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Etica Da Crenca - Alvin Plantinga-W.K.Clifford-William James
Etica Da Crenca - Alvin Plantinga-W.K.Clifford-William James
Epistemologia
Conhecimento, crença e fé são conceitos distintos. Definir rigorosamente o
conhecimento é um dos problemas em aberto da epistemologia, mas algumas
distinções cruciais podem ser dadas como razoavelmente seguras.
Quando se fala de crença em filosofia não se tem em mente apenas a
crença religiosa, caso em que esta última expressão seria um pleonasmo. Por
crença entende-se em filosofia qualquer representação, susceptível de ser
verdadeira ou falsa, que um agente cognitivo faz de seja o que for. As crenças
podem ser muito sofisticadas ou muitíssimo elementares: temos crenças sobre
a natureza dos átomos, mas também sobre a localização dos nossos joelhos.
As opiniões são crenças razoavelmente sofisticadas e articuladas; crianças de
seis anos, por exemplo, podem ter crenças fortes sobre o que gostam ou não
de comer, mas não têm opiniões, políticas ou outras. O termo crença é usado
em filosofia no sentido em que muitos filósofos gregos usavam o termo δόξα
(doxa). Já o termo fé é usado em filosofia no sentido do termo grego πίστις
(pistis) e do termo latino fides.
Podemos distinguir três tipos de conhecimento ou saber (as duas palavras
são usadas como aproximadamente sinónimas):
1. uma crença,
2. verdadeira
3. e justificada.
Uma análise da fé
O que é exactamente a fé? Mesmo que não possamos responder a esta
pergunta apresentando condições necessárias e suficientes, é iluminante ter
pelo menos uma caracterização razoavelmente precisa da fé. Sem essa
compreensão, a análise da epistemologia da fé poderá ser desadequada —
exigindo-lhe, por exemplo, padrões epistemológicos desadequados à sua
natureza.
Há pelo menos duas concepções cruciais de fé: a objectal e a
fenomenológica. A objectal é a ideia de que a fé é apenas uma crença
fenomenologicamente como as outras, cuja diferença reside exclusivamente
no seu objecto. A crença de que ontem foi Domingo, por exemplo, só
diferiria da fé numa divindade porque a primeira tem por objecto uma
banalidade e a segunda uma divindade. A concepção fenomenológica é a
ideia de que a fé é uma crença diferente das outras não apenas por ter um
objecto diferente, mas também por envolver atitudes diferentes por parte da
pessoa. Segundo esta concepção, a fé numa dada divindade é diferente da
crença de que ontem foi Domingo não apenas por ter uma divindade por
objecto, mas por envolver reverência, testemunho, entrega, mistério e outras
atitudes próprias da fé. Exploremos cada uma destas concepções.
Se a concepção objectal de fé for verdadeira, ter fé em Deus é como ter
outra crença qualquer: esta crença estará justificada ou não do mesmo modo
que qualquer outra crença. Se houver razões para pensar que é irracional
acreditar em algo sem provas, será irracional ter fé em deuses sem provas.
Há dois argumentos centrais contra a concepção objectal de fé. Em
primeiro lugar, não parece fazer jus à experiência da fé que os crentes
religiosos efectivamente têm, e que a concepção fenomenológica destaca. A
fé não parece ser para quem a tem uma crença como qualquer outra, mesmo
que a comparemos com crenças muitíssimo importantes e valiosas, como a
crença de que os nossos filhos nos amam. Além de mais intensa, parece mais
valiosa.
Em resposta a esta objecção podemos argumentar que as diferenças entre
a fé e as outras crenças resultam precisamente da natureza do objecto da
crença. Sendo a fé uma crença que tem por objecto divindades, é natural que,
por isso mesmo, as atitudes associadas à fé sejam adequadamente diferentes
das atitudes associadas a qualquer outro tipo de crença. Mas as atitudes
associadas a uma crença não são constitutivas dessa crença.
A segunda objecção é mais promissora: se a fé fosse como qualquer outra
crença, teria de ser possível uma pessoa ter fé na existência de uma divindade
depois de saber que essa divindade existe. Na verdade, depois de uma pessoa
saber que uma divindade existe, teria de lhe ser impossível não ter fé na sua
existência, tal como é defensavelmente impossível que não acreditemos que a
neve é branca quando sabemos que a neve é branca. Contudo, parece
implausível defender sequer que é possível ter fé que uma divindade existe
depois de sabermos que existe, e mais implausível ainda defender que saber
que uma divindade existe implica ter fé nessa divindade. Isto porque a fé é o
género de atitude que se tem perante o que se desconhece: antes de uma
intervenção cirúrgica delicada, uma pessoa pode ter fé de que tudo irá correr
bem, mas não pode ter fé de que tudo correu bem depois de tudo ter corrido
bem. No entanto, há efectivamente um sentido em que se pode ter fé no que
se conhece — no sentido de se ter confiança nisso.
Assim, podemos rejeitar a objecção acima distinguindo dois sentidos de
fé: a fé como crença proposicional e a fé como confiança. Há um sentido no
qual não só temos fé em alguém ou algo mesmo sabendo que isso existe
como só é racional ter fé nesse alguém ou algo se acreditarmos que existe.
Por exemplo, uma pessoa só pode ter fé no amor dos seus filhos se acreditar
que tem filhos. Fé, neste contexto, quer dizer confiança: ter fé em alguém ou
em algo é confiar nessa pessoa ou nesse algo. Nesta acepção, todos temos fé
diariamente em muitas coisas — na gravidade, por exemplo, no poder
nutritivo do que comemos e na medicina — porque todos confiamos nessas
coisas. Mas é possível ter fé no sentido da crença proposicional sem ter fé no
sentido da confiança: uma pessoa pode saber que o primeiro-ministro existe,
mas não confiar nele. Na Bíblia afirma-se: «Tu crês que há um só Deus?
Fazes bem. Também o crêem os demónios, mas enchem-se de terror» (Tiago,
2:19) — o que poderá significar que os demónios acreditam que Deus existe,
mas não confiam nele.
A componente da confiança é sem dúvida uma das mais importantes da
fé. Mas a perspectiva objectal sobre a natureza da fé não se lhe adequa muito
bem — pois, nessa perspectiva, só o objecto da fé a distingue de outras
crenças, e não as atitudes do agente. Ora, a confiança é precisamente uma
atitude particular que podemos ter perante objectos diferentes. E ainda que
objectos diferentes possam alterar a fenomenologia da confiança, é
argumentável que há algo de comum a todas ou, pelo menos, à maioria das
atitudes de confiança; seria esse aspecto fenomenológico da confiança que a
caracterizaria, e não o objecto da confiança. Em conclusão, tentar defender a
perspectiva objectal da fé socorrendo-se de uma acepção de fé que a
aproxima da confiança tem um efeito contrário ao pretendido, pois conduz-
nos à perspectiva fenomenológica da natureza da fé.
Acresce que apesar de a confiança ser uma componente importante da fé,
não é nem poderia ser a única. Parece impossível ou irracional ter confiança
em algo e não acreditar pelo menos na possibilidade de isso existir. Podemos,
evidentemente, ter confiança em algo que não sabemos se existe, mas
gostaríamos que existisse — pois nesse caso a nossa confiança é condicional.
Por exemplo, um náufrago pode não saber se o desaparecimento do seu
veleiro foi registado, mas ter a esperança que o tenha sido e confiar que,
nesse caso, os serviços de emergência náutica acabarão por salvá-lo. Mas é
impossível ou irracional o náufrago confiar que os serviços de emergência
náutica acabarão por salvá-lo se souber que o desaparecimento do seu veleiro
não foi registado. Ou seja, a confiança parece envolver uma componente
proposicional, pelo menos quando não estamos em contacto com o objecto da
confiança e quando não se trata de um saber-fazer. Logo, ainda que a
confiança seja uma componente importante da fé, é defensável que tem de
haver nesta uma componente proposicional: quem tem fé numa dada
divindade tem de acreditar que essa divindade existe ou, pelo menos, desejar
que exista ou ter esperança que exista, e em qualquer destes casos estamos
perante atitudes proposicionais. Esta é a designação que se dá a qualquer
atitude que tenha por objecto uma proposição: recear que esteja a chover, ter
medo de perder o comboio ou ter a esperança de chegar a horas são atitudes
que têm como objecto, respectivamente, as proposições expressas pelas frases
«Está a chover», «Vou perder o comboio» e «Chegarei a horas».
É ilusório pensar que a perspectiva objectal da fé fica vindicada se
admitirmos que a fé tem necessariamente uma componente proposicional. Na
verdade, a perspectiva fenomenológica de fé não está comprometida com a
exclusão da componente proposicional da fé: limita-se a sustentar que não é
apenas a diferença de objecto que caracteriza a fé, mas também e sobretudo a
atitude do agente. Nada na concepção fenomenológica de fé a impede de
aceitar que a atitude do agente é uma atitude proposicional.
A concepção fenomenológica de fé
Passemos então à análise da concepção fenomenológica de fé. Deste ponto de
vista, a fé não é como qualquer outra crença, diferindo apenas quanto ao
objecto; ao invés, além da diferença de objecto, envolve aspectos que as
outras crenças não envolvem. Um desses aspectos é a força da convicção: a
fé exibe a força da convicção do conhecimento, apesar de não ser
conhecimento (ou, pelo menos, não é como os outros conhecimentos comuns,
como o conhecimento de que a água é H2O, por exemplo; exploraremos já de
seguida a ideia de que a fé é um tipo especial de conhecimento). E por não
ser conhecimento, a fé é, nesse aspecto, como a mera crença. Portanto, deste
ponto de vista, a fé é como o conhecimento num aspecto e como a mera
crença noutro. Assim, a fé não é apenas uma crença que tem por objecto um
certo tipo de entidades: é uma crença que tem características próprias, que a
distinguem de muitas outras crenças, ou mesmo de todas.
Comparar a força da convicção da fé com a força da convicção associada
ao conhecimento é esclarecedor. Efectivamente, quando sabemos algo, temos
uma forte adesão psicológica ao conteúdo do nosso conhecimento, bastante
mais forte do que quando temos uma mera crença, ainda que parcialmente
justificada. Quando acredito meramente que a Joana está na praia porque me
disseram, a força da minha convicção é muitíssimo menor do que quando sei
que ela está lá porque acabei de a ver.
Contudo, será a fé como o conhecimento em todos os aspectos, caso em
que a fé seria conhecimento? Podemos defender que a fé é conhecimento —
mas um tipo diferente de conhecimento — ou defender que a fé não é
conhecimento, apesar de ser fenomenologicamente como o conhecimento no
que respeita à força da convicção.
A primeira coisa a fazer quando se defende que a fé é conhecimento é
esclarecer de que género de conhecimento se trata: proposicional, saber-fazer
ou por contacto. Defender que a fé é conhecimento proposicional implica
defender que só há fé quando há justificação, pois só há conhecimento
proposicional quando há justificação. No caso da fé, a justificação seria a
revelação: a ideia de que Deus se deu a conhecer a algumas pessoas especiais,
que depois transmitiram por testemunho essa ocorrência. Um argumento
contra esta perspectiva é que, se fosse verdadeira, quase nenhumas pessoas
religiosas teriam de facto fé — só a teriam aqueles teólogos e filósofos que
sabem justificar adequadamente a sua crença numa divindade. A maior parte
das pessoas que acredita no Deus cristão, por exemplo, pouco ou nada sabe
sobre os supostos testemunhos da revelação que sustentariam a sua fé. Como
isto é implausível, a perspectiva seria falsa.
Este argumento, contudo, não é convincente, pois ignora uma diferença
entre haver justificação e o agente do conhecimento ou da crença em causa
conseguir articular essa justificação. Por exemplo, uma criança forma a
crença de que está uma maçã em cima da mesa ao vê-la lá; a justificação da
sua crença é muitíssimo mais sofisticada do que o mero «Vi-a lá» que ela é
capaz de articular, pois envolve coisas como condições normais de luz e o
funcionamento correcto do seu aparato visual e cognitivo. Parece excessivo
exigir que um agente tenha de conseguir articular uma justificação adequada
das suas crenças para estas poderem constituir conhecimento proposicional,
dado que, na sua maior parte, as pessoas têm grande dificuldade em fazer tal
coisa. (Contudo, podemos insistir que as pessoas quase nada sabem, na sua
maior parte, vivendo apenas com base em meras crenças.) Uma alternativa é
então aceitar que um agente tem conhecimento proposicional desde que tenha
uma crença verdadeira que se pode justificar adequadamente, ainda que ele
mesmo não o saiba fazer ou não o tenha efectivamente feito. Chama-se
externismo a esta posição sobre a justificação, e internismo à posição oposta.
Aplicando esta distinção à fé, poder-se-ia então insistir que as pessoas só
podem ter realmente fé numa divindade caso seja possível justificar tal
crença, ainda que elas mesmas sejam incapazes de o fazer. Ter fé numa
divindade seria, assim, análogo a muitas outras crenças que somos incapazes
de justificar adequadamente, mas que pensamos que outros seres humanos
sabem justificar adequadamente. Por exemplo, na sua maior parte, as pessoas
são incapazes de justificar adequadamente a crença na cosmologia do Big
Bang, pois não têm os conhecimentos nem os recursos necessários para
justificar esta teoria: limitam-se, por isso, a transferir para os especialistas
relevantes a tarefa da justificação.
Esta perspectiva implica que caso não exista justificação adequada para
crer numa divindade, ninguém teve jamais fé nessa divindade, apesar de ter
pensado que a tinha. Note-se que isto é compatível com a diversidade de
religiões e de divindades; pois apesar de as diversas divindades que são
objecto de fé em diferentes religiões serem incompossíveis (ou seja, não são
conjuntamente possíveis: não podem existir todas simultaneamente), é
perfeitamente possível que existam justificações adequadas para as crenças
religiosas nessas divindades. Recorde-se que podemos defender que a
justificação não é factiva, o que significa que diferentes pessoas em diferentes
contextos epistémicos podem ter justificação adequada para crer em
divindades diferentes e incompossíveis.
Contudo, a perspectiva que estamos a explorar não defende apenas que só
há fé quando há justificação: defende também que a fé é factiva, pois defende
que a fé é conhecimento, ou um tipo de conhecimento. E é isto que torna esta
concepção implausível, pois significaria que caso a única divindade que
realmente existe seja Diana, por mais genuína que fosse a fé dos antigos
egípcios no deus Rá, por exemplo, ou dos actuais cristãos em Deus, nenhuma
dessas pessoas tinha realmente fé — apenas acreditava erradamente que a
tinha. Isto parece excessivo: quem tem fé numa divindade que, sem ela o
saber, não existe, não parece ter uma fé menos genuína do que quem tem fé
numa divindade que realmente existe. Assim, a fé, ao contrário do
conhecimento, não parece factiva.
Uma saída para esta dificuldade seria sustentar que a fé é um tipo
diferente de conhecimento, que não envolve factividade. Mas isto seria
presumivelmente um mero jogo de palavras, dado que conhecimento
infactivo não é conhecimento, em qualquer acepção relevante do termo: é
mera crença (que pode até estar justificada).
Dado que tanto o conhecimento proposicional como o conhecimento por
contacto são factivos, o mesmo argumento se aplica para refutar a ideia de
que a fé poderia ser conhecimento por contacto: aceitar que a fé é
conhecimento por contacto implica a tese implausível de que a maior parte da
humanidade ao longo da maior parte da história não teve realmente fé, apesar
de pensar que a tinha.
Aposta momentosa
James sublinha que em alguns casos as nossas crenças são motivadoras: um
desportista ganha em acreditar que consegue obter um resultado; um
estudante ganha em acreditar que conseguirá bons resultados num exame
difícil. Nestes casos, precisamos de acreditar sem provas, de maneira a ter
motivação para tentar: não faria sentido treinar ou estudar se não
confiássemos na possibilidade de obter os resultados desejados, ainda que
não tenhamos realmente provas de que os conseguiremos obter. Será a fé
análoga a este género de casos? Tratar-se-ia nesse caso de ter confiança em
algo que não sabemos bem se ocorrerá ou se existe. A fé ficaria assim mais
próxima da esperança.
Sem dúvida que este tipo de crenças motivadoras e sem grandes provas
existem, e são constitutivas da nossa vida. É difícil imaginar como seria a
nossa vida sem elas. Mas não é claro que este facto acerca da nossa vida
cognitiva tenha relevância para a legitimidade da fé sem provas, ao contrário
do que James parecia pensar. Vejamos dois argumentos contra a posição de
James.
Em primeiro lugar, as crenças motivadoras só são racionais porque têm
efeitos causais: se um estudante acreditar que com o seu esforço irá conseguir
obter um certo resultado, isso tem o efeito causal de lhe dar mais ânimo, o
que contribui para obter o resultado desejado. Mas no caso da crença
religiosa não há qualquer nexo causal, nem pode haver, entre a força da
convicção e a existência ou inexistência de divindades: estas não existem ou
deixam de existir consoante as pessoas estão mais ou menos fortemente
convictas da sua existência.
Em segundo lugar, é irracional ter confiança quando a possibilidade de
realização do que se almeja é demasiado improvável. Uma pessoa em risco
de morte pode ganhar em ter confiança que conseguirá ser bem-sucedida num
salto difícil que poderá salvar a sua vida, se o salto que tem de dar for de,
digamos, um metro e meio. Mas, se for de dez metros, nenhuma confiança
lhe dará energia suficiente para conseguir salvar-se. O mesmo ocorre todos os
finais de semestre com demasiados estudantes: não estudaram ao longo do
semestre e depois vão fazer os exames cheios de confiança que, naquele
momento, algo de mágico ocorra e subitamente sejam capazes de responder a
perguntas sobre matérias que desconhecem quase por completo: o resultado
inevitável, apesar de tanta confiança, é a reprovação. E esses estudantes
teriam ganho mais em reconhecer a verdade da situação, ficando em casa
tranquilamente. Portanto, este género de confiança na ausência de provas só
pode ter relevância caso não estejamos perante uma impossibilidade ou quase
impossibilidade.
Blaise Pascal (1623–1662), contudo, ficou famoso por defender que, bem
vistas as coisas, temos tudo a ganhar e nada a perder em apostar na existência
de Deus. Chama-se aposta de Pascal ao seu argumento, que pertence à
mesma família da posição de James: trata-se de dizer que, na ausência de
provas a favor ou contra a existência de Deus, temos um argumento a favor
da crença sem essas provas.
No caso da versão de Pascal, a ideia é fazer uma matriz para revelar as
quatro combinações possíveis que resultam de se acreditar ou não e de Deus
existir ou não:
Racionalidade distribuída
A objecção de Plantinga a Clifford é uma objecção geral a qualquer posição
indiciarista. Consiste em defender que, pelo próprio critério indiciarista, não
devemos acreditar em coisa alguma sem provas; mas não há provas de que o
indiciarismo seja verdadeiro; logo, não devemos acreditar no indiciarismo.
Esta objecção depende, contudo, de uma concepção muito rígida de
prova, concepção que o próprio Clifford não defendia. Certamente que
Clifford não pensava que o único género de provas eram provas matemáticas
ou científicas. Em muitas matérias, prova-se ideias argumentando, e os
argumentos podem ser muito complexos. Aquilo a que Clifford claramente se
opunha era a crença sem provas, sem quaisquer razões, só porque se decide
arriscar acreditar.
Quando perguntamos se a fé é aceitável na ausência de provas, o termo
«aceitável», neste contexto, quer dizer «epistemicamente legítimo». Esta
expressão é melhor do que «prova», que tem um significado demasiado
restrito. Mas não é fácil saber o que é epistemicamente legítimo e o que o não
é. Para esclarecer este conceito, podemos recorrer a alguns paradigmas de
atitudes epistemicamente legítimas e ilegítimas.
Antes, porém, é importante fazer notar que é argumentável que nem tudo
o que é epistemicamente ilegítimo ou incorrecto é moralmente ilegítimo ou
incorrecto. Sem dúvida que há alguma conexão entre os dois conceitos; em
alguns casos, uma atitude pode ser moralmente incorrecta precisamente por
ser epistemicamente incorrecta; Clifford, todavia, ou confundia ambos os
conceitos ou estabelecia entre ambos uma conexão excessivamente forte. O
argumento de Clifford a favor da ideia de que é sempre moralmente
incorrecto acreditar em algo sem provas é que, mesmo no caso de uma crença
trivial e meramente pessoal, o facto de se acreditar sem provas torna-nos
crédulos e isso acabará por ter efeitos moralmente maus. Isto é um exagero: é
fácil pensar em contextos em que ser crédulo não terá quaisquer
consequências para a humanidade em geral: numa pequena ilha, um ancião
doente alimenta a crença injustificada de que os seus companheiros serão
salvos, mas nada lhes diz e morre pacificamente. O máximo que se pode
defender é que na maior parte dos contextos é uma má ideia criar hábitos de
credulidade, em vez de hábitos de análise cuidadosa das coisas, porque as
consequências, directas ou indirectas, a curto ou longo prazo, são quase
sempre desastrosas.
Por outro lado, podemos considerar que os deveres epistémicos —
procurar honestamente a verdade, não ser tendencioso, etc. — são casos
especiais de deveres morais. Neste caso, é verdadeiro que qualquer violação
de um dever epistémico é, eo ipso, a violação de um dever moral. Mas isto é
um pouco enganador, pois quer apenas dizer que descurar um dever
epistémico é descurar um dever moral: não quer dizer que, ao fazê-lo,
descuramos um dever moral de outra categoria. Por isso, é menos enganador
falar apenas do que é epistemicamente legítimo ou não, em vez de usar a
linguagem de Clifford, na qual não atender aos indícios é moralmente
incorrecto.
Voltemos ao esclarecimento do que é epistemicamente legítimo e
ilegítimo, recorrendo a exemplos claros de ambos. Começando pelo último
caso, é claramente ilegítimo rejeitar quaisquer argumentos contra uma dada
posição, ao mesmo tempo que se aceita o mesmo género de argumentos a
favor dela. Este tipo de ilegitimidade epistémica ocorre quando uma pessoa
põe em causa a ciência ou a lógica, por exemplo, quando estas parecem
militar contra as suas crenças mais queridas, ao mesmo tempo que abraça
ambas calorosamente quando parecem militar a seu favor. Esta arbitrariedade
é claramente ilegítima, epistemicamente, ainda que não consigamos
estabelecer condições necessárias e suficientes do que é uma atitude
epistemicamente legítima. Se uma pessoa considerar que acreditar sem
provas só é epistemicamente legítimo no caso da crença religiosa, há alguma
probabilidade de não ser epistemicamente virtuosa. James, note-se, apresenta
critérios suficientemente gerais que tornariam epistemicamente legítimo ter
qualquer crença, religiosa ou não, sem provas. (A dificuldade, como vimos, é
que em todos os casos não religiosos a crença sem provas só é legítima
quando crer tem uma conexão causal com um resultado desejável, coisa que
não há razões para pensar que ocorre no caso da crença religiosa.)
Quanto à legitimidade epistémica, esta parece manifestar-se mais
claramente quando alguém muda de ideias por se deparar com razões
adequadas para isso: por exemplo, o João pensava que a Francisca tinha ido
ao cinema, mas ao chegar a casa encontra-a lá e muda por isso de ideias.
Contudo, nem toda a mudança de ideias é epistemicamente legítima: só o
é quando há razões adequadas para isso. Uma pessoa que acreditava em Deus
e deixa de acreditar só porque assistiu a uma palestra de uma hora sobre o
tema poderá não ser epistemicamente virtuosa, mas antes viciosa — neste
caso, por ser leviana.
Assim, o problema é saber o que são «razões adequadas» para mudar de
ideias. No caso do João, a razão adequada é ter visto a Francisca em casa;
mas a visão só em certos casos é fidedigna. Na seguinte imagem, por
exemplo, a segunda linha parece maior do que a primeira, mas ambas têm o
mesmo comprimento:
Assim, nem sempre a simples visão nos dá razões adequadas para acreditar
no que vemos: nos sonhos, também nos parece que vemos muitas coisas, mas
essas coisas podem não existir. Distinguir as condições em que os dados dos
sentidos são fidedignos dos casos em que não o são é por isso crucial.
A tentação a evitar aqui é pensar como os cépticos, que negam a
possibilidade do conhecimento genuíno. Uma maneira de argumentar a favor
do cepticismo é que as ilusões cognitivas, como as visuais, são recorrentes e
não temos um modo de ter a certeza, perante uma dada crença ou percepção,
se é uma ilusão ou não.
A primeira crítica a fazer ao argumento céptico é que o conceito de
certeza é epistemicamente irrelevante e confuso. O conceito de certeza pode
ser entendido de duas maneiras. Por um lado, podemos conceber a certeza
meramente como uma forte convicção. Neste caso, a certeza é irrelevante
para o que está em causa, porque se podemos estar enganados quando vemos,
também podemos estar enganados quando temos uma forte convicção de que
não estamos enganados quando vemos. É argumentável que, nesta acepção, a
certeza é apenas mais um nível de ilusão epistémica — como se a forte
convicção fosse garantia de que não estamos enganados.
Outra maneira de conceber a certeza é pensar que se trata de estar certo,
no sentido de acertar. Nesta acepção de certeza, por definição, quando se tem
a certeza de algo, é porque se acertou na verdade. Mas nesta acepção
podemos sempre estar enganados: quando pensamos que acertámos, podemos
não ter acertado.
Assim, seja a certeza concebida do primeiro modo ou do segundo, é
irrelevante para a discussão em causa. Parece relevante, porque se confunde e
mistura os dois sentidos: como se acertar implicasse uma convicção mais
forte, e como se esta implicasse acertar. Mas isto é falso: na melhor das
hipóteses, uma convicção mais forte, que se mantém depois de uma
investigação cuidadosa, está correlacionada com maior probabilidade de se
ter acertado, o que é muito diferente de implicar que se acertou.
Seja qual for a concepção de legitimidade epistémica que tenhamos, a
mera certeza não parece relevante: podemos ter a certeza por sermos
casmurros, por exemplo, defendendo firmemente uma ideia contra a qual há
excelentes indícios ou argumentos. Também a mera possibilidade de
estarmos enganados, explorada pelo céptico, não parece relevante para a
ilegitimidade epistémica: do facto de podermos estar enganados não se segue
que estamos enganados, e do facto de não se poder garantir que não estamos
enganados não se segue que qualquer maneira de investigar as coisas e de
formar crenças tem o mesmo grau de legitimidade epistémica.
Não parece haver receitas automáticas para determinar quando um dado
processo de formação de crenças é epistemicamente legítimo, e este é um dos
problemas centrais da epistemologia da fé. Quem defende o indiciarismo,
como Clifford, tende a pensar que nenhuma crença é epistemicamente
legítima sem provas, incluindo as crenças religiosas, porque tem em mente o
género de processo de estabelecimento de verdades que se usa em medicina,
física, biologia, matemática, etc. Quem defende a posição contrária tem em
mente os processos mais quotidianos de formação de crenças, que incluem
coisas como a experiência pessoal, a tradição e a confiança nos outros, além
do poder motivador das crenças.
O indiciarismo está por vezes associado a uma certa ingenuidade
epistémica. A essa ingenuidade epistémica podemos chamar o mito do
investigador solitário. Esta ingenuidade epistémica dá origem a uma versão
infantil de indiciarismo, que é fácil refutar: a ideia de que cada um de nós só
tem legitimidade epistémica para aceitar o que nós mesmos somos capaz de
provar. Muitos crentes consideram, com razão, que esta posição é
insustentável, além de algo cega.
Para ver porquê, considere-se o memorável ensaio de George Orwell, de
1946, em que ele se pergunta «Como sei que a terra é redonda?».
Rapidamente nos apercebemos que só por testemunho sabemos que a Terra é
esférica, ou que a água é H2O: os professores ou cientistas escreveram isso
ou disseram isso, e nós acreditamos. Não só não temos provas directas dessas
coisas, como a maior parte de nós não saberia estabelecer tais coisas, mesmo
que tivéssemos os meios para isso: eu, por exemplo, não saberia estabelecer
que a água é H2O, mesmo que tivesse acesso a um laboratório de química. E,
apesar de poder viajar num avião ou outro meio de transporte para poder ver
directamente que a Terra é esférica, não saberia dizer se o que me pareceria
visualmente evidente não ficaria a dever-se a alguma ilusão perceptiva, dado
que neste caso eu estaria muito afastado do meu ambiente perceptivo comum.
Estas considerações parecem militar contra Clifford, mas a sua posição é
mais sofisticada do que isso. Na segunda parte do seu ensaio, Clifford aborda
explicitamente o que acontece quando temos de nos apoiar em terceiros para
justificar as nossas crenças. Este problema torna-se mais vívido se
compararmos estes dois casos: no primeiro, a Josefa vem do supermercado e
diz ao marido: «Afinal, não havia leite, esgotou-se»; no segundo, a Marília
vem também do supermercado e diz ao marido «Afinal, não havia leite;
vieram uns extraterrestres e levaram-no todo». No primeiro caso, o marido
aceita o testemunho da Josefa, sem mais perguntas, e será capaz de dizer com
toda a segurança a outra pessoa, alguns minutos depois, que não há leite no
supermercado porque se esgotou. Mas, no segundo, o marido da Marília fica
estupefacto e começa imediatamente a fazer perguntas; muitas perguntas.
Qual é a diferença?
No primeiro caso, o testemunho da Josefa é banal; no segundo, não é
banal. Aceitamos informações banais por testemunho, sem mais perguntas;
mas quando o testemunho transmite supostas informações que não são
banais, queremos razões mais fortes do que a mera confiança na pessoa.
Neste último caso, queremos algumas razões para pensar que a pessoa não
está a enganar-nos; ou que não se enganou ela, sendo vítima de uma ilusão. O
caso caricatural mais óbvio que esclarece o que está em causa é o seguinte:
passamos na rua e perguntamos as horas a alguém, e confiamos na resposta;
mas perguntamos a essa mesma pessoa se há extraterrestres e, seja a resposta
afirmativa ou não, não confiamos na resposta. Porquê? Clifford viu porquê:
porque num caso a pessoa está a dizer-nos algo que nós próprios sabemos
como podemos saber; no outro, está a dizer-nos algo que nós mesmos não
sabemos como poderíamos saber. Acreditar no testemunho de alguém que
afirma saber algo que não fazemos ideia como nós mesmos poderíamos saber
é credulidade; e, claro, a credulidade é mais tentadora quando o que essa
pessoa nos diz é o que queremos ouvir.
Contudo, não é num certo sentido verdadeiro que muitos de nós não
fazem ideia como seria possível descobrir a composição química da água? No
entanto, confiamos no testemunho dos cientistas. Será isso credulidade? Se
não o for, por que razão seria credulidade acreditar num profeta que afirma
ter tido contacto directo com uma divindade?
Há duas respostas a este desafio. Primeiro, o género de experiência em
causa é muitíssimo diferente. Num caso, trata-se apenas de estudar química, e
isso não exige quaisquer capacidades especiais da nossa parte. Quem estuda
química tem um acesso privilegiado à verdade, mas apenas num sentido
fraco: no mesmo sentido em que se eu estiver a ver uma árvore e a outra
pessoa não, eu tenho um acesso privilegiado à árvore — mas a outra pessoa
teria exactamente o mesmo acesso caso estivesse na minha situação, vendo a
árvore. Contudo, no que respeita a subir a uma montanha e ouvir a palavra de
Deus, as coisas são muito diferentes: não basta subir e ficar à espera. Milhões
de pessoas podem fazer isso e nenhuma voz ouvir. Quem ouve tais vozes tem
um acesso privilegiado à intimidade dos deuses, acesso que os outros não
têm.
Assim, a primeira resposta é que seremos crédulos se acreditarmos num
testemunho que pressupõe que a outra pessoa tem um acesso privilegiado à
verdade, no sentido forte. Isto é credulidade porque a pessoa poderá ser
vítima de alucinação, ainda que seja sincera; ou poderá estar a mentir, por
qualquer motivo. Acresce que qualquer pessoa que pense ouvir a voz de uma
divindade terá pelo menos de levantar a hipótese de estar a ser vítima de
ilusão, se for epistemicamente virtuosa, tal como olhamos com estupefacção
quando vemos coisas incomuns — uma mulher a ser aparentemente serrada
ao meio, num circo, e que, no entanto, continua a mexer os pés no outro lado
da caixa. O que poderá fazer-nos aceitar prontamente a nossa experiência
religiosa, sem um exame cuidadoso, ao mesmo tempo que não aceitamos a
nossa experiência visual de ver uma mulher ser serrada ao meio e sobreviver,
é a credulidade: a vontade de acreditar no que gostaríamos que fosse
verdadeiro.
Um antídoto à credulidade é o seguinte: quanto mais gostaríamos que
algo fosse verdadeiro, mais razões temos para ver cuidadosamente se é
mesmo verdadeiro, ou se estamos a enganar-nos a nós mesmos,
nomeadamente por sermos vítimas da superstição comum de que acreditar
em algo muito firmemente contribui para a sua verdade, ainda que nenhuma
relação causal exista entre uma coisa e outra. Rejeitar este princípio é
incompatível com a virtude epistémica.
A segunda resposta é que a estrutura epistémica da comunidade em causa
é crucial. Tenho razões para aceitar as afirmações de um cientista, afirmações
que pessoalmente não posso testar, se as próprias instituições científicas
tiverem uma estrutura epistémica adequada. Essa estrutura epistémica
resume-se na máxima de John Stuart Mill:
«As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia
sobre a qual assentar, senão um convite permanente ao mundo inteiro
para provar que carecem de fundamento» (Sobre a Liberdade, 1859,
p. 58).
Diversidade epistémica
As considerações da secção anterior dão uma imagem da legitimidade
epistémica muito diferente do que por vezes se pensa. A ideia de que somos
agentes epistémicos sociais e de que estamos continuamente a fazer controlos
e ajustes nas nossas crenças colide com um ponto de vista comum, na história
da filosofia, no que respeita à justificação última das nossas crenças. Esse
ponto de vista tradicional tem a designação de fundacionalismo. A ideia é que
as nossas crenças só têm justificação, na sua maioria, porque se baseiam
noutras, das quais são inferidas. Assim, acreditamos que não nascemos
ontem, por exemplo, porque nos lembramos de existir há vários anos.
Portanto, a crença de que não nascemos ontem baseia-se noutras crenças.
Mas nem todas as crenças poderão basear-se noutras, sob pena de regressão
infinita; logo, algumas crenças são básicas: crenças que não se baseiam
noutras.
Às crenças básicas que são epistemicamente legítimas chama-se crenças
apropriadamente básicas. Determinar que crenças são apropriadamente
básicas é o que o fundacionalista terá de fazer. Quando o fundacionalista
considera que essas crenças básicas não incluem senão crenças empíricas, é
um empirista; quando considera que só incluem crenças que não são
empíricas, é um racionalista.
O fundacionalismo é um ponto de vista muito natural. E parece
particularmente apelativo a quem tem uma mentalidade científica. Neste
caso, a ideia é que as crenças apropriadamente básicas serão perceptivas. A
ciência é então vista como um desenvolvimento de teorias que se baseiam em
crenças perceptivas apropriadamente básicas. Suspeita-se que poderá haver
algo de errado nesta ideia quando consideramos que a agricultura empírica,
pré-científica, se baseia em crenças perceptivas básicas, mas não tem o poder
explicativo nem o grau de sofisticação e precisão que permita afirmar que é
científica. Um agricultor empírico sabe como cultivar um terreno, mas não
sabe explicar por que razão fazendo as coisas de uma maneira tudo corre
bem, mas tudo corre mal se fizermos de outra. Um agricultor científico sabe
explicar, pelo menos parcialmente, por que razão as coisas funcionam de uma
maneira e de outra não.
O que faz a diferença é que a agricultura científica resulta de se testar
explicitamente ideias diferentes e de se procurar activamente explicações
melhores, ao passo que a agricultura empírica consiste quase exclusivamente
na aceitação do que a tradição nos ensinou a fazer, e no que podemos ver sem
recorrer à observação sistemática nem a testes e controlos explícitos. Assim,
o que parece crucial é o carácter activo e temporal dos nossos procedimentos
epistémicos, num caso, e passivo e atemporal, no outro. O que parece crucial
não é, então, o carácter apropriadamente básico das crenças de partida, nem o
seu carácter observacional, mas antes a atitude activa de procurar controlos e
ajustes, ao longo do tempo.
Se rejeitarmos o fundacionalismo, contudo, não teremos de dizer que a
estrutura das nossas crenças é viciosamente circular? Afinal, se não há
crenças apropriadamente básicas com base nas quais estabelecemos as outras,
o que estabelece a verdade de uma crença? Chama-se coerentista à ideia de
que as nossas crenças podem justificar-se entre si sem que tal círculo seja
vicioso. Na teoria coerentista pode-se aceitar que algumas crenças são mais
básicas ou elementares do que outras; mas nega-se que existam crenças
rigorosamente básicas, com base nas quais todas as outras se justifiquem.
O caso da Josefa, acima, ajuda a compreender o coerentismo: em alguns
contextos, confiamos na nossa memória; noutros, pomos a memória em
causa. Há uma dialéctica contínua entre o que está em causa, o contexto em
que estamos e muitas outras crenças relacionadas com o que está em causa.
Quotidianamente, não parece sensato pôr em causa que a Terra está imóvel;
mas a continuação do nosso estudo da natureza pode fazer-nos rever esta
crença. Para o fazermos, contudo, teremos de ter um conjunto de outras
crenças que julgamos mais sólidas do que essa: podemos rever qualquer
crença, mas não as revemos todas ao mesmo tempo nem à toa, sem ter em
consideração as outras crenças relacionadas. E este processo de rever crenças
é contínuo, decorrendo ao longo do tempo.
Porque somos falíveis, a virtude epistémica exige que estejamos dispostos
a pôr em causa as nossas crenças, incluindo as mais queridas. E é difícil
imaginar contextos epistémicos nos quais a falibilidade humana não seja
evidente. Contudo, em muitos contextos epistémicos, a falibilidade humana é
objecto de ocultação, fingindo-se que certas pessoas ou instituições são
infalíveis, sendo impróprio e até ofensivo e blasfemo pôr em causa o que
essas pessoas e instituições afirmam. Se levarmos a sério a falibilidade
humana, um agente terá tanto menos legitimidade epistémica para aceitar o
que afirma um grupo de pessoas quanto mais essas pessoas procuram impedir
que as suas afirmações sejam postas em causa. E, em muitos casos, basta que
nos perguntemos se as pessoas que afirmam algo não poderão estar
enganadas para destruir a aparência de autoridade epistémica que fingem
deter.
Considere-se o Adelino. Vive numa comunidade tradicional, sem
conhecimentos científicos. Não faz a mínima ideia sobre a constituição da
água, nem sobre a natureza do Sol. Ignora que a Terra não está imóvel, e
parece-lhe óbvio que está imóvel. Mas mesmo ele sabe que somos falíveis,
pois muitas vezes lhe parecia ver ao longe alguém, quando afinal era só uma
árvore; ou parece recordar-se de ter visto uma árvore num dado lugar, e
depois descobre que afinal estava noutro. Além disso, vê que o mesmo ocorre
com as outras pessoas da sua comunidade. Por isso, se reflectir
cuidadosamente, verá que não é só ele que não tem realmente razões de muito
peso para pensar que a Terra está imóvel: ninguém na sua comunidade as
tem. Com respeito a uma crença inócua como esta, o Adelino talvez esteja
disposto a abandoná-la, se com o decorrer do tempo começar a ter razões para
pensar que é falsa. E se não estiver disposto a isso, será epistemicamente
vicioso.
Se considerarmos agora o género de interlocutor que Clifford tem em
mente, vemos muitas diferenças. Clifford fala para ingleses do séc. XIX.
Nesta altura, muitas crenças tradicionais foram postas em causa, à medida
que os estudos cada vez mais complexos prosseguiam. Neste contexto
epistémico, já não é verdadeiro que toda a gente pensa que Deus existe, por
exemplo. Neste contexto, muitos estudiosos declaram-se descrentes. Neste
contexto, nenhum Adelino, educado na fé cristã, pode ficar indiferente
perante a hipótese de estar enganado quando pensa que a divindade cristã
existe; e se o ficar, é porque não é epistemicamente virtuoso.
O primeiro resultado desta análise é que aceitar a tese de Plantinga tem
consequências menos fortes do que se poderia pensar. Tudo o que Plantinga
defende é que em certos contextos é epistemicamente legítimo crer em Deus
sem provas. Mas não mostra que é epistemicamente legítimo crer em Deus
sem provas num contexto em que muitos outros agentes epistémicos põem a
existência de Deus em causa. Só conseguiria mostrar isso se conseguisse
mostrar que as crenças ateias não devem ser tidas em conta pelos crentes, por
qualquer razão. Mas que razão poderemos invocar?
Podemos defender que falta aos descrentes uma faculdade especial, o
sensus divinitatis; ou que esta faculdade foi corrompida pelo pecado. O
problema de qualquer uma destas ideias é não ser mais evidentemente
verdadeira do que a hipótese de que são as pessoas crentes que são vítimas de
ilusão, ou que são epistemicamente viciosas, crendo ser verdadeiro o que lhes
dá jeito crer que é verdadeiro.
Esta será outra discussão; para já, importa apenas mostrar o papel da
diversidade e da tolerância na nossa estrutura epistémica. A diversidade de
pontos de vista é uma ameaça a sistemas de crenças que se protegem
precisamente porque as pessoas que têm essas crenças desconfiam que são
falsas, mas gostariam que fossem verdadeiras. É difícil conceber qualquer
virtude epistémica nesta atitude. Trata-se tão-somente de evitar o incómodo
de ter de mudar de ideias. Quem crê sinceramente que as suas ideias são
verdadeiras não pode sentir-se assustado quando alguém as põe em causa. E
quem ao mesmo tempo crê na sua óbvia falibilidade epistémica, quererá pô-
las em causa, pois se não resistirem ao exame crítico é porque são
provavelmente falsas e devem ser abandonadas.
A diversidade epistémica é por isso saudável, e terá de ser acolhida com
agrado por quem for epistemicamente virtuoso. Cada um de nós pode pôr em
causa as ideias em que acredita, mas a melhor pessoa para o fazer é o nosso
semelhante que desde o início não acredita nessas ideias. Assim, qualquer
crente epistemicamente virtuoso acolhe com agrado os descrentes que
argumentam contra a sua fé; e qualquer descrente epistemicamente virtuoso
acolhe com agrado os crentes que argumentam a favor da fé. O valor
epistémico da diversidade de opiniões é permitir que as ideias mais díspares
sejam defendidas por quem genuinamente acredita nelas. E o primeiro sinal
de vício epistémico é a falta de tolerância, que se revela na vontade de
eliminar ou silenciar quem pensa de maneira diferente de nós, ou na
manipulação da discussão, tornando-a um exercício performativo que visa
cativar e seduzir, e não descobrir a verdade e detectar o erro.
Admitindo que James e Plantinga conseguem resolver as dificuldades
discutidas, o que se segue da aceitação das suas posições é a legitimidade
epistémica de crer sem provas; não se segue das suas posições a legitimidade
de crer com imensa convicção sem provas. Se considerarmos que crer com
imensa convicção é constitutivo da fé, então nenhum destes dois filósofos foi
bem-sucedido em defender a legitimidade epistémica da fé sem provas.
Conclusão
Ambrose Bierce (1842–1914) definiu a fé como «Crença sem indícios no que
diz quem fala sem conhecimento de coisas sem paralelo».1 Esta humorística
definição caracteriza bem a atitude de muitos descrentes, que consideram por
vezes a fé um paradigma de vício epistémico. Muitos crentes, por sua vez,
consideram que esta atitude é insensível a realidades mais importantes e
profundas, incluindo os aspectos vivenciais de quem tem uma vida e atitude
religiosa. O exame preliminar aqui realizado de algumas ideias e conceitos
centrais desta área poderá ajudar crentes e descrentes a discutir melhor o
tema. Outro não era o objectivo.
The Devil’s Dictionary, 1906. Há uma tradução portuguesa, na Tinta da
China.
2. A ética da crença
W. K. Clifford
I. O dever de investigar
Um armador preparava-se para enviar para o mar um navio com emigrantes.
Sabia que o navio estava velho e tinha defeitos de construção; que conhecera
já muitos mares e climas e teve de ser reparado muito mais de uma vez.
Alguém sugeriu ao armador que o navio talvez não estivesse em condições de
navegar. Estas dúvidas pesavam-lhe na consciência e deixavam-no infeliz;
pensou que talvez devesse mandar inspeccionar e renovar completamente o
navio, embora isto provavelmente ficasse bastante caro. Antes de o navio
zarpar, contudo, o armador conseguiu deixar para trás estes pensamentos
melancólicos. Disse para consigo que o navio enfrentara com êxito tantas
viagens e resistira a tantas tempestades que não havia razão para supor que
não regressaria ileso também desta viagem. O armador confiaria na
providência, que seguramente não deixaria de proteger todas aquelas infelizes
famílias que abandonavam a pátria em busca de uma vida melhor alhures.
Silenciaria todas as dúvidas mesquinhas acerca da honestidade dos
construtores e dos empreiteiros. Assim, alcançou uma certeza sincera e
confortável de que o seu navio era completamente seguro e estava em
condições de navegar; viu-o partir com despreocupação e desejos caridosos
de que os exilados fossem bem-sucedidos no novo e estranho lar que os
esperava; e recebeu o dinheiro do seguro quando o navio se afundou em
pleno mar sem deixar rasto.
O que diremos do armador? Seguramente, que é muitíssimo culpado pela
morte daqueles homens. Admitindo-se que acreditava sinceramente no bom
estado do seu navio, a sinceridade da sua convicção, porém, não lhe pode
valer de maneira alguma, porque não tinha o direito de acreditar com base
nos indícios de que dispunha. Não adquiriu a sua crença por mérito honesto,
através da investigação paciente, mas silenciando as suas dúvidas. E embora
no final a sua certeza sobre o assunto fosse porventura tão grande que não era
capaz de pensar de outra maneira, temos de o considerar responsável pelo
sucedido, na medida em que se colocou deliberada e voluntariamente naquele
estado de espírito.
Alteremos um pouco a história e suponhamos que o navio não estava,
afinal, em mau estado; suponhamos que fez a viagem em segurança, e muitas
outras viagens após aquela. Será que isso diminui a culpa do seu proprietário?
Nem um pouco. Quando se pratica uma acção uma vez, esta é correcta ou
incorrecta para sempre; nenhuma falha acidental das suas boas ou más
consequências pode alterar isso. O homem não seria inocente; apenas não
teria sido descoberto. A questão do correcto e do incorrecto tem a ver com a
origem da crença do armador, e não com o seu conteúdo; não é a crença que
conta, mas o modo como a adoptou; não se trata de a crença ser afinal
verdadeira ou falsa, mas de o armador ter ou não o direito a acreditar com
base nos indícios de que dispunha.
Era uma vez uma ilha onde alguns dos habitantes seguiam uma religião
que não pregava a doutrina do pegado original nem a doutrina do castigo
eterno. Espalhou-se a suspeita de que os seguidores desta religião se tinham
servido de meios desonestos para ensinar as suas doutrinas às crianças.
Acusaram-nos de violar as leis do país de maneira a afastar as crianças da
vigilância de quem tinha a sua custódia natural e legal; e até de as roubar e
manter escondidas dos amigos e familiares. Algumas pessoas formaram uma
associação com o objectivo de provocar a agitação do público a respeito deste
assunto. Publicaram acusações graves contra cidadãos individuais do mais
elevado estatuto e reputação, e fizeram tudo o que estava em seu poder para
lesar estes cidadãos no exercício das suas profissões. Fizeram tamanho
barulho que foi nomeada uma comissão para investigar os factos; mas após a
comissão ter averiguado cuidadosamente todos os indícios que se podia obter,
parecia que os acusados estavam inocentes. Não só foram acusados com base
em indícios insuficientes, como os indícios da sua inocência eram tais que os
agitadores os podiam ter facilmente obtido, se tivessem procurado fazer uma
investigação imparcial. Após estas revelações, os habitantes daquele país
passaram a encarar os membros da associação agitadora não só como pessoas
em cujo discernimento não se devia confiar, mas também como indivíduos
que não mais podiam considerar honestos. Pois embora acreditassem sincera
e diligentemente nas acusações que fizeram, não tinham todavia o direito de
acreditar com base nos indícios de que dispunham. As suas convicções
sinceras, em vez de merecidas pela investigação paciente, foram roubadas,
dando ouvidos à voz do preconceito e da paixão.
Introduzamos uma variação também neste caso e suponhamos, deixando
o resto na mesma, que uma investigação ainda mais meticulosa provava que
os acusados eram realmente culpados. Faria isto diferença alguma para a
culpa dos acusadores? Evidentemente que não; a questão não é a de a sua
crença ser ou não verdadeira, mas a de a terem ou não sustentado sem razões
adequadas. Sem dúvida diriam: «Agora vêem que afinal de contas tínhamos
razão; talvez para a próxima acreditem em nós.» E talvez acreditassem neles,
mas não se tornariam homens honestos por causa disso. Não estariam
inocentes, apenas não teriam sido descobertos. Se cada um deles, sem
excepção, decidisse examinar-se in foro conscientiae, saberia que tinha
adquirido e acalentado uma crença, quando não tinha o direito de acreditar
com base nos indícios de que dispunha; e assim saberia ter feito uma coisa
incorrecta.
Dir-se-á, todavia, que em ambos estes casos hipotéticos não se considera
errada a crença mas a acção que dela decorre. O armador pode afirmar:
«Tenho a absoluta certeza de que o meu navio está em bom estado, mas ainda
assim sinto que é meu dever mandar examiná-lo, antes de lhe confiar as vidas
de tanta gente.» E poder-se-ia dizer ao agitador: «Por muito convencido que
estejas da justeza da tua causa e da verdade das tuas convicções, não devias
ter atacado publicamente o carácter de uma pessoa antes de teres examinado
os indícios de ambos os lados com a máxima paciência e cuidado.»
Em primeiro lugar, admitamos que, no que diz respeito ao nosso assunto,
esta perspectiva é correcta e necessária; correcta, porque mesmo quando um
homem tem uma crença tão firme que o torna incapaz de pensar de outra
maneira, continua a ter escolha relativamente à acção que a crença lhe sugere
e, portanto, não pode escapar ao dever de investigar o fundamento da força
das suas convicções; e necessária, porque aqueles que não são ainda capazes
de controlar os seus sentimentos e pensamentos precisam de uma regra clara
para lidar com actos inequívocos.
Mas tendo-a formulado como necessária, torna-se claro que não é
suficiente, e que é preciso complementá-la com o nosso juízo anterior. Pois
não é possível separar assim a crença da acção que aquela sugere, de maneira
a condenar uma, mas não a outra. Ninguém que sustente uma crença forte
sobre um dos lados de uma questão, ou mesmo deseje sustentar uma crença
sobre um desses lados, pode investigá-la com a mesma imparcialidade e
meticulosidade que teria se realmente duvidasse e fosse isento; pelo que a
existência de uma crença que não é sustentada por uma investigação
imparcial torna um homem inapto para a realização deste dever necessário.
Tão-pouco é uma crença aquilo que não influencia de modo algum as
acções de quem o sustenta. Quem verdadeiramente acredita naquilo que o
encoraja a realizar uma acção contemplou já a acção com um desejo intenso,
já a realizou no seu coração. Se uma crença não se realiza imediatamente em
acções inequívocas, é reservada para orientação no futuro. Passa a fazer parte
daquele agregado de crenças que é o elo entre a sensação e a acção em cada
momento de todas as nossas vidas, e que está de tal maneira organizado e
compactado que nenhuma parte deste se pode isolar do resto, cada novo
acrescento modificando a estrutura do todo. Nenhuma crença genuína, por
mais superficial e fragmentária, é, em circunstância alguma, realmente
insignificante; prepara-nos para receber mais crenças semelhantes, confirma
as crenças semelhantes anteriores, e enfraquece outras; e assim,
gradualmente, estabelece um fio condutor implícito nos nossos pensamentos
mais íntimos, que pode um dia manifestar-se em acções inequívocas e deixar
a sua marca no nosso carácter para sempre.
Em circunstância alguma a crença de um homem é um assunto privado,
que apenas diga respeito ao próprio. As nossas vidas guiam-se por essa
concepção geral da ordem das coisas que a sociedade criou para fins sociais.
As nossas palavras, as nossas expressões, as nossas formas, processos e
modos de pensamento, são propriedade comum, modificados e aperfeiçoados
de época para época; um legado que cada geração sucessiva herda como um
depósito precioso e uma doação sagrada a transmitir à geração seguinte, não
sem modificações, mas alargado e depurado, com algumas marcas distintas
do seu engenho específico. Nisto, para o bem e para o mal, se entretece cada
crença de cada homem que partilha a língua dos seus semelhantes. É um
terrível privilégio e uma terrível responsabilidade, ajudarmos a criar o mundo
no qual viverão as gerações do futuro.
Nos dois casos hipotéticos que temos vindo a ponderar, considerou-se
incorrecto acreditar com base em indícios insuficientes, ou acalentar crenças
suprimindo as dúvidas e evitando a investigação. A razão deste juízo não é
difícil de ver: é que em ambos os casos a crença sustentada por um homem
era de grande importância para outros homens. Mas na medida em que
nenhuma crença sustentada por um homem, por muito trivial que a crença
pareça e por muito obscuro que seja o crente, é na realidade insignificante ou
desprovida de consequências para o destino da humanidade, não temos
escolha senão alargar o nosso juízo a todos e quaisquer casos de crença. A
crença, essa faculdade sagrada que impulsiona as decisões da nossa vontade e
une num funcionamento harmonioso todas as energias compactas do nosso
ser, pertence-nos não para nosso usufruto, mas para a humanidade. É
correctamente usada em verdades que foram estabelecidas pela longa
experiência e pelo trabalho persistente, que enfrentaram a luz intensa do
questionamento livre e intrépido. Além disso, ajuda a unir os homens, a
fortalecer e orientar a sua acção comum. Profana-se a crença ao concedê-la a
afirmações improvadas e inquestionadas, para consolo e prazer privado do
crente; para acrescentar um falso esplendor à estrada simples e directa da
nossa vida e exibir para além dela uma miragem radiosa; ou mesmo para
afogar as angústias comuns da nossa espécie através de um auto-engano que
lhes permite não só deprimir-nos como rebaixar-nos. Quem desejar bem aos
seus semelhantes nesta matéria guardará a pureza da sua crença com o
fanatismo próprio de um zelo ciumento, para que a dada altura não recaia
sobre um objecto indigno, ganhando uma mancha que jamais se poderá
remover.
Não é só o líder de homens, o estadista, o filósofo, ou o poeta, que tem
este dever moral perante a humanidade. Cada campónio que debita na taberna
da aldeia as suas frases lentas e esporádicas pode ajudar a matar ou a manter
vivas as superstições fatais que toldam o seu género. Cada diligente esposa de
artesão pode transmitir aos filhos crenças que manterão a sociedade coesa ou
a farão em pedaços. Nenhuma ingenuidade, nenhuma obscuridade de
estatuto, podem escapar ao dever universal de questionar tudo aquilo em que
acreditamos.
É verdadeiro que este dever é difícil e a dúvida que dele nasce é muitas
vezes amarga. Deixa-nos desprotegidos e impotentes quando nos julgávamos
seguros e fortes. Saber tudo acerca de qualquer coisa é saber como lidar com
isso em todas as circunstâncias. Sentimo-nos muito mais felizes e seguros
quando julgamos saber exactamente o que fazer, independentemente do que
acontece, do que quando nos perdemos e não sabemos por onde ir. E se
pensávamos saber tudo acerca de alguma coisa e nos julgávamos capazes de
agir adequadamente a esse respeito, é natural que não nos agrade descobrir
que na verdade somos ignorantes e impotentes, que temos de voltar mais uma
vez ao início e daí partir, tentar aprender o que a coisa é e como se deve lidar
com ela — se é que na verdade podemos conhecer algo acerca disso. É o
sentido do poder ligado a um sentido do conhecimento que deixa os homens
desejosos de acreditar e receosos de duvidar.
Este sentido do poder é o mais elevado e o melhor dos prazeres, quando a
crença em que se funda é verdadeira e foi honestamente alcançada pela
investigação. Pois então podemos sentir com justiça que é propriedade
comum e se aplica aos outros bem como a nós mesmos. Então podemos
alegrar-nos, não porque eu tenha aprendido segredos que me dão maior
segurança e força, mas porque nós, homens, ganhámos domínio sobre uma
maior porção do mundo; e seremos fortes, não por nós próprios, mas em
nome do Homem e da sua força. Mas se a crença foi aceite com base em
indícios insuficientes, é um prazer roubado. Não só nos engana ao dar-nos
um sentido do poder que efectivamente não temos, como é pecaminoso,
porque é roubado em desprezo pelo nosso dever perante a humanidade. Esse
dever consiste em precaver-nos de tais crenças como de uma epidemia, que
pode em pouco tempo tomar conta do nosso próprio corpo e então propagar-
se para o resto da cidade. O que se pensaria daquele que, por causa de um
fruto doce, corresse deliberadamente o risco de trazer uma epidemia à sua
família e aos seus vizinhos?
E, como acontece noutros casos, não é apenas o risco o que se tem de
considerar; pois uma má acção é sempre má no momento em que é praticada,
independentemente do que aconteça depois. Sempre que nos permitimos
acreditar por razões indignas, enfraquecemos os nossos poderes de
autocontrolo, de dúvida, de avaliação imparcial e honesta dos indícios. Todos
sofremos gravemente com a sustentação de crenças falsas e as acções
fatalmente incorrectas a que conduzem, e o mal que decorre de se sustentar
tal crença é grande e vasto. Mas surge um mal maior e mais vasto quando o
temperamento crédulo é mantido e apoiado, quando se acalenta e perpetua o
hábito de acreditar por razões indignas. Se roubo dinheiro a uma pessoa
qualquer, talvez não resulte um grande mal da mera transferência de posse;
ela pode não sentir a perda, ou talvez isto a impeça de dar mau uso ao
dinheiro. Mas não deixo de fazer este grande mal à humanidade: o de me
tornar desonesto. O que lesa a sociedade não é a perda da propriedade, mas o
de se tornar um covil de ladrões; pois então deixará forçosamente de ser uma
sociedade. Por esta razão não devemos fazer um mal para que dele resulte um
bem; pois em todo o caso daí resulta este grande mal: que fiz um mal e que
por isso me tornei malvado. De igual modo, se me permito acreditar seja no
que for com indícios insuficientes, da mera crença pode não resultar grande
mal; pode afinal ser verdadeira, ou posso nunca ter ocasião de a manifestar
em acções públicas. Mas não deixo de cometer este grande mal contra o
Homem: o de me tornar crédulo. O perigo para a sociedade não é meramente
o de acreditar em coisas erradas, embora isso seja suficientemente mau; mas
o de se tornar crédula e perder o hábito de testar as coisas e de as investigar;
pois então reincidirá forçosamente na selvajaria.
O mal que a credulidade faz num homem não se limita à estimulação de
um carácter crédulo nos outros e à decorrente defesa de crenças falsas. O
hábito de ser descuidado com aquilo em que acredito leva os outros a serem
por hábito descuidados com a verdade daquilo que me é dito. Os homens
dizem a verdade uns aos outros quando cada um respeita a verdade na sua
própria mente e na mente do outro; mas como poderá o meu amigo respeitar
a verdade na minha mente quando eu próprio sou descuidado com ela,
quando acredito em coisas porque quero acreditar nelas, porque são
reconfortantes e agradáveis? Não aprenderá ele a exclamar «paz», na minha
presença, quando não há qualquer paz? Adoptando tal caminho, envolver-me-
ei numa atmosfera carregada de falsidade e fraude e aí tenho de viver. Talvez
seja de pouca importância para mim, no meu castelo nas nuvens, feito de
doces ilusões e mentiras queridas; mas para a humanidade é de enorme
importância que eu tenha preparado os meus vizinhos para enganarem. O
homem crédulo é o pai do mentiroso e do batoteiro; vive no seio da sua
família, e não é de admirar que fique igualzinho a eles. Tão intimamente
unidos estão os nossos deveres que quem observa a lei em geral e, no entanto,
a transgride num ponto particular, é culpado de tudo.
Resumindo: é sempre incorrecto, em todo o lado, para qualquer pessoa,
acreditar seja no que for com base em indícios insuficientes.
Se um homem, ao manter uma crença que lhe foi ensinada em criança ou
da qual o persuadiram mais tarde, reprime e afasta quaisquer dúvidas que lhe
surgem na mente a esse respeito, evita intencionalmente a leitura de livros e a
companhia de homens que questionam ou discutem essa crença, e considera
ímpias as perguntas que não se pode colocar facilmente sem a perturbar — a
vida desse homem é um enorme pecado contra a humanidade.
Se este juízo parece severo quando aplicado àquelas almas simples que
nunca conheceram outra coisa, que desde o berço foram educadas no horror à
dúvida, a quem ensinaram que o seu bem-estar eterno depende daquilo em
que acreditam, então leva-nos à questão muito grave: Quem fez Israel pecar?
Talvez se me permita reforçar este juízo com o veredicto de Milton:2
1. Uma opção viva é uma opção em que ambas as hipóteses estão vivas. Se
vos digo: «Sejam teosofistas ou maometanos», trata-se provavelmente
de uma opção morta, porque para vós nenhuma das hipóteses tem
probabilidade de estar viva. Mas se afirmo: «Sejam agnósticos ou
cristãos», a história é outra: dada a vossa formação, cada hipótese apela,
por muito pouco que seja, à vossa crença.
2. De seguida, se vos digo: «Escolham entre sair com ou sem a vossa
umbrela», não vos ofereço uma opção genuína, pois não é forçosa.
Podem facilmente evitá-la não saindo sequer. De igual modo, se digo
«Ou me amam ou me odeiam», «ou consideram a minha teoria
verdadeira ou a consideram falsa», a vossa opção é evitável. Podem
permanecer indiferentes a mim, nem me amando nem me odiando, e
podem recusar-se a emitir qualquer juízo a respeito da minha teoria. Mas
se digo «Ou aceitam esta verdade ou lhe passam ao lado», coloco-vos
uma opção forçosa, pois não há lugar fora da alternativa. Todos os
dilemas baseados numa disjunção lógica completa, sem a possibilidade
de não escolher, são opções deste tipo forçoso.
3. Finalmente, se eu fosse o Dr. Nansen e vos convidasse a juntarem-se à
minha expedição ao Pólo Norte, a vossa opção seria momentosa; pois
provavelmente não voltariam a ter uma oportunidade semelhante, e o
que escolhessem agora ou vos excluiria completamente do tipo de
imortalidade norte-polar ou colocaria pelo menos essa hipótese nas
vossas mãos. Quem recusa uma oportunidade única perde tão
seguramente o prémio como se tivesse tentado e falhado. Per contra, a
opção é trivial quando a oportunidade não é única, quando o que está em
causa é insignificante, ou quando a decisão é reversível se mais tarde se
mostrar insensata. Tais opções triviais abundam na vida científica. Um
químico considera que uma hipótese está suficientemente viva para
passar um ano a verificá-la: acredita nela até esse ponto. Mas se as suas
experiências se mostram duplamente inconclusivas, perdoa-se a sua
perda de tempo, não resultando daí qualquer mal vital.
A nossa discussão será mais fácil se tivermos bem presentes estas distinções.
II
A questão seguinte a considerar é a psicologia propriamente dita da opinião
humana. Quando olhamos para determinados factos, parece que a nossa
natureza passional e volitiva está na raiz de todas as nossas convicções.
Quando olhamos para outros factos, parece que essa natureza nada pode fazer
depois do intelecto se ter pronunciado. Consideremos antes de mais estes
últimos factos.
Não parece absurdo, à primeira vista, afirmar que as nossas opiniões são
modificáveis segundo a nossa vontade? Poderá a nossa vontade ajudar ou
estorvar o nosso intelecto na sua percepção da verdade? Será que podemos,
querendo-o apenas, acreditar que a existência de Abraham Lincoln é um mito
e que os seus retratos na McClure’s Magazine são de outra pessoa? Será que
podemos, por qualquer esforço da vontade, ou por força de desejar que fosse
verdadeiro, acreditar que estamos de boa saúde quando estamos acamados a
berrar com reumatismo, ou ter a certeza de que a soma das duas notas de
dólar que temos no bolso perfaz cem dólares? Podemos afirmar qualquer
destas coisas, mas não temos de modo algum o poder de acreditar nelas; e é
precisamente de tais coisas que se faz o tecido das verdades em que
realmente acreditamos — questões de facto, imediatas ou remotas, como
afirmou Hume, e relações entre ideias, que ou estão lá para nós ou não se as
encararmos desse modo, e que não estando não podem ser colocadas lá por
qualquer acção nossa.
Nos Pensamentos de Pascal há uma passagem célebre, conhecida na
bibliografia como a «aposta de Pascal». Aí, Pascal tenta compelir-nos ao
cristianismo argumentando como se a nossa preocupação com a verdade se
assemelhasse ao interesse que teríamos num jogo de azar. Traduzidas
livremente, eis as suas palavras: têm ou de acreditar ou de não acreditar que
Deus existe — o que escolhem? A vossa razão humana não pode decidir.
Decorre um jogo entre vocês e a natureza das coisas que no dia do juízo vai
dar caras ou coroas. Ponderem quais seriam os vossos ganhos e perdas se
apostassem tudo em caras, ou na existência de Deus: ao ganhar nessas
circunstâncias, ganhariam a beatitude eterna; perdendo, nada perderiam
sequer. Se nesta aposta houvesse uma infinidade de possibilidades e só uma
favorável a Deus, deviam ainda assim apostar tudo em Deus; pois embora
agindo desta maneira arrisquem seguramente uma perda finita, qualquer
perda finita é razoável, até mesmo uma perda finita certa, se há sequer a
possibilidade de um ganho infinito. Vão, pois, tomar a água benta e mandar
recitar a missa; a crença virá entorpecer-vos os escrúpulos — Cela vous fera
croire et vous abêtira. Por que não? No fundo, o que têm a perder?
Provavelmente sentem que quando a fé religiosa se exprime assim, na
linguagem da mesa de jogo, está a lançar os seus últimos trunfos.
Seguramente que a própria crença pessoal que Pascal tem nas missas e na
água benta teve uma origem muito diferente; e esta sua célebre página não é
senão um argumento para outros, uma última tentativa desesperada de deitar
mão a uma arma contra a dureza do coração do descrente. Sentimos que uma
fé nas missas e na água benta adoptada voluntariamente depois de um cálculo
tão mecânico careceria da alma interior da realidade da fé; e se estivéssemos
nós próprios no lugar da divindade, provavelmente teríamos um prazer
especial em impedir a crentes deste calibre o acesso à recompensa infinita. É
evidente que a menos que haja uma tendência preexistente para acreditar nas
missas e na água benta, a opção que Pascal oferece à vontade não é uma
opção viva. Certamente que nenhum turco, por sua própria conta, veria com
bons olhos as missas e a água benta; e mesmo para nós, protestantes, estes
meios de salvação parecem impossibilidades de tal maneira ultrapassadas que
a lógica de Pascal, invocada especificamente a favor destes meios, nos deixa
indiferentes. De igual modo podia o Mádi escrever-nos, afirmando: «Sou o
Esperado a quem Deus, no seu esplendor, criou. Serão infinitamente felizes
se me reconhecerem; de contrário serão afastados da luz do Sol. Ponderem
então o vosso ganho infinito no caso de eu ser genuíno, contra o vosso
sacrifício finito no caso de não o ser!» A sua lógica seria a de Pascal; mas
seria vão usá-la em nós, pois a hipótese que nos oferece está morta. Não há
em nós qualquer tendência para agir com base nela, em grau algum.
Falar em acreditar segundo a nossa vontade parece, assim, de certo ponto
de vista, simplesmente tolo. De outro ponto de vista, é pior do que tolo: é vil.
Quando nos voltamos para o magnífico edifício das ciências físicas e vemos
como foi erguido; quantos milhares de vidas morais humanas desinteressadas
jazem só nos seus alicerces; quanta paciência e adiamento, quanto abafar das
preferências, quanta submissão às leis gélidas do facto exterior, talhada na
própria pedra e na argamassa; como se mantém de pé, absolutamente
impessoal na sua vasta majestade — como parece então enfatuado e
desprezível cada pequeno sentimentalista que vem soprar as suas espirais de
fumo voluntárias, fingindo decidir as coisas a partir do seu sonho privado!
Será que nos podemos sentir surpresos, se os que foram criados na escola
austera e viril da ciência tenham vontade de cuspir tal subjectivismo das suas
bocas? Todo o sistema de lealdades que cresce nas escolas de ciência se opõe
completamente a que se tolere tal coisa; de modo que é perfeitamente natural
que quem contraiu a febre científica passe ao extremo oposto e por vezes
escreva como se o intelecto incorruptivelmente honesto devesse preferir em
absoluto a amargura e a inaceitabilidade ao coração inebriado.
III
Tudo isto nos parece saudável, mesmo quando expresso, como o faz Clifford,
com uma paixão demasiado vocal. O livre-arbítrio e o mero desejo, no que
diz respeito às nossas crenças, parecem estar a mais. No entanto, se alguém
pressupõe de imediato que a penetração intelectual é o que resta depois de o
desejo, a vontade e a preferência sentimental terem partido, ou que as nossas
opiniões passam a ser decididas pela razão pura, opor-se-ia directamente à
realidade dos factos.
São só as nossas hipóteses já mortas que a nossa natureza volitiva é
incapaz de trazer de novo à vida. Mas o que as fez morrer para nós é, na sua
maior parte, uma acção prévia, de tipo antagónico, da nossa natureza volitiva.
Quando digo «natureza volitiva», não me refiro apenas a volições deliberadas
que podem ter estabelecido hábitos de crença aos quais agora não
conseguimos escapar — refiro-me a todos os factores de crença, como o
medo e a esperança, o preconceito e a paixão, a imitação e o partidarismo, a
pressão envolvente da nossa classe e grupo. Na verdade, damos connosco a
acreditar sem saber ao certo como nem porquê. O Sr. Balfour dá o nome de
«autoridade» a todas estas influências, nascidas do clima intelectual, que
tornam as hipóteses possíveis ou impossíveis para nós, vivas ou mortas. Aqui
nesta sala, todos acreditamos em moléculas e na conservação da energia, na
democracia e no progresso necessário, no cristianismo protestante e no dever
de lutar pela «doutrina do imortal Monroe», tudo por nenhuma razão digna
do nome. A claridade interior com que discernimos estes assuntos não é
maior, e talvez até seja menor, do que aquela que qualquer descrente nos
mesmos pode ter. A sua inconvencionalidade teria provavelmente algumas
razões a mostrar a favor das suas conclusões; mas para nós, não é a ideia
sagaz e sim o prestígio das opiniões o que as faz soltar uma centelha e
acender os nossos paióis adormecidos da fé. A nossa razão satisfaz-se
cabalmente, novecentas e noventa e nove em cada mil de nós, se encontrar
alguns argumentos que se possa recitar no caso de alguém criticar a nossa
credulidade. A nossa fé é fé na fé de outrem e, nas questões mais importantes,
é isto sobretudo o que acontece. A nossa crença na própria verdade, por
exemplo, de que há uma verdade, e de que esta e as nossas mentes foram
feitas uma para a outra — o que é senão uma afirmação apaixonada de
desejo, em que o nosso sistema social nos apoia? Queremos ter uma verdade;
queremos acreditar que as nossas experiências, estudos e discussões têm de
nos colocar numa posição cada vez melhor em direcção à verdade; e nesta
linha concordamos resolver as nossas vidas pensantes. Mas se um céptico
pirrónico nos perguntar como podemos saber tudo isto, poderá a nossa lógica
dar-lhe uma resposta? Não! Certamente que não. Trata-se apenas de uma
volição contra outra — nós dispostos a avançar para uma vida com base
numa confiança ou pressuposto que ele, por sua parte, não se preocupa em
fazer.7
Por regra, rejeitamos a crença em todos os factos e teorias para as quais
não temos uso. As emoções cósmicas de Clifford não vêem qualquer
utilidade nos sentimentos cristãos. Huxley ataca duramente os bispos porque
no seu esquema de vida o sacerdócio não tem qualquer utilidade. Newman,
pelo contrário, passa para o catolicismo romano, e encontra todo o género de
boas razões para aí permanecer, porque um sistema sacerdotal é para ele uma
necessidade orgânica e um deleite. Por que são tão poucos os «cientistas» que
chegam sequer a olhar para os indícios a favor da chamada «telepatia»?
Porque pensam que, como um importante biólogo já falecido me disse uma
vez, mesmo se tal coisa fosse verdadeira, os cientistas deviam unir-se para a
manter reprimida e escondida. Esta desfaria a uniformidade da natureza e
todo o género de outras coisas sem as quais os cientistas não podem levar a
cabo as suas actividades investigativas. Mas se a este mesmo homem se
mostrasse algo que ele, como cientista, pudesse fazer com a telepatia, talvez
não só examinasse os indícios como até os considerasse suficientemente
bons. Esta mesma lei que os lógicos nos impõem — se me permitem chamar
«lógicos» a todos os que nesta questão excluiriam a nossa natureza volitiva
— em nada se baseia senão no seu próprio desejo natural de excluir todos os
elementos nos quais, na sua qualidade profissional de lógicos, não
conseguem ver qualquer utilidade.
É claro, portanto, que a nossa natureza inintelectual influencia as nossas
convicções. Há tendências passionais e volições que ocorrem antes da crença,
outras que surgem depois, e só as últimas entram em cena demasiado tarde; e
não entram demasiado tarde quando o trabalho passional prévio já as vinha
preparando. O argumento de Pascal, em vez de não ter força, parece assim
um tira-teimas como os outros, e é a última estocada necessária para tornar
completa a nossa fé nas missas e na água benta. É evidente que este estado de
coisas nada tem de simples; a mera penetração intelectual e a lógica, seja o
que for que possam fazer idealmente, não são as únicas coisas que de facto
produzem as nossas crenças.
IV
O nosso dever seguinte, tendo reconhecido este estado de coisas misturado, é
perguntar se é ou não simplesmente repreensível e patológico, ou se, pelo
contrário, temos ou não de o tratar como um elemento normal ao tomar
decisões. A tese que defendo é, em poucas palavras, a seguinte: A nossa
natureza passional não só pode, legitimamente, como deve decidir uma
opção entre proposições, sempre que se trata de uma opção genuína que não
pode, pela sua natureza, ser decidida numa base intelectual; pois afirmar,
em tais circunstâncias, «Não decidas, deixa a questão em aberto», é em si
uma decisão passional — tal como decidir pelo sim ou pelo não — e tem o
mesmo risco de perder a verdade. A tese aqui expressa abstractamente
tornar-se-á em breve, espero, bastante clara. Mas antes tenho de me demorar
um pouco mais no trabalho preliminar.
V
Observar-se-á que, para o que interessa a esta discussão, estamos em terreno
«dogmático» — terreno, quero dizer, que deixa completamente de parte o
cepticismo filosófico sistemático. O postulado de que há a verdade e que o
destino das nossas mentes é alcançá-la, estamos deliberadamente resolvidos a
aceitar, embora o céptico não o faça. Afastamo-nos da sua companhia,
portanto, absolutamente, daqui para a frente. Mas a fé, segundo a qual a
verdade existe e as nossas mentes a podem descobrir, pode ser defendida de
duas maneiras. Podemos falar no modo empirista e no modo absolutista de
acreditar na verdade. Os absolutistas neste assunto afirmam que não só
conseguimos chegar ao conhecimento da verdade, como podemos saber
quando alcançámos esse conhecimento; ao passo que os empiristas pensam
que embora o possamos alcançar, não podemos saber infalivelmente quando
o fizemos. Saber é uma coisa e saber com certeza que sabemos é outra. Pode-
se defender que a primeira é possível sem a segunda; é por isto que os
empiristas e os absolutistas, embora nenhum seja céptico no sentido
filosófico usual do termo, exibem nas suas vidas graus de dogmatismo muito
diferentes.
Se olharmos para a história das opiniões, vemos que a tendência empirista
prevaleceu em grande medida na ciência, ao passo que na filosofia a
tendência absolutista tem feito tudo à sua maneira. O género característico de
felicidade, de facto, que as filosofias produzem, tem consistido, sobretudo, na
convicção, sentida por cada escola ou sistema sucessivos, de que, por meio
dessa escola ou sistema, se alcançara a certeza definitiva. «As outras
filosofias são colecções de opiniões, na sua maioria falsas; a minha filosofia
dá-nos um ponto fixo para sempre» — quem não reconhece nisto a tónica de
todo o sistema digno desse nome? Um sistema, para sequer ser um sistema,
tem de se apresentar como um sistema fechado, reversível neste ou naquele
detalhe, talvez, mas nunca nas suas características essenciais!
A ortodoxia escolástica, a que sempre temos de recorrer quando
desejamos encontrar uma afirmação perfeitamente clara, elaborou
belissimamente esta convicção absolutista na chamada doutrina dos «indícios
objectivos». Se, por exemplo, sou incapaz de duvidar de que existo agora
perante vós, que dois são menos do que três, ou que se todos os homens são
mortais, então também sou mortal, é porque estas coisas iluminam o meu
intelecto irresistivelmente. A justificação última destes indícios objectivos
que certas proposições têm é a adequatio intellectus nostri cum re. A certeza
que traz envolve uma aptitudinem ad extorquendum certum assensum por
parte da verdade visada e, por parte do sujeito, uma quietem in cognitione,
assim que o objecto é mentalmente apreendido, não deixando lugar a
qualquer possibilidade de dúvida; e em todo este processo nada opera senão a
entitas ipsa do objecto e a entitas ipsa da mente. A nós, desleixados
pensadores modernos, desagrada-nos a conversa em latim — na verdade,
desagrada-nos conversar com termos bem definidos de todo em todo; mas no
fundo o nosso próprio estado de espírito é muito semelhante a isto sempre
que nos deixamos ir acriticamente: vocês acreditam nos indícios objectivos, e
eu também. De algumas coisas sentimos que estamos certos: sabemos, e
sabemos que sabemos. Algo ressoa em nós, um sino que bate as doze
badaladas, quando os ponteiros do nosso relógio mental deram a volta ao
mostrador e se encontram ao meio-dia. Os maiores empiristas entre nós só o
são quando reflectem: abandonados aos seus instintos, dogmatizam como
papas infalíveis. Quando os Clifford nos dizem como é pecaminoso ser
cristão com base em tão «insuficientes indícios», a insuficiência é na verdade
a última coisa que têm em mente. Para eles, os indícios são absolutamente
suficientes, só que em sentido contrário. Acreditam tão completamente numa
ordem anticristã do universo que não há qualquer opção viva: a hipótese do
cristianismo está morta à partida.
VI
Mas agora, visto que todos somos tais absolutistas por instinto, o que
devemos fazer, na qualidade de estudantes de filosofia, acerca deste facto?
Devemos defendê-lo e sancioná-lo? Ou tratá-lo-emos como uma fraqueza da
nossa natureza, da qual temos de nos libertar, caso o possamos fazer?
Creio sinceramente que o último procedimento é o único que podemos
adoptar enquanto homens de reflexão. Os indícios objectivos e a certeza são
sem dúvida excelentes ideais com que brincar, mas onde, neste planeta
iluminado pela Lua e visitado por sonhos, os encontramos? Eu próprio sou,
portanto, um completo empirista no que diz respeito à minha teoria do
conhecimento humano. Vivo, certamente, de acordo com a fé prática de que
temos de continuar a experimentar e a reflectir sobre a nossa experiência,
pois só assim as nossas opiniões se podem aproximar da verdade; mas creio
que a atitude de adoptar qualquer uma delas — é-me de todo indiferente qual
— como se jamais pudesse ser reinterpretável ou corrigível, é um tremendo
equívoco, e penso que toda a história da filosofia me irá corroborar. Não há
senão uma verdade indefectivelmente certa, que o próprio cepticismo
pirrónico deixa de pé — a verdade de que o fenómeno presente da
consciência existe. Isso, contudo, é o ponto de partida nu do conhecimento, a
mera admissão de uma matéria acerca da qual filosofar. As diversas filosofias
são meras tentativas de exprimir o que esta matéria realmente é. E se vamos
às nossas bibliotecas quanto desacordo descobrimos! Onde se encontra uma
resposta indubitavelmente verdadeira? Além de proposições abstractas
comparativas (tais como «dois mais dois é igual a quatro»), proposições que
em si mesmas nada nos dizem acerca da realidade concreta, não encontramos
qualquer proposição que alguém tenha considerado evidentemente certa ao
ponto de nunca a terem declarado uma falsidade, ou pelo menos cuja verdade
nunca foi seriamente questionada por outrem. Transcender os axiomas da
geometria, não a brincar, mas a sério, por parte de alguns dos nossos
contemporâneos (como Zöllner e Charles H. Hinton), e a rejeição de toda a
lógica aristotélica pelos hegelianos, são exemplos flagrantes a este respeito.
Nenhum teste concreto daquilo que é realmente verdadeiro foi alguma
vez objecto de consenso. Alguns tornam o critério externo ao momento da
percepção, colocando-o na revelação, no consensus gentium, nos instintos do
coração ou na experiência sistematizada do género humano. Outros
transformam o momento perceptivo em teste de si próprio — Descartes, por
exemplo, com as suas ideias claras e distintas garantidas pela veracidade de
Deus; Reid com o seu «senso comum»; e Kant com as suas formas do juízo
sintético a priori. O carácter inconcebível do oposto; a capacidade de ser
verificado pelos sentidos; a posse de unidade orgânica completa ou auto-
relação, realizada quando uma coisa é o seu próprio outro — são cânones que
foram, por sua vez, usados. Os louvadíssimos indícios objectivos não estão,
triunfalmente, em lado algum; é uma mera aspiração ou Grenzbegriff,
assinalando o ideal infinitamente remoto da nossa vida pensante. Afirmar que
determinadas verdades agora o possuem é simplesmente afirmar que, quando
as consideramos verdadeiras, e são verdadeiras, os indícios a seu favor são
objectivos e de contrário não. Mas na prática, a nossa convicção de que os
indícios por que nos guiamos são da variedade genuinamente objectiva, é
apenas mais uma opinião subjectiva que se acrescenta às outras. Pois já se
reivindicou a objectividade dos indícios favoráveis e a certeza absoluta para
uma tão grande variedade de opiniões contraditórias! O mundo é inteiramente
racional — a sua existência é um facto bruto último; há um Deus pessoal —
um Deus pessoal é inconcebível; há um mundo físico extramental
imediatamente conhecido — a mente apenas pode conhecer as suas próprias
ideias; existe um imperativo moral — a obrigação é apenas o resultado dos
desejos; há em todos um princípio espiritual permanente — há apenas estados
mentais inconstantes; há uma cadeia interminável de causas — há uma
primeira causa absoluta; uma necessidade eterna — uma liberdade; um
propósito — nenhum propósito; um Uno primordial — um Múltiplo
primordial; uma continuidade universal — uma descontinuidade essencial
nas coisas; uma infinidade — nenhuma infinidade. Há isto — há aquilo; nada
há, na verdade, que alguém não tenha considerado absolutamente verdadeiro,
ao passo que o seu vizinho o considerou absolutamente falso; e nenhum
absolutista entre eles parece ter alguma vez considerado que o problema pode
ter sido sempre essencial e que o intelecto, mesmo com a verdade
directamente ao seu alcance, pode não ter qualquer sinal infalível para saber
se é ou não verdadeiro. Efetivamente, quando recordamos que a mais
flagrante aplicação prática à vida da doutrina da certeza objectiva foi o
trabalho consciencioso do Santo Ofício da Inquisição, sentimo-nos menos
tentados do que nunca a ouvir com bonomia tal doutrina.
Mas observem agora, peço-vos, que quando, na qualidade de empiristas,
abandonamos a doutrina da certeza objectiva, não deixamos por isso de
procurar a verdade em si ou ter esperança nela. Ainda depositamos a nossa fé
na sua existência e ainda acreditamos que conseguimos progredir cada vez
mais na sua direcção, continuando sistematicamente a acumular experiências
e a pensar sobre elas. A grande diferença entre nós e o escolástico está no
lado para o qual nos voltamos. A força do seu sistema está nos princípios, na
origem, no terminus a quo do seu pensamento; para nós a força está no
resultado, no desfecho, no terminus ad quem. O decisivo não é de onde vem,
mas aonde conduz. Não importa a um empirista qual a procedência de uma
hipótese que se lhe depara: pode tê-la obtido por meios justos ou ilícitos;
pode ter-lhe sido sussurrada pela paixão ou sugerida pelo acaso; mas se a
direcção total do pensamento continuar a confirmá-lo, é isso o que significa
dizer que é verdadeiro.
VII
Um aspecto ainda, pequeno, mas importante, e concluímos os nossos
preliminares. Há duas maneiras de encarar o nosso dever, no que diz respeito
à opinião — maneiras completamente diferentes e, no entanto, maneiras a
cuja diferença a teoria do conhecimento parece ter dado até agora muito
pouca atenção. Temos de saber a verdade; temos de evitar o erro — estes são
os nossos primeiros e grandiosos mandamentos, como pretendentes ao
conhecimento; mas não são duas maneiras de afirmar um mesmo
mandamento, são duas leis distintas. Embora possa de facto acontecer que
acreditar na verdade A tenha a consequência lateral de nos livrarmos de
acreditar na falsidade B, quase nunca se dá o caso de acreditarmos
necessariamente em A apenas por não acreditarmos em B. Podemos, ao evitar
B, acabar acreditando noutras falsidades, C ou D, tão más como B; ou
podemos evitar B tão-pouco acreditando seja no que for, nem mesmo em A.
Acreditem na verdade! Evitem o erro! — Estas, como se vê, são duas leis
materialmente diferentes; e ao escolher entre elas podemos acabar por dar
uma tonalidade diferente a toda a nossa vida intelectual. Podemos encarar a
caça à verdade como primordial e a fuga ao erro como secundária; ou
podemos, por outro lado, tratar a fuga ao erro como algo mais imperativo e
deixar a verdade correr os seus riscos. Clifford, na instrutiva passagem que
citei, exorta-nos a escolher o segundo caminho. Não acreditem em coisa
alguma, diz-nos, mantenham para sempre a mente em suspenso, em vez de,
cingindo-se a indícios insuficientes, incorrer no terrível risco de acreditar
numa mentira. Vocês, por outro lado, podem pensar que o risco de cair em
erro é algo de somenos importância por comparação à bênção do
conhecimento genuíno, e aceitar serem enganados muitas vezes na vossa
investigação em vez de adiar indefinidamente a hipótese de acertar na
verdade. Por mim considero impossível acompanhar Clifford. Temos de
recordar que estes sentimentos sobre o nosso dever perante a verdade ou o
erro são, em todo o caso, apenas expressões da nossa vida passional.
Biologicamente consideradas, as nossas mentes são tão aptas a destilar a
falsidade como a veracidade, e quem afirma «Antes passar toda a vida sem
crenças do que acreditar numa mentira!» apenas mostra o seu preponderante
horror privado de se tornar um palerma. Pode ser crítico relativamente a
muitos dos seus desejos e medos, mas a este medo obedece servilmente. Não
pode imaginar que alguém questione a sua força vinculadora. Da minha parte,
tenho também horror a ser intrujado; mas acredito que neste mundo podem
acontecer coisas piores a um homem além de ser intrujado: pelo que a
exortação de Clifford tem uma ressonância completamente fantástica nos
meus ouvidos. É como um general que diz os seus soldados que mais vale
evitar eternamente a batalha do que arriscar uma única ferida. Não se
consegue assim vitórias sobre inimigos ou sobre a natureza. Os nossos erros
não são com certeza coisas tão horrivelmente solenes. Num mundo onde
estamos tão certos de incorrer neles, por muito prudentes que sejamos, uma
certa ligeireza de espírito parece mais saudável do que este nervosismo
exagerado por sua causa. Em todo o caso, parece o mais apropriado ao
filósofo empirista.
VIII
E agora, depois de toda esta introdução, passemos de imediato à nossa
questão. Afirmei, e agora repito, que não só vemos que, na realidade, a nossa
natureza passional influencia as nossas opiniões como que há opções entre
opiniões em que se tem de encarar esta influência como um factor
determinante, tanto inevitável como legítimo, da nossa escolha.
Receio neste ponto que alguns dos que me ouvem começarão a farejar o
perigo, interpretando-me então de modo não caridoso. Dois primeiros passos
da paixão tiveram de facto de admitir como necessários — temos de pensar
de maneira a evitar a intrujice, e temos de pensar de modo a obter a verdade;
mas o caminho mais seguro para essas consumações ideais, considerarão
muito provavelmente, é de agora em diante não dar mais passos passionais.
Bom, claro que concordo, tanto quanto os factos o permitirem. Sempre
que a opção entre perder a verdade e ganhá-la não é momentosa, podemos
deitar fora a hipótese de obter a verdade e, em qualquer circunstância,
salvaguardar-nos de qualquer hipótese de acreditar em falsidades, não
decidindo sequer antes de haver indícios objectivos disponíveis. Nas questões
científicas, isto é quase sempre assim; e mesmo nos assuntos humanos em
geral, poucas vezes a necessidade de agir é tão urgente que faça uma falsa
crença sobre a qual basear a acção ser melhor do que nenhuma crença sequer.
Os tribunais, de facto, têm de decidir com base nos melhores indícios que se
pode obter no momento, porque o dever de um juiz é tanto fazer a lei como
averiguá-la, e (como me disse em tempos um juiz de grande erudição) poucos
são os casos em que vale a pena perder muito tempo: o importante é decidi-
los com base em qualquer princípio aceitável, e passar adiante. Mas na nossa
relação com a natureza objectiva somos obviamente registadores e não
produtores da verdade; e decisões tomadas apenas em função de decidir
prontamente e passar à próxima tarefa seriam completamente deslocadas. Em
toda a amplitude da natureza física os factos são o que são,
independentemente de nós, e raramente há a propósito deles uma urgência tal
que tenha de se enfrentar os riscos de ser enganado por acreditar numa teoria
prematura. As questões aqui são sempre opções triviais, as hipóteses
dificilmente estão vivas (em todo o caso, não estão vivas para nós
espectadores), a escolha entre acreditar na verdade ou na falsidade raramente
é forçosa. A atitude do equilíbrio céptico é, portanto, absolutamente sensata,
para que evitemos os erros. Que diferença realmente fará para a maior parte
de nós se temos ou não uma teoria dos raios Röntgen, se acreditamos ou não
na substância mental, se temos ou não convicções acerca da causalidade dos
nossos estados conscientes? É indiferente. Tais opções não são forçosas para
nós. Em todos os aspectos, é melhor não as fazer, continuando, todavia, a
pesar as razões pro et contra de modo indiferente.
Falo aqui, é claro, da mente puramente judicativa. No que interessa à
descoberta, tal indiferença não é tão fortemente recomendável, e a ciência
estaria muito menos avançada do que está se se mantivesse fora de cena os
desejos inflamados dos indivíduos em ver confirmada a sua própria fé. Veja-
se, por exemplo, a sagacidade que Spencer e Weismann agora exibem. Por
outro lado, se querem um perfeito bronco a investigar, têm, afinal, de
escolher o homem que não tem qualquer interesse nos resultados: é o inepto
autorizado, o tolo genuíno. O investigador mais útil, porque é o observador
mais sensível, é sempre aquele cujo interesse ardente num dos lados da
questão é equilibrado por um nervosismo igualmente intenso, para que não se
deixe iludir.8 A ciência organizou este nervosismo tornando-o uma técnica
normal, o seu chamado «método de verificação»; e apaixonou-se tão
profundamente pelo método que se pode mesmo afirmar que parou de se
preocupar com a verdade por si, de todo em todo. É apenas a verdade
enquanto tecnicamente verificada que lhe interessa. A verdade das verdades
podia assumir uma forma meramente afirmativa e ela recusaria tocar-lhe. A
ciência podia repetir com Clifford que tal verdade seria roubada em
desrespeito ao seu dever perante a humanidade. As paixões humanas, todavia,
são mais fortes do que as regras técnicas. «Le coeur a ses raisons», como
afirma Pascal, «que la raison ne connaît point»; e por muito que o árbitro, o
intelecto abstracto, seja indiferente a tudo excepto as simples regras do jogo,
os jogadores concretos que lhe dão os materiais para julgar estão
normalmente, cada um deles, apaixonados pela sua própria «hipótese viva»
de estimação. Concordemos, todavia, que sempre que não haja uma opção
forçosa, o intelecto friamente judicativo, desprovido de qualquer hipótese de
estimação, salvaguardando-nos, como faz, do engano, em todo o caso, deve
ser o nosso ideal.
Levanta-se em seguida a questão: não haverá algures opções forçosas nas
nossas questões especulativas, e será que podemos (como homens que talvez
estejam pelo menos tão interessados em obter positivamente a verdade como
em meramente evitar o engano) esperar sempre impunemente até que tenham
chegado os indícios coercivos? Parece a priori improvável que a verdade se
ajustasse assim tão bem às nossas necessidades e poderes. Na grande
hospedaria da natureza, raramente os bolos, a manteiga e o xarope ficam tão
suaves e deixam os pratos tão limpos. Na verdade, devíamos encará-los com
desconfiança científica se o fizessem.
IX
As questões morais apresentam-se imediatamente como questões cuja
solução não pode esperar por uma prova tangível. Uma questão moral não é
sobre o que tangivelmente existe, mas sobre o que é bom, ou seria bom se
existisse. A ciência pode dizer-nos o que existe; mas para comparar os
valores, tanto daquilo que existe como do que não existe, temos de consultar
não a ciência mas aquilo a que Pascal chama o nosso «coração». A própria
ciência consulta o coração quando estabelece que a infinita averiguação dos
factos e a correcção das crenças falsas são os bens supremos para o homem.
Desafie-se a afirmação e a ciência só pode repeti-la de modo oracular, ou
então prová-la, mostrando que tal confirmação e correcção trazem ao homem
todo o género de outros bens que o coração do homem por sua vez declara. A
questão de ter crenças morais, de todo em todo, ou de não as ter, é decidida
pela nossa vontade. Serão as nossas preferências morais verdadeiras ou
falsas, ou serão apenas fenómenos biológicos peculiares, tornando as coisas
boas ou más para nós, mas indiferentes em si? Como pode o vosso puro
intelecto decidir? Se o vosso coração não quer um mundo de realidade moral,
a vossa cabeça seguramente nunca vos fará acreditar num. O cepticismo
mefistofélico, na verdade, satisfará os instintos lúdicos da cabeça muito
melhor do que qualquer idealismo rigoroso. Alguns homens (mesmo em
idade estudantil) são tão naturalmente frios que a hipótese moral nunca tem
para eles qualquer vida pungente, e na sua presença altiva o moralista ardente
sente-se sempre estranhamente pouco à vontade. A aparência de
conhecimento está do lado daqueles, a naiveté e a credulidade do lado deste.
Contudo, no seu coração mudo, este agarra-se à convicção de que não é um
palerma e que há um domínio em que (como afirma Emerson) toda a
perspicácia e superioridade intelectual daqueles não valem mais do que a
astúcia de uma raposa. O cepticismo moral não é mais fácil de refutar ou
provar através da lógica do que o cepticismo intelectual. Quando sustentamos
que há verdade (seja de que tipo for), fazemo-lo com toda a nossa natureza, e
decidimos ficar de pé ou cair, consoante os resultados. O céptico, com toda a
sua natureza, adopta a atitude da dúvida: mas qual de nós é o mais sensato, só
a Omnisciência sabe.
Passemos agora destas questões amplas sobre o bem para certa classe de
questões de facto, questões respeitantes a relações pessoais, estados mentais
entre um homem e outro. Gostam de mim ou não? — por exemplo. Se
gostam ou não, dependerá, em inúmeras circunstâncias, de chegar a acordo
convosco, da minha disposição para pressupor que devem gostar de mim e de
vos mostrar alguma confiança e expectativa. O que vos faz simpatizar
comigo, em muitos casos, é a fé prévia que tenho em como o farão. Mas se
me mantenho à distância e recuso mover-me um só centímetro antes de ter
indícios objectivos, antes de terem feito algo apropriado, como dizem os
absolutistas, ad extorquendum assensum meum, aposto que a vossa simpatia
nunca se manifestará. Quantos corações de mulher se deixam conquistar pela
mera insistência confiante de um homem em como têm de o amar! Não
aceitará a hipótese de que não o podem fazer. O desejo por certo tipo de
verdade provoca aqui a existência dessa verdade especial; e assim é em
inúmeros casos diferentes. Quem ganha promoções, favores, nomeações,
senão o homem em cuja vida se vê que estas coisas desempenham o papel de
hipóteses vivas, que conta com elas, sacrifica outras coisas por causa delas
antes de as ter à vista e se arrisca de antemão por elas? A sua fé age sobre os
poderes acima de si como uma reivindicação, e cria a sua própria verificação.
Um organismo social de qualquer género que seja, pequeno ou grande, é
o que é porque cada membro cumpre o seu dever confiante de que os outros
cumprirão o deles. Sempre que se alcança um resultado desejado pela
cooperação de muitas pessoas independentes, a sua existência factual é uma
pura consequência da fé prévia que as pessoas imediatamente envolvidas têm
umas nas outras. Um governo, um exército, um sistema comercial, um navio,
um colégio, uma equipa de atletas, todos existem sob esta condição, sem a
qual não só nada se alcança, como nada alguma vez se procura alcançar. Um
comboio inteiro de passageiros (que individualmente são bastante corajosos)
será saqueado por um punhado de salteadores, simplesmente porque os
últimos podem contar uns com os outros, enquanto cada passageiro receia
que ao encetar um movimento de resistência, será baleado antes que mais
alguém o ajude. Se acreditássemos que todos os passageiros se levantariam
ao mesmo tempo connosco, cada um levantar-se-ia individualmente, e jamais
se tentaria assaltar comboios. Há, portanto, casos em que um facto não se
pode sequer dar a menos que exista uma fé preliminar no seu advento. E onde
a fé num facto pode ajudar a criar esse facto, uma lógica segundo a qual a fé
que se adianta aos indícios científicos é o «tipo mais baixo de imoralidade»
em que um ser pensante pode incorrer, seria uma lógica doente. No entanto,
tal é a lógica pela qual os nossos absolutistas científicos pretendem regular as
nossas vidas!
X
Nas verdades que dependem da nossa acção pessoal, portanto, a fé baseada
no desejo é certamente algo legítimo e possivelmente indispensável.
Mas agora, dir-se-á, tudo isto são puerilidades humanas, e nada têm a ver
com as grandes questões cósmicas, como a questão da fé religiosa. Passemos
então a essas. As religiões diferem tanto nas suas características acidentais
que ao discutir a questão religiosa temos de a tornar muito genérica e lata. O
que entendemos então agora por «hipótese religiosa»? A ciência diz que as
coisas são; a moralidade diz que umas coisas são melhores do que outras; e a
religião diz essencialmente duas coisas.
Em primeiro lugar, a religião afirma que as coisas melhores são as mais
eternas, as que se sobrepõem, as coisas que no universo lançam a última
pedra, por assim dizer, e dão a última palavra. «A perfeição é eterna» — esta
expressão de Charles Secrétan parece uma boa maneira de colocar esta
primeira afirmação da religião, uma afirmação que obviamente não pode
ainda ser cientificamente verificada, de todo em todo.
A segunda afirmação da religião é que mesmo agora ficamos melhor se
acreditarmos na sua primeira afirmação.
Consideremos agora quais são os elementos lógicos desta situação no
caso de a hipótese religiosa em ambas as suas ramificações ser realmente
verdadeira. (Evidentemente, temos de admitir à partida essa possibilidade.
Para discutirmos a questão, de todo em todo, esta tem de envolver uma opção
viva. Se para qualquer um de vocês a religião é uma hipótese que não pode
ser verdadeira segundo qualquer possibilidade viva, não precisam de ir mais
longe. Falo apenas para as «excepções que restarem».) Procedendo assim,
vemos, em primeiro lugar, que a religião se oferece como uma opção
momentosa. Supostamente ganhamos, agora mesmo, ao acreditar, e perdemos
ao não acreditar, um certo bem vital. Em segundo lugar, a religião é uma
opção forçosa, no que diz respeito a esse bem. Não podemos evitar a questão
permanecendo cépticos e esperando que se faça mais luz, porque, embora
assim evitemos realmente o erro no caso de a religião ser contrária à
verdade, perdemos o bem, no caso de ser verdadeira, tão seguramente como
se de facto escolhêssemos não acreditar. É como se um homem hesitasse
indefinidamente em pedir uma mulher em casamento, por não ter a certeza
absoluta de que depois de a levar para casa ela continua a ser um anjo. Não
estará a privar-se dessa possibilidade angélica particular tão decisivamente
como se casasse com outra pessoa? O cepticismo, portanto, não consiste em
evitar a opção; é a opção por certo tipo particular de risco. Antes arriscar não
acertar na verdade do que a hipótese de cair em erro — esta é a posição
exacta do nosso vetante da fé. Arrisca-se activamente tanto quanto o crente;
está a apostar todos os cavalos contra o cavalo da hipótese religiosa, tal como
um crente aposta na hipótese religiosa contra todos os outros cavalos. Pregar-
nos o cepticismo como um dever até se encontrar «indícios suficientes» a
favor da religião, equivale, portanto, a dizer-nos que, na presença da hipótese
religiosa, é mais sensato e melhor ceder ao nosso medo de que esta seja
errónea do que ceder à nossa esperança de que pode ser verdadeira. Não se
trata do intelecto contra todas as paixões, portanto; trata-se apenas do
intelecto com uma paixão impondo a sua lei. E por que meio, em boa
verdade, se garante a suprema sabedoria desta paixão? Logro por logro, que
prova há de que o logro que resulta da esperança é pior do que o que resulta
do medo? Por mim, não vejo prova alguma; e simplesmente recuso obedecer
à ordem do cientista para imitar o seu tipo de opção, num caso em que o meu
próprio interesse é suficientemente importante para me dar o direito de
escolher a minha própria forma de risco. Se a religião for verdadeira e os
indícios a seu favor ainda insuficientes, não desejo, deixando que extingam as
chamas da minha natureza (que me parece afinal ter algo a ver com este
assunto), abdicar da minha única oportunidade na vida de entrar para o lado
vencedor — dependendo essa oportunidade, evidentemente, da minha
disposição para correr o risco de agir como se a minha necessidade passional
de compreender religiosamente o mundo possa ser profética e correcta.
Tudo isto supondo que pode realmente ser profética e correcta, e que,
mesmo para nós, que discutimos o assunto, a religião é uma hipótese viva que
pode ser verdadeira. Para a maioria de nós, a religião surge-nos de outra
maneira ainda, que torna ainda mais ilógico um veto à nossa fé activa. O
aspecto mais perfeito e eterno do universo é representado nas nossas religiões
como algo que tem uma forma pessoal. Quando se é religioso, o universo não
é mais um mero Isso, mas um Tu, para nós; e qualquer relação que pode ser
possível entre pessoas pode também ser possível aqui. Por exemplo, embora
num sentido sejamos parcelas passivas do universo, noutro sentido
mostramos uma curiosa autonomia, como se fôssemos pequenos centros
activos autónomos. Sentimos, além disso, que é como se o apelo que
sentimos da religião se exercesse sobre a nossa boa vontade activa, como se
os indícios pudessem ficar para sempre escondidos de nós a menos que
percorramos metade do caminho na sua direcção. Tomando numa ilustração
trivial: tal como um homem que numa companhia de cavalheiros não tomasse
quaisquer iniciativas, pedisse uma garantia por cada concessão, e não
acreditasse na palavra de quem quer que fosse sem provas, privar-se-ia, com
tal rudeza, de qualquer gratificação social a que um espírito mais confiante
teria acesso — também aqui, quem se fecha numa atitude lógica resmungona
e tenta fazer os deuses arrancar o seu reconhecimento contra a sua vontade,
não o obtendo de outro modo, pode perder para sempre a sua única
oportunidade de travar conhecimento com os deuses. Este sentimento, que
nos é imposto sem que saibamos de onde vem, de que ao acreditar
obstinadamente que há deuses (embora não o fazer fosse tão fácil tanto para a
nossa lógica como para a nossa vida) prestamos ao universo o mais profundo
serviço de que somos capazes, parece parte da essência viva da hipótese
religiosa. Se a hipótese fosse verdadeira em todas as suas partes, incluindo
esta, então o puro intelectualismo, com o seu veto a que tomemos iniciativas
voluntárias, seria um absurdo; e exigir-se-ia logicamente alguma participação
da nossa empatia natural. Eu, portanto, por mim, não consigo ver-me aceitar
as regras agnósticas para a procura da verdade, ou concordar voluntariamente
em manter a minha natureza volitiva fora de jogo. Não o posso fazer por esta
razão simples: uma regra de pensamento que me impediria em absoluto de
reconhecer certos tipos de verdade se esses tipos de verdade estiverem
realmente lá, seria uma regra irracional. Isto, para mim, é tudo o que há a
dizer sobre a lógica formal da situação, independentemente dos tipos de
verdade que possam materialmente existir.
***
Confesso que não vejo como se pode escapar a esta lógica. Mas a triste
experiência faz-me recear que alguns de vocês ainda possam inibir-se de
afirmar radicalmente comigo, in abstracto, que temos o direito de acreditar
por nossa conta e risco em qualquer hipótese que esteja suficientemente viva
para ser uma tentação para a nossa vontade. Suspeito, contudo, que se isto for
assim, é porque se afastaram completamente do ponto de vista lógico
abstracto e pensam (talvez sem se aperceberem) em alguma hipótese religiosa
particular que para vós está morta. Aplicam a liberdade de «acreditar no que
se quer» a alguma superstição patente; e a fé em que pensam é a fé definida
pelo aluno quando disse: «A fé é quando acreditamos numa coisa que
sabemos não ser verdadeira». Não posso senão repetir que isto é um
equívoco. In concreto, a liberdade de acreditar só pode abranger opções vivas
que o intelecto do indivíduo não pode resolver por si; e as opções vivas nunca
parecem absurdas a quem as tem em consideração. Quando olho para a
questão religiosa tal como se coloca realmente a homens concretos, e quando
penso em todas as possibilidades que envolve, tanto prática como
teoricamente, esta ordem de pôr um travão ao nosso coração, instintos e
coragem, e esperar — agindo evidentemente entretanto mais ou menos como
se a religião não fosse verdadeira9 — até ao dia do juízo, ou até ao dia em
que o nosso intelecto e sentidos, trabalhando conjuntamente, possam ter
adquirido indícios suficientes — esta ordem, digo, parece-me o ídolo mais
bizarro que se fabricou na caverna filosófica. Fôssemos absolutistas
escolásticos, talvez tivéssemos uma desculpa maior. Se tivéssemos um
intelecto infalível, com as suas certezas objectivas, podíamo-nos sentir
desleais perante um órgão de conhecimento tão perfeito ao não confiar
exclusivamente nele, não esperando pela sua palavra libertadora. Mas se
somos empiristas, se acreditamos não haver em nós quaisquer sinos a tocar a
rebate quando estamos perante a verdade, parece que pregar tão solenemente
que temos o dever de aguardar pelo toque do sino não passa de uma
excentricidade vã. Na verdade, podemos aguardar, se quisermos — espero
que não pensem que o nego — mas se o fizermos, fazemo-lo por nossa conta
e risco, tal como se acreditássemos. Em todo o caso agimos, tomando as
rédeas da nossa própria vida. Nenhum de nós devia impor vetos aos outros,
nem trocar palavras agressivas. Devemos, pelo contrário, respeitar delicada e
profundamente a liberdade mental de cada um: só então realizaremos a
república intelectual, só então teremos aquele espírito de tolerância interior
sem o qual toda a tolerância exterior se torna oca, e que é a glória do
empirismo; só então viveremos e deixaremos viver, tanto nas coisas
especulativas como nas práticas.
Comecei com uma referência a Fitzjames Stephen; permitam-me que
termine citando-o:
6. Deus fala-me,
7. Deus criou tudo isto,
8. Deus desaprova o que fiz,
9. Deus perdoa-me, e
10. Há que agradecer a Deus e louvá-lo.
11. Há árvores,
12. Há outras pessoas, e
13. O mundo existe há mais de 5 minutos.
ao contrário do que parece, tem sentido? Claro que não. Mas nesse caso o
mesmo se aplica ao epistemólogo reformista; o facto de rejeitar o critério da
basicidade apropriada do fundacionalista clássico não significa que está
obrigado a supor que qualquer coisa é apropriadamente básica.
Mas qual é então o problema? Será porque o epistemólogo reformista não
só rejeita aqueles critérios para a basicidade apropriada, como não parece
sentir qualquer urgência de apresentar aquilo que considera um melhor
substituto? Se não tem qualquer critério semelhante, como pode rejeitar
honestamente a crença na Grande Abóbora como apropriadamente básica?
Esta objecção trai um importante erro de perspectiva. Como chegamos
correctamente a critérios de significado, ou crença justificada, ou basicidade
apropriada? De onde vêm? Será que temos de ter tal critério antes de
podermos sensatamente fazer quaisquer juízos — positivos ou negativos —
acerca da basicidade apropriada? Seguramente que não. Suponhamos que não
conheço um substituto satisfatório para os critérios propostos pelo
fundacionalismo clássico; estou, não obstante, inteiramente no meu direito ao
defender que determinadas proposições não são apropriadamente básicas em
determinadas condições. Algumas proposições parecem auto-evidentes
quando na verdade não são; é essa a lição de alguns dos paradoxos de
Russell! Não obstante, seria irracional aceitar como básica a negação de uma
proposição que nos parece auto-evidente. De igual modo, suponha que lhe
parece ver uma árvore; seria então irracional aceitar como básica a
proposição segundo a qual não vê uma árvore; ou de que não há quaisquer
árvores. Da mesma maneira, ainda que não conheça qualquer critério de
significado esclarecedor, posso declarar bastante apropriadamente que 17,
acima, não significa coisa alguma.
E isto levanta uma importante pergunta — que Roderick Chisholm nos
ensinou a fazer. Qual é o estatuto dos critérios para o conhecimento, ou
basicidade apropriada, ou crença justificada? Tipicamente, são afirmações
universais. O critério fundacionalista moderno para a basicidade apropriada,
por exemplo, é duplamente universal:
Mas como se pode saber tal coisa? Quais são as suas credenciais? Sem
sombra de dúvida, 18 não é auto-evidente ou apenas obviamente verdadeira.
Mas se não é, como se chega a ela? De que género são os argumentos
apropriados? Claro que um fundacionalista pode achar 18 tão atraente que
simplesmente a aceita como verdadeira, nem apresentando argumentos a seu
favor, nem a aceitando com base noutras coisas em que acredita. Se o faz,
todavia, a sua estrutura noética será auto-referencialmente incoerente. Em si,
18 nem é auto-evidente nem é incorrigível; daí que ao aceitar 18 como básica
o fundacionalista moderno viole a condição da basicidade apropriada que ele
próprio estabeleceu ao aceitá-la. Por outro lado, talvez o fundacionalista tente
apresentar algum argumento a seu favor a partir de premissas que são auto-
evidentes ou incorrigíveis: é extremamente difícil ver, todavia, como poderia
ser tal argumento. E até que o fundacionalista apresente algum argumento, o
que farão os restantes de nós — que não consideramos 18 óbvia ou
convincente, de todo em todo? Como pode o fundacionalista usar 18 para nos
mostrar que a crença em Deus, por exemplo, não é apropriadamente básica?
Por que acreditaríamos em 18, ou lhe daríamos qualquer atenção?
O facto é que, penso, nem 18 nem qualquer outra condição esclarecedora
necessária e suficiente para a basicidade apropriada se segue de premissas
claramente auto-evidentes através de argumentos claramente aceitáveis. E
assim a maneira apropriada de chegar a tal critério é, grosso modo, indutiva.
Temos de reunir exemplos de crenças e condições tais que as primeiras
sejam, de uma maneira óbvia, apropriadamente básicas sob as segundas, e
exemplos de crenças e condições tais que as primeiras, de uma maneira
óbvia, não sejam apropriadamente básicas sob as segundas. Temos então de
enquadrar hipóteses quanto às condições necessárias e suficientes da
basicidade apropriada e testar estas hipóteses por referência àqueles
exemplos. Sob condições adequadas, por exemplo, é claramente racional
acreditar que o leitor vê uma pessoa humana à sua frente: um ser que tem
pensamentos e sentimentos, que conhece e acredita, que toma decisões e age.
É evidente, além disso, que o leitor não tem qualquer obrigação de defender
argumentativamente esta crença a partir de outras que tem; sob aquelas
condições, essa crença é apropriadamente básica para si. Mas então 18 tem de
estar errada; a crença em questão, sob essas circunstâncias, é
apropriadamente básica, embora não seja auto-evidente nem incorrigível para
o leitor. De igual modo, talvez pareça recordar-se de ter tomado o pequeno-
almoço esta manhã, e talvez desconheça qualquer razão para supor que a sua
memória lhe prega partidas. Sendo assim, tem toda a justificação para aceitar
essa crença como básica. Claro que não é apropriadamente básica à luz dos
critérios dados pelos fundacionalistas clássicos; porém, esse facto não conta
contra si, mas contra aqueles critérios.
Em conformidade, tem de se obter os critérios para a basicidade
apropriada a partir de baixo e não a partir de cima; não se os devia apresentar
como ex cathedra, mas sujeitos à argumentação e ao teste por um conjunto
relevante de exemplos. Mas não há razão para supor, antecipadamente, que
todos irão concordar com os exemplos. O cristão irá com certeza supor que a
crença em Deus é inteiramente apropriada e racional; se não aceita esta
crença com base noutras proposições, concluirá que é básica para si, bastante
apropriadamente. Os seguidores de Bertrand Russell e de Madelyn Murray
O’Hare podem discordar, mas como será isso relevante? Terão os meus
critérios, ou os da comunidade cristã, de conformar-se aos seus exemplos?
Certamente que não. A comunidade cristã é responsável pelo seu conjunto de
exemplos, não do deles.
Em conformidade, o epistemólogo reformista pode defender
apropriadamente que a crença na Grande Abóbora não é apropriadamente
básica; apesar de defender que a crença em Deus é apropriadamente básica e
apesar de não ter qualquer critério, com pernas para andar, da basicidade
apropriada. Claro que está comprometido com o pressuposto de que há uma
diferença relevante entre a crença em Deus e a crença na Grande Abóbora, se
defende que a primeira é apropriadamente básica, mas não a segunda. Mas
isto não deverá ser um grande constrangimento; há bastantes candidatos.
Estes candidatos encontram-se na proximidade das condições que mencionei
na última secção, que justificam e fundamentam a crença em Deus. Assim,
por exemplo, o epistemólogo reformista pode concordar com Calvino na
afirmação de que Deus implantou em nós uma tendência natural para ver a
sua mão no mundo à nossa volta; o mesmo não se pode afirmar da Grande
Abóbora; não existindo qualquer Grande Abóbora nem qualquer tendência
natural para aceitar crenças acerca da Grande Abóbora.
Em jeito de conclusão, portanto: ser auto-evidente ou incorrigível, ou
evidente sensorialmente, não é uma condição necessária da basicidade
apropriada. Além disso, quem defende que a crença em Deus é
apropriadamente básica não está por isso comprometido com a ideia de que a
crença em Deus é infundada ou gratuita ou que não tem circunstâncias
justificantes. E mesmo que careça de um critério geral para a basicidade
apropriada, não está obrigado a supor que qualquer crença ou quase — a
crença na Grande Abóbora, por exemplo — é apropriadamente básica. Como
toda a gente o devia fazer, começa com exemplos; e pode aceitar a crença na
Grande Abóbora como um paradigma da crença irracional básica.
Ver, por exemplo, Brand Blanshard, Reason and Belief (Londres: Allen &
Unwin, 1974), pp. 400 ss, W. K. Clifford, «A Ética da Crença» (Cap. 2 deste
volume), A. G. N. Flew, The Presumption of Atheism (Londres: Pemberton
Publishing Co., 1976), p. 22, Bertrand Russell, «Why I am not a Christian»,
in Why I am Not a Christian (Nova Iorque: Simon & Schuster, 1957), pp. 3
ss. e Michael Scrivin, Primary Philosophy (Nova Iorque: McGraw-Hill,
1966), pp. 87 ss. Em «Is Belief in God Rational?» in Rationality and
Religious Belief, org. C. Delaney (Notre Dame: University of Notre Dame
Press, 1979), considero e rejeito a objecção indiciarista à crença teísta.
Um pensador ou teólogo reformista é alguém intelectualmente afecto à
tradição protestante que remonta a João Calvino (e não alguém que foi
anteriormente teólogo e que depois viu a luz).
Origem dos ensaios