exista, que género de
características poderá ou não poderá ter.
Ambos os argumentos são, pois, improcedentes, pelo menos sem
reformulações cuidadosas. Mas as ideias subjacentes a estes argumentos
desempenham o seu papel habitual: fazem parar de pensar e de investigar
ainda antes de se dar os primeiros passos.

Metafísica, epistemologia e lógica


A filosofia da religião ocupa-se de problemas metafísicos, epistemológicos e
lógicos suscitados pelas religiões. Esta é uma caracterização razoavelmente
neutra da filosofia da religião, mas para a compreender é necessário saber o
que se entende em filosofia por problemas metafísicos, epistemológicos e
lógicos.
O problema intuitivamente óbvio da existência de Deus, por exemplo, é
metafísico. Um problema filosófico é metafísico quando diz respeito aos
aspectos mais gerais da realidade — e não quando diz respeito ao oculto ou
ao misterioso, como popularmente se pensa, nem quando diz respeito ao que
não pode ser conhecido pela experiência. A ontologia é a subdisciplina da
metafísica que procura estabelecer as categorias mais gerais da existência.
Isto implica discutir se há realmente números, por exemplo, ou proposições,
ou se estas são meras projecções mentais dos seres humanos. Num certo
sentido, todos os problemas são metafísicos, porque todos os problemas são
sobre a realidade (incluindo os problemas sobre o conhecimento da realidade,
pois tal conhecimento é também parte da realidade). Mas é óbvio que não
consideramos que um físico está a fazer metafísica ao teorizar sobre átomos,
por exemplo. A razão é que consideramos que pertencem à província da
metafísica apenas aqueles problemas fundacionais sobre a realidade que não
são susceptíveis de estudo científico (ou seja, experimental ou matemático).
Enquanto que a metafísica se ocupa de problemas fundacionais sobre a
realidade, a epistemologia ocupa-se de problemas fundacionais sobre o
conhecimento e outros fenómenos cognitivos centrais, como a crença e a fé.
Por isso, chama-se «teoria do conhecimento» à epistemologia.
Usa-se por vezes o termo «epistemologia» para falar exclusivamente de
filosofia da ciência. A generalidade dos autores não faz tal coisa, porque a
filosofia da ciência em si não trata apenas de problemas epistemológicos
suscitados pelas ciências, mas também de problemas lógicos (como o
problema da indução) e metafísicos (como o problema da existência ou
inexistência de entidades científicas postuladas, mas nunca directamente
observadas, como os quarks).
O estudo filosófico do conhecimento, da crença e da fé difere do estudo
científico, psicológico ou sociológico destes mesmos fenómenos. Em
sociologia pode-se perguntar, por exemplo, em que condições sociais
determinadas teorias — científicas, por exemplo — são vistas como
verdadeiras; em psicologia pode-se perguntar que tipo de processamento
cognitivo ocorre quando se raciocina com base na experiência, por oposição
ao que ocorre quando se raciocina matematicamente apenas; mas em
epistemologia pergunta-se, por exemplo, se sabemos o que pensamos saber,
em que condições há conhecimento genuíno, o que é afinal o conhecimento
em si, o que é a fé e se esta é epistemicamente íntegra.
A lógica é uma disciplina transdisciplinar, no sentido em que usa recursos
matemáticos, linguísticos e filosóficos, e é também uma disciplina que tem
aplicações em áreas diversas, como a filosofia, a computação e a matemática.
O objecto central de estudo da lógica é a argumentação e o raciocínio — não
estudando os aspectos psicológicos, retóricos, históricos ou sociológicos da
argumentação e do raciocínio, mas antes os aspectos relevantes para a
cogência da argumentação e do raciocínio. «Central» porque a lógica acaba
por se interessar pela estrutura da linguagem, seja ou não argumentativa. Por
exemplo, em lógica queremos saber se a frase «O actual rei de França é
careca» é uma expressão puramente quantificada, como «Há cidades
bonitas», ou uma expressão denotativa, como «Asdrúbal é bonito».
Os argumentos e os raciocínios têm simultaneamente aspectos em comum
e aspectos diferentes. Tanto num caso como no outro se trata de articular
informações para delas extrair conclusões; a diferença é que num argumento
se pretende persuadir alguém, ao passo que num raciocínio estamos apenas a
tentar obter conclusões a partir de informações.
Em filosofia da religião estuda-se problemas de carácter lógico suscitados
pelas religiões; mas não se estuda o tipo de problemas que se estuda na lógica
propriamente dita. Um problema de carácter lógico não é do interesse da
própria lógica se depender fortemente de conceitos que pertencem a outras
áreas que não a lógica. É o que acontece no caso do problema do mal, em
filosofia da religião. Este é um problema de carácter lógico, no sentido em
que se trata de saber se as seguintes afirmações são consistentes entre si:

Deus é omnipotente, omnisciente e sumamente bom.


O mal gratuito existe.

Um conjunto de afirmações é consistente quando todas podem ser


simultaneamente verdadeiras. Aquilo a que em filosofia da religião se chama
«o problema do mal» é, então, o seguinte: a existência de mal gratuito parece
incompatível com um Deus que pode impedir o mal porque é omnipotente,
que sabe que o mal existe e sabe como o impedir porque é omnisciente, e que
quer impedi-lo porque é sumamente bom. Fala-se de mal gratuito porque
alguns males não são gratuitos, mas antes meios para bens maiores — por
exemplo, o mal de sofrer as dores de uma intervenção cirúrgica é um meio
para o bem maior de ficar saudável. Distingue-se também o mal moral do mal
natural. O mal moral resulta da actividade humana, como é o caso dos roubos
ou homicídios; o mal natural não resulta da actividade humana, como é o
caso dos terramotos, das secas ou da maior parte das doenças. Pelo menos à
primeira vista, é mais difícil responder ao problema do mal natural do que ao
problema do mal moral.
O problema do mal tem um carácter lógico, porque é um problema de
consistência entre afirmações e a consistência é um conceito lógico; mas não
é um problema da lógica porque depende crucialmente de conceitos
extralógicos, como o conceito de mal, de Deus, de omnipotência, de
omnisciência e de suma bondade. E cada um destes conceitos levanta
igualmente problemas lógicos que são estudados em filosofia da religião e
não em lógica, tratando-se de saber se, por exemplo, é possível articular
coerentemente os conceitos de omnipotência ou de omnisciência.
As distinções entre problemas metafísicos, epistemológicos e lógicos não
devem ser entendidas como se fossem estanques, claras e inequívocas. Os
problemas lógicos, por exemplo, são metafísicos ou epistémicos, consoante
dizem respeito ao que pode ou não existir na realidade (poderá existir um ser
omnipotente?) ou ao que podemos ou não concluir (será que da existência do
mal gratuito se pode concluir que Deus não existe?); e, como deveria ser
evidente, todos os problemas epistémicos dizem respeito a um determinado
aspecto da realidade: a actividade cognitiva de agentes capazes de ter estados
cognitivos sofisticados. Em todo o caso, é importante distinguir, ao abordar
um dado problema, os seus aspectos metafísicos, epistemológicos e lógicos.

Epistemologia
Conhecimento, crença e fé são conceitos distintos. Definir rigorosamente o
conhecimento é um dos problemas em aberto da epistemologia, mas algumas
distinções cruciais podem ser dadas como razoavelmente seguras.
Quando se fala de crença em filosofia não se tem em mente apenas a
crença religiosa, caso em que esta última expressão seria um pleonasmo. Por
crença entende-se em filosofia qualquer representação, susceptível de ser
verdadeira ou falsa, que um agente cognitivo faz de seja o que for. As crenças
podem ser muito sofisticadas ou muitíssimo elementares: temos crenças sobre
a natureza dos átomos, mas também sobre a localização dos nossos joelhos.
As opiniões são crenças razoavelmente sofisticadas e articuladas; crianças de
seis anos, por exemplo, podem ter crenças fortes sobre o que gostam ou não
de comer, mas não têm opiniões, políticas ou outras. O termo crença é usado
em filosofia no sentido em que muitos filósofos gregos usavam o termo δόξα
(doxa). Já o termo fé é usado em filosofia no sentido do termo grego πίστις
(pistis) e do termo latino fides.
Podemos distinguir três tipos de conhecimento ou saber (as duas palavras
são usadas como aproximadamente sinónimas):

1. Conhecimento proposicional ou de verdades (saber-que);


2. Conhecimento por contacto; e
3. Saber-fazer.

O conhecimento proposicional é o que temos quando «sabemos que»:


sabemos que Lisboa é uma cidade portuguesa, que Marte é um planeta
deserto e que a água é H2O. O objecto de conhecimento, neste caso, é uma
verdade ou uma proposição. (A noção de proposição será esclarecida de
seguida.)
O conhecimento por contacto é o que temos quando sabemos algo
directamente, ainda que não tenhamos conhecimento de verdades claramente
articuladas sobre isso: conhecemos Londres por contacto quando visitámos
Londres, mas só temos conhecimento por descrição de Londres
(conhecimento proposicional ou de verdades) se nunca visitámos a cidade,
mas sabemos várias coisas sobre Londres. Também temos conhecimento por
contacto de nós mesmos, apesar de muitas vezes ser bastante difícil articular
o que sabemos realmente de nós mesmos: «Quando olho para mim, não me
percebo», escreveu Álvaro de Campos.
Finalmente, o saber-fazer é o que sabemos quando sabemos fazer algo,
como andar de bicicleta, raciocinar cogentemente ou pintar um quadro. O
saber-fazer ou conhecimento como habilidade ou competência não parece
reduzir-se ao conhecimento proposicional ou de verdades e parece
marcadamente distinto deste: podemos saber muitas coisas sobre bicicletas e
não saber andar de bicicleta, e podemos saber andar de bicicleta sabendo
quase nada sobre bicicletas (também é argumentável que se pode saber
muitas coisas sobre filosofia sem saber fazer filosofia).
O conhecimento é factivo, o que provoca por vezes confusões
desnecessárias. Quando se diz que no tempo de Ptolomeu se sabia que a
Terra estava imóvel e agora se sabe que a Terra não está imóvel, vive-se em
plena confusão conceptual. Se a Terra está imóvel, nós hoje não podemos
realmente saber que se move — apenas podemos considerar erradamente que
sabemos isso. E se a Terra sempre se moveu, ninguém pôde algum dia saber
que estava imóvel — apesar de muitas pessoas poderem ter tido essa crença
falsa.
O conceito de factividade não é exclusivamente filosófico: é também
linguístico, dizendo respeito ao tipo de pressuposições associadas a certos
termos e às suas regras de funcionamento. As definições rigorosas de
factividade, infactividade e contrafactividade são as seguintes, sendo x uma
pessoa qualquer, V um verbo e p uma afirmação ou proposição:

Um verbo V é factivo se, e só se, «x V que p» implica p.


Um verbo V é infactivo (ou não factivo) se, e só se, «x V que p» não
implica p.
Um verbo V é contrafactivo se, e só se, «x V que p» implica a negação
de p.

Por exemplo, o verbo ver é factivo porque se o Asdrúbal vê que está a


chover, então está a chover. Claro que o Asdrúbal pode acreditar erradamente
que está a ver chover quando na realidade está a sonhar ou a ter uma
alucinação ou a confundir a água de rega com chuva — mas em nenhum
desses casos está realmente a ver que está a chover. O mesmo acontece com o
conhecimento: Asdrúbal só pode saber que há vida em Marte se houver vida
em Marte; se não houver vida em Marte, pode acreditar muito firmemente
que há vida em Marte, mas não pode saber tal coisa.
Ao contrário do conhecimento, a crença não é factiva — mas também não
é contrafactiva, pois tanto podemos ter crenças verdadeiras como falsas. Não
são só os verbos que são factivos: advérbios, adjectivos e quaisquer
modificadores ou operadores podem ser ou não factivos. Pseudo- é
contrafactivo porque, se Asdrúbal for um pseudopintor, não é um pintor.
Fingir é aparentemente contrafactivo, mas de facto é apenas infactivo, pois
uma pessoa pode estar a fingir que é rica acreditando que é pobre quando,
sem o saber, lhe saiu ontem a lotaria.
Em suma, ao passo que a crença não é factiva, o conhecimento é factivo.
Insistir na factividade do conhecimento por oposição à infactividade da
crença pode parecer um exagero de exactidão, mas trata-se apenas de rigor
conceptual elementar. Tal como em física a massa não é esparguete, e a
nenhuma pessoa culta ocorre tratar esse conceito como se fosse tal coisa,
também o conceito de conhecimento é factivo e é escusado insistir que é
possível saber que a Terra está imóvel não estando a Terra imóvel.
Não adianta também argumentar que há um conceito de conhecimento
que não é factivo, diferente do conceito filosófico, sendo esse o conceito que
as pessoas sem formação filosófica adequada usam, pois seria como
argumentar que na verdade há um conceito de massa, diferente do conceito
físico, sendo esse o conceito que as pessoas que não sabem física usam
quando falam de pedras a cair e de carros em movimento. Com certeza que
tanto num caso como no outro esses conceitos populares são usados pelas
pessoas, mas se estamos realmente interessados em estudar o conhecimento
ou a massa, temos de abandonar essas noções, que só produzem confusão.
Todo o conhecimento proposicional — assim como a crença — é uma
relação entre uma pessoa que conhece e uma proposição ou verdade
conhecida. Portanto, quando não havia pessoas ou outros agentes cognitivos,
não podia haver conhecimento proposicional — ainda que existissem árvores
e pedras e planetas e átomos disponíveis para serem conhecidos caso
existissem agentes cognitivos. E é também óbvio que sem agentes cognitivos
não havia conhecimento por contacto nem saber-fazer.
Por proposição entende-se geralmente o que é expresso por uma frase
verdadeira ou falsa. A frase «Está calor» exprime a proposição de que está
calor em Ouro Preto no dia 1 de Março de 2009, mas exprime outra
proposição se for proferida noutro dia ou noutro local. Portanto, a mesma
frase pode exprimir diferentes proposições. E diferentes frases podem
exprimir a mesma proposição: «A neve é branca» e «Snow is white»
exprimem ambas a proposição de que a neve é branca.
As frases são inequivocamente entidades espácio-temporais — um certo
conjunto de sons articulados num dado intervalo de tempo ou um certo
conjunto de traços inscritos num papel. Mas as proposições não são
inequivocamente entidades espácio-temporais. Isto porque as proposições
não se confundem com os pensamentos, no sentido psicológico do termo,
enquanto ocorrências físicas num cérebro. Quando penso que está a chover e
outra pessoa pensa o mesmo, o meu pensamento enquanto ocorrência física
no meu cérebro é diferente do pensamento dela enquanto ocorrência física no
seu cérebro; mas ambos estamos a pensar, num certo sentido, o mesmo
pensamento — ou seja, estamos a pensar na mesma proposição. A existência
de proposições não é pacífica: alguns filósofos consideram que não existem
tais coisas, sendo forçados então a explicar o que há de comum entre várias
frases ou pensamentos que exprimem o mesmo (a via mais óbvia é insistir
que tudo o que há de comum nas várias frases e pensamentos que dizem que
a neve é branca é representarem a neve como branca).
Que há pelo menos três tipos centrais de conhecimento (proposicional,
por contacto e saber-fazer), que o conhecimento é factivo e a crença não, e
que o conhecimento e a crença proposicionais são relações entre pessoas e
proposições são aspectos elementares dos conceitos de conhecimento e de
crença. Contudo, é muito difícil saber precisamente o que é o conhecimento,
com o mesmo tipo de precisão com que sabemos o que é a massa em física. O
problema da definição de conhecimento é muitíssimo difícil, precisamente
por se tratar de um conceito muito básico. Apesar disso, é comum aceitar que
há três condições necessárias para o conhecimento proposicional, ainda que
não sejam suficientes: para que algo seja conhecimento proposicional é
preciso que seja

1. uma crença,
2. verdadeira
3. e justificada.

Efectivamente, se concebemos a crença como qualquer representação,


susceptível de ser verdadeira ou falsa, que uma pessoa faz da realidade,
certamente que todo o conhecimento proposicional é uma crença, porque é
uma representação da realidade: saber que Londres é uma cidade é uma
representação da realidade. E dado que o conhecimento é factivo, segue-se
que só podemos saber algo se isso for verdadeiro. Esta segunda condição
separa o conhecimento da crença, pois podemos evidentemente ter crenças
falsas. A terceira condição, a justificação, é a mais problemática e, ao mesmo
tempo, a mais frutuosa filosoficamente.
Para haver conhecimento não basta haver crença verdadeira, porque
podemos ter crenças verdadeiras por sorte — e certamente que isso não é
conhecimento. Por exemplo, imagine-se que tenho a crença de que são 16:55
horas porque olhei para o relógio, e imagine-se que realmente são 16:55
horas. Acontece que, sem eu saber, o meu relógio avariou-se e está parado —
mas, por coincidência, olhei para ele quando era 16:55. Não parece razoável
dizer que sei que são 16:55 horas, apesar de ter essa crença e de isso ser
verdadeiro — não parece razoável, porque a minha justificação para essa
crença não é adequada. Não é adequada porque não é fidedigna: a
mesmíssima justificação exactamente produziria uma crença falsa, apenas
meia hora antes ou depois, e não uma crença verdadeira. Assim, apesar de ser
razoável pensar que todo o conhecimento é uma crença verdadeira
justificada, parece razoável que nem toda a crença verdadeira justificada é
conhecimento.
A noção de justificação é crucial para o conhecimento. Para um agente
saber realmente algo tem de ter uma crença verdadeira adequadamente
justificada sobre isso. Saber exactamente o que distingue uma justificação
adequada de uma justificação inadequada é um problema filosófico em
aberto, como tantos outros. Contudo, podemos avançar na compreensão da
justificação sem nos embrenharmos nos seus aspectos mais complexos. Uma
alternativa que poderemos querer evitar é conceber a justificação de um
modo tão forte que implique a verdade, excluindo por isso a possibilidade de
se ter uma justificação adequada a favor de uma crença falsa.
Um exemplo ilustrativo do que está em causa é o seguinte: Cláudio
Ptolomeu (100–170 d.C.) tinha a crença de que a Terra estava imóvel,
girando todo o restante universo em seu torno. Imagine-se, contudo, que
Ptolomeu não tinha essa crença por ser cognitivamente preguiçoso,
preconceituoso ou hipócrita: formou essa crença cuidadosamente, analisando
dados e fazendo observações. Se isto for verdadeiro, então é razoável afirmar
que Ptolomeu tinha uma justificação adequada para a sua crença — que,
contudo, era falsa. Ptolomeu teve azar epistémico: estava numa situação
epistémica em que não podia saber que a sua crença era falsa e que os dados
em que se apoiava eram enganadores. O mesmo acontece a um detective, por
exemplo, que investiga um crime: pode ficar convencido de que o criminoso
foi o Vilaça, não por preguiça, preconceito ou hipocrisia, mas por azar
epistémico: todas pistas apontam, por azar, para o Vilaça, mas não foi ele
realmente o criminoso.
Assim, seja qual for a nossa noção sofisticada de justificação, é
defensável que tem de permitir casos em que um agente tem justificação para
acreditar em falsidades. Daí que ter uma crença justificada seja
defensavelmente uma condição necessária para saber algo, mas não
suficiente.
Se aceitarmos um conceito de justificação que permita a existência de
crenças falsas justificadas, como parece plausível, é natural passar a dar
atenção aos procedimentos epistémicos e até ao carácter epistémico da
própria pessoa. Repensemos nos exemplos acima de Ptolomeu e do detective:
não estaremos dispostos a dizer que as suas crenças estão justificadas se as
formaram ao acaso, sem darem atenção aos indícios disponíveis, por preguiça
ou preconceito, ou cometendo erros grosseiros de raciocínio ou de análise dos
indícios disponíveis. Na verdade, nesse caso diremos até que as suas crenças
não tinham justificação, mesmo que fossem verdadeiras. Assim, o conceito
de virtude epistémica torna-se rapidamente central em epistemologia.
Uma perspectiva inicialmente plausível é defender que uma crença está
justificada, ainda que seja falsa, desde que quem tem essa crença tenha sido
epistemicamente virtuoso, ao invés de ser preconceituoso, tendencioso,
preguiçoso ou pura e simplesmente falho de raciocínio. Nesta perspectiva, a
justificação adequada não é primariamente uma propriedade das crenças, mas
antes das atitudes epistémicas das pessoas; só derivadamente a justificação
adequada é uma propriedade das crenças. Esta abordagem deu origem à
chamada epistemologia das virtudes, que ao analisar o problema central da
justificação epistémica põe a ênfase no carácter epistemicamente virtuoso ou
não das pessoas, e não nas propriedades intrínsecas da justificação.
Uma vantagem desta abordagem é o seu particularismo. Dada a
complexidade da realidade, é argumentável que não é possível estabelecer
condições gerais, aplicáveis a qualquer caso, do que constitui ou não uma
justificação adequada. Aristóteles (384–322 a.C.) considerava que não
poderíamos ter uma teoria moral que nos dissesse, por si, o que é correcto
fazer em cada caso, sendo antes importante esclarecer o que é uma pessoa
virtuosa; a acção correcta é então o que, em cada caso, a pessoa virtuosa
decide fazer. A epistemologia das virtudes pode ser entendida do mesmo
modo: em vez de tentarmos em vão estabelecer condições necessárias e
suficientes do que constitui uma justificação adequada, tentaremos
estabelecer algumas virtudes epistémicas; compete depois à pessoa
epistemicamente virtuosa dizer-nos, em cada caso, que procedimentos
investigativos devemos adoptar, em função do contexto e do que estamos a
tentar descobrir.
A justificação e a racionalidade são conceitos subtilmente relacionados,
apesar de diferentes. Ter uma crença injustificada, à qual nos apegamos
firmemente, rejeitando que seja posta em causa, é ser irracional; e justificar
cuidadosamente as nossas crenças, estando dispostos a revê-las e a abandoná-
las, é parte integrante do que é ser racional.
Finalmente, note-se que qualquer concepção excessivamente restritiva da
justificação é implausível, porque tornaria a maior parte das nossas crenças
injustificadas. Caso se considerasse que só é racional o agente que souber
justificar cientificamente todas as suas crenças, seriam irracionais quase todas
as crenças das pessoas — incluindo as crenças científicas dos cientistas. Isto
porque ninguém dispõe do tempo nem das energias nem das competências
para analisar e testar cientificamente todas as suas crenças. A maior parte das
pessoas tem a crença de que a água é H2O, que Marte é um planeta desértico
ou que ocorreu a segunda guerra mundial, sem ter justificações adequadas
para estas crenças — na maior parte dos casos, limitamo-nos a aceitar o
testemunho de outras pessoas, nomeadamente os cientistas. Uma maneira
errada de acusar os crentes religiosos de albergarem crenças irracionais é
argumentar que são incapazes de justificar as suas crenças religiosas — pois,
nesse caso, todas as pessoas seriam irracionais porque são incapazes de
justificar as suas crenças químicas, físicas, astronómicas, históricas ou até
quotidianas. E se o testemunho dos cientistas é suficiente para justificar
crenças, o testemunho dos livros sagrados e dos profetas também o será — a
menos que encontremos diferenças relevantes.

Uma análise da fé
O que é exactamente a fé? Mesmo que não possamos responder a esta
pergunta apresentando condições necessárias e suficientes, é iluminante ter
pelo menos uma caracterização razoavelmente precisa da fé. Sem essa
compreensão, a análise da epistemologia da fé poderá ser desadequada —
exigindo-lhe, por exemplo, padrões epistemológicos desadequados à sua
natureza.
Há pelo menos duas concepções cruciais de fé: a objectal e a
fenomenológica. A objectal é a ideia de que a fé é apenas uma crença
fenomenologicamente como as outras, cuja diferença reside exclusivamente
no seu objecto. A crença de que ontem foi Domingo, por exemplo, só
diferiria da fé numa divindade porque a primeira tem por objecto uma
banalidade e a segunda uma divindade. A concepção fenomenológica é a
ideia de que a fé é uma crença diferente das outras não apenas por ter um
objecto diferente, mas também por envolver atitudes diferentes por parte da
pessoa. Segundo esta concepção, a fé numa dada divindade é diferente da
crença de que ontem foi Domingo não apenas por ter uma divindade por
objecto, mas por envolver reverência, testemunho, entrega, mistério e outras
atitudes próprias da fé. Exploremos cada uma destas concepções.
Se a concepção objectal de fé for verdadeira, ter fé em Deus é como ter
outra crença qualquer: esta crença estará justificada ou não do mesmo modo
que qualquer outra crença. Se houver razões para pensar que é irracional
acreditar em algo sem provas, será irracional ter fé em deuses sem provas.
Há dois argumentos centrais contra a concepção objectal de fé. Em
primeiro lugar, não parece fazer jus à experiência da fé que os crentes
religiosos efectivamente têm, e que a concepção fenomenológica destaca. A
fé não parece ser para quem a tem uma crença como qualquer outra, mesmo
que a comparemos com crenças muitíssimo importantes e valiosas, como a
crença de que os nossos filhos nos amam. Além de mais intensa, parece mais
valiosa.
Em resposta a esta objecção podemos argumentar que as diferenças entre
a fé e as outras crenças resultam precisamente da natureza do objecto da
crença. Sendo a fé uma crença que tem por objecto divindades, é natural que,
por isso mesmo, as atitudes associadas à fé sejam adequadamente diferentes
das atitudes associadas a qualquer outro tipo de crença. Mas as atitudes
associadas a uma crença não são constitutivas dessa crença.
A segunda objecção é mais promissora: se a fé fosse como qualquer outra
crença, teria de ser possível uma pessoa ter fé na existência de uma divindade
depois de saber que essa divindade existe. Na verdade, depois de uma pessoa
saber que uma divindade existe, teria de lhe ser impossível não ter fé na sua
existência, tal como é defensavelmente impossível que não acreditemos que a
neve é branca quando sabemos que a neve é branca. Contudo, parece
implausível defender sequer que é possível ter fé que uma divindade existe
depois de sabermos que existe, e mais implausível ainda defender que saber
que uma divindade existe implica ter fé nessa divindade. Isto porque a fé é o
género de atitude que se tem perante o que se desconhece: antes de uma
intervenção cirúrgica delicada, uma pessoa pode ter fé de que tudo irá correr
bem, mas não pode ter fé de que tudo correu bem depois de tudo ter corrido
bem. No entanto, há efectivamente um sentido em que se pode ter fé no que
se conhece — no sentido de se ter confiança nisso.
Assim, podemos rejeitar a objecção acima distinguindo dois sentidos de
fé: a fé como crença proposicional e a fé como confiança. Há um sentido no
qual não só temos fé em alguém ou algo mesmo sabendo que isso existe
como só é racional ter fé nesse alguém ou algo se acreditarmos que existe.
Por exemplo, uma pessoa só pode ter fé no amor dos seus filhos se acreditar
que tem filhos. Fé, neste contexto, quer dizer confiança: ter fé em alguém ou
em algo é confiar nessa pessoa ou nesse algo. Nesta acepção, todos temos fé
diariamente em muitas coisas — na gravidade, por exemplo, no poder
nutritivo do que comemos e na medicina — porque todos confiamos nessas
coisas. Mas é possível ter fé no sentido da crença proposicional sem ter fé no
sentido da confiança: uma pessoa pode saber que o primeiro-ministro existe,
mas não confiar nele. Na Bíblia afirma-se: «Tu crês que há um só Deus?
Fazes bem. Também o crêem os demónios, mas enchem-se de terror» (Tiago,
2:19) — o que poderá significar que os demónios acreditam que Deus existe,
mas não confiam nele.
A componente da confiança é sem dúvida uma das mais importantes da
fé. Mas a perspectiva objectal sobre a natureza da fé não se lhe adequa muito
bem — pois, nessa perspectiva, só o objecto da fé a distingue de outras
crenças, e não as atitudes do agente. Ora, a confiança é precisamente uma
atitude particular que podemos ter perante objectos diferentes. E ainda que
objectos diferentes possam alterar a fenomenologia da confiança, é
argumentável que há algo de comum a todas ou, pelo menos, à maioria das
atitudes de confiança; seria esse aspecto fenomenológico da confiança que a
caracterizaria, e não o objecto da confiança. Em conclusão, tentar defender a
perspectiva objectal da fé socorrendo-se de uma acepção de fé que a
aproxima da confiança tem um efeito contrário ao pretendido, pois conduz-
nos à perspectiva fenomenológica da natureza da fé.
Acresce que apesar de a confiança ser uma componente importante da fé,
não é nem poderia ser a única. Parece impossível ou irracional ter confiança
em algo e não acreditar pelo menos na possibilidade de isso existir. Podemos,
evidentemente, ter confiança em algo que não sabemos se existe, mas
gostaríamos que existisse — pois nesse caso a nossa confiança é condicional.
Por exemplo, um náufrago pode não saber se o desaparecimento do seu
veleiro foi registado, mas ter a esperança que o tenha sido e confiar que,
nesse caso, os serviços de emergência náutica acabarão por salvá-lo. Mas é
impossível ou irracional o náufrago confiar que os serviços de emergência
náutica acabarão por salvá-lo se souber que o desaparecimento do seu veleiro
não foi registado. Ou seja, a confiança parece envolver uma componente
proposicional, pelo menos quando não estamos em contacto com o objecto da
confiança e quando não se trata de um saber-fazer. Logo, ainda que a
confiança seja uma componente importante da fé, é defensável que tem de
haver nesta uma componente proposicional: quem tem fé numa dada
divindade tem de acreditar que essa divindade existe ou, pelo menos, desejar
que exista ou ter esperança que exista, e em qualquer destes casos estamos
perante atitudes proposicionais. Esta é a designação que se dá a qualquer
atitude que tenha por objecto uma proposição: recear que esteja a chover, ter
medo de perder o comboio ou ter a esperança de chegar a horas são atitudes
que têm como objecto, respectivamente, as proposições expressas pelas frases
«Está a chover», «Vou perder o comboio» e «Chegarei a horas».
É ilusório pensar que a perspectiva objectal da fé fica vindicada se
admitirmos que a fé tem necessariamente uma componente proposicional. Na
verdade, a perspectiva fenomenológica de fé não está comprometida com a
exclusão da componente proposicional da fé: limita-se a sustentar que não é
apenas a diferença de objecto que caracteriza a fé, mas também e sobretudo a
atitude do agente. Nada na concepção fenomenológica de fé a impede de
aceitar que a atitude do agente é uma atitude proposicional.

A concepção fenomenológica de fé
Passemos então à análise da concepção fenomenológica de fé. Deste ponto de
vista, a fé não é como qualquer outra crença, diferindo apenas quanto ao
objecto; ao invés, além da diferença de objecto, envolve aspectos que as
outras crenças não envolvem. Um desses aspectos é a força da convicção: a
fé exibe a força da convicção do conhecimento, apesar de não ser
conhecimento (ou, pelo menos, não é como os outros conhecimentos comuns,
como o conhecimento de que a água é H2O, por exemplo; exploraremos já de
seguida a ideia de que a fé é um tipo especial de conhecimento). E por não
ser conhecimento, a fé é, nesse aspecto, como a mera crença. Portanto, deste
ponto de vista, a fé é como o conhecimento num aspecto e como a mera
crença noutro. Assim, a fé não é apenas uma crença que tem por objecto um
certo tipo de entidades: é uma crença que tem características próprias, que a
distinguem de muitas outras crenças, ou mesmo de todas.
Comparar a força da convicção da fé com a força da convicção associada
ao conhecimento é esclarecedor. Efectivamente, quando sabemos algo, temos
uma forte adesão psicológica ao conteúdo do nosso conhecimento, bastante
mais forte do que quando temos uma mera crença, ainda que parcialmente
justificada. Quando acredito meramente que a Joana está na praia porque me
disseram, a força da minha convicção é muitíssimo menor do que quando sei
que ela está lá porque acabei de a ver.
Contudo, será a fé como o conhecimento em todos os aspectos, caso em
que a fé seria conhecimento? Podemos defender que a fé é conhecimento —
mas um tipo diferente de conhecimento — ou defender que a fé não é
conhecimento, apesar de ser fenomenologicamente como o conhecimento no
que respeita à força da convicção.
A primeira coisa a fazer quando se defende que a fé é conhecimento é
esclarecer de que género de conhecimento se trata: proposicional, saber-fazer
ou por contacto. Defender que a fé é conhecimento proposicional implica
defender que só há fé quando há justificação, pois só há conhecimento
proposicional quando há justificação. No caso da fé, a justificação seria a
revelação: a ideia de que Deus se deu a conhecer a algumas pessoas especiais,
que depois transmitiram por testemunho essa ocorrência. Um argumento
contra esta perspectiva é que, se fosse verdadeira, quase nenhumas pessoas
religiosas teriam de facto fé — só a teriam aqueles teólogos e filósofos que
sabem justificar adequadamente a sua crença numa divindade. A maior parte
das pessoas que acredita no Deus cristão, por exemplo, pouco ou nada sabe
sobre os supostos testemunhos da revelação que sustentariam a sua fé. Como
isto é implausível, a perspectiva seria falsa.
Este argumento, contudo, não é convincente, pois ignora uma diferença
entre haver justificação e o agente do conhecimento ou da crença em causa
conseguir articular essa justificação. Por exemplo, uma criança forma a
crença de que está uma maçã em cima da mesa ao vê-la lá; a justificação da
sua crença é muitíssimo mais sofisticada do que o mero «Vi-a lá» que ela é
capaz de articular, pois envolve coisas como condições normais de luz e o
funcionamento correcto do seu aparato visual e cognitivo. Parece excessivo
exigir que um agente tenha de conseguir articular uma justificação adequada
das suas crenças para estas poderem constituir conhecimento proposicional,
dado que, na sua maior parte, as pessoas têm grande dificuldade em fazer tal
coisa. (Contudo, podemos insistir que as pessoas quase nada sabem, na sua
maior parte, vivendo apenas com base em meras crenças.) Uma alternativa é
então aceitar que um agente tem conhecimento proposicional desde que tenha
uma crença verdadeira que se pode justificar adequadamente, ainda que ele
mesmo não o saiba fazer ou não o tenha efectivamente feito. Chama-se
externismo a esta posição sobre a justificação, e internismo à posição oposta.
Aplicando esta distinção à fé, poder-se-ia então insistir que as pessoas só
podem ter realmente fé numa divindade caso seja possível justificar tal
crença, ainda que elas mesmas sejam incapazes de o fazer. Ter fé numa
divindade seria, assim, análogo a muitas outras crenças que somos incapazes
de justificar adequadamente, mas que pensamos que outros seres humanos
sabem justificar adequadamente. Por exemplo, na sua maior parte, as pessoas
são incapazes de justificar adequadamente a crença na cosmologia do Big
Bang, pois não têm os conhecimentos nem os recursos necessários para
justificar esta teoria: limitam-se, por isso, a transferir para os especialistas
relevantes a tarefa da justificação.
Esta perspectiva implica que caso não exista justificação adequada para
crer numa divindade, ninguém teve jamais fé nessa divindade, apesar de ter
pensado que a tinha. Note-se que isto é compatível com a diversidade de
religiões e de divindades; pois apesar de as diversas divindades que são
objecto de fé em diferentes religiões serem incompossíveis (ou seja, não são
conjuntamente possíveis: não podem existir todas simultaneamente), é
perfeitamente possível que existam justificações adequadas para as crenças
religiosas nessas divindades. Recorde-se que podemos defender que a
justificação não é factiva, o que significa que diferentes pessoas em diferentes
contextos epistémicos podem ter justificação adequada para crer em
divindades diferentes e incompossíveis.
Contudo, a perspectiva que estamos a explorar não defende apenas que só
há fé quando há justificação: defende também que a fé é factiva, pois defende
que a fé é conhecimento, ou um tipo de conhecimento. E é isto que torna esta
concepção implausível, pois significaria que caso a única divindade que
realmente existe seja Diana, por mais genuína que fosse a fé dos antigos
egípcios no deus Rá, por exemplo, ou dos actuais cristãos em Deus, nenhuma
dessas pessoas tinha realmente fé — apenas acreditava erradamente que a
tinha. Isto parece excessivo: quem tem fé numa divindade que, sem ela o
saber, não existe, não parece ter uma fé menos genuína do que quem tem fé
numa divindade que realmente existe. Assim, a fé, ao contrário do
conhecimento, não parece factiva.
Uma saída para esta dificuldade seria sustentar que a fé é um tipo
diferente de conhecimento, que não envolve factividade. Mas isto seria
presumivelmente um mero jogo de palavras, dado que conhecimento
infactivo não é conhecimento, em qualquer acepção relevante do termo: é
mera crença (que pode até estar justificada).
Dado que tanto o conhecimento proposicional como o conhecimento por
contacto são factivos, o mesmo argumento se aplica para refutar a ideia de
que a fé poderia ser conhecimento por contacto: aceitar que a fé é
conhecimento por contacto implica a tese implausível de que a maior parte da
humanidade ao longo da maior parte da história não teve realmente fé, apesar
de pensar que a tinha.

Testemunho e risco epistémico


Note-se, contudo, que há pelo menos um aspecto crucial que o conhecimento
por contacto partilha com a fé. No conhecimento por contacto não há apenas
uma forte convicção acompanhada muitas vezes de uma incapacidade para
articular uma justificação adequada — isto também acontece no
conhecimento proposicional. Um traço central do conhecimento por contacto
que o distingue do proposicional é o aspecto pessoal, subjectivo ou
testemunhal: quando conhecemos algo por contacto não se trata apenas de
sermos muitas vezes incapazes de articular uma justificação adequada desse
conhecimento; há aparentemente um aspecto fenomenológico irredutível a
qualquer justificação cuidadosamente articulada.
Este aspecto do conhecimento por contacto envolve o que se chama
qualia: a qualidade interna da experiência. É este aspecto do conhecimento
por contacto que está em causa nos famosos artigos «Como é Ser um
Morcego?», de Thomas Nagel, e «What Mary Didn’t Know», de Frank
Jackson.
No primeiro caso, Nagel faz notar que temos muito conhecimento
proposicional sobre a ecolocalização usada pelos morcegos, e usamo-la
também em navios, recorrendo a radares: um sinal sonoro é enviado e o
tempo decorrido entre o seu envio e o eco devolvido permite determinar a
distância e parcialmente a forma do que se encontra na direcção relevante.
Contudo, argumenta Nagel, num certo sentido não podemos saber como é
percepcionar objectos dessa maneira, não sabemos como é a experiência
interna da ecolocalização: não sabemos como é ser um morcego.
No exemplo de Jackson, imagina-se uma neurocientista da cor, a Maria,
que tem um conhecimento proposicional exaustivo do mecanismo da visão de
cores que ocorre nos seres humanos. Contudo, nunca viu cores porque viveu
sempre num quarto a preto e branco. (Será também preciso imaginar que
tinha uma doença da pele que a tornava completamente branca, que o seu
cabelo era completamente preto, que não podia ficar menstruada, porque
nesse caso veria a cor do seu sangue, etc., o que torna tudo isto uma fantasia
filosófica, mas que serve correctamente os seus propósitos.) Um dia, a Maria
pôde finalmente sair do seu quarto e viu uma rosa vermelha ou um pôr-do-sol
radioso. Apesar de ter um conhecimento proposicional exaustivo do
processamento visual e cognitivo das cores, havia algo que a Maria não sabia,
pois parece óbvio que há algo que ela aprendeu quando viu a rosa ou o pôr-
do-sol. O conhecimento que não tinha era o conhecimento por contacto, o
conhecimento íntimo, subjectivo ou testemunhal do que é ver cores.
Este aspecto testemunhal do conhecimento por contacto parece crucial na
fenomenologia da fé. Ter fé numa divindade é talvez mais do que ter uma
convicção forte na sua existência: é ter como que um contacto íntimo com
essa divindade; é ter uma experiência defensavelmente irredutível a todo o
conhecimento proposicional. Contudo, levar a sério a ideia de que a fé é
conhecimento por contacto implica, uma vez mais porque o conhecimento é
factivo, que a maior parte da humanidade ao longo da maior parte da história
não teve experiência da fé genuína, mas apenas a ilusão de que a teve, dado
que as muitas divindades que foram objecto de fé ao longo da história
humana são incompossíveis.
Não é, pois, plausível que a fé seja conhecimento proposicional nem por
contacto. Contudo, é inegável que há algo na fenomenologia da fé irredutível
às crenças proposicionais, pelo simples facto de que toda a atitude
proposicional tem uma fenomenologia própria, irredutível às crenças
proposicionais. Por exemplo, ter medo de dragões tem uma fenomenologia
própria, diferente de ter a esperança de haver dragões, que não depende do
objecto, mas sim da própria atitude. Assim, ter fé terá sem dúvida uma
fenomenologia distinta, mas não implica de modo algum que tenha de existir
a divindade que é objecto da fé. A impressão subjectiva do conhecimento por
contacto, testemunhal e subjectivo que se associa à fé pode ser independente
da existência da divindade que é objecto da fé em causa: pode ser uma
peculiaridade da atitude. A peculiaridade da fé, uma vez mais, é não ser
fenomenologicamente como uma mera crença, como as muitas crenças que
temos e a que não damos muita importância: a fé é uma crença considerada e
sentida como muitíssimo importante pelos crentes.
Uma objecção imaginativa a esta última ideia insiste que, apesar de
historicamente a fé ter sido considerada e sentida como muitíssimo
importante pelos crentes, poderia não o ser. Podemos imaginar pessoas que
têm fé numa divindade menor, digamos, com poucos poderes ou com poderes
limitados, e que intervém apenas em trivialidades do quotidiano — como
nunca deixar uma pessoa esquecer-se de fechar a tampa da sanita, por
exemplo. Estas pessoas teriam uma fé banal, digamos, neste tipo de
divindade menor, precisamente por ser uma divindade menor.
Esta objecção insiste na conexão entre o objeto da fé e a atitude do crente:
a ideia é que a atitude de extrema importância associada à fé resulta da
natureza da divindade que é objecto da fé.
A resposta a esta objecção é a seguinte: do mesmo modo que ter medo de
escorregar quando neva é diferente de ter medo quando um leão corre na
nossa direcção, porque os objectos do medo são diferentes, persistindo
todavia algo em comum (caso contrário não seria medo), também a fé será
inevitavelmente influenciada pela natureza do objecto da fé. Quem tiver fé
numa divindade menor, terá presumivelmente uma fé diferente de quem tiver
fé numa divindade omnipotente, mas algo em comum terá de haver em
ambos os casos para que sejam ambos fé. E apesar de ser evidentemente
possível imaginar cenários em que já duvidamos se estamos perante fé ou
perante uma mera crença banal e quotidiana, o objectivo da nossa
investigação é a fé que de facto as pessoas têm, e não a que conseguimos
imaginar, mas que depois nem sabemos bem se é ainda fé ou outra atitude.
Ora, nas manifestações conhecidas de fé, esta não é uma crença banal, como
as outras crenças quotidianas; é uma crença a que o próprio crente dá extrema
importância.
Afastadas as hipóteses de que a fé seja conhecimento proposicional ou
conhecimento por contacto, resta ver se poderá ser um saber-fazer. Esta ideia
também não é plausível, pois saber fazer algo como andar de bicicleta
envolve uma actividade, mas não necessariamente uma atitude, ao passo que
ter fé numa divindade envolve necessariamente um tipo de atitude, mas pode
ou não envolver uma actividade. É certamente verdadeiro que os crentes
religiosos consideram que o seu modo de vida é profundamente afectado pela
sua fé, mas não parece verdadeiro que esse modo de vida constitua a fé. Uma
vida dedicada à bondade e a aliviar o sofrimento alheio pode coincidir
exteriormente com uma vida religiosa; mas muitos ateus escolhem esse
género de vida, sem terem, portanto, qualquer atitude análoga à atitude de
uma pessoa de fé. Por outro lado, mesmo que todas as pessoas de fé
desenvolvam um tipo de actividades, estas parecem consequência da sua fé,
não constituindo a fé em si.
Podemos então concluir preliminarmente que a fé não é conhecimento,
nomeadamente porque a fé é infactiva e o conhecimento é factivo. Mas esta
não é a única razão. Mesmo que a fé implicasse conhecimento, nunca poderia
ser conhecimento, constitutivamente, dada a diferença entre as
fenomenologias da fé e do conhecimento. Vimos que a fé se assemelha ao
conhecimento proposicional por envolver uma forte convicção, e que se
assemelha ao conhecimento por contacto por envolver um aspecto
testemunhal. Mas noutros aspectos a fé é profundamente diferente desses
tipos de conhecimento.
Para ver porquê, considere-se o que aconteceria se uma divindade se
manifestasse inequivocamente junto dos seres humanos. Alguns ateus,
perante tal manifestação, passariam evidentemente a acreditar que essa
divindade existe, precisamente porque passariam a saber que existe. Mas
teriam fé? Poderiam ganhar fé no sentido de terem confiança na divindade, se
soubessem que essa divindade estaria a zelar por eles, sendo sumamente boa
e sumamente poderosa. Contudo, alguns aspectos que parecem constitutivos
da fenomenologia da fé poderiam não se manifestar, tornando implausível
afirmar que esses ateus passaram a ter fé. Os sentimentos de reverência,
ligação profunda, êxtase e mistério que parecem estar associados à fé
poderiam perfeitamente estar ausentes das atitudes epistémicas desses ateus
relativamente a essa divindade. Parece, por isso, conceptualmente possível
saber que uma divindade existe sem ter fé na sua existência (mesmo que nela
se tenha fé, no mero sentido da confiança).
Søren Kierkegaard (1813–1855) foi um dos filósofos que mais claramente
sublinhou este aspecto da fé, que a torna incompatível com o conhecimento
— e, por isso, com as provas, argumentos ou justificações. Este aspecto da fé
parece corresponder à desvalorização, por parte de alguns crentes, dos
intrincados argumentos filosóficos a favor e contra a existência de Deus.
Talvez isso ocorra por considerarem, como Kierkegaard, que a fé é
precisamente o género de confiança ou convicção profunda que se tem numa
divindade quando não temos provas da sua existência:

Em nome de quem se procura a prova? A fé não precisa dela. Sim,


tem de encará-la como inimiga. Mas quando a fé começa a ter
vergonha, como uma rapariga para quem o amor deixa de ser
suficiente, que secretamente tem vergonha do seu namorado e tem por
isso de confirmar junto de outros que ele é realmente notável, quando
a fé vacila e começa a perder a sua paixão, então a prova torna-se
necessária para parecer respeitável da perspectiva do descrente. (Pós-
Escrito Anti-Científico Final, p. 27)
Sem risco não há fé. A fé é precisamente a contradição entre a paixão
infinita da interioridade e a incerteza objectiva. Se posso compreender
Deus objectivamente, não acredito; mas porque não posso conhecer
Deus objectivamente, tenho de ter fé; e se for firme na fé, tenho de
estar constantemente determinado a agarrar-me à incerteza objectiva,
para permanecer sobre as profundezas do oceano, sobre setenta mil
braças de água, e continuar a acreditar. (Pós-Escrito Anti-Científico
Final, pp. 171-172)

Kierkegaard considera a fé incompatível com o conhecimento, por este


último implicar a justificação, ao passo que a fé implica o risco epistémico.
Podemos fazer uma analogia com o que ocorre quando encontramos um
desconhecido e o ajudamos, sem ter provas da sua probidade, descobrindo
mais tarde com gosto que ele nos procurou para nos restituir o dinheiro
emprestado, por exemplo, ou para nos manifestar a sua gratidão. Esta
analogia permite compreender o tipo de valor que é possível ver na fé quando
esta é concebida como crença injustificada ou sem provas. Num certo
sentido, tem mais valor confiar num desconhecido, sem provas da sua
probidade, do que confiar nele quando temos essas provas. Confiar nele
quando temos essas provas não envolve qualquer risco, nem é um gesto
particularmente generoso da nossa parte. Kierkegaard parece defender algo
análogo relativamente à fé: se procuramos provas da existência da divindade,
é porque de algum modo não queremos arriscar ter fé na sua existência; mas
se tivermos provas de que essa divindade existe, a fé parece não poder ter
lugar, tal como nada arriscamos ao ajudar uma pessoa quando sabemos que
ela nos recompensará.
Será realmente defensável o risco epistémico de crer no que não temos
provas que existe? William James argumenta que sim.

Aposta momentosa
James sublinha que em alguns casos as nossas crenças são motivadoras: um
desportista ganha em acreditar que consegue obter um resultado; um
estudante ganha em acreditar que conseguirá bons resultados num exame
difícil. Nestes casos, precisamos de acreditar sem provas, de maneira a ter
motivação para tentar: não faria sentido treinar ou estudar se não
confiássemos na possibilidade de obter os resultados desejados, ainda que
não tenhamos realmente provas de que os conseguiremos obter. Será a fé
análoga a este género de casos? Tratar-se-ia nesse caso de ter confiança em
algo que não sabemos bem se ocorrerá ou se existe. A fé ficaria assim mais
próxima da esperança.
Sem dúvida que este tipo de crenças motivadoras e sem grandes provas
existem, e são constitutivas da nossa vida. É difícil imaginar como seria a
nossa vida sem elas. Mas não é claro que este facto acerca da nossa vida
cognitiva tenha relevância para a legitimidade da fé sem provas, ao contrário
do que James parecia pensar. Vejamos dois argumentos contra a posição de
James.
Em primeiro lugar, as crenças motivadoras só são racionais porque têm
efeitos causais: se um estudante acreditar que com o seu esforço irá conseguir
obter um certo resultado, isso tem o efeito causal de lhe dar mais ânimo, o
que contribui para obter o resultado desejado. Mas no caso da crença
religiosa não há qualquer nexo causal, nem pode haver, entre a força da
convicção e a existência ou inexistência de divindades: estas não existem ou
deixam de existir consoante as pessoas estão mais ou menos fortemente
convictas da sua existência.
Em segundo lugar, é irracional ter confiança quando a possibilidade de
realização do que se almeja é demasiado improvável. Uma pessoa em risco
de morte pode ganhar em ter confiança que conseguirá ser bem-sucedida num
salto difícil que poderá salvar a sua vida, se o salto que tem de dar for de,
digamos, um metro e meio. Mas, se for de dez metros, nenhuma confiança
lhe dará energia suficiente para conseguir salvar-se. O mesmo ocorre todos os
finais de semestre com demasiados estudantes: não estudaram ao longo do
semestre e depois vão fazer os exames cheios de confiança que, naquele
momento, algo de mágico ocorra e subitamente sejam capazes de responder a
perguntas sobre matérias que desconhecem quase por completo: o resultado
inevitável, apesar de tanta confiança, é a reprovação. E esses estudantes
teriam ganho mais em reconhecer a verdade da situação, ficando em casa
tranquilamente. Portanto, este género de confiança na ausência de provas só
pode ter relevância caso não estejamos perante uma impossibilidade ou quase
impossibilidade.
Blaise Pascal (1623–1662), contudo, ficou famoso por defender que, bem
vistas as coisas, temos tudo a ganhar e nada a perder em apostar na existência
de Deus. Chama-se aposta de Pascal ao seu argumento, que pertence à
mesma família da posição de James: trata-se de dizer que, na ausência de
provas a favor ou contra a existência de Deus, temos um argumento a favor
da crença sem essas provas.
No caso da versão de Pascal, a ideia é fazer uma matriz para revelar as
quatro combinações possíveis que resultam de se acreditar ou não e de Deus
existir ou não:

1. Caso não acreditemos e Deus não exista, nada de especial ganhamos.


Apenas não perdemos tempo, por exemplo, em rituais religiosos.
2. Caso não acreditemos e Deus exista, perdemos a possibilidade do
paraíso, o que é terrível.
3. Caso acreditemos e Deus não exista, nada de especial perdemos. Apenas
perdemos tempo, por exemplo, em rituais religiosos.
4. Caso acreditemos e Deus exista, ganhamos o paraíso, o que é
maravilhoso.

Portanto, continua o argumento, é irracional não escolher acreditar. Porque se


acreditarmos, o pior que pode acontecer é termos perdido tempo; e podemos
ganhar o paraíso. Mas se não acreditarmos, o melhor que pode acontecer é
não termos perdido tempo; e podemos perder o paraíso.
Este género de argumento pode ser visto como desprezível por muitos
crentes. Pois o seu efeito é retirar à fé o elemento de risco epistémico que
Kierkegaard considerava importante: a fé torna-se o mero resultado do
calculismo egoísta, e não uma atitude de risco epistémico que nos dá
confiança perante a «incerteza objectiva».
O pior do argumento, contudo, é precisar admitir pressupostos pouco
razoáveis sobre Deus. Por que razão haveria Deus de castigar quem não
acredita que ele existe precisamente por falta de provas? E por que razão
haveria Deus de recompensar com o paraíso o calculista? A ideia de que ter
fé é em si importante porque Deus castiga quem não a tem é praticamente
indefensável. Se Deus for sumamente bom e sábio, não pode ser o género de
ser que exige dos seres humanos crenças arbitrárias; pelo contrário, será o
género de ser que exige que os seres humanos sejam virtuosos, e ser
epistemicamente virtuoso parece incluir não acreditar sem provas.
O defensor da aposta de Pascal pode responder que não temos de ter uma
concepção primitiva de um Deus castigador: podemos entender a própria vida
do crente, com a graça da fé, como uma dádiva de imenso valor, e a vida do
descrente como um deserto espiritual que ninguém quererá viver. Assim,
apostar em Deus faz sentido não porque a divindade recompense a
credulidade e castigue a racionalidade, mas antes porque a própria vida sem
fé em Deus é um martírio, ao passo que uma vida com fé em Deus é graciosa
e compensadora.
William James tem em mente algo como esta caracterização da vida de
fé. Antes de analisarmos brevemente as suas ideias, importa esclarecer as
seguintes diferenças:

1. Acreditar que Deus existe.


2. Não acreditar que Deus existe.
3. Acreditar que Deus não existe.

Confunde-se por vezes 2 com 3. 2 é mais fraco do que 3, no sentido em que 3


implica 2, mas 2 não implica 3: quem acredita que Deus não existe, não
acredita que Deus existe, mas quem não acredita que Deus existe pode não
acreditar que Deus não existe. Suspender o juízo quanto à existência de Deus
é rejeitar 1 e 3: é o que faz o agnóstico. O crente, claro, aceita 1 e rejeita as
outras; o ateu aceita 3, o que implica aceitar 2, e rejeita 1. Estas relações
lógicas dizem respeito a qualquer crença, e não especificamente à crença de
que Deus existe. A maior parte das pessoas, por exemplo, nem acredita que
existem extraterrestres nem que não existem extraterrestres; considera as duas
hipóteses interessantes e até momentosas, mas limita-se a suspender o juízo.
Esta atitude de suspensão do juízo na ausência de provas é precisamente o
que propõe um indiciarista, como Clifford. Na verdade, é o género de atitude
que temos relativamente às mais diversas matérias. James, todavia, discorda.
Do seu ponto de vista, é legítimo crer em Deus, quando a sua existência é
intelectualmente indecidível, desde que a opção pela crença seja viva, forçosa
e momentosa.
Uma opção é viva quando não é uma mera hipótese intelectual vaga, mas
antes algo que realmente nos importa: supostamente, para quem se debate
com a questão de Deus, a hipótese de acreditar ou não é para ela uma opção
viva. Essa mesma pessoa pode não se debater com a questão de acreditar ou
não em Apolo, por exemplo. Uma opção é forçosa quando não tomar partido
é o mesmo que tomar partido. Suspender a crença quanto à existência de
Deus tem o mesmo efeito que não acreditar na existência de Deus, pensa
James. Finalmente, uma opção é momentosa quando é de extrema
importância, e não uma questão trivial.
James argumenta então que, reunidas estas condições, é epistemicamente
legítimo acreditar sem provas, quando a questão é intelectualmente
indecidível. A razão é que não o fazer priva-nos de algo importante — uma
vida religiosa, a perspectiva de uma vida eterna — sem nada de importante
nos dar em troca, excepto a garantia de não crer em falsidades. O argumento
de James pertence, pois, à mesma família da aposta de Pascal; mas em vez de
se basear directamente na ideia de que, sob a hipótese de Deus existir, os
descrentes ou os agnósticos serão enviados para o inferno, indo os crentes
para o paraíso, permite dar ênfase ao ganho que o crente tem nesta vida. A
ideia torna-se mais vívida se imaginarmos casos em que uma mentira piedosa
poderá salvar alguém de sofrimento inconsequente: por exemplo, uma mãe a
quem, no leito de morte, se oculta a tragédia do seu filho que acaba de falecer
de acidente.
Contudo, o argumento de James enfrenta uma dificuldade relacionada. É
verdadeiro que não dependemos de uma concepção brutal de um Deus que
quer ser objecto de culto na ausência de provas da sua existência, castigando
quem suspender o juízo. Mas estamos perante uma concepção provinciana da
vida humana — como se uma vida humana plenamente realizada só pudesse
ocorrer na presença da fé. Pelo contrário, muitos artistas, cientistas, filósofos
e filantropos viveram vidas preenchidas e felizes, sem qualquer crença em
divindades. Para essas pessoas, a questão de haver ou não divindades poderá
ser intelectualmente interessante, mas nenhuma consequência prática tem
para qualquer lado. Isto porque nenhuma pessoa genuinamente boa pode
acreditar que Deus, se existir, é um ser malévolo, que castiga quem nele não
acredita, ainda que essa pessoa tenha uma vida virtuosa, sob todos os
aspectos.
A ideia de que uma vida virtuosa não é possível sem crer em divindades é
uma manifestação de provincianismo — ou de um mau íntimo: alguém que
só não trapaceia, mente, rouba e mata por ter medo de ser castigado na outra
vida. Kant, que era religioso, considerava que uma acção feita com vista à
recompensa ou com medo do castigo não é moralmente correcta, ainda que
exteriormente o pareça. E não é preciso invocar Kant para compreender que
quem não mata o seu semelhante por medo do inferno e não por respeitá-lo,
não é o género de pessoa que queiramos ter por semelhante.
James poderia aceitar que é possível ter uma vida compensadora e
virtuosa sem qualquer crença religiosa, mas insistir que uma vida religiosa
permite a qualquer pessoa, por mais culturalmente carenciada que seja, o
género de vida compensadora que um artista ou cientista pode ter. A vida
religiosa colocaria ao alcance de qualquer pessoa o género de vida
compensadora a que, de outro modo, só alguns poderiam almejar.
A ideia de que a religião permite às pessoas culturalmente mais
carenciadas ter uma vida mais compensadora do que de outro modo teriam é
plausível. Tal como é plausível que a religião pode oferecer conforto
emocional a pessoas cujas vidas são desagradáveis em quase todos os
aspectos. Contudo, este género de argumentação não é particularmente
promissora, pois não só implicaria que a religião seria apenas um paliativo
para o infortúnio, como tornaria difícil explicar a fé de pessoas muitíssimo
cultas, como cientistas, filósofos, artistas ou outros intelectuais. A verdade é
que tanto se encontra pessoas descrentes e crentes entre os cultos como entre
os incultos; e a verdade é que a vida religiosa tanto oferece conforto
emocional como opressão.
James precisa de defender que a crença na existência de divindades é
forçosa. Mas ou é forçosa porque se concebe Deus como um ser castigador,
como Pascal, e nesse caso aplica-se-lhe o mesmo contra-argumento; ou o é
porque se tem uma concepção provinciana, e historicamente falsa, do que é
uma vida humana generosa, bem-aventurada, virtuosa e realizada,
considerando erradamente que sem a crença em Deus esse tipo de vida não é
possível. Em qualquer caso, não temos razão para pensar que a opção entre
crer ou não em Deus é forçosa. Suspender o juízo por falta de provas só é
equivalente a não crer quando a consequência de ambas é aproximadamente
igual. Mas as duas opções só são equivalentes caso um Deus ciumento
castigue quem nele não crê, ou caso nenhuma vida humana agnóstica ou ateia
possa ser plena e digna. Quem rejeitar estas duas hipóteses, rejeita a ideia de
James de que a opção da crença é forçosa. Poderá até aceitar que é uma
questão momentosa, que nos dispomos a estudar e discutir com sobriedade,
como estudamos e discutimos a cura do cancro, sem que tenhamos de
acreditar sem provas.
Podemos insistir na ideia original de James concedendo que é
perfeitamente possível ter uma vida humana digna e realizada sem crer em
Deus; mas sublinhar que, mesmo assim, acrescentar a crença religiosa a uma
vida humana que já é digna e realizada sob todos os outros aspectos é fazer
algo de importância superlativa. Uma vida humana digna em todos os outros
aspectos, mas a que se acrescenta a crença religiosa, é uma vida ainda mais
digna e rica, adquirindo uma textura e dimensão que nenhuma vida de
agnóstico pode ter. Neste sentido, portanto, é forçosa a opção entre crer ou
não em Deus.
Concedendo que a opção é forçosa neste sentido, o problema é que agora
o agnóstico ou o ateu têm uma resposta demasiado fácil. Podem responder
que só é forçosa a decisão de ter ou não uma vida de crente religioso porque
ou é verdadeiro ou não é verdadeiro que Deus existe. O que torna forçosa a
opção é que se Deus existir, vivemos na verdade se formos crentes — e a
verdade é de importância primordial para seres como nós. Uma vida de crente
não pode ser uma coisa boa por ser boa apenas internamente — isto é, por
fazer o crente sentir-se melhor. Isso torna de tal modo subjectiva a crença
religiosa que faz dela uma opção não momentosa mas mesquinha, ainda que
seja forçosa: trata-se de escolher o que me faz sentir bem, como quem
escolhe os sapatos mais confortáveis, e não o que é superlativamente real e
importante. Para que a minha escolha seja superlativamente importante não
pode ser apenas uma escolha do que me faz sentir bem. Tem de ser também
uma escolha do que me conecta com uma realidade de superlativa
importância — recorde-se que o sentido do étimo da palavra religião é
religação. É mesquinho escolher uma vida religiosa pressupondo que a
existência ou inexistência dessa realidade de superlativa importância é
irrelevante porque tudo o que conta é que me sinta bem. Escolher ou não
escolher uma vida religiosa só é de suprema importância porque isso me abre
ou não a uma realidade de suprema importância.
Assim, a ideia é que, precisamente por prezar a verdade, o ser humano
não deve aderir sem provas, sobretudo quando se trata de matérias de
importância superlativa. É verdadeiro que muitas vezes temos de assumir
riscos epistémicos, mas estes casos só são razoáveis quando há uma relação
causal entre a crença e o que dela resulta: cremos, sem grandes provas, que
somos capazes de fazer um curso universitário, e isso motiva-nos de tal modo
que contribui para o sucesso dos nossos estudos. No que respeita a Deus, não
há tal relação causal: crer em Deus não o faz existir magicamente. O único
poder causal dessa crença diz respeito à nossa vida, e não é óbvio que, sob a
hipótese de Deus não existir, uma vida de crente seja realmente melhor do
que uma vida virtuosa e realizada, aberta à possibilidade de existir Deus, mas
que não a aceita sem provas.
Assim, o argumento de James implica que a questão da existência ou
inexistência de Deus tem prioridade sobre a opção de crer ou não. Optar pela
crença no caso de Deus não existir é tão grave quanto optar pela descrença
caso Deus exista, e precisamente pela mesma razão: porque em ambos os
casos a crença é falsa. A nossa melhor atenção cognitiva deve, assim, dirigir-
se para os argumentos a favor e contra a existência de Deus, porque é isso
que é decisivo; e sem argumentos suficientes para um ou outro lado, a opção
epistemicamente virtuosa é suspender o juízo e continuar a investigar.
James enfrenta outra dificuldade. Uma opção é forçosa quando não tomar
partido é, na prática, a mesma coisa que tomar partido. O problema é que não
é fácil encontrar casos neutros de opções forçosas. Um caso de uma opção
forçosa é alguém dar-nos um prazo de dois dias para decidir comprar ou não
uma casa, por exemplo. Mas estamos indecisos e deixamos passar o prazo. A
indecisão, neste caso, é equivalente à decisão de não comprar a casa. O
problema deste tipo de exemplos é que só se aplica ao Deus mesquinho
referido. Pois seria como se Deus nos desse nesta vida a oportunidade de
optar sem provas pela crença, acabando-se o prazo quando morremos. Pelo
contrário, um Deus razoável consideraria sensato que não decidíssemos tão
momentosa questão sem provas fortes; e se só na outra vida tais provas
surgissem, essa seria a altura para crer na sua existência.
Este tipo de argumento põe em causa frontalmente a ideia central do
fideísmo de que é virtuoso crer sem provas. O fideísta poderia rejeitar o
argumento por essa razão. Mas isto seria confundir as coisas. O argumento
conclui que não há virtude em crer sem provas, pois é isso mesmo que
estamos a discutir. Se o fideísta discorda desta conclusão, tem de mostrar o
que há de errado com o argumento apresentado, e não apenas insistir que esta
conclusão contraria a sua ideia de que é virtuoso crer sem provas.
Acresce que a ideia de que crer sem provas é virtuoso poderá ser uma
forma subtil de impor a crença religiosa, um pouco como jogar um jogo
viciado em que se sair caras ganho eu, se sair coroas perdes tu. Pois se
alguém declarar que algo existe, fica a dever-nos evidentemente algumas
provas, sobretudo se for algo momentoso e não uma trivialidade. Se essa
pessoa declarar que não tem provas, mas que é bom acreditar sem provas
nisso que ela diz que existe porque nessa circunstância coisas maravilhosas
irão acontecer-nos, está a trapacear-nos. O que lhe pedimos, muito
razoavelmente, foram provas. A sua resposta, muito insensatamente, foi uma
ameaça. Perante a incerteza da vida humana, sobretudo onde os níveis de
bem-estar são muitíssimo baixos (por falta de cuidados de saúde, protecção
no emprego, recursos económicos adequados, etc.), este género de resposta
torna a aposta de Pascal muito vívida: nada se tem a perder e pode-se ganhar
muito em crer sem provas. Mas o preço a pagar, como vimos, é uma
concepção de uma divindade brutal. Concepção que é difícil crer que uma
pessoa genuinamente boa e epistemicamente virtuosa possa aceitar.
Voltemos ao aspecto forçoso da opção quanto à crença na existência de
Deus. É iluminante pensar noutros casos em que a opção é forçosa. Por
exemplo, não sabemos se conseguiremos realmente salvar uma criança que
acaba de cair no rio; mas não decidir tentar é igual a decidir não tentar. Por
isso, a virtude exige que tentemos. Mas pensemos melhor no que está oculto
neste tipo de exemplo. Não seria uma exigência da virtude decidir tentar se
fosse impossível ou quase impossível salvá-la; e ainda menos se ao tentar
fosse inevitável ou quase inevitável que nós mesmos pereceríamos, privando
assim os nossos filhos do apoio que lhes devemos. Isto significa que quando
se pressupõe que crer ou não em Deus é uma opção forçosa é porque se aceita
duas coisas, e James só explicitou uma delas: aceita-se que a questão é
intelectualmente indecidível, mas aceita-se também que o preço por acreditar
não é demasiado elevado. Ora, não podemos em rigor pressupor que crer é
melhor, exista ou não Deus, do que não crer. Clifford argumenta que crer na
ausência de provas é sempre pior, porque contribui para a crendice, e a
crendice tem inevitavelmente, e a longo prazo, más consequências. Este
argumento, que é crucial para a posição de Clifford, nunca é enfrentado por
James, que se limita a pressupor que crer em Deus é sempre melhor do que
não crer.
James argumenta, com alguma plausibilidade inicial, que a posição de
Clifford nos afasta da verdade, por estar demasiado preocupado com o erro.
Compara Clifford a um general que, por querer provas cabais da vitória antes
de enviar as suas tropas, nunca ganha qualquer batalha, porque nunca envia
as suas tropas. A ideia é que por vezes é preciso aceitar o risco epistémico.
Clifford concorda com a ideia, mas rejeita que o risco epistémico implique
crença sem provas: apenas implica que, quando é necessário agir sem
certezas, devemos agir em função do que é mais provável.
O problema é que nada disto se aplica à crença em Deus. Esta crença não
é urgente: não temos de decidir, aqui e agora, crer ou não crer em Deus:
podemos perfeitamente continuar à procura. É o que fazemos com muitas
outras crenças momentosas: queremos saber o que poderá curar uma doença
grave, por exemplo, e é extremamente difícil decidir. Mas se pararmos de
tentar decidir porque consideramos virtuoso o risco epistémico de apostar
numa das hipóteses sem provas, não estamos a contribuir para a descoberta
da verdade, mas antes a dificultá-la. Se o que realmente nos interessa é saber
se Deus existe ou não, e isso qualquer crente terá de aceitar, a menos que
tenha uma concepção de tal modo subjectiva da crença que torne irrelevante a
existência de Deus, não é uma boa ideia decidir de antemão e sem provas que
existe. Se Deus realmente existir, acertámos na verdade por sorte apenas, o
que não constitui conhecimento — privámo-nos assim de conhecer uma
verdade de superlativa importância. Se não existir, fomos crédulos e
impedimos a descoberta de que não existe. Assim, a acusação central que
James faz a Clifford — que está tão preocupado em evitar o erro que não
permite acertar na verdade — aplica-se facilmente a James, que parece ter
pensado que tudo o que conta no que respeita à verdade é acertar nela, ainda
que por acaso, e não conhecê-la.

Racionalidade distribuída
A objecção de Plantinga a Clifford é uma objecção geral a qualquer posição
indiciarista. Consiste em defender que, pelo próprio critério indiciarista, não
devemos acreditar em coisa alguma sem provas; mas não há provas de que o
indiciarismo seja verdadeiro; logo, não devemos acreditar no indiciarismo.
Esta objecção depende, contudo, de uma concepção muito rígida de
prova, concepção que o próprio Clifford não defendia. Certamente que
Clifford não pensava que o único género de provas eram provas matemáticas
ou científicas. Em muitas matérias, prova-se ideias argumentando, e os
argumentos podem ser muito complexos. Aquilo a que Clifford claramente se
opunha era a crença sem provas, sem quaisquer razões, só porque se decide
arriscar acreditar.
Quando perguntamos se a fé é aceitável na ausência de provas, o termo
«aceitável», neste contexto, quer dizer «epistemicamente legítimo». Esta
expressão é melhor do que «prova», que tem um significado demasiado
restrito. Mas não é fácil saber o que é epistemicamente legítimo e o que o não
é. Para esclarecer este conceito, podemos recorrer a alguns paradigmas de
atitudes epistemicamente legítimas e ilegítimas.
Antes, porém, é importante fazer notar que é argumentável que nem tudo
o que é epistemicamente ilegítimo ou incorrecto é moralmente ilegítimo ou
incorrecto. Sem dúvida que há alguma conexão entre os dois conceitos; em
alguns casos, uma atitude pode ser moralmente incorrecta precisamente por
ser epistemicamente incorrecta; Clifford, todavia, ou confundia ambos os
conceitos ou estabelecia entre ambos uma conexão excessivamente forte. O
argumento de Clifford a favor da ideia de que é sempre moralmente
incorrecto acreditar em algo sem provas é que, mesmo no caso de uma crença
trivial e meramente pessoal, o facto de se acreditar sem provas torna-nos
crédulos e isso acabará por ter efeitos moralmente maus. Isto é um exagero: é
fácil pensar em contextos em que ser crédulo não terá quaisquer
consequências para a humanidade em geral: numa pequena ilha, um ancião
doente alimenta a crença injustificada de que os seus companheiros serão
salvos, mas nada lhes diz e morre pacificamente. O máximo que se pode
defender é que na maior parte dos contextos é uma má ideia criar hábitos de
credulidade, em vez de hábitos de análise cuidadosa das coisas, porque as
consequências, directas ou indirectas, a curto ou longo prazo, são quase
sempre desastrosas.
Por outro lado, podemos considerar que os deveres epistémicos —
procurar honestamente a verdade, não ser tendencioso, etc. — são casos
especiais de deveres morais. Neste caso, é verdadeiro que qualquer violação
de um dever epistémico é, eo ipso, a violação de um dever moral. Mas isto é
um pouco enganador, pois quer apenas dizer que descurar um dever
epistémico é descurar um dever moral: não quer dizer que, ao fazê-lo,
descuramos um dever moral de outra categoria. Por isso, é menos enganador
falar apenas do que é epistemicamente legítimo ou não, em vez de usar a
linguagem de Clifford, na qual não atender aos indícios é moralmente
incorrecto.
Voltemos ao esclarecimento do que é epistemicamente legítimo e
ilegítimo, recorrendo a exemplos claros de ambos. Começando pelo último
caso, é claramente ilegítimo rejeitar quaisquer argumentos contra uma dada
posição, ao mesmo tempo que se aceita o mesmo género de argumentos a
favor dela. Este tipo de ilegitimidade epistémica ocorre quando uma pessoa
põe em causa a ciência ou a lógica, por exemplo, quando estas parecem
militar contra as suas crenças mais queridas, ao mesmo tempo que abraça
ambas calorosamente quando parecem militar a seu favor. Esta arbitrariedade
é claramente ilegítima, epistemicamente, ainda que não consigamos
estabelecer condições necessárias e suficientes do que é uma atitude
epistemicamente legítima. Se uma pessoa considerar que acreditar sem
provas só é epistemicamente legítimo no caso da crença religiosa, há alguma
probabilidade de não ser epistemicamente virtuosa. James, note-se, apresenta
critérios suficientemente gerais que tornariam epistemicamente legítimo ter
qualquer crença, religiosa ou não, sem provas. (A dificuldade, como vimos, é
que em todos os casos não religiosos a crença sem provas só é legítima
quando crer tem uma conexão causal com um resultado desejável, coisa que
não há razões para pensar que ocorre no caso da crença religiosa.)
Quanto à legitimidade epistémica, esta parece manifestar-se mais
claramente quando alguém muda de ideias por se deparar com razões
adequadas para isso: por exemplo, o João pensava que a Francisca tinha ido
ao cinema, mas ao chegar a casa encontra-a lá e muda por isso de ideias.
Contudo, nem toda a mudança de ideias é epistemicamente legítima: só o
é quando há razões adequadas para isso. Uma pessoa que acreditava em Deus
e deixa de acreditar só porque assistiu a uma palestra de uma hora sobre o
tema poderá não ser epistemicamente virtuosa, mas antes viciosa — neste
caso, por ser leviana.
Assim, o problema é saber o que são «razões adequadas» para mudar de
ideias. No caso do João, a razão adequada é ter visto a Francisca em casa;
mas a visão só em certos casos é fidedigna. Na seguinte imagem, por
exemplo, a segunda linha parece maior do que a primeira, mas ambas têm o
mesmo comprimento:

Assim, nem sempre a simples visão nos dá razões adequadas para acreditar
no que vemos: nos sonhos, também nos parece que vemos muitas coisas, mas
essas coisas podem não existir. Distinguir as condições em que os dados dos
sentidos são fidedignos dos casos em que não o são é por isso crucial.
A tentação a evitar aqui é pensar como os cépticos, que negam a
possibilidade do conhecimento genuíno. Uma maneira de argumentar a favor
do cepticismo é que as ilusões cognitivas, como as visuais, são recorrentes e
não temos um modo de ter a certeza, perante uma dada crença ou percepção,
se é uma ilusão ou não.
A primeira crítica a fazer ao argumento céptico é que o conceito de
certeza é epistemicamente irrelevante e confuso. O conceito de certeza pode
ser entendido de duas maneiras. Por um lado, podemos conceber a certeza
meramente como uma forte convicção. Neste caso, a certeza é irrelevante
para o que está em causa, porque se podemos estar enganados quando vemos,
também podemos estar enganados quando temos uma forte convicção de que
não estamos enganados quando vemos. É argumentável que, nesta acepção, a
certeza é apenas mais um nível de ilusão epistémica — como se a forte
convicção fosse garantia de que não estamos enganados.
Outra maneira de conceber a certeza é pensar que se trata de estar certo,
no sentido de acertar. Nesta acepção de certeza, por definição, quando se tem
a certeza de algo, é porque se acertou na verdade. Mas nesta acepção
podemos sempre estar enganados: quando pensamos que acertámos, podemos
não ter acertado.
Assim, seja a certeza concebida do primeiro modo ou do segundo, é
irrelevante para a discussão em causa. Parece relevante, porque se confunde e
mistura os dois sentidos: como se acertar implicasse uma convicção mais
forte, e como se esta implicasse acertar. Mas isto é falso: na melhor das
hipóteses, uma convicção mais forte, que se mantém depois de uma
investigação cuidadosa, está correlacionada com maior probabilidade de se
ter acertado, o que é muito diferente de implicar que se acertou.
Seja qual for a concepção de legitimidade epistémica que tenhamos, a
mera certeza não parece relevante: podemos ter a certeza por sermos
casmurros, por exemplo, defendendo firmemente uma ideia contra a qual há
excelentes indícios ou argumentos. Também a mera possibilidade de
estarmos enganados, explorada pelo céptico, não parece relevante para a
ilegitimidade epistémica: do facto de podermos estar enganados não se segue
que estamos enganados, e do facto de não se poder garantir que não estamos
enganados não se segue que qualquer maneira de investigar as coisas e de
formar crenças tem o mesmo grau de legitimidade epistémica.
Não parece haver receitas automáticas para determinar quando um dado
processo de formação de crenças é epistemicamente legítimo, e este é um dos
problemas centrais da epistemologia da fé. Quem defende o indiciarismo,
como Clifford, tende a pensar que nenhuma crença é epistemicamente
legítima sem provas, incluindo as crenças religiosas, porque tem em mente o
género de processo de estabelecimento de verdades que se usa em medicina,
física, biologia, matemática, etc. Quem defende a posição contrária tem em
mente os processos mais quotidianos de formação de crenças, que incluem
coisas como a experiência pessoal, a tradição e a confiança nos outros, além
do poder motivador das crenças.
O indiciarismo está por vezes associado a uma certa ingenuidade
epistémica. A essa ingenuidade epistémica podemos chamar o mito do
investigador solitário. Esta ingenuidade epistémica dá origem a uma versão
infantil de indiciarismo, que é fácil refutar: a ideia de que cada um de nós só
tem legitimidade epistémica para aceitar o que nós mesmos somos capaz de
provar. Muitos crentes consideram, com razão, que esta posição é
insustentável, além de algo cega.
Para ver porquê, considere-se o memorável ensaio de George Orwell, de
1946, em que ele se pergunta «Como sei que a terra é redonda?».
Rapidamente nos apercebemos que só por testemunho sabemos que a Terra é
esférica, ou que a água é H2O: os professores ou cientistas escreveram isso
ou disseram isso, e nós acreditamos. Não só não temos provas directas dessas
coisas, como a maior parte de nós não saberia estabelecer tais coisas, mesmo
que tivéssemos os meios para isso: eu, por exemplo, não saberia estabelecer
que a água é H2O, mesmo que tivesse acesso a um laboratório de química. E,
apesar de poder viajar num avião ou outro meio de transporte para poder ver
directamente que a Terra é esférica, não saberia dizer se o que me pareceria
visualmente evidente não ficaria a dever-se a alguma ilusão perceptiva, dado
que neste caso eu estaria muito afastado do meu ambiente perceptivo comum.
Estas considerações parecem militar contra Clifford, mas a sua posição é
mais sofisticada do que isso. Na segunda parte do seu ensaio, Clifford aborda
explicitamente o que acontece quando temos de nos apoiar em terceiros para
justificar as nossas crenças. Este problema torna-se mais vívido se
compararmos estes dois casos: no primeiro, a Josefa vem do supermercado e
diz ao marido: «Afinal, não havia leite, esgotou-se»; no segundo, a Marília
vem também do supermercado e diz ao marido «Afinal, não havia leite;
vieram uns extraterrestres e levaram-no todo». No primeiro caso, o marido
aceita o testemunho da Josefa, sem mais perguntas, e será capaz de dizer com
toda a segurança a outra pessoa, alguns minutos depois, que não há leite no
supermercado porque se esgotou. Mas, no segundo, o marido da Marília fica
estupefacto e começa imediatamente a fazer perguntas; muitas perguntas.
Qual é a diferença?
No primeiro caso, o testemunho da Josefa é banal; no segundo, não é
banal. Aceitamos informações banais por testemunho, sem mais perguntas;
mas quando o testemunho transmite supostas informações que não são
banais, queremos razões mais fortes do que a mera confiança na pessoa.
Neste último caso, queremos algumas razões para pensar que a pessoa não
está a enganar-nos; ou que não se enganou ela, sendo vítima de uma ilusão. O
caso caricatural mais óbvio que esclarece o que está em causa é o seguinte:
passamos na rua e perguntamos as horas a alguém, e confiamos na resposta;
mas perguntamos a essa mesma pessoa se há extraterrestres e, seja a resposta
afirmativa ou não, não confiamos na resposta. Porquê? Clifford viu porquê:
porque num caso a pessoa está a dizer-nos algo que nós próprios sabemos
como podemos saber; no outro, está a dizer-nos algo que nós mesmos não
sabemos como poderíamos saber. Acreditar no testemunho de alguém que
afirma saber algo que não fazemos ideia como nós mesmos poderíamos saber
é credulidade; e, claro, a credulidade é mais tentadora quando o que essa
pessoa nos diz é o que queremos ouvir.
Contudo, não é num certo sentido verdadeiro que muitos de nós não
fazem ideia como seria possível descobrir a composição química da água? No
entanto, confiamos no testemunho dos cientistas. Será isso credulidade? Se
não o for, por que razão seria credulidade acreditar num profeta que afirma
ter tido contacto directo com uma divindade?
Há duas respostas a este desafio. Primeiro, o género de experiência em
causa é muitíssimo diferente. Num caso, trata-se apenas de estudar química, e
isso não exige quaisquer capacidades especiais da nossa parte. Quem estuda
química tem um acesso privilegiado à verdade, mas apenas num sentido
fraco: no mesmo sentido em que se eu estiver a ver uma árvore e a outra
pessoa não, eu tenho um acesso privilegiado à árvore — mas a outra pessoa
teria exactamente o mesmo acesso caso estivesse na minha situação, vendo a
árvore. Contudo, no que respeita a subir a uma montanha e ouvir a palavra de
Deus, as coisas são muito diferentes: não basta subir e ficar à espera. Milhões
de pessoas podem fazer isso e nenhuma voz ouvir. Quem ouve tais vozes tem
um acesso privilegiado à intimidade dos deuses, acesso que os outros não
têm.
Assim, a primeira resposta é que seremos crédulos se acreditarmos num
testemunho que pressupõe que a outra pessoa tem um acesso privilegiado à
verdade, no sentido forte. Isto é credulidade porque a pessoa poderá ser
vítima de alucinação, ainda que seja sincera; ou poderá estar a mentir, por
qualquer motivo. Acresce que qualquer pessoa que pense ouvir a voz de uma
divindade terá pelo menos de levantar a hipótese de estar a ser vítima de
ilusão, se for epistemicamente virtuosa, tal como olhamos com estupefacção
quando vemos coisas incomuns — uma mulher a ser aparentemente serrada
ao meio, num circo, e que, no entanto, continua a mexer os pés no outro lado
da caixa. O que poderá fazer-nos aceitar prontamente a nossa experiência
religiosa, sem um exame cuidadoso, ao mesmo tempo que não aceitamos a
nossa experiência visual de ver uma mulher ser serrada ao meio e sobreviver,
é a credulidade: a vontade de acreditar no que gostaríamos que fosse
verdadeiro.
Um antídoto à credulidade é o seguinte: quanto mais gostaríamos que
algo fosse verdadeiro, mais razões temos para ver cuidadosamente se é
mesmo verdadeiro, ou se estamos a enganar-nos a nós mesmos,
nomeadamente por sermos vítimas da superstição comum de que acreditar
em algo muito firmemente contribui para a sua verdade, ainda que nenhuma
relação causal exista entre uma coisa e outra. Rejeitar este princípio é
incompatível com a virtude epistémica.
A segunda resposta é que a estrutura epistémica da comunidade em causa
é crucial. Tenho razões para aceitar as afirmações de um cientista, afirmações
que pessoalmente não posso testar, se as próprias instituições científicas
tiverem uma estrutura epistémica adequada. Essa estrutura epistémica
resume-se na máxima de John Stuart Mill:

«As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia
sobre a qual assentar, senão um convite permanente ao mundo inteiro
para provar que carecem de fundamento» (Sobre a Liberdade, 1859,
p. 58).

Dada a falibilidade humana, precisamos de testar cuidadosa e


permanentemente as nossas crenças — todas elas. Quando as instituições têm
este género de estrutura epistémica, convidando o mundo inteiro,
permanentemente, a provar que as suas afirmações carecem de fundamento,
dão-nos razões para aceitá-las. Isto porque torna menos provável que
resultem da ilusão ou da mentira, pois se podem ser continuamente postas em
causa e discutidas abertamente, é mais provável que as ilusões e os erros
sejam detectados. Não significa, contudo, que tais afirmações são imutáveis:
na verdade, no caso das instituições científicas, é o próprio facto de terem
permitido ao longo do tempo a revisão das crenças científicas fundamentais
que nos dá razão para aceitar as afirmações científicas actuais — porque
quando houver boas razões para pensar que são falsas, essas razões serão
difundidas e discutidas e assumir-se-á que são falsas.
Note-se que isto não significa que os membros dessas instituições sejam
tão abertos à discussão quanto seria desejável. Alguns poderão não o ser; mas
isso é irrelevante se outros o forem e se estes não forem impedidos de
apresentar as suas ideias discordantes. Analogamente, numa instituição que
não permite a crítica aberta, alguns dos seus membros podem ser-lhe
favoráveis — mas isso não torna as afirmações dessa instituição dignas de
crédito. Só o serão se as vozes discordantes não forem silenciadas, mas antes
acolhidas, levadas a sério e frontalmente discutidas.
Assim, a nossa estrutura epistémica é eminentemente social não apenas
no sentido trivial de que só em conjunto sabemos o que nenhum de nós sabe
isoladamente: não se trata apenas de precisarmos de vários cérebros para
armazenar quantidades gigantescas de informação, como quem precisa de
vários armazéns de fruta. A nossa estrutura epistémica é eminentemente
social no sentido mais profundo de precisarmos de vários olhares críticos
para diminuir a probabilidade de sermos vítimas de erro e ilusão — diminuir,
note-se, e não eliminar. Em seres falíveis, dificilmente haverá maneiras de
eliminar o erro e a ilusão. Mas se tentarmos activamente encontrar os erros e
ilusões uns dos outros, teremos mais probabilidades de os descobrir.
Mesmo intuitivamente, sem qualquer discussão epistemológica sobre as
consequências da nossa óbvia falibilidade, damos bastante importância ao
controlo social dos erros. Isto é bom, por um lado, mas mau, por outro. É
bom porque nos faz dar muita importância ao que as outras pessoas afirmam;
e se o que eles afirmam colide com o que nos parece que é verdade,
desconfiamos que poderemos ter errado. Mas também é mau porque uma
crença amplamente partilhada socialmente pode estar apesar de tudo errada,
tendo razão o ser humano isolado que contraria o que todos os outros
aceitam. Comecemos com o primeiro caso.
Imagine-se que, sem a Josefa saber, uma equipa de psicólogos decide
fazer uma experiência com ela. Falam com as pessoas do escritório de
advogados onde trabalha e, na hora do almoço, transformam o escritório num
consultório de dentista. Quando ela chega do almoço, entra no prédio, entra
no elevador e carrega no número 5. Chegado ao andar correcto, entra no seu
escritório e fica perplexa: não vê o que esperava ver, mas sim um consultório
desconhecido de dentista. A sua primeira reacção será provavelmente duvidar
de que esteja no andar correcto. Isso parece-lhe mais provável, e é, do que a
hipótese doida de o escritório onde trabalha há mais de cinco anos ter
desaparecido durante a hora do almoço. De modo que sai do consultório e
volta ao elevador. Para seu espanto, está mesmo no quinto andar. Agora as
coisas começam a ficar mais estranhas para ela. O que poderá haver de
errado? Fica ligeiramente desorientada: poderão todas as suas memórias de
que trabalha naquele prédio estar erradas? Será que está a enlouquecer?
Um pouco desorientada, considera então que poderá ter-se enganado no
prédio. Entra no elevador, chega ao rés-do-chão e sai do prédio. O resultado é
assustador: é realmente aquele o prédio em que ela trabalha. Pelo menos,
tanto quanto se recorda. Muito provavelmente, a Josefa voltará a entrar no
elevador, porque duvida agora de que tenha realmente estado ao quinto piso,
apesar de o ter verificado há menos de cinco minutos. Irá de novo ao quinto
piso e, ao ver uma vez mais o estranho consultório de dentista, começará a
duvidar de que o seu escritório de advogados esteja afinal no quinto andar.
Não seria antes no 15.º?
O significado desta história é que o nosso contexto epistémico quotidiano
é feito de controlos e ajustes. Isso inclui não apenas a observação directa das
coisas, mas também as informações que os outros nos transmitem. Em
nenhuma acreditamos em absoluto; a todas damos algum crédito. Quando
vemos algo à nossa frente, em certas condições, acreditamos que aquilo está
mesmo ali. Quando vemos uma mulher a ser serrada num número de circo,
contudo, não acreditamos que está a ser serrada. Quando falamos com as
pessoas, acreditamos à partida no que nos dizem; mas muitas vezes pensamos
que têm razões para nos mentir, ou que estão enganadas. Quando nos
lembramos de coisas, como o andar em que trabalhamos há cinco anos,
acreditamos na nossa memória; mas por vezes temos razões para duvidar
dela. Quando ouvimos vozes, acreditamos geralmente que algumas pessoas
estão do outro lado a conversar; mas desconfiamos que podemos estar a ficar
esquizofrénicos se ouvirmos vozes num deserto ou noutro lugar sem pessoas
à nossa volta.
A ciência e a filosofia nada fazem de extraordinário excepto alargar esta
prática epistémica de controlos e ajustes a questões que são mais difíceis de
conhecer. Mas o princípio geral é o mesmo: avanços e recuos, controlos e
ajustes. Nem crendice nem cepticismo, mas algo no meio: estudar
pacientemente as coisas, formular hipóteses, testar ideias e argumentos. Leva-
se a sério o que nos diz um colega cientista, mas precisamos conseguir
reproduzir a experiência que diz ter feito ontem e ter dado um resultado
extraordinário; precisamos ver o que poderá ter corrido mal, onde poderá
esconder-se uma ilusão. Se o resultado é bom de mais para ser verdadeiro, é
provável que seja realmente bom de mais para ser verdadeiro — e somos
tanto mais rigorosos nos testes que fazemos e exigimos.
Passemos agora para o segundo caso. As pessoas mentem e enganam-se.
Mas se forem erros epistemicamente comuns, as outras pessoas irão ter a
ilusão de estar a confirmá-los, precisamente por serem comuns. Sem estudar
cuidadosamente astronomia, nenhum ser humano tem razões directas e
óbvias para pensar que a Terra se move, ou que é esférica. E terá uma razão
acrescida para pensar que está imóvel: todas as outras pessoas à sua volta
pensam o mesmo. Parece improvável que todas estejam erradas, ainda que o
estejam de facto. Nessa circunstância, não é óbvio que seja epistemicamente
vicioso um ser humano crer que a Terra está imóvel e que não é esférica, mas
antes plana, ainda que tais crenças sejam falsas.
Se aceitarmos isto, teremos de aceitar a tese de Plantinga: em certos
contextos é epistemicamente legítimo acreditar em Deus sem provas — ou
melhor, sem provas cabais. Na realidade, haverá nesse contexto o mesmo
género de provas não cabais que temos para acreditar que a Terra é plana e
está imóvel: todas as pessoas à nossa volta acreditam em Deus e podemos ter
experiências religiosas ao contemplar a natureza ou ao ler livros sagrados. É
o que acontece a uma criança de doze anos, por exemplo, que cresceu numa
comunidade de adoradores do deus Rá. Todas as pessoas à sua volta
acreditam nessa divindade e ela sente uma comunhão com Rá em certas
circunstâncias. Quando lê os textos sagrados, sente certas emoções que
interpreta como um contacto com Rá. Ninguém na sua comunidade põe em
causa a existência nem as intervenções milagrosas de Rá. Ela acredita em Rá,
e a sua crença não parece epistemicamente ilegítima.

Diversidade epistémica
As considerações da secção anterior dão uma imagem da legitimidade
epistémica muito diferente do que por vezes se pensa. A ideia de que somos
agentes epistémicos sociais e de que estamos continuamente a fazer controlos
e ajustes nas nossas crenças colide com um ponto de vista comum, na história
da filosofia, no que respeita à justificação última das nossas crenças. Esse
ponto de vista tradicional tem a designação de fundacionalismo. A ideia é que
as nossas crenças só têm justificação, na sua maioria, porque se baseiam
noutras, das quais são inferidas. Assim, acreditamos que não nascemos
ontem, por exemplo, porque nos lembramos de existir há vários anos.
Portanto, a crença de que não nascemos ontem baseia-se noutras crenças.
Mas nem todas as crenças poderão basear-se noutras, sob pena de regressão
infinita; logo, algumas crenças são básicas: crenças que não se baseiam
noutras.
Às crenças básicas que são epistemicamente legítimas chama-se crenças
apropriadamente básicas. Determinar que crenças são apropriadamente
básicas é o que o fundacionalista terá de fazer. Quando o fundacionalista
considera que essas crenças básicas não incluem senão crenças empíricas, é
um empirista; quando considera que só incluem crenças que não são
empíricas, é um racionalista.
O fundacionalismo é um ponto de vista muito natural. E parece
particularmente apelativo a quem tem uma mentalidade científica. Neste
caso, a ideia é que as crenças apropriadamente básicas serão perceptivas. A
ciência é então vista como um desenvolvimento de teorias que se baseiam em
crenças perceptivas apropriadamente básicas. Suspeita-se que poderá haver
algo de errado nesta ideia quando consideramos que a agricultura empírica,
pré-científica, se baseia em crenças perceptivas básicas, mas não tem o poder
explicativo nem o grau de sofisticação e precisão que permita afirmar que é
científica. Um agricultor empírico sabe como cultivar um terreno, mas não
sabe explicar por que razão fazendo as coisas de uma maneira tudo corre
bem, mas tudo corre mal se fizermos de outra. Um agricultor científico sabe
explicar, pelo menos parcialmente, por que razão as coisas funcionam de uma
maneira e de outra não.
O que faz a diferença é que a agricultura científica resulta de se testar
explicitamente ideias diferentes e de se procurar activamente explicações
melhores, ao passo que a agricultura empírica consiste quase exclusivamente
na aceitação do que a tradição nos ensinou a fazer, e no que podemos ver sem
recorrer à observação sistemática nem a testes e controlos explícitos. Assim,
o que parece crucial é o carácter activo e temporal dos nossos procedimentos
epistémicos, num caso, e passivo e atemporal, no outro. O que parece crucial
não é, então, o carácter apropriadamente básico das crenças de partida, nem o
seu carácter observacional, mas antes a atitude activa de procurar controlos e
ajustes, ao longo do tempo.
Se rejeitarmos o fundacionalismo, contudo, não teremos de dizer que a
estrutura das nossas crenças é viciosamente circular? Afinal, se não há
crenças apropriadamente básicas com base nas quais estabelecemos as outras,
o que estabelece a verdade de uma crença? Chama-se coerentista à ideia de
que as nossas crenças podem justificar-se entre si sem que tal círculo seja
vicioso. Na teoria coerentista pode-se aceitar que algumas crenças são mais
básicas ou elementares do que outras; mas nega-se que existam crenças
rigorosamente básicas, com base nas quais todas as outras se justifiquem.
O caso da Josefa, acima, ajuda a compreender o coerentismo: em alguns
contextos, confiamos na nossa memória; noutros, pomos a memória em
causa. Há uma dialéctica contínua entre o que está em causa, o contexto em
que estamos e muitas outras crenças relacionadas com o que está em causa.
Quotidianamente, não parece sensato pôr em causa que a Terra está imóvel;
mas a continuação do nosso estudo da natureza pode fazer-nos rever esta
crença. Para o fazermos, contudo, teremos de ter um conjunto de outras
crenças que julgamos mais sólidas do que essa: podemos rever qualquer
crença, mas não as revemos todas ao mesmo tempo nem à toa, sem ter em
consideração as outras crenças relacionadas. E este processo de rever crenças
é contínuo, decorrendo ao longo do tempo.
Porque somos falíveis, a virtude epistémica exige que estejamos dispostos
a pôr em causa as nossas crenças, incluindo as mais queridas. E é difícil
imaginar contextos epistémicos nos quais a falibilidade humana não seja
evidente. Contudo, em muitos contextos epistémicos, a falibilidade humana é
objecto de ocultação, fingindo-se que certas pessoas ou instituições são
infalíveis, sendo impróprio e até ofensivo e blasfemo pôr em causa o que
essas pessoas e instituições afirmam. Se levarmos a sério a falibilidade
humana, um agente terá tanto menos legitimidade epistémica para aceitar o
que afirma um grupo de pessoas quanto mais essas pessoas procuram impedir
que as suas afirmações sejam postas em causa. E, em muitos casos, basta que
nos perguntemos se as pessoas que afirmam algo não poderão estar
enganadas para destruir a aparência de autoridade epistémica que fingem
deter.
Considere-se o Adelino. Vive numa comunidade tradicional, sem
conhecimentos científicos. Não faz a mínima ideia sobre a constituição da
água, nem sobre a natureza do Sol. Ignora que a Terra não está imóvel, e
parece-lhe óbvio que está imóvel. Mas mesmo ele sabe que somos falíveis,
pois muitas vezes lhe parecia ver ao longe alguém, quando afinal era só uma
árvore; ou parece recordar-se de ter visto uma árvore num dado lugar, e
depois descobre que afinal estava noutro. Além disso, vê que o mesmo ocorre
com as outras pessoas da sua comunidade. Por isso, se reflectir
cuidadosamente, verá que não é só ele que não tem realmente razões de muito
peso para pensar que a Terra está imóvel: ninguém na sua comunidade as
tem. Com respeito a uma crença inócua como esta, o Adelino talvez esteja
disposto a abandoná-la, se com o decorrer do tempo começar a ter razões para
pensar que é falsa. E se não estiver disposto a isso, será epistemicamente
vicioso.
Se considerarmos agora o género de interlocutor que Clifford tem em
mente, vemos muitas diferenças. Clifford fala para ingleses do séc. XIX.
Nesta altura, muitas crenças tradicionais foram postas em causa, à medida
que os estudos cada vez mais complexos prosseguiam. Neste contexto
epistémico, já não é verdadeiro que toda a gente pensa que Deus existe, por
exemplo. Neste contexto, muitos estudiosos declaram-se descrentes. Neste
contexto, nenhum Adelino, educado na fé cristã, pode ficar indiferente
perante a hipótese de estar enganado quando pensa que a divindade cristã
existe; e se o ficar, é porque não é epistemicamente virtuoso.
O primeiro resultado desta análise é que aceitar a tese de Plantinga tem
consequências menos fortes do que se poderia pensar. Tudo o que Plantinga
defende é que em certos contextos é epistemicamente legítimo crer em Deus
sem provas. Mas não mostra que é epistemicamente legítimo crer em Deus
sem provas num contexto em que muitos outros agentes epistémicos põem a
existência de Deus em causa. Só conseguiria mostrar isso se conseguisse
mostrar que as crenças ateias não devem ser tidas em conta pelos crentes, por
qualquer razão. Mas que razão poderemos invocar?
Podemos defender que falta aos descrentes uma faculdade especial, o
sensus divinitatis; ou que esta faculdade foi corrompida pelo pecado. O
problema de qualquer uma destas ideias é não ser mais evidentemente
verdadeira do que a hipótese de que são as pessoas crentes que são vítimas de
ilusão, ou que são epistemicamente viciosas, crendo ser verdadeiro o que lhes
dá jeito crer que é verdadeiro.
Esta será outra discussão; para já, importa apenas mostrar o papel da
diversidade e da tolerância na nossa estrutura epistémica. A diversidade de
pontos de vista é uma ameaça a sistemas de crenças que se protegem
precisamente porque as pessoas que têm essas crenças desconfiam que são
falsas, mas gostariam que fossem verdadeiras. É difícil conceber qualquer
virtude epistémica nesta atitude. Trata-se tão-somente de evitar o incómodo
de ter de mudar de ideias. Quem crê sinceramente que as suas ideias são
verdadeiras não pode sentir-se assustado quando alguém as põe em causa. E
quem ao mesmo tempo crê na sua óbvia falibilidade epistémica, quererá pô-
las em causa, pois se não resistirem ao exame crítico é porque são
provavelmente falsas e devem ser abandonadas.
A diversidade epistémica é por isso saudável, e terá de ser acolhida com
agrado por quem for epistemicamente virtuoso. Cada um de nós pode pôr em
causa as ideias em que acredita, mas a melhor pessoa para o fazer é o nosso
semelhante que desde o início não acredita nessas ideias. Assim, qualquer
crente epistemicamente virtuoso acolhe com agrado os descrentes que
argumentam contra a sua fé; e qualquer descrente epistemicamente virtuoso
acolhe com agrado os crentes que argumentam a favor da fé. O valor
epistémico da diversidade de opiniões é permitir que as ideias mais díspares
sejam defendidas por quem genuinamente acredita nelas. E o primeiro sinal
de vício epistémico é a falta de tolerância, que se revela na vontade de
eliminar ou silenciar quem pensa de maneira diferente de nós, ou na
manipulação da discussão, tornando-a um exercício performativo que visa
cativar e seduzir, e não descobrir a verdade e detectar o erro.
Admitindo que James e Plantinga conseguem resolver as dificuldades
discutidas, o que se segue da aceitação das suas posições é a legitimidade
epistémica de crer sem provas; não se segue das suas posições a legitimidade
de crer com imensa convicção sem provas. Se considerarmos que crer com
imensa convicção é constitutivo da fé, então nenhum destes dois filósofos foi
bem-sucedido em defender a legitimidade epistémica da fé sem provas.

Conclusão
Ambrose Bierce (1842–1914) definiu a fé como «Crença sem indícios no que
diz quem fala sem conhecimento de coisas sem paralelo».1 Esta humorística
definição caracteriza bem a atitude de muitos descrentes, que consideram por
vezes a fé um paradigma de vício epistémico. Muitos crentes, por sua vez,
consideram que esta atitude é insensível a realidades mais importantes e
profundas, incluindo os aspectos vivenciais de quem tem uma vida e atitude
religiosa. O exame preliminar aqui realizado de algumas ideias e conceitos
centrais desta área poderá ajudar crentes e descrentes a discutir melhor o
tema. Outro não era o objectivo.
The Devil’s Dictionary, 1906. Há uma tradução portuguesa, na Tinta da
China.
2. A ética da crença
W. K. Clifford

I. O dever de investigar
Um armador preparava-se para enviar para o mar um navio com emigrantes.
Sabia que o navio estava velho e tinha defeitos de construção; que conhecera
já muitos mares e climas e teve de ser reparado muito mais de uma vez.
Alguém sugeriu ao armador que o navio talvez não estivesse em condições de
navegar. Estas dúvidas pesavam-lhe na consciência e deixavam-no infeliz;
pensou que talvez devesse mandar inspeccionar e renovar completamente o
navio, embora isto provavelmente ficasse bastante caro. Antes de o navio
zarpar, contudo, o armador conseguiu deixar para trás estes pensamentos
melancólicos. Disse para consigo que o navio enfrentara com êxito tantas
viagens e resistira a tantas tempestades que não havia razão para supor que
não regressaria ileso também desta viagem. O armador confiaria na
providência, que seguramente não deixaria de proteger todas aquelas infelizes
famílias que abandonavam a pátria em busca de uma vida melhor alhures.
Silenciaria todas as dúvidas mesquinhas acerca da honestidade dos
construtores e dos empreiteiros. Assim, alcançou uma certeza sincera e
confortável de que o seu navio era completamente seguro e estava em
condições de navegar; viu-o partir com despreocupação e desejos caridosos
de que os exilados fossem bem-sucedidos no novo e estranho lar que os
esperava; e recebeu o dinheiro do seguro quando o navio se afundou em
pleno mar sem deixar rasto.
O que diremos do armador? Seguramente, que é muitíssimo culpado pela
morte daqueles homens. Admitindo-se que acreditava sinceramente no bom
estado do seu navio, a sinceridade da sua convicção, porém, não lhe pode
valer de maneira alguma, porque não tinha o direito de acreditar com base
nos indícios de que dispunha. Não adquiriu a sua crença por mérito honesto,
através da investigação paciente, mas silenciando as suas dúvidas. E embora
no final a sua certeza sobre o assunto fosse porventura tão grande que não era
capaz de pensar de outra maneira, temos de o considerar responsável pelo
sucedido, na medida em que se colocou deliberada e voluntariamente naquele
estado de espírito.
Alteremos um pouco a história e suponhamos que o navio não estava,
afinal, em mau estado; suponhamos que fez a viagem em segurança, e muitas
outras viagens após aquela. Será que isso diminui a culpa do seu proprietário?
Nem um pouco. Quando se pratica uma acção uma vez, esta é correcta ou
incorrecta para sempre; nenhuma falha acidental das suas boas ou más
consequências pode alterar isso. O homem não seria inocente; apenas não
teria sido descoberto. A questão do correcto e do incorrecto tem a ver com a
origem da crença do armador, e não com o seu conteúdo; não é a crença que
conta, mas o modo como a adoptou; não se trata de a crença ser afinal
verdadeira ou falsa, mas de o armador ter ou não o direito a acreditar com
base nos indícios de que dispunha.
Era uma vez uma ilha onde alguns dos habitantes seguiam uma religião
que não pregava a doutrina do pegado original nem a doutrina do castigo
eterno. Espalhou-se a suspeita de que os seguidores desta religião se tinham
servido de meios desonestos para ensinar as suas doutrinas às crianças.
Acusaram-nos de violar as leis do país de maneira a afastar as crianças da
vigilância de quem tinha a sua custódia natural e legal; e até de as roubar e
manter escondidas dos amigos e familiares. Algumas pessoas formaram uma
associação com o objectivo de provocar a agitação do público a respeito deste
assunto. Publicaram acusações graves contra cidadãos individuais do mais
elevado estatuto e reputação, e fizeram tudo o que estava em seu poder para
lesar estes cidadãos no exercício das suas profissões. Fizeram tamanho
barulho que foi nomeada uma comissão para investigar os factos; mas após a
comissão ter averiguado cuidadosamente todos os indícios que se podia obter,
parecia que os acusados estavam inocentes. Não só foram acusados com base
em indícios insuficientes, como os indícios da sua inocência eram tais que os
agitadores os podiam ter facilmente obtido, se tivessem procurado fazer uma
investigação imparcial. Após estas revelações, os habitantes daquele país
passaram a encarar os membros da associação agitadora não só como pessoas
em cujo discernimento não se devia confiar, mas também como indivíduos
que não mais podiam considerar honestos. Pois embora acreditassem sincera
e diligentemente nas acusações que fizeram, não tinham todavia o direito de
acreditar com base nos indícios de que dispunham. As suas convicções
sinceras, em vez de merecidas pela investigação paciente, foram roubadas,
dando ouvidos à voz do preconceito e da paixão.
Introduzamos uma variação também neste caso e suponhamos, deixando
o resto na mesma, que uma investigação ainda mais meticulosa provava que
os acusados eram realmente culpados. Faria isto diferença alguma para a
culpa dos acusadores? Evidentemente que não; a questão não é a de a sua
crença ser ou não verdadeira, mas a de a terem ou não sustentado sem razões
adequadas. Sem dúvida diriam: «Agora vêem que afinal de contas tínhamos
razão; talvez para a próxima acreditem em nós.» E talvez acreditassem neles,
mas não se tornariam homens honestos por causa disso. Não estariam
inocentes, apenas não teriam sido descobertos. Se cada um deles, sem
excepção, decidisse examinar-se in foro conscientiae, saberia que tinha
adquirido e acalentado uma crença, quando não tinha o direito de acreditar
com base nos indícios de que dispunha; e assim saberia ter feito uma coisa
incorrecta.
Dir-se-á, todavia, que em ambos estes casos hipotéticos não se considera
errada a crença mas a acção que dela decorre. O armador pode afirmar:
«Tenho a absoluta certeza de que o meu navio está em bom estado, mas ainda
assim sinto que é meu dever mandar examiná-lo, antes de lhe confiar as vidas
de tanta gente.» E poder-se-ia dizer ao agitador: «Por muito convencido que
estejas da justeza da tua causa e da verdade das tuas convicções, não devias
ter atacado publicamente o carácter de uma pessoa antes de teres examinado
os indícios de ambos os lados com a máxima paciência e cuidado.»
Em primeiro lugar, admitamos que, no que diz respeito ao nosso assunto,
esta perspectiva é correcta e necessária; correcta, porque mesmo quando um
homem tem uma crença tão firme que o torna incapaz de pensar de outra
maneira, continua a ter escolha relativamente à acção que a crença lhe sugere
e, portanto, não pode escapar ao dever de investigar o fundamento da força
das suas convicções; e necessária, porque aqueles que não são ainda capazes
de controlar os seus sentimentos e pensamentos precisam de uma regra clara
para lidar com actos inequívocos.
Mas tendo-a formulado como necessária, torna-se claro que não é
suficiente, e que é preciso complementá-la com o nosso juízo anterior. Pois
não é possível separar assim a crença da acção que aquela sugere, de maneira
a condenar uma, mas não a outra. Ninguém que sustente uma crença forte
sobre um dos lados de uma questão, ou mesmo deseje sustentar uma crença
sobre um desses lados, pode investigá-la com a mesma imparcialidade e
meticulosidade que teria se realmente duvidasse e fosse isento; pelo que a
existência de uma crença que não é sustentada por uma investigação
imparcial torna um homem inapto para a realização deste dever necessário.
Tão-pouco é uma crença aquilo que não influencia de modo algum as
acções de quem o sustenta. Quem verdadeiramente acredita naquilo que o
encoraja a realizar uma acção contemplou já a acção com um desejo intenso,
já a realizou no seu coração. Se uma crença não se realiza imediatamente em
acções inequívocas, é reservada para orientação no futuro. Passa a fazer parte
daquele agregado de crenças que é o elo entre a sensação e a acção em cada
momento de todas as nossas vidas, e que está de tal maneira organizado e
compactado que nenhuma parte deste se pode isolar do resto, cada novo
acrescento modificando a estrutura do todo. Nenhuma crença genuína, por
mais superficial e fragmentária, é, em circunstância alguma, realmente
insignificante; prepara-nos para receber mais crenças semelhantes, confirma
as crenças semelhantes anteriores, e enfraquece outras; e assim,
gradualmente, estabelece um fio condutor implícito nos nossos pensamentos
mais íntimos, que pode um dia manifestar-se em acções inequívocas e deixar
a sua marca no nosso carácter para sempre.
Em circunstância alguma a crença de um homem é um assunto privado,
que apenas diga respeito ao próprio. As nossas vidas guiam-se por essa
concepção geral da ordem das coisas que a sociedade criou para fins sociais.
As nossas palavras, as nossas expressões, as nossas formas, processos e
modos de pensamento, são propriedade comum, modificados e aperfeiçoados
de época para época; um legado que cada geração sucessiva herda como um
depósito precioso e uma doação sagrada a transmitir à geração seguinte, não
sem modificações, mas alargado e depurado, com algumas marcas distintas
do seu engenho específico. Nisto, para o bem e para o mal, se entretece cada
crença de cada homem que partilha a língua dos seus semelhantes. É um
terrível privilégio e uma terrível responsabilidade, ajudarmos a criar o mundo
no qual viverão as gerações do futuro.
Nos dois casos hipotéticos que temos vindo a ponderar, considerou-se
incorrecto acreditar com base em indícios insuficientes, ou acalentar crenças
suprimindo as dúvidas e evitando a investigação. A razão deste juízo não é
difícil de ver: é que em ambos os casos a crença sustentada por um homem
era de grande importância para outros homens. Mas na medida em que
nenhuma crença sustentada por um homem, por muito trivial que a crença
pareça e por muito obscuro que seja o crente, é na realidade insignificante ou
desprovida de consequências para o destino da humanidade, não temos
escolha senão alargar o nosso juízo a todos e quaisquer casos de crença. A
crença, essa faculdade sagrada que impulsiona as decisões da nossa vontade e
une num funcionamento harmonioso todas as energias compactas do nosso
ser, pertence-nos não para nosso usufruto, mas para a humanidade. É
correctamente usada em verdades que foram estabelecidas pela longa
experiência e pelo trabalho persistente, que enfrentaram a luz intensa do
questionamento livre e intrépido. Além disso, ajuda a unir os homens, a
fortalecer e orientar a sua acção comum. Profana-se a crença ao concedê-la a
afirmações improvadas e inquestionadas, para consolo e prazer privado do
crente; para acrescentar um falso esplendor à estrada simples e directa da
nossa vida e exibir para além dela uma miragem radiosa; ou mesmo para
afogar as angústias comuns da nossa espécie através de um auto-engano que
lhes permite não só deprimir-nos como rebaixar-nos. Quem desejar bem aos
seus semelhantes nesta matéria guardará a pureza da sua crença com o
fanatismo próprio de um zelo ciumento, para que a dada altura não recaia
sobre um objecto indigno, ganhando uma mancha que jamais se poderá
remover.
Não é só o líder de homens, o estadista, o filósofo, ou o poeta, que tem
este dever moral perante a humanidade. Cada campónio que debita na taberna
da aldeia as suas frases lentas e esporádicas pode ajudar a matar ou a manter
vivas as superstições fatais que toldam o seu género. Cada diligente esposa de
artesão pode transmitir aos filhos crenças que manterão a sociedade coesa ou
a farão em pedaços. Nenhuma ingenuidade, nenhuma obscuridade de
estatuto, podem escapar ao dever universal de questionar tudo aquilo em que
acreditamos.
É verdadeiro que este dever é difícil e a dúvida que dele nasce é muitas
vezes amarga. Deixa-nos desprotegidos e impotentes quando nos julgávamos
seguros e fortes. Saber tudo acerca de qualquer coisa é saber como lidar com
isso em todas as circunstâncias. Sentimo-nos muito mais felizes e seguros
quando julgamos saber exactamente o que fazer, independentemente do que
acontece, do que quando nos perdemos e não sabemos por onde ir. E se
pensávamos saber tudo acerca de alguma coisa e nos julgávamos capazes de
agir adequadamente a esse respeito, é natural que não nos agrade descobrir
que na verdade somos ignorantes e impotentes, que temos de voltar mais uma
vez ao início e daí partir, tentar aprender o que a coisa é e como se deve lidar
com ela — se é que na verdade podemos conhecer algo acerca disso. É o
sentido do poder ligado a um sentido do conhecimento que deixa os homens
desejosos de acreditar e receosos de duvidar.
Este sentido do poder é o mais elevado e o melhor dos prazeres, quando a
crença em que se funda é verdadeira e foi honestamente alcançada pela
investigação. Pois então podemos sentir com justiça que é propriedade
comum e se aplica aos outros bem como a nós mesmos. Então podemos
alegrar-nos, não porque eu tenha aprendido segredos que me dão maior
segurança e força, mas porque nós, homens, ganhámos domínio sobre uma
maior porção do mundo; e seremos fortes, não por nós próprios, mas em
nome do Homem e da sua força. Mas se a crença foi aceite com base em
indícios insuficientes, é um prazer roubado. Não só nos engana ao dar-nos
um sentido do poder que efectivamente não temos, como é pecaminoso,
porque é roubado em desprezo pelo nosso dever perante a humanidade. Esse
dever consiste em precaver-nos de tais crenças como de uma epidemia, que
pode em pouco tempo tomar conta do nosso próprio corpo e então propagar-
se para o resto da cidade. O que se pensaria daquele que, por causa de um
fruto doce, corresse deliberadamente o risco de trazer uma epidemia à sua
família e aos seus vizinhos?
E, como acontece noutros casos, não é apenas o risco o que se tem de
considerar; pois uma má acção é sempre má no momento em que é praticada,
independentemente do que aconteça depois. Sempre que nos permitimos
acreditar por razões indignas, enfraquecemos os nossos poderes de
autocontrolo, de dúvida, de avaliação imparcial e honesta dos indícios. Todos
sofremos gravemente com a sustentação de crenças falsas e as acções
fatalmente incorrectas a que conduzem, e o mal que decorre de se sustentar
tal crença é grande e vasto. Mas surge um mal maior e mais vasto quando o
temperamento crédulo é mantido e apoiado, quando se acalenta e perpetua o
hábito de acreditar por razões indignas. Se roubo dinheiro a uma pessoa
qualquer, talvez não resulte um grande mal da mera transferência de posse;
ela pode não sentir a perda, ou talvez isto a impeça de dar mau uso ao
dinheiro. Mas não deixo de fazer este grande mal à humanidade: o de me
tornar desonesto. O que lesa a sociedade não é a perda da propriedade, mas o
de se tornar um covil de ladrões; pois então deixará forçosamente de ser uma
sociedade. Por esta razão não devemos fazer um mal para que dele resulte um
bem; pois em todo o caso daí resulta este grande mal: que fiz um mal e que
por isso me tornei malvado. De igual modo, se me permito acreditar seja no
que for com indícios insuficientes, da mera crença pode não resultar grande
mal; pode afinal ser verdadeira, ou posso nunca ter ocasião de a manifestar
em acções públicas. Mas não deixo de cometer este grande mal contra o
Homem: o de me tornar crédulo. O perigo para a sociedade não é meramente
o de acreditar em coisas erradas, embora isso seja suficientemente mau; mas
o de se tornar crédula e perder o hábito de testar as coisas e de as investigar;
pois então reincidirá forçosamente na selvajaria.
O mal que a credulidade faz num homem não se limita à estimulação de
um carácter crédulo nos outros e à decorrente defesa de crenças falsas. O
hábito de ser descuidado com aquilo em que acredito leva os outros a serem
por hábito descuidados com a verdade daquilo que me é dito. Os homens
dizem a verdade uns aos outros quando cada um respeita a verdade na sua
própria mente e na mente do outro; mas como poderá o meu amigo respeitar
a verdade na minha mente quando eu próprio sou descuidado com ela,
quando acredito em coisas porque quero acreditar nelas, porque são
reconfortantes e agradáveis? Não aprenderá ele a exclamar «paz», na minha
presença, quando não há qualquer paz? Adoptando tal caminho, envolver-me-
ei numa atmosfera carregada de falsidade e fraude e aí tenho de viver. Talvez
seja de pouca importância para mim, no meu castelo nas nuvens, feito de
doces ilusões e mentiras queridas; mas para a humanidade é de enorme
importância que eu tenha preparado os meus vizinhos para enganarem. O
homem crédulo é o pai do mentiroso e do batoteiro; vive no seio da sua
família, e não é de admirar que fique igualzinho a eles. Tão intimamente
unidos estão os nossos deveres que quem observa a lei em geral e, no entanto,
a transgride num ponto particular, é culpado de tudo.
Resumindo: é sempre incorrecto, em todo o lado, para qualquer pessoa,
acreditar seja no que for com base em indícios insuficientes.
Se um homem, ao manter uma crença que lhe foi ensinada em criança ou
da qual o persuadiram mais tarde, reprime e afasta quaisquer dúvidas que lhe
surgem na mente a esse respeito, evita intencionalmente a leitura de livros e a
companhia de homens que questionam ou discutem essa crença, e considera
ímpias as perguntas que não se pode colocar facilmente sem a perturbar — a
vida desse homem é um enorme pecado contra a humanidade.
Se este juízo parece severo quando aplicado àquelas almas simples que
nunca conheceram outra coisa, que desde o berço foram educadas no horror à
dúvida, a quem ensinaram que o seu bem-estar eterno depende daquilo em
que acreditam, então leva-nos à questão muito grave: Quem fez Israel pecar?
Talvez se me permita reforçar este juízo com o veredicto de Milton:2

«Um homem pode ser um herético na verdade; e se acredita nas coisas


apenas porque o seu pastor o afirma, ou a assembleia assim o
determina, sem conhecer outra razão, embora a sua crença seja
verdadeira, a própria verdade que sustenta torna-se a sua heresia.»

E com este famoso aforismo de Coleridge:3

«Quem começa por amar mais o cristianismo do que a verdade,


começará a amar mais a sua própria seita ou igreja do que o
cristianismo, e acabará por se amar a si próprio mais do que a tudo.»

A investigação dos indícios respeitantes a uma doutrina não se faz de uma


vez por todas para então se assumir como definitivamente resolvida. Nunca é
legítimo silenciar uma dúvida; pois que ou se lhe pode responder
honestamente através da investigação já feita, ou então a dúvida é a prova de
que a investigação não está completa.
«Mas», dir-se-á, «sou um homem ocupado; não tenho tempo para os
demorados estudos que seriam necessários para me dar alguma competência
para avaliar certas questões, ou mesmo para me tornar capaz de compreender
a natureza dos argumentos.» Nesse caso, não deveria ter tempo para acreditar.

II. O peso da autoridade


Teremos então de nos tornar cépticos universais, duvidando de tudo, sempre
receosos de pôr um pé à frente do outro antes de termos testado pessoalmente
a solidez do pavimento? Teremos de nos privar da ajuda e orientação daquele
vasto corpo de conhecimento que cresce diariamente em todo o mundo,
porque nem nós nem qualquer outra pessoa pode em circunstância alguma
testar a centésima parte desse conhecimento por experiência imediata ou por
observação, e porque não estaria completamente provado se o fizéssemos?
Roubaremos e pregaremos mentiras por não termos tido uma experiência
pessoal suficientemente vasta para justificar a crença de que é incorrecto
fazê-lo?
Não há qualquer perigo prático de que tais consequências alguma vez
decorram do cuidado escrupuloso e do autocontrolo em matéria de crença.
Aqueles homens que mais se aproximaram de cumprir o seu dever a este
respeito consideraram que certos princípios muito importantes, sendo estes os
mais apropriados para a orientação da vida, se destacaram cada vez mais
nitidamente em proporção ao cuidado e honestidade com que foram testados,
e adquiriram assim uma certeza prática. As crenças acerca do que é correcto
ou incorrecto, que orientam as nossas acções ao lidar com os homens em
sociedade, e as crenças acerca da natureza física que orientam as nossas
acções ao lidar com corpos animados e inanimados, nunca são prejudicadas
pela investigação; estas sabem tomar conta de si próprias, sem serem
sustentadas com «actos de fé», com o alarido de apologistas remunerados ou
com a supressão de indícios contrários. Além disso, há muitos casos em que
temos o dever de agir com base em probabilidades, embora os indícios não
sejam tais que justifiquem a crença em causa; porque é precisamente por tal
acção e pela observação dos seus resultados que se obtém indícios que podem
justificar a crença futura. Pelo que não temos qualquer razão para temer que
um hábito de investigação escrupulosa paralise as acções da nossa vida
quotidiana.
Mas porque não basta afirmar «É incorrecto acreditar com base em
indícios indignos» sem explicar também que indícios são dignos, passamos
agora a investigar as circunstâncias em que é legítimo acreditar com base no
testemunho de outros; e depois, além disso, investigaremos mais em geral
quando e por que razão podemos acreditar naquilo que ultrapassa a nossa
experiência, ou mesmo a experiência da humanidade.
Assim, perguntemos, antes de mais, em que casos o testemunho de um
homem não é digno de crédito. Este pode afirmar o que é contrário à verdade,
sabendo-o ou não. No primeiro caso, mente, e o seu carácter moral é
culpável; no segundo, é ignorante ou está equivocado, e apenas o seu
conhecimento ou discernimento estão em falta. De maneira a podermos ter o
direito de aceitar o seu testemunho como base para acreditar no que afirma,
precisamos de uma justificação razoável para confiar na sua veracidade: que
ele procura realmente dizer a verdade na medida em que a conhece; no seu
conhecimento: que teve oportunidade de conhecer a verdade acerca deste
assunto; e no seu discernimento: que fez um uso apropriado dessas
oportunidades ao chegar à conclusão que anuncia.
Por muito simples e óbvias que sejam estas razões, de modo que nenhum
homem de inteligência mediana, ao reflectir no assunto, pode deixar de
alcançá-las, é ainda assim verdadeiro que um grande número de pessoas tem
por hábito desconsiderá-las ao avaliar um testemunho. Das duas questões,
igualmente importantes para a credibilidade da testemunha, «É desonesto?» e
«Pode estar enganada?», os membros da humanidade, na sua maioria, ficam
perfeitamente satisfeitos se a uma delas se pode, com alguma probabilidade,
responder pela negativa. O excelente carácter moral de um homem é
apresentado como justificação para aceitar as suas declarações acerca de
coisas que não pode de maneira alguma conhecer. Um maometano, por
exemplo, dir-nos-á que o carácter do seu Profeta era tão nobre e majestoso
que impõe reverência mesmo àqueles que não acreditam na sua missão. Tão
admirável foi o seu ensinamento moral, tão sabiamente edificada a máquina
social que criou, que não só uma grande parcela da humanidade aceitou os
seus preceitos, como lhes tem efectivamente obedecido. As suas instituições,
por outro lado, fizeram o negro sair da selvajaria e por outro lado ensinaram a
civilização ao Ocidente em desenvolvimento; e embora os povos que
detinham as formas mais elevadas da sua fé, e que mais plenamente davam
corpo aos seus ideais e pensamento, tenham todos sido conquistados e
dizimados por tribos bárbaras, a história dos seus feitos maravilhosos
permanece uma glória imperecível para o Islão. Poderemos duvidar da
palavra de um homem tão grandioso e tão bom? Poderemos supor que este
magnífico génio, este esplêndido herói moral, nos mentiu acerca das matérias
mais solenes e sagradas? O testemunho de Maomé é claro: que não há senão
um Deus, e que ele, Maomé, é o seu Profeta; que se acreditarmos nele,
gozaremos da felicidade perpétua, mas que se não acreditarmos, seremos
condenados. Este testemunho assenta no mais terrível dos alicerces, a
revelação dos próprios céus; pois não foi ele visitado pelo anjo Gabriel,
enquanto jejuava e rezava na sua gruta no deserto, tendo-lhe sido permitida a
entrada nos campos abençoados do Paraíso? Seguramente que Deus é Deus e
Maomé é o Profeta de Deus.
O que deveríamos responder a este muçulmano? Em primeiro lugar, sem
dúvida, talvez nos sintamos tentados a protestar contra a sua perspectiva do
carácter do Profeta e da influência uniformemente benigna do Islão: antes de
o acompanharmos completamente nestes assuntos, parece que talvez
tivéssemos de esquecer muitas coisas terríveis de que ouvimos falar ou que
lemos. Mas se decidimos conceder-lhe estes pressupostos, para fins de
argumentação, e porque é difícil tanto para o fiel como para os infiéis discuti-
los imparcial e desapaixonadamente, ainda assim teríamos algo a dizer que
lhe retira a base da sua crença, mostrando, portanto, que é incorrecto
sustentá-la. Nomeadamente, o seguinte: o carácter de Maomé é um excelente
indício de que era honesto e dizia a verdade tanto quanto a sabia; mas não é
indício, de todo em todo, de que soubesse o que era a verdade. Que meios
teria de saber que a forma que lhe pareceu o anjo Gabriel não era uma
alucinação e que a sua aparente visita ao Paraíso não foi um sonho? Conceda-
se que ele próprio estava plenamente persuadido e acreditava honestamente
que tinha a orientação dos céus e era o veículo de uma revelação
sobrenatural, como podia saber que esta forte convicção não era um
equívoco? Coloquemo-nos no seu lugar; veremos que quanto mais nos
esforçarmos por compreender plenamente o que lhe passava pela mente, mais
claramente veremos que o Profeta não podia ter qualquer sustentação
adequada para a crença na sua própria inspiração. É muitíssimo provável que
ele próprio nunca tenha duvidado do assunto, ou sequer pensasse em colocar
a questão; mas nós falamos do ponto de vista daqueles a quem foi colocada a
pergunta e que têm de lhe dar uma resposta. É do conhecimento dos
observadores médicos que a solidão e a carência alimentar são meios
poderosos de produzir a delusão e de fomentar uma tendência para a doença
mental.4 Suponhamos então que, como Maomé, vou para lugares desertos
jejuar e rezar; que coisas me podem acontecer que me darão o direito de
acreditar que recebi a inspiração divina? Suponhamos que recebo informação,
aparentemente de um visitante celestial, que, ao ser testada, se considera
correcta. Não posso ter a certeza, em primeiro lugar, de que o visitante
celestial não é um produto da minha própria imaginação e que a informação
não me chegou, sem que na altura tivesse consciência disso, através de um
qualquer meio sensorial subtil. Mas se o meu visitante era um visitante real e
durante muito tempo me deu informação que se concluiu ser fidedigna, isto
constituiria de facto uma justificação para confiar nele futuramente, no que
diz respeito a assuntos que entram no âmbito da capacidade humana de
verificação; mas não seria justificação para confiar no seu testemunho em
quaisquer outros assuntos. Pois embora o seu carácter comprovado me desse
justificação para acreditar que dizia a verdade tanto quanto a sabia, colocar-
se-ia a mesma questão: que justificação há para supor que ele sabe?
Mesmo que o meu hipotético visitante me tivesse dado tal informação,
subsequentemente verificada por mim, probatória de que dispunha de meios
de conhecimento, acerca de assuntos verificáveis, muitíssimo superiores aos
meus, isto não me daria justificação para acreditar no que ele afirmava acerca
de assuntos que de momento não são susceptíveis de verificação pelo
homem. Daria suporte a uma conjectura interessante e à esperança de que, em
resultado da nossa investigação paciente, pudéssemos eventualmente
conseguir tais meios de verificação, que justificadamente transformariam a
conjectura em crença. Pois a crença pertence ao homem e à orientação dos
assuntos humanos: nenhuma crença é real a menos que oriente as nossas
acções, e essas mesmas acções fornecem um teste da sua verdade.
Mas, replicar-se-á, a aceitação do Islão como um sistema é precisamente
a acção que é encorajada pela crença na missão do Profeta, e que servirá para
um teste da sua verdade. Será possível acreditar que um sistema que
prosperou tanto está realmente fundado numa delusão? Não só os santos
individuais encontraram alegria e paz na crença, e verificaram essas
experiências espirituais que são prometidas aos fiéis, como também se ergueu
nações da selvajaria e do barbarismo até um estado social mais elevado.
Seguramente podemos afirmar que se agiu com base na crença e que foi
verificada.
Não se exige, todavia, senão alguma ponderação para mostrar que aquilo
que realmente se verificou não é de todo em todo o carácter celestial da
missão do Profeta, ou a fidedignidade da sua autoridade em assuntos que nós
próprios não temos como testar, mas apenas a sua sabedoria prática em certas
coisas bastante mundanas. O facto de que os crentes encontraram alegria e
paz na crença dá-nos o direito de afirmar que a doutrina é confortável,
agradável à alma; mas não nos dá o direito de afirmar que é verdadeira. E a
questão que a nossa consciência levanta sempre acerca daquilo em que nos
sentimos tentados a acreditar não é «Será confortável e agradável?», mas
«Será verdadeira?». Que o Profeta pregou determinadas doutrinas e previu
que nelas se encontraria o conforto espiritual, prova apenas a sua compaixão
pela natureza humana e o seu conhecimento da mesma; mas não prova o seu
conhecimento sobre-humano da teologia.
E se admitimos para fins de argumentação (pois parece que mais não
podemos fazer) que o progresso feito pelas nações muçulmanas em certos
casos se deve realmente ao sistema formado e lançado no mundo por Maomé,
não nos é permitido concluir a partir daqui que ele foi inspirado a declarar a
verdade acerca de coisas que não podemos verificar. Só nos é permitido
inferir a excelência dos seus preceitos morais, ou dos meios que concebeu
para levar os homens a obedecer-lhes, ou da maquinaria social e política que
estabeleceu. E seria preciso examinar muito cuidadosamente a história destas
nações para determinar quais destas coisas influenciaram mais o resultado.
Pelo que, mais uma vez, é o conhecimento do Profeta acerca da natureza
humana e a sua compaixão pela mesma que se verificam; e não a sua
inspiração divina ou o seu conhecimento da teologia.
Se houvesse apenas um Profeta, com efeito, podia muito bem parecer
uma tarefa difícil e mesmo desagradável decidir os aspectos com base nos
quais confiaríamos nele e os aspectos com base nos quais duvidaríamos da
sua autoridade, vendo a ajuda e o progresso que todos os homens ganharam
em todas as épocas com os que viam mais claramente, sentiam mais
fortemente e procuravam a verdade com maior dedicação do que os seus
irmãos mais fracos. Mas não há só um Profeta; e ao passo que o
consentimento de muitos naquilo que, como homens, tinham meios genuínos
de conhecer e conheciam, persistiu até ao fim e foi honrosamente integrado
na grande estrutura do conhecimento humano, o testemunho divergente de
alguns acerca daquilo que não conheciam nem podiam conhecer é um aviso
permanente de que exagerar a autoridade profética é usá-la indevidamente e
desonrar aqueles que apenas nos procuraram ajudar e fazer avançar com o seu
poder. Dificilmente faz parte da natureza humana que um homem avalie com
bastante precisão os limites da sua própria sagacidade; mas é o dever
daqueles que beneficiam com o seu trabalho considerar cuidadosamente onde
poderá ele ter sido levado a ultrapassar esses limites. Se temos de preservar
os seus possíveis erros juntamente com as suas sólidas realizações e usar a
sua autoridade como uma desculpa para acreditar naquilo que não pode ter
sabido, fazemos da sua bondade uma ocasião para pecar.
Considerando apenas um de tais testemunhos: os seguidores do Buda têm
pelo menos o mesmo direito de apelar à experiência individual e social em
defesa da autoridade do salvador do Oriente. Consta que a marca distintiva da
sua religião, na qual nunca foi ultrapassada, é o conforto e consolo que dá aos
doentes e infelizes, a compaixão afectuosa com que suaviza e alivia todas as
dores naturais dos homens. Seguramente que nenhum triunfo de moralidade
social pode ser maior ou mais nobre do que aquele que tem evitado que quase
metade do género humano se dedique a perseguições em nome da religião. A
confiarmos nos relatos dos seus primeiros seguidores, Buda acreditava que
viera à Terra com a missão divina e cósmica de pôr em movimento a roda da
lei. Sendo príncipe, despojou-se do seu reino e, de livre vontade, conheceu a
miséria, para aprender a lidar com ela e a subjugá-la. Poderia tal homem falar
falsamente acerca de coisas solenes? E no que diz respeito ao seu
conhecimento, não era ele um homem milagroso com poderes sobre-
humanos? Nasceu de uma mulher sem a ajuda de um homem; levitou e
transfigurou-se à frente dos seus familiares; por fim ascendeu em forma
corpórea aos céus a partir do topo do Pico de Adão.5 Não haverá que
acreditar na sua palavra quando testemunha acerca de coisas celestiais?
Se apenas ele, e nenhum outro, fizesse tais afirmações! Mas há Maomé
com o seu testemunho; não temos escolha senão escutar ambos. O Profeta
diz-nos que há um Deus e que viveremos na alegria ou na infelicidade
eternas, consoante acreditamos ou não no Profeta. O Buda afirma que não há
qualquer Deus e que seremos completamente aniquilados se formos
suficientemente bons. Não podem ambos ser objecto de uma inspiração
infalível; um ou outro teve de ter sido vítima de uma delusão, pensando saber
o que na realidade não sabia. Quem se atreverá a afirmar qual dos dois? E
como poderemos ter justificação para acreditar que o outro não estava
também deludido?
Chegamos assim aos juízos que se seguem. A bondade e a grandeza de
um homem não nos dão justificação para aceitar uma crença com base na sua
autoridade, a menos que haja uma base razoável para supor que conhece a
verdade daquilo que afirma. E não pode haver bases para supor que um
homem sabe aquilo que não se pode supor que nós, sem deixarmos de ser
homens, podemos verificar.
Se a mim, que não sou químico, um químico afirmar que se pode obter
uma determinada substância combinando outras substâncias em certas
proporções e sujeitando-as a um processo conhecido, tenho toda a
justificação para acreditar nisto com base na sua autoridade, a menos que
tenha conhecimento de algo desfavorável a respeito do seu carácter ou
discernimento. Pois o seu treino profissional é tal que tende a encorajar a
veracidade e a procura honesta da verdade, e a produzir um desprezo por
conclusões precipitadas e pelo desleixo investigativo. Tenho uma base
razoável para supor que ele conhece a verdade daquilo que afirma, pois
embora eu não seja um químico, podem-me fazer compreender o suficiente
acerca dos métodos e processos da ciência de maneira a que me seja possível,
sem deixar de ser um homem, verificar a afirmação. Posso nunca a verificar
efectivamente, ou mesmo ver qualquer experiência tendente a verificá-la; mas
ainda assim tenho razão suficiente para justificar a minha crença de que a
verificação está ao alcance dos instrumentos e capacidades humanas, e em
particular que foi efectivamente realizada pelo meu informante. O resultado,
a crença a que foi conduzido pelas suas investigações, é válida não só para
ele, mas também para os outros; é observada e testada pelos que trabalham no
mesmo campo, e estes sabem que não se pode prestar maior serviço à ciência
do que depurar os resultados aceites dos erros que neles se podem ter
introduzido. É desta maneira que o resultado se torna património comum, um
objecto apropriado de crença, a qual é uma preocupação social e um assunto
de interesse público. Assim, há que observar que a autoridade do químico é
válida porque há quem a questione e verifique; é precisamente este processo
de exame e depuração que mantém vivo entre os investigadores o amor
àquilo que suportará todos os testes possíveis, o sentido de responsabilidade
pública por parte daqueles cujo trabalho, se for bem feito, persistirá como a
herança duradoura da humanidade.
Mas se o meu químico me diz que um átomo de oxigénio existiu desde
sempre, inalterado em peso e taxa de vibração, não tenho o direito de
acreditar nisto com base na sua autoridade, pois se trata de algo que ele não
pode conhecer sem deixar de ser um homem. Pode muito honestamente
acreditar que esta afirmação é uma inferência legítima a partir das suas
experiências, mas nesse caso o seu juízo está em falta. Uma reflexão muito
simples acerca do carácter das experiências mostrar-lhe-ia que estas nunca
podem conduzir a resultados desse tipo; que, sendo elas mesmas meramente
aproximadas e limitadas, não nos podem dar conhecimento exacto e
universal. Nenhuma eminência de carácter e génio pode dar a um homem a
autoridade suficiente para justificar que acreditemos nele quando faz
afirmações que implicam conhecimento exacto ou universal.
Uma vez mais, um explorador do árctico pode relatar-nos que, numa dada
latitude e longitude, teve experiência de um certo grau de frio, que o mar
tinha uma certa profundidade e que o gelo tinha um certo carácter. Teríamos
toda a razão em acreditar nele, na ausência de algo que comprometa a sua
veracidade. É concebível podermos, sem deixarmos de ser homens, ir ao
local e verificar a sua afirmação; pode ser testada pelo testemunho dos seus
companheiros e há uma base adequada para supor que conhece a verdade
daquilo que afirma. Mas se um velho baleeiro nos diz que o gelo tem 90
metros de espessura até ao pólo, não teremos justificação para acreditar nele.
Pois embora a afirmação seja susceptível de ser verificada pelo homem,
seguramente que não é susceptível de ser verificada por ele, com quaisquer
meios e instrumentos de que dispusesse; e deve ter-se persuadido da verdade
daquilo que afirma por meios que não dão crédito algum ao seu testemunho.
Ainda que, portanto, o conteúdo do que se afirma esteja ao alcance do
conhecimento humano, não temos o direito de aceitá-lo com base na
autoridade a menos que esteja ao alcance do conhecimento do nosso
informante.
O que diremos daquela que é a autoridade mais venerável e augusta do
que qualquer testemunho individual, a tradição, consagrada pelo tempo, do
género humano? Uma atmosfera de crença e concepções que se formou pelos
esforços e lutas dos nossos antepassados, que nos permite respirar por entre
as diversas e complexas circunstâncias da nossa vida. Está à nossa volta,
perto de nós, e dentro de nós; não podemos pensar senão nas formas e
processos de pensamento que nos proporciona. Será possível duvidar dela e
testá-la? E se for, será correcto fazê-lo?
Veremos razões para responder que não só é possível e correcto, como
também é o nosso dever incontornável; que o principal objectivo da própria
tradição é dar-nos os meios de colocar questões, de testar e investigar as
coisas; que se lhe damos mau uso e a vemos como uma colecção de frases
feitas a ser aceites sem investigação complementar, não só nos prejudicamos
a nós próprios, como, ao recusar contribuir com a nossa parte para aumentar a
estrutura que será herdada pelos nossos filhos, contribuímos para nos
apartarmos a nós e ao nosso género da linhagem humana.
Tomemos em primeiro lugar o cuidado de distinguir um tipo de tradição
que urge examinar e pôr em causa, por ser particularmente esquiva à
investigação. Suponhamos que um curandeiro na África Central declara à sua
tribo que na sua tenda se propiciará uma certa poção poderosa se matarem o
gado da tribo, e que esta acredita nele. Não há maneira de verificar se a poção
se propiciou ou não, mas o gado foi-se. Ainda assim, pode-se manter na tribo
a crença de que a propiciação se realizou desta maneira; e numa geração
posterior será tanto mais fácil a outro curandeiro persuadi-los de um acto
semelhante. Aqui a única razão para acreditar é que toda a gente acreditou
durante tanto tempo na mesma coisa que deve ser verdadeiro. E, no entanto, a
crença foi fundada numa fraude e propagada pela credulidade. Sem dúvida
que agirá correctamente e será amigo dos homens aquele que a questionar e
vir que não há indícios a seu favor, que ajudar os seus vizinhos a ver como
ele, e até, se for preciso, que entrar na tenda sagrada e destruir a poção.
A regra que nos devia orientar em tais casos é bastante simples e óbvia:
que o testemunho conjunto dos nossos vizinhos está sujeito às mesmas
condições que o testemunho de qualquer um deles em separado.
Nomeadamente, não temos o direito de acreditar que algo é verdadeiro
porque toda a gente diz que é, a menos que haja boas razões para acreditar
que pelo menos uma dessas pessoas tem os meios de conhecer a verdade, e
que fala a verdade tanto quanto a conhece. Por muitas nações e gerações de
homens que se traga ao banco das testemunhas, não podem testemunhar coisa
alguma de que não tenham conhecimento. Todo aquele que tenha aceitado a
afirmação de outrem, sem ele próprio a verificar, está excluído do tribunal; a
sua palavra não vale, em rigor, coisa alguma. E quando finalmente
regressamos à verdadeira origem da afirmação, temos de tirar duas questões
do caminho, a respeito da primeira pessoa que fez a afirmação: estaria ela
enganada ao pensar que sabia algo acerca deste assunto, ou estaria a mentir?
Esta última questão é infelizmente muitíssimo actual e prática, mesmo
para nós, nesta época e neste país. Não é preciso ir a La Salette, ou à África
Central, ou a Lourdes, para ter exemplos de superstição imoral e degradante.
É muito bem possível que uma criança cresça em Londres rodeada de uma
atmosfera de crenças unicamente apropriadas a selvagens, que nos nossos
dias se fundaram na fraude e propagaram pela credulidade.
Pondo então de lado as tradições que passam sucessivamente de geração
para geração sem serem testadas, consideremos aquilo que é verdadeiramente
construído a partir da experiência comum da humanidade. Esta grandiosa
estrutura serve-nos para orientar os nossos pensamentos e, por meio deles, as
nossas acções, tanto no mundo moral como no material. No mundo moral,
por exemplo, dá-nos as concepções da rectidão em geral, da justiça, da
verdade, da beneficência, e coisas semelhantes. Estas apresentam-se como
concepções, e não como afirmações ou proposições; respondem a certos
instintos definidos que seguramente se encontram em nós, seja por que meio
lá foram parar. Que é correcto ser beneficente é objecto da experiência
pessoal imediata; pois quando um homem se recolhe ao seu íntimo e aí
encontra algo mais vasto e mais duradouro do que a sua personalidade
solitária, algo que afirma «Quero agir rectamente», bem como «Quero fazer
bem ao homem», pode verificar por observação directa que um instinto se
funda no outro e concorda inteiramente com ele. E o seu dever é verificar esta
afirmação e outras semelhantes.
A tradição afirma também, num local e época específicos, que
determinadas acções são justas, ou verdadeiras, ou beneficentes. Para todas
essas regras se precisa de uma investigação complementar, pois são por vezes
estabelecidas por uma autoridade que não o sentido moral fundado na
experiência. Até recentemente, a tradição moral do nosso próprio país — e na
verdade de toda a Europa — ensinava que era beneficente dar
indiscriminadamente dinheiro aos pedintes. Mas o questionamento desta
regra, e a investigação da mesma, levaram os homens a ver que a verdadeira
beneficência é aquela que ajuda um homem a fazer o trabalho para o qual é
mais apto e não aquilo que o mantém na inactividade e a encoraja; e que
descurar esta distinção no presente equivale a preparar a indigência e a
miséria no futuro. Por este exame e discussão não só a prática se depurou e
tornou mais beneficente, como a própria concepção de beneficência se tornou
mais lata e mais sábia. Agora a grande herança social consiste em duas
partes; o instinto de beneficência, que, quando predomina, leva certa faceta
da nossa natureza a desejar fazer bem aos homens; e a concepção intelectual
da beneficência, que podemos comparar com qualquer conduta que se
apresente e perguntar: «Será isto beneficente ou não?». Ao colocar tais
perguntas e responder-lhes continuamente, a concepção cresce em fôlego e
clareza e o instinto reforça-se e purifica-se. Parece, portanto, que a grande
utilidade da concepção, a parte intelectual da herança, é permitir-nos fazer
perguntas; através dessas perguntas, cresce e mantém-se recta; e se não a
usamos para este fim perdê-la-emos completamente e ficaremos com um
mero código prescritivo a que já não se pode chamar, de todo em todo,
«moralidade».
Tais considerações aplicam-se de uma maneira ainda mais clara e óbvia,
se tal é possível, à reserva de crenças e concepções que os nossos pais
acumularam para nós a respeito do mundo material. Estamos prontos a rir do
hábito do australiano que continua a amarrar o machado ao cabo, embora o
serralheiro de Birmingham lhe tenha feito propositadamente um buraco para
aí inserir o cabo. Os do seu povo amarram assim os machados há gerações:
quem é ele para se opor à sua sabedoria? Desceu tanto que não consegue
fazer aquilo que alguns deles tiveram de fazer no passado distante — pôr em
causa um uso estabelecido e inventar ou aprender algo melhor. No entanto,
aqui, no amanhecer do conhecimento, onde a ciência e a arte são uma só,
encontramos apenas a mesma regra simples que se aplica às mais elevadas e
às mais profundas ramificações daquela Árvore cósmica; aos seus mais
imponentes ramos floridos bem como às mais profundas das suas raízes
escondidas; a regra, nomeadamente, de que quem faz um uso apropriado
daquilo que foi acumulado e que nos foi transmitido é quem age da mesma
maneira que os criadores agiram, quando o acumularam; os que o usam para
fazer mais perguntas, para examinar, para investigar; que procuram com
honestidade e seriedade descobrir qual a maneira correcta de ver as coisas e
de lidar com elas.
Uma pergunta apropriadamente colocada é já metade da resposta, afirmou
Jacobi; podemos acrescentar que o método de a solucionar é a outra metade
da resposta, e que o resultado efectivo para nada conta ao lado destas duas.
Tomemos como exemplo o telégrafo, onde a teoria e a prática, ambas
desenvolvidas discretamente ao longo dos anos, se unem para servir
vantajosamente o homem. Ohm descobriu que a intensidade de uma corrente
eléctrica é directamente proporcional à potência da bateria que a produz, e
inversamente proporcional à extensão do fio condutor que tem de percorrer.
A isto se chama «lei de Ohm»; mas o resultado, encarado como uma
afirmação na qual acreditar, não é a parte valiosa do mesmo. A primeira
metade é a pergunta «Que relação se verifica entre estas quantidades?» Assim
formulada, a pergunta envolve já a concepção de intensidade da corrente e da
potência da bateria, como quantidades a medir e comparar; sugere claramente
que são estas as coisas com que se tem de lidar no estudo das correntes
eléctricas. A segunda metade é o método de investigação: como medir estas
quantidades, de que instrumentos se precisa para a experiência e como devem
ser usados? Não se pede ao estudante, que começa a sua aprendizagem na
electricidade, que acredite na lei de Ohm; fazem-no compreender a pergunta,
colocam-no diante dos instrumentos e ensinam-no a verificá-la. Aprende a
fazer coisas, e não a pensar que sabe coisas; a usar os instrumentos e a fazer
perguntas, e não a aceitar uma afirmação tradicional. A pergunta que para ser
apropriadamente colocada exigiu um génio é respondida por um principiante.
Se a lei de Ohm subitamente se perdesse e fosse esquecida por todos os
homens, mas preservando-se a pergunta e o método de solução, o resultado
podia ser redescoberto numa hora. Mas o resultado por si só, se conhecido
por um povo que não pudesse compreender o valor da questão ou os meios de
a resolver, seria como um relógio nas mãos de um selvagem que não lhe
soubesse dar corda ou um navio a vapor manobrado por maquinistas
espanhóis.
A respeito, portanto, da sagrada tradição da humanidade, aprendemos que
não consiste em proposições ou afirmações que se tem de aceitar e nas quais
se tem de acreditar com base na autoridade da tradição, mas em perguntas
apropriadamente colocadas, em noções que nos permitem levantar perguntas
complementares, e em métodos de lhes responder. O valor de todas estas
coisas depende de serem testadas quotidianamente. O próprio carácter
sagrado do precioso depósito impõe-nos o dever e a responsabilidade de o
testar, de o depurar e alargar até ao máximo das nossas capacidades. Aquele
que se serve dos resultados desta tradição para silenciar as próprias dúvidas,
ou para impedir a investigação por parte dos outros, é culpado de um
sacrilégio que os séculos jamais apagarão. Quando os trabalhos e as
investigações de homens honestos e corajosos tiverem elevado a estrutura da
verdade conhecida a uma glória que nós nesta geração nem podemos esperar
nem imaginar, naquele templo puro e sagrado não terá ele parte nem quinhão,
mas o seu nome e as suas obras serão lançados nas trevas do esquecimento
para sempre.

III. Os limites da inferência


A questão dos casos em que podemos acreditar naquilo que ultrapassa a
nossa experiência é muito ampla e delicada, abarcando toda a extensão do
método científico, e exigindo um aumento considerável da sua aplicação
antes de lhe podermos dar alguma resposta que seja mais ou menos completa.
Mas pode-se aqui aflorar e formular brevemente uma regra de extrema
simplicidade e enorme importância prática, que se situa no limiar deste tema.
Um pouco de reflexão mostrar-nos-á que todas as crenças, até as mais
simples e mais fundamentais, ultrapassam a nossa experiência quando são
encaradas como guias para as nossas acções. Uma criança que se queimou
teme o fogo, porque acredita que o fogo a queimará hoje tal como ontem;
mas esta crença vai além da experiência e pressupõe que o desconhecido fogo
de hoje é como o fogo de ontem. Mesmo a crença de que a criança se
queimou ontem vai além da experiência presente, que contém apenas a
memória de uma queimadura, e não a própria queimadura; pressupõe,
portanto, que esta memória é fidedigna, embora saibamos que uma memória
pode amiúde estar incorrecta. Mas se há que a usar como guia para a acção,
como uma pista daquilo que será o futuro, tem de pressupor algo acerca desse
futuro, nomeadamente, que será consistente com a suposição de que a
queimadura realmente ocorreu ontem; o que é ir além da experiência. Mesmo
o fundamental «Eu sou», de que não se pode duvidar, não é um guia para a
acção até se tornar «Eu serei», que vai além da experiência. A questão não é,
portanto, «Podemos acreditar no que ultrapassa a experiência?» pois isto está
envolvido na própria natureza da crença; mas «Até que ponto e de que
maneira podemos alargar a nossa experiência ao formar as nossas crenças?»
E o exemplo que considerámos — uma criança que se queimou teme o
fogo — sugere uma resposta extremamente simples e universal. Podemos ir
além da experiência pressupondo que aquilo que não sabemos é como aquilo
que sabemos; ou, por outras palavras, podemos alargar a nossa experiência
pressupondo a uniformidade da natureza. O que esta uniformidade é
exactamente, como adquirimos maior conhecimento dela de geração para
geração, são questões que de momento deixamos de lado, contentando-nos
em examinar dois exemplos que poderão servir para tornar mais clara a
natureza da regra.
A partir de certas observações feitas ao espectroscópio, inferimos a
existência de hidrogénio no Sol. Olhando para o espectroscópio quando o Sol
incide na sua abertura, vemos determinadas linhas luminosas: e experiências
realizadas com corpos na Terra ensinaram-nos que quando se vê estas linhas
luminosas a fonte delas é o hidrogénio. Pressupomos, portanto, que as linhas
luminosas desconhecidas no Sol são como as linhas luminosas conhecidas do
laboratório, e que o hidrogénio no Sol se comporta como o hidrogénio se
comportaria na Terra em circunstâncias idênticas.
Mas não estamos a confiar demasiado no nosso espectroscópio?
Seguramente que tendo-o considerado fidedigno para substâncias terrestres,
onde as suas asserções podem ser verificadas pelo homem, temos justificação
para aceitar o seu testemunho noutros casos semelhantes; mas não quando
nos dá informação acerca de coisas que estão no Sol, onde o seu testemunho
não pode ser directamente verificado pelo homem, certo?
Queremos sem dúvida saber um pouco mais antes de se poder justificar
esta inferência; e felizmente sabemo-lo. O espectroscópio testemunha
exactamente a mesma coisa nos dois casos; nomeadamente, que através dele
passam vibrações de luz de dada proporção. A sua construção é tal que se
estivesse errado acerca disto num caso, estaria errado no outro. Quando
começamos a examinar o assunto, descobrimos que pressupomos realmente
que a matéria do Sol é como a matéria da Terra, composta por dado número
de substâncias distintas; e que cada uma destas, quando muito quente, tem
uma taxa de vibração distinta, pela qual se pode reconhecer e isolar do resto.
Mas este é o tipo de pressuposto que temos justificação para usar quando
alargamos a nossa experiência. É um pressuposto de uniformidade na
natureza, e só se pode verificar por comparação com muitos pressupostos
semelhantes que temos de fazer noutros casos semelhantes.
Mas será verdadeira a crença na existência de hidrogénio no Sol? Poderá
ajudar na orientação correcta da acção humana?
Certamente que não, se as bases para a aceitar forem indignas e
desprovidas de qualquer compreensão do processo pelo qual se obtém essa
crença. Mas quando se compreende este processo como a base para a crença,
torna-se uma questão bastante séria e prática. Pois se não há hidrogénio no
Sol, o espectroscópio — o que é o mesmo que dizer, a medida das taxas de
vibração — terá de ser um guia inexacto no reconhecimento de substâncias
diferentes; e consequentemente não se deveria usá-lo na análise química —
nos ensaios químicos, por exemplo — para maior economia de tempo,
dificuldades e dinheiro. Ao passo que a aceitação do método espectroscópico
como fidedigno não só nos enriqueceu com novos metais, o que é óptimo,
mas também com novos processos de investigação, o que é ainda melhor.
Para outro exemplo, consideremos o modo como inferimos a verdade de
um acontecimento histórico — por exemplo, o cerco de Siracusa durante a
guerra do Peloponeso. A nossa experiência é existirem manuscritos dos quais
se afirma serem os manuscritos da história de Tucídides e que se referem a si
próprios desse modo; que noutros manuscritos, atribuídos a historiadores
subsequentes, se afirma que viveu durante o período em que se deu a guerra;
e que livros que supostamente datam do renascer do saber nos dizem como
estes manuscritos foram preservados e onde foram adquiridos. Depreendemos
também que em geral os homens não forjam livros e histórias sem um motivo
especial; pressupomos que neste aspecto os homens do passado eram como
os homens do presente; e observamos que neste caso não se apresentava
qualquer motivo especial. Isto é, alargamos a nossa experiência no
pressuposto de uma uniformidade nos caracteres do homem. Porque o nosso
conhecimento desta uniformidade é muitíssimo menos completo e exacto do
que o nosso conhecimento daquilo que se verifica na física, as inferências do
tipo histórico são mais instáveis e menos exactas do que as inferências em
muitas outras ciências.
Mas se há alguma razão especial para suspeitar do carácter das pessoas
que escreveram ou transmitiram certos livros, o caso muda de figura. Se um
grupo de documentos apresenta indícios internos de terem sido produzidos
entre pessoas que forjavam livros em nome de outras, e que, ao descrever os
acontecimentos, suprimiam as coisas que não lhes convinham, enquanto
engrandeciam o que lhes convinha; que não só cometeram estes crimes, como
se regozijaram neles como provas de humildade e de zelo; temos então de
afirmar que não se pode basear em tais documentos qualquer inferência
histórica genuína, mas apenas conjecturas insatisfatórias.
Podemos, então, alargar a nossa experiência no pressuposto de uma
uniformidade na natureza; podemos preencher a nossa imagem daquilo que é
e daquilo que foi, à medida que a experiência a fornece, de maneira a tornar o
todo consistente com esta uniformidade. E a inferência praticamente
demonstrativa — o que nos dá o direito de acreditar no seu resultado — é
uma amostra clara de que só pela verdade deste resultado se pode
salvaguardar a uniformidade da natureza.
Nenhum indício, portanto, pode dar-nos justificação para acreditar na
verdade de uma afirmação que seja contrária ou exterior à uniformidade da
natureza. Se a nossa experiência é tal que não a podemos preencher
consistentemente com uniformidade, tudo o que temos direito a concluir é
que ocorreu um erro algures; mas a possibilidade da inferência é afastada;
temos de nos apoiar na nossa experiência, e não ir além dela de maneira
alguma. Se de facto ocorresse um acontecimento que não fizesse parte da
uniformidade da natureza, teria duas propriedades: nenhum indício poderia
dar fosse a quem fosse o direito de acreditar nele excepto àqueles que
efectivamente tiveram a experiência; e nenhuma inferência digna de crédito
se podia fundar nela, de todo em todo.
Teremos então forçosamente de acreditar que a natureza é absoluta e
universalmente uniforme? Certamente que não, não temos direito de acreditar
em seja o que for deste género. A regra apenas nos diz que ao formar crenças
que vão além da experiência temos de pressupor que a natureza é, para efeitos
práticos, uniforme, no que nos diz respeito. No âmbito da acção e verificação
humanas, podemos formar, com a ajuda deste pressuposto, as crenças
propriamente ditas; para lá dele, só podemos formar aquelas hipóteses que
servem para a colocação mais precisa das perguntas.
Resumindo:
Podemos acreditar no que ultrapassa a nossa experiência apenas quando o
inferimos a partir dessa experiência pelo pressuposto de que aquilo que não
conhecemos é como aquilo que conhecemos.
Podemos acreditar na afirmação de outra pessoa, quando há uma base
razoável para supor que ela conhece o assunto de que fala, e que fala a
verdade tanto quanto a sabe.
É incorrecto em todas as circunstâncias acreditar com base em indícios
insuficientes; e onde duvidar e investigar é uma presunção, acreditar é aí pior
do que uma presunção.
Areopagitica.
Aids to Reflection.
É preciso não confundir ilusão com delusão. Enquanto a ilusão tem como
resultado uma crença ou conjunto de crenças do indivíduo, não pondo em
causa a sua compreensão global da realidade, a delusão é um estado mental
em que a compreensão da realidade pelo indivíduo está inteiramente
comprometida. Um bom exemplo de ilusão é pensar que estamos a ver uma
pessoa ao longe quando na verdade é uma árvore; um bom exemplo de
delusão é o fanatismo político que pode distorcer totalmente a compreensão
da realidade. (N. do T.)
O monte Sri Pada, no Sri Lanka (antigo Ceilão). Local de importância
religiosa para diversas tradições. (N. do T.)
3. A vontade de acreditar
William James

Na biografia recentemente publicada que Leslie Stephen escreveu sobre o seu


irmão, Fitzjames, há o relato de uma escola que este frequentou em criança.
O professor, um tal Sr. Guest, tinha o hábito de falar com os seus alunos
nestes termos: «Gurney, qual é a diferença entre justificação e santificação?
Stephen, prova a omnipotência de Deus!», etc. No seio do nosso livre-
pensamento e indiferença de Harvard, tendemos a imaginar que aqui, no
nosso bom velho colégio ortodoxo, a conversa continua mais ou menos
nestes parâmetros; e para vos mostrar que em Harvard não perdemos todo o
interesse nestes assuntos vitais, trouxe comigo esta noite algo de semelhante
a um sermão acerca da justificação pela fé, para vo-lo ler — falo de um
ensaio sobre a justificação da fé, uma defesa do nosso direito a adoptar uma
atitude crente em assuntos religiosos, apesar de o nosso intelecto meramente
lógico poder não ter sido compelido. «A Vontade de Acreditar»,
consequentemente, é o título do meu artigo.
Há muito que defendo perante os meus próprios alunos a legitimidade da
fé adoptada voluntariamente; mas assim que ficam bem adentrados no
espírito lógico, têm por norma recusar admitir a legitimidade filosófica da
minha asserção, embora eles mesmos, na verdade, estejam todos,
pessoalmente e a cada momento, repletos de uma fé ou outra. Mantive-me
sempre, contudo, tão profundamente convicto de que a minha posição está
correcta, que o vosso convite me pareceu uma boa ocasião para esclarecer as
minhas afirmações. Talvez as vossas mentes estejam mais abertas do que
aquelas com que até agora tive de lidar. Serei o menos técnico possível,
embora tenha de começar por estabelecer algumas distinções técnicas que
acabarão por nos ajudar.
I
Chamemos hipótese a qualquer coisa que se proponha como objecto da nossa
crença; e tal como os linguistas6 falam em metáforas vivas e mortas, diremos
que uma hipótese qualquer está viva ou morta. Uma hipótese está viva se
parece uma possibilidade real à pessoa a quem se apresenta. Se vos peço que
acreditem no Mádi, esta noção não estabelece qualquer conexão vívida com a
vossa natureza — escusa-se de todo em todo a pulsar com alguma
credibilidade. Como hipótese, está completamente morta. Para um árabe,
contudo, (mesmo que não pertença aos seguidores do Mádi), esta hipótese
encontra-se entre as possibilidades da mente: está viva. Isto mostra que a
morbidez e a vividez numa hipótese não são propriedades intrínsecas, mas
relações entre a hipótese e o pensador individual. São aferidas pela sua
inclinação para agir. O máximo de vividez numa hipótese significa inclinação
para agir irrevogavelmente. Na prática, isto quer dizer crença; mas há uma
tendência para acreditar onde quer que haja disposição para agir.
Em seguida, chamemos opção à decisão entre duas hipóteses. As opções
podem ser de tipos diferentes. Podem ser: 1) vivas ou mortas, 2) forçosas ou
evitáveis, 3) momentosas ou triviais; e para o que nos interessa, podemos
chamar genuína a uma opção quando pertence ao tipo das opções que são
forçosas, vivas e momentosas.

1. Uma opção viva é uma opção em que ambas as hipóteses estão vivas. Se
vos digo: «Sejam teosofistas ou maometanos», trata-se provavelmente
de uma opção morta, porque para vós nenhuma das hipóteses tem
probabilidade de estar viva. Mas se afirmo: «Sejam agnósticos ou
cristãos», a história é outra: dada a vossa formação, cada hipótese apela,
por muito pouco que seja, à vossa crença.
2. De seguida, se vos digo: «Escolham entre sair com ou sem a vossa
umbrela», não vos ofereço uma opção genuína, pois não é forçosa.
Podem facilmente evitá-la não saindo sequer. De igual modo, se digo
«Ou me amam ou me odeiam», «ou consideram a minha teoria
verdadeira ou a consideram falsa», a vossa opção é evitável. Podem
permanecer indiferentes a mim, nem me amando nem me odiando, e
podem recusar-se a emitir qualquer juízo a respeito da minha teoria. Mas
se digo «Ou aceitam esta verdade ou lhe passam ao lado», coloco-vos
uma opção forçosa, pois não há lugar fora da alternativa. Todos os
dilemas baseados numa disjunção lógica completa, sem a possibilidade
de não escolher, são opções deste tipo forçoso.
3. Finalmente, se eu fosse o Dr. Nansen e vos convidasse a juntarem-se à
minha expedição ao Pólo Norte, a vossa opção seria momentosa; pois
provavelmente não voltariam a ter uma oportunidade semelhante, e o
que escolhessem agora ou vos excluiria completamente do tipo de
imortalidade norte-polar ou colocaria pelo menos essa hipótese nas
vossas mãos. Quem recusa uma oportunidade única perde tão
seguramente o prémio como se tivesse tentado e falhado. Per contra, a
opção é trivial quando a oportunidade não é única, quando o que está em
causa é insignificante, ou quando a decisão é reversível se mais tarde se
mostrar insensata. Tais opções triviais abundam na vida científica. Um
químico considera que uma hipótese está suficientemente viva para
passar um ano a verificá-la: acredita nela até esse ponto. Mas se as suas
experiências se mostram duplamente inconclusivas, perdoa-se a sua
perda de tempo, não resultando daí qualquer mal vital.

A nossa discussão será mais fácil se tivermos bem presentes estas distinções.

II
A questão seguinte a considerar é a psicologia propriamente dita da opinião
humana. Quando olhamos para determinados factos, parece que a nossa
natureza passional e volitiva está na raiz de todas as nossas convicções.
Quando olhamos para outros factos, parece que essa natureza nada pode fazer
depois do intelecto se ter pronunciado. Consideremos antes de mais estes
últimos factos.
Não parece absurdo, à primeira vista, afirmar que as nossas opiniões são
modificáveis segundo a nossa vontade? Poderá a nossa vontade ajudar ou
estorvar o nosso intelecto na sua percepção da verdade? Será que podemos,
querendo-o apenas, acreditar que a existência de Abraham Lincoln é um mito
e que os seus retratos na McClure’s Magazine são de outra pessoa? Será que
podemos, por qualquer esforço da vontade, ou por força de desejar que fosse
verdadeiro, acreditar que estamos de boa saúde quando estamos acamados a
berrar com reumatismo, ou ter a certeza de que a soma das duas notas de
dólar que temos no bolso perfaz cem dólares? Podemos afirmar qualquer
destas coisas, mas não temos de modo algum o poder de acreditar nelas; e é
precisamente de tais coisas que se faz o tecido das verdades em que
realmente acreditamos — questões de facto, imediatas ou remotas, como
afirmou Hume, e relações entre ideias, que ou estão lá para nós ou não se as
encararmos desse modo, e que não estando não podem ser colocadas lá por
qualquer acção nossa.
Nos Pensamentos de Pascal há uma passagem célebre, conhecida na
bibliografia como a «aposta de Pascal». Aí, Pascal tenta compelir-nos ao
cristianismo argumentando como se a nossa preocupação com a verdade se
assemelhasse ao interesse que teríamos num jogo de azar. Traduzidas
livremente, eis as suas palavras: têm ou de acreditar ou de não acreditar que
Deus existe — o que escolhem? A vossa razão humana não pode decidir.
Decorre um jogo entre vocês e a natureza das coisas que no dia do juízo vai
dar caras ou coroas. Ponderem quais seriam os vossos ganhos e perdas se
apostassem tudo em caras, ou na existência de Deus: ao ganhar nessas
circunstâncias, ganhariam a beatitude eterna; perdendo, nada perderiam
sequer. Se nesta aposta houvesse uma infinidade de possibilidades e só uma
favorável a Deus, deviam ainda assim apostar tudo em Deus; pois embora
agindo desta maneira arrisquem seguramente uma perda finita, qualquer
perda finita é razoável, até mesmo uma perda finita certa, se há sequer a
possibilidade de um ganho infinito. Vão, pois, tomar a água benta e mandar
recitar a missa; a crença virá entorpecer-vos os escrúpulos — Cela vous fera
croire et vous abêtira. Por que não? No fundo, o que têm a perder?
Provavelmente sentem que quando a fé religiosa se exprime assim, na
linguagem da mesa de jogo, está a lançar os seus últimos trunfos.
Seguramente que a própria crença pessoal que Pascal tem nas missas e na
água benta teve uma origem muito diferente; e esta sua célebre página não é
senão um argumento para outros, uma última tentativa desesperada de deitar
mão a uma arma contra a dureza do coração do descrente. Sentimos que uma
fé nas missas e na água benta adoptada voluntariamente depois de um cálculo
tão mecânico careceria da alma interior da realidade da fé; e se estivéssemos
nós próprios no lugar da divindade, provavelmente teríamos um prazer
especial em impedir a crentes deste calibre o acesso à recompensa infinita. É
evidente que a menos que haja uma tendência preexistente para acreditar nas
missas e na água benta, a opção que Pascal oferece à vontade não é uma
opção viva. Certamente que nenhum turco, por sua própria conta, veria com
bons olhos as missas e a água benta; e mesmo para nós, protestantes, estes
meios de salvação parecem impossibilidades de tal maneira ultrapassadas que
a lógica de Pascal, invocada especificamente a favor destes meios, nos deixa
indiferentes. De igual modo podia o Mádi escrever-nos, afirmando: «Sou o
Esperado a quem Deus, no seu esplendor, criou. Serão infinitamente felizes
se me reconhecerem; de contrário serão afastados da luz do Sol. Ponderem
então o vosso ganho infinito no caso de eu ser genuíno, contra o vosso
sacrifício finito no caso de não o ser!» A sua lógica seria a de Pascal; mas
seria vão usá-la em nós, pois a hipótese que nos oferece está morta. Não há
em nós qualquer tendência para agir com base nela, em grau algum.
Falar em acreditar segundo a nossa vontade parece, assim, de certo ponto
de vista, simplesmente tolo. De outro ponto de vista, é pior do que tolo: é vil.
Quando nos voltamos para o magnífico edifício das ciências físicas e vemos
como foi erguido; quantos milhares de vidas morais humanas desinteressadas
jazem só nos seus alicerces; quanta paciência e adiamento, quanto abafar das
preferências, quanta submissão às leis gélidas do facto exterior, talhada na
própria pedra e na argamassa; como se mantém de pé, absolutamente
impessoal na sua vasta majestade — como parece então enfatuado e
desprezível cada pequeno sentimentalista que vem soprar as suas espirais de
fumo voluntárias, fingindo decidir as coisas a partir do seu sonho privado!
Será que nos podemos sentir surpresos, se os que foram criados na escola
austera e viril da ciência tenham vontade de cuspir tal subjectivismo das suas
bocas? Todo o sistema de lealdades que cresce nas escolas de ciência se opõe
completamente a que se tolere tal coisa; de modo que é perfeitamente natural
que quem contraiu a febre científica passe ao extremo oposto e por vezes
escreva como se o intelecto incorruptivelmente honesto devesse preferir em
absoluto a amargura e a inaceitabilidade ao coração inebriado.

«Fortifica-me a alma saber


Que, embora eu pereça, a verdade é o que é»,

canta Clough, enquanto Huxley exclama:

«O meu único consolo está em observar que, por muito má que a


nossa posteridade venha a ser, enquanto se ativerem à regra simples
de não fingir acreditar naquilo para o qual não dispõem de quaisquer
razões, por lhes poder ser vantajoso fingi-lo [a palavra «fingir» é
seguramente redundante aqui], não terão chegado ao patamar mais
baixo da imoralidade.»
E Clifford, o delicioso enfant terrible, escreve:

«Profana-se a crença ao concedê-la a afirmações improvadas e


inquestionadas, para consolo e prazer privado do crente […] quem
desejar bem aos seus semelhantes nesta matéria guardará a pureza da
sua crença com o fanatismo próprio de um zelo ciumento, para que a
dada altura não recaia sobre um objecto indigno, ganhando uma
mancha que jamais se poderá remover […] Mas se a crença foi aceite
com base em indícios insuficientes [ainda que a crença seja
verdadeira, como Clifford explica na mesma página], é um prazer
roubado […] É pecaminoso, porque é roubado em desprezo pelo
nosso dever perante a humanidade. Esse dever consiste em precaver-
nos de tais crenças como de uma epidemia, que pode em pouco tempo
tomar conta do nosso próprio corpo e então propagar-se para o resto
da cidade […] É sempre incorrecto, em todo o lado, para qualquer
pessoa, acreditar seja no que for com base em indícios insuficientes.»

III
Tudo isto nos parece saudável, mesmo quando expresso, como o faz Clifford,
com uma paixão demasiado vocal. O livre-arbítrio e o mero desejo, no que
diz respeito às nossas crenças, parecem estar a mais. No entanto, se alguém
pressupõe de imediato que a penetração intelectual é o que resta depois de o
desejo, a vontade e a preferência sentimental terem partido, ou que as nossas
opiniões passam a ser decididas pela razão pura, opor-se-ia directamente à
realidade dos factos.
São só as nossas hipóteses já mortas que a nossa natureza volitiva é
incapaz de trazer de novo à vida. Mas o que as fez morrer para nós é, na sua
maior parte, uma acção prévia, de tipo antagónico, da nossa natureza volitiva.
Quando digo «natureza volitiva», não me refiro apenas a volições deliberadas
que podem ter estabelecido hábitos de crença aos quais agora não
conseguimos escapar — refiro-me a todos os factores de crença, como o
medo e a esperança, o preconceito e a paixão, a imitação e o partidarismo, a
pressão envolvente da nossa classe e grupo. Na verdade, damos connosco a
acreditar sem saber ao certo como nem porquê. O Sr. Balfour dá o nome de
«autoridade» a todas estas influências, nascidas do clima intelectual, que
tornam as hipóteses possíveis ou impossíveis para nós, vivas ou mortas. Aqui
nesta sala, todos acreditamos em moléculas e na conservação da energia, na
democracia e no progresso necessário, no cristianismo protestante e no dever
de lutar pela «doutrina do imortal Monroe», tudo por nenhuma razão digna
do nome. A claridade interior com que discernimos estes assuntos não é
maior, e talvez até seja menor, do que aquela que qualquer descrente nos
mesmos pode ter. A sua inconvencionalidade teria provavelmente algumas
razões a mostrar a favor das suas conclusões; mas para nós, não é a ideia
sagaz e sim o prestígio das opiniões o que as faz soltar uma centelha e
acender os nossos paióis adormecidos da fé. A nossa razão satisfaz-se
cabalmente, novecentas e noventa e nove em cada mil de nós, se encontrar
alguns argumentos que se possa recitar no caso de alguém criticar a nossa
credulidade. A nossa fé é fé na fé de outrem e, nas questões mais importantes,
é isto sobretudo o que acontece. A nossa crença na própria verdade, por
exemplo, de que há uma verdade, e de que esta e as nossas mentes foram
feitas uma para a outra — o que é senão uma afirmação apaixonada de
desejo, em que o nosso sistema social nos apoia? Queremos ter uma verdade;
queremos acreditar que as nossas experiências, estudos e discussões têm de
nos colocar numa posição cada vez melhor em direcção à verdade; e nesta
linha concordamos resolver as nossas vidas pensantes. Mas se um céptico
pirrónico nos perguntar como podemos saber tudo isto, poderá a nossa lógica
dar-lhe uma resposta? Não! Certamente que não. Trata-se apenas de uma
volição contra outra — nós dispostos a avançar para uma vida com base
numa confiança ou pressuposto que ele, por sua parte, não se preocupa em
fazer.7
Por regra, rejeitamos a crença em todos os factos e teorias para as quais
não temos uso. As emoções cósmicas de Clifford não vêem qualquer
utilidade nos sentimentos cristãos. Huxley ataca duramente os bispos porque
no seu esquema de vida o sacerdócio não tem qualquer utilidade. Newman,
pelo contrário, passa para o catolicismo romano, e encontra todo o género de
boas razões para aí permanecer, porque um sistema sacerdotal é para ele uma
necessidade orgânica e um deleite. Por que são tão poucos os «cientistas» que
chegam sequer a olhar para os indícios a favor da chamada «telepatia»?
Porque pensam que, como um importante biólogo já falecido me disse uma
vez, mesmo se tal coisa fosse verdadeira, os cientistas deviam unir-se para a
manter reprimida e escondida. Esta desfaria a uniformidade da natureza e
todo o género de outras coisas sem as quais os cientistas não podem levar a
cabo as suas actividades investigativas. Mas se a este mesmo homem se
mostrasse algo que ele, como cientista, pudesse fazer com a telepatia, talvez
não só examinasse os indícios como até os considerasse suficientemente
bons. Esta mesma lei que os lógicos nos impõem — se me permitem chamar
«lógicos» a todos os que nesta questão excluiriam a nossa natureza volitiva
— em nada se baseia senão no seu próprio desejo natural de excluir todos os
elementos nos quais, na sua qualidade profissional de lógicos, não
conseguem ver qualquer utilidade.
É claro, portanto, que a nossa natureza inintelectual influencia as nossas
convicções. Há tendências passionais e volições que ocorrem antes da crença,
outras que surgem depois, e só as últimas entram em cena demasiado tarde; e
não entram demasiado tarde quando o trabalho passional prévio já as vinha
preparando. O argumento de Pascal, em vez de não ter força, parece assim
um tira-teimas como os outros, e é a última estocada necessária para tornar
completa a nossa fé nas missas e na água benta. É evidente que este estado de
coisas nada tem de simples; a mera penetração intelectual e a lógica, seja o
que for que possam fazer idealmente, não são as únicas coisas que de facto
produzem as nossas crenças.

IV
O nosso dever seguinte, tendo reconhecido este estado de coisas misturado, é
perguntar se é ou não simplesmente repreensível e patológico, ou se, pelo
contrário, temos ou não de o tratar como um elemento normal ao tomar
decisões. A tese que defendo é, em poucas palavras, a seguinte: A nossa
natureza passional não só pode, legitimamente, como deve decidir uma
opção entre proposições, sempre que se trata de uma opção genuína que não
pode, pela sua natureza, ser decidida numa base intelectual; pois afirmar,
em tais circunstâncias, «Não decidas, deixa a questão em aberto», é em si
uma decisão passional — tal como decidir pelo sim ou pelo não — e tem o
mesmo risco de perder a verdade. A tese aqui expressa abstractamente
tornar-se-á em breve, espero, bastante clara. Mas antes tenho de me demorar
um pouco mais no trabalho preliminar.

V
Observar-se-á que, para o que interessa a esta discussão, estamos em terreno
«dogmático» — terreno, quero dizer, que deixa completamente de parte o
cepticismo filosófico sistemático. O postulado de que há a verdade e que o
destino das nossas mentes é alcançá-la, estamos deliberadamente resolvidos a
aceitar, embora o céptico não o faça. Afastamo-nos da sua companhia,
portanto, absolutamente, daqui para a frente. Mas a fé, segundo a qual a
verdade existe e as nossas mentes a podem descobrir, pode ser defendida de
duas maneiras. Podemos falar no modo empirista e no modo absolutista de
acreditar na verdade. Os absolutistas neste assunto afirmam que não só
conseguimos chegar ao conhecimento da verdade, como podemos saber
quando alcançámos esse conhecimento; ao passo que os empiristas pensam
que embora o possamos alcançar, não podemos saber infalivelmente quando
o fizemos. Saber é uma coisa e saber com certeza que sabemos é outra. Pode-
se defender que a primeira é possível sem a segunda; é por isto que os
empiristas e os absolutistas, embora nenhum seja céptico no sentido
filosófico usual do termo, exibem nas suas vidas graus de dogmatismo muito
diferentes.
Se olharmos para a história das opiniões, vemos que a tendência empirista
prevaleceu em grande medida na ciência, ao passo que na filosofia a
tendência absolutista tem feito tudo à sua maneira. O género característico de
felicidade, de facto, que as filosofias produzem, tem consistido, sobretudo, na
convicção, sentida por cada escola ou sistema sucessivos, de que, por meio
dessa escola ou sistema, se alcançara a certeza definitiva. «As outras
filosofias são colecções de opiniões, na sua maioria falsas; a minha filosofia
dá-nos um ponto fixo para sempre» — quem não reconhece nisto a tónica de
todo o sistema digno desse nome? Um sistema, para sequer ser um sistema,
tem de se apresentar como um sistema fechado, reversível neste ou naquele
detalhe, talvez, mas nunca nas suas características essenciais!
A ortodoxia escolástica, a que sempre temos de recorrer quando
desejamos encontrar uma afirmação perfeitamente clara, elaborou
belissimamente esta convicção absolutista na chamada doutrina dos «indícios
objectivos». Se, por exemplo, sou incapaz de duvidar de que existo agora
perante vós, que dois são menos do que três, ou que se todos os homens são
mortais, então também sou mortal, é porque estas coisas iluminam o meu
intelecto irresistivelmente. A justificação última destes indícios objectivos
que certas proposições têm é a adequatio intellectus nostri cum re. A certeza
que traz envolve uma aptitudinem ad extorquendum certum assensum por
parte da verdade visada e, por parte do sujeito, uma quietem in cognitione,
assim que o objecto é mentalmente apreendido, não deixando lugar a
qualquer possibilidade de dúvida; e em todo este processo nada opera senão a
entitas ipsa do objecto e a entitas ipsa da mente. A nós, desleixados
pensadores modernos, desagrada-nos a conversa em latim — na verdade,
desagrada-nos conversar com termos bem definidos de todo em todo; mas no
fundo o nosso próprio estado de espírito é muito semelhante a isto sempre
que nos deixamos ir acriticamente: vocês acreditam nos indícios objectivos, e
eu também. De algumas coisas sentimos que estamos certos: sabemos, e
sabemos que sabemos. Algo ressoa em nós, um sino que bate as doze
badaladas, quando os ponteiros do nosso relógio mental deram a volta ao
mostrador e se encontram ao meio-dia. Os maiores empiristas entre nós só o
são quando reflectem: abandonados aos seus instintos, dogmatizam como
papas infalíveis. Quando os Clifford nos dizem como é pecaminoso ser
cristão com base em tão «insuficientes indícios», a insuficiência é na verdade
a última coisa que têm em mente. Para eles, os indícios são absolutamente
suficientes, só que em sentido contrário. Acreditam tão completamente numa
ordem anticristã do universo que não há qualquer opção viva: a hipótese do
cristianismo está morta à partida.

VI
Mas agora, visto que todos somos tais absolutistas por instinto, o que
devemos fazer, na qualidade de estudantes de filosofia, acerca deste facto?
Devemos defendê-lo e sancioná-lo? Ou tratá-lo-emos como uma fraqueza da
nossa natureza, da qual temos de nos libertar, caso o possamos fazer?
Creio sinceramente que o último procedimento é o único que podemos
adoptar enquanto homens de reflexão. Os indícios objectivos e a certeza são
sem dúvida excelentes ideais com que brincar, mas onde, neste planeta
iluminado pela Lua e visitado por sonhos, os encontramos? Eu próprio sou,
portanto, um completo empirista no que diz respeito à minha teoria do
conhecimento humano. Vivo, certamente, de acordo com a fé prática de que
temos de continuar a experimentar e a reflectir sobre a nossa experiência,
pois só assim as nossas opiniões se podem aproximar da verdade; mas creio
que a atitude de adoptar qualquer uma delas — é-me de todo indiferente qual
— como se jamais pudesse ser reinterpretável ou corrigível, é um tremendo
equívoco, e penso que toda a história da filosofia me irá corroborar. Não há
senão uma verdade indefectivelmente certa, que o próprio cepticismo
pirrónico deixa de pé — a verdade de que o fenómeno presente da
consciência existe. Isso, contudo, é o ponto de partida nu do conhecimento, a
mera admissão de uma matéria acerca da qual filosofar. As diversas filosofias
são meras tentativas de exprimir o que esta matéria realmente é. E se vamos
às nossas bibliotecas quanto desacordo descobrimos! Onde se encontra uma
resposta indubitavelmente verdadeira? Além de proposições abstractas
comparativas (tais como «dois mais dois é igual a quatro»), proposições que
em si mesmas nada nos dizem acerca da realidade concreta, não encontramos
qualquer proposição que alguém tenha considerado evidentemente certa ao
ponto de nunca a terem declarado uma falsidade, ou pelo menos cuja verdade
nunca foi seriamente questionada por outrem. Transcender os axiomas da
geometria, não a brincar, mas a sério, por parte de alguns dos nossos
contemporâneos (como Zöllner e Charles H. Hinton), e a rejeição de toda a
lógica aristotélica pelos hegelianos, são exemplos flagrantes a este respeito.
Nenhum teste concreto daquilo que é realmente verdadeiro foi alguma
vez objecto de consenso. Alguns tornam o critério externo ao momento da
percepção, colocando-o na revelação, no consensus gentium, nos instintos do
coração ou na experiência sistematizada do género humano. Outros
transformam o momento perceptivo em teste de si próprio — Descartes, por
exemplo, com as suas ideias claras e distintas garantidas pela veracidade de
Deus; Reid com o seu «senso comum»; e Kant com as suas formas do juízo
sintético a priori. O carácter inconcebível do oposto; a capacidade de ser
verificado pelos sentidos; a posse de unidade orgânica completa ou auto-
relação, realizada quando uma coisa é o seu próprio outro — são cânones que
foram, por sua vez, usados. Os louvadíssimos indícios objectivos não estão,
triunfalmente, em lado algum; é uma mera aspiração ou Grenzbegriff,
assinalando o ideal infinitamente remoto da nossa vida pensante. Afirmar que
determinadas verdades agora o possuem é simplesmente afirmar que, quando
as consideramos verdadeiras, e são verdadeiras, os indícios a seu favor são
objectivos e de contrário não. Mas na prática, a nossa convicção de que os
indícios por que nos guiamos são da variedade genuinamente objectiva, é
apenas mais uma opinião subjectiva que se acrescenta às outras. Pois já se
reivindicou a objectividade dos indícios favoráveis e a certeza absoluta para
uma tão grande variedade de opiniões contraditórias! O mundo é inteiramente
racional — a sua existência é um facto bruto último; há um Deus pessoal —
um Deus pessoal é inconcebível; há um mundo físico extramental
imediatamente conhecido — a mente apenas pode conhecer as suas próprias
ideias; existe um imperativo moral — a obrigação é apenas o resultado dos
desejos; há em todos um princípio espiritual permanente — há apenas estados
mentais inconstantes; há uma cadeia interminável de causas — há uma
primeira causa absoluta; uma necessidade eterna — uma liberdade; um
propósito — nenhum propósito; um Uno primordial — um Múltiplo
primordial; uma continuidade universal — uma descontinuidade essencial
nas coisas; uma infinidade — nenhuma infinidade. Há isto — há aquilo; nada
há, na verdade, que alguém não tenha considerado absolutamente verdadeiro,
ao passo que o seu vizinho o considerou absolutamente falso; e nenhum
absolutista entre eles parece ter alguma vez considerado que o problema pode
ter sido sempre essencial e que o intelecto, mesmo com a verdade
directamente ao seu alcance, pode não ter qualquer sinal infalível para saber
se é ou não verdadeiro. Efetivamente, quando recordamos que a mais
flagrante aplicação prática à vida da doutrina da certeza objectiva foi o
trabalho consciencioso do Santo Ofício da Inquisição, sentimo-nos menos
tentados do que nunca a ouvir com bonomia tal doutrina.
Mas observem agora, peço-vos, que quando, na qualidade de empiristas,
abandonamos a doutrina da certeza objectiva, não deixamos por isso de
procurar a verdade em si ou ter esperança nela. Ainda depositamos a nossa fé
na sua existência e ainda acreditamos que conseguimos progredir cada vez
mais na sua direcção, continuando sistematicamente a acumular experiências
e a pensar sobre elas. A grande diferença entre nós e o escolástico está no
lado para o qual nos voltamos. A força do seu sistema está nos princípios, na
origem, no terminus a quo do seu pensamento; para nós a força está no
resultado, no desfecho, no terminus ad quem. O decisivo não é de onde vem,
mas aonde conduz. Não importa a um empirista qual a procedência de uma
hipótese que se lhe depara: pode tê-la obtido por meios justos ou ilícitos;
pode ter-lhe sido sussurrada pela paixão ou sugerida pelo acaso; mas se a
direcção total do pensamento continuar a confirmá-lo, é isso o que significa
dizer que é verdadeiro.

VII
Um aspecto ainda, pequeno, mas importante, e concluímos os nossos
preliminares. Há duas maneiras de encarar o nosso dever, no que diz respeito
à opinião — maneiras completamente diferentes e, no entanto, maneiras a
cuja diferença a teoria do conhecimento parece ter dado até agora muito
pouca atenção. Temos de saber a verdade; temos de evitar o erro — estes são
os nossos primeiros e grandiosos mandamentos, como pretendentes ao
conhecimento; mas não são duas maneiras de afirmar um mesmo
mandamento, são duas leis distintas. Embora possa de facto acontecer que
acreditar na verdade A tenha a consequência lateral de nos livrarmos de
acreditar na falsidade B, quase nunca se dá o caso de acreditarmos
necessariamente em A apenas por não acreditarmos em B. Podemos, ao evitar
B, acabar acreditando noutras falsidades, C ou D, tão más como B; ou
podemos evitar B tão-pouco acreditando seja no que for, nem mesmo em A.
Acreditem na verdade! Evitem o erro! — Estas, como se vê, são duas leis
materialmente diferentes; e ao escolher entre elas podemos acabar por dar
uma tonalidade diferente a toda a nossa vida intelectual. Podemos encarar a
caça à verdade como primordial e a fuga ao erro como secundária; ou
podemos, por outro lado, tratar a fuga ao erro como algo mais imperativo e
deixar a verdade correr os seus riscos. Clifford, na instrutiva passagem que
citei, exorta-nos a escolher o segundo caminho. Não acreditem em coisa
alguma, diz-nos, mantenham para sempre a mente em suspenso, em vez de,
cingindo-se a indícios insuficientes, incorrer no terrível risco de acreditar
numa mentira. Vocês, por outro lado, podem pensar que o risco de cair em
erro é algo de somenos importância por comparação à bênção do
conhecimento genuíno, e aceitar serem enganados muitas vezes na vossa
investigação em vez de adiar indefinidamente a hipótese de acertar na
verdade. Por mim considero impossível acompanhar Clifford. Temos de
recordar que estes sentimentos sobre o nosso dever perante a verdade ou o
erro são, em todo o caso, apenas expressões da nossa vida passional.
Biologicamente consideradas, as nossas mentes são tão aptas a destilar a
falsidade como a veracidade, e quem afirma «Antes passar toda a vida sem
crenças do que acreditar numa mentira!» apenas mostra o seu preponderante
horror privado de se tornar um palerma. Pode ser crítico relativamente a
muitos dos seus desejos e medos, mas a este medo obedece servilmente. Não
pode imaginar que alguém questione a sua força vinculadora. Da minha parte,
tenho também horror a ser intrujado; mas acredito que neste mundo podem
acontecer coisas piores a um homem além de ser intrujado: pelo que a
exortação de Clifford tem uma ressonância completamente fantástica nos
meus ouvidos. É como um general que diz os seus soldados que mais vale
evitar eternamente a batalha do que arriscar uma única ferida. Não se
consegue assim vitórias sobre inimigos ou sobre a natureza. Os nossos erros
não são com certeza coisas tão horrivelmente solenes. Num mundo onde
estamos tão certos de incorrer neles, por muito prudentes que sejamos, uma
certa ligeireza de espírito parece mais saudável do que este nervosismo
exagerado por sua causa. Em todo o caso, parece o mais apropriado ao
filósofo empirista.

VIII
E agora, depois de toda esta introdução, passemos de imediato à nossa
questão. Afirmei, e agora repito, que não só vemos que, na realidade, a nossa
natureza passional influencia as nossas opiniões como que há opções entre
opiniões em que se tem de encarar esta influência como um factor
determinante, tanto inevitável como legítimo, da nossa escolha.
Receio neste ponto que alguns dos que me ouvem começarão a farejar o
perigo, interpretando-me então de modo não caridoso. Dois primeiros passos
da paixão tiveram de facto de admitir como necessários — temos de pensar
de maneira a evitar a intrujice, e temos de pensar de modo a obter a verdade;
mas o caminho mais seguro para essas consumações ideais, considerarão
muito provavelmente, é de agora em diante não dar mais passos passionais.
Bom, claro que concordo, tanto quanto os factos o permitirem. Sempre
que a opção entre perder a verdade e ganhá-la não é momentosa, podemos
deitar fora a hipótese de obter a verdade e, em qualquer circunstância,
salvaguardar-nos de qualquer hipótese de acreditar em falsidades, não
decidindo sequer antes de haver indícios objectivos disponíveis. Nas questões
científicas, isto é quase sempre assim; e mesmo nos assuntos humanos em
geral, poucas vezes a necessidade de agir é tão urgente que faça uma falsa
crença sobre a qual basear a acção ser melhor do que nenhuma crença sequer.
Os tribunais, de facto, têm de decidir com base nos melhores indícios que se
pode obter no momento, porque o dever de um juiz é tanto fazer a lei como
averiguá-la, e (como me disse em tempos um juiz de grande erudição) poucos
são os casos em que vale a pena perder muito tempo: o importante é decidi-
los com base em qualquer princípio aceitável, e passar adiante. Mas na nossa
relação com a natureza objectiva somos obviamente registadores e não
produtores da verdade; e decisões tomadas apenas em função de decidir
prontamente e passar à próxima tarefa seriam completamente deslocadas. Em
toda a amplitude da natureza física os factos são o que são,
independentemente de nós, e raramente há a propósito deles uma urgência tal
que tenha de se enfrentar os riscos de ser enganado por acreditar numa teoria
prematura. As questões aqui são sempre opções triviais, as hipóteses
dificilmente estão vivas (em todo o caso, não estão vivas para nós
espectadores), a escolha entre acreditar na verdade ou na falsidade raramente
é forçosa. A atitude do equilíbrio céptico é, portanto, absolutamente sensata,
para que evitemos os erros. Que diferença realmente fará para a maior parte
de nós se temos ou não uma teoria dos raios Röntgen, se acreditamos ou não
na substância mental, se temos ou não convicções acerca da causalidade dos
nossos estados conscientes? É indiferente. Tais opções não são forçosas para
nós. Em todos os aspectos, é melhor não as fazer, continuando, todavia, a
pesar as razões pro et contra de modo indiferente.
Falo aqui, é claro, da mente puramente judicativa. No que interessa à
descoberta, tal indiferença não é tão fortemente recomendável, e a ciência
estaria muito menos avançada do que está se se mantivesse fora de cena os
desejos inflamados dos indivíduos em ver confirmada a sua própria fé. Veja-
se, por exemplo, a sagacidade que Spencer e Weismann agora exibem. Por
outro lado, se querem um perfeito bronco a investigar, têm, afinal, de
escolher o homem que não tem qualquer interesse nos resultados: é o inepto
autorizado, o tolo genuíno. O investigador mais útil, porque é o observador
mais sensível, é sempre aquele cujo interesse ardente num dos lados da
questão é equilibrado por um nervosismo igualmente intenso, para que não se
deixe iludir.8 A ciência organizou este nervosismo tornando-o uma técnica
normal, o seu chamado «método de verificação»; e apaixonou-se tão
profundamente pelo método que se pode mesmo afirmar que parou de se
preocupar com a verdade por si, de todo em todo. É apenas a verdade
enquanto tecnicamente verificada que lhe interessa. A verdade das verdades
podia assumir uma forma meramente afirmativa e ela recusaria tocar-lhe. A
ciência podia repetir com Clifford que tal verdade seria roubada em
desrespeito ao seu dever perante a humanidade. As paixões humanas, todavia,
são mais fortes do que as regras técnicas. «Le coeur a ses raisons», como
afirma Pascal, «que la raison ne connaît point»; e por muito que o árbitro, o
intelecto abstracto, seja indiferente a tudo excepto as simples regras do jogo,
os jogadores concretos que lhe dão os materiais para julgar estão
normalmente, cada um deles, apaixonados pela sua própria «hipótese viva»
de estimação. Concordemos, todavia, que sempre que não haja uma opção
forçosa, o intelecto friamente judicativo, desprovido de qualquer hipótese de
estimação, salvaguardando-nos, como faz, do engano, em todo o caso, deve
ser o nosso ideal.
Levanta-se em seguida a questão: não haverá algures opções forçosas nas
nossas questões especulativas, e será que podemos (como homens que talvez
estejam pelo menos tão interessados em obter positivamente a verdade como
em meramente evitar o engano) esperar sempre impunemente até que tenham
chegado os indícios coercivos? Parece a priori improvável que a verdade se
ajustasse assim tão bem às nossas necessidades e poderes. Na grande
hospedaria da natureza, raramente os bolos, a manteiga e o xarope ficam tão
suaves e deixam os pratos tão limpos. Na verdade, devíamos encará-los com
desconfiança científica se o fizessem.

IX
As questões morais apresentam-se imediatamente como questões cuja
solução não pode esperar por uma prova tangível. Uma questão moral não é
sobre o que tangivelmente existe, mas sobre o que é bom, ou seria bom se
existisse. A ciência pode dizer-nos o que existe; mas para comparar os
valores, tanto daquilo que existe como do que não existe, temos de consultar
não a ciência mas aquilo a que Pascal chama o nosso «coração». A própria
ciência consulta o coração quando estabelece que a infinita averiguação dos
factos e a correcção das crenças falsas são os bens supremos para o homem.
Desafie-se a afirmação e a ciência só pode repeti-la de modo oracular, ou
então prová-la, mostrando que tal confirmação e correcção trazem ao homem
todo o género de outros bens que o coração do homem por sua vez declara. A
questão de ter crenças morais, de todo em todo, ou de não as ter, é decidida
pela nossa vontade. Serão as nossas preferências morais verdadeiras ou
falsas, ou serão apenas fenómenos biológicos peculiares, tornando as coisas
boas ou más para nós, mas indiferentes em si? Como pode o vosso puro
intelecto decidir? Se o vosso coração não quer um mundo de realidade moral,
a vossa cabeça seguramente nunca vos fará acreditar num. O cepticismo
mefistofélico, na verdade, satisfará os instintos lúdicos da cabeça muito
melhor do que qualquer idealismo rigoroso. Alguns homens (mesmo em
idade estudantil) são tão naturalmente frios que a hipótese moral nunca tem
para eles qualquer vida pungente, e na sua presença altiva o moralista ardente
sente-se sempre estranhamente pouco à vontade. A aparência de
conhecimento está do lado daqueles, a naiveté e a credulidade do lado deste.
Contudo, no seu coração mudo, este agarra-se à convicção de que não é um
palerma e que há um domínio em que (como afirma Emerson) toda a
perspicácia e superioridade intelectual daqueles não valem mais do que a
astúcia de uma raposa. O cepticismo moral não é mais fácil de refutar ou
provar através da lógica do que o cepticismo intelectual. Quando sustentamos
que há verdade (seja de que tipo for), fazemo-lo com toda a nossa natureza, e
decidimos ficar de pé ou cair, consoante os resultados. O céptico, com toda a
sua natureza, adopta a atitude da dúvida: mas qual de nós é o mais sensato, só
a Omnisciência sabe.
Passemos agora destas questões amplas sobre o bem para certa classe de
questões de facto, questões respeitantes a relações pessoais, estados mentais
entre um homem e outro. Gostam de mim ou não? — por exemplo. Se
gostam ou não, dependerá, em inúmeras circunstâncias, de chegar a acordo
convosco, da minha disposição para pressupor que devem gostar de mim e de
vos mostrar alguma confiança e expectativa. O que vos faz simpatizar
comigo, em muitos casos, é a fé prévia que tenho em como o farão. Mas se
me mantenho à distância e recuso mover-me um só centímetro antes de ter
indícios objectivos, antes de terem feito algo apropriado, como dizem os
absolutistas, ad extorquendum assensum meum, aposto que a vossa simpatia
nunca se manifestará. Quantos corações de mulher se deixam conquistar pela
mera insistência confiante de um homem em como têm de o amar! Não
aceitará a hipótese de que não o podem fazer. O desejo por certo tipo de
verdade provoca aqui a existência dessa verdade especial; e assim é em
inúmeros casos diferentes. Quem ganha promoções, favores, nomeações,
senão o homem em cuja vida se vê que estas coisas desempenham o papel de
hipóteses vivas, que conta com elas, sacrifica outras coisas por causa delas
antes de as ter à vista e se arrisca de antemão por elas? A sua fé age sobre os
poderes acima de si como uma reivindicação, e cria a sua própria verificação.
Um organismo social de qualquer género que seja, pequeno ou grande, é
o que é porque cada membro cumpre o seu dever confiante de que os outros
cumprirão o deles. Sempre que se alcança um resultado desejado pela
cooperação de muitas pessoas independentes, a sua existência factual é uma
pura consequência da fé prévia que as pessoas imediatamente envolvidas têm
umas nas outras. Um governo, um exército, um sistema comercial, um navio,
um colégio, uma equipa de atletas, todos existem sob esta condição, sem a
qual não só nada se alcança, como nada alguma vez se procura alcançar. Um
comboio inteiro de passageiros (que individualmente são bastante corajosos)
será saqueado por um punhado de salteadores, simplesmente porque os
últimos podem contar uns com os outros, enquanto cada passageiro receia
que ao encetar um movimento de resistência, será baleado antes que mais
alguém o ajude. Se acreditássemos que todos os passageiros se levantariam
ao mesmo tempo connosco, cada um levantar-se-ia individualmente, e jamais
se tentaria assaltar comboios. Há, portanto, casos em que um facto não se
pode sequer dar a menos que exista uma fé preliminar no seu advento. E onde
a fé num facto pode ajudar a criar esse facto, uma lógica segundo a qual a fé
que se adianta aos indícios científicos é o «tipo mais baixo de imoralidade»
em que um ser pensante pode incorrer, seria uma lógica doente. No entanto,
tal é a lógica pela qual os nossos absolutistas científicos pretendem regular as
nossas vidas!

X
Nas verdades que dependem da nossa acção pessoal, portanto, a fé baseada
no desejo é certamente algo legítimo e possivelmente indispensável.
Mas agora, dir-se-á, tudo isto são puerilidades humanas, e nada têm a ver
com as grandes questões cósmicas, como a questão da fé religiosa. Passemos
então a essas. As religiões diferem tanto nas suas características acidentais
que ao discutir a questão religiosa temos de a tornar muito genérica e lata. O
que entendemos então agora por «hipótese religiosa»? A ciência diz que as
coisas são; a moralidade diz que umas coisas são melhores do que outras; e a
religião diz essencialmente duas coisas.
Em primeiro lugar, a religião afirma que as coisas melhores são as mais
eternas, as que se sobrepõem, as coisas que no universo lançam a última
pedra, por assim dizer, e dão a última palavra. «A perfeição é eterna» — esta
expressão de Charles Secrétan parece uma boa maneira de colocar esta
primeira afirmação da religião, uma afirmação que obviamente não pode
ainda ser cientificamente verificada, de todo em todo.
A segunda afirmação da religião é que mesmo agora ficamos melhor se
acreditarmos na sua primeira afirmação.
Consideremos agora quais são os elementos lógicos desta situação no
caso de a hipótese religiosa em ambas as suas ramificações ser realmente
verdadeira. (Evidentemente, temos de admitir à partida essa possibilidade.
Para discutirmos a questão, de todo em todo, esta tem de envolver uma opção
viva. Se para qualquer um de vocês a religião é uma hipótese que não pode
ser verdadeira segundo qualquer possibilidade viva, não precisam de ir mais
longe. Falo apenas para as «excepções que restarem».) Procedendo assim,
vemos, em primeiro lugar, que a religião se oferece como uma opção
momentosa. Supostamente ganhamos, agora mesmo, ao acreditar, e perdemos
ao não acreditar, um certo bem vital. Em segundo lugar, a religião é uma
opção forçosa, no que diz respeito a esse bem. Não podemos evitar a questão
permanecendo cépticos e esperando que se faça mais luz, porque, embora
assim evitemos realmente o erro no caso de a religião ser contrária à
verdade, perdemos o bem, no caso de ser verdadeira, tão seguramente como
se de facto escolhêssemos não acreditar. É como se um homem hesitasse
indefinidamente em pedir uma mulher em casamento, por não ter a certeza
absoluta de que depois de a levar para casa ela continua a ser um anjo. Não
estará a privar-se dessa possibilidade angélica particular tão decisivamente
como se casasse com outra pessoa? O cepticismo, portanto, não consiste em
evitar a opção; é a opção por certo tipo particular de risco. Antes arriscar não
acertar na verdade do que a hipótese de cair em erro — esta é a posição
exacta do nosso vetante da fé. Arrisca-se activamente tanto quanto o crente;
está a apostar todos os cavalos contra o cavalo da hipótese religiosa, tal como
um crente aposta na hipótese religiosa contra todos os outros cavalos. Pregar-
nos o cepticismo como um dever até se encontrar «indícios suficientes» a
favor da religião, equivale, portanto, a dizer-nos que, na presença da hipótese
religiosa, é mais sensato e melhor ceder ao nosso medo de que esta seja
errónea do que ceder à nossa esperança de que pode ser verdadeira. Não se
trata do intelecto contra todas as paixões, portanto; trata-se apenas do
intelecto com uma paixão impondo a sua lei. E por que meio, em boa
verdade, se garante a suprema sabedoria desta paixão? Logro por logro, que
prova há de que o logro que resulta da esperança é pior do que o que resulta
do medo? Por mim, não vejo prova alguma; e simplesmente recuso obedecer
à ordem do cientista para imitar o seu tipo de opção, num caso em que o meu
próprio interesse é suficientemente importante para me dar o direito de
escolher a minha própria forma de risco. Se a religião for verdadeira e os
indícios a seu favor ainda insuficientes, não desejo, deixando que extingam as
chamas da minha natureza (que me parece afinal ter algo a ver com este
assunto), abdicar da minha única oportunidade na vida de entrar para o lado
vencedor — dependendo essa oportunidade, evidentemente, da minha
disposição para correr o risco de agir como se a minha necessidade passional
de compreender religiosamente o mundo possa ser profética e correcta.
Tudo isto supondo que pode realmente ser profética e correcta, e que,
mesmo para nós, que discutimos o assunto, a religião é uma hipótese viva que
pode ser verdadeira. Para a maioria de nós, a religião surge-nos de outra
maneira ainda, que torna ainda mais ilógico um veto à nossa fé activa. O
aspecto mais perfeito e eterno do universo é representado nas nossas religiões
como algo que tem uma forma pessoal. Quando se é religioso, o universo não
é mais um mero Isso, mas um Tu, para nós; e qualquer relação que pode ser
possível entre pessoas pode também ser possível aqui. Por exemplo, embora
num sentido sejamos parcelas passivas do universo, noutro sentido
mostramos uma curiosa autonomia, como se fôssemos pequenos centros
activos autónomos. Sentimos, além disso, que é como se o apelo que
sentimos da religião se exercesse sobre a nossa boa vontade activa, como se
os indícios pudessem ficar para sempre escondidos de nós a menos que
percorramos metade do caminho na sua direcção. Tomando numa ilustração
trivial: tal como um homem que numa companhia de cavalheiros não tomasse
quaisquer iniciativas, pedisse uma garantia por cada concessão, e não
acreditasse na palavra de quem quer que fosse sem provas, privar-se-ia, com
tal rudeza, de qualquer gratificação social a que um espírito mais confiante
teria acesso — também aqui, quem se fecha numa atitude lógica resmungona
e tenta fazer os deuses arrancar o seu reconhecimento contra a sua vontade,
não o obtendo de outro modo, pode perder para sempre a sua única
oportunidade de travar conhecimento com os deuses. Este sentimento, que
nos é imposto sem que saibamos de onde vem, de que ao acreditar
obstinadamente que há deuses (embora não o fazer fosse tão fácil tanto para a
nossa lógica como para a nossa vida) prestamos ao universo o mais profundo
serviço de que somos capazes, parece parte da essência viva da hipótese
religiosa. Se a hipótese fosse verdadeira em todas as suas partes, incluindo
esta, então o puro intelectualismo, com o seu veto a que tomemos iniciativas
voluntárias, seria um absurdo; e exigir-se-ia logicamente alguma participação
da nossa empatia natural. Eu, portanto, por mim, não consigo ver-me aceitar
as regras agnósticas para a procura da verdade, ou concordar voluntariamente
em manter a minha natureza volitiva fora de jogo. Não o posso fazer por esta
razão simples: uma regra de pensamento que me impediria em absoluto de
reconhecer certos tipos de verdade se esses tipos de verdade estiverem
realmente lá, seria uma regra irracional. Isto, para mim, é tudo o que há a
dizer sobre a lógica formal da situação, independentemente dos tipos de
verdade que possam materialmente existir.
***
Confesso que não vejo como se pode escapar a esta lógica. Mas a triste
experiência faz-me recear que alguns de vocês ainda possam inibir-se de
afirmar radicalmente comigo, in abstracto, que temos o direito de acreditar
por nossa conta e risco em qualquer hipótese que esteja suficientemente viva
para ser uma tentação para a nossa vontade. Suspeito, contudo, que se isto for
assim, é porque se afastaram completamente do ponto de vista lógico
abstracto e pensam (talvez sem se aperceberem) em alguma hipótese religiosa
particular que para vós está morta. Aplicam a liberdade de «acreditar no que
se quer» a alguma superstição patente; e a fé em que pensam é a fé definida
pelo aluno quando disse: «A fé é quando acreditamos numa coisa que
sabemos não ser verdadeira». Não posso senão repetir que isto é um
equívoco. In concreto, a liberdade de acreditar só pode abranger opções vivas
que o intelecto do indivíduo não pode resolver por si; e as opções vivas nunca
parecem absurdas a quem as tem em consideração. Quando olho para a
questão religiosa tal como se coloca realmente a homens concretos, e quando
penso em todas as possibilidades que envolve, tanto prática como
teoricamente, esta ordem de pôr um travão ao nosso coração, instintos e
coragem, e esperar — agindo evidentemente entretanto mais ou menos como
se a religião não fosse verdadeira9 — até ao dia do juízo, ou até ao dia em
que o nosso intelecto e sentidos, trabalhando conjuntamente, possam ter
adquirido indícios suficientes — esta ordem, digo, parece-me o ídolo mais
bizarro que se fabricou na caverna filosófica. Fôssemos absolutistas
escolásticos, talvez tivéssemos uma desculpa maior. Se tivéssemos um
intelecto infalível, com as suas certezas objectivas, podíamo-nos sentir
desleais perante um órgão de conhecimento tão perfeito ao não confiar
exclusivamente nele, não esperando pela sua palavra libertadora. Mas se
somos empiristas, se acreditamos não haver em nós quaisquer sinos a tocar a
rebate quando estamos perante a verdade, parece que pregar tão solenemente
que temos o dever de aguardar pelo toque do sino não passa de uma
excentricidade vã. Na verdade, podemos aguardar, se quisermos — espero
que não pensem que o nego — mas se o fizermos, fazemo-lo por nossa conta
e risco, tal como se acreditássemos. Em todo o caso agimos, tomando as
rédeas da nossa própria vida. Nenhum de nós devia impor vetos aos outros,
nem trocar palavras agressivas. Devemos, pelo contrário, respeitar delicada e
profundamente a liberdade mental de cada um: só então realizaremos a
república intelectual, só então teremos aquele espírito de tolerância interior
sem o qual toda a tolerância exterior se torna oca, e que é a glória do
empirismo; só então viveremos e deixaremos viver, tanto nas coisas
especulativas como nas práticas.
Comecei com uma referência a Fitzjames Stephen; permitam-me que
termine citando-o:

«O que pensas de ti mesmo? O que pensas do mundo? […] São


questões com que todos têm de lidar como lhes parecer melhor. São
charadas esfíngicas e, de uma maneira ou doutra, temos de lidar com
elas […] Em todo o comércio importante da vida, temos de dar um
salto no escuro […] Se decidimos deixar as adivinhas sem resposta, é
uma escolha. Se hesitamos na nossa resposta, também isso é uma
escolha; mas seja qual for a escolha que fazemos, fazemo-la por nossa
conta e risco. Se um homem escolhe voltar completamente as costas a
Deus e ao futuro, ninguém o pode impedir. Ninguém pode mostrar
para lá da dúvida razoável que está enganado. Se um homem pensa o
contrário, e se age tal como pensa, não vejo como alguém pode provar
que ele está enganado. Cada qual tem de agir como acha melhor, e se
está errado tanto pior para ele. Estamos num desfiladeiro, no meio de
um turbilhão de neve e um nevoeiro denso, através do qual
entrevemos de vez em quando caminhos que podem ser enganadores.
Se ficamos quietos, morremos congelados. Se escolhemos a estrada
errada, somos feitos em pedaços. Não sabemos com certeza se há ou
não uma estrada certa. O que temos de fazer? “Ser fortes e corajosos”.
Ajam pelo melhor, esperem o melhor, aceitem o que vier […] Se a
morte a tudo põe fim, não há maneira melhor de ir ao seu encontro.»10

James faz originalmente uma analogia com a electricidade, e não com a


linguística, pois em inglês chama-se respectivamente live wire e dead wire a
um fio com e sem electricidade, ou positivo e negativo. (N. do T.)
Compare-se com a admirável página 310 na obra de S. H. Hodgson, Time
and Space, Londres, 1865.
Compare-se com o ensaio de Wilfrid Ward, «The Wish to Believe», no seu
Witness to the Unseen, McMillan & Co., 1893.
Como a crença se mede pela acção, quem nos proíbe de acreditar na verdade
da religião, proíbe-nos também necessariamente de agir como deveríamos se
acreditássemos na sua verdade. Toda a defesa da fé religiosa depende da
acção. Se a acção exigida ou inspirada pela hipótese religiosa não for de
modo algum diferente da que é ditada pela hipótese naturalista, a fé religiosa
é uma pura superfluidade, que é melhor podar, e a controvérsia acerca da sua
legitimidade é uma frivolidade, indigna de mentes sérias. Eu próprio acredito,
obviamente, que a hipótese religiosa dá ao mundo uma expressão que
determina especificamente as nossas reacções, e as torna em grande parte
diferentes daquilo que podiam ser num esquema de crença puramente
naturalista.
Liberty, Equality, Fraternity, p. 353, 2.ª edição, Londres, 1874.
4. Será a crença em Deus apropriadamente básica?
Alvin Plantinga

Muitos filósofos têm apelado à objecção indiciarista à crença teísta;


argumentam que a crença em Deus é irracional ou irrazoável ou
racionalmente inaceitável ou intelectualmente irresponsável ou noeticamente
inferior, porque, segundo afirmam, os indícios a favor desta crença são
insuficientes.11 Muitos outros filósofos e teólogos — em particular os que se
inserem na grande tradição da teologia natural — afirmam que a crença em
Deus é intelectualmente aceitável, mas apenas pelo facto de haver indícios
suficientes a seu favor. Estes dois grupos unem-se na defesa de que a crença
teísta só é racionalmente aceitável se houver indícios suficientes a seu favor.
Mais exactamente, defendem que uma pessoa só é racional ou razoável em
aceitar a crença teísta se dispuser de indícios suficientes a favor dessa crença
— isto é, só se a pessoa conhece ou crê racionalmente noutras proposições
que sustentam a proposição em causa, e acredita na última com base nas
primeiras. Em «Is Belief in God Rational?» argumentei que a objecção
indiciarista enraíza no fundacionalismo clássico, uma imagem muitíssimo
popular ou uma perspectiva total acerca da fé, do conhecimento, da crença
justificada, da racionalidade e de tópicos relacionados. Esta imagem tem sido
amplamente aceite desde Platão e Aristóteles; as suas familiares próximas
continuam talvez a ser os modos dominantes de pensar acerca destes tópicos.
Podemos imaginar o fundacionalista clássico a começar com a observação de
que algumas das nossas crenças se podem basear noutras; pode dar-se o caso
de haver um par de proposições A e B tal que acredito em A com base em B.
Embora não seja fácil caracterizar esta relação de uma maneira reveladora e
intrivial, é ainda assim familiar. Acredito que a palavra «umbroso» se soletra
u-m-b-r-o-s-o: esta crença baseia-se noutra crença minha: a crença de que é
assim que o dicionário mostra como se soletra. Acredito que 72 × 71 = 5112.
Esta crença baseia-se em diversas outras crenças que tenho: que 1 × 72 = 72;
7 × 2 = 14; 7 × 7 = 49; 49 + 1 = 50; e outras. Contudo, há crenças que aceito,
mas não com base em quaisquer outras. Chamemos-lhes «básicas». Acredito
que 2 + 1 = 3, por exemplo, e não o acredito com base noutras proposições.
Também acredito que estou sentado à minha secretária e que tenho uma
ligeira dor no joelho direito. Também estas são básicas para mim; não
acredito nelas com base em quaisquer outras proposições. Segundo o
fundacionalista clássico, algumas proposições são apropriadamente ou
adequadamente básicas relativamente a uma pessoa e outras não. As que não
são, só são racionalmente aceites com base em indícios, em que os indícios se
têm de reportar, em última análise, ao que é apropriadamente básico. A
existência de Deus, além disso, não está entre as proposições que são
apropriadamente básicas; pelo que uma pessoa só é racional ao aceitar a
crença teísta se tiver indícios a seu favor.
Ora, muitos pensadores e teólogos reformistas12 rejeitaram a teologia
natural (concebida como a tentativa de fornecer provas ou argumentos a
favor da existência de Deus). Não só afirmaram que os argumentos
apresentados não são bons, mas que toda a empresa está, de alguma maneira,
radicalmente equivocada. Em «The Reformed Objection to Natural
Theology» (Proceedings of the American Catholic Philosophical
Association, 1980), argumento que se interpreta melhor a objecção reformista
à teologia natural como uma rejeição incipiente e imprecisa do
fundacionalismo clássico. O que estes pensadores reformistas realmente têm
em mente sustentar, penso, é que a crença em Deus não tem de se basear, de
todo em todo, em argumentos ou indícios dados por outras proposições. Têm
em mente sustentar que o crente está inteiramente no seu direito intelectual ao
acreditar do modo como o faz, mesmo que não conheça qualquer bom
argumento teísta (dedutivo ou indutivo), mesmo que não acredite que haja
qualquer argumento desse género, e mesmo que não haja de facto qualquer
argumento assim. Defendem que é perfeitamente racional aceitar a crença em
Deus sem que o façamos sequer com base em quaisquer outras crenças ou
proposições. Numa palavra, defendem que a crença em Deus é
apropriadamente básica. Neste ensaio tentarei desenvolver e defender esta
posição.
Mas primeiro temos de ganhar uma compreensão mais profunda da
objecção indiciarista. É importante ver que se trata de uma discussão
normativa. O objector indiciarista defende que quem aceita a crença teísta é
de alguma maneira irracional ou noeticamente inferior. Aqui deve-se
entender «racional» e «irracional» como termos normativos ou avaliativos;
segundo o objector, o teísta não consegue satisfazer um cânone ao qual se
deveria conformar. No que diz respeito às crenças, como no que diz respeito
às acções, há um procedimento correcto e um incorrecto; temos deveres,
responsabilidades, obrigações a respeito das primeiras, tal como no que diz
respeito às segundas. Assim, segundo o Professor Blanshard:

[…] em todo o lado e sempre a crença tem um aspecto ético. Há uma


ética geral do intelecto. Defendo que o princípio fundamental dessa
ética é o mesmo na religião e fora dela. Este princípio é simples e
arrebatador: faça corresponder o assentimento aos indícios. (Brand
Blanshard, Reason and Belief. Londres: Allen & Unwin, 1974, p.
401.)

Pode-se interpretar de diferentes modos esta «ética do intelecto»; muitas


questões fascinantes — nas quais temos de nos abster de entrar — surgem
quando tentamos formular mais precisamente as diversas opções que o
indiciarista pode querer adoptar. Inicialmente parece defender que há um
género de dever ou obrigação de não aceitar sem indícios proposições como a
que afirma que Deus existe — dever desprezado pelo teísta que não dispõe de
indícios. Se não dispõe de indícios, então tem o dever de suspender a crença.
Mas há uma dificuldade frequentemente apontada: as nossas crenças, na sua
maioria, não estão directamente sob o nosso controlo. Maioritariamente,
quem acredita em Deus não consegue despojar-se dessa crença apenas
tentando fazê-lo, tal como não conseguiriam dessa maneira livrar-se da
crença de que o mundo existe há muito tempo. Pelo que talvez a obrigação
relevante não seja a de despojar-me da crença teísta se não disponho de
indícios (isso está para lá do meu poder), mas a de tentar cultivar o género de
hábitos intelectuais que tendem (esperamos) a fazer-me aceitar como básicas
apenas as proposições que são apropriadamente básicas.
Talvez se deva conceber esta obrigação teleologicamente: é uma
obrigação moral que surge de uma conexão entre determinados bens e males
intrínsecos e a maneira como as nossas crenças se formam e sustentam. (W.
K. Clifford parece interpretar desta a maneira a questão.) Talvez se deva
conceber areteticamente: há estados noéticos ou intelectuais valiosos (sejam
intrínseca ou extrinsecamente valiosos); há também virtudes intelectuais
correspondentes, hábitos de agir de maneira a promover e melhorar tais
estados virtuosos. Entre as nossas obrigações, portanto, está o dever de tentar
promover e cultivar estas virtudes em nós ou noutros. Ou talvez se deva
conceber deontologicamente: esta obrigação cabe-nos apenas em virtude de
termos o género de equipamento noético que os seres humanos de facto
exibem; não surge de uma conexão com estados de coisas valiosos. Tal
obrigação, além disso, podia ser um género especial de obrigação moral; por
outro lado, talvez seja uma obrigação amoral sui generis.
Mais ainda, talvez o indiciarista não tenha de falar aqui em dever ou
obrigação de todo em todo. Considere-se alguém que acredite que Vénus é
menor do que Mercúrio, não porque tenha indícios de qualquer género, mas
porque acha divertido sustentar uma crença que ninguém mais sustenta — ou
considere-se alguém que defende esta crença com base num qualquer
argumento escandalosamente mau. Talvez não haja qualquer obrigação que
ele não tenha cumprido. Não obstante, a sua condição intelectual é de algum
modo imperfeita; ou então, talvez, haja uma excelência comummente
alcançada que ele é incapaz de exibir. E a objecção indiciarista à crença
teísta, portanto, pode ser compreendida não como a afirmação de que o teísta
que não dispõe de indícios não cumpriu uma obrigação, mas como a
afirmação de que o teísta sofre de um determinado género de imperfeição
intelectual (de modo que a atitude apropriada a adoptar quanto a ele seria a
compaixão e não a censura).
Estas são algumas das formas, portanto, de desenvolver a objecção
indiciarista; e evidentemente há ainda outras possibilidades. Para facilidade
de exposição, tomemos a afirmação deontologicamente; o que direi aplicar-
se-á, mutatis mutandis, se o tomarmos de uma das outras maneiras. A
objecção indiciarista, portanto, pressupõe uma perspectiva acerca de que
género de proposições se aceita correcta, devida ou justificadamente como
básicas; pressupõe uma perspectiva acerca do que é apropriadamente básico.
E a afirmação minimamente relevante para o objector indiciarista é que a
crença em Deus não é apropriadamente básica. Tipicamente, esta objecção
enraíza numa forma de fundacionalismo clássico, segundo a qual uma
proposição p é apropriadamente básica para uma pessoa S se, e só se, p é ou
auto-evidente ou incorrigível para S (fundacionalismo moderno) ou,
alternativamente, se é ou auto-evidente ou «evidente sensorialmente» para S
(fundacionalismo antigo e medieval). Em «Is Belief in God Rational?»
argumentei que ambas as formas de fundacionalismo são auto-
referencialmente incoerentes e têm, portanto, de ser rejeitadas.
Enquanto a objecção indiciarista enraizar no fundacionalismo clássico,
estará efectivamente mal fundada: e tanto quanto sei, ninguém desenvolveu e
articulou qualquer outra razão para supor que a crença em Deus não é
apropriadamente básica. Claro que não se segue que é apropriadamente
básica; talvez a classe das proposições apropriadamente básicas seja mais lata
do que supõem os fundacionalistas clássicos, mas ainda assim não lata o
suficiente para admitir a crença em Deus. Mas porquê pensar assim? Quais
poderiam ser as objecções à perspectiva reformista, de que a crença em Deus
é apropriadamente básica?
Já ouvi argumentar que se não tenho quaisquer indícios a favor da
existência de Deus, então se aceito aquela proposição, a minha crença será
infundada, ou gratuita ou arbitrária. Penso que isto é um erro; permita-se-me
que explique.
Suponha-se que consideramos as crenças perceptivas, crenças de
memória e crenças que atribuem estados mentais a outras pessoas: crenças
como

1. Vejo uma árvore,


2. Tomei o pequeno-almoço esta manhã, e
3. Aquela pessoa está zangada.

Embora as crenças deste género sejam típica e apropriadamente aceites como


básicas, seria um erro descrevê-las como infundadas. Ao ter uma experiência
de certo género, acredito que estou a percepcionar uma árvore. No caso típico
não adopto esta crença com base noutras; ainda assim não é infundada. O
facto de ter uma experiência daquele género característico — usando a
linguagem do Professor Chisholm, o aparecer-me arbóreo — desempenha um
papel crucial na formação e justificação dessa crença. Podemos dizer que esta
experiência, juntamente, talvez, com outras circunstâncias, é o que me dá
justificação para a adoptar; este é o fundamento da minha justificação, e, por
extensão, o fundamento da própria crença.
Se vejo alguém exibir um comportamento típico de dor, depreendo que a
pessoa está com dores. Mais uma vez, não aceito o comportamento exibido
como um indício a favor dessa crença; não infiro essa crença a partir de
outras crenças que tenho; não a aceito com base noutras crenças. Ainda
assim, o facto de percepcionar o comportamento de dor desempenha um
papel único na formação e justificação dessa crença; como no caso anterior,
constitui o fundamento da minha justificação para a crença em causa. O
mesmo se aplica às crenças de memória. Parece que me recordo de tomar o
pequeno-almoço esta manhã; isto é, tenho uma inclinação para acreditar na
proposição segundo a qual tomei o pequeno-almoço, juntamente com uma
experiência com sabor a passado, que a todos é familiar, mas difícil de
descrever. Talvez devêssemos dizer que as coisas me aparecem
preteritamente; mas talvez isto distinga insuficientemente a experiência em
causa daquelas crenças concomitantes acerca do passado que não se fundam
na minha própria memória. A fenomenologia da memória é um domínio rico
e inexplorado; não disponho aqui de tempo para a explorar. Neste como
noutros casos, todavia, verifica-se uma circunstância justificante, uma
condição que constitui o fundamento da minha justificação para aceitar a
crença de memória em causa.
Em cada um destes casos se aceita uma crença como básica, e em cada
caso se a aceita apropriadamente como básica. Há em cada caso uma
circunstância ou condição que confere a justificação; há uma circunstância
que serve como o fundamento da justificação. Pelo que em cada caso haverá
uma proposição verdadeira do género:

4. Na condição C, S tem justificação para aceitar p como básica.

Claro que C variará com p. Para um juízo perceptivo como

5. Vejo uma parede cor-de-rosa à minha frente.

C incluirá o aparecer-me de certa maneira. Sem dúvida que C incluirá mais.


Se algo me aparece da maneira habitual, mas sei que estou a usar óculos cor-
de-rosa, ou que sofro de uma doença que causa o aparecer-me assim,
independentemente da cor dos objectos próximos, então não tenho
justificação para aceitar 5 como básica. De igual modo para a memória.
Suponha-se que sei que a minha memória não é fiável; que me prega
frequentemente partidas. Em particular, quando pareço recordar-me de ter
tomado o pequeno-almoço, então, não raro, não tomei o pequeno-almoço.
Sob estas condições, não tenho justificação para aceitar como básica a crença
de que tomei o pequeno-almoço, embora pareça recordar-me de que tomei.
Pelo que aparecer-me da maneira apropriada, no caso perceptivo, não é
suficiente para dar justificação; uma condição ulterior — difícil de explicar
detalhadamente — é claramente necessária. O aspecto central aqui, contudo,
é que uma crença só é apropriadamente básica em determinadas condições;
estas condições são, digamos, o fundamento da sua justificação e, por
extensão, o fundamento da própria crença. Neste sentido, as crenças básicas
não são, ou não são necessariamente, crenças infundadas.
Pode-se afirmar coisas similares a propósito da crença em Deus. Quando
os reformistas afirmam que esta crença é apropriadamente básica, não
pretendem, evidentemente, afirmar que não há circunstâncias justificantes
para essa crença, ou que nesse sentido é infundada ou gratuita. Muito pelo
contrário. Calvino defende que Deus «se revela e mostra diariamente a toda a
construção do universo», e a arte divina «revela-se na inumerável e, no
entanto, distinta e bem ordenada variedade da multidão celestial». Deus
criou-nos de tal maneira que temos uma tendência ou disposição para ver a
sua mão no mundo à nossa volta. Mais precisamente, há em nós uma
disposição para acreditar em proposições do género: esta flor foi criada por
Deus ou este universo vasto e intricado foi criado por Deus quando
contemplamos a flor ou observamos os céus estrelados ou pensamos nos
vastos recantos do universo.
Calvino reconhece, pelo menos implicitamente, que esta disposição pode
ser despoletada por condições de outro género. Ao ler a Bíblia, pode-se ficar
impressionado com o profundo sentido de que Deus nos fala. Depois de fazer
o que considero reles, ou imoral ou malévolo, posso sentir-me culpado aos
olhos de Deus e formar a crença Deus desaprova o que fiz. Ao confessar-me
e arrepender-me, posso sentir-me perdoado formando a crença Deus perdoa-
me o que fiz. Uma pessoa em grave perigo pode voltar-se para Deus, pedindo-
lhe protecção e ajuda; e claro que ele ou ela formará então a crença de que
Deus é de facto capaz de ouvir e ajudar se o considerar apropriado. Quando a
vida é doce e gratificante, um sentido espontâneo de gratidão pode ascender
na alma; alguém nesta condição pode agradecer e louvar o Senhor pela sua
bondade e formará evidentemente a crença concomitante de que na verdade
há que agradecer ao Senhor e louvá-lo.
Há, portanto, muitas condições e circunstâncias que evocam a crença em
Deus: culpa, gratidão, perigo, a sensação da presença de Deus, um sentimento
de que Deus fala, a percepção de diversas partes do universo. Um trabalho
completo explorará a fenomenologia de todas estas condições e de outras.
Trata-se de um tópico vasto e importante; mas aqui posso apenas indicar a
existência destas condições.
Claro que nenhuma das crenças que mencionei ainda há pouco é a crença
simples de que Deus existe. O que temos, ao invés, são crenças como

6. Deus fala-me,
7. Deus criou tudo isto,
8. Deus desaprova o que fiz,
9. Deus perdoa-me, e
10. Há que agradecer a Deus e louvá-lo.

Estas proposições são apropriadamente básicas nas circunstâncias adequadas.


Mas é bastante consistente com isto supor que a proposição há uma pessoa
que é Deus nem é apropriadamente básica nem é aceite como básica por
quem acredita em Deus. Talvez o que aceitam como básico sejam
proposições como as de 6 a 10, acreditando na existência de Deus com base
em proposições como aquelas. Deste ponto de vista, não é exactamente
correcto afirmar que é a crença em Deus que é apropriadamente básica; mais
exactamente, são proposições como as de 6 a 10 que são apropriadamente
básicas, cada uma das quais implica auto-evidentemente que Deus existe.
Não é a proposição relativamente de ordem superior e geral Deus existe que é
apropriadamente básica, mas, ao invés, proposições que discriminam alguns
dos seus atributos e acções.
Suponha-se que regressamos à analogia entre a crença em Deus e a crença
na existência de objectos perceptuais, de outras pessoas e do passado.
Também aqui se trata de proposições relativamente específicas e concretas,
em vez das suas companheiras mais gerais e abstractas, que são
apropriadamente básicas. Talvez itens como

11. Há árvores,
12. Há outras pessoas, e
13. O mundo existe há mais de 5 minutos.

não sejam de facto apropriadamente básicas; sendo, ao invés, proposições


como

14. Vejo uma árvore,


15. Aquela pessoa está contente, e
16. Tomei o pequeno-almoço há mais de uma hora,
que merecem tal reconhecimento. Claro que proposições do último género
implicam imediata e auto-evidentemente proposições do género anterior; e
talvez não haja assim mal em falar nas anteriores como apropriadamente
básicas, ainda que isso seja falar sem grande exactidão.
O mesmo tem de se afirmar acerca da crença em Deus. Podemos afirmar,
grosso modo, que a crença em Deus é apropriadamente básica; estritamente
falando, contudo, não é provavelmente essa proposição, mas proposições
como as de 6 a 10 que gozam desse estatuto. Mas a ideia fundamental aqui é
que a crença em Deus ou as de 6 a 10 são apropriadamente básicas; afirmá-lo,
contudo, não é negar que haja circunstâncias justificantes para estas crenças,
ou condições que conferem justificação a quem as aceita como básicas. Não
são, consequentemente, infundadas ou gratuitas.
Uma segunda objecção, que ouço frequentemente: se a crença em Deus é
apropriadamente básica, por que não pode qualquer crença ser
apropriadamente básica? Não podemos afirmar o mesmo acerca de qualquer
aberração bizarra que nos ocorresse? E quanto ao vudu e à astrologia? E
quanto à crença de que a Grande Abóbora regressa em todos os dias das
bruxas? Poderia eu aceitar essa crença como básica? E se não posso, por que
posso aceitar apropriadamente a crença em Deus como básica? Suponhamos
que acredito que se agitar os braços com vigor suficiente posso descolar e
voar à volta da sala; poderia defender-me da acusação de irracionalidade
afirmando que esta crença é básica? Se afirmamos que a crença em Deus é
apropriadamente básica, não estaremos comprometidos a defender que
qualquer coisa, ou quase, pode ser apropriadamente aceite como básica,
escancarando assim a porta ao irracionalismo e à superstição?
Certamente que não. O que nos poderia levar a pensar que o epistemólogo
reformista se encontra neste tipo de dificuldade? O facto de rejeitar os
critérios para a basicidade apropriada fornecidos pelo fundacionalismo
clássico? Mas porquê pensar que isso o compromete com tal tolerância
perante a irracionalidade? Considere-se uma analogia. Nos dias felizes do
positivismo, os positivistas andavam confiantemente de um lado para o outro,
brandindo o seu critério de verificabilidade e declarando sem sentido muitas
coisas que obviamente tinham sentido. Suponha-se agora que alguém rejeitou
uma formulação desse critério — a que se encontra na segunda edição da
obra de A. J. Ayer, Linguagem, Verdade e Lógica, por exemplo. Significará
isso que a pessoa se compromete a defender que
17. Estava abrásigo; e os viscágeis xugaios moinhavam e esfuavam no
ensouteiro.

ao contrário do que parece, tem sentido? Claro que não. Mas nesse caso o
mesmo se aplica ao epistemólogo reformista; o facto de rejeitar o critério da
basicidade apropriada do fundacionalista clássico não significa que está
obrigado a supor que qualquer coisa é apropriadamente básica.
Mas qual é então o problema? Será porque o epistemólogo reformista não
só rejeita aqueles critérios para a basicidade apropriada, como não parece
sentir qualquer urgência de apresentar aquilo que considera um melhor
substituto? Se não tem qualquer critério semelhante, como pode rejeitar
honestamente a crença na Grande Abóbora como apropriadamente básica?
Esta objecção trai um importante erro de perspectiva. Como chegamos
correctamente a critérios de significado, ou crença justificada, ou basicidade
apropriada? De onde vêm? Será que temos de ter tal critério antes de
podermos sensatamente fazer quaisquer juízos — positivos ou negativos —
acerca da basicidade apropriada? Seguramente que não. Suponhamos que não
conheço um substituto satisfatório para os critérios propostos pelo
fundacionalismo clássico; estou, não obstante, inteiramente no meu direito ao
defender que determinadas proposições não são apropriadamente básicas em
determinadas condições. Algumas proposições parecem auto-evidentes
quando na verdade não são; é essa a lição de alguns dos paradoxos de
Russell! Não obstante, seria irracional aceitar como básica a negação de uma
proposição que nos parece auto-evidente. De igual modo, suponha que lhe
parece ver uma árvore; seria então irracional aceitar como básica a
proposição segundo a qual não vê uma árvore; ou de que não há quaisquer
árvores. Da mesma maneira, ainda que não conheça qualquer critério de
significado esclarecedor, posso declarar bastante apropriadamente que 17,
acima, não significa coisa alguma.
E isto levanta uma importante pergunta — que Roderick Chisholm nos
ensinou a fazer. Qual é o estatuto dos critérios para o conhecimento, ou
basicidade apropriada, ou crença justificada? Tipicamente, são afirmações
universais. O critério fundacionalista moderno para a basicidade apropriada,
por exemplo, é duplamente universal:

18. Para qualquer proposição A e pessoa S, A é apropriadamente


básica para S se, e só se, A é incorrigível para S ou auto-evidente para
S.

Mas como se pode saber tal coisa? Quais são as suas credenciais? Sem
sombra de dúvida, 18 não é auto-evidente ou apenas obviamente verdadeira.
Mas se não é, como se chega a ela? De que género são os argumentos
apropriados? Claro que um fundacionalista pode achar 18 tão atraente que
simplesmente a aceita como verdadeira, nem apresentando argumentos a seu
favor, nem a aceitando com base noutras coisas em que acredita. Se o faz,
todavia, a sua estrutura noética será auto-referencialmente incoerente. Em si,
18 nem é auto-evidente nem é incorrigível; daí que ao aceitar 18 como básica
o fundacionalista moderno viole a condição da basicidade apropriada que ele
próprio estabeleceu ao aceitá-la. Por outro lado, talvez o fundacionalista tente
apresentar algum argumento a seu favor a partir de premissas que são auto-
evidentes ou incorrigíveis: é extremamente difícil ver, todavia, como poderia
ser tal argumento. E até que o fundacionalista apresente algum argumento, o
que farão os restantes de nós — que não consideramos 18 óbvia ou
convincente, de todo em todo? Como pode o fundacionalista usar 18 para nos
mostrar que a crença em Deus, por exemplo, não é apropriadamente básica?
Por que acreditaríamos em 18, ou lhe daríamos qualquer atenção?
O facto é que, penso, nem 18 nem qualquer outra condição esclarecedora
necessária e suficiente para a basicidade apropriada se segue de premissas
claramente auto-evidentes através de argumentos claramente aceitáveis. E
assim a maneira apropriada de chegar a tal critério é, grosso modo, indutiva.
Temos de reunir exemplos de crenças e condições tais que as primeiras
sejam, de uma maneira óbvia, apropriadamente básicas sob as segundas, e
exemplos de crenças e condições tais que as primeiras, de uma maneira
óbvia, não sejam apropriadamente básicas sob as segundas. Temos então de
enquadrar hipóteses quanto às condições necessárias e suficientes da
basicidade apropriada e testar estas hipóteses por referência àqueles
exemplos. Sob condições adequadas, por exemplo, é claramente racional
acreditar que o leitor vê uma pessoa humana à sua frente: um ser que tem
pensamentos e sentimentos, que conhece e acredita, que toma decisões e age.
É evidente, além disso, que o leitor não tem qualquer obrigação de defender
argumentativamente esta crença a partir de outras que tem; sob aquelas
condições, essa crença é apropriadamente básica para si. Mas então 18 tem de
estar errada; a crença em questão, sob essas circunstâncias, é
apropriadamente básica, embora não seja auto-evidente nem incorrigível para
o leitor. De igual modo, talvez pareça recordar-se de ter tomado o pequeno-
almoço esta manhã, e talvez desconheça qualquer razão para supor que a sua
memória lhe prega partidas. Sendo assim, tem toda a justificação para aceitar
essa crença como básica. Claro que não é apropriadamente básica à luz dos
critérios dados pelos fundacionalistas clássicos; porém, esse facto não conta
contra si, mas contra aqueles critérios.
Em conformidade, tem de se obter os critérios para a basicidade
apropriada a partir de baixo e não a partir de cima; não se os devia apresentar
como ex cathedra, mas sujeitos à argumentação e ao teste por um conjunto
relevante de exemplos. Mas não há razão para supor, antecipadamente, que
todos irão concordar com os exemplos. O cristão irá com certeza supor que a
crença em Deus é inteiramente apropriada e racional; se não aceita esta
crença com base noutras proposições, concluirá que é básica para si, bastante
apropriadamente. Os seguidores de Bertrand Russell e de Madelyn Murray
O’Hare podem discordar, mas como será isso relevante? Terão os meus
critérios, ou os da comunidade cristã, de conformar-se aos seus exemplos?
Certamente que não. A comunidade cristã é responsável pelo seu conjunto de
exemplos, não do deles.
Em conformidade, o epistemólogo reformista pode defender
apropriadamente que a crença na Grande Abóbora não é apropriadamente
básica; apesar de defender que a crença em Deus é apropriadamente básica e
apesar de não ter qualquer critério, com pernas para andar, da basicidade
apropriada. Claro que está comprometido com o pressuposto de que há uma
diferença relevante entre a crença em Deus e a crença na Grande Abóbora, se
defende que a primeira é apropriadamente básica, mas não a segunda. Mas
isto não deverá ser um grande constrangimento; há bastantes candidatos.
Estes candidatos encontram-se na proximidade das condições que mencionei
na última secção, que justificam e fundamentam a crença em Deus. Assim,
por exemplo, o epistemólogo reformista pode concordar com Calvino na
afirmação de que Deus implantou em nós uma tendência natural para ver a
sua mão no mundo à nossa volta; o mesmo não se pode afirmar da Grande
Abóbora; não existindo qualquer Grande Abóbora nem qualquer tendência
natural para aceitar crenças acerca da Grande Abóbora.
Em jeito de conclusão, portanto: ser auto-evidente ou incorrigível, ou
evidente sensorialmente, não é uma condição necessária da basicidade
apropriada. Além disso, quem defende que a crença em Deus é
apropriadamente básica não está por isso comprometido com a ideia de que a
crença em Deus é infundada ou gratuita ou que não tem circunstâncias
justificantes. E mesmo que careça de um critério geral para a basicidade
apropriada, não está obrigado a supor que qualquer crença ou quase — a
crença na Grande Abóbora, por exemplo — é apropriadamente básica. Como
toda a gente o devia fazer, começa com exemplos; e pode aceitar a crença na
Grande Abóbora como um paradigma da crença irracional básica.
Ver, por exemplo, Brand Blanshard, Reason and Belief (Londres: Allen &
Unwin, 1974), pp. 400 ss, W. K. Clifford, «A Ética da Crença» (Cap. 2 deste
volume), A. G. N. Flew, The Presumption of Atheism (Londres: Pemberton
Publishing Co., 1976), p. 22, Bertrand Russell, «Why I am not a Christian»,
in Why I am Not a Christian (Nova Iorque: Simon & Schuster, 1957), pp. 3
ss. e Michael Scrivin, Primary Philosophy (Nova Iorque: McGraw-Hill,
1966), pp. 87 ss. Em «Is Belief in God Rational?» in Rationality and
Religious Belief, org. C. Delaney (Notre Dame: University of Notre Dame
Press, 1979), considero e rejeito a objecção indiciarista à crença teísta.
Um pensador ou teólogo reformista é alguém intelectualmente afecto à
tradição protestante que remonta a João Calvino (e não alguém que foi
anteriormente teólogo e que depois viu a luz).
Origem dos ensaios

«A Ética da Crença» é a tradução de «The Ethics of Belief»,


originalmente publicado em Contemporary Review, Janeiro de 1877. O
texto foi retirado de The Ethics of Belief and Other Essays, de W. K.
Clifford (Amhest, NY: Prometheus Books, 1999) e confrontado com a
edição organizada por Leslie Stephen e Sir Frederick Pollock, publicada
em Londres em 1901 (Vol. 2, pp. 163–205).
«A Vontade de Acreditar» é a tradução de «The Will to Believe»,
palestra apresentada aos Clubes Filosóficos das Universidades de Yale e
Brown. Publicada originalmente em New World, Junho de 1896. O texto
foi retirado de Writings: 1878–1899, de William James (Nova Iorque,
NY: The Library of America, 1992, segunda impressão). Esta cuidada
edição foi preparada por Gerald E. Myers, baseando-se na edição crítica
da Harvard University Press das obras de James, corrigindo alguns erros
que nela se encontram.
«Será a Crença em Deus Apropriadamente Básica?» é a tradução de «Is
Belief in God Properly Basic?» (Noûs, Vol. 15, N.º 1, 1981, pp. 41–51),
publicada aqui com a autorização do autor.
Leituras recomendadas

Adams, R. M. (1987) The Virtue of Faith and Other Essays in


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Expressões estrangeiras

Ad extorquendum assensum meum — Que me obrigue ao assentimento


Adequatio intellectus nostri cum re — Adequação do intelecto à coisa
Aptitudinem ad extorquendum certum assensum — Aptidão para extrair
assentimento certo
Cela vous fera croire et vous abêtira — Isso vos fará crer e vos
embotará
Consensus gentium — Consenso dos povos
Entitas ipsa — A entidade em si
Extorquendum assensum meum — Que me obrigue ao assentimento
Grenzbegriff — Conceito regulador
In foro conscientiae — No seu foro íntimo
Le coeur a ses raisons que la raison ne connaît point — O coração tem
razões que a razão desconhece
Mutatis mutantis — Mudando o que deve ser mudado
Naiveté — Ingenuidade
Quietem in cognitione — Tranquilidade cognitiva
Sui generis — Peculiar
Terminus a quo — Extremo inicial
Terminus ad quem — Extremo final
Sobre o organizador

Desidério Murcho é professor de filosofia na Universidade Federal de Ouro


Preto (Brasil). É autor de vários livros, destacando-se Essencialismo
Naturalizado (2002), O Lugar da Lógica na Filosofia (2003), Filosofia em
Directo (2011), Sete Ideias Filosóficas que Toda a Gente Deveria Conhecer
(2011) e Todos os Sonhos do Mundo e Outros Ensaios (2016). Traduziu
vários artigos e livros, incluindo obras de George Orwell, Thomas Nagel,
Bertrand Russell, Alvin Plantinga, Susan Wolf, W. O. Quine, Nelson
Goodman e Simon Blackburn. Fundou a revista Crítica e escreveu para o
jornal Público.
Copyright

Copyright © 2010 Desidério Murcho e Editorial Bizâncio (compilação)


Copyright © 2010 Vítor Guerreiro e Editorial Bizâncio (tradução)
Todos os direitos reservados.
Versão de 28 de Março de 2017
Imagem da capa de Ryan McGuire.
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